a atualização de eumênides , de Ésquilo, em “a benfazeja...
TRANSCRIPT
-
A atualizao de Eumnides, de squilo, em A benfazeja,
de Guimares Rosa
The updating of The Eumenides, by Aeschylus, in A benfazeja,
by Guimares Rosa
Adilson dos Santos1
Resumo: Este estudo objetiva demonstrar que o conto A benfazeja, de Guimares Rosa,
uma retomada do mito das Ernias/Eumnides, tal como este aparece registrado na trilogia
Orstia, de squilo. Adaptando o mito de acordo com a realidade do serto, o escritor mineiro,
ao figurar sua protagonista (Mula-Marmela), d vida a uma personagem que mantm na
essncia as caractersticas peculiares das antigas titulares do panteo helnico.
Palavras-chave: Mitologia Grega; Conto; Guimares Rosa; Tragdia Grega; squilo.
Abstract: This study aims at demonstrating that the short story A benfazeja, by Guimares
Rosa, is a revival of the myth of the Erinyes/Eumenides, as it appears registered in The
Oresteia, a trilogy of Greek tragedies written by Aeschylus. Adapting the myth according to the
reality of the backlands, the writer, when drawing the figure of his protagonist (Mula-Marmela),
brings to life a character who keeps in essence the peculiar characteristics of the ancient
holders of the Hellenic pantheon.
Key-words: Greek Mythology; Short Story; Guimares Rosa; Greek Tragedy; Aeschylus.
A fbula presente na tragdia, da mesma forma que na epopia sua
antecessora na cronologia da literatura grega dizia respeito ao mito, idade
herica das grandes famlias reais, como a dos tridas e a dos Labdcidas.
No cabia aos autores trgicos e picos criarem personagens, nem sequer
aes possveis, mas sim fazer uso do material existente na memria do
homem grego, daquilo que acreditava ser o seu passado. Todavia, o mito
tomado em seu estado puro no assinalava um efeito trgico, cumprindo, pois,
ao dramaturgo reinterpret-lo tragicamente.
Na Orstia (458 a.C.), trilogia constituda pelo Agammnon, pelas
Coforas (Portadoras das Oferendas) e pelas Eumnides (Deusas
1 Doutor em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Nesta instituio, leciona as
disciplinas de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira.
-
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Nmero 01 Jul-Dez 2011
15
Benvolas), squilo (525-456 a.C.) retrata o drama de uma maldio familiar
que se abateu sobre a casa dos tridas. Nesta trilogia, especialmente na ltima
pea, tem o leitor, sua disposio, um importante registro acerca do mito das
Ernias, deusas virgens, violentas e de aspecto disforme que tinham por
funo punir os crimes cometidos entre consangneos. Titulares muito antigas
do panteo helnico, da poca em que figuras femininas dominavam a cpula
celeste (matriarcado), tais divindades, com o advento da teogonia olmpica
representada, em sua grande maioria, por figuras masculinas (patriarcado) ,
perdem o poder senhorial que as caracterizavam, porm, passam a incorporar
novas funes, como a de castigar toda espcie de hybris, o descomedimento
dos homens. Em funo de tais atributos, deixam de ser as deusas ctonianas
do dio e tornam-se as deusas benfazejas (Eumnides).
Como se fosse um tragedigrafo, Joo Guimares Rosa (1908-1967),
em pleno sculo XX, retoma o mito das Ernias/Eumnides, tal como este
aparece configurado na verso de squilo, e escreve A benfazeja (Primeiras
Estrias, 1962). O prprio ttulo atribudo ao conto revela sua aproximao com
a obra esquiliana. Eumnides e A benfazeja so aquelas que praticam o
bem, as benevolentes. Assim sendo, este estudo tem por objetivo tornar
evidente a presena deste vnculo e demonstrar que, ao revisitar o mito grego,
Guimares Rosa reveste-o de contornos trgicos atravs da criao de uma
personagem (Mula-Marmela) marcada pela hybris, vtima de um cruel e terrvel
destino que lhe nega o livre arbtrio do ego e que assume, num pequeno
povoado, a condio de bode expiatrio (pharmaks).
Orstia, de squilo
Primeiramente, cumpre apresentar algumas consideraes sobre a
Orstia, de squilo. A primeira pea que compe a trilogia, Agammnon, tem
por assunto o assassnio de Agammnon, rei de Micenas. A causa de tamanha
desgraa encontra-se no sacrifcio de sua prpria filha. A fim de que a
expedio vingadora contra Tria obtivesse ventos favorveis e assim
prosseguisse, a deusa rtemis exigiu que Agammnon sacrificasse o sangue
virginal de Ifignia. Atendendo aos desejos dos guerreiros gregos e, ao mesmo
-
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Nmero 01 Jul-Dez 2011
16
tempo, satisfazendo sua hybris de comandante supremo, o heri acata o
pedido da deusa e a expedio blica que estava sob seu comando sai
vitoriosa. Clitemnestra, ferida em sua condio de me e no aceitando o fato
da jovem princesa ter sido assassinada em nome do Estado, jura vingar seu
sangue e, juntamente com Egisto - primo e inimigo mortal de Agammnon -,
trama a sua morte. Para isso, ela exila o filho varo, Orestes, nico que poderia
vingar o sangue paterno quando este fosse derramado. Assim que o rei
regressa de sua batalha, Clitemnestra o conduz at o interior do palcio, onde,
com a ajuda do amante, fere-o mortalmente.
A segunda pea, intitulada Coforas, constitui-se como uma pea de
vingana. Orestes, impelido pelas ameaas de Apolo, retorna de seu exlio e
sai em busca dos assassinos do seu pai. Fingindo passar-se por um
estrangeiro, cuja nova seria a morte de Orestes (sua prpria morte), o heri
apresenta-se sua me que, de imediato, manda chamar Egisto para inteir-lo
dos acontecimentos. De regresso, seu amante o primeiro a tombar pelas
mos de Orestes. Em seguida, ele se confronta com a prpria me. Ela o
adverte sobre a mancha que carregar em virtude desse crime e suas
conseqncias. Porm, pautando-se, ao mesmo tempo, na justia antiga, a lei
de talio, e na ordem de Apolo, defensor da dik, o direito novo da plis que
caracteriza o assassinato de um pai como crime hediondo, ele a degola. Nesse
momento, surgem as Ernias despertadas pelo matricdio. Invisveis a todos,
exceto aos olhos desvairados de Orestes, elas o levam loucura, torturando-o
pelo temor e pelo remorso.
Na terceira pea, Eumnides, o n que se estabeleceu nas peas
anteriores se desfaz. Por diversos anos, Orestes, atravs do sofrimento expiou
o seu erro. Enviado por Apolo a Atenas, o heri enfrenta, em julgamento
aberto, as Ernias ante o Arepago, a Suprema Corte de Atenas, criada
especialmente para esse propsito. Atena presidir ao grande jri. Apolo,
representante do patriarcado e suas novas leis, ser o advogado do ru. As
Ernias, representantes do matriarcado e seus preceitos, sero as acusadoras.
No tribunal, a votao termina empatada e Atena decide o resultado a favor de
Orestes.
-
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Nmero 01 Jul-Dez 2011
17
O feliz desfecho do protagonista desperta a ira das Ernias que,
inconformadas com a profanao de suas leis, maldizem os novos deuses e
querem provocar desgraas sobre Atenas. Para elas, o crime de Orestes feriu
a fertilidade da Terra e esta, ultrajada, no produzir mais frutos. Atena
reconhece a gravidade dos malefcios que cairo sobre sua cidade se a ira de
tais divindades tomar forma. As Ernias, tristes descendentes da negra Noite,
so as foras geradoras da terra e de toda espcie de vida.
Diplomaticamente, Atena apazigua as Ernias e as transformam em
Eumnides, as protetoras dos habitantes de Atenas. Seu posicionamento no
deixa de reconhecer os valores de tais deusas e sua proposta retoma as
frmulas que elas empregavam ao reivindicar, em nome da ordem, o direito de
punir os culpados. Nesse sentido, pode-se dizer que a transformao das
Ernias no mudar a natureza das mesmas. Da subterrnea profundeza, sua
morada, continuaro a perseguir e punir todos os criminosos e mantero as
medidas estabelecidas pelos deuses, a justia divina: Seu sentimento, porm,
mudou. No mais enquanto fria, mas como beno que elas faro parte da
lei da cidade (MEICHES, 2000, p. 23-24). A atuao delas no se pautar pela
doura e razo, mas pela coero e terror, ensinando aos homens a mansido
pelo temor:
Levada pelo amor a este povo, deixo com ele as deusas poderosas mas de trato difcil; seu encargo dirigir a vida dos mortais. Quem no pautar a conduta na vida pelos ditames destas divindades temveis por seu poder inconteste, no poder compreender a origem dos golpes que recebe em sua vida. (SQUILO, 1999, p. 184-185)
Nos domnios do demasiado
Resumidamente, A benfazeja trata da histria de Mula-Marmela,
mulher de Mumbumgo, homem de gostar do sabor de sangue, monstro de
-
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Nmero 01 Jul-Dez 2011
18
perversias (ROSA, 1996, p. 115)2. Apesar de am-lo e de ser correspondida,
ela o mata para o bem da coletividade. A partir de ento, passa a se dedicar
exclusivamente a Retrup, o enteado cego que conduz pela cidade a esmolar.
Este, igualmente temido e odiado, to pronto para ser sanguinaz e cruel-
perverso quanto o pai (118), tambm tivera seus instintos refreados pela
protagonista. Segundo boatos, para tirar a viso de olhos que no devem ver
(118), Mula-Marmela fizera uso de leites e ps de plantas venenosas. Nele, a
personagem repete a mesma influncia que exercera sobre o companheiro.
somente ela quem o controla. No decorrer da narrativa, procurando abreviar-
lhe a agonia, tambm o mata, por meio de estrangulamento. Em virtude dessas
atitudes, ela se transforma em objeto de escrnio e repulsa num pequeno
povoado.
Neste conto, h trs passagens que, de imediato, apontam para a
presena do trgico. Logo no primeiro pargrafo, o narrador, ao se dirigir ao
seu interlocutor, os moradores da pequena comunidade que a rechaam, num
tom exortativo, questiona: Vocs todos nunca suspeitaram que ela pudesse
arcar-se no mais fechado extremo, nos domnios do demasiado? (113).
Nas tragdias gregas, estar nos domnios do demasiado era o mesmo
que incorrer na hybris. De acordo com Nicola Abbagnano, em seu Dicionrio de
filosofia,
com este termo, intraduzvel para as lnguas modernas, os gregos entenderam qualquer violao da norma da medida, ou seja, dos limites que o homem deve encontrar em suas relaes com os outros homens, com a divindade e com a ordem das coisas (2003, p. 520).
Infringir qualquer ponto desta norma significava atrair desgraas.
Dessa forma, explicam-se os vrios avisos instigando a ordem e a
moderao, conforme se verificava no Prtico de Delfos: Conhece-te a ti
mesmo e Nada em demasia.
O pecado original do heri trgico ser o produto de uma hybris. Assim
sendo, ao figurar Mula-Marmela como algum situado nos domnios do
2 As demais citaes referentes ao conto A benfazeja limitar-se-o ao nmero da pgina
desta edio.
-
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Nmero 01 Jul-Dez 2011
19
demasiado, o narrador a insere na ordem das antigas personagens trgicas.
Tal qual os heris gregos que crem cegamente em seus valores e por eles
despendem todas as suas foras, Mula-Marmela assume uma mesma postura
e a mantm ao longo do conto. por conservar-se dessa maneira que ser
eliminada. Segundo as normas civilizadas que determinam o equilbrio social
do lugarejo, a protagonista um ser caracterizado pela hybris, pois, ao
concretizar desejos alheios e inconfessos, transgrediu a lei. Cristalizar pulses
agressivas como matar o marido, cegar o enteado e, posteriormente,
estrangul-lo, coloca-a fora da vida exemplar de todos.
Destino, o terrvel
A segunda passagem que nos permite aproximar a narrativa rosiana do
universo trgico encontra-se no terceiro pargrafo, quando o narrador afirma:
Rica, outromodo, sim, pelo que do destino, o terrvel (113). Permeando a
maioria das tragdias gregas, o destino pode ser considerado como um dos
elementos trgicos por excelncia. atravs do encadeamento de fatos
fatdicos que o heri, um ser sem escolha, d-se conta de sua impotncia e
vulnerabilidade. No h como fazer frente fora do decurso dos
acontecimentos.
No que tange ao conto A benfazeja, h uma constante aluso
determinao prvia dos atos de Mula-Marmela. L-se no conto que uma sina
forosa demais apartou-a de todos, soltou-a (117). Independentemente de sua
vontade, a protagonista fora escolhida para ser a executora da obra altssima,
que todos nem ousavam conceber (116). Ela
tinha de matar, tinha de cumprir por suas prprias mos o necessrio bem de todos [...]. S ela mesma, a Marmela, que viera ao mundo com a sina presa de amar aquele homem, e de ser amada dele; e, juntos, enviados. [...] Se no cumprisse assim se se recusasse a satisfazer o que todos, a ss, a todos os instantes, suplicavam enormemente ela enlouqueceria? (116-117).
Como aos heris trgicos, Mula-Marmela somente resta a no-
escolha da escolha. Atribui-se a todos a lei do livre arbtrio, exceto para a
protagonista, cuja arbitrariedade anulada. Sua sina permite-lhe trilhar apenas
-
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Nmero 01 Jul-Dez 2011
20
um nico caminho, ou seja, seu fardo limpar o vilarejo da pestilncia
daqueles que ultrapassam os limites do bom convvio social, os representantes
da desordem, independentemente de fazerem parte dos que lhe so estimados
ou no. Mesmo sabendo que os far sofrer, est consciente de que este o
seu papel. No h qualquer possibilidade de fuga.
A expedio do bode seu expiar
A terceira passagem que revela a presena do trgico em A
benfazeja encontra-se no pargrafo que encerra a narrativa. Mula-Marmela, ao
sair do vilarejo, comparada ao bode expiatrio: Sem lhe oferecer ao menos
qualquer espontnea esmola, vocs a viram partir: o que figurava a expedio
do bode seu expiar (121).
Na Grcia Antiga, o bode expiatrio (pharmaks) era fruto de um
mecanismo de transferncia a um outro da responsabilidade de um crime ou
anormalidade que perturbava a ordem social. Segundo Tzetzes,
o (ritual do) pharmaks era uma dessas antigas prticas de purificao. Se uma calamidade se abatia sobre a cidade, exprimindo a clera de deus fome, peste ou qualquer outra catstrofe -, o homem mais feio de todos era conduzido como que a um sacrifcio como forma de purificao e remdio para os sofrimentos da cidade. Procediam ao sacrifcio num local conveniado e davam (ao pharmaks), com suas mos, queijo, bolo de cevada e figos, depois, por sete vezes, batia-se nele com pras e figos silvestres e outras plantas silvestres. Finalmente, eles o queimavam com ramos de rvores silvestres e esparramavam suas cinzas no mar e ao vento como forma de purificao [...] dos sofrimentos da cidade (apud DERRIDA, 1997, p. 80).
Considerando-se tais aspectos, pode-se comparar a figura do
pharmaks aos heris presentes nas tragdias gregas. Sobre eles o destino faz
recair a culpa de ancestrais. A eles so imputados todos os reveses e
desgraas. por isso que devem vivenciar os piores sofrimentos, ou, at
mesmo, serem imolados.
No conto de Guimares Rosa, pode-se constatar que a comunidade
que acompanhava Mula-Marmela estava praticando um ritual no qual a
-
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Nmero 01 Jul-Dez 2011
21
protagonista, ao ser expulsa do logradouro, ou melhor, de seus decretantes
coraes, era sacrificada. Mula-Marmela concentra em si todos os requisitos
configuradores do pharmaks, a comear por sua feio desagradvel.
Descrita diversas vezes como a abominada e reles, a personagem feia,
furtiva, lupina, to magra (121), com um se sumir de sanguexuga (113). Suas
sombras carecem de qualquer conta ou relevo (113). Alm disso, deficiente
fisicamente. Com dores nas cadeiras, andava meio se agachando; com os
joelhos para diante (113). Para a comunidade, ela um ser que no vale a
pena rever, intil tal qual os indivduos que o Estado grego sustentava para o
ritual de purificao. Pertence a uma famlia que no produz, no se sustenta e
no gera qualquer fora de trabalho. No a desatendendo, juntamente com
Retrup, em seus pedidos de esmola, o lugarejo, como o Estado grego, a toma
e a sustenta para, depois de agir a seu favor, expuls-la friamente.
Considerada como catalizadora do mal, retirada do seio da comunidade.
Acrescente-se ainda que, como um pharmaks, Mula-Marmela deve ser vista
em sua duplicidade. Por um lado, mesmo matando, ela cura. Porque cura,
um ser venerado e benfico. Por outro lado, porque mata, temvel e malfica,
encarnando, desse modo, as potncias demonacas.
Mula-Marmela: Ernia/Eumnide
Se o conto de Guimares Rosa fosse intitulado Eumnides, o leitor
mais vido no se surpreenderia, visto que a obra do autor sertanejo e a
terceira tragdia que compe a trilogia Orstia, de squilo, tm muito a
dialogar. Benfazeja e Eumnides significam benignas, aquelas que praticam o
bem.
Nas linhas iniciais de A benfazeja, Mula-Marmela caracterizada com
traos fsicos abominveis: reles, feia, furibunda de magra, de esticado
esqueleto, e o se sumir de sanguexuga, fugidos os olhos, lobunos cabelos...
(113). Alm disso, inominada e deficiente fsica. Verificam-se, por tais
aspectos, os primeiros indcios delineadores de sua semelhana com as
Ernias. Desprivilegiadas tambm no aspecto fsico, tais deusas eram horrveis
para serem contempladas. Segundo a mitologia grega, eram trs: Aleto, que
-
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Nmero 01 Jul-Dez 2011
22
persegue ininterruptamente os criminosos com tochas acesas, tornando-os
visveis; Tisfone, que os aoita com seu chicote; e Megera, responsvel por
gritar incessantemente em seus ouvidos os crimes que cometeram. Descritas
como cavalos alados, tinham cobras se retorcendo em vez de cabelos e olhos
injetados de sangue. Como Mula-Marmela, inspiram averso e animosidade.
No conto de Rosa, Mula-Marmela, Mumbungo e Retrup, formam uma
sinistra trade. Conforme os padres ticos, econmicos e estticos valorizados
socialmente, a protagonista encontra-se margem. Todavia, enquanto o
lugarejo a rejeita, Mula-Marmela cuida de sua tranqilidade. ela quem
preserva as leis que regem o bom convvio social e diz no aos excessos
criminosos de seu marido e enteado, livrando-o, assim, de suas presenas
nefastas. Incapacitada de compreender a dimenso de sua obra, a comunidade
no percebe que suas atitudes visam ao bem-estar geral e que sua vida fora
sacrificada em prol de todos. Assim como as Eumnides, Mula-Marmela se
caracteriza como uma lei externa, uma ministra da justia que, atravs do
temor e mansido, contm nos limites os indivduos que os queiram
ultrapassar. Como tais deusas, sua presena infunde medo:
O Mumbungo queria sua mulher, a Mula-Marmela, e, contudo, incertamente, ela o amedrontava. Do temor que no se sabe. Talvez pressentisse que s ela seria capaz de destru-lo, de cortar, com um ato de no, sua existncia doidamente celerada. Talvez adivinhasse que em suas mos, dela, estivesse j decretado e pronto seu fim. Queria-lhe, e temia-a de um temor igual ao que agora incessantemente sente o cego Retrup (115).
De modo semelhante s deusas ctonianas, em Mula-Marmela coexiste
tanto o elemento benfico quanto o malfico. No que diz respeito s
personagens mticas, estas, enquanto Frias, representam o esprito vingativo,
o gosto pela tortura e pelo tormento aplicados como castigo por toda violao
da ordem (CHEVALIER, 1997, p. 409). Como Eumnides, encarnam o
esprito de compreenso, de perdo, de superao e de sublimao
(CHEVALIER, 1997, p. 409). As primeiras so impiedosas, as segundas,
apesar de implacveis, benvolas, protetoras da ordem social e, em especial,
da ordem familiar. Separar os traos que as distinguem enquanto benfazejas
-
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Nmero 01 Jul-Dez 2011
23
ou malditas no fcil, uma vez que, para promover o bem, fazem uso da
violncia.
No que tange ao conto rosiano, a duplicidade benigno/malfico
impregna toda a tessitura narrativa e est presente tanto na maneira como a
protagonista denominada quanto nas comparaes s quais submetida.
Seu apelido carrega as marcas de seu destino. Como a Mula, pode ser
analisada tanto no que se refere idia de carga, ou seja, a misso de suporta
pesos que no so os seus, quanto sua esterilidade, embora, mesmo no
sendo me, incorpore a maternidade. No tocante Marmela, podemos
associ-la ao marmelo, fruto cido e adstringente, empregado no preparo de
doces. Acre e doce so duas propriedades que caracterizam um mesmo
elemento, tal qual Mula-Marmela. Tais atributos atestam, uma vez mais, sua
condio de pharmaks, ou seja, de bode expiatrio.
L-se em A benfazeja que Mula-Marmela tinha faces de jejuadora e
modos contidos de ensalmeira. Envolvendo a idia de superstio e magia,
tem-se a cura pelo ensalmo, ou seja, por encantamentos uma prtica
anticrist. Assim, dentre as mltiplas faces que a protagonista assume no conto
mula, gua e loba , acrescenta-se agora a de feiticeira. Esta,
amedrontando o homem desde os primrdios de sua histria, encontra-se entre
os seres pertencentes s hierarquias demonacas. Como as bruxas, Mula-
Marmela velha e desprovida de beleza. Suas caractersticas fsicas e os
segredos que cercam sua vida assemelham-se bastante com a imagem que se
cristalizou da bruxa m. No de se estranhar que um dos indcios de
malignidade das bruxas encontra-se em sua feio desagradvel.
Em contraposio condio de ensalmeira, Mula-Marmela tambm
uma jejuadora, aquela que pratica o jejum. sabido que tal prtica dentre os
cristos constitui-se como uma das formas de se aumentar a f, penitenciar-se
ou seguir um preceito eclesistico. Para isso, os fiis devem abster-se de
alimentos ou de alguma coisa que lhes seja muito penoso privar-se. No que se
refere Mula-Marmela, pode-se consider-la uma jejuadora na medida em que
se abstm de sua subjetividade. Ela abre mo da felicidade de estar ao lado de
-
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Nmero 01 Jul-Dez 2011
24
quem amava para alcanar a graa de promover o bem a uma quantidade
maior de pessoas.
Mula-Marmela nunca fora me: Ela no tinha filhos. Ela nunca
pariu... (118). Todavia, mesmo nunca tendo parido, corporifica a experincia
materna ao assumir o enteado como seu prprio filho: Desde que morreu o
homem-marido, o Mumbungo, ela tomou conta deste. Passou a cuid-lo, na
reobriga, sem buscar sossego (118). Alm disso, como me, protege a
comunidade que a repele, apesar de lhe estarem em grande dvida pelo
desaparecimento de Mumbungo e pela neutralizao dos atos de Retrup. Este
ltimo, predestinado a cumprir pelas prprias mos os atos brutais do pai,
impedido de agir e deixa de ser o sujeito de seus prprios desejos. Cegado
pela madrasta, sofre uma espcie de morte que reintroduz o equilbrio na
comunidade. Anulando seus atos, ela lhe d a possibilidade de permanecer
junto ao vilarejo. Vale lembrar que uma das nicas coisas que Mula-Marmela
diz em todo o conto Meu filho... (121), ao responder ao enteado quando
este tentara mat-la. No de se surpreender tambm que, no interior da
combinao de seu nome, podem-se formar as palavras: amar, me e mame.
Partilhando situao anloga, as Ernias no tinham filhos. Eram
virgens malditas [...]; nunca as possuram quaisquer dos deuses, homens e
nem mesmo feras (SQUILO, 1999, p. 145-146). Do mesmo modo que Mula-
Marmela, assumem a maternidade na medida em que adotam os seres como
seus filhos e so responsveis pela gerao da vida. Tanto a morte quanto a
vida so obras de suas mos.
O discurso persuasivo de Atena na voz do narrador rosiano
Em A benfazeja, toma-se conhecimento da especificidade de Mula-
Marmela atravs do narrador. Trata-se de algum que no pertence
comunidade da qual a protagonista faz parte: Mas, eu, indaguei. Sou de fora
(115). Tudo o que sabe acerca da personagem obteve atravs do relato dos
habitantes do vilarejo. Sua condio de estrangeiro lhe garante uma viso
menos comprometida dos fatos. No entanto, mesmo no pertencendo
populao local, demonstra estar por dentro da conscincia coletiva.
-
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Nmero 01 Jul-Dez 2011
25
Pela maneira como efetiva a narrao, verifica-se que este assume o
papel de um tragedigrafo. Vale ressaltar que a histria de Mula-Marmela
comporta algumas das situaes das quais se nutriam as tragdias: um
suposto e desmentido incesto com o enteado, filcidio, alm do assassinato do
prprio marido. sabido que os assuntos familiares eram os que mais atraam
a ateno e emocionavam os expectadores do teatro grego, principalmente
quando apareciam crimes e transgresses. Todavia, tais fatos no aconteciam
em cena, mas eram expressos pelas palavras. Segundo as normas que
determinavam as tragdias, aes chocantes eram inconvenientes em cena.
Da mesma forma, em A benfazeja, a palavra, mais do que os atos de Mula-
Marmela, o que assinala sua verso trgica, uma vez que a partir dela que
estes so legitimados como benficos para a comunidade que a escarnece por
no reconhec-la como uma Eumnide.
No incio da narrativa, Mula-Marmela apresentada como um ser
caracterizado pela hybris e marcada por um destino que lhe reserva como fim a
condio de pharmaks. Tudo o que se passou com a protagonista narrado
num tempo presente. no agora que o narrador relata a sua histria; uma
histria baseada em fatos rememorados numa ordem por ele estabelecida.
Constata-se, de antemo, que se trata de algum que tem os domnios da
argumentao, sabe narrar e julgar convenientemente o que deve ser relatado
e qual o melhor momento, mostrando-se, alm disso, um profundo conhecedor
dos valores reinantes nas tragdias, em particular, nas Eumnides.
Toda a narrativa transcorre como se fosse uma conversa em que o
narrador, indignado diante da maneira como Mula-Marmela tratada neste
pequeno povoado, procura convencer seus habitantes a rever seu julgamento.
Num jogo de argumentos e contra-argumentos, ele expe e, ao mesmo tempo,
contesta aquilo que estes julgam ser verdadeiro:
Diziam que, em outro tempo, ao menos, entre eles teria havido alguma concubinagem. Cambonda? Vocs sabem que isso falso; e como a gente gosta de aceitar essas simples, apaziguadoras suposies. Sabem que o cego Retrup, canhim e discordioso, ela mesma o conduz, paciente, s mulheres, e espera-o c fora, zela para que no o maltratem (119-120).
-
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Nmero 01 Jul-Dez 2011
26
A populao local que a escarnece por no saber e no querer
saber deixa-se levar pelas aparncias e impresses, ignorando a sua
verdadeira essncia. precisamente o narrador quem desmascara a sua
hipocrisia ante seus prprios olhos:
Seu antigo crime? Mas sempre escutei que o assassinado por ela era um hediondo, o co de homem, calamidade horribilssima, perigo e castigo para os habitantes deste lugar. Do que ouvi, a vocs mesmos, entendo que, por aquilo, todos lhes estariam em grande dvida, se bem que de tanto no tomando tento, nem essa gratido externassem (114).
Para a preconceituosa comunidade, o simples fato de Mula-Marmela
estar ligada a Mumbundo e Retrup, seres to repugnantes, a torna to
culpada quanto eles. Seu aspecto demonaco, alm de estar presente em seus
traos fsicos, evidencia-se, tambm, em seus atos. Como que por um
processo de transferncia, as maldades e a natureza criminosa de seus
companheiros lhes so atribudas, sendo, por isso, no reconhecida entre os
moradores. Em oposio a todos esses aspectos negativos, o narrador intitula
a sua histria de A benfazeja. Uma vez mais, seu interlocutor instigado a
pensar. Se Mula-Marmela a benfazeja, deve-se procurar e descobrir o que
que est por detrs das aparncias. Sendo aquela que pratica o bem, no se
pode consider-la apenas como uma criminosa, um miasma que infecta e
corrompe a sociedade da qual faz parte.
como se estivssemos num tribunal em que o narrador, assumindo a
posio de advogado de defesa, procura legitimar os atos de Mula-Marmela.
Ironicamente, introduz, atravs de perguntas reiteradamente feitas
comunidade, a dvida em relao concretude do seu saber, um saber
pautado apenas em simples e apaziguadoras suposies, em petas [que]
escondem a coisa singular (115). Para o vilarejo, os atos de Mula-Marmela
so violaes de interditos. J, para o narrador, no violar o interdito que se
caracteriza como um crime. O crime de no cumprir por suas mos o
necessrio bem de todos (116), de no levar a efeito a obra altssima, que
todos nem ousavam conceber, mas que, em seus escondidos coraes,
imploravam (116). De acordo com o sistema de conceitos do narrador, aquilo
-
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Nmero 01 Jul-Dez 2011
27
que a populao toma por sentena, constitui-se como uma sano. Para se
fazer digno de f, ele chega a se colocar dentre os membros da comunidade,
assumindo tambm a condio de vtima das atrocidades de Mumbungo e
Retrup:
Mas, se ela tambm se tivesse matado, que seria de vocs, de ns, s muitas mos do Retrup, que ainda no estava cegado, nos tempos; e que seria to pronto para ser sanginaz e cruel perverso quanto o pai e o que renega de Deus da pele de Judas, de to desumana e tremenda estirpe, de apavor? (118).
De r, Mula-Marmela passa a ocupar o lugar de vtima. Uma vez
legitimados os seus atos, ela assume a posio de uma benfeitora, ou melhor,
de uma Eumnide. Tal como acontece na terceira tragdia que compe a
Orstia, a imagem da personagem reabilitada atravs de um discurso
marcadamente persuasivo. Atena, na obra esquiliana, ao dirigir-se s Ernias,
afirma:
Aqui est o que podeis obter de mim: fazer e receber o bem e ser benditas e veneradas numa terra mais que todas querida pelos deuses, da qual vs sereis desde este dia distinguidas cidads. (SQUILO, 1999, p. 182).
graas s palavras que profere que consegue convenc-las e
transfigurar-lhes a funo. De foras selvagens do mal, transformam-se em
defensoras da paz em Atenas.
As Ernias fazem parte de uma poca anterior ao tempo dos deuses
olmpicos. Um perodo em que o matriarcado dominava o universo. Todavia,
com o desenrolar dos tempos, o poder senhorial feminino enfraqueceu-se e o
homem passou a ocupar um lugar proeminente, instaurando-se, assim, o
patriarcado. Nesse novo momento, a cpula celeste grega passa a ser
comandada, quase que totalmente, por figuras masculinas. Concomitante a
essa transformao, tem-se o surgimento da democracia, cujos preceitos - que
visam uma nova forma de sociabilidade entre os cidados gregos - vm ao
-
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Nmero 01 Jul-Dez 2011
28
encontro com as regras estabelecidas pelos novos deuses. Ao homem que
incorrer na hybris, tanto o direito humano quanto o divino o puniro.
Estando concorde com o mundo poltico recm fundado e intimidada
pelas ameaas de tais deusas de trazer malefcios para sua terra, Atena tece
todo um discurso visando a induo. Promete-lhes honraria em sua nova
condio de Eumnides e um lugar proeminente ao lado dos deuses olmpicos.
Com isso, a deusa garante a presena amedrontadora de tais divindades, que
passam, ento, a assumir uma funo de extrema importncia dentro do novo
direito da plis. Uma nova cidade no pode mais comportar crimes de sangue
ou mesmo a desordem.
Inserindo as Ernias numa ordem temporal contempornea s
mudanas ocorridas pelo advento da democracia e da entrada dos novos
deuses na religio grega, o poeta trgico da Orstia, ao contrrio do narrador
de A benfazeja, no resgata atravs de rememoraes a verdadeira face de
tais deusas para que esta seja de conhecimento de todos. As Ernias, embora
destitudas de seu carter de fria e revestidas de contornos benignos,
apresentam, ainda, na sua essncia, a mesma natureza que as configurou
enquanto representantes de um tempo glorioso anterior ao patriarcado. O que
mudou, porm, em sua conduta, que no apenas se encarregaro de punir
os crimes entre consangneos, mas zelaro tambm pela proteo da
vegetao, pela conduta dos homens e pela criao dos animais. J no conto
rosiano, o narrador tece todo o seu discurso num tempo presente, o agora,
tomando como suporte um tempo anterior, cujo conhecimento lhe foi
possibilitado atravs dos relatos dos membros da comunidade. atravs da
evocao voluntria dessas lembranas que toma, no presente, a defesa de
Mula-Marmela e a revela benfazeja, qualidade primordial que fora esquecida
por todos. Atribuindo narrao um tom convincente, ressalta o negativo no
positivo. Para ele, Mula-Marmela deve ser vista na totalidade do seu ser e no
a partir dos seus traos fsicos. Ela possui feies ocultas a serem reveladas.
Todavia, reconhece que este saber transcende a nossa capacidade, foge a
nossa razo, pois em volta de ns, o que h, a sombra mais fechada
-
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Nmero 01 Jul-Dez 2011
29
coisas gerais (116); ou, como se l mais adiante: A cor do carvo um
mistrio; a gente pensa que ele preto, ou branco (117).
Em virtude de tais atributos, o narrador transforma a histria de Mula-
Marmela em causo exemplar que dever ser transmitido s futuras geraes:
E, nunca se esqueam, tomem na lembrana, narrem aos seus filhos, havidos
ou vindouros, o que vocs viram com esses olhos terrivorosos, e no souberam
impedir, nem compreender, nem agraciar (121-122). somente estando na
conscincia coletiva que Mula-Marmela, ento, ocupar o lugar que sempre foi
e ser seu, ou seja, de uma Eumnide, uma serva responsvel pela
observncia da justia, cuidando, com antecedncia, de evitar o crime.
Bibliografia
ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de filosofia. Trad. Alfredo Bosi e Ivone
Castilho Benedetti. 4. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2003.
ARAJO, Helosa Vilhena de. O espelho: contribuio ao estudo de
Guimares Rosa. So Paulo: Mandarim, 1998.
CHEVALIER, Jean. Dicionrio de smbolos: mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, nmeros. Trad. Vera Costa e Silva et alii. 11.
ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1997.
DERRIDA, Jacques. A farmcia de Plato. Trad. Rogrio Costa. 2. ed. So
Paulo: Iluminuras, 1997.
SQUILO. Orstia: Agamemnom, Coforas, Eumnides. 4. ed. Trad. Mrio
da Gama Kury. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1999.
MEICHES, Mauro Pergaminik. A travessia do trgico em anlise. So Paulo:
Casa do Psiclogo, 2000.
PASSOS, Cleusa Rios. Guimares Rosa: do feminino e suas estrias. So
Paulo: Hucitec/FAPESP, 2000.
RIEDEL, Dirce Crtes. As meias verdades em Guimares Rosa. Letras de
hoje, Porto Alegre, n. 20, p. 33-42, 1975.
ROSA, Joo Guimares. Primeiras estrias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1996.
-
Todas as Musas ISSN 2175-1277 (on-line) Ano 03 Nmero 01 Jul-Dez 2011
30
ROSSI FILHO, Alcio. Ver e re(viver) A benfazeja, de Guimares Rosa.
Revista de Letras, So Paulo, n. 28, p. 53-61, 1988.
Recebido em: 09-mai Aprovado em: 30-jun