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Leonardo Boff TEMPO DE TRANSCENDÊNCIA O Ser Humano como um Projeto Infinito Lumensana Publicações Eletrônicas Organização, Digitalização e Projeto gráfico-eletrônico Luiz Edgar de Carvalho Fonte: Leonardo Boff, T empo de transcendência Editora Sextante, 2000 1

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Leonardo Boff 

TEMPO DE TRANSCENDÊNCIA

O Ser Humano comoum Projeto Infinito

LumensanaPublicações Eletrônicas

Organização, Digitalização eProjeto gráfico-eletrônicoLuiz Edgar de Carvalho

Fonte: Leonardo Boff, Tempo de transcendênciaEditora Sextante, 2000

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 Nota Preliminar 

O profeta é aquele que anuncia e denuncia. Anunciaaquilo para que o ser humano foi essencialmente criado, edenuncia os esquemas que atentam contra o seu destino. Éisso que Leonardo Boff faz em Tempo de Transcendência,levando-nos a descobrir dimensões capazes de promover nossa realização e assim conquistar a paz e a felicidade que buscamos.

Somos seres de enraizamento e de abertura. A raiz quenos limita é nossa dimensão de imanência. A abertura quenos faz romper barreiras e ultrapassar todos os limites,impulsionando a busca permanente por novos mundos, énossa transcendência.

Leonardo Boff define e ilustra a transcendência.Descreve os lugares privilegiados onde ela se dá,desvendando-a nos grandes e pequenos acontecimentos,dando-nos olhos para enriquecer gestos e momentos docotidiano.

A partir daí denuncia as falsas transcendências com quea cultura atual investe para responder a essa buscafundamental do ser humano, empobrecendo-o e frustrandosua procura. Denuncia mesmo as religiões quando seapresentam como as únicas intermediárias para alcançar otranscendente e procuram enquadrar-nos com suas normas everdades absolutas.

Quem preenche o vazio que existe no ser humano? Boff 

enumera três respostas a esta questão e identifica-se com

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aquela que dá nome a esse objeto do nosso desejo,chamando-o de Deus, Olorum, Tao, Javé. Mil nomes paraessa realidade que brilha, que ilumina e que é a dimensão

mais profunda de nós mesmos.

Uma reflexão sobre masculino-feminino e sobre aecologia completa a função profética do texto. Ahumanidade e o mundo novo serão construídos quando oser humano se engajar num projeto político que gerealianças, supere divergências e respeite a diversidade,criando uma esplêndida solidariedade cósmica.

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LEONARDO BOFF

TEMPO DE TRANSCENDÊNCIA

 Ao falar sobre o tempo da transcendência, é necessáriocomeçar definindo o tempo. Quero defini-lo como o grande poeta argentino Martín Fierro o entende. Ele diz que o

tempo é “a tardança daquilo que está por vir”. Acho genial essa formulação, pois mostra o processo de realização dotempo (tardança), vindo do futuro em direção do presente.

1 – SOMOS SERES DE PROTEST-AÇÃO

Creio que a transcendência é, talvez, o desafio mais

secreto e escondido do ser humano. Porque nós, sereshumanos, homens e mulheres, na verdade, somos  protestantes, somos essencialmente seres de protest-ação,de ação de protesto. Protestamos continuamente.Recusamo-nos a aceitar a realidade na qual estamosmergulhados porque somos mais, e nos sentimos maioresdo que tudo o que nos cerca.

Desbordamos todos os esquemas, nada nos encaixa. Não há sistema militar mais duro, não há nazismo maisferoz, não há repressão eclesiástica mais dogmática que  possam enquadrar o ser humano. Sempre sobra algumacoisa nele. E não há sistema social, por mais fechado queseja, que não tenha brechas por onde o ser humano possaentrar, fazendo explodir essa realidade. Por mais

aprisionado que ele esteja, nos fundos da Terra, ou dentro

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de uma nave espacial no espaço exterior, mesmo aí o ser humano transcende tudo. Porque, com seu pensamento, elehabita as estrelas, rompe todos os espaços. Por isso, nós,

seres humanos, temos uma existência condenada – condenada a abrir caminhos, sempre novos e sempresurpreendentes.

Há um grande filósofo italiano que viveu há muitosanos e que me inspirou muito em minha juventude:Michiele Federico Sciacca. Hoje, ninguém mais sabe dele.Escreveu um livro cujo título é L’uomo, questo squilibrato

(O ser humano, esse desequilibrado). Não cabe nenhumequilíbrio. Ele sempre está fora do centro, longe doequilíbrio.

Ao falar de transcendência como dimensão intrínsecado ser humano, temos que submeter a rigorosa crítica o queas religiões nos legaram. Elas afirmam que o Céu fica lá em

cima, onde está Deus, os santos e aquele mundo quechamam de transcendente. Aqui embaixo fica a imanência,onde está a criação sobre a qual nós reinamos. Os doismundos se justapõem e até se contrapõem. Através de todaa mecânica da oração e da meditação buscamos criar pontes para chegar ao Céu, à transcendência e a Deus.

Caso não consigamos por nós mesmos chegar a Deus,as religiões se propõem como mediadoras. Os filósofos, noentanto, nos dizem: “Tudo isso é metafísica”. O quesignifica: tudo isso é uma representação e uma projeçãonossa, não é a realidade originária. É invenção nossa.Talvez a primeira metafísica, a primeira representação domundo forjada pelos seres humanos, já nos ancestrais – quem sabe quando surgiu a primeira luz de inteligência, há

quase dez milhões de anos –, tenham sido as religiões.

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Porque elas são metafísicas, são representações do mundo:céu / inferno, lá / aqui, Deus / mundo, corpo / alma,imanência / transcendência.

Uma reflexão mais profunda, entretanto, aquela que  busca o pensamento originário, aquele grau zero daexistência, se dá conta de que se trata de invenção e de projeção humanas. Quando afirmamos isso, irritamos todosos crentes. Aqueles que defendem os catecismos se sentemdesnorteados. Mas nós temos que pensar a realidade, não oscatecismos. Eles são interpretações religiosas da realidade ecomo tais não perdem o seu valor. São, porém,interpretação de algo anterior a eles, algo que queremosdecifrar.

2 – A EXPERIÊNCIA ORIGINÁRIA:EX-ISTÊNCIA

O que é anterior e o que subjaz às expressõesimanência-transcendência? É a experiência do próprio ser humano como um ser histórico, um ser que está se fazendocontinuamente. É o que chamamos de experiênciaoriginária. Quando falamos filosoficamente em existência,dizemos: ex-istência. Estamos sempre nos projetando parafora (ex), construindo nosso ser. Nós não o ganhamos  pronto. Nós o moldamos mediante a nossa liberdade,mediante os enfrentamentos e intimidações do real. Aoreagir, assumir, rejeitar e modelar, vamos construindo anossa ex-istência. O ser humano é um ser nunca pronto, por isso não há antropologia, há antropogênese, que é a gênesedo ser humano. Nessa experiência emerge aquilo quesomos, seres de imanência e de transcendência, como

dimensões de um único ser humano. Imanência e

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transcendência não são aspectos inteiramente distintos, masdimensões de uma única realidade que somos nós.

Então, a afirmação de base de uma atitude radicalmentefilosofante, que procura ver atrás das coisas, detecta aquelemotor secreto que faz nascer tudo e que move o surgimentodas projeções: a própria ex-istência humana sempre emaberto, sempre se construindo.

Usando uma metáfora, eu diria que somos seres deenraizamento e seres de abertura. Primeiramente nossentimos seres enraizados. Temos raiz, como uma árvore. Ea raiz nos limita, porque nascemos numa determinadafamília, numa língua especifica, com um capital limitado deinteligência, de afetividade, de amorosidade. Ademais,temos a dimensão sã e também a dimensão patológica.Porque não somos só homo sapiens sapiens. Somos hoje,fundamentalmente, homo demens,  duplamente demens,

coisa esquecida na modernidade iluminista. Hoje somosdementes, em grau supremo. É a nossa situação. É o nossoarranjo existencial. Eis nosso enraizamento, nossaimanência.

Mas somos simultaneamente seres de abertura.  Ninguém segura os pensamentos, ninguém amarra asemoções. Elas podem nos levar longe no universo. Podemestar na pessoa amada, podem estar no coração de Deus.Rompemos tudo, ninguém nos aprisiona. Mesmo que osescravos sejam mantidos nos calabouços e obrigados acantar hinos à liberdade, são livres, porque semprenasceram livres, e sua essência está na liberdade.

Então, possuímos essa dimensão de abertura, de romper 

 barreiras, de superar interditos, de ir para além de todos os

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limites. É isso que chamamos de transcendência. Essa éuma estrutura de base do ser humano.

3 – TRANSCENDÊNCIA:CAPACIDADE DE ROMPER INTERDITOS

Inicialmente, a dimensão de transcendência não temnada a ver com as religiões, embora elas procuremmonopolizar a transcendência. Elas afirmam: “Deus está natranscendência, habita numa luz inacessível, e nós temossua revelação, a chave para falarmos Dele”. Isso é purametafísica, uma tradução da experiência originária, mas nãoé a experiência originária.

Se assim é, podemos então dizer: todos os tempos sãotempos de transcendência. O tempo do homem de Neandertal era tempo de transcendência; o australopiteco

  piticino, que era uma mulher, Luci, era uma mulher detranscendência. Ela deixou as florestas da África e começoua andar na savana árida, e, como ali era muito seco, foi  preciso desenvolver o cérebro para sobreviver. Assim,lentamente, irromperam como seres humanos. Os demaisirmãos que ficaram na floresta, cheios da abundância dosmeios de vida e das frutas, continuam lá como primatas atéhoje. Então, o sertão, a seca, o deserto são a pátria dahumanidade, da transcendência. Fomos obrigados atranscender os limites impostos pelo meio para podermosviver. Então, transcendência, fundamentalmente, é essacapacidade de romper todos os limites, superar e violar osinterditos, projetar-se sempre num mais além.

Para dar um exemplo dessa dimensão, vamos escolher a

 primeira página do Gênesis, a famosa história de Adão e

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Eva. Ela pode ser lida em muitos códigos. O cristianismo, atradição judeu-cristã, lê num código religioso, fala de pecado original, tudo aquilo que já sabemos. Mas a leitura

antropológica e filosófica descobre aí o ato supremo do ser humano: “Você não pode comer da fruta proibida; se comer,você morre.” E o ser humano tem o prazer de violar ointerdito, de fazer a coisa proibida. Não existe tentaçãomaior. E ele viola, descobre a sua realidade detranscendência, se transforma em humano. Isso faz com queessa passagem bíblica seja grandiosa, reveladora daessência da liberdade.

Mas voltemos ao Brasil. Os carajás têm um mitofantástico. A cultura carajá no Bananal é riquíssima emmitos preciosos, e este especialmente dá bem a dimensão datranscendência. Segundo o relato dos carajás, o Criador osfez imortais. Eles viviam como peixes na água, nos rios,nos lagos. Não conheciam o sol, a lua, as estrelas, nada,

apenas as águas. No fundo de cada rio onde estavam haviasempre um buraco de onde saia uma luz com grandeintensidade. E este era o preceito do Criador: “Vocês não podem entrar nesse buraco, senão perderão a imortalidade.”Eles circundavam o buraco, deixando-se iluminar com ascores e sua luz, mas respeitavam o preceito, apesar de ser grande a tentação. “O que tem lá dentro?”

Até que um dia, um carajá afoito se meteu pelo buracoadentro. E caiu nas praias esplêndidas do rio Araguaia, quesão praias alvíssimas, belíssimas. Ficou maravilhado. Viu osol, pássaros, paisagens soberbas, flores, borboletas. Por onde dirigia o olhar ficava cada vez mais boquiaberto. Equando chegou o entardecer, e o sol sumiu, pensou emvoltar para os irmãos. Mas aí apareceram a lua e as estrelas.

Ficou ainda mais embasbacado e passou a noite se

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admirando da grandiosidade do universo.

E quando pensou que já ia avançado na noite, o sol

começou a despontar. Ao lembrar-se dos irmãos, eleretornou pelo buraco. Reuniu todos e contou: “Irmãos eirmãs, meus parentes, vi uma coisa extraordinária, quevocês não podem imaginar.” E descreveu sua experiência.Aí, todos queriam passar pelo buraco luminoso. Então, ossábios disseram: “Mas o Criador é tão bondoso conosco,nos deu a imortalidade, vamos consultá-lo.” E foramconsultar o Criador, dizendo: “Pai, deixe-nos passar pelo buraco. É tão extraordinária aquela realidade que o nossoirmão afoito nos descreveu.” E o Criador, com certatristeza, respondeu: “Realmente, é uma realidadeesplêndida. As praias são lindíssimas, a floresta apresentauma biodiversidade fantástica.” (O Criador já falava onosso dialeto moderno.) E continuou: “Vocês podem ir paralá, mas há um preço a pagar. Vocês perderão a

imortalidade.”

Todos se entreolharam e se voltaram para o carajá afoitoque primeiro violara o preceito. E decidiram passar pelo buraco, renunciando à imortalidade. A divindade então lhesdisse: “Eu respeito a decisão que tomaram. Vocês terãoexperiências fantásticas de beleza, de grandiosidade, mastudo será efêmero. Tudo vai nascer, crescer, madurar, decair e por fim morrer. Vocês participarão desse ciclo. É isso quequerem?” E todos, unanimemente, afirmaram: “Queremos.”E foram. Cometeram o ato de suprema coragem para terema liberdade de viver a experiência da transcendência.Renunciaram à vitalidade perene, renunciaram àimortalidade. E até hoje estão lá, os carajás, naquelas praiaslindíssimas. Se um dia vocês forem visitá-los, vão encontrá-

los rolando nas areias, mergulhando nas águas muito

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verdes, mas profundamente livres. Talvez seja a cultura quemais aprecia a liberdade.

Os carajás fizeram a experiência da transcendência.Essa passagem é a transcendência que revela agrandiosidade do ser humano, mas também suadramaticidade, pois ele deve morrer tendo sempre o desejode viver.

4 – SER HUMANO: UM NÓ DE RELAÇÕES

O que é o ser humano, então? É um ser de abertura. Éum ser concreto, situado, mas aberto. É um nó de relações,voltado em todas as direções. Já dizia o grande “filósofo”(comunicador) Chacrinha: “Quem não se comunica seestrumbica.” É só se comunicando, realizando essatranscendência concreta na comunicação, que o ser humano

constrói a si mesmo. É só saindo de si, que fica em casa. Ésó dando de si, que recebe. Ele é um ser em potencialidade permanente. Então, o ser humano é um ser de abertura, umser potencial, um ser utópico. Sonha para além daquilo queé dado e feito. E sempre acrescenta algo ao real.

Emile Durkheim, um dos fundadores da sociologia, falada singularidade do ser humano como ser social, capaz decriar utopia, de acrescentar algo ao real. É algo exclusivodele, nenhum animal é capaz de utopia. Por isso, ele criasímbolos, cria  projeções, cria sonhos. Porque ele vê o realtransfigurado. Essa capacidade é o que nós chamamos detranscendência, isto é, transcende, rompe, vai para alémdaquilo que é dado. Numa palavra, eu diria que o ser humano é um projeto infinito. Um projeto que não encontra

neste mundo o quadro para sua realização. Por isso é um

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errante, em busca de novos mundos e novas paisagens. Aconclusão que tiramos desse fato é que não devemos nosdeixar enquadrar por ninguém, por papa nenhum, por 

governo nenhum, por ideologia nenhuma, por revelaçãonenhuma. Por nada no mundo, porque tudo é menor. O ser humano é um projeto ilimitado, transcendente, não dá paraser enquadrado. Ele pode, amorosamente, acolher o outrodentro de si. Pode servi-lo, ultrapassando limites. Mas é sóna sua liberdade que ele o faz, é só quando se decide a isso,sem nenhuma imposição. Não há nada que possa enquadrá-lo, nenhuma fórmula cientifica, nenhum modo de produção,nenhum sistema de convivialidade. Nem mesmo o nossomoderno sistema globalizado, dentro do pensamento únicoque afirma “não há alternativa para ele”, reforçado pelofundamentalismo da economia de hoje, que garante que “sóexiste o modo de produção capitalista global, com suaideologia política, o neoliberalismo, não há outro caminho aseguir”.

Essa concepção supõe um conceito pobre do ser humano. Transforma-o, no fundo, num mero consumidor,que só tem boca para consumir, mas não possui cabeça para projetar. Quem defende e pratica essa concepção não estáinteressado em formar um cidadão criativo, capaz de pensar  por si e plasmar o seu próprio destino. Está interessado emgerar consumidores, agalinhados em seus poleiros, perdidosda sua identidade de serem águias. Em nome da nossatranscendência, protestamos contra esse modo de realizar o processo de globalização que, em si, representa um patamar novo da história humana.

O ser humano é um ser criativo, pensa alternativas. E,se não consegue pensar, resiste e se rebela, levanta-se e

 protesta, ocupa terras e funda uma outra ordem, um outro

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direito difuso ligado à vida, ligado à liberdade. Não é odireito que enquadra, que privilegia, que afirma “essa é anorma, isso é o correto, isso é o constitucional.” A vida,

especialmente quando submetida a coação, busca e criaoutras formas de ordenação. É sua transcendência que lheconfere essa liberdade criativa. Liberdade pelo menos de protestar e de se insurgir. E quando a opressão é de talforma pesada, em face da qual não se pode mais fazer nada, pelo menos pode-se protestar, pode-se fazer uma absolutarecusa. Pode-se torturar o ser humano, e até matá-lo, masninguém lhe tira essa sua capacidade de se opor.

Então, meus irmãos e minhas irmãs, olhem ao redor evejam os sistemas que nos querem enquadrar hoje. Naeducação, na família, na escola, nas religiões. Não nosdeixemos mediocrizar, mantenhamos nossa grandeza, nossacapacidade de vôo, nossa capacidade de transcendência.

5 – LUGARES PRIVILEGIADOSDE EXPERIÊNCIA DA TRANSCENDÊNCIA

Onde fazemos quotidianamente a experiência datranscendência? Considero que há alguns eixos existenciais  pelos quais todos nós passamos e onde fazemos umaexperiência de transcendência límpida, cristalina, que

 não

 precisa de explicação, de nenhuma retórica interpretativa.

Para mim, a experiência mais fundamental, aquela quetoca a profundidade de nós mesmos, é a do enamoramento.Quando a pessoa se enamora, a outra vira uma divindade. Não se mede sacrifícios, o tempo não conta. Você cancelatudo, chega a mentir para se encontrar com a pessoa amada.

Por que? Porque você sai de si e vai ao encontro do outro. É

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uma experiência de êxtase, extática, fora da realidade. Nãohá quem não se enamore.

Machado de Assis, no   Dom Casmurro, descreve ofenômeno do enamoramento com referência a Capitu:“Naquele instante, a eterna Verdade não valeria mais queele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas.Eu amava Capitu! Capitu amava-me. E as minhas pernasandavam, desandavam, estavam trêmulas e crentes deabarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essarevelação da consciência a si própria, nunca mais meesqueceu, nem achei que lhes fosse comparável a qualquer outra sensação da mesma espécie.”

Eis uma experiência de transcendência. Experiência doencontro entre duas pessoas que se enamoram e se amam. Equando se dá a intimidade sexual, expressão do amor, umase perde para dentro da outra e esquece-se o tempo. Vive

uma experiência mística, de antecipação da eternidade.Todos os místicos, quando estão no auge do seuenamoramento com Deus, falam do esponsal: “do amado naamada transformado”, como diz São João da Cruz. Porqueesta é uma experiência suprema, em que os seres humanossaltam na direção do outro, numa fusão gratificante. É umaexperiência só comparável à da intimidade, da erótica.

A experiência da transcendência se manifesta de modoespecial na cultura popular, que é a cultura massacrada dosalário mínimo, da destruição do horizonte utópico, dafrustração de que, no fundo, nada mais vai mudar. Conheçoum torcedor que antes de um grande jogo, decisivo, vai atédormir mais cedo para que o tempo passe mais depressa, talé o desejo de ver seu time jogar. Quando chega o dia

compra antecipadamente a entrada, vai ao estádio e aí

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ninguém o contém. Ele freme, ele treme e na hora do golexperimenta um salto para a transcendência. É o delírio, é ogrito, é o abraço, é o gozo, é o êxtase.

Ou então, quando chega o carnaval, e a sua escoladesfila e ganha, se não tem um foguete, mas uma arma, elechega a dar tiros para o ar, tal é a experiência de saída de simesmo, de límpida transcendência.

Quando refletia sobre a transcendência para esta  palestra, li num jornal uma notícia reveladora de umaexperiência dupla de transcendência. Pobres sem-terra defavelas, que nunca tinham estado num  shopping,resolveram se organizar para visitar um, sem nenhumaintenção de assaltar, de fazer confusão, nada. “Vamosvisitar um shopping.”

E foram, na pobreza em que estavam, descalços, sujos,

roupas malcheirosas, sinais da cultura da miséria. E no shopping Rio Sul do Rio de Janeiro se deu a experiência deuma dupla transcendência. Eles ficaram encantados. Umoásis de consumo, uma beleza sem contradições. Cada lojamais linda do que a outra. Numa um deles entrou, atéexperimentou uma roupa. Que coisa bonita! Um paraísoencantado de produtos. Nunca tinham visto tal profusão. Sehá um paraíso terrenal, de produtos materiais, o shopping orealiza. Mas o realiza só para alguns. Então aqueles sem-terra tiveram uma experiência fantástica de transcendênciade seu melancólico cotidiano. E os donos das lojas e osfreqüentadores do  shopping  também tiveram umaexperiência de transcendência. “Como é possível que essesvenham para cá?” Alguns fecharam as lojas. “Vão nosassaltar, vão nos roubar.” E eles, nada disso. Só queriam

visitar. “São ETs que vieram de outros planetas, de outros

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continentes, e entraram nesse país fechado do modernoconsumo. Eles não cabem aqui. São os zeros econômicos,não são nem produtores, como querem ser consumidores?

 Não contam na contabilidade nacional, como querem estar aqui?”

Vejam, a transcendência ocorre nessas experiências docotidiano banal, do nosso dia-a-dia. Para uma cultura maiselaborada há outras experiências de transcendência: anteuma peça de teatro, um livro, um filme. “Que beleza deenlevo!”, “Vou ver uma grande artista”. Assisti três vezes aofilme   A Vida é Bela, de Bengnini. É uma experiênciafantástica de transcendência feita por uma criança notransfundo da guerra e do campo de concentração judeu,alimentando o sonho de ganhar como presente um tanquede guerra. Apesar daquele horror do nazismo e do campo deconcentração que cristaliza a negação de toda a dignidadehumana, a possibilidade do ser humano de ultrapassar, de

viver a transcendência, de garantir o sonho e o humor finalmente acaba se realizando: encontra o tanque de guerrareal, tanque que o vem libertar a ele e a sua mãe.

  Nesse contexto não posso deixar de lembrar asmemórias de Rudolf Hess, diretor nazista do campo deextermínio em Auschwitz.

Conta que sua função era a de conduzir os judeus àcâmara de gás. Fez até os cálculos de quantos ele, sozinho,enviara às câmaras de extermínio, e, se bem me lembro,cerca de um milhão e trezentas mil pessoas, homens,mulheres e crianças. Foi julgado em Nuremberg e na prisão,antes de ser enforcado, teve tempo de escrever suasmemórias. O que impacta é a frieza com que o faz.

Absolutamente convencido da retidão de seu

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comportamento, pois obedecia ordens de Hitler, o  Führer.“E o Führer, o Chefe, sempre tem razão.” E aí pratica o malcom absoluta boa vontade. Agora entendemos a frase de

Pascal: “Nunca fazemos tão perfeitamente o mal senãoquando o fazemos com boa vontade.”

Mas há um momento no livro que me abalou e não posso esquecê-lo: é o momento de transcendência dele. Foiquando mandou para a câmara de gás uma mulher comcinco crianças. A mulher intuiu o que ia acontecer. Elaentão suplicou de joelhos que ele poupasse as crianças. Por um instante ele ficou embaraçado, perplexo, sem saber oque fazer. Mas com um gesto brusco mandou que levassemtodos, a mulher e as crianças. Nas suas memórias, comenta:“Aquele olhar da mulher não posso jamais esquecer. Ele me persegue sempre, até os dias de hoje, porque havia neletanto enternecimento, tanta súplica, tanta humanidade, queeu me senti o inimigo de minha própria humanidade.” É

uma experiência de transcendência, pelo reverso, possívelaté no nazismo mais brutal.

A transcendência principalmente se dá no encontro comas pessoas. Às vezes, acontece: você está numa criseexistencial, sem rumo, e encontra alguém que tem palavrasseminais, que lhe acende uma luz, que coloca a mão no seuombro, que aponta um caminho. Não como o mestre, quediz “Vá por aí”, mas despertando o mestre escondido emvocê e ajudando-o a definir um caminho de sentido. Vocêtem então uma experiência de transcendência, de ruptura deseu círculo fechado, de apoio existencial libertador. Surgeentão o sentimento de veneração por essa pessoa que setransforma, por um momento, em um mestre, capaz dedespertar o seu herói interior adormecido.

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 Não me furto de oferecer uma experiência pessoal detranscendência no encontro. Em I998 fui visitar DomHélder no Recife, em sua igrejinha das Candeias e a meia-

água onde vivia pobremente. Sempre fomos muito amigos.Jamais esqueço do bilhetinho manuscrito que me fez chegar a mim e a meu irmão Clodovis, também teólogo (a quemDom Hélder considerava como um filho querido).Marcamos um encontro às dez horas. Quando cheguei, afreira que cuidava dele me disse: “Olha, Dom Hélder estavamuito cansado e foi descansar. Acho que adormeceu. Sequiser, eu o mostro dormindo.” E eu fui ver. Fiquei dezminutos, quinze minutos talvez, contemplando aquele passarinho dormindo. Com seu habitozinho branco, pareciaum Gandhi com as suas canelinhas de fora, finas,suspirando profundamente.

E eu fiquei enlevado, porque saía dele tanta irradiação,tanta leveza, tanta santidade, tanta transcendência, que era

algo do outro mundo que irrompia ali. Fiz a reverênciaindiana, inclinei-me profundamente, sai de fininho e disse:“Olha, entre tantos diálogos que tive com Dom Hélder, estefoi o mais profundo.” Essa imagem eu quero guardar dele.O sono de um profeta, de um Gandhi, de um anjo da paz.São pessoas iluminadas. Cada um de nós encontra em suavida pessoas iluminadas. É talvez um avô, uma avó, um tioque sofreu muito, um amigo entranhável, uma amigaconfidente. Às vezes pode ser até o pipoqueiro ou amanicure que escutam e sabiamente ponderam e opinamcom visões surpreendentes, verdadeiramente fantásticas.Tenho alguns amigos das camadas populares que eu achogeniais. Deviam estar nas universidades falando, nos púlpitos pregando e nós só escutando e aprendendo.

Martin Heidegger, que eu considero o maior filósofo do

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século XX, apesar do seu nazismo inicial, não quis sair deFriburgo, que é uma cidadezinha bem pequena. Ele quisficar lá porque seus grandes amigos, seus interlocutores de

  pensamento, eram Camponeses, lenhadores da Floresta Negra com quem ele mantinha grandes diálogos. Ele dizia:“Aqui estão os pré-socráticos.” Aqueles do pensamentooriginário, que não estão na metafísica das igrejas, nem nametafísica da modernidade, nem na metafísica dasuniversidades, estão no chão da vida, em grau zero, coladosà realidade fundamental da ex-istência como expliqueianteriormente. Heidegger dava a entender: “Aqui alimentominha reflexão. Não vou a Berlim, a capital da Alemanha,com uma cátedra prestigiosa de filosofia. Fico aqui commeus lenhadores.” Escreveu um belíssimo texto dando asrazões de sua permanência na província. Como filósofo, elevivia às voltas com a transcendência. Encontrou eidentificou a fonte de onde para ele germinava atranscendência, cristalina, no trato amical e franco com os

camponeses.

6 – TUDO O QUE É SÃO PODE FICAR DOENTE:A PSEUDOTRANSCENDÊNCIA

Há também uma pseudotranscendência que a culturaatual promove de forma inflacionada. Acho que todo esseuniverso do marketing, do   show bizz, do entretenimentonacional e mundial são os campos onde se produz umaexperiência de pseudotranscendência. As menininhas ficamloucas quando vêem um artista de televisão e podem tocá-lo. Deliram quando encontram a Xuxa, porque a Xuxa éuma fonte de transcendência construída artificialmente.Quando o padre Marcelo Rossi canta, muitos cristãos

deliram. É como se baixasse o Espírito Santo neles por 

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força da evocação de emoções. Julgo tais manifestações de pseudotranscendência.

E a maior de todas elas é a droga. Ela permite umaviagem fantástica, feita não pela espiritualidade, mas pelaquímica. A religião, a arte, o cinema podem ser drogas.Com elas rompem-se todos os limites, vive-se a onipotênciae se voa para além dos limites da condição humanacotidiana. O problema da droga não é a viagem, é a volta daviagem, quando então não se suporta mais o cotidiano. Ocotidiano que é a imanência, que é a rotina chata, aobrigação diuturna de trabalhar, de levantar, de seguir horários, de pagar contas, tudo isso é estafante e enervante.Então, é muito melhor viajar, saltar para fora dessaslimitações, artificialmente, a preço de destruir a liberdade ea vida.

Julgo que o critério para saber se a transcendência é

  boa, se potencia o ser humano ou o diminui, está naresposta que damos a essa pergunta: em que medida talexperiência ajuda a enriquecer e a assumir o cotidiano? Elarepresenta uma fuga ou um álibi para o cotidiano, umendeusamento e uma fetichização daquilo que representasentido para nós? Se a experiência não amplia nossaliberdade, não nos dá mais energia para enfrentar osdesafios do cotidiano, comum a todos os mortais, não nosfaz mais compassivos, generosos e solidários, podemosseguramente dizer: fizemos uma experiência de  pseudotranscendência. Saímos mais empobrecidos emnossa realidade essencial, que é a de existências que seconstroem com decisões de liberdade, assumindohonestamente os desafios e estando à altura deles.Precisamos compreender e assimilar em nossas atitudes que

não é só poeticamente que habitamos o mundo, quer dizer,

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com enlevo, transfiguração e alegria, mas tambémhabitamos o mundo prosaicamente, vale dizer, com suaopacidade, com seus limites e seu enraizamento inevitável.

Dessa situação objetiva nenhuma droga nos liberta, só umaexistência que saiba equilibrar transcendência e imanênciacomo dimensões de toda existência humana.

Então, as pseudotranscendências exploram essacapacidade de ultrapassagem do ser humano, mas não lheconferem a experiência de uma plenitude duradoura. Não éa droga que permite a experiência da viagem, é a química presente nela. É diferente a viagem feita a partir de umtrabalho de busca de sua identidade e de um caminhoespiritual mais árduo. Um trabalho onde domesticamos passo a passo os demônios que nos habitam, sem recalcá-los, sem cortar-lhes os chifres, mas controlando-os ecanalizando a energia poderosa deles para o nossocrescimento. Porque eles ensejam uma experiência mais

global da realidade, permitindo que a luz ilumine as trevas eque a nossa parte sã cure a parte doentia. Essa é aexperiência de transcendência fecunda, verdadeiramentehumana.

7 – O DESEJO E A TRANSCENDÊNCIA

Somos todos seres desejantes. Talvez o desejo seja anossa experiência mais imediata e, ao mesmo tempo, mais profunda. Coisa que já Aristóteles vira e que Freud colocoucomo eixo fundamental para entender o motor internohumano. A nossa estrutura de base é o desejo. E faz parte dadinâmica do desejo não ter limites. Não desejamos só isso eaquilo. Desejamos tudo. Não queremos só viver muito,

queremos viver sempre. Desejamos a imortalidade. E nos

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frustramos, porque o princípio da realidade nos mostra quesomos mortais. Vamos morrendo devagarzinho, em prestações, cada dia, até acabarmos de morrer. Mas o nosso

desejo é sempre virgem, sempre quer viver mais, quer   prolongar o tempo, quer transcender a morte. A grandechave da pseudotranscendência é manipular nossa estruturade desejo, é canalizar toda nossa potencialidade de desejo  para uma coisa limitada e identificar essa coisa com atotalidade da realidade. É então que nos frustramos porqueo desejo quer o todo e só alcançamos a parte.

A propaganda do cigarro Marlboro é como umsacramento da Igreja Católica que age ex opere operato – age por si mesmo, automaticamente. Quem fuma Marlboro,nos prega o marketing, tem as mulheres mais esplêndidas,dirige uma Ferrari luzidia, desfila por paisagens soberbas.Basta fumar Marlboro para ter essa experiência de  plenitude. Pura ilusão. As meninas bonitas não querem

saber de fumo, nem querem que você fume por perto. Oscarros da Ferrari são fruto da lavagem de dólar da droga. Eessas experiências, assim como as paisagens belíssimas,existem só no imaginário. Não produzem nada, fornecemapenas uma ilusão e manipulam nossos sentimentos. Mas ograve é isso, que permitem a ilusão da realização do desejoinfinito identificado com um objeto finito. Devemos passar   por todos esses objetos, dizendo fundamentalmente: “Oobscuro objeto do desejo humano não é este ou aquele ser,esta ou aquela realidade. Não é um automóvel, não é umamulher esplêndida, não é escrever um livro, não é fazer teatro, não é ser isso ou aquilo. É mergulhar no ser, captar anossa sintonia com a totalidade, é  sentir que somoschamados ao ser pleno, e não ao pedaço do ser.”

Vivemos no finito. Tudo o que tocamos é limitado. Mas

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o nosso desejo é infinito, é ilimitado. Então, para sermosfiéis aos apelos de nossa interioridade, preciso manter essaabertura infinita. Quando confundimos essa realidade

  parcial com a totalidade da realidade, vem a ilusão dofetiche, a ilusão do endeusamento, da idolatria, dos falsosdeuses.

Considero que uma das funções importantes da razãocrítica é des-construir  as realidades, é desfazer osimaginários construídos em função de interesses de grupose confrontar o ser humano coma sua realidade fontal. Entãodescobrimos nossa dialética fundamental. Cada ser é dia-bólico (que desagrega) e ao mesmo tempo  sim-bólico(congrega), cada um é Adão, cada um é Cristo, cada um éáguia que voa alto e, simultaneamente, é galinha que ciscacá embaixo. Temos raiz e temos abertura, como já referimosanteriormente. Somos como uma árvore, fundados no chãoque nos dá força para enfrentar as tempestades. Mas

também temos a copa, que interage com o universo, com asenergias cósmicas, com os ventos, com as chuvas, com osol e as estrelas. Sintetizamos tudo isso, transformamos emmais vida a nossa abertura. E se não mantemos a abertura – a copa –, o tronco estiola, as raízes secam e a seiva já nãoflui. Morremos. A dialética consiste então em manter juntoso enraizamento e a abertura. Imanentes, mas abertos àtranscendência.

8 – QUAL É, FINALMENTE,O OBSCURO OBJETO DO DESEJO?

Falamos antes do ser humano como um ser desejanteilimitado, um projeto infinito, um ser de abertura: aberto ao

outro, aberto ao mundo, aberto em totalidade. E aqui surge

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uma questão filosófica, que é também teológica e que não podemos nem devemos escamotear: quem preenche essevazio profundo dentro de nós? Qual é o objeto adequado ao

nosso desejo infinito, que nos satisfaz e nos traz descanso?Por que quero o infinito e só encontro o finito? Quero oilimitado, a totalidade, e só encontro fragmentos? Aqui serevela o ser humano como um ser protestante e insatisfeito. Não há psicologia nem analista que o cure. Digo aos meusamigos psicanalistas: não tentem curar as pessoas dessaangústia infinita, porque o ser humano não é curável. Essemal infinito que o habita é a sua grandeza, é o seudinamismo, é a sua essência. É a partir dessa excentricidadeque ele poderá encontrar sua cura.

Considero que ha três atitudes possíveis com relação àabertura ao ilimitado, ao inominável, à atitude deexpectativa e de espera do ser humano. Há muitas, mas voume limitar às três que acho possíveis.

Uma, vivida por tantos existencialistas, como Sartre,que se recusam a aceitar a transcendência. Esta primeiraatitude considera o ser humano uma paixão absurda, um ser que quer o absoluto, mas está condenado a viver o relativo.

Para preparar esta reflexão, li o O Ser e Nada, que é ogrande livro de Sartre. A terceira parte tem um capítulointeiro sobre a transcendência. Fui ver o que ele diz everifiquei que é exatamente o que eu estou falando aqui.Sartre afirma que a fenomenologia do ser humano, isto é, adescrição de como se manifesta e de como funciona o ser humano, reside em revelar que ele é um ser em si, mas quese abre sempre para o outro, que se abre ao mundo, que seabre à totalidade. Esta é a condição humana básica. Mas ele

se recusa a aceitar que essa abertura tenha um objeto. Para

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ele, o ser humano é uma mola distendida para o universo, etanto sua angústia quanto sua grandeza é aceitar-se nesseempuxo para o aberto puro e simples, sem objeto definido

Há uma outra posição de muitos de nossos intelectuaisque são agnósticos que não querem se definir comreferência à abertura e à transcendência. Eles sofrem com afalta de resposta. É uma atitude digna, porque é muitodolorosa e corajosa. Sentem o desejo do espírito,identificam um eventual objeto do desejo, mas tememaderir a ele. E acabam mantendo distância. Preferem aindefinição, manter-se no aberto, com as inseguranças eangústias existenciais que tal decisão comporta. Eu entendoessas pessoas. Às vezes tiveram experiências negativas comaqueles que, na História, se arvoraram e se apresentaramcomo portadores da transcendência. Grupo de filósofos,representantes de visões de mundo e de religiões oferecemum transcendente tão medíocre, tão cruel, que mais vale ser 

um ateu alegre do que um crente desse tipo detranscendência menor. Por isso devemos ter uma atitudecompreensiva para com esses agnósticos e decifrar atrásdeles uma interrogação existencial, frustrada pelas formasmuito materializadas e pouco dignas da natureza datranscendência, como vem apresentada.

Mas há uma atitude, e essa é das religiões, que tem ainaudita coragem – acho que é coragem mesmo – de dar umnome a esse objeto do nosso desejo, chamando-o de Deus,de Olorum, de Tao, de Javé, de mil outros, Pai, Filho,Espírito Santo, não importa o nome. Eles invocam o nomede Deus no sentido mais originário da palavra Deus, que,em sânscrito, significa a realidade que brilha e que ilumina. Nessa perspectiva, Deus tem pleno sentido. Deus só tem

sentido existencial se for resposta à busca radical do ser 

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humano por luz e por caminho a partir da experiência deescuridão e de errância. Ou simplesmente pela experiênciailuminadora de sentido que deriva da vida, da majestade do

universo, da inocência dos olhos da criança.

Aquele Deus ex-maquina   pregado por religiões ouanunciado por dogmas não preenche, necessariamente, essa busca humana, porque vem de fora para dentro e de cima para baixo. Mas há uma outra experiência de Deus, a quenasce dessa ansiedade do ser humano. Ao dizer “ Deus”(essa palavra de reverência que, por respeito, sequer  balbuciamos) apontamos para a direção de onde nos poderávir uma resposta. Então esse nome Deus está no lugar demistério, de inominável, de indecifrável, de fonte originária,geradora de todo ser. Neste Deus o ser humano podedescansar, pois se sente conatural com Ele. O ser humano,vivenciando-se como projeto infinito, encontra, finalmente,um Sujeito igualmente infinito, seu conatural.

Os grandes místicos, seja da tradição do cristianismo,do taoísmo, do sufismo e do muçulmanismo, todosrepresentam Deus dessa forma. Considero Rumi, sufimuçulmano, o maior místico de todas as tradições religiosasdo amor. Ninguém falou melhor do amor do que ele, nemSão João da Cruz, o místico do amor divino. Eracontemporâneo de São Francisco de Assis, mas vivia naPérsia, e um não sabia do outro. Ele tem poemas fantásticossobre o amor em todas as suas formas. O amor erótico, oamor dos sentidos, o amor espiritual, o amor ao outro, oamor a Deus. Ele tem um pequeno poema que diz assim:“Quando estás comigo, o amor não me deixa dormir. Equando não estás comigo, as lágrimas não me deixamdormir. Teu amor chegou ao meu coração e partiu feliz.

Depois retornou e me colocou o gosto do amor. Mas mais

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uma vez foi embora. Timidamente lhe pedi que ficassecomigo alguns dias. Então veio, sentou-se junto a mim e seesqueceu de partir.”

A tradição mística diz que a dimensão mais profunda denós mesmos é aquilo que chamamos de “Deus”. E reflete,afirmando que a tarefa do ser humano é passar do Deus quetemos para o Deus que somos, na nossa profundaradicalidade.

São João da Cruz, o místico ardente, diz em várioslugares dos seus escritos: “Nós somos Deus”. E como tinhamedo da Inquisição, que ia mandá-lo para a fogueira,colocava vírgula e dizia: “Somos ‘Deus’ (vírgula) por   participação”. Porque, se dissesse “Deus”, pura esimplesmente, atiçariam os fósforos contra ele.

Santa Teresa afirma a mesma coisa. Então, o ser 

humano é conatural com essa suprema realidade. Porque oser humano é um projeto de absoluta abertura e, por isso, éum mistério indecifrável. Por mais que o definamos, sempresobra alguma coisa a ser definida e a ser respondida. Deusdeve ser pensado nessa direção. Então, se Deus tem algumsignificado, deve ser entendido assim, como o objetosecreto da busca humana, o nome da reverência, do pulsar do nosso coração, aquele que se esconde atrás de todos oscaminhos, que nos conduz, finalmente, e nos sustenta.

São Paulo, nos Atos dos Apóstolos, dialogando com osgregos de Atenas, lhes anuncia o “Deus desconhecido” que,na verdade, é o mais conhecido, porque, dizia, “Nelevivemos, nos movemos e existimos, porque somos tambémde Sua linhagem”. Traduzindo para a nossa linguagem: nós

nunca vamos a Deus, nós nunca saímos de Deus, porque

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estamos sempre dentro de Deus.  Este é o pensamentoradical, a experiência de fundo de onde nascem os muitoscaminhos espirituais. Pois todos os caminhos conduzem a

Deus. A dimensão de fé, a dimensão mística, a dimensão deuma visão mais originária e profunda consistem em ver quecada caminho não é errância. Cada Caminho é caminho  para a fonte. Por isso, por mais diversas que sejam asreligiões, todas elas falam do mesmo, do mistério, de Deus.

9 – TRANSCENDÊNCIA:SINGULARIDADE DO CRISTIANISMO

Quais as conseqüências mais imediatas de tomar consciência da transcendência? Porque transcendência nãoé algo que temos ou não temos. Todos têm. Transcendêncianão se ganha, não se perde, é uma situação do ser humanoque foi condenado a viver essa dimensão, a violar os

interditos, a superar os limites. Esta é a sua estrutura, é asua singularidade no processo cosmogênico, no conjuntodos seres.

Precisamos transformar essa dimensão datranscendência num estado permanente de consciência enum projeto pessoal e cultural. Devemos cultivar esseespaço e fazer que a sociedade, a cultura e a educaçãoreservem espaços de contemplação, de interiorização e deintegração da transcendência que está em nós. Hoje talvezessa dimensão esteja encoberta por cinzas, pois a cultura éextremamente materialista e pobre de espírito. Mas, apesar de criar sedativos para a transcendência ou deslocá-la pararegiões privatizadas, a cultura não consegue sufocar atranscendência.

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E a experiência de transcendência produz em nós,inicialmente, um enorme sentimento de leveza e de humor, porque, a partir dela, relativizamos as coisas todas e nos

capacitamos a rir delas. Nada consegue absorver tudo. Nadame define completamente. Nada é definitivo. A realidade, oreal, é apenas uma real-ização das potencialidadesexistentes no universo. Não estamos encurralados eaferrolhados a um arranjo existencial. Podemos rompê-lo eenriquecê-lo. Os dramas que sempre nos acompanham sãodescarregados de seus ônus opressivos. Por pior que seja omal, ele nunca é absoluto. Podemos estar além dele.

E, finalmente, a esperança é a última que morre. E por mais prostrados que estejamos, sempre podemos dar umsalto, pelo menos recorrer ao direito de espernear e de protestar. Este direito nos é sempre preservado, ninguém pode destruí-lo.

Por fim, qual é a singularidade do cristianismo em facedessa experiência universal da transcendência? Aexperiência que o cristianismo traz não é propriamente atranscendência. Isso nos legaram os gregos.

A tradição judeu-cristã fala em transcendência. Somosconvidados não apenas a superar e a voar para cima, mas,fundamentalmente, a descer e a buscar o chão. Aexperiência que o cristianismo procura articular ecomunicar é essa: o Deus, que circunda toda a realidade,emergiu do mais pobre. Nasceu no meio de animais, seidentificou com o crucificado, se fez esmoler paraconseguir o amor de cada um e para eliminar as distânciasentre os seres humanos, se fez o último dos homens. Otexto bíblico diz que ele se fez carne, se fez verme, se fez

servo, se fez escravo de toda humana criatura. Depois ele

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desceu ao mais profundo, foi até os infernos. Quando oCredo cristão diz que o Deus encarnado (Cristo), ao morrer,foi aos infernos, significa que ele desceu até aquela

dimensão na qual estamos absolutamente sozinhos, paraonde não podemos levar ninguém, sequer a pessoa amada: éo momento pessoalíssimo da nossa morte. Se ele desceu atélá foi para nos dizer: “Mesmo que você vai até o inferno, euestou com você. Você não vai sozinho, eu vou junto.” Seele desceu tão fundo - transdescendência -, pode subir parao mais alto - a transcendência.

Ao mergulhar dentro da fragilidade humana, Deus uniu,na encarnação, transcendência e imanência. Então, Deusdesceu, desceu para o mais baixo. E a atitude maisgrandiosa do ser humano na leitura cristã é vergar-se comoo bom samaritano sobre o outro caído. É o amor que desce. Não devemos nos abaixar diante de ninguém, menos aindacair de joelhos. Só podemos fazê-lo, sem perder a

dignidade, inclinando-nos diante do caído na estrada, paraelevá-lo e resgatá-lo. Essa transdescendência se ordena àtranscendência e salvaguarda a sanidade da transcendência.Atrás do caído se esconde o próprio Deus, pois, noentardecer da vida, seremos julgados não porque tivemostranscendência e comungamos muitas vezes, não porqueobedecemos a todos os dogmas e nos filiamos às igrejas, ou porque fomos bons dizimistas ou cidadãos honrados. Nãoseremos julgados por nada disso. Seremos julgados por aquele mínimo de amor que tivermos tido pelo sedento, pelo nu, pelo faminto. Quem assumiu essa transcendênciaescuta as palavras benditas: “Vinde. Herdai o reino.” Por isso, para o cristianismo, o importante não é atranscendência nem a imanência. É a transparência, que é a presença da transcendência dentro da imanência. Não é a

epifania, o Deus que vem e se anuncia. É a diafania, o Deus

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que, de dentro, emerge para fora, de dentro da realidade, douniverso, do outro e do empobrecido.

Portanto, a singularidade do cristianismo está natransparência desse homem concreto, Jesus de Nazaré,homem como nós, que morreu não num acidente de estradana Palestina, mas morreu na cruz, num processo deinsurgência, porque tomou partido dos pobres, doshumildes, transparência que permite captar a transcendênciadivina. Ele internalizou a experiência ao dizer: “Você éfilho, você é filha de Deus. Em você se encontra o absoluto.E por isso, ao amar o outro, você ama a Deus, e o amor aDeus e o amor ao próximo são um amor só, são ummovimento só.”

 Nada mais grandioso que tal estado de consciência. Atransparência é poder ver no outro Deus nascendo da profundidade de seu coração. Essa é a singularidade docristianismo, não raro obnubilado pelo excesso de doutrinas

e de dogmas que se agregaram a essa experiência originária.

10 – O DEUS DESCONHECIDOPRESENTE EM NOSSAS ANGÚSTIAS

E como nós estamos no centenário de morte de  Nietzsche, com muitas celebrações, quero terminar comuma oração belíssima desse desesperado filósofo alemãoque pregou a morte de Deus e fez a crítica mais violenta docristianismo, mas o fez a partir de uma experiência radicaldo Deus vivo. Quando anuncia a morte de Deus, ele fala doDeus que tem que morrer mesmo, porque é o Deus dasnossas cabeças, o Deus inventado, o Deus da metafísica, oDeus que não é vivo. Ele fez uma oração que traduzi, sem

chegar a transmitir todo o seu teor poético. O titulo é A

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Oração ao Deus Desconhecido.

 Antes de prosseguir em meu caminho e lançar o meu

olhar para a frente uma vez mais, elevo, só, minhas mãos aTi na direção de quem eu fujo.

 A Ti, das profundezas de meu coração, tenho dedicadoaltares festivos para que, em cada momento, Tua voz me pudesse chamar.

Sobre esses altares estão gravadas em fogo estas palavras: “Ao Deus desconhecido”.

Sei, sou eu, embora até o presente tenha me associadoaos sacrílegos.

Sei, sou eu, não obstante os laços que me puxam para oabismo.

Mesmo querendo fugir, sinto-me forçado a servi-Lo. Eu quero Te conhecer, desconhecido.Tu, que me penetras a alma e, qual turbilhão, invades a

minha vida.

Tu, o incompreensível, mas meu semelhante, quero Teconhecer, quero servir só a Ti. (Friedrich Nietzsche)

11 – TRANSCENDÊNCIA E IMANÊNCIA:EXPRESSÕES DO PATRIARCADO?

Se eu tivesse sido mais rigoroso, deveria ter dito no inícioda palestra que falo aqui como homem, na tradição patriarcal,numa cultura da dualidade que se expressa pelas categoriasimanência e transcendência. Na verdade, essa terminologia eoutras dualidades afins são da cultura patriarcal, são da culturahegemonizada pelos homens. Mulher não se move nessasdualidades, porque tem uma experiência holística, inclusiva e blobalizadora. Ela pensa com o corpo, nós homens pensamos

com a cabeça. Ela pensa com a totalidade da sua realidade, o

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que a torna muito mais próxima da experiência originária, maisafim à realidade da vida. Nós homens estamos nos auto-exilando deste mundo integrador. A universidade, a cultura

moderna e o processo técnico-científico são produções do patriarcado. Por isso ele é violento, dilacerador e produtor dedualidades e rupturas. Por serem as principais portadoras daanima (princípio feminino), as mulheres têm uma visão maisintegradora, que não dissocia, está mais próxima da Fonte e por isso é muito mais espiritual. A divindade não é para elas um problema, é a solução dos problemas. Para nós, homens, não: adivindade é sempre um problema não-resolvido, porque sesitua só na cabeça e não na totalidade.

Em razão disso tudo, eu deveria ter começado minha palestra alertando para o fato de que falo como homem. Apesar desta omissão subjetiva, não cometi um erro objetivo, poistentei des-construir  as expressões transcendência-imanência(produtos do masculinismo) para chegar a uma dimensão mais

originária, mais feminina, onde nos encontraremos com atradição das grandes mães e dos valores do matriarcado.Ademais, estimo que seja este o grande desafio do século XXI:fazermos o novo pacto de gêneros, uma nova aliança homem-mulher, superando a guerra secular dos sexos. Mais e mais nãonos definimos pelo sexo, mas pelas qualidades pessoais.Juntos, na diferença de homem e mulher, podemos construir uma humanidade una, diversa e fecunda nessa diversidade.Precisamos conscientizar tal visão, transformá-la num projeto político, torná-la verdadeiramente a nova utopia que poderá dar sentido a uma humanidade emergente finalmente orientada pelacolaboração e buscando convergências na diversidade.

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12 – A PARTIR DE ONDE EMERGEHOJE O HORIZONTE UTÓPICO?

Considero que o nicho básico capaz de gerar utopiassalvadoras, isto é, um patamar novo de civilização, veio dareflexão ecológica. Não da ecologia reduzida ao meioambiente, porque estamos cansados de meio ambiente,queremos um ambiente inteiro. Mas uma ecologia que inclui oser humano com a sua mente e coração, entrando num outroestado de consciência, numa nova veneração diante de cada ser.Esta é uma ecologia também espiritual, uma ecologia integral.A partir disso falamos cada vez menos de meio ambiente parafalarmos, com mais objetividade, de comunidade de vida,comunidade terrenal, comunidade cósmica.

Hoje, o maior desafio nos vem da ecologia social (que se preocupa com a pobreza / desenvolvimento / comunidade devida), que é a mais violada de todas, porque dois terços dos

seres humanos não têm sustentabilidade em sua vida.Atualmente o ser mais ameaçado da criação não é o mico-leão-dourado, não é o uirapuru, nem o ursinho panda da China, maso ser humano pobre, condenado a morrer antes do tempo.

Desse nicho da reflexão ecológica (que inclui ascontribuições da nova física, da cosmologia, da biologiagenética e das ciências da Terra) se está elaborando uma novaótica, capaz de gerar uma nova ética. Nela o que conta,fundamentalmente, como lei suprema do universo não é avitória do mais forte pela seleção natural. Se assim fosse, osdinossauros ainda existiriam, pois eram os seres maisgigantescos e fortes da natureza.

A lei suprema do universo, que permitiu que todos nós

chegássemos até aqui, é a da cooperação de todos com todos. É

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a da solidariedade cósmica, porque tudo tem a ver com tudo,em todos os pontos, em todos os momentos, em todas ascircunstâncias, numa rede de inter-retro-dependências de todos

com todos, não permitindo que ninguém seja excluído (como ofaz nosso sistema social mundializado que exclui 2/3 dos sereshumanos). Cada um sendo cúmplice e responsável pela vida dooutro.

É nessa sinergia que o universo funciona. Vamos, pois,tomar essa constante cosmológica como orientação, fazendoque as nossas sociedades funcionem da mesma formasinergética, cooperativa e solidária: com projeto políticoconsciente, com propósito, com práticas adequadas, comestratégias de viabilização. Nós podemos salvar essa naveespacial azul e branca, a Terra, apesar de seus recursosescassíssimos e de seu equilíbrio extremamente fragilizado.

É essa cooperação universal, essa solidariedade cósmica

que gera uma nova utopia e abre espaço para a esperança.Vivemos agora uma travessia difícil entre os velhos deuses queainda persistem, que não acabaram de morrer, e os novos queestão nascendo, que não acabaram de nascer. Tal fato faz comque seja difícil esse entretempo que estamos vivendo.

Mas temos que aprender a visualizar e a amar o invisível.Sonhar com as potencialidades desse novo que emerge eapostar nele. Fazer a nossa revolução molecular (cada um seenvolve no processo de mudança) nessa direção, em vez deficarmos esperando, inertes, a grande aurora, porque sem anossa própria revolução pessoal essa aurora revolucionárianunca virá.

Cada um tem que construir o novo a partir do lugar onde se

encontra: a nova sinergia, as parcerias, as redes. Essa atitude

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8/6/2019 2951200 Tempo de Transcend en CIA Leonardo Boff

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significa acumulação de energia necessária para a granderuptura. É daí que virá um outro patamar, uma outraestruturação do equilíbrio dinâmico e aberto, uma nova fase da

civilização. Quando ocorrer, então ter-se-á inaugurado o novomilênio e nós, que tivermos participado das revoluçõesmoleculares, surgiremos como cidadãos de um novo tempo, para a consciência, para a humanidade, para a própria Mãe-Terra.

FIM de Tempo de Transcendência de Leonardo Boff 

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