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139 5. A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE A UNIÃO DE PESSOAS DO MESMO SEXO Dimitri Dimoulis 1 Soraya Lunardi 2 Sumário: 1. Objetivos do trabalho. 2. Metodologia. 3. Problema jurídico da inconstitucionalidade e al- ternativas decisórias. 4. Argumentos empregados. 4.1. Argumentos de teoria da interpretação jurídico-consti- tucional. 4.1.1. Argumentos de teleologia objetiva invocando mudanças na realidade social. 4.1.2. Argumento literal. 4.1.3. Argumento sistemático. 4.1.4. Argumento da vontade do legislador constituinte. 4.2. Argumentos de teoria do direito. 4.2.1. Argumentos neoconstitucionalistas. 4.2.2. Argumento dos precedentes judiciais. 4.3. Argumento de teoria da jurisdição constitucional - função do Tribunal Constitucional. 5. Resultados ob- tidos. 6. Bibliografia 1. OBJETIVOS DO TRABALHO O nosso estudo realiza um levantamento detalhado dos argumentos de in- terpretação jurídica empregados nos votos dos Ministros do STF apresentados no processo que reconheceu a união estável de pessoas do mesmo sexo 3 (ADIN 4.277, julgada em conjunto com a ADPF 132 em 2011). 4 Nosso objetivo é identificar os padrões argumentativos aceitos pelos in- tegrantes do Tribunal, mostrando a concepção do Tribunal sobre o seu dever constitucional de fundamentar as decisões. Além disso, pretendemos verificar se são utilizados argumentos técnicos ou se os ministros recorrem ao populis- mo, atendendo anseios de seu vasto auditório. 1 Bacharel em Direito pela Universidade Nacional de Atenas (1988). Mestre em Direito público pela Univiversidade Paris-I (Panthéon-Sorbonne) (1989). Doutor em Direito pela Universidade Saarland (1994). Pós-doutor em Direito pela Universidade Saarland (1996). Professor da Escola de Direito de São Paulo da FGV (Graduação e Mestrado). Professor visitante da Universidade Panteion e da Universidade Politécnica de Atenas. Diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais. 2 Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-Doutora pela Universidade Politécnica de Atenas. Professora de Direito Público da Universidade Estadual Paulista (Unesp). 3 É comum qualificar as uniões em questão como “homossexuais” ou “homoafetivas”. Contudo, nem a Constituição nem a legislação comum brasileira mencionam a orientação ou atividade sexual como critério relevante para a união familiar. Somente o sexo biológico é mencionado. Assim sendo, é juridicamente correto se referir à união de pessoas do mesmo sexo. 4 http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635. Citamos os votos indicando o nome do Ministro e a página da publicação oficial.

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5.A decisão do supremo TribunAl

FederAl sobre A união de pessoAs do mesmo sexo

Dimitri Dimoulis1

Soraya Lunardi2

Sumário: 1. Objetivos do trabalho. 2. Metodologia. 3. Problema jurídico da inconstitucionalidade e al-ternativas decisórias. 4. Argumentos empregados. 4.1. Argumentos de teoria da interpretação jurídico-consti-tucional. 4.1.1. Argumentos de teleologia objetiva invocando mudanças na realidade social. 4.1.2. Argumento literal. 4.1.3. Argumento sistemático. 4.1.4. Argumento da vontade do legislador constituinte. 4.2. Argumentos de teoria do direito. 4.2.1. Argumentos neoconstitucionalistas. 4.2.2. Argumento dos precedentes judiciais. 4.3. Argumento de teoria da jurisdição constitucional - função do Tribunal Constitucional. 5. Resultados ob-tidos. 6. Bibliografia

1. ObjetivOS dO trabalhOO nosso estudo realiza um levantamento detalhado dos argumentos de in-

terpretação jurídica empregados nos votos dos Ministros do STF apresentados no processo que reconheceu a união estável de pessoas do mesmo sexo3 (ADIN 4.277, julgada em conjunto com a ADPF 132 em 2011).4

Nosso objetivo é identificar os padrões argumentativos aceitos pelos in-tegrantes do Tribunal, mostrando a concepção do Tribunal sobre o seu dever constitucional de fundamentar as decisões. Além disso, pretendemos verificar se são utilizados argumentos técnicos ou se os ministros recorrem ao populis-mo, atendendo anseios de seu vasto auditório.

1 Bacharel em Direito pela Universidade Nacional de Atenas (1988). Mestre em Direito público pela Univiversidade Paris-I (Panthéon-Sorbonne) (1989). Doutor em Direito pela Universidade Saarland (1994). Pós-doutor em Direito pela Universidade Saarland (1996). Professor da Escola de Direito de São Paulo da FGV (Graduação e Mestrado). Professor visitante da Universidade Panteion e da Universidade Politécnica de Atenas. Diretor do Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais.

2 Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-Doutora pela Universidade Politécnica de Atenas. Professora de Direito Público da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

3 É comum qualificar as uniões em questão como “homossexuais” ou “homoafetivas”. Contudo, nem a Constituição nem a legislação comum brasileira mencionam a orientação ou atividade sexual como critério relevante para a união familiar. Somente o sexo biológico é mencionado. Assim sendo, é juridicamente correto se referir à união de pessoas do mesmo sexo.

4 http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=628635. Citamos os votos indicando o nome do Ministro e a página da publicação oficial.

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A avaliação da qualidade argumentativa se baseia nos seguintes critérios:a) coerência interna (ausência de contradições no mesmo voto);b) grau de aderência dos argumentos a dados normativos pertinentes (so-

luções preconizadas pela doutrina e jurisprudência, sintonia com os elemen-tos textuais, soluções contra legem ou incoerentes com a tradição decisória consolidada).

c) qualidade das provas: as afirmações da decisão que invocam fatos ou ten-dências foram comprovadas de maneira satisfatória ou permanecem retóricas?

d) interpretação sistemática: a decisão interpreta o direito em vigor de ma-neira sistemática ou limita-se a indicar normas que favorecem certo posiciona-mento, ignorando outras?

e) qualidade da subsunção: a consequência jurídica foi deduzida com rigor lógico de certa premissa ou trata-se de falsa subsunção? A falsa subsunção ocor-re quando se deduz uma consequência concreta de uma norma principiológica ou de uma ponderação moral.5

2. MetOdOlOgiaEscolhemos a ADIN 4.277 porque apresenta três características interessantes:a) decide questão polêmica, havendo fortes controvérsias sociais e políticas

sobre os direitos das minorias sexuais e tendo a decisão motivado uma grande produção doutrinária;6

b) o STF decidiu de maneira contrária à formulação literal da Constituição;c) trata-se de decisão unânime.As duas primeiras características indicam de que os votos foram cuidadosa-

mente preparados para convencer a opinião pública hostil ao resultado. Nessa decisão eventuais deficiências argumentativas não podem ser explicadas pela irrelevância social e jurídica do caso ou pela pressão de tempo.

A unanimidade, rara em decisões do Plenário sobre temas controvertidos, facilita o estudo das estratégias argumentativas, criando a expectativa de con-

5 Uma avaliação completa da qualidade argumentativa de decisões judiciais deve examinar também os seguintes aspectos:

Competência: verificação da competência formal e dos demais elementos norma tivos que justificam a atuação judicante.

Utilização das fontes: a decisão cita a doutrina e a jurisprudência de maneira completa e ponderada ou só invoca elementos que corroboram sua tese, silenciando sobre posicionamentos contrários? Temos um diálogo fundamentado com base em argumentos ou simples demonstrações de erudição?

6 Cf. a título indicativo, incluindo muitos estudos recentes comentários à decisão do STF aqui analisada: Rios, 2001; Rios 2002; Rios (org.), 2007; Rios, 2008; Barroso, 2008; Sarmento, 2008; Séguin (org.), 2009; Dias, 2011; Lopes, 2012; Trivisonno, 2012; Vieira, 2012; Rinck e Yakabi, 2012; Sirena, 2012; Dimoulis e Lunardi, 2013a. O estudo de Trivisonno (2012) propõe uma classificação detalhada e sistemática dos argumentos empregados pelos Ministros na decisão aqui comentada.

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cordância nos métodos e argumentos empregados. Veremos que isso não ocor-reu, havendo significativas divergências na argumentação e também fundamen-tos contrastantes. Isso caracteriza a forma de decidir do STF que diverge na argumentação, mesmo concordando no resultado.7

Mediante leitura dos votos identificaremos os argumentos utilizados, suge-rindo uma classificação. A nossa abordagem analítica inspira-se em estudos de Giovanni Damele8 e de outros estudiosos da argumentação nas Cortes constitucio-nais.9 Mas segue um caminho próprio, na medida em que apresenta classificação de argumentos e formas de interpretação elaborada pelos autores desse estudo.

Deixamos fora do campo de análise argumentos dos Ministros manifestada-mente alheios ao caso10 ou de mero apelo emocional.11 Ambos oferecem indica-ções antropológico-culturais sobre o estilo de pensar e decidir dos Ministros. Mas não afetam a qualidade argumentativa da decisão.

3. PrObleMa jurídicO da incOnStituciOnalidade e alternativaS deciSóriaS

O principal pedido ADIn foi que o art. 1.723 do Código Civil fosse interpre-tado conforme a Constituição Federal, entendendo-se que o artigo reconhece também uniões estáveis de pessoas do mesmo sexo.

7 Conforme o texto da decisão, houve unanimidade no deferimento do pedido (p. 880). Contudo há fortes diferenciações entre os Ministros na fundamentação. Três Ministros incluíram na Ementa da decisão a tese da diferenciação jurídica das uniões de pessoas do mesmo sexo: “os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de entidade familiar” (p. 614).

O Min. Luiz Fux considerou que o requisito da publicidade para reconhecimento da união estável deve ser mitigado em razão do receio de muitos casais de orientação homossexual em dar ampla publicidade à sua união, temendo discriminações (p. 681-682).

O Min. Joaquim Barbosa considerou que o art. 226 CF não tutela uniões do mesmo sexo, mas que a tutela decorre de princípios constitucionais. O Ministro não indicou se há equiparação com as uniões entre homem e mulher e quais normas regem a união de pessoas do mesmo sexo (p. 726).

Assim sendo, dos 9 Ministros que votaram só quatro (Ayres Britto, Cármen Lúcia, Marco Aurélio, Celso de Mello) concordaram na tese da igual e direta proteção constitucional de uniões afetivas-familiares independentemente do sexo dos envolvidos. Declarando-se impedido, o Min. Dias Tofoli não votou. Ausentou-se a Min. Ellen Gracie.

8 Damele, 2011; cf. também Damele et al., 2011.9 Cf. as classificações e análises propostas em Puceiro, 2003.10 Exemplo: o Min. Luis Fux disserta sobre os deveres de proteção e a dimensão objetiva dos direitos

fundamentais para dizer que, em razão da existência de casais homoafetivos no Estado do Rio de Janeiro, a ADPF deve ser conhecida, havendo pertinência temática entre a ação e as competências do Governador daquele Estado (p. 661-665).

11 Exemplo: transcrição de “poema alegadamente psicografado pelo tão prestigiado médium brasileiro Chico Xavier”. Min. Ayres Britto, p. 650. “Entendi também importante deixar fluir a voz do coração”. Min. Luiz Fux, p. 683.

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O art. 1.723 dispõe: “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabe-lecida com o objetivo de constituição de família”.

O art. 226 § 3º da CF dispõe: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua con-versão em casamento”.

Isso indica que há absoluta coincidência do Código Civil de 2002 com o texto constitucional de 1988. O legislador infraconstitucional praticamente reprodu-ziu o art. 226 § 3º, invertendo a ordem sintática e acrescentando condições para o reconhecimento da união estável. Observe-se que o § 5º do art. 226 da CF tam-bém define o casal como composto de pessoas de sexo diferente:

“Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igual-mente pelo homem e pela mulher”.

Em razão da literalidade com que o Código Civil reproduz o dispositivo constitucional, o STF se encontrava diante de um dilema: poderia fazer uma interpretação literal, declarando a constitucionalidade do dispositivo do Código Civil, com o risco de ser tachado como um tribunal conservador; ou adotar postura politicamente liberal, julgando procedente a interpretação conforme a constituição, mas correndo o risco de ser criticado como ativista por contrariar claros dispositivos legais e constitucionais.12 Com efeito, ao aplicar a técnica da interpretação conforme a Constituição, o Tribunal constitucional indica, dentre várias possíveis interpretações da norma, as compatíveis com a Constituição, não sendo possível afastar a norma infraconstitucional e muito menos acres-centar-lhe algo.13

Essa situação normativa abre as seguintes possibilidades de decisão sobre o pedido da ADIn:

1. Indeferimento em vista da identidade textual entre Constituição e lei civil. Seria a solução textualmente fiel, mas causaria forte decepção às minorias sexuais e à opinião pública progressista.

2. Indeferimento com declaração da existência de lacuna legislati-va que poderia configurar (ou não) omissão inconstitucional. O Tribunal poderia formular apelo ao legislador para regulamen-tar as uniões de pessoas do mesmo sexo. Poderia também defe-rir a ação, ultra petita, declarando a omissão inconstitucional e obrigando o legislador a regulamentar a questão, com possibili-

12 Cf. Trivisonno, 2012, p. 203.13 Dimoulis e Lunardi, 2013, p. 271.

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dade de aplicação analógica das normas sobre uniões entre ho-mem e mulher até que o legislador cumprisse com o seu dever de regulamentação.14

3. Deferimento, declarando inconstitucional tanto o art. 1.723 do Código civil, como o art. 226 § 3° da CF, ao interpretá-los à luz de certos dispositivos constitucionais (igualdade, dignidade hu-mana etc.). Essa solução introduziria a teoria da hierarquia das normas constitucionais e da consequente possibilidade de in-constitucionalidade de normas constitucionais que o STF sem-pre rejeitou.15

4. Deferimento, considerando que certas normas constitucionais impõem o reconhecimento de uniões familiares de pessoas do mesmo sexo como entidade diferente das uniões de “homem e mulher” do art. 226 § 3° CF. A interpretação sistemática da Constituição autorizaria essa solução, aplicando-se analogica-mente as normas sobre uniões de pessoas do mesmo sexo, até que o legislador cumpra com o seu dever de regulamentação.

O Tribunal adotou a terceira alternativa de maneira peculiar. Decidiu que o Código Civil somente seria constitucional se autorizasse a união de pessoas do mesmo sexo, mas fez interpretação conforme contra sua letra e não afetou o art. 226 § 3º CF. Já a minoria adotou a quarta alternativa, mas não fez constar sua divergência na votação.16

4. arguMentOS eMPregadOS

4.1. argumentos de teoria da interpretação jurídico-constitucional

Classificamos nessa categoria argumentos que invocam os quatro métodos de interpretação jurídica codificados por Savigny e aceitos pela doutrina e juris-prudência como meios de interpretação constitucional.17

4.1.1. Argumentos de teleologia objetiva invocando mudanças na realidade socialUm dos argumentos mais recorrentes é o da realidade, no sentido da neces-

sidade de guiar a decisão por aquilo que de fato ocorre na sociedade. Esse ar-

14 Sobre as possíveis consequências da omissão inconstitucional no direito brasileiro cf. Dimoulis e Lunardi, 2013, p. 134-137.

15 Referências jurisprudenciais em Dimoulis e Lunardi, 2013, p. 110.16 Cf. nota de rodapé 5.17 Análises e bibliografia em Dimoulis e Lunardi, 2013, p. 265-269.

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gumento é muito importante no caso em discussão, pois o texto constitucional e o Código Civil, ao especificar que a união estável será entre homem e mulher, ignoram a minoria que vive em uniões estáveis do mesmo sexo.

- O não reconhecimento da união homoafetiva deve-se ao conservadorismo social que rejeita a homossexualidade. Min. Ayres Britto, p. 627.

- A sexualidade é elemento existencial. Expressa a identidade e a dignidade do ser humano, devendo ser valorizada independentemente da orientação se-xual. Min. Ayres Britto, p. 636-637.

- A família tem um “coloquial ou proverbial significado” que a define como fato “cultural e espiritual”, independentemente do sexo biológico dos envolvi-dos. Min. Ayres Britto, p. 644.

- A homossexualidade e a existência de casais homossexuais “é um fato da vida”, estatisticamente comprovado pelo IBGE e exigindo sua regulamentação jurídica. Min. Luiz Fux, p. 666-667. Min. Ricardo Lewandowski, p. 717-718.

- O direito deve acompanhar a evolução social, devendo reconhecer as uni-ões homoafetivas, sempre mais aceitas socialmente. Min. Luiz Fux, p. 668 e 678.

- O direito deve acompanhar a evolução social, devendo reconhecer as uniões homoafetivas que são uma realidade social. Mas o direito brasileiro não foi capaz de acompanhar a evolução social nesse ponto. Min. Joaquim Barbosa, p. 723.

4.1.2. Argumento literalO argumento é crucial nesse caso, em razão da comentada identidade tex-

tual entre a Constituição e o Código Civil. Esse argumento foi empregado por ministros que indicaram a existência de lacuna legislativa.18

- “A norma constitucional (...) é clara ao expressar, com todas as letras, que a união estável só pode ocorrer entre o homem e a mulher, tendo em conta, ainda, a sua possível convolação em casamento”. Min. Ricardo Lewandowski, p. 713; idêntico o posicionamento do Min. Gilmar Mendes, p. 732.

- A interpretação literal indica que a união entre pessoas do mesmo sexo não é a união estável do art. 226 § 3º, mas outro gênero que pode ser deduzido de uma leitura sistemática do texto constitucional. Logo existiria uma lacuna que deve ser suprimida pela interpretação. Min. Ricardo Lewandowski, p. 712.

4.1.3. Argumento sistemáticoO argumento sistemático foi utilizado tanto para justificar a existência de la-

cuna legislativa, como para negar a necessidade de regulamentação legislativa,

18 O argumento literal é também mencionado em votos da maioria, mas para ser logo afastado com invocação de outros argumentos.

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considerando suficientes para o reconhecimento da união de pessoas do mes-mo sexo as normas constitucionais vigentes. Essa segunda posição sustenta que a Constituição já prevê implicitamente a união estável entre pessoas do mesmo sexo, através do conjunto de suas normas. Os principais argumentos utilizados pelos Ministros são:19

- É vedada a discriminação com base no sexo em razão da finalidade de pro-mover o bem de todos (art. 3º CF). Min. Ayres Britto, p. 631. Min. Cármen Lúcia, p. 701.

- A Constituição silencia sobre as opções e atividades sexuais dos indivíduos, podendo-se concluir que são permitidas orientações e atividades homoafetivas. Min. Ayres Britto, p. 634, 638. Min. Luiz Fux, p. 667. Min. Joaquim Barbosa, p. 724-725.

- Nenhuma norma constitucional proíbe a constituição de união e família homoafetiva. Min. Ayres Britto, p. 655. Min. Luiz Fux, p. 667.

- A preferência sexual decorre da dignidade humana constitucionalmente tutelada (art. 1, III) e impõe respeitar os projetos de vida de todos, reconhecen-do-os como livres e autônomos. Min. Ayres Britto, p. 638. Min. Luiz Fux, p. 674-675. Min. Cármen Lúcia, p. 699.

- A preferência e atividade sexual são tuteladas pelos direitos fundamen-tais à privacidade e à intimidade (art. 5º da CF). Min. Ayres Britto, p. 639. Min. Cármen Lúcia, p. 700, 703.

- A igualdade entre casais com diferentes preferências sexuais é plena se for reconhecido “igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada (sic) família”. Min. Ayres Britto, p. 649.

- Ontologicamente, o afeto e a vontade de convivência duradoura e solidária que caracteriza a família pode se encontrar em casais independentemente da preferência sexual. Se essas famílias são ontologicamente iguais, a Constituição não pode diferenciá-las. Isso é imposto pelo princípio da igualdade que impõe tratar igualmente casos substancialmente idênticos. Min. Luiz Fux, p. 671-672.

- O não reconhecimento de uniões afetivas prejudica a segurança jurídica, impedindo que os interessados planejem suas relações patrimoniais e pessoais com consequências jurídicas previsíveis. Min. Luiz Fux, p. 678.

- Uma série de princípios constitucionais, notadamente a dignidade, igual-dade, liberdade e intimidade impõem reconhecer a união estável de pessoas

19 Analiticamente, os sub-argumentos que dão base à leitura sistemática seriam: sub-argumento da dignidade, sub-argumento da liberdade, sub-argumento da intimidade, sub-argumento da não discriminação em razão de orientação sexual, sub-argumento da proteção à família e do novo conceito de família. Classificação proposta por Trivisonno, 2012, p. 208-209.

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do mesmo sexo como instituição diferente da união estável do art. 226 CF, re-servada a pessoas de sexo diferente. Para tanto, é necessário aplicar analogia, colmatando a lacuna com referência às normas das uniões heterossexuais. Min. Ricardo Lewandowski, p. 713-714, 719. Min. Gilmar Mendes, p. 745. Min. Cezar Peluso, p. 874.

- Uma série de princípios constitucionais, notadamente a dignidade e a igualdade, impõem reconhecer a união estável de pessoas do mesmo sexo, que não tem base no art. 226 que só se refere a uniões heterossexuais. Min. Joaquim Barbosa, p. 726.20

- Uma série de princípios constitucionais, notadamente a dignidade, igual-dade, liberdade e intimidade, impõem reconhecer a união estável de pessoas do mesmo sexo mediante interpretação sistemática “superadora da literalidade” com base em princípios, não havendo lacuna a ser colmatada. Min. Ayres Britto, p. 746. Min. Marco Aurélio, p. 820-821. Min. Celso de Mello, p. 841, 844-845.

- O direito brasileiro inclui o “postulado constitucional implícito que consa-gra o direito à busca da felicidade”. Deriva da dignidade humana que justifica o livre desenvolvimento de todos, impondo, inter alia, o reconhecimento da união estável de pessoas do mesmo sexo. Min. Celso de Mello, p. 844-845, 856-861.

Os ministros utilizam a interpretação sistemática para introduzir no racio-cínio fundamentos constitucionais diversos do art. 226 § 3°, buscando justificar a decisão de interpretação conforme a constituição. Observe-se que esse mé-todo deveria ter levado à declaração de inconstitucionalidade do próprio texto constitucional, como conclusão lógica da prevalência de certos princípios sobre normas taxativas.21 Mas o Supremo Tribunal Federal não fez esse passo, prefe-rindo a incoerência.

4.1.4. Argumento da vontade do legislador constituinteProponente da redação final do artigo constitucional sobre a família foi um

bispo evangélico que fez constar expressamente que a redação dada pretendia excluir uniões entre pessoas do mesmo sexo. Os demais deputados constituin-tes não questionaram esse posicionamento que foi aprovado de maneira unâni-me, indicando uma clara vontade do constituinte originário.22 Isso foi indicado no voto do Min. Ricardo Lewandowski.

20 O argumento não indica qual o parâmetro normativo para regulamentar as uniões de pessoas do mesmo sexo, colmatando a lacuna.

21 Nesse sentido Trivisonno, 2012, p. 233.22 “O SR. CONSTITUINTE GASTONE RIGHI: - Finalmente a emenda do constituinte Roberto Augusto. É o art.

225 (sic), § 3º. Este parágrafo prevê: ‘Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre homem e mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’ Tem-se prestado a amplos comentários jocosos, seja pela imprensa, seja pela televisão, com manifestação

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- Os debates na Assembleia constituinte deixam clara a intenção de im-pedir uniões homossexuais, tendo sido introduzida a especificação de união “entre homem e mulher” após sugestão de um bispo evangélico. Min. Ricardo Lewandowski, p. 711-713.

Alguns ministros utilizaram o argumento histórico em sentido diferente.- A menção à união estável “entre homem e mulher” no art. 226 não obje-

tiva excluir da união estável pessoas do mesmo sexo, mas tão somente encora-jar a equiparação das uniões estáveis heterossexuais ao casamento. Min. Ayres Britto, p. 652. Min. Luiz Fux, p. 681. Min. Joaquim Barbosa, p. 726. Min. Gilmar Mendes, p. 738.

- O constituinte não mencionou as uniões homoafetivas “talvez” porque con-siderou-o desnecessário diante dos princípios da liberdade e da igualdade. Min. Luiz Fux, p. 691.

4.2. argumentos de teoria do direito Classificamos nessa categoria argumentos que se deduzem de teorias so-

bre a estrutura do sistema jurídico e as formas de sua aplicação. Cabem duas observações:

a. Do ponto de vista da origem desses argumentos, os ministros não ade-rem explicitamente a uma “escola” justeórica. Mas a maioria dos argumentos de teoria do direito empregados nessa decisão (assim como em geral na recente jurisprudência do STF) decorrem da visão moralista, rejeitando o positivismo jurídico. No debate brasileiro essa visão é conhecida como pós-positivismo ou neo-constitucionalismo, havendo ampla produção doutrinária a respeito.23

O propósito do nosso artigo é descritivo e por isso não analisaremos a per-tinência e coerência dessa visão. Observamos tão somente que a maioria dos autores positivistas reconhece um amplo poder discricionário ao aplicador, de sorte que não haveria, a princípio, objeção positivista caso o juiz adotasse uma

inclusive de grupos gays através do País, porque com a ausência do artigo poder-se-ia estar entendendo que a união poderia ser feita, inclusive, entre pessoas do mesmo sexo. Isto foi divulgado, por noticiário de televisão, no show do Fantástico, nas revistas e jornais. O bispo Roberto Augusto, autor deste parágrafo, teve a preocupação de deixar bem definido, e pede que se coloque no § 3º dois artigos: ‘Para efeito de proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento’. Claro que nunca foi outro o desiderato desta Assembleia, mas, para se evitar toda e qualquer malévola interpretação deste austero texto constitucional recomendo a V. Exa. que me permitam aprovar pelo menos uma emenda” (trecho incluído no voto do Min. Ricardo Lewandowski, p. 711-712).

23 Indicações bibliográficas em Schiavello, 2003; Lois, 2006; Sarmento, 2007 e 2009; Barroso, 2007; Bello, 2007; Moreira, 2008; Agra, 2008; Streck, 2008, p. 285-286; Maia, 2009; Cambi, 2009; Kim, 2009; Schiavello, 2003; Lois, 2006; Sarmento, 2007 e 2009.

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interpretação “evolutiva” ou “larga” nas suas decisões, desde que isso fosse jus-tificado pelo material normativo pertinente.24

b. Do ponto de vista da finalidade, esses argumentos objetivam justificar a opção a favor certa interpretação em detrimento de outras. Por isso, podem ser considerados como meta-argumentos ou argumentos de segundo nível.25 Argumentos de teoria do direito são também utilizados como expedientes retó-ricos, por exemplo, invocando o caráter “justo” de certa decisão sem especificar critérios e fundamentos para tanto. Em alguns casos, são mesmo vazios de con-teúdo, por exemplo, quando se afirma que deve-se decidir conforme o “espírito”, mas sem esquecer a “letra” constitucional.

Encontramos os seguintes argumentos de teoria do direito.

4.2.1. Argumentos neoconstitucionalistas- O constitucionalismo fraternal como opção teórica impõe a inclusão de

grupos discriminados com base em visões pluralistas de convivência com a di-versidade. Min. Ayres Britto, p. 632.

- Sabe-se que é impossível determinar o que é justo. Mesmo assim, casos como o presente, impõem encontrar a solução justa. Min. Luiz Fux, p. 685.

- A visão pós-positivista identifica “um novel princípio” constitucional, que consiste no dever estatal de tutelar minorias discriminadas. Min. Luiz Fux, p. 689.

- “A largueza dos princípios fundamentais” impõe interpretar normas con-cretas e excludentes de maneira que permita tutelar direitos de todos (“inter-pretação conforme da regra em foco segundo a norma constitucional entendida numa largueza maior”). Min. Cármen Lúcia, p. 698.

- As normas constitucionais devem ser interpretadas levando em considera-ção, além da letra, “o espírito que se põe no sistema”. Min. Cármen Lúcia, p. 699.

- A letra do art. 226 Constituição não pode “matar o seu espírito”, discrimi-nando os homossexuais. Min. Ayres Britto, p. 653.

- A violação de princípios constitucionais é mais grave do que a violação de regras. Por isso, os princípios devem dar sentido às regras e permitir contornar “o óbice gramatical”. Min. Marco Aurélio, p. 821.

- É permitida “certa criatividade dos juízes” na interpretação, em parti-cular quando há lacunas e para adaptar o texto às mudanças históricas. Mas isso não pode ocorrer contra o sentido do texto interpretando. Min. Ricardo Lewandowski, p. 712-713.

24 Dimoulis, 2006; Dimoulis e Lunardi, 2008; Ávila 2009; Pozzolo, 2006 e 2006a.25 Cf. Damele, 2011, p. 92.

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- Não é permitida interpretação de lei conforme a Constituição que contra-rie a letra do dispositivo interpretado. Por isso não pode ser dada interpretação conforme a Constituição do artigo 1.723 do Código Civil como autorizador da união homoafetiva. Min. Gilmar Mendes, p. 706.

4.2.2. Argumento dos precedentes judiciaisA necessidade de preservar a segurança jurídica enquanto finalidade do

sistema jurídico torna comum a invocação dos precedentes judiciais para manter a coerência do sistema de decisões judiciais e também para permitir a previsibilidade de futuras decisões. Trata-se de um argumento de teoria do direito que apresenta alto risco, pois não raramente encontram-se precedentes contraditórios.26

Esse argumento é amplamente utilizado nessa decisão, observando os Ministros que maneira consensual que a jurisprudência brasileira já atribuiu efeitos jurídicos a uniões homoafetivas, dando-lhes reconhecimento em vários de seus aspectos. Min. Luiz Fux, p. 681. Min. Cármen Lúcia, p. 704. Min. Joaquim Barbosa, p. 726. Min. Gilmar Mendes, 784-786. Min. Celso de Mello, p. 839-840. Min. Cezar Peluso, p. 875.

4.3. argumento de teoria da jurisdição constitucional - função do tribunal constitucional

Uma forma de argumentar utilizada nessa decisão consiste na invocação da função do Tribunal enquanto elemento central da jurisdição constitucional. Considera-se que sua função é delimitar o significado e, eventualmente, deter-minar as inconstitucionalidades do texto em discussão. Podemos constatar a utilização desse argumento nas seguintes referências:

- Cabe ao STF exercer função contramajoritária e garantir direitos de mi-norias oprimidas e vítimas de preconceitos. Min. Luiz Fux, p. 668. Min. Joaquim Barbosa, p. 724. Min. Gilmar Mendes, p. 778. Min. Celso de Mello, p. 845-850.

- Cabe ao STF ser guardião da Constituição e preservar direitos afetados pelo Estado ou por particulares. Min. Luiz Fux, p. 668. Min. Celso de Mello, p. 852.

- Cabe ao STF acompanhar a evolução social enquanto intérprete maior do direito, cuja decisão tem efeitos que transcendem o caso. Min. Luiz Fux, p. 692.

26 “Não há no Brasil um sistema de precedentes organizado. A citação de casos, quando ocorre, não busca reconstruir um padrão de argumentação relevante para o caso a ser decidido. Os casos são citados em forma de acúmulo para reforçar a autoridade de quem está proferindo a sentença”. Rodriguez, 2013.

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- Cabe à Corte constitucional atuar como legislador positivo, substituindo o legislador omisso. Min. Gilmar Mendes, p. 729. Min. Ricardo Lewandowski, p. 746. Min. Celso de Mello, p. 868.27

- Cabe ao tribunal constitucional representar argumentativamente os ci-dadãos em paralelo à representação política pelos demais poderes. Min. Gilmar Mendes, p. 749.

- O STF possui “o monopólio da última palavra” em temas constitucionais. Min. Celso de Mello, p. 870.

Essa maneira de justificar as decisões do STF possui evidente caráter retó-rico, objetivando reforçar a legitimidade da decisão com invocação da teoria da jurisdição constitucional, justificando também eventuais interpretações polê-micas ou contrárias a evidências textuais.

5. reSultadOS ObtidOSSacralidade e Heresia na visão do Supremo Tribunal Federal. Observa-se um

paradoxo. Na opinião unânime e constante do Supremo Tribunal Federal, várias vezes reproduzida nessa decisão, o texto constitucional é visto como supremo e inviolável, logo sagrado, cuja guarda cabe aos próprios Ministros enquanto representantes supremos do Poder Judiciário. Mas ao mesmo tempo, o texto constitucional é visto como óbice para se chegar a soluções satisfatórias, sen-do que algumas vezes afirma-se que pode “matar” o espírito da Constituição.28 Muitos Ministros questionam a vontade do pequeno grupo de pessoas que re-digiu a Constituição. Será que esse grupo é capaz de representar a vontade do poder constituinte? O Supremo Tribunal Federal parece duvidar, adotando in-terpretações “livres” e “alternativas”. São interpretações “heréticas” se forem comparadas com o texto constitucional. Essa dualidade na argumentação faz dos magistrados fieis guardiões do texto originário e também heresiarcas.

Argumentos retóricos. Muitos dos argumentos apresentados pelo Supremo Tribunal Federal têm a função de justificar a decisão perante a sociedade. Isso é claro nos argumentos neo-constitucionalistas com suas referências à “justiça”, ao “espírito do texto” ou ao constitucionalismo fraternal. O mesmo vale para as menções na função do STF enquanto guardião da Constituição que objetivam justificar atuações ativistas. Os Ministros abandonam a tecnicidade jurídica e argumentam para um auditório não especializado, utilizando argumentos com alta carga valorativa para atender anseios populares.

Sincretismo metodológico. O sincretismo pode ser definido como junção de doutrinas de diversas origens. Os Ministros utilizam argumentos construídos

27 O Min. Celso de Mello se refere a legítimas “práticas de ativismo judicial”, p. 868.28 A letra do art. 226 Constituição não pode “matar o seu espírito”, discriminando os homossexuais. Min.

Ayres Britto, p. 653.

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com base em variados métodos jurídicos, sem se preocupar em seguir determi-nado padrão. O sincretismo nesse caso indica a despreocupação com o rigor da argumentação jurídica.

Contradições entre votos que utilizam o mesmo argumento. Constatamos isso com maior clareza no emprego do argumento histórico (vontade do constituin-te). Os ministros se contradizem, atribuindo ao constituinte tanto a intenção de reconhecer qualquer união afetiva, independentemente do texto por ele redigi-do, como a intenção de excluir as uniões do mesmo sexo com base em debates na Assembleia Constituinte. Contradição semelhante encontra-se nos argumen-tos de fato. Alguns Ministros invocam a realidade de uniões heterossexuais para lamentar que o legislador não lhes deu reconhecimento e outros para conside-rar que esse fato real obriga o Judiciário a oferecer reconhecimento jurídico.

O mesmo ocorre com os argumentos sistemáticos utilizados tanto para sus-tentar a tutela constitucional de uniões do mesmo sexo, como o contrário. Via de regra, argumentos de igualdade não oferecem respostas conclusivas. Em muitos casos a Constituição discrimina certas categorias, apesar da igualdade ontológica de sua situação ou função. O trabalhador doméstico possui menos direitos dos trabalhadores de empresas (art. 7° § único), apesar de não haver diferença ontológica entre o trabalho de quem cuida da limpeza de um hotel ou de uma residência particular. As menções genéricas não comprovam que a CF considerou iguais todas as uniões afetivo-familiares.

Divergente concordância. Já indicamos que houve quatro opiniões diferentes sobre o tratamento jurídico da união de pessoas do mesmo sexo. Três Ministros29 optaram pela solução n° 4 e os demais por uma versão incoerente da solução n° 3. Além disso, os votos dos Min. Joaquim Barbosa e Luiz Fux divergem, em alguns pontos, da maioria. Logo só houve plena concordância de quatro entre os nove Ministros que votaram.30 Mas essas divergências não impediram chegar a uma decisão unânime. Isso indica que a fundamentação constitucional e o rigor argumentativo cedem diante da busca por um resultado, tido como satisfatório do ponto de vista político.31

A maioria dos ministros utilizou a interpretação conforme a constituição, mas não tematizou (e muito menos justificou) a ampliação do objeto dessa técnica de controle de constitucionalidade. Como interpretar o art. 1.723 do Código Civil de maneira contrária à sua letra que é praticamente idêntica ao art. 226 § 3° da Constituição e alegar que isso constitui interpretação conforme

29 Ricardo Lewandowski, Cezar Peluso e Gilmar Mendes. 30 Marco Aurélio, Celso de Mello, Cármem Lucia, Ayres Brito.31 Cf. as observações de Rodriguez, 2013: “A irrelevância da fundamentação para a decisão final pode

contribuir (...) para aliviar o peso político da decisão, deixando o espaço aberto para a contínua discussão do tema pela esfera pública”.

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a Constituição? Isso só seria possível admitindo, primeiro, que a interpretação conforme possa mudar a letra das leis interpretadas32 e, segundo, que algumas normas constitucionais são superiores às demais. Com a exceção da referên-cia do Min. Marco Aurélio à superioridade dos princípios constitucionais, os Ministros evitaram se referir a esses pressupostos teóricos de sua opinião.

Saturação probatória. Nessa decisão argumenta-se com a realidade social de uniões de pessoas do mesmo sexo, como se isso fosse um fato notório, dis-pensando provas. Com a exceção da menção de um dado estatístico, as referên-cias não se baseiam em comprovações. Tal comprovação seria necessária não só para aferir as formas concretas, a função social, a duração e outros dados sobre as uniões de pessoas do mesmo sexo, comparando-as àquelas de sexo diferente, como também para verificar a postura da sociedade perante a homoafetividade. Se, a título de exemplo, uma pesquisa empírica comprovasse que uniões de pes-soas do mesmo sexo costumam ser mantidas em (relativo) sigilo e a maioria da sociedade as reprova, isso invalidaria o argumento da interpretação teleológica com base na evolução social. Sem base empírica sólida não é possível avaliar a maioria das questões constitucionais. Observe-se que essa deficiência proba-tória contrasta com outras decisões recentes, nas quais o STF utilizou amplo material empírico, recorrendo a audiências públicas e admitindo amici curiae

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32 Essa possibilidade foi criticada no voto do Min. Gilmar Mendes (p. 706).

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