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C AD . S AÚDE C OLET ., R IO DE J ANEIRO , 16 (4): 749 - 764, 2008 – 749 EQUIVALÊNCIA CONCEITUAL E SEMÂNTICA DA VERSÃO EM PORTUGUÊS DA ESCALA COMMUNITY ATTITUDES TOWARD MENTALLY III (CAMI) Conceptual and semantic equivalence of the Portuguese version of the scale Community Attitudes toward Mentally Ill (CAMI) Sylvia Gonçalves 1 , Lúcia Abelha 2 , Letícia Fortes Legay 3 , Giovanni Marcos Lovisi 4 RESUMO A atitude negativa da comunidade em relação aos doentes mentais é um dos principais entraves para a implantação e expansão de serviços de saúde mental em áreas residenciais. Estudos internacionais demonstram que o medo, a falta de conhecimento sobre os serviços e o estereótipo continuam a ser obstáculos para a efetividade do tratamento e para a reintegração social do paciente. No Brasil há uma carência de estudos utilizando escalas para aferir as atitudes da comunidade em relação aos doentes mentais. Realizar a adaptação transcultural da escala Community Attitudes toward Mentally Ill (CAMI) utilizada para medir as atitudes da comunidade em relação aos doentes mentais. A adaptação transcultural da escala para o contexto cultural brasileiro foi realizada segundo os procedimentos recomendados pela literatura internacional, e constou das seguintes etapas: 1.Tradução; 2. Revisão da tradução por um grupo bilíngüe; 3. Retradução; 4. Avaliação da retradução; 5. Estudo piloto para testar a versão preliminar do instrumento, no qual foram entrevistados 14 moradores domiciliados próximos aos Serviços Residenciais Terapêuticos; 6. Revisão das questões a partir do estudo piloto. Resultados: Os resultados incluíram modificações importantes na formulação e no conteúdo das questões, para garantir a equivalência semântica e cultural da escala adaptada para o contexto brasileiro. A versão brasileira da CAMI (CAMI-BR), após cumpridas todas as etapas exigidas internacionalmente, desde a tradução até sua aplicação em população teste, resultou em escala de linguagem clara, compreensível e fácil aplicabilidade. PALAVRAS-CHAVE Adaptação transcultural, atitudes da comunidade, CAMI, reforma psiquiátrica ABSTRACT Negative attitudes towards mentally ill people are one of the most important problems that prevent the implementation of community – based mental health care units. 1 Mestre em Saúde Coletiva. Rua Orígenes Lessa 4545 casa 26 - Recreio dos Bandeirantes - Rio de Janeiro - CEP: 22795-215 - E-mail: [email protected] 2 Doutora em Saúde Pública. Pesquisadora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva - UFRJ. 3 Doutora em Saúde Pública. Professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva - UFRJ. 4 Doutor em Saúde Pública. Professor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva - UFRJ. A RTIGOS

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CA D. S A Ú D E C O L E T . , R I O D E JA N E I R O , 16 (4 ) : 749 - 764, 2008 – 749

EQUIVALÊNCIA CONCEITUAL E SEMÂNTICA DA VERSÃO EM PORTUGUÊS DA ESCALA

COMMUNITY ATTITUDES TOWARD MENTALLY III (CAMI)Conceptual and semantic equivalence of the Portuguese version of thescale Community Attitudes toward Mentally Ill (CAMI)

Sylvia Gonçalves1, Lúcia Abelha2, Letícia Fortes Legay3, GiovanniMarcos Lovisi4

RESUMO

A atitude negativa da comunidade em relação aos doentes mentais é um dos principaisentraves para a implantação e expansão de serviços de saúde mental em áreas residenciais.Estudos internacionais demonstram que o medo, a falta de conhecimento sobre osserviços e o estereótipo continuam a ser obstáculos para a efetividade do tratamentoe para a reintegração social do paciente. No Brasil há uma carência de estudosutilizando escalas para aferir as atitudes da comunidade em relação aos doentesmentais. Realizar a adaptação transcultural da escala Community Attitudes toward Mentally

Ill (CAMI) utilizada para medir as atitudes da comunidade em relação aos doentesmentais. A adaptação transcultural da escala para o contexto cultural brasileiro foirealizada segundo os procedimentos recomendados pela literatura internacional, econstou das seguintes etapas: 1.Tradução; 2. Revisão da tradução por um grupobilíngüe; 3. Retradução; 4. Avaliação da retradução; 5. Estudo piloto para testar aversão preliminar do instrumento, no qual foram entrevistados 14 moradoresdomiciliados próximos aos Serviços Residenciais Terapêuticos; 6. Revisão das questõesa partir do estudo piloto. Resultados: Os resultados incluíram modificações importantesna formulação e no conteúdo das questões, para garantir a equivalência semântica ecultural da escala adaptada para o contexto brasileiro. A versão brasileira da CAMI(CAMI-BR), após cumpridas todas as etapas exigidas internacionalmente, desde atradução até sua aplicação em população teste, resultou em escala de linguagemclara, compreensível e fácil aplicabilidade.

PALAVRAS-CHAVE

Adaptação transcultural, atitudes da comunidade, CAMI, reforma psiquiátrica

ABSTRACT

Negative attitudes towards mentally ill people are one of the most important problemsthat prevent the implementation of community – based mental health care units.

1 Mestre em Saúde Coletiva. Rua Orígenes Lessa 4545 casa 26 - Recreio dos Bandeirantes - Rio deJaneiro - CEP: 22795-215 - E-mail: [email protected]

2 Doutora em Saúde Pública. Pesquisadora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva - UFRJ.

3 Doutora em Saúde Pública. Professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva - UFRJ.

4 Doutor em Saúde Pública. Professor do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva - UFRJ.

A R T I G O S

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Some international studies demonstrated three factors which are associated with thesecommunity attitudes: 1- fear of people with mentally illness; 2- lack of knowledgeabout mental health services, and 3- stereotype of psychiatric patients. These factorscontinue to maintain barriers to the effective treatment and social reintegration of thepsychiatric patients in the community. In Brazil, there are scarce studies about thisissue. None of the Brazilian studies used the Community Attitudes Towards Mental Illinstrument (CAMI) to assess attitudes of population towards psychiatric patients livingin the communities. The present study consists of a transcultural adaptation of theoriginal instrument in English (CAMI) into a final version to be used in Brazil. Basedon a broad literature review, the transcultural adaptation of the CAMI to the Braziliancontext was made following the next steps: 1- Translation; 2- revision of the translationby 2 experienced bilingual professionals; 3- Back translation: A bilingual epidemiologistand a group of experienced bilingual professionals carried out the back translation 4-Assessment of the back translation; 5- Pilot Study: A sample of 14 residents wasselected at random from the area of the community. 6- Analysis of the pilot studydata. Results indicated a satisfactory equivalence between versions, with modificationsbeing made in the procedures for conducting the interview and the language used inthe questions. Our findings showed that the CMI-BR is an instrument which has clearinstructions, understandable questions and easy application in the Brazilian context.

KEY WORDS

Transcultural adaptation, community attitudes, CAMI, psychiatry reform

1. INTRODUÇÃO

A transferência do atendimento psiquiátrico dos hospitais para os serviçoscomunitários de saúde mental tem demonstrado a importância da opinião e daatitude da comunidade em relação aos doentes mentais e do seu conhecimentosobre a efetividade do tratamento, a implantação e o planejamento desses serviços(Rossler & Salize, 1995; Papadopoulos et al., 2002; Schomerus et al., 2006).

No Brasil, já foram implementados serviços comunitários estratégicos para asubstituição do atendimento hospitalar, como: Centro de Atenção Psicossocial(CAPS), Unidades Psiquiátricas em Hospital Geral (UPHG) e os Serviços ResidenciaisTerapêuticos (SRT). Estes serviços ainda estão muito aquém da demanda existentee exigem uma boa articulação com a vida cotidiana e com a vizinhança. A atitudepositiva da comunidade é um ponto crucial na dinâmica das relações entre usuáriose a comunidade, usuários e tratamento e no processo de habitar os espaços dacidade, diminuindo o estigma e possibilitando a ampliação da rede social (Lima et al.,1999; Delgado, 2006)

A implementação dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT) surge em umcontexto de superação do modelo assistencial centrado no hospital psiquiátrico,como estratégia para reinserção e reintegração social dos pacientes com transtornosmentais, egressos destes hospitais. Essas moradias são casas localizadas no meiourbano, e servem como espaços onde, além da humanização no trato destes

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pacientes, busca-se uma vida social digna no processo de readaptação de cadapessoa à vida em sociedade (Furtado, 2006; Sanzana, 2006).

O processo de implantação e expansão dos STR é relativamente recente noBrasil, contando atualmente com 475 serviços em funcionamento, com um totalde aproximadamente 2.500 moradores. A maior parte dos SRT do município doRio de Janeiro está localizada no bairro de Jacarepaguá, na zona oeste da cidade.

O modelo assistencial baseado na reintegração do doente mental em áreasresidenciais ainda sofre alguns entraves, como o estigma atrelado aos pacientespsiquiátricos, a idéia de que doentes mentais devem ser excluídos e tratados eminstituições fechadas e a falta de conhecimento sobre os serviços de saúde mental,o que reforça atitudes negativas em relação a este grupo. A avaliação das atitudesda comunidade em relação aos doentes mentais é uma etapa importante naelaboração de estratégias para a implementação de Residências Terapêuticas, jáque a reintegração e reinserção do paciente com transtorno mental, muitos comuma rede social prejudicada, dependem do acolhimento e da receptividade dacomunidade (Maclean, 1969; Taylor & Dear, 1981; Wolff et al., 1996a; Schomeruset al., 2006).

O interesse em medir a atitude da comunidade em relação aos doentes mentaissurge em 1962 com o desenvolvimento da escala Opinions about Mental Illness (OMI)por Cohen e Struening (1962). Esta escala foi desenvolvida a partir das pré-existentes: California F-scale (Adorno et al., 1950), Custodial Mental Illness Ideology Scale(Gilbert & Levinson, 1956), Nunnally’s scale of popular concepts of mental health (Nunnally,1961). O instrumento original continha setenta itens. Após análise do questionário,utilizando as respostas de 1.195 trabalhadores de dois grandes hospitais psiquiá-tricos, os itens foram agrupados em cinco dimensões e, em trabalho subseqüente,reduzido para cinqüenta e um itens. As cinco dimensões identificadas foram: (1)autoritarismo – a crença de que obediência à autoridade é importante e pessoascom doença mental são inferiores e não têm a capacidade de obedecer a regras,necessitando tratamento coercivo; (2) benevolência – uma idéia paternalista emrelação aos doentes mentais; (3) ideologia higienista – a idéia de que doençamental é uma doença como qualquer outra e que uma abordagem profissional éfundamental para um tratamento adequado (4) restrição social – a idéia de quea participação dos doentes mentais em atividades e relações sociais, como casa-mento, voto, capacidade de ter filhos etc., deve ser restringida; e (5) etiologiainterpessoal – a idéia de que doença mental se origina de experiênciasinterpessoais.(Link et al., 2004).

A política de desinstitucionalização e o destaque dos fatores genéticos naetiologia dos transtornos mentais, cronologicamente, são paradigmas que surgiramdepois do desenvolvimento da OMI e, portanto, não estavam contemplados no

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instrumento. Para suprir esta defasagem, foi criada, em 1981, a escala Community

attitudes towards the mentally III (CAMI) (Taylor & Dear, 1981). Esta escala usa aOMI como base conceitual e procura reproduzir três de suas cinco dimensões(autoritarismo, benevolência e restrição social). A quarta dimensão (ideologia dasaúde mental comunitária) da CAMI foi desenvolvida a partir da escala Community

Mental Health Ideology (CMHI) (Baker & Schulberg, 1967).Estudos internacionais que utilizaram a CAMI como instrumento demonstraram

que a oposição por parte da vizinhança pode inviabilizar os novos serviços comu-nitários, e que a reintegração dos doentes mentais depende estreitamente destaaceitação (Wolff et al., 1996b).

No Brasil ainda não temos ainda escalas traduzidas e validadas para avaliar asreações da comunidade aos pacientes e aos serviços psiquiátricos. A adaptaçãotranscultural da CAMI à nossa realidade é importante, não só para a comparaçãocom estudos de outros países, mas principalmente para o planejamento e avaliaçãodos novos serviços na comunidade (Gonçalves, 2001; Bandeira, 2007).

Neste contexto, o objetivo deste estudo foi iniciar o processo de adaptaçãotranscultural, visando garantir sua equivalência semântica e ajustar as diferençasculturais com a versão original.

2. MÉTODOS

2.1. DESCRIÇÃO DO INSTRUMENTO ORIGINAL

A CAMI é uma escala multidimensional, originalmente de língua inglesa,elaborada por Taylor e Dear (1981). Dois objetivos direcionaram seu desenvolvi-mento: a construção de um instrumento capaz de diferenciar as característicasdas pessoas que aceitam das que rejeitam os doentes mentais na comunidade epoder descrever e explicar as reações da comunidade em relação às unidades deatendimento ao doente mental.

O instrumento consta de perguntas sobre:

a) Dados sóciodemográficos;

b) Conhecimento sobre doença mental;

c) Reações aos doentes mentais;

d) Conhecimento sobre o tratamento hospitalar psiquiátrico;

e) Conhecimento sobre a mudança do tratamento de base hospitalar paraa comunidade;

f) Atitude em relação à política de atendimento na comunidade;

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g) Opinião sobre a necessidade de programas educativos.

A escala é composta de 40 itens distribuídos em quatro sub-escalas (cada umacom 10 variáveis). As respostas para cada uma das questões são distribuídas numaescala tipo Likert de 5 pontos (concordo fortemente, concordo, indiferente,discordo, discordo fortemente):

As quatro sub-escalas são:

1) Autoritarismo: necessidade de hospitalização dos doentes mentais;diferença entre doentes mentais e pessoas normais; importância dotratamento custodial; causas das doenças mentais.

2) Benevolência: responsabilidade da sociedade em relação aos doentes mentais;necessidade de atitudes gentis e simpáticas; desejo de se envolver pessoal-mente; sentimentos anti-hospitalização.

3) Restrições sociais: periculosidade dos doentes mentais; manutenção dedistância social; falta de responsabilidade; normalidade do doente mental.

4) Ideologia da saúde mental comunitária: impacto dos serviços de saúdemental na vizinhança; perigo que o doente mental representa para osvizinhos; aceitação dos princípios da desinstitucionalização psiquiátrica.

A escala original possui qualidades psicométricas adequadas de validade deconstruto, estabelecida através da análise fatorial, assim como consistência interna.Para três das quatro sub-escalas os valores de alfa de Cronbach são elevados:Ideologia da comunidade em relação à saúde mental (α = 0,88); Restrições sociais (α = 0,86);Benevolência (α = 0,76). O coeficiente para Autoritarismo (α = 0,68), embora maisbaixo ainda é satisfatório.

2.2. PROCEDIMENTO

A adaptação transcultural da presente escala para o contexto culturalbrasileiro foi realizada segundo os procedimentos recomendados pela OMS(WHO, 1996), as recomendações da literatura internacional (Vallerand, 1989;Streiner & Norman, 1995) e estudos nacionais (Bandeira et al., 2003; Lima et al,2003a; 2003b).

Antes de iniciar o procedimento de adaptação transcultural um dos autores(Martin Taylor) foi contatado e concedeu autorização para que a escala fossetraduzida e adaptada para o Brasil.

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2.3. EQUIVALÊNCIA CONCEITUAL

Foi realizado um painel de discussão formado por uma comissão de especialistas(dois psiquiatras, uma epidemiologista, duas psicólogas, uma socióloga e umaenfermeira) para examinar as quatro dimensões do instrumento original(autoritarismo, benevolência. restrição social e ideologia da comunidade emrelação à saúde mental). Buscou-se examinar a pertinência dos itens de cadadimensão para avaliar as atitudes da comunidade em relação aos doentes mentaisna realidade brasileira.

2.4. EQUIVALÊNCIA SEMÂNTICA

2.4.1. TRADUÇÃO E REVISÃO DA TRADUÇÃO POR UM GRUPO BILÍNGÜE

A primeira etapa da adaptação transcultural consistiu na tradução da CAMIpara a língua portuguesa, revisada por dois psiquiatras e um psicólogo bilíngües.

2.4.2. RETRADUÇÃO

A versão em português foi retraduzida para o inglês por uma tradutorajuramentada bilíngüe, com experiência na área de saúde pública, cuja línguamaterna era o português. A versão em inglês, produzida pelo processo deretradução, foi comparada à escala original e avaliada em seguida por um grupode profissionais bilíngües com experiência na área: dois psiquiatras, umaepidemiologista e uma psicóloga.

2.4.3. PAINEL DE DISCUSSÃO (AVALIAÇÃO DA RETRADUÇÃO)

Foi realizado um painel de discussão (já descrito acima) com o objetivo de seidentificar inconsistências a serem corrigidas entre a escala traduzida e a escalaoriginal. O objetivo foi obter uma tradução mais precisa da escala.

Foi avaliada a equivalência semântica comparando a escala original com aretradução. Foi utilizado um formulário específico de forma a não permitir aidentificação dos itens, se original ou retraduzidos. Para avaliação do significadoreferencial foi utilizada a escala analógica visual – Visual Analogue Scale (Streiner &Norman, 1995) e a equivalência entre os itens foi julgada numa escala de 0 a100%. A avaliação do significado geral dos itens foi feita em outro formulárioclassificando-os em: inalterado, pouco alterado, muito alterado e completamentealterado (Moraes et al., 2002).

A partir dessa comparação, alguns termos da tradução foram revisados parauma melhor adequação ao contexto brasileiro. Após essa discussão, todas as ques-tões foram mantidas, a comissão apontou as reformulações a serem adaptadas naredação das questões e foi obtida uma versão preliminar da escala brasileira.

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2.4.4. ESTUDO PILOTO E REVISÃO DAS QUESTÕES A PARTIR DO ESTUDO PILOTO.O estudo piloto teve como objetivo ajustar a formulação das questões da

versão preliminar da CAMI-BR à da população-alvo na qual a escala foi aplicada,a fim de se assegurar uma boa compreensão e precisão do texto.

Este estudo foi realizado em uma amostra de 14 indivíduos, moradores nasproximidades de residências terapêuticas, no bairro de Jacarepaguá. As entrevistasforam realizadas 5 pesquisadores e 2 coordenadores de campo. Para a aplicaçãoda escala, o entrevistador utilizava um cartão contendo as alternativas de resposta,para facilitar a compreensão e memorização dos números correspondentes acada item.

2.5. TREINAMENTO DOS PESQUISADORES

O treinamento foi realizado pela equipe de pesquisadores do Núcleo dePesquisa do Instituto Municipal Juliano Moreira (IMASJM). Foram treinadosapós seleção 5 pesquisadores de campo: 2 psicólogos e 3 graduandos, sendo 2 empsicologia e 1 em medicina. Os pesquisadores de campo passaram por um treina-mento de 40 horas, que incluiu a leitura minuciosa da escala individualmente eem conjunto, discussão de artigos relacionados ao estudo, simulação de entrevistasupervisionada pelos coordenadores e experimentação de aplicação da escala emcampo, com discussão dessa experiência.

Cada entrevista teve duração aproximada de 20 minutos. O objetivo doestudo-piloto foi verificar, junto ao entrevistando, os termos e palavras de difícilcompreensão e perguntas que não estivessem claras. No decorrer do estudo-piloto, procuravam-se palavras ou termos mais adequados, claros e simples parasubstituí-las, visando a adaptação ao contexto cultural brasileiro.

A cada aplicação as modificações necessárias eram feitas e a escala reaplicadaaté que não se detectassem mais dificuldades de compreensão durante as entrevistas,sendo elaborada a versão teste final da escala.

Este projeto foi apresentado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisado IMASJM e os participantes concordaram em assinar o termo de consenti-mento informado.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

No painel de discussão considerou-se que os 40 itens que compõe a escalaoriginal contemplam satisfatoriamente as quatro dimensões que represen-tam as atitudes da comunidade em relação aos doentes mentais no contextocultural brasileiro.

Na avaliação formal da semântica entre a retradução e o instrumento originalfoi observada boa equivalência. Segundo a escala analógica visual todos os

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quarenta itens da escala apresentaram uma equivalência de significado referencialentre 90 e 100% e o significado geral se manteve inalterado em 90% dos itens epouco alterado em 10% (Tabela 1).

Esta versão preliminar da escala foi utilizada no estudo piloto e os 17 itensmodificados (4 na dimensão autoritarismo; 2 na sub-escala restrição social; 5 nasub-escala benevolência e 6 na sub-escala ideologia comunitária de saúde mental)estão apresentados nos quadros 1, 2, 3 e 4. A primeira coluna apresenta a versãooriginal da escala; a segunda a tradução; e a terceira a versão adaptada após aretradução, a discussão no painel de especialista e as entrevistas realizadas com apopulação durante o estudo piloto.

Tabela 1Análise da equivalência referencial e geral entre os itens da retradução e o instrumentoCAMI original.

Quadro 1Questões adaptadas da sub-escala Autoritarismo.

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Quadro 2Questões adaptadas da sub-escala Restrição Social.

Quadro 3Questões adaptadas da sub escala Benevolência.

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Quadro 4Questões adaptadas da sub-escala Ideologia comunitária de saúde mental.

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As modificações realizadas tiveram como objetivo principal tornar o instru-mento compreensível e aceitável pela população alvo. Envolveram trocas porexpressões mais utilizadas em nosso contexto, procurando aumentar a equivalênciade significado geral dos termos.

Na primeira sub-escala (Autoritarismo), no item 2, a expressão atrás de portasfechadas foi trocado por trancados porque foi considerado que este termo teria umsignificado mais claro de exclusão. No itens 3 e 4 a estrutura da frase foi modificadapara que a afirmativa ficasse mais adequada a nosso contexto cultural. No item10 a palavra virtualmente foi excluída por confundir o respondente.

Na segunda sub-escala (Restrição social), nos itens 2. 3 e 4 , a mudança daestrutura da frase tornou a afirmativa mais clara para a população alvo. No item10, o verbo supor foi substituído por pensar, por ter um uso mais corriqueiro napopulação e manter o significado da afirmação.

Na sub-escala 3 (Benevolência),nos itens 2 e 8, a palavra impostos foi substituídaspor recursos públicos por ser mais adequada à nossa realidade. A estrutura da frasenos itens 3 e 4 foi modificada para que a afirmativa ficasse mais objetiva. No item9, a expressão serviços de atendimento pareceu mais adequada do que simplesmente apalavra serviço, de significado muito amplo.

A escala 4 (Ideologia comunitária de saúde mental) foi a que apresentou maismodificações. A estrutura da frase nos itens 1, 3, 5 e 8 foi totalmente modificadapara que seu significado ficasse claro o suficiente para a população alvo. No item7 a palavra locais foi suprimida por parecer desnecessária para a compreensão daafirmativa. No item 9, a palavra amedrontador foi substituída por assustador, uma vezque essa última expressão é mais utilizada em nosso meio.

Finalmente, na escala de resposta, as expressões: concordo fortemente (Strongly

agree) foi adaptada para concordo totalmente, discordo fortemente (Strongly disagree) paradiscordo totalmente. O termo totalmente pareceu aos especialistas traduzir melhor aintensidade dos extremos da escala de respostas. A expressão indiferente (It makes no

difference) foi modificada para tanto faz por ser o termo usado de forma maiscorriqueira e portanto ser melhor interpretado.

Versão Brasileira da escala Atitudes da Comunidade em Relação aos DoentesMentais – CAMI-BR

A versão brasileira da CAMI manteve os quarenta itens da escala original e asquatro dimensões: 1. Autoritarismo 2. Restrição Social 3. Benevolência 4. IdeologiaComunitária de Saúde Mental.

Com a escala adaptada para o contexto cultural brasileiro será possível entãorealizar o estudo de sua validação, visando estabelecer as suas propriedadespsicométricas de validade e fidedignidade, estudo que já se encontra em anda-mento pelos autores deste artigo.

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Quadro 5Versão síntese da escala Atitudes da Comunidade em Relação ao Doente Mental - CAMI-BR.

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Após os procedimentos de adaptação transcultural recomendados pela litera-tura da área (Vallerand, 1989; Streiner & Norman, 1995), a escala CAMI-BR semostrou uma escala de fácil aplicação, linguagem clara, acessível e de fácil com-preensão pela população-alvo. Nas várias discussões no painel de especialistas,concluiu-se que não seria necessária a inclusão de novas dimensões ou itensna escala, sendo a construção original suficiente para captar as atitudes dacomunidade em relação aos doentes mentais no contexto cultural brasileiro.As modificações semânticas realizadas não implicaram na modificação do sentidoda afirmação, mas tiveram o objetivo de tornar a escala mais compreensível paraa população geral.

A adaptação transcultural e validação da escala CAMI-BR possibilitará arealização de pesquisas brasileiras com comparabilidade internacional. Sua aplica-ção ao nosso contexto, através de estudos sistemáticos, resultará em medidas ob-jetivas da atitude e do conhecimento da vizinhança em relação a usuários e servi-ços. Também poderá oferecer orientação a projetos que resultem no estreitamentodas relações entre estes segmentos, aumentando sua capacidade de conviver com asdiferenças e potencializarão com certeza a ação dos serviços substitutivos.

* Agradecimentos: Este projeto teve financiamento do CNPQ processo n° 485609/2006-1Agradecemos a participação dos pesquisadores de campo, da comissão de especialistas edos moradores de Jacarepaguá que fizeram parte do estudo.

R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S

ADORNO, T. W.; FRENKEL-BRUNSWICK, E.; LEVINSON, D. J.; SANFORD, R. N. The

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Recebido em: 21/10/2008Aprovado em: 27/12/2008