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K.Illslúrln, Suo Paulo, n. 12°-I31,p. 179-208, ago.-dez./93 a¡ngo.-dezV94. DE COMO SE OBTER MÃO-DE-OBRA INDÍGENA NA BAHÍA ENTRE OS SÉCULOS XVIE XVIII Maria Hilda Baqueiro Paraíso* RESUMO: O objetivo deste trabalho é analisar a poKlica indigenista e as práticas adotadas nas capitanias da Bahia, Ilhéus e Porto Seguro entre os séculos XVI c XVIII e as tentativas de conciliação dos interesses conflitantes entre grupos indígenas, colonos, jesuítas e administradores metropolitanos. A nossa preocupação central é demonstrar como as relações sociais estabelecidas resultaram de visões, interesses, referências culturais, valores e estratégias sociais dos várias agentes envolvidos e como es- sas diversidades se articularam, tecendo uma rede social complexa relacionado com os vários projetos pensados quanto n efetiva ocupação e exploração da nova colonia. PALAVRAS-CHAVE: Período Colonial, Bahia, Política indigenista, MSo-de-obra indígena, Escravidão indígena. "A Ierra queimará e haverá grandes círculos brancos no céu. A amargura surgirá e a abundância desaparecerá. A ierra queimará. A ¿poca mergulhará em grandes traba- lhos. De qualquer modo, isso será visto. Será o' tempo da dor, das lágrimas e da miséria. E o que está para vir." (Profecia Maia sobre a chegada dos europeus Livro de Chi la n Balan de Chumayel:125; apud Romano; 1989:69). / - As múltiplas visões de um novo mundo: a terra e seus habitantes A "descoberta" da América suscitou discussões sobre verdades estabe- lecidas e consagradas como definitivas pela inteclualidade da época. Iam desde a caracterização da nova terra como a antípoda, essencial ao equilíbrio físico da Orbis Terrarum, até 5 visão do paraíso reencontrado. Os primeiros momentos podem ser caracterizados como de deslumbra- mento. O aspecto luxuriante da cobertura vegetal, a abundância de rios, frutos, animais e riqueza reforçavam a idéia expressa por Caminha: "em se • Professora do Departamento de Antropologia da UFBA e Doutoranda pela FFLCI1/USP.

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  • K.Illslrln, Suo Paulo, n. 12-I31,p. 179-208, ago.-dez./93 ango.-dezV94.

    DE COMO SE OBTER MO-DE-OBRA INDGENA NA BAHA ENTRE OS SCULOS XVIE XVIII

    Maria Hilda Baqueiro Paraso*

    RESUMO: O objetivo deste trabalho analisar a poKlica indigenista e as prticas adotadas nas capitanias da Bahia, Ilhus e Porto Seguro entre os sculos XVI c XVIII e as tentativas de conciliao dos interesses conflitantes entre grupos indgenas, colonos, jesutas e administradores metropolitanos. A nossa preocupao central demonstrar como as relaes sociais estabelecidas resultaram de vises, interesses, referncias culturais, valores e estratgias sociais dos vrias agentes envolvidos e como es-sas diversidades se articularam, tecendo uma rede social complexa relacionado com os vrios projetos pensados quanto n efetiva ocupao e explorao da nova colonia.

    PALAVRAS-CHAVE: Perodo Colonial, Bahia, Poltica indigenista, MSo-de-obra indgena,

    Escravido indgena.

    "A Ierra queimar e haver grandes crculos brancos no cu. A amargura surgir e a abundncia desaparecer. A ierra queimar. A poca mergulhar em grandes traba-lhos. De qualquer modo, isso ser visto. Ser o' tempo da dor, das lgrimas e da misria. E o que est para vir." (Profecia Maia sobre a chegada dos europeus Livro de Chi la n Balan de Chumayel:125; apud Romano; 1989:69).

    / - As mltiplas vises de um novo mundo: a terra e seus habitantes

    A "descoberta" da Amrica suscitou discusses sobre verdades estabe-lecidas e consagradas como definitivas pela inteclualidade da poca. Iam desde a caracterizao da nova terra como a antpoda, essencial ao equilbrio fsico da Orbis Terrarum, at 5 viso do paraso reencontrado.

    Os primeiros momentos podem ser caracterizados como de deslumbra-mento. O aspecto luxuriante da cobertura vegetal, a abundncia de rios, frutos, animais e riqueza reforavam a idia expressa por Caminha: "em se

    Professora do Departamento de Antropologia da UFBA e Doutoranda pela FFLCI1/USP.

  • PARASO, Marin Hilda Bnqtieiro. De como SG obter mSo-de-obra indgena na Bahia enlrc os sculos XVI e XVlll.

    plantando ludo d". Esta imagem ir, aos poucos, se alterando medida em que os dificuldades de sua colonizao e explorao vo se concretizando no cotidiano dos colonos.

    Tambm as imagens sobre os habitantes iniciam-sc pelo encanta-mento e terminam ou convivem com as de horror. Inocentes, puros, no preocupados com riquezas, corpos bonitos, livres, hospitaleiros, expres-ses to comuns em Caminha, Colombo, Vcspcio sociedade sem pro-priedade privada, harmoniosa, sem reis, religio, palcios ou dolos c as afirmaes de Pietro Martire d'Anghiera, que os classifica como os nicos sobreviventes da Idade de Ouro, formam uma imagem positiva dos ndios.

    A conira-viso tambm encontra seus arautos: Nicolau Varre -brbaros e desonestos, ignorantes de Deus, sem preocupaes, vivendo segundo os seus instintos - ; Yves d'Evreux; Antonio Pigafetla; Jean A. de Saintonge; Jean Parmenlier; Ulrich Schinidel; Gabriel Soares de Souza e Gandavo (HEMMING, 1978: 1-22).

    Apesar das imagens serem opostas, ambas caracterizam-se pela despreocupao com os delaines e individualizaes. So arqutipos e tipos absolutos que oscilavam de acordo com valores morais maniques-las, calcados na percepo do concreto e do abstrato; do sagrado c do profano como um continuum. Foi o conhecimento crescente que levou percepo das diferenas, porm ainda no individualizadas. As imagens ainda so globalizantes, ordenando a realidade em categorias genricas e sua transformao decorre da alterao do conjunto das relaes sociais estabele-cidas entre observador e observado (PINTO, 1992:51-53). Neste contexto de mltiplas imagens em mutao que devemos enquadrar as discusses que se desenvolveram nas metrpoles sobre a legalidade ou no da escravido desses povos.

    A verso paradisaca, que ser apropriada pelos poucos segmentos que iro se opor escravido, no dava a necessria sustentao legalidade da prtica escravista. Por serem considerados no como infiis, mas como filhos do paraso, expresses espontneas da natureza primitiva no contaminada do homem, os indgenas da Amrica no podiam ser enquadrados nos par-metros do escravo, como eram pensados naquele momento histrico.

    So as vises pessimistas e negativas sobre as populaes indgenas que sero usadas pelos defensores da escravido, particularmente os colo-nos desejosos de acesso mo-de-obra gratuita e abundante. Diante de imagens e interesses to controversos, as posies das metrpoles vo refletir indecises, tentativas de conciliao e busca de alternativas para a soluo dos questionamentos e presses presentes quando da formulao das polticas e do ordenamento jurdico das relaes coloniais.

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  • R. Distrta, So Paulo, n. 129-131, p. 179-208, ago.-dez./93 a ngo.-czV94.

    Essas imagens controversas podem ser definidas como ops las, porm, no necessariamente excludentes, mas complementares e especficas de acor-do com cada situao vivida. Assim, o ndio podia ser visto como participan-te na construo da sociedade e do sistema produtivo nas reas em que as relaes de aliana predominavam; como trabalhador, nas regies em que se processava a implantao de atividades produtivas voltadas para a exporta-o, o que pressupunha relaes de dominao mais eficientes no tocante explorao do trabalho indgena; como povoador nas reas de fronteiras e expanso do domnio da Coroa; como ente selvagem, nas zonas de conflito, e como pago y elemento constitutivo da natureza, quando vistos pela lia dos missionrios.

    A depender da posio do agente e das suas mltiplas inseres no sistema social, as vises opostas podiam estar presentes numa mesma anlise e serem expressas por um mesmo autor a depender do enfoque e da situao a que se referisse.

    II-A realidade e o mito das primeiras relaes simtricas

    As formas explcitas de escravido legalmente reconhecidas podem remontar ao ano de 1500 quando Pedro lvares Cabral enviou ndios como presentes a Gaspar de Lemos. A sua primeira interrupo efetiva ocorreu em 1755, quando da promulgao do Diretrio Pombalino. Retornou, se tonal-mente, a partir de 1808, quando uma srie de Guerras Justas foram decretadas a vrios grupos indgenas, como os Botocudo em Minas Gerais (1808), Bahia e Esprito Santo (1809), e aos Botocutos Meridionais (Kaingang e Xokleng) nos campos de Guarapuava e Curitiba (1808) e outros nos anos subseqentes, principalmente no Mato Grosso e Amazonas (CUNHA: 1992:304). A nova proibio data de 1831, quando da Regncia, e se manteve como deciso oficial at nossos dias.

    Para melhor contextualizarmos a escravido indgena, devemos pensar a conquista e colonizao pelo ngulo das idias dos colonizadores. Para esses homens, o Brasil era a oportunidade atravs da qual poderiam obter poder, fora, prestgio e riqueza aos quais no podiam acessar em Portugal. Boxer (1973) tambm chama a ateno para o af de nobreza e crena na possibilidade de atingi-la no novo espao e para o preconceito contra o trabalho manual como elementos que devem ser considerados nessa anlise.

    Nesse projeto de rpido enriquecimento, a questo da mo-de-obra era fundamental. Carentes de grandes capitais para investir, os colonos viam n trabalho indgena a grande soluo, principalmente por sua abundncia e a exigncia de baixos investimentos para sua obteno.

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  • P A I A I S O , Matia Mil Un Bnqueiro. De como se obter mo-de-obra indgena na Bahia entre os sculos XVI e XVIII.

    A regio1, que o objeto de nosso anlise, era habitada em 1500 por grupos da famlia lingstica Tupi-Guarani e da Macro-J, conhecidos por Tapuias, alcunha que lhes Cora a tri buda, pelos primeiros e que os portugueses mantiveram por muito tempo, inclusive, com toda a conotao pejorativa, indicando uma primeira percepo das diferenas, porm, ainda com carter globalizante.

    Se cruzarmos os estudos de lingstica, os dados arqueolgicos c as referncias histricas, s possveis a partir do momento de contacto, pode-mos identificar os territrios dos vrios grupos lingsticos durante o perodo colonial. Queremos chamar ateno para o fato de o mapa, cm anexo, indicar os territrios Iradicionais dos grandes grupos lingsticos, que eram respeita-dos pelas outras tribos c que, quando invadidos, motivavam guerras. No estamos, ainda trabalhando com a identificao/localizao dos vii rios sub-grupos e nem com os segmentos descidos e retocados em vazios demogrfi-cos provocados pelo deslocamento ou cm reas estratgicas pelos administradores coloniais.

    Os referidos grupos da famlia lingstica Tupi-Guarani -Tupinamb e Tupinikin ocupavam o litoral da regio, sendo a ocupao recente, pois tinham migrado no sentido Norte-Sul no milnio anterior ao descobrimento. Podiam, ainda, ser encontrados no rio Paragunu - os Tupina e no So Francisco os Amoipir e os Obakoatiara (URBAN; 1992: 20; OTT, 1988: 125; DANTAS; 1992: 444; PARASO, 1992: 413).

    Os Macro-J, expulsos pelos Tupi do litoral, apresentavam grande diversidade lingstica, parecendo que essa regio fora o ponto de disper-so desse grupo a cinco ou seis mil anos atrs (URBAN, op cil: 20).

    Um dos mais numerosos era o dos Kiriri, que falavam quatro Ln-guas diferentes: o Kipa, entre os rios So Francisco e o Salitre; o Dzbu-ku, no arco do submdio So Francisco; o Sapuy, entre os rios Paraguau e Contas; e o Kamamu, provavelmente na rea interior da bafa do mesmo nome.

    Nas reas mais interioranas, entre os rios de Contas e o Pardo, locali-zavam-se os Kamak-Mongoy; entre o Pardo e o Doce, na mesma faixa, os Patax, Maxakali, Maiali, Kutax, Kumanax, Kulatoi, Monox e Makoni. Em toda essa regio, na faixa intermediria, entre esses grupos e os de lngua Tupi, viviam os Aimor/Gren/Bolocudos em progressivo deslocamento no sentido Norte-Sul refluindo do contato imposto.

    1 A nossa anlise corresponde as reas das antigas capi In nias da Dahia (excetuando-se Sergipe dei Rei), de Ilhus e de Porto Seguro (excluindo-se o seu limite sul, a regio entre os rios Mucuri e So Mateus, hoje pertencente ao estado do Esprito Santo).

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  • R. Histria, So Paulo, n. 129-131, p. 179-21)8, ago.-ilez./93 a ngo.-dez./94.

    Havia, ainda, os grupos tic lngua isolada, como os Tux, Kale m bri e Natii, no baixo So Francisco, e os que se deslocavam do Piau nos perodos de grande estiagem, como os Guegu e os Akro.

    Os conflitos entre os grupos Tupi eram comuns e igualmente o eram entre estes c os Macro-J. Estas oposies e estado de guerra constante foram usados pelos colonos no estabelecimento de alianas, obteno de mo-de-obra, atravs da aplicao da regra Tupi de cunhadao , e na obteno de "ndios de corda". Tambm os ncolas viam nos colonos a possibilidade de obterem aliados poderosos contra os seus inimigos tradicionais e, ao mesmo tempo, tentarem preservar-se dos saltos ou assaltos, desviando a ao dos colonos para os grupos inimigos. Logo, podemos inferir que essas peculiari-dades culturais dos grupos indgenas favoreceram as prticas de dominao e a construo de alianas surgidas a partir dos interesses dos colonos e dos prprios ndios. Este quadro de composio de aliana, no entanto, era altamente fluido, compondo-se. rompendo-se e recompondo-sc de acordo com a dinmica das relaes estabelecidas entre os segmentos sociais.

    nesta confluncia e oposio de interesses que se iniciam os primei-ros aprisionamentos paralelos prtica do escambo. Na verdade o quadro das relaes estabelecidas compunha-se de relaes simultneas de comr-cio, aliana, guerras e escravido, numa alternncia e converso de acordo com os diferentes momentos e formas de contrato. Porm, os primeiros escravos no se destinavam a ocupao ou colonizao da nova colnia. Os prisioneiros eram enviados a Portugal e desconhecemos se eram destinados ao ativo comrcio de escravos exercido por aquele pas. A pequena quantida-de enviada parece indicar que se destinavam mais a saciar a curiosidade metropolitana ou a serem smbolos de ostentao de riqueza e prestgio de alguns privilegiados.

    As Expedies Exploradoras, apesar das recomendaes em sentido contrrio, costumavam enviar pequenas quantidades de cativos para Portu-gal. Porm, estes envios tinham um carter assistemlico e a crena dos ndios de que estariam sendo transportados para a casa de Ma ira a Terra sem Males, que se localizava miticamente onde o sol nasce, aps o grande rio, e que lodos os Tupi-Guarani desejam alcanar em vida - indicam na direo de que tais prticas no chegaram a abalar as relaes estabelecidas.

    J a criao das feitorias tornou as relaes mais constantes e revelou as contradies. Devido fragilidade da ocupao e ao pequeno nmero de portugueses e seu desconhecimento do espao a ser explorado, as relaes

    2 Canhadao: Conj. de obrigaes que o irmo

  • PARASO, Maria Hilda Bnquciro. De como se obter mao-dc-obra indgena na Gahia entre os sculos XVI e XV111.

    assumiram um carter predominante calcado na Iroca de produtos da terra, inclusive o pau-brasil, por artigos manufaturados metropolitanos, principal-mente ferramentas de metal. Essa prtica j datava de 1502, quando o mono-polio da explorao do pau-brasil foi concedido a Ferno de Noronha. No entanto, s com o estabelecimento das referidas feitorias, essas atividades passaram a ocorrer sistematicamente.

    As relaes de troca teriam sido relativamente bem aceitas devido ao seu carter aparentemente simtrico; ao atrativo exercido pelos novos produ-tos - embora estes comeassem a criar dependencia para com os fornecedores e hierarquizaes inter nus entre os possuidores dos referidos objetos - ; o abundncia da madeira e sua localizao nas proximidades do litoral. Essas relaes de Iroca eram compatveis com os padres culturais dos grupos Tupi, particularmente por serem exercidas tradicionalmente pelos homens (derrubada, transporte e troca), por manterem o carter comunitrio da pro-duo, alm de no interferirem de forma drstica no modelo de organizao social, nas formas de trabalho e na estruturao do tempo. Outro aspecto que deve ser destacado o de que as trocas no pressupunham a imposio aos ndios de uma nova viso econmica regida pelas leis de mercado. Para eles, o que ocorria era a continuidade das relaes de Iroca de excedentes, base da construo de alianas e mecanismos de solidariedade, que pressupunham estarem estabelecendo com os portugueses (SCHWARTZ; 1988: 44).

    O Falo da escravido voltar-se para o envio dos apresados para Portu-gal no lhes permitia ter plena conscincia dos (ermos impostos pelos portu-gueses que no podem ser, caracterizados como de aliana e solidariedade. A Nova Gazeta do Brazil informava que, acompanhando as toras de pau-brasil, os navios transportavam levas de "rapariguinhas e rapazinhos" (DORNAS FILHO; 1939: 13-14). E no eram apenas os portugueses que exerciam essa atividade. Em 1531, na rea da futura capitania de Ilhus, na baa de Cama-mu, Martin Afonso de Souza desbaratou o comrcio de Francisco de Chaves e aprisionou um navio espanhol carregado de centenas de escravos Tupini-kin3 (MALHEIROS, op cjt:202; HEMMING; op cif. 35).

    Assim, podemos constatar que o perodo, ao qual tradicionalmente nos referimos como sendo de relaes simtricas e de escambo, na verdade, j se

    Al esse momento, a discusso sobre a escravido ainda nao havia se efetivado on Portuga!. Presente na Espanha a partir de 1511 e agravada petos denncias de Bartolomde LAS Casas em 1514, a primdm orientao emanada de Roma a Bula de 2&W/1537 de Paulo 111, que teconbeda a humanidade dos ndios e proibia a sua escravizao por no serem infiis (DAVIS, 1968: 156-157; MALHEIROS, 1944: 205). EVim devido as reaes dos colonos que se sentiam ameaados ante a possibilidade de se verem desprovidos do suprimento de mao-de-obra, a Coro Espanhola encontrou uma solicitao conciliadora: a adoo dn Guerra Justa e dos resgates. Esta mesma soluo foi adotada pelo governo portugus.

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  • R. Histria, So Paulo, n. 129-131, p. 179-208, ago.nlcz./93 a ago.-dezV94.

    caracterizava pela existncia de relao assimtricas e de escravizao dos grupos Tupi do litoral. O que o loma peculiar o fato dessas relaes de escambo predominarem no Brasil, pois os escravos eram enviados para Portugal, mascarando as relaes estabelecidas. Porm, o projeto de efetiva ocupao e colonizao, introduzido por Martin Afonso de Souza, era incom-patvel com a postura dos ndios de considerarem tais relaes como espor-dicas e regidas pela preocupao com o estabelecimento de aliana, o que levou a superao dessas relaes sociais, como veremos a seguir.

    Ill-O projeto de efetiva ocupao e as mudanas definitivas das relaes intertnicas

    Um novo perodo de relaes vai ser estabelecido a partir da implan-tao das Capitanias Hereditrias. Porm, podemos constatar determinadas continuidades entre os dois perodos. O primeiro deles que o contalo ainda vai estar restrito aos grupos Tupi do litoral. O segundo a convivencia das relaes de escambo, j mais restritas, com a prtica de envio de escravos para Portugal. Isto, alis, j eslava agora legalmente institudo, como se pode observar, por exemplo, no Regimento da Sesmaria concedida a Pero de Ges, que lhe permitia enviar "dezessete peas de escravos" por ano nos navios que mandasse a Portugal, alm de poder "cativar gentios para seu servio e dos navios" e vend-los em Lisboa. Caso no ultrapassasse a cota anual, estaria, inclusive liberado do pagamento de siza (MALHEIROS, op. cif. 203; DOR-NAS FILHO, op. cif. 15-16).

    Porm, a grande inovao a de que a escravido passa a ser massiva e os aprisionados comeam a ser destinados, na sua quase totalidade,

    4 O grande idelogo da escravido ndgenn em Portugal foi lvaro Pais, franciscano, que transps os .princpios da Guerra Justa -nos Mouros Tin os relaes insulti (das no Brasil. As bases do seu racio-cnio caracterizavam a Guerra Justa.como aquela a) em que preexistisse ao injusta do adversrio; b) que fosse decretada por autoridade com petente; c) que fosse decretada com boas intenes. Estes princpios foram reformulados entre 1539 e 1542 por um autor no identificado, que incorporou as idias de Sanio Agostinho e So Tom is de Aquino. Os novos critrios adotados por Portugal pas-sam a ser a) decretao por autoridade competente, excludo o Papa dessa relao; b) a justeza da causa da decretao deveria ser considerada correta pelas autoridades reconhecidas; c) as intenes dos solicitantes teriam que ser avaliadas como boas pelas referidas autoridades (PERRONE-MOI-SS: 1992:115). Com o passar do lempo, algumas alteraes, que podemos identificar como acrs-cimo, redues ou mudanas qiinnlo as formas de decretao ou controle de Guerras Justas, foram promulgadas.As alteraes incluram novas razes para a decretao da guerra jusla: a) hostilidades prvias; b) oposio atuao dos missiona rios; c) impedimento ao livre comrcio; d) prtica da an-tropofagia (PERRON E-MOISS, o/>. cif: 123-127). Com a imposio de restries decretao da

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  • PARASO, Maria Hilda Daqueiro. De como se obier mo-de-obra indgena 0.1 Bahia enlte os scalos XVI e XVllI.

    implantao a efetiva ocupao e colonizao do Brasil, bascadas, preferen-cialmente, na produo agrrio-exporladora aucareira. E para que lai ocor-resse, havia a necessidade de ajustar a mo-de-obra a um novo ritmo de trabalho e sua insero compulsria no novo sistema produtivo, gerando os primeiros grandes conflitos. Agora j no se tratava de iluso da viagem para a Terra sem Males, alm do grande rio. Era o aldeamento e sedenlarizao forados e a escravido na prpria terra.

    A competio entre vrios segmentos sociais portugueses (colonos e contratadores reais) e entre estes e os franceses, que estabeleciam a aliana com alguns grupos indgenas, c desinteresses dos ndios pelos antigos objetos oferecidos, o que os teria levado a exigir armas de fogo e outros equipamen-tos para continuarem a manter relaes de troca, colocaram os primeiros bices s relaes de escambo. A crescente autonomia dos colonos com relao aos produtos de subsistncia lambem criava o desinteresse pela continuidade do sistema. Outros fatores decorriam da posio do ndios, para os quais, como j afirmamos, as relaes de (roca no eram regidas pelas leis de mercado, lendo, portanto, um carter espordico, que no satisfazia nova realidade (SCHWARTZ, op. cif. 44; HEMMING, op. cif. 37).

    Outro aspecto a ser considerado que o escambo no era visto da mesma forma pelos traficantes e pelos povoadores. Para estes, o escambo era uma estratgia de dominao baseada na implementao de um estado de crescente desestrulurao social e incapacidade de satisfao das necessida-des de produo e reproduo social das comunidades indgenas nos moldes tradicionais, gestando as condies necessrias implementao das novas relaes de trabalho.

    As novas relaes de incorporao compulsria do trabalhador ncola, alm de implicarem na desestrulurao e inviabilizao da sobrevivncia do sistema organizacional dos grupos indgenas, tambm violava a diviso do trabalho tradicional das sociedades Tupi. Enquanto os colonos desejavam o concurso da mo-de-obra masculina para as atividades agrcolas, os homens aceitavam realizar, apenas, as tarefas de derrubadas e queima. As demais

    Guerra Justa e as alteraes das relaes intercinicas, novas alternativas foram buscadas paia a obteno legal dos escravos, como a compra de "ndios de Corda" ou resgatadas - aqueles que (embora nem sempre) teriam sido Feitos prisioneiros por tribos inimigas e seriam destinados a rituais antropolgicos. Assim como eram comuns as acusaes da ausncia de justia na decre-tao da Guerra Justa (vide a introduo da Lei de 20/3/1570), lendo sido algumas delas formal-mente consideradas ilegais aps j lerem ocorrido (o que s beneficiou os poucos sobreviventes identificados e localizados), tambm a prtica dos resgates cercada de acusaes quanto a ma-nipulaes feitas pelos colonos para a obteno de mo-de-obra ulilizada (PERRONE-MOISS, cp. da 128>

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  • R. Historia, So Paulo, n. 129-131, p. 179-208, ago.-dez./93 a ago.-dez./94.

    atividades, por serem atribudas s mulheres, eram rejeitadas, o que no era compreensvel,ou aceitvel pelos colonos. Tambm a crescente conscincia da unilateralidade dos direitos, s garantidos aos portugueses, e dos deveres cobrados aos ndios, comea a despertar sua conscincia de que a suposta aliana, que eles imaginavam ter estabelecido com os colonos, no se cons-titua uma realidade ordenadora das relaes. O desrespeito lgica interna de sua sociedade, levava-os a questionar os benefcios da suposta aliana, principalmente quando a emergente necessidade de mo-de-obra passou a exigir que os cativos, destinados aos rituais antropolgicos, fossem entregues aos portugueses o que provocava reaes tanto dos captores quanto dos capturados. Para que tal comrcio ocorresse sem ser pela coero, exigiria toda uma reestru-turao dos valores e crenas dessas sociedades. Tambm ocorriam insatisfaes devido s crescentes exigncias da entrega dos excedentes para troca, quando parte deles, destinava-se, tradicionalmente, ao provimento das Expedies guer-reiras, essenciais reproduo do modelo social Tupi.

    Outras razes tornavam a nova forma de trabalho inaceitvel para o grupo. Uma delas era a ruptura das suas formas de organizao do sistema produtivo e do consumo, que no se baseava nos moldes portugueses, mas numa concepo comunitria, na qual a preocupao com a formulao da solidariedade e das alianas era o elemento ordenador; e inviabilizar a repro-duo social do grupo por no dispor do tempo necessrio para as prticas tradicionais. A soluo encontrada foi a criao de aldeamento com trabalha-dores compulsoriamente engajados. Esses aldeamentos eram, inicialmente, instalados nos espaos onde se localizavam as aldeias. Porm, de forma crescente, adquiriu-se o hbito de transferir os ndios para locais considera-dos mais adequados aos interesses e necessidades dos colonos. Alm da vantagem de manter a mo-de-obra em locais de fcil e rpido acesso, o deslocamento dos ndios dos seus territrios de origem era uma garantia de que as novas relaes seriam mediadas pela organizao da produo e pelo sistema de dominao que lhes era imposto.

    H um silncio quase absoluto sobre a localizao das propriedades que, comprovadamente, usavam escravos indgenas. Apenas dispomos dos clculos relativos rea compreendida entre o castelo da Casa da Torre, em Bom Jesus de Tatuapara, hoje conhecida como praia do Forte, ao norte de Salvador, e seu limite Sul, a ponta do Padro, no perodo que antecede a instalao do Governo Geral (MARIANI, 1971:1-5). Porm, pode-se inferir que as relaes no eram pacficas se considerarmos os relatos, pedidos e o destino dos. Donatrios das trs antigas capitanias que esto em tela, e que no muito diferente dos demais.

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  • PARASO, Maria Hilda Gaqueiro. De como se obier mSo-dc-obra Indgena na Baha entre os scalos XVI e XVII|.

    O crescimento da populao portuguesa no li lora I colocava cm cheque a aliana antes estabelecida. O produto da troca obtido pelos colonos no satisfazia as novas necessidades. Embora a questo da subsistencia Cosse razoavelmente satisfatria, o trabalho sistemtico exigido nas novas ativida-des no conseguia ser resolvido pelo sistema de troca c aliana, inclusive por exigir transformaes radicais na organizao social c econmica dos grupos indgenas. Por outro lado, os ndios, satisfeita a curiosidade pelos novos objetos, resistiam s imposies, inclusive quanto forma e objetivo das guerras e ao desvio dos prisioneiros dos rituais de antropofagia. O uso das guerras inteMribais em benefcio dos interesses dos colonos - obteno dos "ndios de corda" encontrava a um limite que, cm alguns casos, conseguia ser superado por um novo tipo de aliana: ou os ndios aceitavam sua condio de intermedirios na obteno de cativos com novas finalidades que no rituais, ou participavam de saltos, sob o comando de portugueses a grupos inimigos. Porm, esta situao indicava o que viria a seguir: uma srie de revoltas que se espalhavam por lodo o litoral da colnia.

    como resultado dessas transformaes que o Donatrio da Bahia enfrentou a revolta dos Tupinamb, c terminou por ser ritualmente sacrifica-do na ilha de Itaparica. Os Tupinikim de Ilhus e Porto Seguro, aps terem se aliado por longo perodo aos colonos que ali haviam se instalado, tambm se revoltaram pelo constante desrespeito sua idia de aliana, queimando as vilas e engenhos, e levando falncia as duas capitanias.

    Essa situao, principalmente a ao dos Tupinambo" da capitania da Bailia, influenciou de forma decisiva a elaborao do Regimento do Primeiro Governador Geral, como veremos mais adiante.

    As revoltas sucessivas nas varias capitanias, levando-as falencia e a perda de vidas e investimentos, exigiam medidas por parte da Coroa. Essas relaes conflituosas c a aliana de ndios com franceses, obrigaram-na a uma interveno, visando criar as condies necessrias ao controle dos ncolas e garantir aos Donatrios o apoio necessrio para efetivarem a ocu-pao e colonizao das terras. Era o encerramento de uma etapa na qual os Donatrios contavam, apenas, com seus esforos, contingentes c recursos para fazerem frente sua grande ameaa: os "indomveis" indgenas que, em levas sucessivas, atacavam, queimavam e matavam. Eles eram a real ameaa ao projeto de ocupao e colonizao e islo vai ficar claro na ao dos primeiros governadores.

    tambm nesse perodo que as relaes entre ndios e colonos assu-miram a forma que ir caracteriz-las da em frente: coero e reao. A razo dessa nova situao decorre no s dos diferentes pontos de vista dos portugueses e dos ndios com relao ao trabalho e a produo,

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    comoindicaSchwarlz(t>/> cil: 42), mas lambem do conjunto de eventos e processos pr-colonas que formavam a base da ao dos Tupi ante a situao historicamente nova a conquista - e a incorporao das experiencias adquiridas a partir da nova realidade que lhes era imposta, como destaca Monteiro (1992:126).

    IV-A centralizao das aes ile represso e o domnio dos Tupida costa

    O Regimento de Tom de Souza a primeira pea legal na qual est explicitada a poltica da Coroa Portuguesa'. nele, tambm que se estabele-ce n dupla polftica de conciliao/liberdade para alguns grupos indgenas e de represso/escravizao para outros. Declara-se que o principal objetivo do povoamento a "propagao da f catlica", atrair os indios paz e aumentar a populao. Proibia-se saltear c fazer guerra nos nativos sem a ordem expressa do Governador e de praticar salios a aldeias, o que vinha provocan-do revolta e guerra. Para as tribos inimigas era recomendado que se lhes fizessem guerra, "destruindo as aldeias e povoaes, matando, cativando e fazendo executar nas prprias aldeias alguns chefes que puder aprisionar..." (MALHEIROS, op cit: 213:214).

    a tentativa de ordenar as relaes de colonos e ndios de forma que a poltica da Coroa - ocupar e colonizar - se tornasse possvel, interrompen-do o caos vivido at ento. interessante ressaltarmos que, para melhor

    5 PERRONH-MOISS (o>. cif. 117), diferentemenle tios demais amures que (ralaram a questo, identifica lgica c coerncia nos aparentes avanos, recuos e contradies da legislao indgena portuguesa. E esla identificao lorna-sc possvel quando se percebe os eixos do raciocnio da metrpole. Primeiro devemos destacar que houve leis de cunho genrico e outras de carter es-pecfico e at localizadas espacialmente. A articulao entre as vrias leis no pode ser percebi-da sem que se deslaque o alcance e o objetivo de cada uma delas. O outro eixo de raciocnio e que precisa ser articulado ao anterior para que compreendamos c identifiquemos sua logica, a categorizao atribuida aos grupos indgenas com os quais os colonos entravam em conialo e o tipo de relao estabelecida entre os dois segmentos. Assim, podemos identificar duas grandes categorias: a dos " m a nsos/a Ideados/ali ados"e a dos "bravi os/erra ntes/in migas". em funo da categorizao n tribuida ao grupo e da capacidade de convenci men lo dos colonos quanto "fero-cidade" deste, que a Coroa determinava a poltica a ser adolada. As linhas mestras e gerais defi-niram paraos "mansos" o direito a liberdade, garantia das leiras ocupadas, aldeamento, trabalho remunerado e proteo. So para estes grupos as leis e constantes recomendaes de respeito a suas lerias, da reafirmao no direito liberdade e da exigncia de "bons tratos" e respeita A grande alegao era de que deles dependiam o sustento e a defesa da colnia. Ja* para os "bra-vios", a legislao reservava tratamento diferenciado: Guerra Justa, escravido, desci mentos for-ados, recomendao e autorizao para uso da fora e at o direito de mat-los, principalmente aos homens em "idade de guerra".

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  • PARASO, Mara Hilda Baqueiro. De como se obter mo-de-obra indgena na Bahia entre os sculos XVI e XVIII.

    efetivar tal poltica de orientao dupla, a Coroa envia com o primeiro Governador, aqueles que se tornaram, da para a frente os arautos e defenso-res de tal poltica: os jesutas.

    A atuao de Tom de Souza pode ser caracterizada mais como tenta-tiva de conciliar que de reprimir, apesar da morte de alguns caciques na boca de canhes em Salvador. Isto nos indica uma preocupao em reduzir os conflitos, estabelecer alianas e fortalecer a estrutura governamental, alm de criar um cinturo de segurana em volta das vilas e povoaes com o assentamento de grupo aliados nas suas proximidades. Porm, no deixou de deslocar aldeias todas as vezes que considerava importante, como para a construo de conventos para os jesutas, carmelitas e do Desterro no per-metro da cidadela de Salvador (HEMMING, op. cit: 80).

    Porm, a partir de sua atuao e de seus sucessores que se inicia a ocupao de novos espaos conquistados aos indgenas, sendo o grande centro difusor a cidade de Salvador e seu Recncavo. tambm nesse perodo que a prtica dos "saltos" s aldeias deixa de ser realizada na capitania do interessado e passa a ser feita nas vizinhas, como forma de burlar o controle do Governador. As denncias contra essa pratica eram constantes, pois os Donatrios sentiam-se prejudicados pela atuao dos vizinhos (SCHWARTZ, op. cit: 47; HEMMING; op. cit: 39-41).

    Esta situao foi denunciada por Pero de Ges, em 07/02/1550 e confirmada por Nbrega em 05/07/1559. As razes da queixados Donatrios devia-se a ao de um colono que havia enganado um cacique aliado, que sempre atuara como intermedirio na obteno de "ndios de corda" e que terminara por ser aprisionado e vendido, provocando revolta entre os mem-bros de seu grupo. Porm o apresamento era a nica forma de garantir o acesso mo-de-obra indgena nos moldes e rapidez desejados. As formas predominantes para a obteno desse suprimento era a compra dos "ndios de corda", o que implicava no estmulo s guerras inter-tribais para a "criao" de prisioneiros, atravs da implementao de saltos. O uso dos conhecimen-tos das inimizades intertribais e intergrupais foi um elemento essencial para manipulao dessas relaes.

    Os assaltos alteraram a estrutura das guerras nativas, inserindo-as numa nova lgica a dos colonizadores regida pelas presses e demandas crescentes. Tambm a transformao do cativo em escravo e no em prisio-neiro destinado ao sacrifcio ritual, era uma exigncia que provocava rea-es. A crescente agressividade nas formas reativas provocava a maior violncia por parte dos colonos, criando um crculo fechado de violncia crescente de ao-reao e um clima de guerra permanente, manifestando as contradies existentes nas relaes estabelecidas.

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  • R. H istoriti, So Paulo, n. 129-131, p. 179-208, igo.-dez-/93 a igo.-UezV94.

    Este quadro pode ser percebido claramente j no governo de Duirle da Costa, quando as revoltas assumem um carter mais constante. Em Salvador ocorreu o ataque ao engenho do Cardoso e as fazendas de gado de Ilapo. A represlia, comandada pelo filho do Governador, destruiu cinco aldeias, matou ndios, principalmente suas lideranas, escravizou os sobreviventes e distribuiu-os entre os senhores de engenho do Recncavo (MARIANI, op, citi 4-5; HEMMING; op. vit: 31).

    Mas, no governo de Mem de S que os problemas assumiram carter mais dramtico devido ao agravamento das relaes com a expanso da economia aucareira. Tambm datam desse perodo as grandes epidemias, problematizando ainda mais as relaes sociais. O despovoamento das al-deias e aldeamentos, as revoltas e a expanso dos movimentos messinicos, caracterizam esse perodo. Este quadro demonstrou aos colonos que o projeto dos aldeamentos jesuticos, como soluo para o problema de garantia de mo-de-obra, no era vivel.

    No primeiro momento, parece que leria havido apoio por parte dos colonos, que o consideravam como uma alternativa interessante: garantia a concentrao de grande densidade de trabalhadores; era um mecanismo mais barato que o da realizao do apresamento; liberava as terras atravs da concentrao e confinamento dos aldeados. Porm, com as epidemias, o modelo demonstrava sua fragilidade como produtor de excedentes apropri-veis e mo-de-obra. As epidemias e a alta taxa de mortalidade criavam um crculo vicioso que dificultava a realizao do projeto: a necessidade cons-tante de reposio de contingente no s o tornava mais vulnervel ao contgio e morte, como tambm, inviabilizava a qualificao do ndio para as novas atividades econmicas que deveriam exercer.

    Como complemento a esse quadro, os descimentes promovidos funcio-navam como veiculadores e difusores das epidemias que se espalhavam acompanhando os deslocamentos dos jesutas, colonos c ndios aldeados, c dos movimentos messinicos, que ficaram conhecidos pelo nome genrico de Santidades. Estes movimentos assumiram carter extremamente forte no Recncavo e no Baixo Recncavo, envolvendo ndios aldeados, convertidos e escravos foragidos. Uma das peculiaridades das Santidades era o seu cunho milenarista, uma das formas reativas dominao portuguesa. Outra era o fato dos movimentos manterem uma srie de padres culturais da tradio Tupi, como a liderana exercida por lderes carismticos, no estilo dos antigos Karafba. A represso no caso da Santidade do Jaguaribe deu-se atravs de dois braos do poder colonial: a Visitao do Santo Ofcio e a ao das tropas do Governador, com a intermediao do mestio Tomacaiuna, um elemento essencial no processo. A figura desse mestio na verdade, um

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  • PARASO, Mara Hilda Oaqueiro. De como se obtcr mo-de-obra indgena na Bahia entre os scalos XVI e XVIII.

    smbolo do quadro dos contradies presentes no conjunto das relaes interlnicas no fim do Sculo XVI. As alegaes religiosas - heresia - foram a base da atuao do Santo Ofcio. Questo de segurana -foco de resistncia prtica de aldeamentos e de ataques aos engenhos e vilas - era o argumento usado pelo poder civil. Apesar da morie de ti m dos "Papas", em 1585, h notcias da irrupo de vrios movimentos em outros pontos do litoral, sendo que no Recncavo, a ltima notcia 6 de 1627 (SCHWARTZ, op. cit: 54-56).

    A poltica de Mem de S calcou-se nos princpios j estabelecidos em 1548: proteo aos convertidos, garantia de terras para seus aliados, estmulo para a criao de novos aldeamentos, valorizao das lideranas aliadas; e represso aos ndios "inimigos". A sua atuao repressiva de grande monta e voltada para os Tupinambo da capitania da Bahia; os Tupina do vale do Paraguau; os Tupinamb dos rios Sergipe, ltapicuru c Real; os Kael de Alagoas, que foram descidos para o Recncavo; os Tupi ni kin de Ilhus, Porto Seguro e rio So Mateus, onde perdeu seu filho; os Tamoio do Rio de Janeiro e os Potiguara da Paraba (HEMMING, op. cil: 83-92).

    As derrotas impostas por Mem de S aos Tupi do litoral criaram as condies necessrias para a efetiva ocupao da costa c a estabilizao exigida para o sucesso da ocupao e colonizao. Os sobreviventes aceita-ram aldear-se como uma das alternativas de sobrevivncia, o que gerou a aliana e o encanto entre o Governador e os jesutas, inspirando o poema, em seu louvor, elaborado por Jos de Anchieta, "De Gestis Mentii Sao", e a aceitao pelos inacianos da necessidade do uso da fora como meio de promover o aldeamento e a converso dos ndios. Os resultados dessa aliana foram to positivos que, durante o governo de Mem de S, a Companhia de Jesus aldeou trinta e quatro mil ndios (HEMMING, op. eh: 100-107).

    Porm, temos que considerar que outras estratgias foram adotadas por grupos ou subgrupos Tupi. Alm dos movimentos de cunho milenaris.ta, aos quais j nos referimos, os silvcolas associavam seus conhecimentos e prti-cas tradicionais s novas experincias e criavam novas formas de resistncia ao avano do domnio colonial. Dentre estas, destacaremos as revoltas, as fugas para as matas interiores ainda no penetradas c a aceitao do papel de intermedirios na escravizao de outros grupos, o que lhes oferecia uma proteo temporria contra o apresamento e os descimenlos. Porm, o respei-to a essa aliana pelos colonos sempre foi fludo e rpido.

    A taxa de mortalidade e despovoamento dos aldeamentos inviabiliza-vam a continuidade do projeto de evitar os conflitos e saltos. Entre 1559 e 1560 ocorreu a primeira epidemia de varola, que se difundiu a partir do Esprito Santo no sentido Norte, atingindo o Recncavo entre 1561 e 1562. Calcula-se que tenham morrido trinta e seis mil ndios aldeados no litoral, no se tendo idia do nmero de mortos no serto. Em 1563 foi a epidemia.

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  • R. Ilbtrb, So Paulo, n. 129-131, p. 179-208, ago.-dez./93 a ago.-dezV94.

    de sarampo que provocou novas mortes. As lenia li vas desesperadas de suprir os contingentes atravs dos descimentos s agravava o quadro com a conta-minao de novos grupos. Reforava-se a idia dos colonos de que os aldea-mentos no eram soluo para o problema da mo-de-obra, pois haviam se transformado num depsito de indivduos dcseslruturados cultura e social-mente, doentes, desmotivados, morosos, improdutivos, incapazes, at mes-mo, de se auto sustentarem.

    Tambm a orientao imprimida pelos jesutas de transformar os al-deamentos em ncleos predominantemente voltados para a "converso do gentio" criava atritos quanto a utilizao do aldeado como trabalhador. Era a contradio que se estabelecia entre dois modelos de colonizao: um volta-do para a explorao plena dos fatores produtivos e outro que priorizava a converso, cujo fulcro central se materializava na administrao dos aldea-mentos e na destinao dos aldeados.

    As opes dos colonos tornaram-se mais radicais: a busca de trabalha-dores atravs dos descimentos e apresamento, particularmente, sob o argu-mento da necessidade da Guerra Justa . A presso assumiu tais propores que muitos ndios optaram pela escravido voluntria. Mas a quantidade disponvel, apesar dos descimentos, saltos e apresamentos, era insuficiente para a continuidade do modelo at ento adotado. Duas solues foram introduzidas: a importao de escravos africanos e as entradas para o serto em busca de outros grupos indgenas para suprir os vazios demogrficos. um novo perodo que se inicia com as lulas com os Tapuias, a penetrao dos sertes e a expanso da ocupao/colonizao, que comea,, lentamente, a abandonar o litoral.

    Porm, apesar das inovaes, as tticas de relacionamento entre ndios e colonos vo ser mantidas, apenas com a eleio de um novo tipo de inimigo que podia ser apropriado - os grupos Macro-J do serto: os Kiriri e os Aimor/Gren/Botocudo, no primeiro momento.

    V-A nova fone de suprimento; os Tapuia dos sertes

    Inicialmente gostaramos de relembrar que os Tapuia, devido incor-porao pelos colonos dos preconceitos desenvolvidos pelos Tupi, no eram

    6 A legislao sobre Guerra Jusla profcua entre os sculos XVI e XVII. Ampliando, reduzindo, controlando mais efetivamente ou mudando os rgos responsveis por esse controle temos as leis 20/03/1570; 06/01/1574; 11/01/1595; 10/09/1611; 25/05/1624; 17/10/1655; 03/04/1655; 09/04/1655; 03/04/1688 e a de 25/10/1707.

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  • PARASO, Maria Hilda Baquciro. De como se obter mo-de-obra indgena na Bahia entre os sculos XVI e XVI 11.

    considerados como a opo ideal para substituir os Tupi. Um conjunto de caractersticas culturais desses grupos acentuava a sua rejeio, principal-mente por serem tradicionalmente caadores e coletores semi-nmades, o que os fazia corresponder ao imaginario europeu dos marginais: sem domic-lio fixo, habitantes de espaos livres, naturais, sem senhores ou hierarquia social e, por isso mesmo, inteis, pois, por no produzirem excedentes, no representavam qualquer benefcio coletividade. Devido lambem a essas caractersticas, eram considerados como mais ameaadores a segurana, es-tando, alm do compreensvel por no se enquadrarem no estatuto e na laxinomia social vigente na Europa. Como ilustrativo da nossa afirmativa, basta considerarmos as descries dos cronistas e missionrios sobre estes povos, nas quais esses aspectos so ressaltados quase que de forma obsessi-va . O "serto" em que habitavam tornara-se o novo espao desconhecido sobre o qual se exercitava a imaginao coletiva: era o locas do horror e da riqueza que ali dormia, esperando ser descoberta.

    interessante, tambm, chamarmos ateno para o fato desses grupos terem habitado originalmente o litoral antes da expanso dos Tupi e que, regularmente, realizavam visitas ao antigo habitat nos espaos intermediarios entre as aldeias Tupi. O vazio demogrfico criado pelos desci men tos aldea-mentos/confinamentos c despovoamentos, permitiram a intensificao desse fluxo para a costa. Porm, sua presena no s criava atritos com os novos ocupantes como tambm lhes despertava a conscincia de que aqueles grupos poderiam substituir os Tupi dizimados.

    Outra referncia essencial para que compreendamos o conjunto de relaes sociais estabelecidas aps o contacto, a de que o seminomadis-mo tem o carter de uma circulao sazonal num territrio com limites definidos e reconhecidos pelos demais grupos e no um deslocamento desordenado por espaos no definidos. Alm disso, diferentemente dos Tupi, esses grupos no tinham, entre suas tradies, os hbitos migrat-rios dos Tupi. Da porque dificilmente optavam por abandonar seu habitat e refluir para as matas interiores como estratgia de resistncia, preferin-do o enfrenlamento armado, o que os tornava ainda mais ameaadores para os portugueses.

    O projeto inicial dos colonos era o de promover descimentos atravs da organizao de Expedies ou do uso dos Tupi aliados para que fizessem cativos, que eram resgatados de acordo com a legislao vigente. Esses

    7 As acusaes de antropofagia, selvagerin, ausncia de residncia fixa, agressividade podem ser encontradas nas Cartas Jesuticas, em Gndavo e Gabriel Soares de Souza, apenas para nos res-tringirmos no mais conhecidos do sculo XVI.

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    deslocamentos forados apresentavam uma srie de vantagens. Por desconhe-cerem o territrio em que eram aldeados e estarem cercados por inimigos tradicionais, reduzia-se a sua capacidade de resistncia e oposio ao projeto de dominao, alm de garantir o suprimento de trabalhadores necessrios nos locais onde a atividade econmica era mais ativa. Porm, tambm se estabelecia uma contradio de difcil superao: os novos cativos eram mais vulnerveis ao contgio, aumentando a taxa de modalidade, exigindo novos suprimentos, acentuando a reao dos ndios e a necessidade crescente de mais violncia para obter novo suprimento de trabalhadores, que morriam logo que eram aldeados conjuntamente com os contaminados sobreviventes Tupi, fechando um crculo vicioso de difcil superao. Apesar desses limi-tes, foram trazidos, entre 1575 e 1576, quatro mil ndios de Sergipe; vinte mil da serra do Orob (Kiriri), entre as bacias do Pardo e Contas, e oitocentos Potiguar da Paraba e Pernambuco (HEMMING, op. cil: 52-53).

    Monteiro (1990: 17) chama-nos ateno para o fato dos descimentos apresentarem restries, se comparados s prticas anteriores: a) as distn-cias a serem cobertas tornavam o acesso mo-de-obra crescentemente oneroso; b) reduo da margem de lucro devido maior taxa de mortalidade nos deslocamentos a longa distncia; c) os grupos Macro-J ofereciam maior resistncia aos descimentos e s guerras por no estarem fascinados por e dependentes de artigos manufaturados; d) devido s suas caractersticas culturais, exigiam maior tempo de aclimatao s novas atividades, implican-do na depreciao do "artigo".

    Os ataques dos Kiriri e Aimors garantiam aos colonos os argumentos necessrios obteno do direito de mover-lhes Guerra-Justa. Nesta primeira etapa, o uso de ndios guerreiros aldeados e de mamelucos era de vital importncia para o sucesso do empreendimento.

    Aos. poucos, o crescente conhecimento dos sertes e a especializao na atividade de apresamento transformaram as expedies relativamente autnomas com relao aos ndios pombeiros, que passaram da condio de aliados de escravos.

    Alm da justificativa da necessidade de mover Guerra Justa, as expe-dies tambm usavam como argumento a busca de metais preciosos. Numa rea que era o ocus da imaginao e da esperana de enriquecimento rpido, os mitos da montanha de prata; el Dorado; Vapubassu; da terra das Amazonas e tantos outros locais de riquezas minerais, eram comuns e justificavam as entradas, cuja a nica riqueza extrada era o ndio descido.

    Na Capitania da Bahia os primeiros combates e apresamento ocorre-ram no vale do Paraguau, seguindo o caminho das boiadas e a expanso das sesmarias dos grandes latifndios, como os da Casa da Torre e dos Saldanha.

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  • PARASO, Marin Hilda Baquciro. De como se obier mo-Ue-obm indgena na Dahia entre cs sculos XVI e XVIII.

    Os grupos atingidos foram, aps a destruio dos Tupina por Mem de Sii, os Kiriri-Sapuya, os Marac e os Paiai que eram descidos ou escravizados e distribudos entre os participantes e financiadores da expedio de forma proporcional aos financiamentos e responsabilidades de cada um (Provises Reais in ACIOLY e AMARAL; 1925: 64-76). Outras tticas eram a de alde-los sob a administrao de particulares ou de missionrios capuchinhos e franciscanos, Iranformando-o.s em "muralhas do serto", isto , barreiras de aliados/domesticados que impediam os deslocamentos de outros grupos ain-da no controlados. Essas aes se intensificaram a partir de 1591, sob a coordenao de Gaspar Dias Adorno, aps o fracasso do projeto de Gabriel Soares de Souza e construir Casas-Fori es a cada cinqenta lguas na regio. Na verdade, ele s conseguiu construir uma, na serra do Guariru, que origi-nou o aldeamento de Pedra Branca dos Kiriri-Sapuy, hoje sede do municpio de Sania Terezinha (PARASO, 1985: 1-10). Contra os Aimor, a primeira decretao de Guerra Justa data de 1595, tendo as aes se iniciado em 1597. Como tropa de combate auxiliar, foram deslocados os Poi guar da Paraba, que os colonos exigiram que permanecessem na regio aps terem se encer-rado os combates iniciais. Paralela a guerra, o jesuta Diogo Nunes procurava aldear os Aimor em Ilhus sem obler sucesso. O primeiro aldeamento do grupo s ocorreu em 1601. A guerra aos Aimor envolveu as regies do Baixo Recncavo, na capitania de Ilhus, e a de Porto Seguro (SOUTHEY: 1977: 271-275; SILVA CAMPOS, 1947: 104-105).

    Essas duas frentes iniciais atraiam a ateno devido importncia econmica e estratgica para a expanso da economia colonial. O Vale do Paraguau era o caminho das boiadas que abasteciam a zona aucareira e o Baixo Recncavo, garantia o fornecimento de gneros alimentcios, princi-palmente as farinhas, madeira para as construes e as caixas de exportao do acar. As queixas dos moradores dessa regio Cairu, Boipeba, Tin ha r e Camamu - envolviam denncias de desvio das verbas militares e tributos destinados a lhes garantir proteo dos ataques dos ndios e motivaram a criao da Casa da Relao da Bahia (Carta dos Moradores da Cidade da Bahia ao Rei in ACIOLY e AMARAL, op. citi 114).

    Novas epidemias entre os aldeados Kiriri e Aimor recrudesceram as relaes e intensificaram as entradas em busca de reposio, desencadeando ataques a Maragogipe, Boipeba, Cairu, Tinha r, Capanema, Apor, Ita poro-r ca, Cachoeira, Jaguaripe e Jequiri. Fechava-se, mais uma vez, o crculo de ao-reao-represso, gerando um clima de guerra generalizada.

    Um novo recrudescimento resultou da Carta Rgia de 02/03/1651 que determinava o deslocamento dos Aimor/Gren para combaterem os Paiai de Jacobina, compulsoriamente engajados na minerao de ouro. Tambm os

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  • R. Histria, Sia Paolo, n. 129-131, p. 179-208, ago.-dez./93 n ago.-dez./94.

    Kamik-Mongoy e os Palax comeavam a ser vistos como impedimento abertura ta rola do Serto de Baixo, que era o caminho mais curto para as boiadas destinadas ao norte das Minas - Aniuraf e Serro Frio. Os Marac, que at ento haviam se mantido como aliados, aluando como intermedirios nos apresamentos, tambm passaram a ser encarados como impedimento ao acesso ao rio So Francisco pela rola central. As decretaes de Guerras Justas se sucediam, assim como a construo de Casas-Fortes, acantonando soldados e ndios aldeados para combaterem os revoltosos (BORGES DE BARROS; s/d 173-180).

    Esse quadro de revoltas represso/escravizao convivia com as tenta-tivas da Coroa, dos jesutas e de Roma de reduzirem as possibilidades de se obterem escravos indgenas, o que faz lencastro (1992: 104) levantar a hiptese dessas medidas atenderem aos interesses dos traficantes negreiros.

    As tentativas de entregar a administrao de todos os ndios aos jesutas (30/07/1609) havia redundado em revoltas e protestos dos colonos e na sua revogao dois anos depois, quando se voltou a garantir o direito de obterem-se escravos atravs da Guerra Jusla e dos resgates. A Bula de 22/04/1639 de Urbano VIII, que condenava excomunho os que cativassem e vendessem ndios, no chegou a ser aplicada no Brasil (MALHEIROS, op. cif. 240-242).

    No caso da Bahia, as tentativas de conciliao podem ser percebidas nas determinaes simultneas do conde de bidos de aldear revoltosos e autorizar Guerras Justas. Em Carta Rgia de 23/06/1655, o conde de Auto-guia decretava Guerra Justa a lodos os revoltosos das Capitanias da Bahia, Ilhus e Porto Seguro. Os primeiros a serem at-acados foram os Paiai de Jacobina. Em 1657, os Marac da serra do Orob e, em seguida, os Grfin e os Kiriri de Cairu, Jequiri, llapororcas e Jaguaripe; os Kamak-Mongio e Pa taxo de Mara, rio de Contas, Serra dos Aimors e onde mais fossem encontrados (BORGES DE BARROS, op. cif. 180).

    Para efetuar uma ao de tal envergadura, o Governador realizou a contratao do primeiro paulista - Domingos Barbosa Cal hei ros - com a promessa de compensao com ttulos honorficos, terras e pagamentos pelos servios.

    Considerando que as constantes revoltas indgenas decorriam da "bon-dade" com quem eram tratados, o Governador Alexandre de Souza Freire opta pelo enrijecimenlo das medidas a serem adotadas, como se pode obser-var no Termo de Assento da Casa de Relao da Bahia. Aps relatar vrios ataques e responsabilizar os ndios pelos crimes de roubo, assassinatos, estupros, antropofagia e da morte do comandante da Casa-Forte de Cairu, dois soldados, um cacique e alguns ndios aldeados, num domingo, quando

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  • PARASO, Marin IliUla Baqueiro. De cornu se obier mo-de-obra indgena oa Uaha entre os sculos XVIcXVIl l .

    saiam da missa. Souza Freire prope novas medidas. Es I riba-se nas Carias Rgias de 06/04/1643; 23/12/1654, confirmada pela de 23/06/1655 e de 20/12/1668, pela qual ficava autorizado a decretar Guerra Justa nos termos que " lhe aprouvesse", castigar o "gentio brbaro" pelo seu "desaforo e atre-v imento" com a "necessria brevidade", mandando degolar os homens em "idade de guerra" que resistissem e declarar cativos os que fossem aprisiona-dos (SOUTHEY, op. cit: 322-323; ACIOLY e AMARAL, op. cif. 126).

    As medidas adotadas foram: a) contratar paulistas experientes no combate nos ndios b) autorizar a destruio das aldeias e a distribuio das terras assim desocupadas; c) assolar as aldeias inimigas, colocando-as sob o regime de terror; d) nomear capites-mores para cada campanha, exigi nuo-Ihes relatos detalhados dos prejuzos provocados pelos ndios e) usar o Assento de 1643 como nica fonte de autorizao de decretao da Guerra Justa; f) tratar com igual rigor os ndios aldeados que houvessem apoiado ou se refugiado entre os revoltosos (ACIOLY e AMARAL; op. cr(:126). Pode-mos observar que os argumentos usados no Termo de Assento estavam de acordo com a legislao vigente: a Guerra Justa era decorrncia da necessi-dade de defender colonos e seas investimentos, j que os indgenas eram considerados uma ameaa a segurana da Colnia.

    A contratao de outros paulistas foi providenciada, sendo-lhes garantido o pagamento de oito mil cruzados, fornecimento dos aviamentos necessrios, armas, ndios combatentes, atm do direito de manterem em legtimo cativeiro os prisioneiros de guerra e poder transferi-los para So Paulo as expensas da Fazenda Real. Atenderam a convocao Estevo Ribeiro Baio Parente, Manoel Rodrigues de Arzo e Pascoal Rodrigues. No nos deteremos nas questes geradas por esses contratos e que envolveram a Clmara, o Governador, a Fazenda Real e os contratados devido ao no cumprimento do estipulado (vide ACIOLY e AMARAL, op. cit). Nem tambm analisaremos as resistncias opostas pelos capites-mores quanto ao fornecimento de vveres, armas e ndios aos paulistas (vide correspondncia entre o Governador Furtado de Mendona e os capites-mores in BORGES DE BARROS, op. cit: 184-186).

    As aes envolveram a regio de Cairu, vale do Paraguau, Jacufpe, Jequiri, So Francisco, Jacobina e Rio Real, atingindo grupos Gren, Kiriri, Marac, Anai e Paiai. O resultado da ao foi milhares de prisioneiros, tendo sobrevivido poucos devido ao contgio por doenas infccto-conlagio-sas c exausto provocada pelas longas marchas foradas. O maior nmero de sobreviventes foram os Marac - mil e duzentos-que terminaram por ser vendidos em Maragogipe, pois no havia recursos para embarc-los para So Paulo, como estipulava o contrato Firmado. Como decorrncia, houve vrios protestos por parte dos financiadores c compradores, que acusaram Estevo Baio Parente de estar

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    negociando tribos filiadas c de 1er aviltado o preo dos escravos indgenas -queda de quarenta para dez cruzados - , o que lerminou provocando uma reprimenda do Governador ao paulista. (SOUTHEY, op. cit: 322; BORGES DE BARROS, op. cit: 173; ACIOLY e AMARAL, op. cit: 132; HEMMING, op. cit: 34y-350; MONTEIRO, 1992: 62-63). Como j observamos anterior-mente, a verdadeira razo dessa depreciao do valor dos cativos devia-se a laxa de mortalidade ser maior entre os grupos recti m descidos e a necessida-de de maior (empo para adequ-los s atividades exigidas, devido sua tradio de grupos caadores c coletores.

    A crise com os capites-mores do serto s pode ser contornada quando lhes foram concedidos iguais privilgios expressos nos contalos dos paulistas. A alegao era a de que por terem realizado as mesmas atividades nas suas regies no poderiam ser remunerados de forma diferente. O primei-ro a receber sesmaria, pagamento de soldo, concesso da administrao dos ndios aldeados, ttulo de fidalgo e o Hbito de Cristo foi Joo Peixoto Veigas, capilo-mor dos Paiai (ACIOLY e AMARAL, op. cit: 184-185; 231). Outros foram beneficiados, passando essas exigncias a comporem os novos termos dos contratos estabelecidos.

    Volpalo (1985), ao analisar a crescente especializao militar dos bandeirantes, acentuada aps sua contratao para a Guerra dos Brbaros, em 1680, quando o pagamento garantido pela Coroa passou a ser os acima referidos, demonstra como ocorreram essas mudanas na orientao das atividades exercidas por esse segmento social. Transformados em fora para-militar particular disponvel para a contratao por Governantes para comba-ter ndios, qui lombolas e invasores e s t r ange i ro s , os b a n d e i r a n t e s abandonaram a busca de melais e o descimento de ndios apresados para So Paulo nas propores anteriores. A Coroa, dada a fragilidade das tropas governamentais na colnia, criava mecanismo complementares de premta-o, alm do pagamento e financiamento das aes. Alguns tinham valor simblico e significavam prestgio social: a concesso do Hbito de Cristo e o ttulo de fidalgo. Outros representavam a possibilidade de enriquecimento: doao de sesmarias; pagamento de penses vitalcias e controle efetivo dos ndios aldeados em decorrncia da sua atuao. desde ento que os bandei-rantes, ao invs de retornarem a So Paulo, transformam-se em grandes sesmeiros espalhados entre o Piau e o alto So Francisco.

    Essas concesses fizeram com que cada vez maior o nmero de pes-soas se lanasse ao empreendimento de combater/aldear/administrar os gru-pos indgenas dos "sertes". Assim, reacendeu-se o conflito entre sesmeiros, capites-mores, criadores de gado, missionrios e ndios. Uma das razes foi a prtica adotada pelos referidos capites de retirarem os aldeados das mis-

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    soes para transform-los em combatentes ao seu servido, o que lhe garantia a expanso das (erras ocupadas, elemento essencial para o tipo de atividade econmica que exerc iam: a criao de gado no molde extensivo. Outro ponto de atr i to era o interesse dos sesmeiros em expulsar os ndios dos seus campos de criao de gado, como veremos adiante.

    A crise assumiu lais propores que motivou a Proviso Real de 15/10/1679, def in indo competncias e direitos dos envolvidos na disputa. Joo Peixoto Viegas e Antonio Guedes de Brito tiveram que restituir os ndios que havia ret irado das misses. Em contrapartida, os missionrios passaram a ser obrigados a ceder os aldeados Ioda a vez que estes tossem solicitados pelos capites-mores e receberam recursos c estmulos para a fundao dos novos aldeamentos c misses para os grupos da regio. Com essa medida, objetivava-se o seu confinamento em reas delimitadas, liberan-do as demais para expanso da atividade pecuria.

    Os conflitos tambm envolveram os jesutas que atuavam nos mesmos sertes, particularmente, na rea de Jacobina, onde tiveram que aceitar a assis-tncia mil i tar de Manoel de Castro Nogueira na administrao dos Paiai, em Natuba dos ndios K i r i r i c no So Francisco, onde estavam aldeados os Anai. Todos esses grupos, Iransformnvam-se, assim em "barreiras do serto", garanti-dores da expanso da pecuria. Os conflitos com os missionrios acirraram-se de tal maneira que sua expulso dos aldeamentos no So Francisco lornou-sc inevitvel. Nesta lt ima regio, os jesutas foram substitudos pelos tersios c estes pelos capuchinhos italianos. Esses aldeamentos terminaram por 1er suas (erras incorporadas ao patrimnio da Casa da Torre (ACIOLY c A M A R A L , op, cif. 234-235; D A N T A S , op, cif. 44.1: HEMMING, op. cif. 352).

    importante chamarmos ateno para o falo de que as atividades pecurias, diferentemente do que afirmavam os historiadores econmicos, no t inham qualquer interesse no concurso da mo-de-obra indgena. O interesse era a (erra para a expanso do crialrio. Isto implicava no afasta-mento dos pr imi t ivos ocupantes e na destruio dos campos de caa e coleta, elementos essenciais da economia dos grupos Macro-J. A criao extensiva exigia dos ndios at mesmo o cercamento de casas - feitas c cobertas com galhos de rvores c das poucas incipientes roas que aprendiam a fazer devido atuao dos missionrios, para evitar que fossem comidas pelo gado. Por ou t ro lado, o boi era um elemento que causava assombro aos ndios. Nunca hav iam vis lo um animal de to grande portee Io fcil de ser "caado". A o transform-los nos novos objetos de suas atividades econmicas, abriram outro f lanco de conf l i to com os proprietrios e scustvaqueiros, tornando a conv ivnc ia impossvel. As alternativas que restaram eram o seu confina-mento, uso como combatentes, descimento para o Recncavo ou expulso

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    para as reas ocupadas por grupos inimigos, onde seriam trucidados cm guerra inler-lribais.

    A criao extensiva exigia poucos investimentos iniciais c a mo-de-obra asada era composta de livres, que recebiam seu pagamento na base de uma cria para quatro nascidas, aps quatro anos efetivos de trabalho, e um lote de terra para o plantio de gneros alimentcios c a instalao de sua prpria fazenda de criao. Era um mecanismo que garantia a constante expanso da rea ocupada. Tambm escravos eram usados nessa atividade e s, esporadicamente, algum ndio aculturado era contratado como vaqueiro.

    Molt (1979), ito analisar a colonizao do Piau, chama ateno para esses fatos e a mesma realidade pode ser observada nos sertes baianos, principalmente ao focalizarmos as atividades dos grandes proprietrios da regio: os Guedes de Brito e os vila.

    Os problemas enfrentados pelos jesutas no se resumiam s suas aldeias dos "sertes do norte", onde tambm eram grandes criadores de gado. O enriquecimento da Companhia de Jesus e a abundancia mo-de-obra dis-ponvel em seus aldeamentos, sua resistncia em ceder aldeados, quando solicitados, e sua proposta de transformar os aldeamentos em ncleos de converso, criavam ressentimentos e protestos contra seus privilgios e os bices criados aos projetos dos colonos. Assim, as leis, em de termi natos momentos, concediam direitos administrativos exclusivos Ordem, ora redu-zia-nos ou determinavam sua expulso de vrios pontos da colnia.

    A sua ao de evangelizao c aculturao das populaes indgenas, que correspondia a outra modalidade de dominao, baseava-se ideologica-mente em sentimentos de superioridade racial e cultural, tpicos da postura eurocntrica dos representantes da metrpole, c na crena de serem portado-res da verdadeira religio. Exacerbados pelo fervor missionrio, os nacanos adotaram mtodos de atuao que contrariavam os colonos e desestruluravam as culturas indgenas em nome de uma converso/civilizao.

    Internamente, nos aldeamentos, acumulavam as funes dos Karaf e dos Morubixabas, observando as linhas bsicas de atuao determinadas por esses papis social e culturalmente definidos pelas sociedades indgenas. Usavam as crianas retiradas do convvio familiar como agentes culturais transformadores, violando os valores maiores da organizao social tribal, inclusive no tocante s hierarquizaes impostas pelo critrio da idade.

    No caso Tupi, sua ao voltava-se para a eliminao da poligamia, da antropofagia, da nudez, das prticas xamansticas e do nomadismo. A sua administrao rgida e o controle efetivo das rotinas de trabalho, levaram ao enriquecimento dos aldeamentos, despertando a insatisfao dos colonos que no tinham subsdios reais nem infra-estrutura para obter iguais resultados.

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  • PARASO, Mnrja I tilda Baqueiro. De como se obier mo-de-obra indgena na Bahia entre os secutas XVI e XVIII.

    Tambm a fragilidade e o insucesso dos aldeamentos como ncleos formado-res e fornecedores de mo-de-obra. como j afirmamos, havia deseslimulado os colonos a continuarem a apoiar a proposta jesutica j desde o fim do sculo XVI, cs(abclecendo-se o conflito e a dispula enlre os dois projetos dissociados. Na conquista dos sertes, os mesmos conflitos vo estar presen-tes, criando um clima de contradies que exigia a constante interveno da Coroa como poder moderador.

    A virada do sculo XVIII no alterou a situao. Em 1700, Pedro Gomes Frana, partindo de Ilhus, escravizou os ndios nos rios Jequitinho-nha, Pardo, Contas c Paraguau, abrindo a rota entre o rio de Contas e o norte de Minas Gerais. Esta ao na referida rea visava garantir a rola legal de comrcio autorizada pela Coroa c foi ampliada em 1712 com a criao de uma srie de aldeamentos para os Gren. administrados por capuchinhos, pois eles se recusavam a ser missionados por Jesutas (SILVA CAMPOS, op. cif. 173-175; 190-192; 202-205).

    Novos ataques a Cairn c Jequiri implicaram na cesso de aldeados das misses ao Capilo-mor Antonio Veloso da Silva. As razes das revoltas leriam sido os maus tratos, a explorao excessiva do trabalho e a prtica de torturas (BORGES DE BARROS, op. cif. 182-183; SILVA CAMPOS, op. cif. 205). Tambm cm.Jacobina as revoltas eram constantes, assim como nas minas de salitre no rio homnimo. As queixas no eram apenas contra os ndios, mas tambm envolviam a atuao do capilo-mor, que instalara seus administrados em terra dos grandes latifundirios, dificultando o seu uso pelos pequenos proprietrios. Quando os silvcolas se revoltaram por terem sidos instalados em terras ridas, D. Joo V determinou, em carta ao gover-nador Vasco Fernandes Menezes, que o capito-mor os devolvesse s terras onde antes estavam instalados (ACIOLY e AMARAL, op. cif. 355).

    O uso de aldeados como combatentes tornou-se uma prtica crescente, sendo inclusive, autorizado a capites-mores que lhes ministrassem treina-mento militar adequado e fornecimento de armas de fogo. A primeira conces-so nesse sentido foi feita ao capito-mor dos Marac, que deveria criar uma "muralha do serto" para proteger as minas de salitre e as feitorias de madeira dos rios Salitre e do Jequiri. Os mesmos Marac foram deslocados para policiarem a rola entre o rio de Contas c o norte de Minas Gerais, evitando os ataques dos grupos ainda no aldeados. Como prmio, o capilo-mor recebeu uma sesmaria no Jequiri com direito a administrar e usar os ndios ali aldeados (ACIOLY e AMARAL, op. cif. 355-365).

    A prtica crescente da violncia no combate aos ndios revoltados j havia se instalado em 14/06/1688, quando o Governador Alexandre de Souza Freire havia autorizado a degola de todos os homens em "idade da guerra",

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  • R. Ublria, S5o Paulo, o. 1 2 9 m , p. 179-208, ago.-

  • PARASO, Maria Hilda Baqueiro. De como se obter mo-de-obra indgena na Bahia entre os sculos XVIeXVIll .

    da entrada, conforme determinao da Carla Rgia de 25.10.1707 (PERRO-NE-MOSES, op. citi 127).

    A Bula de 20/12/1741 de Benedilo XIV vollava a proibir a escravido indgena, sob qualquer pretexto. As reaes no Brasil foram da desobedien-cia, uma deciso do Bispo do Par at decidiu suspender os efeitos punitivos previstos, assustado com as reaes.

    Novas revoltas continuavam entre os ndios da Bahia: em 1746, os Piiaia" atacaram a vila e as minas de Jacobina; em 1749, os Gren assaltaram Cairu e em 1750 Camamu. Os prprios moradores da vila se encarregaram da represso, alm de exigirem a nomeao de Capites-Mores e da Conquista c do uso dos aldeados para garantir-lhes a proteo necessria (ACIOLY e AMARAL, op. citi 177-299).

    As relaes estabelecidas, nesse perodo, podem ser caracterizadas como violentas e voltadas, para numa primeira etapa, para substituir os dizimados Tupi pelos indesejados Tapuias. Posteriormente, a guerra contra esses grupos assume o carter de conquista de novos espaos para a expanso da atividade pecuria.

    Outra caracterstica a de que as populaes indgenas adotam um papel bem mais reativo penetrao c a escravizao, criando um quadro de sucessivas revoltas e ataques a vilas e povoaes, estimulando a intensifica-o da prtica guerreira, que gerou mais reaes e mais punies.

    Esse quadro de conflito generalizado preocupava a Coroa que no mais conseguia fazer respeitar os parmetros gerais de sua poltica: o estabelecimento c a manuteno de alianas com grupos indgenas considerados como essenciais segurana da colnia. Essa preocupao vai se acentuar no reinado de D. Jos I, sob a inspirao de seu ministro, o Marqus de Pombal, que via nos ndios os povoadores dos espaos coloniais e que precisavam sentir-se como sditos portugueses para evitar o possvel avano espanhol nas fronteiras.

    VI Concluses

    Contrariamente ao que se propaga, o trabalho indgena foi de alta relevncia para o sucesso do projeto de ocupao e colonizao do Brasil. Esta verdade pode ser inferida da profusa legislao sobre o assunto e pelo conjunto de aes e reaes dos vrios segmentos sociais: administradores reais, missionrios, colonos e inmeros grupos Indgenas.

    Entre os sculos XVI e XVIII, como se pode constatar, a grande preocupao residia na definio das formas compulsrias de incorporao de mo-de-obra indgena. A questo da expropriao de terra era marginal e

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  • R. Histria, S3o Paulo, n. 129-131, p. 179-208, ngo.-dez.y93 a ago.-dezV94.

    decorria do prtica de aideare promover descimcntos, que, automaticamente, liberavam parcelas dos terrilrios tribais para os colonos.

    O eixo da poltica calcavn-se na dupla categorizao dos grupos ind-genas - "mansos ou hostis" -, nas formas adotadas pelas relaes intcrfnicas e nas tentativas de conciliao entre interesses e projetos opostos que a Coroa procurava administrar em nome de um fim maior e menos imediatista: a promoo da efetiva ocupao e colonizao.

    Como conseqncia, as formas de apropriao do trabalho indgena foram diferentes a de depender do ponto de insero do grupo no conjunto das relaes e polticas estabelecidas.

    Os "mansos/aldeados/aliados" trabalhavam nas roas dos aldeamen-tos, produzindo gneros alimentcios comercializados pelos administradores particulares ou missionrios; nas propriedades particulares de forma compul-sria e por tempo determinado, recebendo tecidos como forma de pagamento; como guias e estimuladores de descimenlos; como intrpretes nos contactos com os grupos no conhecidos; como defensores da colnia, em casos de ataques de franceses, holandeses ou ingleses e de tribos hostis, e, finalmente, cm obras pblicas determinadas pelos agentes administrativos da Coroa. importante ressaltar que a maioria desses trabalhos eram exercidos fora do permetro da aldeia e dos aldeamentos, o que implicava na acelerao do processo de desestruturao econmica e social do grupo, dificultando a reproduo fsica e social do grupo.

    As tticas usadas para manter os aldeamentos providos de mo-de-obra, apesar das altssimas taxas de .mortalidade, era a promoo de desci-menlos e o assentamento de novos aldeados nas proximidades das vilas c engenhos, onde trabalhavam, alm de proteg-los.

    Eram tornados sedentarios em reas que desconheciam e, at quando os recursos naturais necessrios prtica da caa e coleta, essenciais, mesmo para os grupos agricultores, se esgotavam, viam-se impossibilitados de bus-carem alternativas de suprimento alimentar. Isto os tornava, crescentemente dependentes de colonos. Essa subordinao e vinculao aos interesses do projeto colonial est explicitada, por exemplo, no Regimento das misses de 1686: "(...) que hajam nas ditas aldeias ndios que possam ser bastantes, tanto para a segurana do Estado e defesas das cidades, como para o trato e servio dos moradores e entradas dos sertes (...)" (apud PERRONE-MOSES, op. cil: 120). Os "bravios/errantes/inimigos" recebiam o tratamento previsto nas leis que regulamentavam as Guerras Justas: escravizao, distribuio entre os organizadores das Expedies, venda em hasta pblica; descimenlos for-ados e uso indiscriminado nas atividades que fossem consideradas conve-nientes e necessrias.

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  • PARASO, Mafia Hilda Baqueiro. De como se obier mo-de-obra indgena na Bahia entre os sculos XVI e XVIII.

    A poltica de aldeamento compulsrio deve ser analisada pelo ngulo das convenincias econmicas, eslratgicas, polticas e culturais. No campo econmico as vantagens eram: faci li lar o acesso ao contingente de trabalha-dores, racionalizar a aplicao de recursos necessrios a sua administrao e liberao de (erras para efetiva ocupao pelos colonos. Em termos estrat-gicos, o assentamento em locais adequados permitia seu uso como eficientes "barreiras do serto", alm de facilitar a represso nos momentos de revolta dos aldeados. Em termos polticos e culturais, a concentrao numa rea restrita facilitava a atuao dos agentes colonizadores na promoo da con-verso/acullurao/incorporao dos indgenas ao modelo previsto pela ad-ministrao europia (CUNHA op. cif. 143).

    Os limites do modelo escravista indgena eram dados pela dificuldade de manter o nmero ideal de trabalhadores devido alta laxa de mortalidade c instabilidade no suprimento externo. Tambm o nmero elevado de revoltas e fugas era considerado como dificullador da manuteno do sistema. Finalmente, as crescentes distncias a serem percorridas para garantir o abastecimento, a maior resistncia dos grupos Macro-J escravizao, sedenlarizao e agricultura, tornavam o empreendimento cada vez menos lucrativo.

    Essas dificuldades, se comparadas com as facilidades de obteno e uso dos escravos negros, fizeram com que estes se tornassem a opo prefe-rencial dos colonos capitalizados (SCHWARTZ, op. cif. 52; 57-73)

    Porm, diferentemente desse autor, no acreditamos que a substituio da mo-de-obra indgena pela africana lenha ocorrido com a rapidez que ele alega, mesmo no Recncavo. Para os pequenos proprietrios e os produtores voltadas para o mercado regional, o trabalho indgena era essencial, inclusive parase capitalizarem e poderem substituir uma fora de trabalho por outra. Oulro argumento que consideramos indicativo dessa importncia, j na metade do sculo XV11I, a preocupao do Marqus de Pombal cm garantir formas de apropriao do trabalho indgena pelos colonos e que, apesar de encobertos, como dizia Joo Lcio de Azevedo" (...) sob a forma falaz de liberdade (...)" (apud DORNAS, op. cif. 24), se caracterizavam pela violncia.

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    ABSTRACT: The article U an analysis of the policies toward (he indiar, the practices used in the captaincies of Bahia, Ilhus, and Porto Seguro between the 16th and 17lh century, and (he attempts to appease the conflicting interests of indigenous groups, settlers, Jesuits, and metropolitan administra-tors. This study demonstrates how the social relationships which were established resulted from vi-sions, interests, cultural references, values, and social strategies of the various parts involved and how these diversities were articulated, creating a complex social network related to the various projects dea-ling with lhe effective ocupaton and exploitation of the new colony.

    KEY-WORDS: Colonial Period, Bahia, Indigenous Policy, Indigenous labor, Indigenous slavery.

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