13 incidentes suspeitos - lemony snicket

8/10/2019 13 Incidentes Suspeitos - Lemony Snicket

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Ilustrações: SethTradução: André Czarnobai




Seguem anexos treze (13) relatórios arquivados como “Inci den-tes suspeitos”. Estes treze (13) relatórios possuem treze (13) conclu-sões que foram separadas por razões de segurança. Os relatóriosestão no Subarquivo um (1) e as conclusões no Subarquivo B (b), demodo a tornar impossível que cada relatório e sua respectiva con-clusão estejam no mesmo lugar ao mesmo tempo. Para sua conve-niência, ambos os subarquivos estão incluídos neste volume enca-dernado.

As informações aqui contidas são secretas e muito importantes, des-tinadas apenas aos membros da nossa organização. Se você nãoé um membro da nossa organização, por favor, largue este livro,

uma vez que ele não é nem secreto nem importante e, portanto, nãovai interessá-lo.

Toda informação que estiver arquivada incorretamente, por defini-ção, não é da sua conta.




Subarquivo um:RELATÓRIOS

Trabalho interno. Criatura furtada. Bilhete de resgate.Walkie-talkie. Gangue da pesada. Colher de prata.Açougueiro violento. Doze ou treze. Demônio dameia-noite. Três suspeitos. Mensagem desaparecida.Fantasma perturbador. Vulto no nevoeiro.



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TRABALHO INTERNO

Certo dia, pela manhã, eu estava discutindo com a adulta responsável por mim. enho certeza de que não precisodescrever isso para você, já que um dos maiores proble-mas do mundo é que esse tipo de discussão acontece emquase todos os lugares, quase todas as manhãs, envol-

vendo praticamente todas as crianças que existem e al-gum adulto. Outro dos maiores problemas do mundoé S. Teodora Markson. Durante minha estadia emManchado-pelo-mar, Teodora era minha tutora, e euera seu aprendiz. Ser seu aprendiz signicava que nósdividíamos um quartinho num hotel chamado Braços




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Perdidos. O quarto era pequeno demais para ser dividi-do com um dos maiores problemas do mundo, entãoprovavelmente era por isso que estávamos discutindo.

— Lemony Snicket — ela estava dizendo —, mediga exatamente o que significa ser um aprendiz.

— S. heodora Markson — eu disse —, me digaexatamente o que oS do seu nome significa.

— Respostas sarcásticas não são adequadas — eladisse. — Nem inteligentes.

— Eu sei — eu disse, e sabia. “Sarcástico” é umapalavra que, neste contexto, significa “o tom irônico quevocê usa numa discussão”, e “inteligente” se refere aotom que você deveria usar no lugar.

— Se você é esperto o bastante para saber disso —disse heodora, de maneira sarcástica —, então me digatudo o que sabe sobre ser um aprendiz.

— Eu e você fazemos parte de uma organização secre-ta —, comecei, mas Theodora ficou olhando loucamentepara os lados e sacudiu a cabeça. O cabelo da minha tu-tora era uma maçaroca felpuda e maluca, então quandoela olhava para os lados e sacudia a cabeça era como tes-temunhar um tumulto numa fábrica de vassouras.




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TRABALHO INTERNO

— Shhh! — ela disse.— Por que “shhh”?— Você sabe por que “shhh”. Você não deveria falar

sobre nossa organização secreta. Nem deveria dizer aspalavras “organização secreta” em voz alta.

— Você acabou de dizer duas vezes.— Não conta se eu as disser para pedir a você que

não as diga.— Bem, então o que posso dizer no lugar delas?— Você sabe o quê.— Não, não sei — eu disse. — Foi por isso que

perguntei.— Diga “você sabe o quê” — disse heodora — em

vez de “organização secreta”. Assim você não precisa di-zer “organização secreta” em voz alta, que é uma coisaque você jamais deve fazer.

— Exceto se for para me pedir para não dizer — eua lembrei, e continuei com minha resposta. — Eu evocê fazemos parte de uma você sabe o quê, e ser seuaprendiz significa que estou aprendendo todos os mé-todos e técnicas usados por você sabe o quê. Existemplanos sinistros em andamento neste vilarejo, e nós de-





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vemos trabalhar juntos para impedi-los em nome devocê sabe o quê.

— Errado — disse heodora, sacudindo a cabeleirade maneira severa. — Ser meu aprendiz significa quevocê deve fazer tudo o que eu disser.

— Não foi isso que me disseram — eu disse.— Quem?— Você sabe quem — eu disse, só para garantir —,

em você sabe o quê, você sabe onde, quando e como.— Você está falando bobagem — disse heodo-

ra. — O café da manhã está pronto. Como sua tutora,digo que você deve pegar dois guardanapos para mim.

— Como seu aprendiz — eu disse —, digo que nãotemos nenhum.

— Acho que isso não importa — disse heodora, eacho que ela estava certa. Minha tutora preparava o ca-

fé para nós todas as manhãs numa chapa de metal for-necida pelo Braços Perdidos. Acionando uma chave, achapa esquentava. Naquela manhã heodora tinha co-locado duas fatias de pão sobre ela e começado a discu-tir comigo. Agora, o pão estava preto e queimado de umlado, como um telhado velho, e do outro estava mole e




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TRABALHO INTERNO

frio, de ficar no peitoril da janela que usávamos comogeladeira. Um guardanapo não transformaria um peda-ço de pão meio queimado e meio frio em café da ma-nhã. Uma lata de lixo seria muito mais útil. Enfiei atentativa de torrada na boca mesmo assim. heodoranão acharia adequado que seu aprendiz falasse com aboca cheia, de modo que essa era a melhor maneira deevitar falar com ela.

Por trás do som de migalhas carbonizadas sendomastigadas, ouvi uma batida na porta. Próspero Perdidonos observava. Ele era o proprietário do Braços Perdidos,uma palavra que significava que ele ficava sentado nolobby o dia inteiro com um sorrisinho no rosto e cha-mava aquilo de administrar o lugar. Eu chamava aquilode “meio esquisito”, embora nunca na frente dele.

— Lemony Snicket — ele disse.

— Você não é Lemony Snicket — heodora dissea ele.

— em alguém lá embaixo que quer ver você —Perdido me explicou.

heodora franziu a testa para o proprietário.— Quem quer que esteja esperando lá embaixo





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também não é Lemony Snicket — ela disse. — LemonySnicket está bem aqui, com a camisa cheia de migalhas.

— Alguém veio até aqui para ver Lemony Snicket —disse Próspero Perdido, da forma mais clara que pôde.

— Obrigado — eu disse ao proprietário e pedi li-

cença para sair.— Independente de quem seja — disse heodora,

enquanto eu saía —, não demore. Você tem um diamuito cheio, Snicket. Precisa comprar uns guardanapos.

Eu não estava de boca cheia, mas fingi que estava

para não ter que responder enquanto Próspero Perdidome conduzia pelas escadas.— O que me espera? — perguntei.— Uma mina — respondeu Perdido.— Você quer dizer uma menina ou um depósito

subterrâneo de minério?— Um pouco das duas coisas — disse Perdido. E,de fato, no lobby havia uma menina mais ou menos daminha idade, usando um capacete com uma lanternapresa, do tipo que se usa quando se escava sob a terra.O capacete era um pouco grande para sua cabeça, e ela




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TRABALHO INTERNO

tirou as luvas, que também eram grandes demais, paraapertar minha mão.

— Sou Marguerite Gracq — ela disse. — Se escrevedo jeito francês.

— Sou Lemony Snicket — eu disse. — Acho quese escreve de qualquer jeito.

— Dizem no vilarejo que você é uma espécie dedetetive.

— Estão errados no vilarejo. Sou de outra espécie.— Bem, preciso de ajuda.— Que tipo de ajuda?— Os quadros da minha sala estão caindo.— Parece que você precisa de um faz-tudo.Marguerite sacudiu a cabeça.— Eles estão caindo de maneira muito certinha.— alvez seja só porque tomei um péssimo café da

manhã — eu disse a ela —, mas não estou conseguindoacompanhar.

— Me acompanhe até minha casa — disse Margue-rite — que explicarei tudo e farei um ovo poché pravocê. Ponho um pouquinho de vinagre na água, entãomeus ovos ficam bem bonitos e fofinhos.





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Um ovo poché fofinho é um bom café da manhã, eum bom café da manhã é melhor do que um café damanhã ruim, da mesma forma que um bom livro é me-lhor do que ter seu dedão do pé cortado fora. Saímos juntos do Braços Perdidos e descemos a rua silenciosa. A maioria das ruas de Manchado-pelo-mar era silencio-sa. O vilarejo estava se esvaziando.

— Sei que a maioria dos negócios do vilarejo foi àfalência — eu disse a Marguerite, apontando com oqueixo uma loja lacrada com tábuas. — Como vai amineração?

— Existe apenas uma pequena mina em Manchado--pelo-mar — ela disse —, e fica no meu quintal. Meupai diz que já extraímos todo o ouro que ela tinha. Eledeixou o vilarejo há algumas semanas para procurar umlugar melhor pra gente morar. Eu fiquei para fechar a

mina e garantir que não aconteça nada com o ouro.— Ele deixou você aqui sozinha?Marguerite franziu a testa e sacudiu a cabeça.— Ele contratou uma mulher chamada Dagmar

para cuidar de mim. Ela não faz muita coisa além deficar sentada ouvindo o rádio. Não gosto dela.




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TRABALHO INTERNO

— O que ela escuta?— Polcas.— Não é de estranhar que você não goste dela.Marguerite sorriu.— Esse não é o único motivo — ela disse. — Dag-

mar não parece confiável. Os quadros não caíam antesde ela chegar, e não tem mais ninguém lá. Acho que elaestá procurando alguma coisa, mas nada foi roubado.

— A maioria das pessoas não confiáveis que rondamuma mina está atrás do ouro.

— Meu pai foi muito cuidadoso com o ouro — eladisse. — Quando o trazíamos da mina, ele o levava ime-diatamente para a oficina e o derretia. Depois, escondiaem algum lugar naquela sala. Nem eu sei exatamenteonde, e tenho a única chave da oficina. Meu pai a dei-xou comigo quando saiu do vilarejo, e a carrego sempre

comigo.Marguerite enfiou a mão dentro do macacão e pu-

xou de lá uma chave fininha pendurada num cordãogrosso ao redor do pescoço.

— Você deixou Dagmar usar a chave alguma vez? —perguntei. — Ela pode ter feito uma cópia.





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Marguerite sacudiu a cabeça.— Sou a única pessoa que entrou na oficina desde

que meu pai partiu e sei que ninguém tocou em nada.O problema não é com o ouro, Snicket. É com os qua-dros na sala.

Chegamos a uma casinha de madeira com telhadocoberto de musgo, janelas estreitas totalmente abertas eum enorme buraco no quintal, com a ponta de umaescada aparente. Várias ferramentas estavam espalhadaspelo gramado escurecido. Dava para ouvir uma polca

particularmente eufórica saindo pelas janelas. oda pol-ca é eufórica. Não há nada de errado em ser eufórico,mas uma polca insiste que todo mundo seja eufóricocom ela, mesmo que você não queira.

Marguerite tirou a bota e me levou até um lugar que

parecia aconchegante. Havia uma grande escadaria demadeira com pilhas de livros aqui e ali, e um tapete comimagens de feras mitológicas e marcas de sujeira. Haviaplantas volumosas nas janelas, que tinham espalhadofolhas por onde quer que eu olhasse.

— Voltei, Dagmar — Marguerite gritou escada aci-



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ma. — E trouxe um amigo! Vou fazer um ovo pochépara ele!

— Faça o que quiser — respondeu uma voz rabu-genta por cima do som da polca. A euforia da músicaclaramente não havia contagiado Dagmar.

— A cozinha fica bem ali — disse Marguerite —,mas, se você não se incomodar, gostaria de lhe mostrara sala antes.

— É claro — eu disse, e ela me conduziu por umapassagem arqueada até uma sala tão agradável e amar-rotada quanto o resto da casa. O piso de madeira estavapintado de preto, com a tinta descascando aqui e ali, eas cadeiras e os sofás eram todos de um amarelo vivo,exceto nos lugares em que havia remendos de cores tam-bém vivas. Havia um enorme abajur feito com um ca-pacete de mineração, e nas paredes havia quadros retra-

tando pessoas pálidas e pensativas, sendo que um delesestava encostado na parede logo abaixo de um espaçovazio ao qual claramente pertencia. Outro quadro, mos-trando um homem com uma gravata borboleta e umabengala elegante, tinha um enorme rasgo no meio, eMarguerite olhou triste para ele.




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TRABALHO INTERNO

— Henry Parland foi o primeiro a cair — ela dis-se —, alguns minutos após a chegada de Dagmar. Porsorte, foi o único danificado. Desde então, aparente-mente, sempre que eu estou na mina um deles cai. Paa-vo Cajander, Katri Vala, Eino Leino, Otto Manninen e,hoje de manhã, Larin Paraske, que já havia caído, foiencontrado exatamente onde você está vendo, encosta-do na parede como todos os outros.

— Seu pai gosta mesmo de poetas finlandeses — eudisse.

— Estes quadros pertenciam à minha mãe — disseMarguerite. — Eram preciosos para ela, mas não sãoparticularmente valiosos.

— E não foram particularmente roubados — eudisse.

— Nada foi — disse Marguerite, olhando pela sa-

la. — Admito que suspeito de Dagmar, mas não possoafirmar que tenha cometido qualquer tipo de crime. Osquadros continuam caindo e nós os penduramos denovo.

— Você disse que eles caem quando você está namina — eu disse, olhando pela janela para o buraco no





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quintal —, mas com certeza não consegue escutá-loscaindo lá de baixo.

— Dagmar me conta que caíram — disse Margue-rite —, ou eu mesma vejo quando entro para fazer umlanche.

— E quem os coloca de volta?— Eu — disse Marguerite, com um tom orgulhoso

na voz. — Pego um martelo e um prego na oficina efaço o serviço eu mesma. E faço direitinho, Snicket.Não pense que é culpa minha que continuem caindo.

— alvez o primeiro tenha caído — eu disse, dandouma olhada no rasgo em Henry Parland —, mas, sevocê encontrou os outros encostados na parede desse jeito, provavelmente não caíram.

— Era assim que eles estavam — disse Marguerite,

concordando com a cabeça. — Encostados na parede,bem bonitinhos, sem nenhum estrago.— Você deixa a porta da oficina aberta enquanto

pendura os quadros de volta?Marguerite me lançou um olhar penetrante.— É claro que não. O ouro está em algum lugar

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