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  • 95Comunicao e Filosofia. Ano 17, 2 semestre 2009LOGOS 31

    Discursos de identidades em tiras de humor: anlise em duas vertentes crticas

    Identities discourse in comics: analysis in two critical versions

    Srgio Arruda de Moura | [email protected] Associado I da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Doutor em Literatura Comparada (UFRJ), com pesquisa ps-doutoral em Anlise

    do Discurso Literrio (Universit de Paris XII, Val de Marne)

    Eliana Maria Borges | [email protected] da Escola Agrotcnica Federal (Alegre-ES) e

    Mestre em Cognio e Linguagem (UENF).

    RESUMOO artigo prope uma anlise de tiras de humor sob o enfoque da Anlise do Discurso Crtica, segundo Fairclough e Moita Lopes, considerando as categorias de sujeito, identidade e discurso. O estudo parte de um breve prembulo da histria e da anlise do quadrinho com base em autores clssicos dos anos 1970, tais como Eco, Dorfman & Mattelart e Cirne para distinguir correntes crticas e situar o surgimento de abordagem diferenciada de sujeito desenvolvida recentemente nos domnios da anlise do discurso.Palavras-chave: discurso, sujeito, identidades, quadrinhos

    ABSTRACTThe article proposes an analysis of comics under the focus of Critical Discourse Analysis according to Fairclough and Moita Lopes, taking into account the categories of subject, identity and discourse. The study starts with a brief preamble of the comic analysis and history based upon some classical authors of the 1970s, such as Eco, Dorfman & Mattelart, as well as Cirne, in order to distinguish critical methods, and report the appearance of a different approach of the subject, developed recently in the domains of the discourse analysis.Keywords: discourse, subject, identities, comics

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    Apresentao

    Essa mais uma daquelas noites em que Marly se prepara para dormir. Deitada, pensativa, ela est s, triste e deprimida, pois sente que a vida real a maltrata e a expulsa do convvio com os homens. Todavia, se verdade que a esperana a ltima que morre, nem tudo est perdido: ainda se pode buscar abrigo no mundo dos sonhos. Certamente, l ser aceita e poder ser feliz como qualquer pessoa afinal tudo possvel nos sonhos. Pobre Marly! At dos sonhos, os homens lhe expulsam com um... pontap no traseiro.

    Estamos lidando com a personagem de uma tira de humor, criada em 1973, e publicada nA Gazeta, dirio impresso que circula no estado do Esprito Santo. Tradicionalmente presentes nas pginas dos mais diversos veculos im-pressos, estes personagens refletem caricaturalmente esteretipos populares urbanos contemporneos e podem se prestar s mais diversas metodologias de anlise, sendo as pioneiras aquelas empreendidas por Eco (1993 [1976]), Dorfman e Matterlart (1982, [1971]) e, no Brasil, Cirne (1975), s para citar os mais conhecidos.

    Praticadas nos anos 1970, as anlises em questo pelos seus respectivos autores obedecem aos modelos e aos arcabouos tericos de base marxista, calcados no conceito de cultura de massa, de evidentes estruturaes ideol-gicas, com base ainda em conceitos como o de manipulao, imperialismo e indstria cultural.

    No faz muito tempo, Eco (1993 [1976]), com o seu Apocalpticos e in-tegrados, comps um painel da cultura de massa e l examinou todos os ele-mentos que a compem. Sobre os comics, empreendeu uma detida anlise dos heris clssicos de quadrinhos, entre eles o Super-Homem e Charlie Brown (Peanuts, ou Minduim, como foi traduzido), cada um situado na mesma esfera de consumo, ainda que distintamente apreciados de acordo com categorias como gosto, culto e adeso.

    Quanto ao primeiro, sua anlise se detm no exame cuidadoso de sua estruturao com base no modo de apreciao da narrativa na era clssica e me-dieval. Segundo Eco, as narrativas mticas e lendrias, bem como os feitos de heris, se repetem. Repassadas oralmente, tm seus esquemas reconhecidos pela audincia cada vez que so repetidas e, mesmo com final conhecido, provocam o maravilhamento. Sua anlise flagra o mito no heri dos quadrinhos calcado numa configurao narrativa esttica que sustenta por sua vez o mito da perma-nncia e implacabilidade do poder o resultado a redundncia, a repetio.

    A personagem mitolgica da estria em quadrinhos [...] tem que ser um arqutipo, a soma de determinadas aspiraes coletivas, e, portanto, deve, necessariamente, imobilizar-se numa fixidez emblemtica que a torne facilmente reconhecvel (e o que acontece com a figura do Superman) (ECO, op. cit.: 251).

    Ou seja, as histrias em quadrinho chegam ao consumidor mdio com seus contedos dirigidos, instrudos semanticamente para a leitura, portanto, repetidos. Assim, o Super-Homem, que rene num s personagem a totalidade

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    de todos os poderes, gera uma anlise que obrigatoriamente flagra apenas um dos aspectos ideolgicos mximos em sua estrutura.

    Podemos dizer que um modelo ideolgico aproximado de anlise dire-ciona a crtica que Dorfman e Mattelart fazem do mundo Disney, em Para ler o Pato Donald (op. cit), sobretudo quando a anlise, ela em si, fora empreendi-da com o propsito de denunciar a poltica externa do governo norte-america-no na interferncia e influncia que exercia na poltica da Amrica Latina. Na galeria Disney, os autores definem sobremaneira apenas a ideologia subjacente aos quadrinhos, identificando nas histrias um projeto intencionalmente im-perialista calcado em uma pedagogia da submisso das culturas submetidas ao poder dominante.

    Porm, a anlise ideolgica se refina quando o foco recai sobre perso-nagens menos estereotipados do ponto de vista mtico-ideolgico. Voltemos a Eco para apreciar sua anlise dos personagens de Charlie Schulz, mais co-nhecidos como a turma do Charlie Brown. Esta verdadeira galeria de perso-nagens situados na pr-infncia encarna as neuroses, a antipatias e a mesqui-nhez tanto do mundo adulto, quanto do seu prprio, como se a sociedade os tivesse j corrompido na raiz, e criado monstros disfarados de crianas. Caracterizando-a como uma pequena comdia humana de bolso (numa clara analogia monumental obra de Balzac), Eco nos conduz por uma anlise que termina por nos fazer crer que possvel cultura de massa provocar o sublime e a crtica elevando-se quintessncia da sutileza por dispor de meios para o fazer. Minduim, ou Charlie Brown,

    capaz de variaes de humor de tom shakespeareano [...] e o lpis de Shultz consegue reproduzir essas variaes com uma economia de meios que raia o milagre (ECO, id: 288).

    Essa frmula nos inclina a avaliar a cultura de massa como um conjunto de aparelhos e procedimentos estticos que serve tanto aos mecanismos de controle do estado, segundo a teoria dos aparelhos ideolgicos, como tambm pode submeter crtica o seu prprio status. Afinal, fez parte do prprio pro-jeto da modernidade embutir nele a crtica dos seus procedimentos. Decorre, assim, que Apocalpticos e integrados evoca os dois modos de encarar a socie-dade submetida aos mass media: de um lado, os apocalpticos que viam na sociedade de massa a anti-cultura, a derrocada das conquistas do Iluminismo e da crena nos valores mais altos da cultura; e de outro, os integrados, que reforavam junto com as massas a crena no otimismo e na harmonia de uma cultura acessvel a todos.

    Na era da ideologia, parecia simples analisar um produto. Era o bas-tante verificar a sua pertinncia a um nvel (alto) ou outro (baixo) da cultura, segundo a frmula criada desde a escola crtica de Frankfurt, para caracteriz-la como semanticamente orientada para propsitos ideolgicos. Tambm o conceito de meios de comunicao de massa facilitava essa operao, uma vez que a teoria impunha o carter linear do percurso emissor-receptor, quanto ao carter inequvoco da mensagem que atingia as massas de forma unificada e

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    irredutvel. O receptor passivo se punha no extremo final de uma rede, sem chance, de fato, de interagir dentro de sua fechada estrutura de controle. Hoje, quando, ao invs de uma cultura de massa, nos vemos na iminncia do mul-ticulturalismo estimulado pela revoluo digital que traz a reboque tantas transformaes que quebraram a inviolabilidade das redes de comunicao e informao, esse modelo de anlise do quadrinho deve ser revisto.

    Contemporaneamente, vencida a voga estruturalista e as determinantes marxistas de anlise, assumimos o conceito de discursos e subjetividade como posies dialticas, como forma de corrigir e evitar a nfase na determinao do discurso pelas estruturas sociais invariavelmente rgidas e inflexveis. Essa posio enfatiza que os sujeitos so posicionados ideologicamente, mas tambm so capazes de agir criativamente no sentido de realizar suas prprias conexes entre as diversas prticas ideolgicas a que so expostos, e de reestruturar as prticas e as estruturas posicionadas.

    Nesse sentido, assumimos a ideologia como propriedade tanto de estru-tura quanto de evento, segundo Fairclough (2001). Tambm por essa via, nos detemos no discurso como campo de anlise das identidades, especialmente quando se trata de uma proposta de anlise de um aspecto dos quadrinhos e tiras publicados em jornais impressos. Invocamos necessariamente a categoria de sujeitos, afinal, o sujeito o sintoma maior da cultura, na interseco que este provoca nos domnios da histria e da ideologia.

    Tambm hoje, findo o estruturalismo e a voga da autonomia do texto, o conceito de interatividade insere o leitor e suas idiossincrasias no mundo da construo dos sentidos. O texto no tem quer ser compreendido ou (pior ainda) decifrado porque estando escondidos, os sentidos precisam apenas retomar a experincia adormecida do leitor para reaparecer. E no mundo dos quadrinhos, ou tiras de humor, esses sentidos esto em latncia e remetem refe-rencialmente a um universo bastante abrangente de formulaes identitrias.

    Passemos agora a um outro universo crtico em que o sujeito no se en-contra clivado entre uma determinao que no reconhece sua (o inconscien-te) nem assujeitado ideologicamente j que a ps-modernidade lhe franqueou lugar(es) diverso(s), mas cindido entre um padro scio-cultural ameaador e uma intencionalidade que recusa essa ameaa.

    Identidades sociais de gnero

    Compreender como cada um de ns torna-se a pessoa que , a partir dos discursos sobre quem somos ou uma viso da vida humana como mltipla e plural, e ao mesmo tempo fragmentada (Moita Lopes, 2002: 15), despertou nosso interesse pela investigao da construo discursiva do gnero, imersos que estamos nos domnios do discurso.

    A temtica das identidades sociais est diretamente ligada a uma concep-o de linguagem como discurso. Ao fazermos uso da lngua, expomos valores e crenas, refletimos nossa viso de mundo a partir da viso do grupo social ao qual pertencemos; as pessoas constroem significados agindo no mundo no e

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    pelo discurso e, construindo-se, constroem os outros (seus interlocutores) tam-bm. Assim sendo, o discurso tem papel fundamental na representao e na constituio da vida social, pois aprendemos a ser quem somos nas prticas dis-cursivas nas quais agimos e atuamos no mundo e com as outras pessoas (Moita Lopes, 2003). Considerando-se sua fora constitutiva, compreendemos discurso como um modo de ao sobre o mundo e sobre os outros (Fairclough, 2001: 91). Acrescentamos a essa ao uma forma de nos apresentarmos ao mundo j que, ao discursarmos, todos os valores afetam nosso discurso. Fazemos uma imagem de ns mesmos e uma imagem do outro quando falamos. Pela mesma via, tambm construmos uma imagem que julgamos terem de ns mesmos. A esse imperativo do discurso, somamos o valor de gnero (o masculino e o feminino) construdo socialmente.

    O conceito de gnero est implicado lingustica e politicamente nas lutas do movimento feminista contemporneo (LOURO, 2003: 14; HALL, 2002). A partir dos debates suscitados pelo movimento, as proposies tericas que vm sendo construdas passaram a utilizar tal conceito visando compreenso do que poderia representar ser homem ou mulher em determinado meio so-cial e em um momento histrico especfico e, consequentemente, possibilitar a visibilidade de diferenas entre as pessoas que podem estar contribuindo para estimular discriminaes sociais:

    O conceito passa a ser usado, ento, com um forte apelo relacional j que no mbito das relaes sociais que se constroem os gneros. (...) Busca-se, intencionalmente, contextualizar o que se afirma ou se supe sobre os gneros, tentando evitar as afirmaes generalizadas a respeito da Mulher ou do Homem (Louro, 2003: 22 aspas nossas).

    Neste trabalho, o gnero visto como sendo uma construo social, his-trica e cultural cujas referncias so elaboradas a partir da diferena biolgica entre os sexos. Tanto quanto a etnia ou a classe social, o gnero uma categoria importante a ser considerada na anlise de fenmenos sociais, tendo em vista que nossa vivncia diria se constri atravs das diversas interaes que esta-belecemos com nossos interlocutores sociais, e que as questes que envolvem o gnero organizam a vida humana, determinando e filtrando o agir das pessoas no mundo. Isso implica abandonar a explicao da biologia como responsvel pela assimetria de poder entre homens e mulheres, enfim, pelas diferenas de exerccio da cidadania entre ambos, abrindo espao para que se possa dar visi-bilidade s desigualdades e discriminaes sociais entre as pessoas.

    A relao representao-tiras de humor

    Os desenhos humorsticos, tais como as tiras de humor, so um exemplo de manifestaes discursivas surgidos no seio da imprensa de massa, ao longo da modernidade do sculo XX, como forma de expresso pessoal que redun-dou em um gnero do humor.

    As tiras humorsticas so tipos de histrias em quadrinhos mais curtas (em geral, compostas de quatro quadrinhos, no mximo) que operam com a frmula de uma piada por dia e so bastante exploradas pela mdia impressa. O

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    efeito de humor nesses textos obtido basicamente atravs do modo como so produzidos personagens e construdas as temticas abordadas, e como, muitas vezes est a a reinveno do comic contemporneo , nas suas aes, entram em contradio com o pr-construdo ideolgico.

    Atualmente, as tiras de quadrinhos so presenas quase obrigatrias nes-ses peridicos (jornais e revistas), mas desde muito tempo (por volta do sculo XIX) as grandes cadeias jornalsticas j comeavam a perceber a importncia da explorao de recursos grficos (ilustraes, fotografias, charges, cartuns e quadrinhos) como forma de impulsionar as vendas de seus produtos. impor-tante destacar que qualquer gnero textual tem papel relevante na constitui-o de uma sociedade e da cultura desta. Nas tirinhas humorsticas, podemos encontrar representaes que refletem uma rede de conhecimentos, valores e crenas as quais podem reproduzir ou subverter a realidade social em que se inserem. Isso porque, como qualquer outro texto, as tirinhas tambm sofrem influncias sociais, histricas, culturais e, sobretudo, ideolgicas; nesse sentido, podemos dizer que no se tratam de textos inocentes (Cirne, 1982: 11).

    Refletindo conflitos, frustraes, grandezas e misrias da vida humana no meio urbano, certas tirinhas podem levar os leitores a posicionarem-se diante das temticas desenvolvidas nessas histrias e da atuao de personagens. Por essa razo, acreditamos que esses quadrinhos podem tornar-se um locus no pro-cesso de construo de feminilidades e masculinidades. Dessa forma, tambm podem se revelar poderoso instrumento de crtica social e de certos modos de se enxergar a diversidade humana ou, ao contrrio, contribuir para a reproduo de algumas verdades socioculturalmente construdas acerca do universo femi-nino e masculino, respaldando assimetrias de poder entre os gneros.

    As personagens analisadas

    Considerando-se que so presenas dirias no cotidiano de leitores, em que medida certas tiras de quadrinhos podem estar participando na disse-minao de preconceitos, crenas e valores que circulam socialmente? Essa uma das questes que nos levou a optar por observar como os discursos dessas historinhas podem colaborar no processo de construo/constituio de iden-tidades sociais de gnero.

    O foco de nossa anlise, que se baseia nos pressupostos tericos da anlise crtica do discurso (Fairclough, 2001) e na viso socioconstrucionista de discurso e identidade (Moita Lopes, 2002; 2003), reside na investigao da construo discursiva do gnero em Marly, Samanta e Gervsio, personagens que circulam diariamente na mdia impressa capixaba, especificamente no jornal A Gazeta.

    Marly, personagem mais antiga e conhecida nas terras capixabas, uma produo de Mlson Henriques cuja temtica central so as frustraes e con-flitos vividos por uma mulher de meia-idade, solteira e ainda virgem. O maior dilema da personagem realizar seu grande sonho de entregar sua virgindade ao seu suposto prncipe encantado, casar-se e viver com ele uma linda histria de amor. O problema que ela est totalmente fora dos padres estticos atuais, segundo os quais a mulher tem que ser magra, ter altura acima da mdia, alm

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    de um corpo dentro de medidas tambm estipuladas pelos mesmos critrios de proporcionalidade. Se possvel, essa mulher deve ser loura, jovem, bem tratada e provocante, especificamente pelos seus dotes fsicos. S assim ela estar apta a tornar-se objeto do olhar e do desejo masculino. A produo do humor opera exatamente com o reverso desse esteretipo, ou seja, com a dupla negao, j que a mulher que no tem esses atributos vive a frustrao da impossibilidade da realizao do desejo. Para o cartunista que explora esse filo, a mulher mais velha e feia dificilmente vai conseguir realizar-se afetivamente.

    Por outro lado, um outro filo segue uma viso diferente, porm no contraditria da anterior. As situaes exploradas nas tirinhas da personagem Samanta (tambm no dirio A Gazeta), uma criao do capixaba Alberto Alpino, apresentam sempre algum aspecto relacionado ao cotidiano das mulheres que vivem nos meios sociais urbanos: seus problemas relacionados a relacionamen-tos na vida particular e no trabalho, frustraes, conflitos e outros temas que permeiam o universo de atuao feminino nas grandes cidades. O humor opera com caracterizaes apontadas como sendo tipicamente femininas.

    Por sua vez, o mecnico Gervsio uma produo do desenhista e car-tunista Gilberto Zappa (jornal A Gazeta) cujo humor consiste, basicamente, na explorao da temtica da violncia domstica mostrada atravs do recurso da inverso de papis sociais: a personagem masculina que sofre as ameaas e as agresses dirias da esposa Jandira.

    Anlise das personagens

    A anlise construda a partir dessas observaes iniciais revela, inicial-mente, que os discursos de gnero disponibilizados nessas tirinhas trabalham com caracterizaes generalizadas e estereotipadas para feminilidades e mas-culinidades, impossibilitando vislumbrar as diversas possibilidades de constru-o identitria disponveis entre sujeitos.

    Nas tirinhas de Marly, verificamos que, de modo geral, a construo da identidade feminina mostra-se marcadamente associada s vises legitimadas pelo senso comum, ratificando a caracterizao do ser feminino em termos de futilidades, fofocas, da propenso a produzir ininterruptamente discursos va-zios de sentidos prticos, bem como de sua inclinao a ataques de histeria por motivos frvolos, fteis como se pode perceber, por exemplo, na figura 1.

    Fig. 1. A Gazeta, 15/04/04.

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    Tais histrias fazem crer que descontrole emocional e histeria so com-portamentos tipicamente femininos. A fragilidade e falsidade das amizades entre mulheres, bem como a necessidade vital de ter um companheiro so tematizados em vrios quadrinhos.

    Assim sendo, conclumos que Marly se constri como uma mulher que no tem voz social no meio em que atua, pelo fato de no se encaixar nos rgi-dos padres de beleza fabricados socioculturalmente e corroborados pela m-dia. Tais padres no possibilitam a sua ao no meio em que vive, excluindo-a de prticas como a de viver uma relao afetiva ou sexual plena, feliz. Tudo isso se agrava ainda mais pelo fato de ela no s representar o mito da solteirona, como tambm o da mulher quarentona no senso comum.

    Tambm nas tiras de Samanta, encontramos uma construo da feminilida-de assujeitada a padres estticos socialmente definidos, sobretudo pela mdia, em que esto implicadas as censuras e as sanes sobre como as mulheres deveriam ser e no como so, de fato, com base na fabricao de um modelo ideal de feminilida-de que reproduz uma imagem estereotipada das identidades sociais femininas.

    Samanta uma jovem de cerca de vinte e dois anos, heterossexual, que trabalha em uma empresa de exportao. Ela divide o apartamento onde mora com a amiga Milu e o cachorro de estimao, Plato. Seus maiores desejos so a ascenso profissional e a realizao afetiva, o que implica necessariamente em uma busca do par perfeito. As situaes exploradas em suas histrias temati-zam o universo de atuao das mulheres na esfera social urbana. Decorre deste cenrio uma outra busca, desta vez desenfreada, do consumismo e mais uma vez temos uma personagem feminina a protagonizar uma doena do capita-lismo, numa sociedade industrial. O discurso decorrente aquele que coloca a mulher como uma compradora compulsiva, ligada principalmente ao con-sumo de produtos relacionados ao vesturio e esttica corporal. Observamos que, quase sempre, a personagem aparece atuando em espaos diretamente relacionados atividade de compras ou ao comrcio em geral, tais como depar-tamentos ou sees de lojas (como provadores de roupas, por exemplo), shop-pings, restaurantes e outros. Mas, muitas vezes, esse discurso tambm se revela em situaes triviais como conversas informais travadas no local de trabalho da personagem protagonista ou no apartamento onde mora. So histrias nas quais a ideia de que as mulheres compram compulsivamente, sem que haja real necessidade do produto, claramente referendada, como mostra a figura 2.

    Fig. 2. A Gazeta, 11/12/04.

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    Segundo esse discurso, as mulheres nem sempre conseguem resistir aos apelos do comrcio e acabam levando qualquer coisa para casa (como um ele-fante, por exemplo), agindo por pura compulso. Percebemos tambm vrias sequncias em que o ser feminino aparece como incapaz de construir pensa-mentos mais elaborados, alm de mostrar-se uma pessoa extremamente ftil, afetivamente carente, com exagerada preocupao com os padres estticos ditados pela mdia. No conjunto, essas histrias, como nas tirinhas da Marly, corroboram a caracterizao do ser feminino em termos de futilidades, frivo-lidades, consumismo, vaidade excessiva, fragilidades, carncia e dependncia emocional como sendo intrnsecas a todas as feminilidades.

    Por fim, em Gervsio, a dominao masculina nos jogos afetivos ques-tionada, ao trazer-se, aparentemente, uma construo do masculino que assi-nala um comportamento menos agressivo ou violento, traos apontados como sendo tipicamente masculinos.

    Gervsio um mecnico que vive s voltas com a mulher Jandira, uma mulher impositiva, por vezes cruel, sempre pronta a acabar com o que ela considera suas safadezas. Uma situao comum em diversas tiras focaliza o personagem tentando assumir uma postura de pessoa mais arrojada e decidida, inerente ao imaginrio social em torno da figura masculina atitude que sempre frustra-da pela interferncia direta ou indireta da mulher na cena. Traos de uma viso estigmatizada da masculinidade sempre podem ser inferidos dessas histrias, ainda que o comportamento do personagem leve a crer justamente o contrrio, como o caso da sequncia a seguir, na qual o personagem tenta assumir a masculinidade cristalizada no senso comum.

    Fig. 3. A Gazeta, 03/09/04.

    O enquadre da mulher estalando os dedos do homem feito em close-up sugere, novamente, o pressuposto de que o espao que ela ocupa na re-lao imenso, devido fora bruta que possui. Mais um exemplo do que chamamos de efeito do cmico, como resultado de uma contradio. Ela capaz de subjugar o marido a uma condio de inferioridade tal, que ele se v forado a realizar tudo o que ela ordena, com um simples estalar de dedos, literalmente. Os valores considerados e legitimados pela ao do personagem so os que permeiam o imaginrio acerca daquilo que aprendemos a conceber como masculino e feminino. Cabe ressaltar que Gervsio est sempre assi-nalando sutilmente que essa postura de fraqueza no corresponde imagem de identidade que deseja para si prprio. Apesar de, s vezes, a percepo dos traos que constroem uma masculinidade tpica no seja to sutil, na tentativa

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    de resgatar certa sensibilidade para a masculinidade, reproduzem-se vises de mundo conservadoras e patriarcais que estigmatizam a construo identitria, ao referendar-se a necessidade de manuteno da virilidade para o masculino. Podemos perceber, inclusive, que as cenas representadas em vrias sequncias trazem tona questes consideradas privativas da masculinidade de prestgio referentes a discursos que circulam no imaginrio popular brasileiro e so fre-quentemente rememorados e explorados nos discursos da mdia.

    Assim, mais do que meramente divertidos, conclumos que esses discur-sos, de certa forma, contribuem para legitimar esteretipos femininos e mas-culinos construdos socioculturalmente que, historicamente, tm incentivado as desigualdades sociais existentes entre os gneros.

    A despeito das diversas transformaes nos costumes e valores, o mundo contemporneo tem a iluso de proporcionar oportunidades iguais de exerccio da cidadania a feminilidades e masculinidades. Apesar dos aparentes avan-os, podemos perceber que estes nunca sero suficientes para eliminar com-pletamente as muitas diferenas existentes entre as pessoas, uma vez que as identidades se fazem na arena do discurso e no no mundo tico da polidez disfarada nos manuais de etiqueta ou dos avanos da civilidade.

    No dizer de Cirne (2000), os quadrinhos so considerados discursos esttico-semiolgicos profundamente significativos. Porque h sempre em suas formulaes conteudsticas, uma porta aberta para o social, para o po-tico, para o poltico, para o filosfico, para o religioso, para o demasiada-mente humano, enfim. (2000, 25). E esta mltipla entrada esta atravessada de sentidos em clivagem.

    Apesar de generalizadas, as concepes de gnero construdas podem desempenhar papel relevante no discurso dessas tiras, a partir do momento em que nos deparamos com outras prticas discursivas nas quais nossas identida-des podem ser reexperienciadas e reposicionadas.

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    Referncias bibliogrficas

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    ECO, Umberto. Apocalpticos e integrados . So Paulo: Perspectiva, 1993 [1976].

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    HALL, Stuart. A identidade cultural na ps-modernidade (Trad. Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro). 4. ed. Rio de janeiro: DP&A, 2002.

    LOURO, Guacira Lopes. Gnero, sexualidade e educao: uma perspecti-va ps-estruturalista. Petrpolis-RJ: Vozes, 2003.

    MOITA LOPES, Luiz Paulo da (org.). Discursos de identidades: discurso como espao de construo de gnero, sexualidade, raa, sexualidade e pro-fisso na escola e na famlia. Campinas-SP: Mercado das Letras , 2003.

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