a fortaleza que se levanta da derrota

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A FORTALEZA QUE SE LEVANTA DA DERROTA

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Page 1: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

A FORTALEZA

QUE SE

LEVANTA DA

DERROTA

Page 2: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

2

ÍNDICE

Índice........................................................................................................................2

Anti-errata.................................................................................................................3

Prefácio……………………………………………………………………….........4

Introdução à música………………………………………………………………..5

Abertura em Dó Menor…………………………………………………………….6

Dança de roda…………………………………………………………………….12

Desafinação aguda………………………………………………………………..18

Clave de fá (do)…………………………………………………………………...29

Clave de sol……………………………………………………………………….46

Valsa triste..............................................................................................................73

Page 3: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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Anti-errata

Feitas, refeitas e contrafeitas as correcções gráficas desta autobiografia, de cada vez

que se fazia, refazia e contrafazia, sempre uma “gralha” aparecia.

Não nos atrevemos, pois, a pôr aqui uma errata, porque, lògicamente, ela própria

podia ter erros. Confiamos inteiramente na capacidade de descodificação – hetero-correcção

por parte do prezado leitor que, aliás, não é burro nenhum, porque – repita-se – se o fosse,

não iria ler esta história.

Page 4: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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PREFÁCIO

Não tendo tido a graça de ser nado e criado no Portugal propriamente dito que, desde

Afonso Henriques, é Lisboa e o resto é paisagem e tendo tido, portanto, a desgraça de nascer

e crescer na restante paisagem, ainda por cima no Alentejo dos “mouros” tão sornas que só

por milagre se poderá entender a produção das searas, cujas, em tempos idos faziam do

Além-Tejo o celeiro da Europa [mas graças a Deus nos nossos dias europeus de Bruxelas e

Bijeus o Alentejo está mais civilizado com as quotas de produção da “sociedade de mercado”

(que sociedade não é de mercado?)] e então Manuel da Graça imigrou neste cantinho

ocidental da Europa, país de brandos-costumes, jardim à beira-mar plantado (com Jardim na

Madeira democraticamente eternizado) andou pelo Cu de Judas; estanciou no Porto que é

uma nação e daí o nome de Portugal, o país mais português do mundo; acabando por se fixar

em Coimbra, capital portuguesa da cultura, porque aqui quem não é doutor fala com quem é

doutor e quem não fala com quem é doutor fala com quem fala com quem é doutor e deste

modo o Manuel, aprendendo umas coisas na escola da vida e ensinando outras na escola

formal, dá agora à estampa A Fortaleza que se levanta da derrota cuja, não sendo

candidata ao Prémio Nobel da Literatura tem, todavia, estilo literário cabonde, que

ultrapassa, de longe, a temática restrita do alcoolismo e do seu público destinatário, através

da ironia de apontamentos psico-sociais de personagens como a Avó que, não sabendo ler

nem escrever e ignorando o que quer que fosse de códigos esotéricos, sabia descodificar as

horas nos hieróglifos do relógio de sala, gravados com riscos esquisitos no mostrador (I, II,

III, etc.) e não como o Manuel aprendera na Mestra como deve ser (1, 2, 3, etc.) ou a proeza

aritmética do Tio Catorze que, igualmente analfabeto toda a vida, conseguiu aprender a

contar até 14, daí lhe advindo a garbosa alcunha, ou a ética financeira elementar da

terminante recusa de pagamento do quarto alugado pelo Manuel, porque quem lá dormira

fora a mala e não o dono dela e, assim sendo, era ela e não ele a devedora do numerário

exigido pela credora.

Coimbra, 27 de Dezembro de 2008

Severo de Melo

Page 5: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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INTRODUÇÃO À MÚSICA

A Fortaleza que se levanta da derrota é a história de vida de um homem que foi

bebedor inveterado até aos trinta anos. Com esta idade, bem municiado de tudo o que fosse

artilharia alcoólica e após várias observações médicas, admitiu ser um doente e, mesmo

sem saber como, concordou com o respectivo tratamento.

Confiou naquele médico invulgar que o examinou, o Dr. Leitão de Barros e aceitou

em Lisboa, no Verão de 79, internamento de trinta dias no Centro António Flores, Hospital

Júlio de Matos.

Muito tempo levara a adquirir a força necessária para naquele dia ter a coragem

suficiente de fazer a mala e partir. O enófilo de carreira virou navegante de primeira

viagem e foi parar ao hospital. Apesar dos anos de balda não era com aquela triste figura

que se queria identificar. Sabia que o vinomaníaco era, no mínimo, um homem muito

limitado e isso incomodava-o. Quis, por isso, aproveitar a oportunidade que lhe surgiu de

vir a ser outra pessoa. Ninguém lhe pagou nem o premiou por tomar tal decisão. Fê-lo

espontaneamente.

Não é de ânimo leve que um homem concorda em deixar – para o resto da vida – de

devorar bebidas alcoólicas em quantidade industrial, como ele o fizera durante vinte anos.

Foi, sem margem para dúvidas, um activista militante da Vinicultura Portuguesa. As

pessoas habituaram-se a identificá-lo exactamente com aquilo que ele era: um vinolento.

Quem o conhecia dificilmente aceitava que este fabiano pudesse mudar para melhor. Teve

que aprender a defender-se das mentalidades somíticas que, não tendo discernimento para

alterar o rumo da própria vida e acomodando-se à mediocridade da sua existência, não

tinham capacidade para compreender e aceitar quem muda de direcção.

No entanto este homem nunca desistiu e ofereceu resistência a tudo e a todos. Trinta

anos depois vem contar, na linguagem que lhe é característica – com a qual procura

explicar sorrindo e com prazer – a evasão da prisão perpétua a que fora condenado.

Não lhe passando pela caixa dos pirolitos ser exemplo moralista para ninguém, o

desejo deste comum dos mortais é contar para a eventual posteridade uma história que

possa fornecer ao leitor materiais de construção para uma Fortaleza que se levanta da

derrota.

Cordialmente,

o autor,

Manuel da Graça

Page 6: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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ABERTURA EM DÓ MENOR

Decorria a Primavera do Ano de MCMXLIX da Era de Cristo.

Naquela tarde de quarta-feira – 4 de Maio – nasceu na Casa de Saúde de Portalegre,

freguesia de S. Lourenço – concelho e distrito da mesma cidade – um menino, filho de

Domingos da Rosa Félix da Graça e de Maria Monteiro Fragoso, sendo ao bebé dado o

nome de Manuel Francisco Fragoso da Graça e apadrinhando o acto Manuel Marques e

Mariana da Conceição.

O gaiato cresceu no campo embalado na ondulação da farta seara alentejana, criado

no monte – ao sabor do tempo e com o gosto das coisas campestres – na Herdade da Vinha,

propriedade do então lavrador Senhor José Elias Martins, onde moravam e trabalhavam a

terra, a mãe camponesa e o pai operário. O garoto era livre na brincadeira, de que a apanha

da azeitona, a monda do trigo e a ajuda aos pais no trabalho eram pagode. O que mais

gostava de fazer era regar, enxada nas mãos, pé descalço pelo rego, abrindo e fechando

regadeiras. Se fosse preciso até regava a horta toda. Acima de tudo era disciplinado, porque

os pais analfabetos aprendiam na escola da vida a pedagogia social da educação.

Uma das fainas agrícolas que mais o fascinava era a lavoura. Esquecia-se, sentado

numa parede, a olhar os ganhões que lavravam com juntas de bois, apreciando – sem

pestanejar – o virar do arado, ao mesmo tempo que os homens cantavam:

“Ò morte anda cá, anda cá, Delicado é o ganhão,

Quero-te dar as queixas. Que chama ao toucinho bóia.

Quem não deves levar, levas, Ao pão de Deus marrocate,

Quem deves levar cá deixas. E à açorda, calatróia.

Eu sou devedor à terra.

A terra me está devendo.

A terra pague-me em vida,

Eu pago à terra em morrendo.”

Page 7: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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Na casa em Portalegre também havia uma horta. Para ser regada, o rapaz ia buscar

um burro a casa de um tio, a fim de tirar água à nora. Engatava o burro à carroça, assim fazia

o trajecto e por vezes, os colegas gozavam-no “Passaste de cavalo para burro?”

No final da rega e já depois de ter entregue ao tio a carroça e o burro, mudava de

roupa e agora de motorizada, voltava a descer a Rua do Comércio, para estacionar o

velocípede à porta do Café Facha, onde entrava com descontracção, estupidez natural e

elegância no andar, para beber um café e um bagaço. Nunca ninguém foi suficientemente

corajoso para interpelar o hortelão engravatado que sabia ser.

O Manuel pelos dois anos de idade

O primo Zé – um solteirão que fazia parte da família, com o qual o miúdo sempre

teve um relacionamento porreiraço – ensinou-o a andar de bicicleta, ainda mal chegava aos

pedais, no caminho de terra batida de acesso ao monte, depois de se deixar a estrada

nacional. Ao mesmo tempo que queria aprender a pedalar, tinha medo de cair e só o perdeu

quando o primo o deixou mergulhar, de propósito, sobre uns torrões de terra lavrada que lhe

amorteceram a queda. Finalmente cresceu-lhe a confiança de que precisava e foi para a via de

alcatrão praticar, pois naquele tempo passava um automóvel de manhã, outro à tarde e

nenhum à noite, que era de agasalho.

Quem havia de dizer que, anos mais tarde, seria com aquela mesma máquina que se

iria estrear e aprender a andar na tão querida e bem avinhada vida nocturna?...

Page 8: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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Com catorze anos naquela burra a pedal, começou a ir aos bailes à Urra e a Caia, ao

Reguengo e a Alegrete, aos Fortios e a Nisa, a Monforte e Assumar, quase sempre com o

Caetano, com o qual aprendeu a dançar e a fumar e se não tinha tabaco o amigo passava-lhe

um cigarro de quando em vez pelo intervalo das vigas do tecto do quarto, quando residiu nos

Telheiros, pois moravam de casas pegadas e a parede era comum a ambos os aposentos.

Embora não fizesse parte da família e com domicílios separados, no monte habitava

um idoso, que não tinha parentes e – como a azinheira da “Grândola, vila morena” do Zeca

Afonso – já não sabia a idade. Falava muito sozinho e pouco fazia, a não ser granjear comida

para o gado e pouco mais. Conseguindo contar até catorze, era conhecido pela galharda

alcunha do Ti Quatorze. O Manuel gostava de falar com ele e de o acompanhar à cidade,

quando lá iam de carroça, puxada pelo molengão do burro, que o bom idoso lhe deixava

conduzir, o que dava ao miúdo um sentimento de poder, concretizado no comando da viatura.

Aos cinco anos o rapazinho foi para a Mestra, na cidade, a cinco quilómetros do

monte onde habitava. Ia na manhã de segunda-feira no transporte público regular, ficava em

casa da avó paterna durante a semana e regressava ao campo na sexta à tarde, quase sempre

com o pai, que voltava da fábrica. O almoço era umas vezes em casa da anciã e outras com o

pai na Taberna da Tia Inês do Cuco, que ficava mesmo junto à fábrica.

Em casa da avó havia sobre uma cómoda um relógio grande de caixa de madeira

trabalhada, com o vidro da porta artisticamente pintado, que fazia parte da precária mobília

da anciã.

Aquele grilo fazia uma certa confusão na cachimónia do miúdo, por no mesmo não

saber ver as horas. Os números não eram iguais aos que a menina Madalena lhe tinha

ensinado na Mestra. Não, não eram árabes… Eram romanos! E mais admirado ficava por a

avó, sem saber ler nem escrever, lhe saber ler as horas, nos riscos do zanzo.

Quem havia de dizer que, cinquenta anos depois, é ele que dá corda ao

aparelhómetro, única relíquia que lhe resta daqueles tempos de menino e moço...

Na capelinha da tia Inês do Cuco, onde o pequeno tomou gosto ao vinho branco e deu

os primeiros passos na carreira de bebedolas com os trabalhadores que naquela venda faziam

a refeição do meio-dia, todos o consideravam capaz de superar a dificuldade que o pequeno

tinha em chegar ao balcão mais alto do que ele e ficavam extasiados com a ligeireza com que

invertia de uma só vez um copo de cinco, assim chamado, por custar 5 tostões (para quem

não percebe patavina destes câmbios, ¼ de cêntimo).

Page 9: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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Praticando e aprendendo ao longo de vinte anos chegou à perfeição científica da

copologia, atingindo o escalão profissional de copofónico e ocupando honrosos lugares na

arte de vira-milho de garrafas, garrafinhas e garrafões.

Na Mestra, fazendo as primeiras contas e aprendendo as primeiras letras, fazia a

junção das mesmas em casa, praticando nos livros de còbois, escritos num português que

ainda honrava a língua de Camões e de fazer inveja aos livros escolares de hoje, que nem

para atear as cavacas servem – negam-se a arder – sabendo interpretar a leitura, era livre no

divertimento costumeiro com o irmão mais novo, brincando com ele aos bandidos.

O Manuel montava a azémola do bandido a fugir do xerife, o irmão, representando a

herdade o Far-west americano, na qual passava uma ribeira, que a cabeça do aprendiz de

galdério interpretava como fronteira América-México e, ao passá-la, sentia-se seguro, pois o

irmão já não podia prendê-lo.

O culto de Baco progredia. Quando almoçava com o pai davam-lhe sempre aquela tal

medida e se o respectivo copo não aparecesse ficava amuado, encostado ao balcão, mudo e

quedo que nem um penedo. O Ti Zé tasqueiro adivinhava: “Não deste um copo ao gaiato, aí

tens o que ele quer…”

E era. Davam-lhe então um de cinco e ia feliz da vida para a brincadeira na rua.

Com sete anos entrou para a Escola Primária, fez a primeira e segunda classes na

escola da Corredora e a terceira na escola da Estrada da Serra. No intervalo das aulas nunca

jogou à bola. Sentado num canteiro, presenciava o jogo e guardava os haveres dos outros

miúdos. Querem saber porquê?

Uma vez andava a brincar na esplanada do Café Vitória e em dado momento viu

entrar um polícia fardado, que retirou o crachá e o meteu no bolso. O gaiato não percebeu e

parou a brincadeira para observar o que o bófia ia fazer. Este dirigiu-se ao balcão, pediu um

copo de branco, virou-o de uma assentada, pagou e, ao encaminhar-se para a saída, voltou a

pôr a insígnia. Antes, porém, de transpor a porta, parou junto de uma mesa onde estavam

sentados quatro indivíduos em renhida disputa na velha questão de salvação da Humanidade

fado-futebol-e-fátima. O guarda, que não era perdido nem achado naquele debate, meteu o

bedelho e as coisas deram para o torto.

Tanto encanzinou a conversa que, a certa altura, um conviva perdeu as estribeiras e

chegou-lhe a roupa ao pelo. A fim de manter a autoridade, o agente deu voz de prisão aos

civis e foram todos de cana.

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Foi um festim para a garotada, que agaiatou o acontecimento pelas ruas até à

esquadra, onde, passado algum tempo, ficou o patrocinador do evento e os civis retomaram a

gandaia.

Moral da história: por causa da bola, o guarda saiu-se mal. Melhor seria ter entrado

no Café a aliviar a sede e ter saído sem se meter onde não era chamado, para não passar pelo

vexame que a insânia lhe provocou, até porque, por causa disto, mais tarde foi transferido.

Ficando gravado na cabecinha do Manuel, este episódio desinteressou-o para sempre

de assistir a tudo o que fosse bola. Enquanto os demais miúdos saltavam a parede do campo e

outros faltavam às aulas para ir ver os treinos, o Manuel nem na hora do recreio ia em

futebóis, limitando-se a observar os colegas, sentado num dos canteiros que ladeavam a porta

da escola da Corredoura, onde foi gratificado com o talento da Dona Mimi – professora da

quarta classe, que o preparou para o exame de admissão – cuja Senhora sabia tanto da poda

que – meio século depois – o Manuel ainda dela se recorda tão bem como se tivesse sido

ontem.

Os quatro anos de ensino primário não chegavam para prosseguir os estudos. Como

se ao aluno lhe faltassem conhecimentos, tinha de fazer um exame de admissão à Escola

Industrial e Comercial e/ ou ao Liceu Nacional, havendo quem fizesse o exame aos dois

estabelecimentos de ensino, porque vale mais um pássaro na mão que dois a voar: se

chumbasse num deles, podia bem ser que passasse no outro.

O exame de admissão não era nada fácil – era o filtro da época, tal como hoje os

décimos anos o são – até lhe chamavam a quarta classe bem sabida. Reprovar era igual a

trabalho no campo ou na fábrica. Não havia mais consideração pelo estudante, porque

naquele tempo os alunos contavam-se pelos dedos de uma mão e eram bem conhecidos dos

professores.

Embora miúdo e com a cabeça em vinha-d`-alhos, o Manuel aprendeu a dar valor ao

trabalho, começando a observar que nem todos os rapazes da idade dele tinham a

possibilidade de estudar e o Caetano foi um dos tais que toda a vida trabalhou no campo. Aos

pais ficou o Manuel eternamente agradecido pela oportunidade que lhe deram de um dia o

mandarem à escola.

Naquele tempo, para quem colhia no campo o pão-nosso-de-cada-dia, pôr um filho

a estudar era uma ginástica bem difícil, ainda por cima agravada pela inveja dos unhas de

fome que, com algum dinheiro e poder, não mandavam estudar os filhos para além da quarta

classe, pois tal não era necessário para se arranjar trabalho nas fábricas e ser operário na

Finicisa até era um luxo, dizia-se.

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No entanto, os pais do Manuel viam mais longe e o rapaz chegou onde nunca pensou chegar:

professor efectivo de Trabalhos Manuais do Ensino Preparatório.

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DANÇA DE RODA

Nessa época dominava o conceito sócio-matemático de que a Escola Industrial estava

para os pobres como o Liceu Nacional estava para os ricos, mas com dez anos, o nosso

Manuel não saberia fazer a correlação, sabendo no entanto dizer que só queria fazer exame à

Escola e assim foi. Preparou-se para a prova com a querida professora da quarta classe, Dona

Mimi e o marido desta, o senhor Coelho, uma figura que sabia muito de Língua Portuguesa e

que instruiu o Manuel no idioma que ainda hoje não esqueceu.

A verificação de conhecimentos do exame de admissão constava da prova escrita, em

duas páginas de papel de trinta e cinco linhas e da prova oral, cuja o rapaz nunca esqueceu.

Foi o próprio Director da Escola que, ao chamá-lo, o sentou ao colo e lhe fez perguntas sobre

o mapa de Portugal e, porque se chamava Manuel, o professor perguntou-lhe pelos reis da

História com o nome do rapaz, cujo só sabia o Manuel I, ficando pois a História de Portugal

manuelinamente prejudicada a 50%.

Este relacionamento afectuoso deu origem a que o Manuel não-monarca ficasse

sempre a gostar daquele docente e, sempre que se cruzavam, o rapaz estendia a mão para

cumprimentar o Senhor Director, que uma vez lhe perguntou o porquê desta saudação,

respondendo-lhe o cachopo que era uma retribuição pela boa lembrança de ele o ter sentado

ao colo no supra dito exame.

E assim ficaram de bom relacionamento durante a meia dúzia de anos que o rapaz

frequentou aquele estabelecimento de ensino.

Tal como hoje, o Ciclo Preparatório tinha a duração de dois anos. Do primeiro para o

segundo ano o aluno transitava com o mínimo de vinte e nove valores, que era a soma das

notas dos três períodos em cada disciplina. Vinte e oito numa delas e o estudante reprovava o

ano completo, ou seja, não se chumbava por disciplinas. No final do segundo ano fazia-se

obrigatoriamente exame de Língua Portuguesa e de Matemática. Do mesmo modo tinham

que arranjar na mesma os mesmos vinte e nove valores a cada cadeira que, aliás, não

salvavam o discípulo se reprovasse numa delas. O Manuel dispensou da oral de Português

com catorze – aquela quarta classe bem sabida deu frutos – porém, em Matemática, andava

um bocado à rasca – até por causa da tasca – mas fez uma prova escrita menos rasca com a

ajuda da Dona Lúcia Malcata, por ter tido um professor tão bom, tão bom, que até lhe fez

esquecer o que já sabia fazer com olhos de ver: operações de fracções.

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Na prova oral, foi um regalo ouvir o professor José Nunes a dizer que o aluno não

percebia um chavo de Matemática, no entanto, tinha que se passar, senão nunca mais fazia

um curso.

E assim foi. Meia dúzia de perguntas sobre figuras geométricas e o problema da

Matemática ficou aritmeticamente resolvido.

As Escolas Industriais e Comerciais proporcionavam aos alunos os cursos de:

Formação Feminina, só para raparigas e Geral de Comércio, comum aos dois sexos;

Montador Electricista, Carpinteiro Marceneiro e Formação de Serralheiro, só para rapazes.

Por sugestão da chefe da secretaria, a Dona Regina, o Manuel matriculou-se no Curso

Geral de Comércio. Porém e por incúria própria, esqueceu-se que não sabia nem um, nem

dois, nem três chavos de Matemática e o Curso tinha um cadeirão chamado Cálculo

Comercial, leccionado por aquele pedagogo que o passou ao colo naquela oral e que tinha

por hábito dizer aos alunos, quando não davam uma p’rà a caixa na matéria que era exímio a

ensinar “Vocês não percebem nada disto, o Cartucho que o diga”.

Cartucho era a alcunha do professor por quase não ter pescoço e que – para pasmo

dos alunos – ele conhecia muito bem. Resultado: no final do primeiro período o Manuel

considerou-se chumbado, pelo número de negativas obtidas, que lhe fizeram perder o

interesse pelos estudos.

Para um rapaz de treze anos esta indiferença tornou-se perigosa.

Passou a ir somente às aulas de que gostava e nos feriados que dava aos professores

ia, com as más companhias da praxe – quando tinha dinheiro – até ao Café da Praça, muito

perto da escola, virar umas aguardentezinhas. O gosto do vinho branco já o conhecia e era

fraco, dizia. O Arnaldo, camarada do Manuel e colega da mesma turma, vivia totalmente

desinteressado da escola e ambos passaram a ser abnegados e devotados faltistas militantes.

Neste contexto, a saga deste grogue heróico começou a tomar forma. O Manuel

passou a dispor de tempo para conhecer a cidade, ou seja, saber onde eram os escoamentos

de vinho, cerveja e tudo o que fosse bebida branca. Entrava sem ser convidado a sair. Foi

uma aprendizagem rápida para a idade e como reprovou comemorou o facto com o Arnaldo e

outros da mesma estirpe, fazendo o Rali das Tascas, que começava e acabava ciclicamente no

Café da Praça. Quando chegou ao Café, o rapaz sentou-se à chuva, na maior das

descontracções. Os amigos é que o recolheram. Anos mais tarde quis repetir o Rali, sem no

entanto ser capaz de o terminar, porque as betesgas do briol tinham triplicado e o rapaz ficou

alcoolicamente bem disposto a meio do percurso.

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No ano seguinte matriculou-se – com gosto – no Curso Formação de Serralheiro.

Deixou de andar com o Arnaldo e passou a acompanhar com o Abílio, mais conhecido por

Pa-a-ar-da-linho, porque, além de ser gago, era ainda mais moinante e desprendido da escola

que o outro.

Com este novo sabido, o Manuel passou a andar nos bailes, festas, romarias e noites

perdidas.

Começou a olhar para as cachopas e o objectivo de cada baile era, por aposta, pedir

namoro a uma moça. Quando não conseguia este propósito, ou porque elas não lhe aceitavam

o galanteio, ou porque o baile tinha mais rapazes que raparigas, dava-se por vencido e ia para

os copos com os mais velhos, com os quais sempre soube manter um bom relacionamento,

em qualquer localidade para onde quer que fosse.

Não reprovou neste ano lectivo, porque estava no curso que preferia, mas transitou de

ano à rasca. A surpresa veio depois: não passou as férias no monte, como era hábito, o pai

arranjou-lhe trabalho na fábrica onde laborava. O rapaz ainda o questionou:

- Então o ano passado é que chumbei e este ano é que vou trabalhar?

- O ano passado não precisavam de serralheiros. Este ano é que precisam.

E lá foi o cachopo de catorze anos – não, não era então considerado exploração de

mão de obra infantil, restando saber, porém, se os adultos não são igualmente explorados –

parar ao mundo do trabalho como aprendiz de torneiro mecânico, a fazer oito horas e a

ganhar sete escudos e sete tostões à jorna (menos de quatro cêntimos). O rapaz não sabia o

que havia de fazer a tanto dinheiro.

Recebia à sexta-feira e como o caminho para a baiuca da Tia Inês do Cuco era a

descer e a descer todos os santos ajudam – para cima é só um e é coxo – era ali que fazia o

câmbio de algum dinheiro por carapulos de quarto de litro, com outros serralheiros que,

como ele, não gostavam nada de ver os copázios cheios.

Ali trabalhou as férias do Verão e o que ganhava chegava-lhe para a berzundela.

Pelos Santos Populares fez directas consecutivas.

Saía às cinco da tarde da fábrica, corria a casa mudar de roupa, jantar e ir de seguida

para os bailaricos até de manhã.

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Diagrama da casa de família em Portalegre.

Fazia o percurso de bicicleta, mesmo que tivesse que pedalar vinte quilómetros para

cada lado, quando o baile era no Assumar. A distância e a perigosidade do caminho – ao

longo da via-férrea, cruzando-se com o pú-pú das 5 da manhã – nunca lhe meteram medo.

Sozinho ou acompanhado, o que interessava era ir ao baile.

Passava por casa para mudar de fardeta, vestia o fato-macaco e lá ia para a fábrica,

onde tinha que estar religiosamente ao alvorecer das oito horas, sob a vigia do pai, que nunca

o deixou ir para a cama depois de três directas seguidas. À quarta arreou o esqueleto.

Foi assim durante os meses de Julho, Agosto e Setembro. Estávamos em 64.

Quando mais tarde o pai lhe permitiu substituir a bicicleta pela motorizada, passou a

ir a três bailes na mesma noite. O Barradas de Caia ensinou-lhe a desligar o conta-

quilómetros, para marcar só os que o pai podia saber. Entretanto, esqueceu-se que gastava

mais gasolina, o que levou o pai a colocar-lhe o seguinte problema de Matemática: “Como é

que só andaste estes quilómetros e gastaste a gasolina que aqui falta?!...”

Na primeira oportunidade resolveu o problema: o ciclomotor passou a trabalhar a

petróleo, mais barato que a gasolina, cujo não faltava lá em casa por ser o combustível dos

candeeiros, passando a ter outro problema: o escape fazia muito fumo.

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Uma vez foi o agente Ramalho do posto da Polícia de Viação e Trânsito que lhe chamou à

atenção para o facto e aos seus quesitos lhe foi respondido que no próximo fim-de-semana o

escape já seria limpo.

E não pagou a multa.

Aliás, nunca mais pagaria.

O senhor Clemente – de acordo com o nome de clemência de baptismo, também

morador nos Telheiros e da mesma polícia agente – tinha a prévia amabilidade social de

avisar o Manuel e sua maralha sobre a escala de serviço do dito posto e, posto isto, o serviço

de Deus, da Pátria e da Família, zelosamente desempenhado pelo subchefe Santos e pelo

agente Ramalho, ficava estrategicamente sabotado pelo Manuel e respectivos moinantes, ao

contornarem o posto pelo olival, quando vinham dos bailes quase de dia, uns sem luz, outros

sem documentos, quase todos bêbedos.

Embora boémio e encandeado pelas luzes da vida nocturna, aprendendo, no entanto, o

rapaz a trabalhar – e o que fazia, fazia-o bem feito – depressa se tornou exímio no torno

mecânico.

De todas as máquinas com que operou na escola, o torno foi aquela que mais o

fascinou, no qual arredondou madeira, ferro, aço e – por incrível que pareça – numa manhã

torneou e abriu uma catrèfada de carretos em ferro fundido sem partir nenhum, mesmo que

estivesse a cabecear agarrado à máquina, como acontecia muitas vezes, sem nunca se ter

ferido, arrelampando os olhos no momento crucial do ferro de corte a bater na bucha do torno

e por instinto, desligava o automático.

Quando não tinha trabalho definido, torneava pedaços de madeira, previamente

afeiçoados na carpintaria em paralelepípedos, dos quais saíam cabos para limas, nunca

demais numa fábrica como era a Robinson Bros.

Apesar de pândego, este sucesso no trabalho não passou despercebido ao Mestre da

Oficina, que – apertado pela carência de serralheiros, obrigatoriamente incorporados na tropa

e seguindo depois para a Guerra Colonial – disse mais ou menos assim ao pai do Manuel:

- O rapaz ajeita-se e eu preciso de torneiros, porque se me vão embora três mancebos

para o serviço militar.

- Está bem, senhor mestre Félix, ele fica cá e vai estudar à noite.

Quando o Manuel soube desta novidade ficou desaparafusado de todo e foi falar com

a mãe:

- Ó mãe, se eu vou para a noite, nunca mais faço o Curso.

- Então porquê?

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- Porque os bailes são ao sábado, nessas noites também há aulas e eu só posso dar três

faltas. Quando der quatro, estou chumbado.

Não sabendo o Manuel o que é que a mãe foi falando com o pai, a verdade é que o

rapaz não ficou na fábrica, continuando os estudos de dia por mais dois anos para acabar o

raio do curso, porém – envolvido com a maltosa da sua laia e com quatro disciplinas de

exame às costas – viu-se aflito no quarto ano. Foi o José Américo que lhe chamou à atenção

“Se não deixas de andar com o Pardal, chumbas tu e ele” e, antes que tal acontecesse, acatou

o conselho e lá conseguiu ir fazendo as provas.

E – à risca, à rasca e às roscas – acabou o curso aos dezasseis anos com a

classificação de 10,8, porque só ia estudando para ir passando e a cabeça avinagrada também

não dava para mais.

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18

DESAFINAÇÃO AGUDA

Mais ou menos por esta altura e ainda estudante, reparou numa miúda, sua vizinha e

colega no Curso de Formação Feminina, que o rapaz, infelizmente, não frequentava. Por uma

razão biológica natural, o Curso de Formação Feminina era frequentado pelas raparigas e não

pelos rapazes. Amigos, amigos, negócios à parte, rapazes e raparigas eram separados em

turmas femininas e turmas masculinas, de onde se conclui que o cristianismo oficial de Deus-

Pátria-Família não é assim tão antagónico do islamismo oficial de Alá e Maomé Seu Profeta,

havendo pois necessidade de dar formação específica às mulheres e de não a dar aos homens,

porque estes já são bem formados à nascença e daqui a obvia desnecessidade de um Curso de

Formação Masculina.

O Manuel gostou da cachopa e a cachopa gostou do Manuel.

Porém, todavia, contudo – como acabou de se ver e como desde tempos imemoriais é

sabido – a mulher tem pacto com o Diabo e foi um caso dos diabos. Namoriscavam às

escondidas, também porque o rapaz tinha pacto com o diabo da vinhaça, o que não era visto

com bons olhos pela família da moça, agravado o caso pela situação de bigamia dos dois

amores do rapaz: a moça e o briol.

Acompanhava a namorada desde a saída da Escola até ao local onde a Lurdes

apanhava o transporte para casa. Como sempre, o Manuel ia de bicicleta e se queria

acompanhar a pequena na camioneta, tinha que enganar os tios onde deixava o velocípede

durante o dia. Trocava a lâmpada da luz traseira por uma fundida, cuja trazia sempre no bolso

e, como não podia passar no posto da Polícia de Viação e Trânsito sem aquela luz, pois nem

sempre sabia onde é que estava o tal agente Ramalho – se no Posto ou na estrada – que era

mau como qualquer ordinário. Uma vez autuou o próprio pai por não levar luz na carroça.

A tia dava-lhe vinte e cinco tostões (menos de cêntimo e meio) para o transporte, que

era bem mais barato que a multa e fazia o rapaz feliz, sem o saber, por ir para casa na

companhia da gaiata.

O namoro durou sete anos e – variando em relação inversamente proporcional entre o

escalão etário e a capacidade racional – foi sempre um enamoramento descontente para a

Lurdes, pelo procedimento do Manuel que, quanto mais velho era, menos juízo tinha na

mona e continuava fazendo o que mais ia gostando: andar nos bailaricos dos fins-de-semana

a namoriscar as moças que lhe aprovavam o passatempo, mas o rapaz só lhes pedia namoro e

a seguir nunca mais lhes aparecia.

Page 19: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

19

A Lurdes é que não achava piada nenhuma à graça do Manuel da Graça e foram

muitas as vezes que amuou. No entanto, ele voltava sempre e a cachopa aceitava-o.

Sabemos que gostavam um do outro, no entanto, a rambóia era superior à vontade e o

moço não era capaz de resistir à tentação de beber uns canecos, mesmo antes de ir namorar.

Quando chegava aos Telheiros, primeiro entrava na tasca do Basílio e só depois é que ia ter

com a moça.

Concluindo o 3º e último ano do Curso com dezasseis anos – como já dissemos – o

rapaz foi trabalhar como serralheiro mecânico para a Metalúrgica do Crato, onde reencontrou

o Pardal e com ele conheceu, reconheceu e desconheceu todas as tascas da vila e arrabaldes.

Duas semanas depois imigrou para a Figueira da Foz como serralheiro montador de

máquinas na instalação de uma multinacional.

O serviço era perigoso. Por vezes trabalhava-se em altura e uma queda era quase

sempre o caminho prós anjinhos. Embora amigo dos copos, o Manuel tinha mais amor à vida.

Só ali laborou três meses. Tudo o que ganhou gastou-o nos bares da Figueira, para onde ia de

táxi com outros da sua casta quase todas as noites e copos a fio, ao calor e ao frio era um ver-

se-te-avio. Ao fim daquele tempo despediu-se, como outros colegas o fizeram, por o trabalho

não oferecer segurança e foi para a Fábrica de Lanifícios, de Portalegre, com o objectivo de

aí estagiar seis meses, para poder fazer o Exame de Aptidão Profissional e assim concluir o

Curso. Ali era pau para toda a colher, tendo a vintena de camaradas de trabalho uma

característica solidária comum: a fraqueira pela frasqueira. O Manuel ascendeu ao grau de

segundo maior bêbedo da escala da confraria.

A camisola amarela era envergada pelo senhor Amaro, imbatível veterano nos treinos

e nas provas dos carapulos de ¼ de litro – para ele os mais pequenos – no entanto não

demorou o tempo de um fósforo para que o Manuel passasse a envergar a camisola do

vencedor, não só porque a este lhe deu o badagaio num acidente de viação, mas também

porque o novo camisola amarela já tinha passado ao escalão do garrafão.

Quando andou com o Benvindo e o David a substituir uma canalização entre o portão

da fábrica e o Rossio, embebedavam-se os três todas as tardes, para assombro dos demais,

que nunca descobriram como é que às cinco da tarde estavam a falar com as formigas. No

percurso da vala onde trabalhavam, tinham uma taberna a cada ponta, cujos tasqueiros, o Tio

Zé e o Tio Chico, punham-lhes os copos em cima da parede e em frente do portão estava

sempre alguém conhecido de sentinela, que tossia ou bocejava, qual toque de alvorada, para

alertar da chegada do fiscal da obra que, para raiva deste, nunca foi capaz de os apanhar com

a boca na botija.

Page 20: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

20

Enquanto trabalhou nesta fábrica, só ele, o senhor Amaro – com quem o Manuel

repartia o tabaco – e os demais homens como aquele, é que eram serralheiros; entravam e

saíam da fábrica com o fato-macaco vestido; os demais rapazes eram empregados de

escritório – diziam – pois entravam e saíam da fábrica de fato e gravata.

Ainda na Escola Industrial, um dia foi almoçar de fato-macaco, pois no 5º ano e num

dia tinha no horário semanal aula de Oficina de Serralharia de manhã e de tarde. Ao voltar,

deu de caras com o Director:

- Posso saber porque é foste almoçar de fato-macaco?

- Foi para ganhar uma aposta, senhor Director.

- Bom, se foi só por isso, ganhaste a aposta. Vai lá para a oficina.

Se os colegas estavam à espera de ver o rapaz a levar porrada, saiu-lhes o cão cadela.

Fazendo o supradito exame, outra coisa não era de esperar que não fosse uma

encorpadinha raposa, pois a única preocupação era ir bebendo, em vez de se ir concentrando

na prova, conseguindo até sair da escola durante os exames práticos para matar a sede no

Café da Praça.

Estávamos em 1967. Pouco tempo antes de fazer dezoito anos, pensou em ir para o

Exército, como voluntário. O pai não lhe abençoou a nóia, por causa da Guerra Colonial. No

entanto, o Manuel insistiu, argumentando que era para se despachar mais cedo daquele

serviço e o pai lá o deixou ir assentar praça. Por não ter ainda 18 anos, teve que ser

emancipado.

Na verdade, o que o rapaz pretendia era mesmo livrar-se daquele atraso de vida, por

já ter ouvido dizer que a inteligência não é a favor da guerra. Foi à inspecção militar na

Escola Prática de Engenharia, de Tancos e nunca pensou que lhe saísse a sorte grande de

ficar livre.

De regresso parou nos Telheiros em casa da namorada para lhe dar a escolher, livre

ou apurado, pois trazia nas lapelas do casaco as respectivas fitas branca e vermelha e a

Lurdes logo viu que o rapaz não vinha sozinho, já vinha aos hic’s como era hábito e não

esteve para o aturar, só que o moço não se incomodou com o arrufo, já era normal e sempre

que tal acontecia dava azo a retomar a estúrdia mais cedo e foi o que aconteceu, não foi para

casa, foi comemorar o acontecimento com o maralhal copofónico, de onde resultou uma

daquelas bebedeiras que ele sabia agarrar e que demoravam, pelo menos, quinze dias a

“curar”.

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Porém, todavia, contudo ao requerer o montante da taxa militar – devida por isenção

do serviço militar obrigatório – responderam-lhe que ainda não estava livre, aos vinte anos

tinha que voltar à inspecção. Guardou a informação.

Porque fossem responsáveis membros praticantes, efectivos e militantes da

Irmandade local de S. Baco, os colegas da fábrica incentivaram-no a procurar outro tipo de

emprego e o próprio senhor Amaro chegou a dizer-lhe que aquilo ali não era para ele, era

para os que lá estavam como ele, Amaro, que já não tinham para onde ir, incentivando o

moço de dezoito anos, livre do serviço militar, a sair dali, o futuro do rapaz estava lá fora, ele

que fosse prègar para outra freguesia.

E assim foi. Nunca mais quis saber da fábrica. Gostando dos colegas, tinha no entanto

à sua frente a oportunidade de se livrar de um patrão que não sabia trabalhar e quem não sabe

trabalhar não sabe mandar. Foi o que aprendeu aos 17 anos, quando uma vez estava na

secção dos teares a limar ferro fundido com a lima apropriada, a lima bastarda e o

encarregado-geral, um tal Espiga, ao passar por ele tirou-lhe a lima, pôs-lhe giz e foi uma

espiga:

- Assim limas melhor…

-Assim lima o senhor, porque eu não limo mais.

Virando-lhe as costas, foi para a serralharia, pedindo aí ao senhor Eduardo que o

mandasse para outro serviço, pois não ia mais para os teares.

O encarregado da serralharia já se tinha habituado a este tipo de comportamento por

parte dos rapazes vindos da Escola Industrial.

O que lhe custava a mascar era ter que concordar com os moços, que sabiam trabalhar

e ao mesmo tempo ter que render homenagem ao outro capataz. Danado, mandou o Manuel

para a vala de que já falámos.

Disse ao senhor Amaro que, quando se fosse embora, lhe deixaria o fato-macaco e

uma camisa, amabilidade que o colega agradeceu. Pensando em sair dali, nunca mais se

lembrou que tinha o exame de Aptidão Profissional por fazer.

Passando a andar à procura, sem saber muito bem de quê, um dia recordou-se do bom

do Director da Escola Industrial. Foi-lhe lá falar, encontrando-o a descer a escadaria e de

imediato o mesmo lhe indicou dois ou três estabelecimentos de ensino industrial, com vagas

de Contramestre de Oficinas de Serralharia, optando o Manuel por uma no Porto,

concorrendo para a Escola Industrial Infante D. Henrique, onde ensinou no ano lectivo de

67/68.

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22

No dia em que chegou à capital do norte almoçou na Rua da Torrinha onde, de

conversa com estudantes, conseguiu arranjar quarto logo ali ao virar da esquina da Rua

Aníbal Cunha. No mesmo apartamento estavam dois agentes da P.S.P., que o receberam

secamente, por ser um simples civil com a suspeitosa agravante de ser desconhecido.

Portalegre – Casa apalaçada do lavrador Senhor José Elias Martins.

No entanto o gelo depressa se quebrou, quando descobriram que o Manuel não era

nenhum emproado e partilhava com ambos uma característica religiosa especial: a comunhão

fervorosa do culto de S. Baco e nessa mesma noite o rapaz foi fazer o giro com um dos

polícias, o Sequeira, até às baiucas de S. Bento e quando regressaram, ficou a saber que outro

santo se venerava no culto doméstico do quarto, cujo instrumento litúrgico principal era o

garrafão de cinco litros, verde branco, nunca vazio, como mandam os preceitos da reverência

sacral e a quem o esvaziasse assistia-lhe a misericordiosa obra de o trocar por outro cheio,

porque o paroquiano que viesse a seguir podia vir com zelo litúrgico, cuja sede é sagrada e

por esta mesma secura o Sequeira (do mesmo campo semântico da dita secura) foi o

cúmplice que mais o acompanhou nas noitadas directas, com o qual passou por polícia no

Palácio de Cristal, onde viram à borla o mundial de hóquei em patins.

Algumas noites, depois de jantar e quando não lhes agradava a sobremesa, os três

confessavam-se, comungavam e ajoelhavam frente ao orago de cinco litros, santo protector

do quarto, que de imediato era substituído, antes que fechasse o tasco do outro lado da rua.

Page 23: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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Neste ano lectivo, o Manuel só se recorda de ter apanhado uma bebedeira no dia em

que chegou, para a deixar no dia em que se foi embora. Assim como nunca hesitou em apifar,

também não hesita em dizer que foi, de todos, o melhor tempo de estúrdia que teve na vida

de solteiro.

Foi no Porto que o Manuel tirou a recruta, a especialidade e passou a pronto, em tudo

o que foram festas e festanças, farras e folias, que fizeram dele o maior estroina de todos os

tempos, até ao dia em que deixou de beber (doze anos mais tarde). Ainda hoje recorda aquele

S. João de 68.

Saiu de casa às nove da noite, começou a dançar no Jardim de S. Lázaro com a

Amélia – uma das paixões pluralistas que alimentou em tão pouco tempo – e acabou a

cabriolar nas Fontainhas, para voltar a casa às nove da manhã, sem saber muito bem por onde

foi porque, sempre que regressava ao quarto, vindo de onde viesse, regressava embriagado,

cada vez mais bêbedo do que nas noites anteriores.

Não era vaidoso, todavia, tinha apresentação, vestia-se a preceito, fato e gravata e aos

sábados de manhã arranjava o cabelo e as unhas na Rua das Carmelitas, para à tarde se

apresentar em casa de gente de linhagem.

Jovem na flor da idade, com 18 anos na flor da vida, um metro e setenta na flor da

altura e sessenta quilos na flor do peso, trajava fino de acordo com a época, permitindo-lhe o

cargo que ocupava frequentar qualquer lugar, desde os bares esconsos da Rua Escura, até aos

bailes particulares em casa de gente da fina-flor da sociedade, sabendo entabular amizade

com a família Freitas e a família Vasconcelos, cujas benquerenças se tornaram sólidas e o

livraram do tribunal,

por ter virado costas à Fábrica de Lanifícios, sem mais nem menos, porque nunca se

despediu, apenas ofereceu a roupa de trabalho ao senhor Amaro. O bem-querer que

estabeleceu naquelas casas durou anos e só terminou, porque o tempo e a ausência o fizeram

perder.

Os namoros enfiaram uns nos outros e perdeu-lhes a conta. No entanto, deixou-se

conquistar pela Amélia, transmontana que conheceu através do Sequeira numa ida ao circo

no Palácio de Cristal, com a qual namoriscou por pouco tempo, pois a moça depressa

descobriu o pielas que o Manuel era e – cachopa com vistas para o casamento – o Manuel

não estava para aí virado nem um bocadinho, mandou-o e muito bem, apanhar patas de burro

para a terra dele. A simpatia da Eduarda, aluna da escola onde leccionava, hipnotizou-o,

desde que o Freitas, seu discípulo, lha apresentou, até ao dia em que virou costas ao Porto.

Page 24: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

24

Com ela bailava nos chás dançantes de sábado à tarde nas ditas casas de gente de

estirpe, a cuja frequência o Manuel era tão assíduo como assíduo era nas tascas, sendo porém

que – como qualquer cavalheiro de impecável finesse – nestas reuniões sabia beber, nunca se

embebedava Noblesse oblige.

Pretendendo dançar sem parar – fosse com uma ou com todas as moças – sabendo

dançar com todas e todas, sem excepção, lhe merecendo o maior respeito, nunca em parte

alguma deixou de ser estimado, voltando sempre aos locais onde já tinha estado.

Durante este ano lectivo andou de braço dado com as noitadas e a estroinice, as

únicas cúmplices que o fizeram gastar tudo, mesmo tudo, o que ganhou. O vencimento era

razoável, no entanto, se mais tivesse – e gostaria de ter – mais tinha estrapaceado.

Nunca teve amor ao dinheiro e nem podia ter, porque o caroço para ele era

excremento do Diabo e – bem apresentado como sempre andava – não podia andar com os

bolsos cheios de diabólico estrume.

Só porque a mãe lhe mandou, pelas duas vezes, o dinheiro para a viagem, as férias

escolares do Natal e da Páscoa foi passá-las a Portalegre, caso contrário tinha ficado na

sacramental estúrdia tripeira. Em condições normais, a viagem de comboio demorava doze

horas. O Manuel demorou sempre mais. Quando chegava ao Entroncamento, mudava para o

comboio errado e em vez de apanhar o trem do Leste, quando se apercebia dava consigo a

caminho do Oeste. Ou então tinha-se metido numa carruagem, cujo trem o levava para

Lisboa.

Desfazia o engano, junto do chefe da estação, que o autorizava a voltar para trás no

próximo comboio, para se voltar a enganar e sair em Belver, já sem dinheiro e à chegada a

Portalegre ia direitinho à tasca do tio Chico pedir cacau emprestado para pagar o bilhete ao

revisor do transporte que o tinha trazido.

Até porque ganhavam menos, os colegas de quarto tinham que ser mais orientados do

que ele.

No entanto, o Manuel andava sempre a pedir-lhes pilim emprestado, que pagava

prontamente logo que recebia. O Sequeira e o Teixeira foram, sem sombra de pestanejo, os

melhores amigos que o Manuel teve no Porto. Nunca se desentenderam durante os meses em

que co-habitaram no apartamento.

Das noitadas partilhadas do Carnaval ao S. João e das festas aos casamentos, deram

brado na vizinhança as serenatas às moças da frente, que religiosamente os escutavam até

que, de manhã, os passarinhos substituíam os cantores da noite.

Page 25: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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Salvaguardando a posição dos agentes, o Manuel punha o casaco e o boné policiais,

mantendo-se calado enquanto o Teixeira acompanhava à guitarra o passarinho do Sequeira,

os dois à civil, para que quem os visse, pensasse que era o Manuel que cantava e os polícias

assistiam. Este cuidado prudencial era fundamentado na forte probabilidade de que os

vizinhos acabassem por não achar muita piada às cantorias, o que, efectivamente, veio a

acontecer: um dia batem à porta.

Estavam os três no quarto. Era um polícia da 12ª Esquadra, à qual pertenciam o

fadista e o guitarrista. Mal ouviram a voz do colega – que reconheceram – precipitaram-se

em direcção à entrada e chamando-o ao aposento, indagaram se vinha por eles, que até

estavam de folga. Para alívio de todos, o agente nem chegou a falar com a senhoria. Estava

ali por causa de uma queixa recebida na Esquadra sobre cantorias nocturnas, que

incomodavam o merecido descanso dos vizinhos.

Riram e contaram ao colega inquiridor o motivo da risota, cujo, depois de esclarecido,

de tal modo se prontificou a alinhar na comezaina comemorativa do acontecimento, que saíu

dali a trocar o passo:

- E agora, hic, o que é que eu digo ao chefe, hic?

- Diz-lhe que falaste, com a dona da casa, hic, e que finalmente tem um bom motivo,

hic, para pôr o civil Manuel no olho da rua, hic.

E lá foi, hic, sem nunca mais ter voltado. Pouco tempo depois deixou de se cantar o

fado naquele retiro avinhado, não por este incidente, por outro bem mais sensível e que

quebrou o que de mais terno havia na vida afectiva daqueles três personagens: o Teixeira foi-

se embora!

Viu-se obrigado a deixar a Polícia, por ser colocado em Lisboa, para onde

efectivamente tinha concorrido anos antes. Entretanto, casara, a família estava em Cabeceiras

de Basto e não podia aceitar tal colocação. Voltou para a agricultura e nunca mais o viram.

Enquanto estiveram juntos naquele quarto, o Manuel e a Sequeira recordaram sempre

o amigo apartado.

Puseram-lhe a cama de luto. Sobre a almofada, o pano de um guarda-chuva, um livro

aberto a meio da cama e o terço pendurado no garrafão, que se equilibrava sobre a cabeceira

e encostado à parede. A empregada de quartos, quando viu aquilo, deu meia volta e nunca

mais entrou no aposento, negando-se a arrumar tal alcova.

A funestação manteve-se, porque dos hóspedes que chegavam nenhum se interessou

por aquele quarto, ou melhor, os residentes é que espantavam a clientela.

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Uma vez o pai do Manuel foi numa excursão ao Porto. À parte do passeio, queria

saber como era a vida do filho e o rapaz levou-o à Rua Aníbal Cunha para lhe mostrar o

quarto onde acabou por dormir. Os polícias também lá estavam nessa noite. Estava tudo

combinado.

Depois dos cumprimentos da praxe, viraram-se todos para o oratório do quarto,

propositadamente cheio e o recém-chegado, que não estava habituado ao berde, depressa

ficou bermelho, adormecendo angelicalmente nas cores da bandeira nacional.

No dia seguinte e antes de sair, despediu-se dos presentes e do orago protector

daquele aposento, desceu as escadas de marcha-atrás, agarrado ao corrimão, para não cair nos

degraus que outros desceram de gatas e lá foi, trocando o passo, apanhar a camioneta que o

tinha trazido no dia anterior, sem ter gozado o passeio.

O senhor Domingos não podia saber a vida que o filho levava no Porto, nem ir para a

terra contar o que não devia, pois seria um desgosto para ele e outro para a mãe, que se iria

benzer à canhota, por à direita ser pecado, se soubessem que o rapaz conhecia todas as

Baiucas de S. Bento, todos os Bares Nocturnos da Boavista e arrabaldes, todos os Botequins

que o Augusto lhe ensinou em Matosinhos e Leixões, com o qual, no final do mês, derretiam,

numa noite, parte do ordenado recebido nesse dia.

Ao chegar a Portalegre, a D. Maria – naturalmente e ansiosamente – logo quis saber:

- Então, como é que está o Manuel?

-Acho que está bem.

-Achas? Então não estiveste com ele?

- Estive, levou-me ao quarto onde está hospedado. Para lá fui bem, para cá é que já

não me lembro por onde vim.

- Então o que é que foste lá fazer?

- Apanhar uma bebedeira. Mais nada.

- Só para isso não precisavas de ir tão longe, apanhava-la cá, que te ficava mais

barata.

Por mais vergonhosa que ela seja, na vida tudo tem uma explicação e, nesta

conformidade, o comportamento do Manuel não faz excepção à regra.

O ambiente sacana que se respirava nas oficinas de serralharia foi sempre nojento

desde o primeiro ao último dia. Porém, em oposição a esta atmosfera, o Manuel saboreava

com os alunos um relacionamento desemparelhado. O mestre geral das Oficinas, um tal

Santos, era um déspota como o Manuel nunca conheceu outro, com mais poder que o

Director da Escola – por sinal, uma jóia de pessoa – só que o Santos tinha o nome invertido,

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era um opressor da pior espécie e – dito por ele próprio – não permitia ao filho que comesse à

mesa com o pai. Porquê? Apenas e só porque o rapaz não trazia para casa as classificações

que o pai queria e o moço já andava no Instituto Industrial, não sendo, pois, nenhum catraio,

indo nas férias trabalhar para a oficina da escola sob o olhar – por detrás dos óculos –

esgazeado do pai.

Quando um ditador é assim com a família, imagine-se como será no emprego com os

colegas. Naquele ano o opressor exonerou um contramestre, por este se ter negado a serrar à

mão um cilindro de aço, com vinte centímetros de diâmetro, estando ali á mesma mão, o

serrote mecânico.

O Manuel não teve este azar, porque nunca se negou a malhar ferro à forja com o

camarada Serrano, um rapaz de Monforte que o Manuel chamou, por ainda haver uma vaga

de contramestre e com o qual o rapaz só jogou uma vez à lerpa, pois teve que pedir ao colega

que lhe emprestasse os vinte paus que lhe ganhou, tendo o sucesso deste fracasso ensinado ao

moço a nunca mais se sentar a jogar fosse o que fosse. Nem a feijões.

Entretanto, cedo descobriu que não seria reconduzido no cargo que ocupava. Quem o

tinha colocado fora o Director. A recondução, por sua vez, estava a cargo daquele mestre

zangão, a quem o rapaz não engraxava os sapatos, por ser coisa que nunca fez nem aprendeu

a fazer em lado nenhum. Assim e perante um ambiente de trabalho hediondo como este, o

rapaz tinha que saber distrair-se ou então virar costas ao Porto. Não o fez e fez ele muito

bem. A vingança serve-se fria.

As paixões femininas fizeram-no ficar e estas, não aceitando muito bem os seus

devaneios, souberam-lhe, porém, perdoar a maior paixão da sua vida: o briol e só o briol!

No entanto venceu sempre por capacidade própria. Sabia trabalhar, já o sabemos. O

que fazia fazia-o bem feito. Aprendeu a ser assim na qualidade de aluno – ainda hoje se

recorda o que era trabalhar uma peça ao centésimo de milímetro, quando rebaixou, com 15

anos, a cabeça de um motor na fresadora da Escola, sob a orientação do Mestre António – e,

como tal, não era nenhum parasita.

Embora defensor da teoria quem-gosta-do-trabalho-não-sabe-escolher-amizades-é-

burro, o mesmo nunca o atrapalhou. Estávamos em 1968.

Os lugares de poder e de chefia eram ocupados por escumalha humana, que os usava

como arma ruim e perigosa em prejuízo dos que trabalhavam. Quem não era lambe-botas não

se safava. O Manuel cedo descobriu que não faria outro ano lectivo no mesmo lugar.

Como tal e sabedor de que um dia deixaria o Porto, dedicou-se a amar perdidamente,

sem nunca a considerar inútil, a tão bem aventurada e avinhada vida nocturna, da qual nunca

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se arrependeu e voltaria a fazer o triplo, hoje no estado sóbrio, se a vida o bafejasse com tal

ventura, tais são as nostalgias desse tempo único…

Confraternizou com as figuras mais notáveis da época nos cafés da Boa Vista, de

entre os quais nunca se cansa de recordar o culto, ilustre e distinto Senhor, com Dom, Dr.

Pedro Homem de Mello, que teve a amabilidade de dar ao Manuel a honra de colega de

profissão na mesma Escola, ao ensinar-lhe a ser condiscípulo no meio dos alunos, pois tinha-

os lá mais velhos do que ele.

Naquele tempo, um rapaz ia para o serviço militar em cabo miliciano, com o quinto

ano (actual nono ano). O Manuel tinha turmas onde leccionava sozinho, sem a indesejável

presença do retrodito abelhão, que tinha reprovado no ano transacto, a oficinas de serralharia,

alunos que agora eram discípulos do Manuel.

Outro chumbo e adeus Curso de Cabos Milicianos. Os rapazes souberam falar com o

Mestre sobre o assunto logo no início do primeiro período.

Assim, acertaram de imediato as seguintes notas: 10 - 9 - 10. Era o indispensável para

fazer a disciplina e para não levantar suspeitas (29 valores nos três períodos, como já

sabemos). Ao longo do ano lectivo os rapazes foram de uma impecabilidade extraordinária,

em termos de comportamento, agradecendo ao mestre Fragoso – era assim que era conhecido

– a humanidade acordada e ao proporcionarem ao Manuel a felicidade de se entrosar nas tais

famílias de linhagem, assim como nos chás dançantes, aos quais, como já sabemos, nunca

faltou.

Volvidos quarenta anos, o rapaz ainda hoje recorda com a saudade que lhe é devida e

que só ele sabe, as amizades sadias criadas num período tão mortal de ditadura, como este

que o Manuel viveu no Porto.

Um dia, quase sem dar por isso, o ano lectivo acabou. Só lhe restava partir. Foi numa

quarta-feira, às nove horas. O Sequeira acompanhou-o até à Estação de Campanhã, onde o

esperava a última surpresa, que o deixou estupefacto: a Florinda foi-lhe desejar boa viagem.

Era uma mulher da idade do Manuel, mas com mais idoneidade que ele.

Foi uma das várias labaredas resplandecentes e amorosas que se lhe acenderam e que

o vinho – sem dó nem piedade de espécie alguma – apagou.

Conheceu-a numa daquelas tardes de sábado sem, no entanto, a moça ter ligado aos

galanteios do rapaz. Por isso mesmo estava ali como a amiga que sempre se mostrou, para

lhe almejar felicidades. Uma lágrima atrevida, um abraço de adeus, um apito de comboio,

uma partida sem regresso…

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CLAVE DE FÁ (DO)

De volta a Portalegre e depois de acreditar que não ia mais para onde tinha saudades,

começou a andar aos bonés, sem nunca lhe ter passado pelo toutiço quanto a falta de trabalho

isso lhe ia ser difícil e mesmo impossível, por ser demasiado conhecido como religioso

militante de S. Baco. Não querendo voltar às fábricas onde trabalhara, por se ir apercebendo

de que aquelas indústrias eram uma exploração de mão-de-obra barata, o trabalho do campo

era ainda menor gratificante e os pais tinham feito o sacrifício de o pôr a estudar,

precisamente para o libertar dessas profissões, às quais o escolarizado e ao longo da história

nunca soube dar valor, nem acreditamos que o venha a fazer.

Procurando por Seca e Meca e concorrendo para França e Aragança, nicles-

batatóides. Viu-se à brocha durante oito meses, sem dinheiro, com uma alcoolemia galopante

para sustentar. A mãe não o tinha para lhe dar e ao pai não tinha à vontade para lho pedir.

Havendo, no entanto, sempre amigos, através das temáticas copológicas, estes lá lhe iam

apoiando a carência, como diria o Zeca Afonso, Venham mais cinco/duma assentada/que eu

pago já/do branco ao tinto (…)

Decorrido aquele tempo e desatinado de todo, chegou a pedir serventia ao tio João e

iria trabalhar para as obras naquela segunda-feira, se não tivesse na caixa do correio um

postal para se apresentar na Repartição de Finanças de Évora, onde compareceu no dia

seguinte e ali, durante sete meses desempenharia o cargo de escriturário das Execuções

Fiscais.

Um colega arranjou-lhe quarto na Rua do Cano, não por muito tempo. Um dia ao

almoço encabeçou um levantamento de rancho, por os bifes estarem mais duros que as solas

dos sapatos, o arroz, se atirado à parede, ficaria lá colado e – como se isto já não bastasse –

no final do mês debandaram todos os hóspedes menos um, que era militar, até porque

assentou praça, como voluntário, naquela casa.

O colega Caldeira arranjou-lhe outro quarto na Rua Cândido dos Reis, onde só

dormiu uma noite, ou melhor, a mala da roupa é que lá dormiu. Depois de apalavrar o

aposento, saiu para jantar e regressou no outro dia, ao romper da bela aurora e a trocar o

passo. Quem não gostou da entrada e daquela figura àquela hora foi a senhora da casa, que

refilou:

- Olhe lá: o senhor acha que isto são horas de entrar em casa de uma senhora viúva?!

Pague-me o quarto e vá-se embora, ou quer que me vá queixar às Finanças?

Page 30: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

30

- Como funcionário que sou da Fazenda Pública, hic, tenho muito gosto em a atender,

minha senhora, hic, explicando-lhe o melhor que puder e souber que não fui eu quem cá

dormiu, hic, foi a mala, ela é que lhe deve a dormida, eu não lhe devo nada, hic.

- Pegue na mala e saia já! Imediatamente! Rua! Rua!

Já ontem era tarde. Sem mais palavras, o Manuel pegou na mala, desceu as escadas,

deu corda aos sapatos e só parou nas Portas de Almeirim, aí se hospedando na casa da Dona

Cidália, cujo marido, o senhor Vicente, também gostava de virar uns canecos e quando saíam

juntos, aos fins de semana, a Dona Cidália já sabia que na volta iam sempre duas bebedeiras

para casa e, em consequência, o almoço de segunda-feira era a única refeição semanal que

aquela senhora sabia o que havia de fazer, sem reclamação do marido ou do hóspede: açorda

alentejana en su sitio. Compreende-se porquê: as noites de sexta, sábado e domingo

deixavam-lhes a boca a saber a papéis de música e só aquele prato aligeirava a melodiosa

papelada.

A função de escriturário das Execuções Fiscais permitiu-lhe conhecer os circuitos

pedonais de todas as chafaricas da cidade e depois, em circuitos motorizados, passou a saber

onde ficavam as capelinhas nos bairros limítrofes até à Torre de Coelheiros.

O trabalho era propício para este tipo de conhecimento, pelas Execuções Fiscais que

lhe mandavam fazer. Nunca deixou de realizar nenhuma.

Assistia-lhe a finura de saber encontrar o contribuinte, para lhe assinar o documento,

mesmo que isso implicasse permanecer numa esplanada duas horas a beber cerveja, como

trabalho complementar, à espera que o tributário saísse de casa, porque sabia que ele estava

lá.

Uma vez um deles negou-se a assinar o testemunho e o Manuel teve a amabilidade

profissional de o informar:

- Não se preocupe, o polícia vai assinar comigo, já falei com ele.

- Dê cá o papel! Você só é maçarico, de parvo não tem nada…

E assinou imediatamente o documento.

Quando entregou o serviço ao superior hierárquico, este deixou escapar o comentário

“O quê? Você conseguiu caçar a assinatura a este indivíduo? A notificação já vem de Lisboa.

Como é que você o apanhou?”

O rapaz contou-lhe o sucedido e o subchefe – a quem já tinham tido a gentileza de

contar que o funcionário passava as tardes nas esplanadas dos cafés do Bairro de Almeirim e

não só – ignorou a repreensão que tinha para lhe dar e recolheu, com agrado, o trabalho que

lhe acabava de entregar.

Page 31: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

31

Na mesma Repartição de Finanças trabalhava uma escriturária de Vila Viçosa, através

da qual o Manuel conheceu a Ana Maria, uma cachopa extraordinária, com uma postura que

o rapaz muito admirava e por quem alimentou uma paixão enquanto namorados, o que lhe ia

apagando a vida, quando a moça extinguiu aquela chama que iluminava o rapaz.

Quem gostava dele era a colega de trabalho, sem no entanto nunca lho ter declarado.

Como tal, ele não sabia e quando começou a acompanhar com a namorada, a colega disse à

Ana: “Ele pediu-te namoro, não é porque goste de ti, é para andar comigo, porque sabe que

nós não saímos uma sem a outra”.

Terão mesmo as mulheres um pacto com o Diabo?

Só anos mais tarde é que o moço veio a saber desta trapalhice.

A Ana certamente acreditou e aliando esta aleivosia ao comportamento do jovem, um

dia, no Jardim do Templo de Diana, pôs fim ao amorio.

O desventurado bem se esforçou para que tal não acontecesse. Não lhe valeu de nada.

A Ana não se demoveu, nem lhe deu nenhuma explicação. Acabou mesmo.

Ficando o infeliz a bater mal das válvulas, pois gostava mesmo da Ana, nunca mais,

até hoje, se esqueceu de que foi beber para as Alcáçovas onde não era conhecido e ali

ingurgitou briol que chegasse para ficar encharcado até aos olhos. A motorizada é que o

trouxe de volta. Como já era da praxe. Não sabe qual o caminho que pisou. No regresso,

recorda-se de ter passado por cima de qualquer coisa, à entrada de Évora. Mesmo perdido

bêbedo, ficou intrigado e voltou atrás, para ver o que era. Nada de especial. Apenas uma

passagem de nível, que, por acaso, estava aberta...

Um dia ao almoço ouviu na Rádio uma notícia sobre trabalho, o que lhe adoçou a

bisbilhotice. Foi ao Serviço Nacional de Emprego indagar sobre aquele anúncio e onde, após

várias entrevistas, não hesitou em deixar o trabalho que tinha. Fê-lo, porque nunca lhe

explicaram que, embora fosse provisório na ocupação do lugar de um funcionário que estava

no cumprimento do serviço de Deus-Pátria-Família, não seria despedido quando o José Maria

regressasse do Ultramar. Iria para outra Repartição onde houvesse vaga.

O segredo é a alma do negócio.

Não sabendo disso, aceitou o lugar de controlador fabril na firma sueca Melka

Confecções, Lda., também em Évora. De tudo o que até aqui tinha feito, foi a faina de que

mais gostou. Não, não era propriamente por se encontrar no meio de trezentas mulheres.

Page 32: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

32

A Organização e Métodos de Trabalho fascinaram-no, de cuja aprendizagem ainda

hoje sabe fazer uso: uma folha de papel, por exemplo, ou tinha lugar na pasta correspondente,

ou na 5ª Secção (cesto dos papeis).

Já sabemos que o rapaz, embora muito beberrão, sabia trabalhar e desde que entrou no

mundo laboral, aquilo que fazia, fazia-o bem feito, o que lhe abonava a favor dos erros, que,

é claro, também os cometia. Chegou a fazer o Relatório Semanal de Produção e enviá-lo para

a Suécia.

A primeira vez que o fez, exportou mais camisas do que as que a fábrica produziu.

Imediatamente a sede pergunta, por telex, como é que estava a trabalhar aquela Unidade de

Produção. Ficou à rasca e à espera de ser castigado, porque foi o próprio responsável pela

produção, senhor Nigren, presente em Portugal na fábrica do Cacém, que lhe chamou à

atenção para aquela incorrecção. O incidente não se repetiu e o caso ficou pelo reparo.

Talvez por isso, o rapaz depressa se esqueceu do caso e tempos mais tarde deu origem

a outro. Passou a imitar aquele sueco na fala, quando pedia a linha telefónica à menina do

escritório, dizendo “Menina, dar-me linha, fazer favor”.

Um dia é o próprio senhor Nigren que, estando em Évora, pede a linha telefónica e a

menina responde-lhe:

- Lá está o senhor Graça sempre com as suas gracinhas…

- Porquê dizer “senhor Graça”? Daqui falar senhor Nigren…

A menina fica à rasca, mas logo sacode a água do capote, acusando sem mais nem

menos o controlador de imitar na perfeição aquele responsável, cujo lhe ordena:

- Senhor Graça imitar minha fala? Mandar vir senhor Graça ao meu gabinete.

“Desta vez é que vou passear” pensou o moço. O sueco só quis ouvi-lo e o rapaz, que

o imitava sem pestanejar, pela primeira vez teve dificuldade em articular o arremedo.

- Muito bem, fazer uma coisa – disse-lhe o nórdico – imitar minha fala só quando eu

não estar na fábrica, O.K?

-Está bem, senhor Nigren!

E o incidente nunca mais se repetiu.

Só uma vez é que foi mandado dormir para casa, pelo gerente português, o senhor

Arménio, porque a sua apresentação não deixava margem para dúvidas: estava bêbedo como

um cacho e, como tal, não se tinha deitado para não esmagar as uvas. De facto aquela noite

tinha sido muito longa e no caminho Portalegre-Évora, deixou-se ficar esquecido num baile

em S. Miguel de Machede, de onde saiu às seis da manhã.

Page 33: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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Como sempre, quando não havia moças disponíveis para dançar, bebia uns copos,

neste caso com o Zé Ferreiro. Passou pelo quarto, mudou de roupa, chegou à fábrica e voltou

para trás. Às duas da tarde já estava de volta ao trabalho, o que surpreendeu o gerente, que só

o esperava no dia seguinte.

Correndo o ano de 1969, com 20 anos de idade o Manuel, tendo que voltar

obrigatoriamente à inspecção dos magalas – ó milagre dos milagres – em pleníssima guerra

colonial, voltou a ficar não só livre da tropa, como também do eventual perigo de passar o

serviço militar no Forte da Graça, posto que o Manuel da Graça não achava muita graça à

doutrina católico-salazarista sobre os conceitos de Deus-Pátria-Familia.

Definitivamente livre do serviço militar, o rapaz esmerou-se com toda a pompa e

circunstância na comemoração do acontecimento. O pobre do Rosendo, tendo tido o

previsível azar de ser apurado nas “sortes”, decidiu afogar o desgosto antipatriótico na alegria

igualmente antipatriótica do sortudo do Manuel e ambos, patrioticamente, foram-se

enfrascando com o tal produto líquido que patrioticamente dava de comer a um milhão de

portugueses, ficando aquele dia preenchido de acordo com a familiar divisão dos dias em três

partes, divinalmente seguida pelos dois devotos de S. Baco: alambazaram-se com três

bebedeiras, uma de manhã, outra à tarde e outra à noite.

Quando – já bêbedos que nem um quartel – se apresentaram no recém-dito, vinham

do Mercado Municipal, onde foram dando a volta às capelinhas todas, nas quais fizeram uma

explosiva combinação de aguardente, vinho e cerveja.

Almoçando numa tasca do Rossio continuaram a visita às grinaldas, acabando a noite

num baile no Salão Frio, para onde foram e vieram a pé, embora houvesse bailes noutros

sítios mais longe, onde o Manuel gostava de ir, só que neste dia estava tão bêbedo, tão

bêbedo, que não se atreveu a apanhar a motorizada, nem mesmo a bicicleta, porque tinha

amor à vida, já o sabemos e – embora soubesse muito bem que ser estúpido em Portugal é

um Dom Divino e por via disso é que vai muita gente para o Céu – só era bêbedo, não era

estúpido.

Certo dia o rapaz soube que a fábrica ia admitir uma escriturária. Comunicou com a

Lurdes, que estava desempregada e é assim que esta vai trabalhar para a mesma terra e local

onde ele laborava.

Embora coubessem perfeitamente os dois no mesmo quarto, teve, porém, a atenção de

lhe dispensar o quarto em casa da Dona Cidália e arranjou outro ao cimo da rua. Perante tudo

isto, a moça e a família chegaram mesmo a pensar que o rapaz se queria casar. Ficou deveras

labiríntico das ideias, porque nunca tal lhe tinha passado pela cachola.

Page 34: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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Estando livre da obrigação militar – a maior dor de cabeça dos rapazes na época – no

entanto tinha uma leve noção – já sabemos que a cabeça avinagrada não lhe permitia ter

muita – de que o matrimónio seria o enjoo e o entorpecimento atrofiantes da idolatrada vida

boémia, à qual não tinha coragem de virar as costas, o que lhe causava o embaraço tremendo

de explicar à sua estimada porque é que não se casava, até porque à Lurdes não era nada

favorável continuar solteira e em Évora, por isso, decidiu e muito bem, voltar para Portalegre

onde e em boa hora, fez o exame de admissão ao Magistério Primário, formando-se como

professora do ensino primário.

Nesta altura, o Manuel ainda não sabia que o casamento era uma prisão, à qual, uns

anos mais tarde, porém, veio a ser condenado.

De forma inconsciente, o que ele mais gostava era de ser livre como um passarinho,

principalmente naqueles fins-de-semana em que se dava ao luxo de os passar em Lisboa.

Para lá ia de comboio e de volta, vinha de táxi. Na tarde de sábado fazia a vistoria aos bares

do Intendente e à noite ia para o Bairro Alto ouvir cantar o fado – à mistura com umas

cervejas – no Arroz Doce.

A tarde e a noite de domingo serviam para fazer a revista aos bares do Cais do Sodré

e como os botequins eram muitos e o tempo era pouco, sentia-se na obrigação de fazer o fim-

de-semana numa directa. Na madrugada de segunda, todo torcido e a abanar sem vento,

escolhia o carro que o havia de levar a Évora.

Consumidor vinícola profissional que se agraciava de ser, regressava à cidade-museu

de Mercedes, com uma condição eliminatória a este referente: só com rádio.

Porém, todavia, contudo antes de partir, bebia a última cerveja com o taxista,

pagando-lhe os quinhentos paus da praxe e só depois é que se iniciava a viagem.

Dormindo as duas horas do trajecto e chegando regularmente a Évora já de dia,

passava pelo quarto para mudar de roupa e lá ia para o trabalho, cambaleando, meio a dormir

– meio acordado, meio borracho – meio sério.

Enquanto esteve em Évora – aqui com mais tempo e à semelhança do Porto – o

Manuel continuou a fazer o que mais amamentava: depois de um dia de trabalho, mamar a

noite com o enlevo que a mesma lhe proporcionava, só se desmamando ao raiar do dia.

Sozinho ou acompanhado, o ponto de encontro para a estúrdia era cronicamente a Praça do

Geraldo, onde tomava conhecimento do que lhe interessava: festas, bailes e tudo o que fosse

propício à noitada, por vezes muito curta, pois a noite tinha obrigação de ser maior que o dia.

Page 35: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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Depois da amada lhe ter virado as costas, o Manuel continuou por mais algum tempo

trabalhando para os suecos, lastimando que a sua mais bem-querida tenha chegado a

professora e ele ficasse simples trabalhador. Não podia ser. Sentindo-se desequilibrado –

embora continuasse a gostar do que fazia e os suecos também gostavam do trabalho dele –

um dia não deu rendimento nenhum na firma, passando-o a escrever para as Escolas

Preparatórias do distrito de Portalegre.

Pouco tempo depois é chamado para a Escola Preparatória de Campo Maior. Quando

se despediu da Melka, foi o próprio senhor Nigren que veio do Cacém, de propósito, saber

porque é que o rapaz se ia embora.

Gostando do que estava fazendo, era bem provável que continuasse a trabalhar para

os suecos, se as ordens viessem directas daquele senhor, em vez de passarem por um tal

Carvalho, com quem o Manuel não ia a lado nenhum e assim sendo – com todo o respeito

que o nórdico lhe merecia – despediu-se dele e disse adeus a Évora.

Pela mão do doutor António Raimundo, é chamado para a Escola Preparatória de

Campo Maior como professor provisório de Trabalhos Manuais no ano lectivo de 71/72.

Uma vez mais e nesta vila alentejana muda de patrão e de actividade profissional.

Era uma posição diferente e como tal – passando a fazer parte de uma classe mais

privilegiada – só por isto devia ter mudado de postura, mas, porém, todavia, contudo o

comportamento perante o álcool não parou, piorou e a carreira de bebedor progredia em

galope cavalar, cujo na linguagem do alcoolismo se chama “tolerância” – agora com um

garrafão obtinha os mesmos efeitos que antes eram produzidos por uma garrafa ou por uma

garrafinha.

Foi num baile de finalistas do Colégio de Campo Maior que conheceu a mulher com

quem viria a casar. Para a Lurdes foi um desgosto. Sem o saber, o Manuel fez o pior que se

pode fazer a uma mulher: trocá-la por outra e neste caso, depois de sete anos de namoro, pior

ainda. O certo – tão certo como aqui e agora, estar a dizê-lo – é que ambos casaram mal.

Como seria se tivessem casado um com o outro, ninguém sabe, nem sábios da Natura, nem

mestres da Escritura.

Namorou um ano com a Catarina, amorio desalinhado e também esta mulher esteve

para deixar o Manuel, pela conduta que sempre acarretou perante a bebida, não sabendo

ninguém – nem os ditos sábios e mestres – porque raio de carga d’água a rapariga não deu

com os pés no bebedolas, como outras o fizeram e, sem saber como nem porquê, um belo dia

o rapaz estava a falar com o padre Soares, que o condenaria com 24 anos de idade, a uns

longos, intermináveis e agressivos 13 anos de xelindró matrimonial.

Page 36: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

36

O casamento não o fez mudar coisíssima nenhuma, continuando devoto incondicional

da agência local da Irmandade de S. Baco.

Uma vez a cabra foi internacional. Sabe com quem foi para Espanha, não sabe como

foi, nem como de lá veio. Três dias sem saberem dele. Meteram-lhe a porta da alcova

adentro, por a motorizada estar à entrada. Ele não estava lá.

Quando se apresentou na escola surpreendeu o Director. Humildemente lhe pediu

desculpa, pedindo-lhe também que o castigasse, por ser a única coisa que merecia.

Em vez disso, aquele dirigente mandou-o ao Dr. João Maria, para lhe passar um

atestado médico, a fim de justificar, por doença, os três dias de moina. E que doença… já tão

enraizada…

No entanto, ainda respondeu assim ao Director:

- Já lá vão quatro dias e o médico não me passa o atestado.

- Vá lá, que eu falo daqui com ele – apontou para o telefone.

Portalegre – Taberna da Tia Inês do Cuco, hoje Casa Morais.

O Dr. António Raimundo – seu director – e o Dr. João Maria – seu médico – eram

boas pessoas e uma vez mais o saber ser humilde abonou a favor do rapaz, nesta altura já um

prestigiado galdério, cuja formação – como sabemos – iniciou no Porto.

De um modo geral os rapazes quando casavam mudavam para melhor. Este piorou.

Cada vez mais pingalho, passou a acompanhar com todo o fel farrapo, com todo o tipo de

gentalha bebedanas, frequentando lugares menos próprios para um professor casado.

Page 37: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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As luzes da noite continuavam a encandeá-lo, iluminando-lhe a estúrdia, a sua

cônjuge preferida.

Quando sozinho, distanciava-se para qualquer lado, dormindo trevas sem conta na

valeta da estrada, por não ser capaz de conduzir a motorizada. O casamento esteve prestes a

desmoronar-se. O aparecimento do primeiro filho, ao fim de um ano, não veio equilibrar o

que esteve sempre a desabar.

O bagacinho passou a ser o forte-fraco das bebidas que consumia.

Gradualmente foi-se habituando à girgolina e a bica servia para aconchegar meia

dúzia de mata-bichos.

Um ano o senhor seu pai – em vez de doar as uvas aos pardais como sempre fazia –

lembrou-se de fabricar uma pinga de aguardente. Fez dez litros com a graduação de 35º, mas,

porém, todavia, contudo mal a provou, porque o senhor seu filho engorjitou-a toda numa

semana, enchendo-lhe as garrafas de água e dando à sola por três meses, sem voltar a casa

dos pais.

Desconfiando da fartura, a mãe, quando descobriu a marosca, apressou-se a pôr outra

branquinha nas garrafas, antes que o pai dissesse que a cachaça se tinha estragado, o que veio

a acontecer, pois quando lhe apeteceu molhar a goela, pareceu-lhe que o bagaço não era o

mesmo e o senhor Domingos acabaria por morrer na dúvida, partindo sem nunca o saber,

pois o Manuel nunca teve coragem de lhe confessar a verdade.

Este rapaz nunca se devia ter casado, ou melhor, a Catarina é que nunca devia tê-lo

feito, porque o moço andava a leste do paraíso matrimonial, pois continuava a praticar a

bigamia vinícola-conjugal e – como toda a gente sabe – o adultério é pecado mortal.

A rapariga tinha plena consciência que namorava um ébrio. Dois dias de trabalho

alternavam regularmente com uma noitada mais agradável que a outra. A vocação do moço

aliada à devoção por Baco, durante os primeiros seis anos de casado, fizeram dele veterano

beato de um deus milagreiro que dá pernas aos coxos, vista aos cegos e fala aos mudos.

Porque eles obrigam aos consequentes deveres conjugais – quando alguém como este

jovem está enraizado em tal vida – não devia ter quaisquer direitos matrimoniais.

Há quem diga que este encadeamento é uma prisão, onde se pagam os pecados de

solteiro e – se isto é verdade – o Manuel, como já sabemos, apanhou 13 anos de pildra em

regime aberto, o que lhe permitiu continuar a ser cada vez mais perfeito valdevino.

Leccionou em Campo Maior de 71 a 74 e é neste período que faz o exame de Aptidão

Profissional, quase por imposição do Dr. Raimundo, que lhe disse não o poder reconduzir, se

não completasse o Curso que o credenciasse com habilitação própria.

Page 38: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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Foi então para a Escola Industrial e Comercial de Elvas em revisão da matéria dada,

como aluno da noite de Desenho de Máquinas e de Oficina de Serralharia, preparando-se

para os exames destas disciplinas. Soubera ele, nunca lá tinha posto os calcantes, porque

nesta escola o manajeiro era um tal mestre Laranjo, primo-irmão do abelhão do Porto, ambos

unha com carne.

Tinha assistido a meia dúzia de aulas, quando uma noite os companheiros o

aconselharam “Se queres fazer o exame, vai para Estremoz ou para Portalegre, porque aqui

não o fazes. Tu não foste aluno deste mestre e se o ano passado ele chumbou o filho, tu nem

sequer chegas a ir às provas”.

Como se vê, uma vez mais, os amigos são para as ocasiões.

Nessa mesma noite estava a ampliar um desenho de peças de máquinas. Os colegas

tinham acabado de falar com ele.

Ao olhar para a legenda do mesmo projecto, reconheceu a assinatura: era do déspota

do Porto.

Nem pensar em continuar. Foi tudo muito rápido. Impulsionado por uma mola

invisível, mas real, levantou-se, arrumou as coisas e ao entregar o que estava a fazer,

anunciou ao mestre “Diga ao seu amigo Santos que faça ele o desenho, porque eu não lho

faço nem a peso de ouro”.

O mestre esbugalhou os olhos, espumou de raiva, ficou verde-amarelo, azul-às-riscas,

o rapaz abandonou a sala de aula sem uma palavra e nunca mais lá apareceu.

Ainda foi a tempo de ir para Portalegre. Voltou à escola onde estudou, ao convívio

sadio dos bons professores que ainda lá estavam, de entre eles o sempre amigo e senhor

Director.

Dos que precisou – desde o senhor mestre José Carvalho, ao sempre saudoso senhor

engenheiro Malcata – todos lhe facultaram a revisão da matéria para a realização do exame –

recordando, de entre outros, o desenho de rodas cremalheiras, cujo traçado parecia ter

movimento – que fez à risca, à rasca e às roscas, com a classificação de 10,8 valores. Como

nunca foi ambicioso, trabalhou apenas para a média tangencial, porque teve que voltar a fazer

o circuito Escola – Café da Praça – Escola, do qual ainda se lembrava, quando, anos atrás, se

apresentou a fazer aquela prova.

Entretanto, é colocado em Portalegre, onde permanece de 74 a 78 e nestes quatro anos

o Manuel, de uma forma lenta e progressiva, entrou em declínio, mas, porém, todavia,

contudo passou a ser um respeitoso e notável avinhado, conhecido em todas as chafaricas da

cidade e subúrbios num raio de 20 quilómetros ao redor, de onde não arredava.

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Todos os anos adoecia. Passou a andar de médico para médico. A uns queixava-se do

estômago, a outros dizia que tinha nervos.

Não enganava ninguém, ele, de facto é que não sabia, no entanto, todos lhe

conheciam a doença. A Dra. Lisdália chegou a dizer-lhe que só internado é que teria

salvação. No verão de 79 assim aconteceria.

O pequeno-almoço era constituído por um bagaço em cada tasca do caminho casa-

escola com a matéria líquida. O intervalo das aulas servia para fazer a revisão da matéria

dada na taberna mais próxima.

Todas as manhãs transportava, transpirava e tresandava a bagaceira. Instala-se na

comunidade escolar um certo mal-estar, tornando-se intolerável o estado alcoólico a que

chegou, incompatível com as aulas. As queixas eram tantas, que um dia o Presidente do

Conselho Directivo – o Caldeira – não teve outra saída: participar a ocorrência.

No entanto, a queixa não chegou a sair da Escola. Uma vez mais o rapaz foi

protegido. Desta vez, valeu-lhe o senhor funcionário Manuel Milhinhos, que soube apelar

àquele dirigente e a participação, já redigida, não seguiu para o correio.

No último ano que leccionou naquela escola o Manuel não se livrou de mais apuros.

No final do ano lectivo, numa reunião de encarregados de educação, houve um que se

insurgiu com firmeza:

- Para o ano, se o meu filho for aluno do professor Graça, não vem às aulas.

- Esse problema está resolvido – explicou o Caldeira – para o ano esse professor já cá

não está. Foi colocado noutra Escola.

Problema resolvido. O Manuel foi prègar para outra freguesia. No ano lectivo de

78/79 regressou a Campo Maior, onde continuou a fazer aquilo de que mais gostava: beber,

dias a fio, sem conta, sem peso e sem medida.

É ao voltar para a terra onde sempre residiu que a devoção por S. Baco atinge o

pináculo do apogeu. Já não ia em seis bagaços, ia em dez e em balão.

Algumas vezes era o primeiro cliente – logo ao abrir da porta, às seis da manhã – da

taberna do João Vinagre, não só por ser a primeira a abrir e a que ficava mais perto de casa,

mas também pelo condizente apelido do proprietário.

Quando extraviava para a cerveja, nunca era uma, nem duas, nem sequer a conta que

dizem ser sagrada – aquela que Deus fez, três – era às dúzias, não só porque à dúzia é mais

barato, mas também porque havia o lucro adicional das apostas na capacidade de

engorjitação volumétrica, tendo-as ganho todas a todos, assim subindo ao pódio da medalha

de ouro das olimpíadas do campeonato copofónico local.

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Vinho? Era raro beber pelo copo. Bebia-o pela garrafa, garrafinha e garrafão, quando

este era apanhado a jeito em casa do sogro, cujo, muitas vezes teve que beber água à refeição,

pois o vinho, por obra e graça divina – misteriosamente – tinha evaporado.

O vício crónico conduziu-o às consultas clínicas crónicas. O dr. João Maria matutava

“Mas o que é que lhe hei-de receitar? Ponho-o a dormir? Quando acordar volta a beber… O

que é quer que eu lhe faça? …”

Em Elvas, numa consulta ao dr. Barbas, o médico apanhou-lhe a vesícula “Segura aí”.

Ele segurou com facilidade. “Sabes do que é isso? É do bagaço. A continuares assim, não

chegas a velho…”

Isto o rapaz não sabia. Só soube que continuou a beber.

Em casa, já há muito que não havia bebidas alcoólicas. No entanto, o Manuel – como

todo o bêbedo que se preza – também era manhoso. Escondia a garrafa da aguardente sob o

capô do automóvel, acamada em duas tábuas pregadas em ângulo recto e agasalhada com um

bocado de desperdício. Podia fazer uma travagem brusca, que a botelha não se mexia.

Um outro da mesma laia do rapaz escondia a botija de bagaço no autoclismo da casa

de banho, para ficar mais fresquinha. A do Manuel estava sempre morninha. São gostos.

Gostos não se discutem.

Para quem não sabe, fica sabendo que isto são truques defensivos de manholas, como

é a regra, sem excepção, de qualquer bebedor excessivo: ter no sítio estratégico

operacionalmente apropriado o paiol das munições preparadas para o combate à sede aguda,

quando esta aperta com a mesma premência, a mesma insistência e a mesma frequência de

qualquer ruminante.

O Manuel não chegou a ter o rosto cor de marisco, os olhos inchados e remelados, o

nariz cor de cenoura e em forma de torneira – até porque torneira já ele era – no entanto,

tinha alcançado o píncaro do êxtase, como virtuoso e elegante profissional da ciência e das

artes enófilas.

Embrenhando-se nesta senda, sem nunca o ter desejado e fazendo-o a bebida passar

por muitos vexames, por incrível que pareça ele tinha consciência disto e não era isso que ele

queria ser.

O espeque do problema estava em não saber parar e, sozinho, nunca foi capaz de o

fazer.

Um dia procurou a Maria do Carmo, sua cunhada, residente em Elvas, por quem tinha

respeito e admiração.

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Esta Dona algumas vezes o quisera ajudar, mas nicles-bitocles batatóides. Desta vez

foi o Manuel que lhe pediu socorro. A Senhora falou-lhe de um indivíduo que tinha feito

tratamento em Coimbra e nunca mais bebera.

No que diz respeito ao alcoolismo, o Manuel nunca tinha falado com ninguém que

tivesse feito terapêutica e, muito menos, tinha ouvido alguém falar de si próprio, como fez o

Mário. Era como se estivesse na frente de um espelho: o Manuel reflectido nas palavras do

Mário.

A postura, aliada à franqueza de uma individualidade própria, nada teriam a ver com a

figura, se não fosse a própria pessoa a dizer que chegou a transformar um litro de azeite em

dinheiro, para poder ir beber.

A sobriedade alcançada, ligada a uma sinceridade única, juntas numa revelação

excepcional do que uma criatura foi e deixou de ser, foi o que mais impressionou o Manuel.

O Mário contou-lhe que esteve internado no Centro de Recuperação de Alcoólicos de

Coimbra do Hospital Sobral Cid e disse-lhe que em Lisboa, no Hospital Júlio de Matos,

havia também o Centro de Recuperação António Flores, optando o rapaz por este, em virtude

de lhe ser mais fácil a deslocação e ter família na capital. A conversa com o Mário resumiu-a

o Manuel numa feliz e promissora conclusão “Se este homem, que é feito da mesma massa

que eu, deixou de beber, eu também deixo”. Foi o Ti Júlio que lhe marcou a consulta para a

inesquecível data de 30 de Maio de 1979.

Pela primeira vez na vida, o Manuel falava com alguém que o podia ajudar a pôr fim

a um mistério que o torturou em duas décadas de consecutiva alcoolidade, ou seja – em boa

verdade – dois terços da idade que constava do seu bilhete de identidade, assistindo-lhe

durante uma hora a graça e a felicidade de ser examinado por um GRANDE médico, o Dr.

Leitão de Barros. A este contando e nunca aldrabando, o rapaz desbobinou toda a vida

rocambolesca que ia levando. No final da conversa, o médico diagnosticou:

- Perante o que me acaba de dizer, só vejo uma solução: interná-lo. Quer ser

internado?

- Quero sim, senhor doutor.

- Então fica já cá hoje.

- Eu não sabia que podia ficar e não venho preparado para isso.

Conversaram mais um pouco para acertar pormenores e encontrar data para o

regresso do paciente.

De volta a Campo Maior pediu aos colegas do conselho de turma, de que era o

director, para fazer mais cedo a reunião final do 3º Período.

Page 42: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

42

Todos concordaram, excepto o Presidente do Conselho Directivo, que não autorizou a

antecipação, por já ter dado uma nega a um outro professor que lhe tinha feito o mesmo

pedido. O Manuel tinha o internamento agendado. Entregou o dossier de turma àquele

dirigente, sugerindo-lhe que presidisse ele próprio à reunião porque no dia xis pê tê ó foi

mesmo para Lisboa. P’ra vilão, vilão e meio.

Tendo um mês para fazer as despedidas, as bebedeiras pegaram umas nas outras, ou

melhor, foi só uma, como no Porto. Boémia perpétua.

Rambóia que se prezava de ser e bom consumidor da Vinhataria Portucalense,

durante duas décadas, naqueles trinta dias fez uma despedida endeusada ao vinho e à

aguardente, à cerveja e ao brandy, dizendo: “Adeus, garrafas, garrafinhas e garrafões, hic!

Acreditem, porque é verdade, hic! Vou ter saudades vossas, hic!”.

Decidiu-se. Já tinha tresmalhado a conta às vezes que prometera a si próprio deixar de

beber, sem, no entanto, ter sido capaz de cumprir a promessa, sabendo que estava doente e os

médicos já há muito que não lhe rezavam pela pele. Viria um dia em que perderia o emprego,

ou até a própria vida antes do prazo normal de validade. Havia dois filhos, de quem sempre

gostou. O casamento já há muito que se tinha tornado rude, sem carácter.

A figura do professor que gostava de ser tornou-se denegrida aos olhos da sociedade e

em particular, no seio da comunidade escolar. Todos tinham pena dele, ao mesmo tempo que

comungavam da opinião é-bom-rapaz-mas-o-triste-é-gostar-tanto-da-bebida.

Tinha agora nas mãos – e pela primeira vez – a oportunidade soberana de ser o

homem que nunca foi. Não a deixou escapar.

Sabia o que queria. Aceitou o internamento, na espectativa de ver resolvidas todas as

adversidades gratuitamente infligidas.

Porque terá um tipo assaz bom rapaz, como o Manuel da Graça, deixado estatelar-se

neste tipo de desgraça voraz?

Ao certo, ao certo, não o sabemos.

O que sabemos é que – como qualquer outro animal – o animal autodito racional,

sendo produtor do meio ambiente também por ele é produzido (aliás, como qualquer planta)

mas, porém, todavia, contudo como produtor consegue muitas vezes – contra tudo e contra

todos – afirmar a verdade da sua vontade individual. Que o diga Galileu “Ai vocês pensam

que a Terra está parada? Pois fiquem sabendo que gira sobre si própria”. E como disse o

intelectual analfabeto António Aleixo:

Page 43: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

43

Não sou esperto nem bruto,

nem bem nem mal educado.

Sou simplesmente o produto,

do meio em que fui criado.

Portalegre – Fábrica Robinson Bros. Laborou século e meio.

Nunca um bebedor de 1ª categoria – como este rapaz o foi – deixa de consumir contra

a vontade própria e não há nenhum tratamento que resulte nesse sentido.

Atrás desse milagre costuma andar a família do doente, sem resultado nenhum.

Acontece que o Manuel não acredita em milagres.

O Manuel era, em exclusivo, um consumidor militantemente profissionalíssimo da

Vinicultura Portuguesa. Isto, ele sabia-o.

O que talvez não soubesse é que sofria de uma doença permanentemente progressiva,

tendencialmente definitiva e insuportavelmente excessiva na perda de controlo.

Para atingir o estado doentio a que chegou percorreu, como tantos outros, este

caminho: começou por uma fase pré-alcoólica; nunca foi um bebedor ocasional, ou

esporádico; rapidamente se tornou num bebedor regular, de consumo elevado, habituando-se

a grandes quantidades de álcool sem, no entanto, manifestar sinais visíveis de embriagues.

Fez parte da maioria dos bebedores habituados ao consumo desmesurado, cujo hábito em

geral é de origem familiar ou social.

Teve perdas de memória por não conseguir lembrar-se no dia seguinte do modo como

chegou a casa, nem do que disse, nem do que fez.

Page 44: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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Apesar de não muito embriagado e – muito menos – em estado comatoso, mantendo-se até

em plena actividade, além desta amnésia temporária lhe ser muito desagradável, o não

alcoólico, de um modo geral, não a aceita nem a compreende.

Intermitentemente tomava a resolução de não mais beber. No entanto, sem renunciar

às suas boas intenções, arriscava beber o suficiente, até chegar à embriaguês completa.

Algumas vezes teve tentações de abstinência, experimentando beber moderadamente,

conseguindo deixar de beber durante uns dias, sonhando que podia deleitar-se com um copo,

para ficar rapidamente desapontado quando constata, a curto prazo, que não consegue ser um

bebedor moderado.

Arranjou pretextos para beber desmedidamente, autojustificando os excessos,

arranjando sempre desculpas para a embriaguês.

Bebeu muitas vezes isolado, duma forma anti-social, abandonando os amigos e – a

sós ou com desconhecidos – não parou de beber.

Sofrendo de um complexo de culpa, acumulou remorsos e agravou a situação quando

começou a beber logo pela manhã, “para acalmar os nervos”, dizia.

Passou a ter uma saúde precária. Vergando sem partir, nunca abandonou o emprego

nem foi convidado a ir para o olho da rua. Porém, quando o trabalho lhe estorvava o encanto

da possibilidade de beber como ele queria, sempre que a secura o apertava, dava folga ao

patrão.

Desenvolveu alcoolemias elevadas, aprendeu a controlar os efeitos da embriaguês,

exercendo um controlo e uma vigilância do próprio comportamento.

Ao atingir a fase crónica bebeu dias inteiros sem conta, peso e medida, semanas a fio.

Aprisionou-se em si próprio e – assim sozinho – nunca foi capaz de se libertar.

A sua única preocupação estava concentrada – apenas e só – na bebida. A existência

era uma desistência.

Não estupidificou. Não passou de rico a mendigo. Não roubou o pão aos filhos. No

entanto, para mal dos seus pecados, foi escravo do álcool. Por incrível que pareça, nunca teve

qualquer tipo de acidente de trabalho nem de viação.

Tinha uma noção de tudo isto, ao mesmo tempo que gostava de o não ser. Sofria de

desdobramento de personalidade, arriscando a própria identidade.

Uma coisa o rapaz nunca alimentou: o sonho do alcoólico – todo o bebedor excessivo,

sem excepção – pensa que depois do tratamento pode beber moderadamente. Não pode. A

Medicina ainda não fez esse milagre e aliás – como já se disse – o Manuel não acredita em

milagres.

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45

Ao deixar de ser bebedor moderado para se tornar bebedor excessivo, só há uma

opção: deixar de beber, porque deixou de saber beber. E era isto que o rapaz pretendia: que o

ajudassem a parar de beber. Para bem dele, nunca teve aquela visão utópica.

O Manuel pegou voluntariamente em si próprio e fez – sem medo e sem escrúpulos –

um inventário minucioso de todas as pessoas a quem ofendeu, na disposição de lhes reparar o

dano e também na esperança de merecer a confiança de quem ainda acreditava nele: a Mãe e

só a Mãe.

Foi Ela e sempre Ela que acreditou que o filho conseguiu, pedra por pedra, construir

dos escombros a fortaleza que levantou da derrota. Todos os outros são ateus propagandistas:

“O quê? Tu abstémio?! Ó Manel, vai contar essa ao Gadanha de Estremoz…”

De onde se conclui que toda a gente continua a ver o Sol a girar à volta da Terra.

O Manuel deixou-se de autojustificações cretinas e transformou a pertinácia de

alcoólico invertebrado na perspicácia de recuperado vertebrado.

Monte da Vinha na actualidade

Page 46: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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CLAVE DE SOL

No dia em que tinha o internamento marcado saíu de madrugada, pegou no automóvel

e partiu sozinho. Ao chegar ao Barreiro, entregou a viatura ao cuidado do Parque de

Estacionamento dos Bombeiros Voluntários e passou de barco para o outro lado do Tejo.

No Terreiro do Paço apanhou o 45, que o deixou mesmo à porta do Hospital.

Eram nove horas da manhã do dia 2 de Julho de 1979, quando o Manuel chegou ao

Centro António Flores, Hospital Júlio de Matos, em Lisboa.

Antes, porém, de transpor a entrada do Hospital, quis acreditar que ia tomar a última

bebida e fê-lo: bebeu duas cervejas médias no Ganso, do outro lado da rua, para voltar a

atravessar a via e, definitivamente, virar as costas à fase agridoce da vida que levara durante

duas décadas.

Como quem vai ou vem de viagem, ali estava ele, de livre vontade, com a mala na

mão, disposto a aceitar a ajuda que aquela casa lhe oferecia.

Foi recebido com um sorriso pelo enfermeiro de serviço:

- Então, sempre veio?

- É verdade, cá estou.

- Entre e venha comigo, vou-lhe mostrar a casa.

Subiram ao segundo andar, onde ficavam os quartos e a enfermaria, que tinha camas

vagas; o Manuel ficou instalado num quarto.

Desceram ao primeiro andar, onde ficavam o refeitório e uma sala polivalente, com

um pequeno bar com café, água, sumos e havia mesas e sofás para receber as visitas, leitura,

jogos de cartas, dominó, xadrez e televisão. Ao fim de algum tempo – um jogo, uma bica, um

jogo, um sumo – era a monotonia: não rimava com a hiperactividade alcoólica.

Ao fundo do corredor havia uma outra sala, sem uso, destinada a ocupar o tempo livre

dos internados. O Manuel, como professor de Trabalhos Manuais, prontamente encheu

aquele compartimento de obras a fazer.

A maioria concordou e o que até então era passar o tempo sentado a ler ou a jogar,

passou a ocupar-se na execução de objectos práticos com o material que se conseguiu

arranjar: sisal.

Os pacientes tinham uma característica comum, sofriam todos do mesmo mal, uns

mais maltratados do que outros.

Page 47: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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Por isso mesmo, depressa se familiarizaram, num total de quinze homens, oriundos de vários

pontos do País, dos quais a maioria era de Lisboa e arredores.

A história de cada um lia-se-lhe no rosto e no comportamento anedótico,

característico das opulências avinhadas por que passaram durante anos a fio, atados uns nos

outros.

O tratamento dividia-se em três partes: Desintoxicação, Desabituação e Reintegração.

A Desintoxicação era própria de cada um, mais ou menos prolongada, segundo o grau

de alcoolismo apresentado pelo paciente, pois cada caso era um caso e a medicação não era

igual para dois combalidos. “Não há doenças, há doentes”.

A Desabituação constava de Terapêutica de Grupo, orientada pelo Dr. Leitão sempre

com a presença de enfermeiros, em reuniões semanais de extrema importância para a

psicologia do enfermo. Alguns não gostavam. Nem do agrupamento, nem do médico. Diziam

que as duas coisas eram chatas. Outros, como o Manuel, aprenderam muito naquele grupo.

Todos tinham uma história alegremente triste para contar e foram estas crónicas, muitos

casos contados, que martelaram na cabeça do rapaz, durante os trinta dias que ali

permaneceu. Uns eram divorciados, outros separados e o moço ainda era casado. Alguns

conheciam bem os dormitórios das esquadras de Polícia. Havia um que, trabalhando na

Gerência da Rodoviária Nacional, acabou a lavar autocarros.

Sobre a Reintegração falaremos mais adiante.

Um belo dia, o Manuel sai com o Zé Espada a comprar jornais e tabaco para outros

que não tinham autorização de abandonar as instalações. Quando regressa o enfermeiro

chama-o ao Gabinete Médico:

- Entre, feche a porta e sente-se.

O rapaz desconfiou de atendimento tão personalizado. Não podia ser coisa boa. Diz-

lhe o enfermeiro, mostrando uns papéis:

- O seu superior deve ser casca de carvalho. Sabe o que é isto?

- Sei. Esteve cá o Delegado de Saúde, para confirmar se eu cá estava.

- Exactamente. E vinha quase com a certeza de que você não estaria.

- E não. Estava na rua.

- Isso não interessa. Para todos os efeitos, está cá internado e era isso que ele queria

saber. Assinei-lhe o documento e saiu positivamente desiludido, porque vinha convencido de

que não o encontraria aqui.

Quando o Manuel pediu ao professor Lino que lhe deixasse fazer a reunião mais

cedo, este nunca acreditou que o rapaz se fosse internar, nem ele, nem ninguém lá no burgo.

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Passados quinze dias, o rapaz foi de fim-de-semana. Chamavam-lhe a Prova de

Resistência, depois daquele tempo em clausura. O moço sentiu-se criança, fora das paredes

do hospital, onde se achava seguro.

Passou por todas as tabernórias conhecidas e não conhecidas, sem, por incrível que

pareça, ter tido a tentação de entrar numa ou noutra.

Não fez como o outro, que depois de percorrer a rua de uma ponta a outra, voltou-se

para trás e disse: “És um herói, pá, passaste por todas as capelinhas e não entraste em

nenhuma. Mereces um copo pela proeza”.

Fê-lo e recaiu, para nunca mais voltar ao Centro.

Quando regressou ao hospital, o Manuel não se livrou da interrogação costumeira do

enfermeiro Ponce:

- Bebeu?

- Não, senhor enfermeiro.

O enfermeiro Ponce era um homem experiente e sem mais palavras, acreditou no

rapaz. O moço subiu ao aposento para arrumar a bagagem por mais quinze dias e, logo de

seguida, foi ter com os companheiros à sala, onde os camaradas estavam ocupados a

trabalhar o cordel, na execução de vários objectos. Também lá tinha o trabalho dele, andava a

fazer um saco, para oferecer a uma enfermeira estagiária.

Um dia o dr. Leitão chegou e não viu ninguém na sala de estar. Perguntou ao

enfermeiro onde estavam os doentes.

- Foram-se todos embora, senhor doutor. Nenhum gostava de cá estar.

O médico não respondeu e o enfermeiro conduziu-o àquela sala de trabalho. Quando

entrou, o clínico concluiu:

- Ora cá está o que faltava nesta casa: saber ocupar o tempo, para que este não seja

enfadonho. Quem foi o autor da ideia?

- Foi o professor, que só podia ser de Trabalhos Manuais.

- Muito bem. Mais tarde havemos de falar nisto. Agora vamos para a reunião de

grupo, que já são horas.

E lá foram para mais uma terapia – como já dissemos – de que uns gostavam e outros

não, mas do que todos gostavam mesmo era de estar ocupados a fazer o que queriam e só não

trabalhavam pela noite dentro, porque o toque de recolher era à meia-noite. No dia seguinte,

às oito da manhã, já lá estavam outra vez.

Page 49: A Fortaleza Que Se Levanta Da Derrota

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Durante o mês de internamento o Manuel aprendeu o que lhe fazia falta para

sobreviver na selva humana, quando um dia voltasse à terra e ao contacto com os amigos de

sempre. De tudo o que assimilou, gravou na memória que uma recaída é pior que um

primeiro internamento.

Estudou o caso na pessoa do Zé Espada, alentejano de Grândola, ali inserto pela

segunda vez, que, quando de lá saiu, pouco tempo aguentou de vida, porque – nunca

deixando de beber – a Morte cumpriu a sua missão neste mundo, levando-o para o outro.

O Manuel foi um paciente que soube relacionar-se com toda a gente do Centro. Ao

fim de três dias, excepcionalmente, já andava na rua com outros e por vezes sozinho, quando

isso só era permitido no final de uma semana. Se não estava na sala a trabalhar, andava na

Avenida aos mandados para este e para aquele. Certamente mereceu a confiança dos que o

observavam e, por ser pacífico, gozou de privilégios.

Quando fez exactamente trinta dias de hospitalização, o Manuel teve alta.

No dia em que saiu, já depois de se ter despedido do Dr. Leitão, reparou que os

companheiros que também saíam com ele, iam todos medicados para casa, menos ele.

Voltou ao gabinete médico, para falar da medicação que não levava e o doutor

respondeu-lhe “Não, o senhor não precisa de levar nada. Volte cá no dia que lhe marquei no

Cartão de Utente”.

Lá foi, sem nunca ter percebido até hoje porque é que não levava um avio

farmacêutico como os demais.

Antes de transpor a porta que o punha de novo no meio da bicharada humana, voltou

a passar por aquele quadro pendurado na parede, para se despedir do fragmento ali escrito e

que nunca mais esqueceria:

Para onde vou não sei,

o que farei, sei lá.

Só sei que me encontrei

e que sou eu, enfim.

E sei que ninguém mais

rirá de mim!

(do Vendaval, de Tony de Matos)

A Reintegração Social iniciou-a por conta e risco, à risca e à rasca, desde o dia em

que voltou para casa, até hoje e enquanto for vivo, sem a ajuda de ninguém, ou melhor, os

que não o conheciam é que o ajudaram, peculiarmente os espanhóis. A sagrada família não

foi para aqui chamada.

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Talvez por ter sabido fazer uma despedida endeusada, S. Baco perdoou-lhe o

abandono do culto, não o deixando ficar com saudades de outros tempos, permitindo-lhe que

abrisse caminho ao encontro do homem que queria ser. E assim foi.

Tal como naquele dia decidiu deixar de beber, tinha agora tomado a firme decisão de

nunca mais voltar a ser o que era.

Aprendeu na escola da vida que a sociedade de que faz parte não está minimamente

interessada na recuperação de ninguém.

O Estado da sociedade de consumo não tem competência para promover e aplicar

medidas de profilaxia da praga social do alcoolismo, não tem inteligência para se sobrepor

aos interesses instalados dos produtores de bebidas alcoólicas, os quais constituem poderosos

grupos de pressão e sólida barreira de protecção do álcool. A inépcia revelada pelo poder

central tem conduzido, jovens e adultos, homens e mulheres a um considerável aumento no

consumo de bebidas alcoólicas, tanto nos países industrializados, como naqueles que se

dizem em vias de desenvolvimento, de onde se conclui que o problema do alcoolismo em

Portugal não é para resolver, é para servir de refeição a um milhão de portugueses,

deturpando aquela frase do Doutor António Salazar, hoje assim interpretada, porque já

ninguém se recorda, nem do estadista, nem do que é que ele queria dizer, quando afirmou

«Beber, é dar de comer a um milhão de portugueses».

O leitor recorda-se, quando uma vez determinado governo em exercício quis mexer

na Lei do Álcool? A taxa de alcoolemia era de 0,5 gramas/litro no sangue e pretendia-se

baixá-la para 0,2 gramas/litro no sangue. Aos vinicultores deu-lhes diarreia mental, saíram à

rua, esgazeados e histéricos, a berrar “Como é que nós escoamos a produção, se o governo

quer que se beba menos”?

O governo maricas recuou e aqueles dementes ficaram todos felizes.

À escola também não podemos pedir seja o que for, em termos de informar e prevenir

sobre o flagelo do alcoolismo, pois o ensino português não acompanhou o compasso da

música dos tempos modernos, nos últimos trinta e cinco anos, enjeitando o pouco de útil que

ainda compunha: instruir. Por isso a I República chamou Ministério da Instrução – e não da

Educação – à entidade tutelar. As instituições escolares hoje mais não são do que grandes

armazéns, onde os alunos passam o dia enjaulados na sala de aula cinco ou seis dias por

semana, quatro ou cinco semanas por mês, nove ou dez meses por ano, sob o olhar

esbugalhado dos professores, para os pais poderem trabalhar descansados, mas nem o

trabalho – quando o há – lhes dá descanso e a criança perdeu o direito de brincar, indo fazê-

lo, se calhar, quando for velhinho…

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E como se isto, por si só, já não fosse deplorável – segundo o professor Francisco

Manso, de quem o Manuel teve o privilégio de ser aluno, quando voltou à escola aos

quarenta anos – a escola forma analfabetos funcionais de segunda, para que legiões de

iletrados continuem na formatura, de acordo com as estratégias governamentais, às quais não

interessam povos que saibam ler e – muito menos – escrever: a cultura foi sempre

politicamente perigosa.

No tempo da extremíssima Direita, as pessoas tinham medo de tudo e o cagaço

chamava-se respeito. Em democracia, o homem passou a confundir liberdade com

libertinagem e a mulher passou a confundir liberdade com pouca-vergonha. Há cagaço e não

há respeito.

O Manuel – que não se parece com ninguém – é um bicho raro em vias de extinção.

Aprendeu com o professor Agostinho da Silva – Liberdade, é eu poder dizer o que quiser,

onde quiser, sem ter de provar nem uma coisa nem outra.

Nos horizontes da memória do rapaz, a malta estudantil aos quinze anos tinha um

curso, sabia trabalhar e não havia desemprego. Hoje um aluno com a mesma idade não tem o

sexto ano, está fora da escolaridade obrigatória e a escola, mesmo que o aceite, não vai para

lá fazer népia. Também não pode ir trabalhar, é menor. Então para onde vai? Vai ter com a

maralha, que anda no gamanço, no alcoolismo, na droga, na prostituição e noutros produtos

da sociedade moderna civilizada.

Dissemos analfabetos de segunda? E dissemos muito bem, pois temos de os saber

diferenciar dos de primeira – os analfabetos literais – que nunca tiveram a felicidade de ir à

escola e cuja ignorância era – parece que ainda é – de todo o interesse de quem governa,

como já dissemos. Continuam a perdurar neste rectângulo de terra à beira-mar ostracizado,

pois o Manuel teve alunos filhos de analfabetos puros. Não estamos no séc. XXI, pois não?

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Escola Industrial e Comercial de Portalegre.

A partir da formação de analfabetos de segunda, o Manuel não precisou mais de ser o

professor que aprendeu a ser no Porto, comportando-se apenas como um colega mais velho

dos alunos, pois já não era necessário ajudá-los a passar de ano, visto que a (in) competência

governamental resolveu o problema do insucesso escolar – de acordo com a C.E.E. – de

forma quantitativa: passou a escolaridade obrigatória do sexto para o nono ano. Espertos e

burros, benfiquistas e sportinguistas, fascistas e comunistas, altos e baixos, gordos e magros,

passa tudo, minha gente!

O analfabetismo de segunda é bem mais grave que o de primeira. Este não sabia, não

contestava. Imaginemos dois analfabetos de segunda que – segundo Joaquim Letria – já nem

falar sabem: grunhem. Ambos lêem a mesma informação, ambos a interpretam mal e cada

um, de sua maneira, a leva para a prática e os dois fazem esterco à entidade patronal.

O prezado leitor se não sabia, ficou agora a saber: a ignorância em Portugal resolve-

se com a formação de analfabetos.

Na opinião de uma conceituada jornalista portuguesa, cujo nome nos escapa, o ensino

em Portugal está como sempre esteve: à espera de um milagre. É bem capaz de ser verdade,

pois como sabemos, o ensino teve origem na Igreja católica. Ora esta foi de todos –

parafraseando A.S. Neill – o maior erro da Humanidade. Foi o tédio e o marasmo que

atrofiaram o desenvolvimento das civilizações ocidentais, desde Portugal até à Itália. Logo, o

ensino oriundo de um desacerto não pode ser o que gostávamos que fosse, ou seja, por outras

palavras mais genuínas, o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita.

Tementes a Deus, trementes p’la Pátria e tenentes da Família, temos que acreditar na

História: os portugueses nunca se souberam governar. Já quando os romanos por cá

passaram, um centurião disse “Que raio de povo é este, que não sabe nem se deixa

governar?”

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El-rei D. Carlos parece ter dito uma vez que era rei da piolheira e o nosso querido Eça de

Queirós deixou escrito que a sociedade da época era endémica – para quem não sabe, fica a

saber – que é uma doença característica da falta de higiene. Está tudo explicado: os genes

humanos têm milhões de anos e os que herdámos aí estão eles, vivinhos da costa.

Não desperdicemos mais tempo com a Escola, que não vamos a lado nenhum!

Voltemos ao Manuel.

O rapaz teve que enfrentar as mesmas pessoas, desta vez do lado oposto.

Outrora, apontavam-lhe o dedo quando bebia, agora interrogavam-se porque é que

andava de sequeiro, isto é, porque é que não mamava só um copinho que fosse? Não faz mal

a ninguém, diziam! Até tem muitas vantagens: é vasodilatador, é digestivo, é relaxante, é

anestésico...

É caso para dizer: “Santa ignorância e reles humildade”.

Como diria o Cristo: “Perdoai-lhes, Senhor, que eles não sabem o que fazem” – no

caso, o que dizem.

Estávamos no verão de 79 e as tentações encontravam-se em todo o lado. No entanto,

durante os primeiros três meses após ter saído do hospital, o Manuel não teve qualquer

problema em continuar a fazer uma vida normal, sem pinga de álcool.

O organismo ainda estaria anestesiado pelas mesinhas que lhe tinham dado e no

pensamento ainda bailavam os casos que tinha ouvido, de entre os quais as histórias do Rui

Lagido e do Zé Espada. Duas crónicas, na primeira pessoa, que jamais esqueceu.

Depois começaram os riscos. Não nega nem nunca negou que algumas vezes se não

negou e um dia pediu uma cerveja.

Antes, porém, de lha servirem, virou costas ao balcão, porque se recordou daquela

utopia que lhe ensinaram, quando esteve internado: o sonho do doente alcoólico. Como já

dissemos, a Medicina ainda não fez esse milagre, para desconforto dos crentes que acreditam

no prodígio.

O bebedor moderado não precisa de ser tratado. Bebedores industriais, como o Manuel o foi,

têm que recorrer ao tratamento, neste caso, ao internamento.

A única alternativa é deixar de beber e aprender com outros, que já o fizeram, a viver

sem álcool para o resto da vida. Se for capaz. A maioria não o é, faltam-lhe os cagones.

Segundo o dr. Bernardes Correia, médico em Coimbra, um homem para deixar de beber de

vez, tem que ter um par de tomates pretos e no lugar, mas a maioria tem-nos cor-de-rosa e ao

pendurão.

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Seja como for, é uma acrobacia nada fácil na sociedade portuguesa, tão artificial na

formação e na cultura, tão cínica e hipócrita, tão invejosa e má, tão ignorante e

preconceituosa e como auréola de tudo isto, tão estúpida, muito estúpida!... (Já sabemos o

que é ser estúpido em Portugal).

O Manuel há trinta anos que se tornou equilibrista no trapézio e no arame, para

embasbacamento dos que o observam, à espera de o verem pôr um pé incerto e estatelar-se,

para nunca mais se levantar. Isto, ele sabe, se caísse era de vez e se tal acontecesse, aleluia,

aqueles ignorantes e reles humildes morriam felizes.

Só que o rapaz é um bom bailarino – já o sabemos – ficando agora o prezado leitor a

saber que era sobrinho-neto do conhecido artista de Circo, que se chamou Quinito e que ficou

na História da Arte Circense com esta frase: “Quantas vezes, nós palhaços, fazemos rir

com vontade de chorar!”...

O Manuel deve ser enviesado de nascença, pois não há nada, mesmo nada, que o

convença a trocar a independência que sabemos ter conquistado.

Aprecia esta vida como uma oportunidade única e, como tal, procura vivê-la com os

pés assentes na terra, dispensando a luz do Céu que não lhe faz falta para coisa nenhuma.

Este rapaz não deve ser de tempo, embora a sua senhora mãe dissesse que era de nove

meses. Será que a D. Maria não se enganou a contar as luas?

Como nunca cedeu, alguns picavam-no “O quê, agora não bebes? Já sei, andas a

mandado da mulher…”. Ou então o desabafo “Não acredites… Não bebe aqui, vai beber a

outro lado…” Até jogaram na sorte do moço “Queres apostar que não há-de demorar muito

tempo que não esteja a beber outra vez? Espera só, para veres….”

Divertiu-se quando descobriu este desafio, lamentando, ao mesmo tempo a pouca

sorte dos apostadores. Alguns já partiram para o país das grandes caçadas, segundo a cultura

índia, a borbulhar de cólera, por nunca terem ganho a parada. Os que são vivos esperam

sentados, há trinta anos, que o Manuel caia da estabilidade adquirida. Como continuam

parvos à espera do que não acontece, vão-se aliviando “Não acredites. Mais dia, menos dia,

há-de voltar a beber connosco”!

O rapaz, felizmente, não tem uma inteligência bronca e isso ajuda-o a ignorar aquelas

míseras bocas famintas do descalabro.

No entanto o calor de Agosto começou a fazê-lo sentir dificuldade de escapar ao

encantamento de uma grade de cerveja fresquinha ou a uma garrafa de aguardente de 35º,

porta aberta para noite quase sempre pequena e que só terminava de dia.

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Soube resistir até ao dia em que girou para Lisboa. Voltou a sentir-se seguro, naquele

hospital, mas ao mesmo tempo incompleto, por saber que não ia lá ficar. Na consulta com o

Dr. Leitão fez acreditar a este amigo que em Campo Maior e arrabaldes não havia outro que

tivesse feito o mesmo tratamento que ele e o Mário de Elvas já não era o mesmo, tinha

recaído, para nunca mais se levantar. O médico pensou no problema do rapaz:

- Diga-me: vocês, professores, às vezes não são colocados em sítios para onde não

desejam ir?

- É verdade, senhor doutor, às vezes temos que concorrer a nível nacional para

garantir a colocação.

-Então coloque-se você assim e desapareça da terra onde está. Vai ver que tudo será

diferente.

E assim seria. O Manuel concorreu para o Minho e foi colocado em Cabeceiras de

Basto, onde exerceu no ano lectivo de 79/80.

Aqui tudo era distinto, menos as relações com a esposa, que bem podia ter ficado em

Campo Maior a chocalhar com os demais que continuavam a não acreditar no rapaz.

Uma vez mais, soube entabular amizades, desta vez no estado sóbrio.

Quando o convidavam para beber, desculpava-se – com uma mentirinha inocente –

dizendo que andava a tomar um medicamento que não lhe permitia ingerir álcool.

As pessoas acreditavam e não se falava mais no assunto. Aos colegas disse sempre

quem era “Não bebo, porque sou um alcoólico recuperado”. Todos, sem excepção, o

aceitaram sem pestanejar.

Por não o conhecerem com outra conduta, habituaram-se a vê-lo a beber água ou

sumo à refeição e tomar café, sem mais nada.

No final do ano lectivo os professores fizeram a festa de encerramento e é curioso que

os colegas pediram ao Manuel que fosse ele a arranjar as bebidas para o festim, coisa que não

o atrapalhou.

Não se esqueceu dos sumos, mas levou bebida alcoólica à consignação e em

quantidade de taberna, não fosse a pinga faltar no meio do festejo, o que era pecado sem

perdão, terminando a farra já depois de o sol se ter levantado, quando alguém alertou “Ó

pessoal, como é que é? Temos reuniões às nove horas”.

Pela primeira vez e depois de deixar a “lixívia”, o rapaz divertiu-se a valer. Comeu e

bebeu os refrigerantes que lhe apeteceu e dançou toda a noite.

Foi o primeiro melhor ano escolar que teve desde que se iniciou na carreira de

docente.

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Sendo extraordinariamente bem aceite na comunidade escolar e sabendo relacionar-se com as

pessoas, sentia-se comprazido com a simpatia e respeito de todas as classes

socioprofissionais.

No entanto nem tudo são rosas. As relações matrimoniais não eram o que seriam de

esperar. Continuavam toscas, mesmo com o rapaz, desta vez, a fazer boa figura.

Um dia, baralhadinho das ideias e pondo em dúvida o funcionamento da massa

encefálica pela desarmonia conjugal, resolveu ir até Lisboa falar com o venerável médico que

o tratou.

Como era fim-de-semana, sabia que o encontrava na Sociedade de Ajuda aos

Alcoólicos Portugueses. E lá foi de popó até ao Porto e daqui, de comboio, até à capital.

Naquela Sociedade, o dr. Leitão fazia reuniões com os recuperados e era isto que o

Manuel precisava: ouvir outros, bem como a opinião do médico, para ajuizar o que de melhor

lhe aprouvesse no comportamento que assumira e não queria perder.

Todos perceberam o problema do rapaz, dizendo-lhe um enfermeiro “A sua esposa

dificilmente lhe passará a pasta que agora sabe ocupar, porque desde sempre se habituou a

desempenhar as duas pastas: a sua e a dela”.

Isto era verdade. A Catarina conheceu o rapaz a beber, a beber casou com ele e com

ele viveu também, durante seis anos, no estado pingão, vinte e quatro horas por dia.

Embora no estado sóbrio, o Manuel ainda aguentou mais sete anos na prisão a que

tinha sido condenado, depois de ter deixado de beber. Ao que parece, à Catarina era-lhe

difícil saber aceitar uma mudança tão aperfeiçoada.

O Manuel agora era o antagónico do que tinha sido e isso não estava previsto em lado

nenhum, surpreendeu tudo e todos, sem ter prevenido ninguém. Não fora com este Manuel

que ela casara, mas com o outro que conhecera. Ora bolotas!

Nos anos lectivos de 80/81 e 81/82, foi colocado no concelho do Barreiro, aí fazendo

a Profissionalização em Exercício e onde os colegas não tinham nada, rigorosamente nada a

ver com os companheiros sadios do norte.

Os minhotos eram pessoas de mente sã, com as quais o Manuel se identificava. Os

colegas da escola do Lavradio, onde estava agora colocado, mais não eram do que um bando

de aliados obtusos, obcecados por uma utopia enganosa, sem capacidade para entender que a

fantasmagoria que idolatravam jamais salvará o Mundo.

O rapaz nunca devia ter concorrido para aquela zona. A imprudência saiu-lhe cara.

Teve que saber lidar com indivíduos que o aborreciam e nada tinham a ver com ele.

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No final dos dois anos, uma vez mais procurou o dr. Leitão, para o não deixar cair em

desgraça, por culpa daqueles toscos, que nunca o aceitaram tal como era. Marginalizaram-no

por ser alcoólico recuperado. Soube-o por um colega mais velho, que lhe confidenciou “Você

nunca devia ter dito aqui que é um alcoólico recuperado. Estes cultores do incultismo jamais

o aceitarão, como são bem capazes de o prejudicar”. E assim foi. Deram-lhe uma

classificação de 10,8 e só não o reprovaram porque, de broncos que eram, ficaram felizes por

ser o professor pior classificado.

Podia ter feito a Profissionalização em Exercício algures no Norte, onde foi e

continua a ser bem recebido por toda a gente, em vez de, por desconhecimento, ter caído em

Cunhalgrado – para quem não sabe, é todo o distrito de Setúbal e arredores – onde, por não

ser da mesma laia, não lhe foi reconhecida nenhuma valia, nem como pessoa, nem como

professor.

No dia 28 de Março de l982, um domingo, realizou-se em Lisboa o primeiro

Congresso Nacional de Alcoólicos Recuperados, patrocinado pela Sociedade de Ajuda aos

Alcoólicos Portugueses. O Manuel não podia faltar a este evento.

Ali encontrou alguns amigos que com ele tinham estado no Centro António Flores

três anos atrás. Conheceu outros com os quais se voltou a encontrar um ano mais tarde, em

Madrid.

Foi um tipo de convívio, do qual o rapaz não fazia a menor ideia. Tudo foi surpresa e

admiração, do princípio até ao fim.

A gratificação mais amorosa que jamais estaria à espera e que lhe aconteceu, foi

quando desceu do palco, onde recebeu um louvor pelos três anos de recuperado. Ao levantar

os olhos, caiu-lhe na frente um maná vindo do Olimpo, uma pessoa que o foi congratular: a

Ana Maria, de Évora!

Por um momento, o rapaz ficou suspenso perante aquela presença. A Ana tirou-o

daquele estado com um beijo na face, dizendo-lhe: “Parabéns, és um homem”.

O rapaz ficou estupefacto, sem palavras. Tinham-se passado treze anos e nunca mais

pensou que voltava a ver a Ana Maria e logo ali, naquele evento.

A Ana continuava igual a ela própria. Ainda era solteira e estava feliz. De todas as

cachopas que o rapaz conheceu, a Ana Maria foi a que mais impressionou o Manuel. Tinha

uma postura ímpar, sabia estar e achar-se naquele acontecimento enterneceu-o até ao âmago.

Leu-lhe um bem-estar, do qual o rapaz não podia comungar.

Só tinha deixado de beber. Estava a cumprir – como sabemos – uma pena de prisão

conjugal, sem direito a recurso e que duraria treze anos, após os quais desertou.

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O seu maior desejo, naquele momento, era aproximar-se daquela mulher, pela qual nutriu um

bem-querer quando a conheceu e que a ausência não tinha apagado. Ambos sabiam que isso

não podia acontecer. Revelando-se dois bons amigos, voltaram a encontrar-se enquanto o

rapaz esteve no Barreiro.

Nos momentos em que passearam e jantaram juntos em Lisboa no João do Grão,

falaram de coisas sadias de outros tempos, quando se conheceram em Évora, das serenatas

que fez à Ana com outros copofónicos junto do Templo de Diana, onde se cantava, ora no

jardim, ora na parede defronte ao Lar do Menino Jesus, permanentemente com um polícia de

atalaia e com a pertinência de inquirir junto da malta, que o recebia sempre com o afinador

de garganta e ao qual o guarda não era alérgico: um garrafão de cinco litros verde maduro.

Recordaram os paulatinos giros que fizeram no Jardim Municipal, onde passeavam

nas tardes nobres de domingo e mais não deambularam, porque as mulheres são invejosas

umas das outras, como já sabemos, assim como os homens são ordinários.

Sobre isto, tiveram oportunidade de esclarecer um ao outro a maledicência, o ciúme e

a inveja daquela mulher, que um dia lhes deu cabo do bem-querer mútuo. Ficaram saudáveis

amigos. Outra coisa não era de esperar.

A recordação destes episódios levavam-no, em pensamento, a andar para trás no

tempo e ajudavam-no, embora por alguns instantes, a desanuviar do ambiente ordinário da

escola onde estava, cuja amizade estabelecida e que ainda hoje mantém, foi apenas e só com

o Joaquim da Luz, quiçá por ser algarvio que – na gíria popular – é um alentejano sem

travões.

Quando em 1981 o guarda-nocturno da escola foi reformado o Manuel passou a

ocupar o lugar deixado em aberto e, como tal, dormia na escola com a bênção do Conselho

Directivo, ao qual pediu que lhe deixasse arrumar a tranquilitena de professor-tendeiro

naquele gabinete, pois chegou à triste conclusão de que não se aguentava nas canetas a pagar

€ 32.50 de renda de casa em câmbio actual, o que hoje seria uma pechincha, mas na época

era pesadote para a bolsa do rapaz.

A família foi para a terra e ele passou a fazer parte da família residente, dois pastores

alemães – mãe e filho – que por eles foi adoptado como pai da família e os três zelaram pela

escola no ano lectivo de 81/82, cujo policiamento nocturno foi sempre bem sucedido, pois os

amigos do alheio não se atreveram a entrar pelos buracos da rede que sempre lá existiram.

Na frente do portão principal e sob a luz de um candeeiro – não, não era o fado – pôs

o cartaz “Por favor não entre, os cães estão soltos!”.

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Um dia deixou-se dormir. Eram 8 e 30 da matina. Na portaria havia alunos,

professores e empregados para entrar. O valentão do funcionário que devia abrir a entrada

naquele dia não o fez, esqueceu-se da coragem em casa. Berrou, berrou e o Manuel nada.

Dormia com a porta aberta, o Rex entrou, lambeu a cara ao dorminhoco que se levantou todo

assarapantado e os cães na frente dele diziam-lhe em linguagem gestual “Vem-nos prender

para o medricas do Dimas poder entrar com a maralha que ainda está lá fora por tua e nossa

causa”.

O acontecimento deu azo às bocas desbocadas, mas o Conselho Directivo – na pessoa

do João – até achou uma certa graça ao comportamento do Manuel da Graça.

Por esta e por outras como esta, na escola do Lavradio o Manuel era um famigerado

fascista e nas escolas de Febres, Anadia e Mealhada era um celerado comunista.

Preso por ter cão, preso por não ter.

Resta-lhe a consolação daqueles cães nunca se terem preocupado com as suas ideias e

nunca ter sido preso por ser cão adoptivo e por deixar de ser.

No ano lectivo de 82/83, o Manuel foi colocado na Escola Preparatória de Elvas. Não

voltou a encontrar-se com a Ana Maria. Falaram algumas vezes pelo telefone e perdeu-lhe o

contacto, quando foi para Trás-os-Montes, no ano lectivo seguinte.

Em Elvas aprendeu a desprezar o estágio, dedicando-se a um trabalho bem mais

meritório, que desenvolveu em proveito de outros, ajudando-os a sair das garras do

alcoolismo, como ele e em boa hora, se libertou.

Nesta cidade, com a colaboração do jornal “Linhas de Elvas” e o apoio incondicional

do Hospital de Mérida – Espanha – onde nunca lhe foi negada a admissão de qualquer doente

que para ali levou, ajudou alguns bebedolas a recuperar a vida e a dignidade.

Para embasbacamento do leitor, do lado de cá da fronteira, nunca encontrou nenhum

hospital receptivo ao trabalho que desenvolveu com D. Anselmo Montero, director do

hospital espanhol – que tão carinhosamente o chamava de Manolo de Portugal – com o qual

aprendeu que estava curado, se nunca mais voltasse a beber.

Honrado médico que lhe deu a última peça para concluir o puzzle, pois outras peças

lhe tinham dado e nenhuma encaixava na cachimónia do rapaz.

Teve a honra, a mercê e a felicidade de conhecer em Badajoz um grupo de homens e

mulheres recuperados do alcoolismo, aos quais ficou eternamente grato por tudo o que lhe

ensinaram e com os quais aprendeu que a única maneira eficaz de prosseguir com a

sobriedade alcançada, é o indivíduo – no momento oportuno, na hora exacta – identificar-se

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como alcoólico recuperado que é. Assim, para incómodo de uns e pasmo de outros, tornou

pública esta resposta “Não bebo, porque sou um alcoólico recuperado”.

A afirmação com que se presenteou não é, de modo nenhum, uma diminuição da

personalidade do rapaz, porque esta sumidade ficou mais digna no dia em que,

voluntariamente, aceitou deixar de beber. Nesse mesmo dia ganhou coragem e partiu a

imagem velha que via no espelho. Passou a ver uma nova e totalmente diferente: ele, em

carne e osso.

Durante o ano escolar de Elvas, ao mesmo tempo que ajudava quem o procurava,

deslocou-se àquela cidade espanhola, para conviver parcimoniosamente com pessoas de

inteligência arejada, na aprendizagem do propósito comum: viver feliz sem álcool.

Mereceu a confiança dos que o souberam aceitar e levaram-no a conhecer todas as

Associações de Recuperados Espanhóis, de Badajoz até Madrid, para o honrarem na capital

da Península Ibérica, como representante do Grupo de Alcoólicos Nominativos da

Estremadura espanhola, no primeiro Seminário Internacional de Espanha sobre Alcoolismo,

que decorreu naquela cidade de 27 de Março a 2 de Abril de 1983, com a presença de

representantes da Alemanha, Áustria, Dinamarca, Espanha, Finlândia, Holanda, Irlanda,

Islândia, Itália, Jugoslávia, Noruega, Portugal e Suécia.

O Manuel era ainda uma criança quando foi a este evento, tinha apenas quatro anos de

recuperado.

Talvez por isso, ainda hoje tenha dificuldade em descrever aquele inolvidável

Seminário, tão rico de gente desprendida dos galardões que a sociedade mediterrânea teima

em usar, abusar e costumar.

Não foi Deus, nem o Futebol, nem o Fado que ali os juntou, foi uma doença social

que os aliou para, no conjunto, encontrarem soluções práticas, cada um no seu país, sobre

informação, prevenção e tratamento do alcoolismo.

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O Manuel com 18 anos no Porto, todo afiambrado e com a mãozinha à mostra, porque

sacramentalmente aos sábados, enquanto aparava o cabelo, arranjava as unhas.

Com o propósito de se efectivar, no ano lectivo de 83/84 foi colocado na Escola

Preparatória de Alijó. Mais uma vez o saudável povo nortenho o soube receber e aceitar tal

como era, porque – como sempre – nunca omitiu a ninguém porque é que não bebia.

Embora estivesse no pleno gozo das boas relações humanas, aqui estava, porém,

longe dos amigos que o podiam continuar a ajudar a manter-se de pé.

Era muito novo em termos de recuperação e cair era a pior coisa que lhe podia

acontecer. Recordou-se dos amigos do Centro António Flores no estado de recaídos e

manifestou esta preocupação aos amigos de Lisboa, que logo lhe indicaram um grupo de

recuperados no Porto, onde conheceu o Argentil que mais tarde – como o Mário, de Elvas –

também sucumbiu ao alcoolismo. Ora de comboio, ora de automóvel, foi algumas vezes à

capital do norte dialogar com quem sabia pronunciar o dialecto que lhe fazia falta. Não deixa

de ser interessante dizer que passou pelos mesmos sítios de outrora – de entre eles o bar da

Rua da Fábrica, onde tanto gostava de ir ouvir o fado e beber umas cervejas – sem, no

entanto, ter a leve tentação de voltar aos tempos de quando só apanhou uma bebedeira, que

só durou uns curtos nove meses.

Agora o motivo era outro; tinha aprendido que só um alcoólico entende outro

alcoólico. Assim sendo, tinha que continuar a falar com alguém que articulasse o mesmo

dialecto, não sabia por quanto tempo, só sabia que tinha necessidade disso.

Entretanto, encontrava-se sozinho, longe da família, que, aliás, também não fazia lá

falta nenhuma, porque nunca o apoiou, nem antes, nem durante, nem depois.

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Estava hospedado no José da Ribeira, habitava sozinho todo o primeiro andar, do qual

só usava o quarto e mal.

Recordou-se dos já distantes dezoito anos de idade, quando deixava a estúrdia ao

romper do dia e passou a acompanhar com os colegas na vida nocturna, desta vez de uma

forma bem mais saudável, isto é, no seu mais que perfeito juízo.

Conheceu as discotecas todas num raio de cinquenta quilómetros. Quando

manifestava pouca vontade de vadiar, os companheiros instigavam-no:

- O que é que vais fazer cedo e sozinho para casa?

- Nada.

- Então anda connosco.

E lá ia, levando sempre a viatura própria, porque só o enganaram uma vez.

Nestas ocasiões eram os camaradas que se enfrascavam e como ele já estava

reformado da Frascaria Portuguesa, pelos bons serviços prestados à Pátria, a certa hora da

noite regressava a casa, pois aos colegas assistia-lhe a honra e a dignidade de vir já depois do

Sol nascer, como ele outrora tanta vez o fizera.

É agradável sabermos que o Manuel nunca teve saudades desses tempos.

Olhava para os colegas e revia-se neles a ele há uns anos atrás, com uma diferença:

nenhum dos companheiros era melhor profissional do que ele já tinha sido e tão

honrosamente se tinha aposentado, havia cinco anos.

Recordavam-lhe aquela velha imagem que ele um dia teve a coragem de partir e

divertia-se com estes meros aprendizes na arte de virar copos e garrafas, sem nunca terem

pulmões para virarem um garrafão.

Desta vez era ele que os levava a casa. Algumas madrugadas os andou a entregar ao

domicílio, ficando célebre uma pândega em Vila Real. De regresso a Alijó, com todos

bêbedos – menos ele, é claro – para além de fazer parte do grupo, obrigatoriamente era ele o

condutor, pois aos colegas assistia-lhes a permissão de se embebedarem em liberdade.

Numa daquelas madrugadas, inadvertidamente, entregou dois em casas trocadas. Por

acaso eram vizinhos. Mesmo assim, não se livraram do esparregado que as mulheres fizeram

ao romper da aurora, com a vizinhança a assistir, tendo, nesse dia, saído mais cedo da cama.

Na escola o ambiente era óptimo. Mereceu a confiança e a consideração de toda a

comunidade escolar.

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Algumas noites fez serões com os estagiários de Matemática e Ciências, com os quais

colaborou na transformação de folhas soltas em livros, quando descobriram que o rapaz sabia

encadernar umas coisas, cujos trabalhos se faziam pela noite dentro e como às zero horas a

noite era ainda uma criança, lá iam na observação do Brito “A esta hora é que a disco está

boa”.

E o que não faltavam eram fonotecas nos arredores de Alijó. Algumas noites os

professores deram-se ao luxo de ter a música só para eles.

Foi assim, durante nove meses. Quando chegou o Verão, substituiu a discoteca pelos

bailaricos dos santos populares, de que tanto gostava. Era vê-lo, todo regalado, a caminho de

S. Mamede de Riba Tua, de onde regressava já alta madrugada.

Como a vida muda! … Desta vez não vinha avinhado, vinha estafado, de tanto bailar,

porque dançava desde que chegava, até o baile acabar, ao ponto de ter de pedir ao pai para

lhe arranjar as botas, que se tinham rompido, querendo este saber:

- Como é que rompeste as botas?

- Foi a dançar.

- Era só para ouvir se me dizias a verdade, porque as botas já me disseram que se

tinham rompido a rodar.

Por esta é que o rapaz não esperava, pois o pai, além de operário, era sapateiro.

Já o ano lectivo tinha terminado e ele ainda estava na escola. Entendeu deixar a sala

de trabalho impecavelmente limpa e arrumada, o que lhe mereceu um louvor escrito do

Conselho Directivo na pessoa do senhor Padre Álvaro.

O Manuel gostou de estar em Alijó. Foi o seu segundo melhor ano escolar. O

primeiro, já o dissemos, foi em Cabeceiras de Basto.

Não sendo do Norte, soube sempre estabelecer boas relações de camaradagem e

amizade, tanto no seio da comunidade escolar, como no meio rural ambiente. Noutras escolas

não foi capaz de fazer a mesma proeza.

Tratando-se sempre da mesma pessoa, como é que se explica que em Alijó o

tentassem dissuadir de concorrer, porque gostaram do trabalho que fez e louvaram-lho por

escrito – já o dissemos – e noutra o condecorassem com uma repreensão escrita, como mais

adiante veremos?

Com as devidas distâncias ideológicas e poéticas foi, respectivamente, com o doutor

Salazar que aprendeu o princípio “Sei o que quero e para onde vou” e com o poeta Bocage

aprendeu a mesma certeza, quando o assaltante lhe apontou a arma com estas palavras:

- Quem és? Donde vens? P’ra onde vais?

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E antes que a eventualidade do disparo se confirmasse, disparou-lhe ele a arma das

palavras:

- Sou Bocage, venho do Nicola e vou p’rò outro mundo se disparas a pistola.

A passagem pelo Minho e por Trás-os-Montes deu ao rapaz a oportunidade de

conhecer outras gentes, outros hábitos e costumes, outras maneiras diferentes e sadias de

estar na vida. Se pudesse ainda hoje estaria num destes lugares.

Os colegas ofereceram -lhe um jantar de despedida, no qual teve que arremedar, uma

vez mais, os políticos que sabia imitar na prédica, pois o padre Álvaro não se esqueceu de o

ter ouvido uma vez e fê-lo repetir o discurso do professor Marcelo Caetano a quando da

chegada deste ao Brasil, de entre outros.

Évora – Praça do Geraldo – base operacional da copologia nocturna, de onde o Manuel partia

todas as noites para a rambóia, regressando ao romper da bela aurora, sem saber – como era

tradição – por onde tinha vindo.

No dia em que empanturrou o Fiat 127 com a tranquilitena de professor-tendeiro e

partiu, na impossibilidade de se despedir de todos, fê-lo na forma destes versos, que deixou

na montra do café do senhor João:

Passou por vales e montes “Ó bom povo transmontano,

para chegar a Alijó, que me soube receber,

mas não é de Trás-os-Montes, eu, como alentejano,

é alentejano e vem só. Vos quero agradecer.

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Quando chegou disse ao povo: Grato estou pela maneira

“Sábio eu cá não sou, como todos me trataram,

não trago nada de novo, não posso, mesmo que queira,

só sei apenas quem sou. ficar como outros ficaram.

Coisas que eu olvidei Outras vozes estou a ouvir,

vão-me vocês recordar. são de crianças também.

Outra tantas que eu sei, Tenho um dever a cumprir,

delas lhes quero falar”. não parto por mais ninguém.

Foi com a mesma linguagem Tu, aluno meu amigo

que às crianças falou, (foram todos, sem excepção),

com aquela aprendizagem, peço-te, vem comigo,

que na prática mostrou. juntinho ao coração”.

E tal como as crianças Uma lágrima atrevida,

são um mundo sonhador, eu vi mesmo à minha frente,

assim vai de andanças, no momento da partida:

este nosso professor. “Não vou, fico ausente.

Tal como chegou, partiu. Quando um dia cá voltar,

Esteve só de passagem, não, não me façam festas.

com o seu dever cumpriu, virei só para abraçar

e deixou esta mensagem: as crianças como estas”!...

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O rapaz teria ficado por estas terras se não estivesse a trezentos quilómetros de casa,

ou melhor, dos filhos. Foi por eles que concorreu, na expectativa de ser colocado mais perto,

para os poder acompanhar. A ventura opôs-se à vontade do rapaz. Não é por acaso que então

se dizia “Conheça Portugal como professor eventual”.

No boletim de concurso, para não deixar quadrículas em branco, preencheu-as com

códigos do distrito da Guarda e essa habilidade valeu-lhe, no ano lectivo seguinte, 84/85,

cair, mais uma vez e por incúria, numa escola de inteligência beata de Vila Franca das

Naves-Trancoso, onde quem não ia à missa, era excomungado no domingo seguinte. Ora o

rapaz que até morava atrás da igreja mas nunca descobriu a entrada, deve ter sido

esconjurado para o resto da vida neste mundo e no outro.

No entanto, permaneceu naquele cu de Judas durante cinco longos frios, feios e fracos

anos onde, aliás, se constava que Cristo nunca tinha passado por ali.

Nesta escola, negando-se a instaurar um processo disciplinar a um aluno, o Manuel

respondeu à Presidente do Conselho Directivo: “ Eu levantava era um processo à senhora, se

fosse capaz de a pôr daqui para fora”.

Esta boquinha depravada custou-lhe uma repreensão escrita, que o levou a procurar o

Dr. Raimundo, para lhe perguntar do prejuízo que aquela reprimenda lhe poderia causar.

O advogado depois de ler o que o Manuel lhe entregou, sossegou-o “ Não se preocupe

com isto. Tomaram muitos colegas seus terem uma coisa destas no processo individual.

Valha-se disto e nunca mais será director de turma. Vocês qualquer dia são na escola tudo

menos aquilo para que estudaram” – Atão nã querem lá ver que o raio do homem inté era

bruxo? …

E assim fez. Nas três escolas onde posteriormente foi colocado, o Manuel soube usar

o que aquele jurista lhe ensinou e passou a ver os colegas directores de turma a andarem de

patins em linha e ele nas calmas, somente professor, honrando assim a calmaria de alentejano

que se preza de ser.

Entretanto, ultrapassando aquela contradição e mantendo-se sempre igual a ele

próprio, nunca mudou de caminho para agradar hoje a fulano, amanhã a sicrano e depois de

amanhã a beltrano.

Também naquela terra sagorra lhe desfiguraram a identidade. A sagorrice era tanta,

que não sabiam fazer a diferença entre um recuperado e um ébrio. Para aqueles broncos o

rapaz era igual a eles: uma esponja.

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Com a finalidade de ajudar companheiros de outros tempos, aduladores de Baco, que

ainda não conheciam a liberdade de viver sem álcool, no dia 2 de Maio de 1986 formou na

terra que o viu nascer a Associação de Apoio ao Doente Alcoólico, De facto, já lá iam sete

anos de (inde) pendente sobriedade.

Portalegre – Antigo Quartel de S. Francisco.

A Associação chegou a funcionar no antigo Quartel de S. Francisco, nas instalações

da CERCI, gentilmente cedidas para o efeito e até foi divulgada pela imprensa local. Teve o

apoio do Governo Civil de Portalegre e de algumas Câmaras Municipais do distrito.

Mesmo sem espaço próprio foi útil a quem à mesma se dirigia e, uma vez mais,

conseguiu ajudar a readquirir a dignidade a quem já a tinha perdido.

Como não voltou mais para a terra natal, passou o testemunho ao Pacheco e ao

Eustáquio, que têm dado continuidade ao trabalho.

Entretanto naquela terra de toscos onde leccionava, nem tudo foi mau. O Manuel

conheceu na escola a Ana – tinha que ser Ana – na qual só repararia no final do ano escolar,

porque nunca ia ao bar, nem para comer nem para beber.

Foi no final do ano lectivo que entrecruzaram até aí impensáveis interesses, num dia

em que o rapaz estava a trabalhar na arte de encadernar na sala de aula.

A Ana passou. Chamou-lhe a atenção a porta aberta. Entrou para ver se estava alguém

e perguntou:

- O que está a fazer?

- A encadernar um livro.

A rapariga observou-o por alguns momentos e acabou por dizer:

- Tenho uns livros em casa que precisavam de ser reparados. Se eu os trouxer, o

senhor arranja-mos?

- Claro que sim, traga-os, tenho muito gosto em lhos recuperar.

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E foi assim que tudo começou. O rapaz fez umas capas novas aos livros e pouco mais.

Entendeu oferecer-lhe o trabalho, pois os volumes até eram pequenos, não estavam em mau

estado e pouco trabalho lhe deram.

A Ana é que não gostou lá muito da oferta. Era defensora da teoria de que aos-

homens não-se-podem-pedir favores. Lá tinha as suas razões… Neste caso a opção consistiu

em – após discutido o preço – ficar o trabalho por uma bica no café Silva.

E não se falou mais no assunto.

Outras bicas se seguiram, pretexto para conhecimento mútuo mais profundo. O rapaz,

na verdade, precisava de reorganizar a vida. A Ana era solteira. O moço há cinco anos que

andava de candeia na mão à procura de mulher. O rapaz devia ser mesmo esquisito: tanto

tempo à procura de uma esposa e com uma luz tão fraca. Se calhar era por isso mesmo que a

não encontrava. Nunca pensou que estivesse ali aquela esposa por quem almejava e com

quem, mais tarde, veio a casar.

O casório com a Catarina já não tinha qualquer fundamento moral ou social, conjugal

ou existencial.

A esposa jurídico-clerical – como já sabemos – não casara com o novo Manuel,

casara com o velho que – como igualmente sabemos – já falecera de tão velho que estava e

não podendo uma viúva estar casada com um defundo renascido, este, um dia fartou-se e,

sem mandar recado por ninguém, virou costas a Campo Maior e nunca mais lá pôs os butes.

Desertando, voltou a encontrar-se. A única coisa que conseguiu regular com a

Catarina foi o poder paternal. O Vasco ficou com o pai. O Nuno com a mãe.

Assim o filho mais velho – em Vila Franca das Naves e aluno do pai – fez o Ciclo

Preparatório. O facto deu nas vistas, pois o Manuel tinha o cuidado de trazer o miúdo sempre

bem arranjado e limpo, que era alvo do reparo das línguas de trapo lá da escola.

O Manuel podia ter assentado arraiais naquela terra. As saudades do Alentejo não

eram nenhumas, a não ser dos pais e do outro filho mais novo. O facto de a Ana ser da

Guarda também não o entusiasmou a concorrer para esta cidade. Assim não ficou naquela

localidade porque a escola tinha uma mentalidade de Idade Média e aquele ambiente de

beatice docente incomodava-o. Valia-lhe a simpatia e a franqueza da classe popular, com

quem sempre se soube relacionar.

Optou por concorrer não para a Guarda nem para o Alentejo, jogando em campo

neutro. Foi o melhor que fez.

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Com o propósito de poder proporcionar aos filhos a possibilidade de estudar no

Ensino Superior, concorreu para o distrito de Coimbra e no ano lectivo de 89/90, uma vez

mais, caiu no buraco de cobras e lagartos do cu de Judas de Febres-Cantanhede.

Quando lá chegou, apresentou-se ao Mestre-de-obras, pois a Escola estava a ser

construída. Como não aceitou um horário a leccionar em garagens particulares e emprestadas

foi colocado na Escola Preparatória da Pedrulha-Coimbra, onde esteve apenas aquele ano

lectivo, aqui encontrando um óptimo ambiente de trabalho que não encontraria em mais

nenhuma escola.

No ano seguinte não se livrou de ir parar ao buraco de onde fugiu, em cujo lhe

fizeram três horários, todos em cima do joelho, por mais uma vez não ser da mesma cor, nem

engraxador de calçado. Só polia o dele, porque o pai, como sapateiro, ensinou-o a lustrar as

botas e os sapatos.

No dia 16 de Julho de 1990 – com a colaboração de alguns senhores empregados e

professores da Escola Preparatória da Pedrulha – constituiu a Associação Coimbrã de Apoio

ao Doente Alcoólico. Em Portalegre ainda lhe louvaram o trabalho e acreditou que na cidade

dos estudantes o invento fosse bem recebido. Qual quê!? A criação deste agrupamento nem

chegou a sair do papel.

Este rapaz tem momentos em que vive no mundo da Lua. Cedo aprendeu que o

problema do alcoolismo em Portugal não é para se resolver e ainda tem “iluminuras” desta

natureza…

Como é seu apanágio, não desistiu.

Desde que organizou esta Associação e até hoje, ele próprio atende o doente e o

encaminha – segundo o seu estado – para o médico local ou, como outrora, levá-lo para terras

de Espanha, onde desde a primeira vez e até hoje, continua a ser recebido de portas abertas

por toda a gente daquele hospital, na pessoa do sempre bem-vindo Manolo de Portugal.

Neste mesmo ano lectivo – 90/91 – matriculou-se no terceiro Curso Complementar

Liceal Nocturno da Escola Secundária José Falcão, em Coimbra. Das coisas acertadas que

fez na vida, esta foi uma delas. Proporcionou a si próprio, aos quarenta anos de idade, uma

aragem e uma oxigenação mental, que soube prolongar por dez anos, pois não teve pressa de

sair da escola, por ser defensor da teoria “não-há-vida-mais-bonita-que-a-de-estudante”.

Ainda hoje lá andaria, se em vez de décimos anos, houvessem vigésimos e trigésimos. Deu-

se ao luxo de não ser aluno de um professor qualquer e aprendeu a gostar de História com a

estudante desta cadeira (era assim que a professora se identificava).

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Quando discípulo nos tempos de menino e moço, o rapaz aprendeu a registar facetas

dos professores de quem gostou de ser aluno, dos quais nunca se cansa de recordar o saudoso

– sempre com um sorriso peculiar e bem disposto, que até no fumar tinha estilo, cujo a malta

nunca conseguiu imitar – senhor engenheiro Malcata...

Com quarenta anos e sem ideias avinhadas, mais facilmente se deixou impressionar

pelos professores que seleccionou, que o ensinaram a parar, para conhecer o passado e

melhor poder observar e compreender o presente em direcção ao futuro e assim saber

distinguir as coisas umas das outras nesta estropiada sociedade em que vive, tão cheia do que

não presta e tão vazia do que é necessário.

Já sabemos que o rapaz nunca gostou de estudar. A D. Maria Helena logo lhe

descobriu o tique no primeiro teste que fez “Não teve melhor nota porque não estudou”.

Isto já o rapaz sabia. Como continuou a não estudar, a professora não teve compaixão

do aluno: no final do primeiro ano reprovou-o com nove (com dez já passava).

Podendo ser aluno da D. Eugénia, no segundo ano – de quem mais tarde foi discente

na cadeira de Introdução à Política – fez questão de continuar a ser aluno daquela professora

de História, que lhe disse quando o viu na turma:

-Veja lá se vem para aqui e chumba outra vez.

- Se assim for, a senhora nunca mais se vê livre de mim.

O rapaz não ficou zangado com a docente. Queria mesmo era ser aluno dela. Sabia

ouvi-la, quando empolgava um acontecimento histórico.

Os mexericos da Corte, o enaltecer esta ou aquela figura, deixaram o Manuel com a

impressão de que a professora tinha conhecido pessoalmente o senhor Marquês de Pombal,

tal foi a ênfase e o entusiasmo que o aluno lhe observou quando a professora falou de

Sebastião José de Carvalho e Melo.

Sobre este estadista escreveu o nosso estudante uma síntese extraordinariamente bem

feita – disse-lhe a professora – que lhe valeu fazer a disciplina com a média final de catorze

valores.

Continuou a estudar e concluiu o Curso Complementar com a razoável classificação

de treze valores.

No ano lectivo de 91/92 foi colocado na Anadia e, no ano seguinte, foi parar à

Mealhada, onde estacou 15 anos e deixou de andar com a tenda às costas e, sem querer,

deixou de prestar homenagem à alcunha de solteiro, “Gato vadio”, cujo padrinho nunca

chegou a conhecer, cognome que ganhou quando, noutra época, conduzia a motorizada que

era preta, o sobretudo e o capacete também de cor escura, ao mesmo tempo que não parava

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em ramo verde. Os bailes eram aos pares, as chafaricas eram mais que as mães, a noite era

pequena e de noite todos os gatos são pardos.

Na impossibilidade de voltar para a Escola Preparatória da Pedrulha, na Mealhada

aguarda solenemente que o tempo passe, com uma única preocupação: não se deixar apanhar

por um sistema cada vez mais estéril, pois quando a insipiência faz uma reforma no ensino, o

mesmo fica mais decadente do que já estava. Como já sabemos, o Manuel é do tempo das

reformas do doutor Salazar e não hesita em redizer – já o dissemos – que a escola está como

sempre esteve: à espera de um milagre…

Actualmente – estamos em 2006 – anda a piscar o olho à matéria de Psicologia do

décimo segundo ano. Nunca se esqueceu do que lhe ensinaram há mais de quarenta anos

“Tira um curso, rapaz, se não, nunca és ninguém na vida”.

O saber para governo próprio é uma coisa que sempre se meteu com o rapaz. Em vez

de pensar em calçar as pantufas e vestir o pijama, com a idade que tem, cinquenta e sete

anos, adquiriu outro comportamento, que induz os colegas da escola onde trabalha, a

ajuizarem que o rapaz não deve bater bem do opérculo. A diferença entre este jovem e os

colegas de profissão, é que os demais tiraram um curso e nunca mais abriram um livro e o

Manuel aprendeu a arejar o pensamento quando voltou a ser aluno – já o dissemos – aos

quarenta anos. Procurando estar actualizado, não permite que o progresso lhe passe a perna.

Ao deixar de beber, aprendeu a subtrair-se do que não lhe interessa e a maior

esquisitice que existe neste ser mortal, é – como já se disse – saber deter-se, para melhor

poder observar, compreender e distinguir as coisas umas das outras, o que lhe faculta a

serenidade necessária para saber viver na sociedade de que faz parte.

Pelo Natal de 2004, os filhos deram-lhe a oportunidade de substituir a intemporal

máquina de escrever por uma maravilha da técnica, que lhe permitiu redigir o que hoje vos

apresenta, parafraseando António Aleixo “Este livro que vos deixo”.

Aquele pestanejar de olhos valeu-lhe, a partir do ano lectivo de 06/07 e por tempo

indeterminado – já sabemos que o rapaz não é de pressas – passar a ser estudante de

Psicologia no Instituto Superior Miguel Torga de Coimbra, com quem gostou de aprender a

dar de comer às línguas-de-vaca, cujo Mestre o ensinou a dizer mais ou menos assim:

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O Gato Vadio 42 Invernos depois.

“Há que dar de comer a essas línguas viperinas, para não morrerem de fome; quando

não tiverem de quem falar, não se esqueçam, falem mal, falem de mim”.

Uns dias antes de acabar o ano lectivo 2006/07, o Manuel foi recompensado por uma

vida de trabalho de quarenta anos: chegou à aposentação.

Não sabemos como pensa em aplicar agora o tempo. Não sabemos se vai fazer o

Curso de Psicologia, ou se vai trocá-lo por outra ocupação. Também não é isso que nos

interessa saber. O que sabemos é que este rapaz vai continuar em frente, por ter aprendido a

saber quem é, o que querer e para onde vai.

De momento, é encadernador. Aprendeu a arte em 1970 em Campo Maior com um

tipógrafo, o Guerra, um artista que não era maricas, era bêbedo. Laboravam ao lado de um

café e o trabalho fazia-se a ritmo binário: uma costura no livro, um copo no botequim.

Conforme o período de trabalho – de manhã, à tarde ou à noite – o comportamento era

sempre o mesmo: sem beber é que nunca estavam.

Ao mesmo tempo que apanhou o jeito àquele afazer, o Manuel aprendeu esta frase

com outro encadernador: “Os livros, que são o tesouro do génio humano, merecem uma

boa e bonita encadernação”. Tão-somente nestas palavras, reside a perfeição do trabalho

que faz.

Da nossa parte, bem-haja!

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VALSA TRISTE

Posto que o alcoolismo

qualquer rei torna escravo,

o amigo cai no abismo,

o rico fica sem chavo,

a família é hospital,

a escola é um vazio,

a estrada é letal,

o patrão fica na cama,

o operário é vadio,

a vida fica pela rama,

presa por um frágil fio,

e nem Deus está seguro,

por causa do sacristão,

que, com o copo em riste,

vê tudo ficar escuro

e dança na confusão

que acaba em valsa triste,

em jeito de conclusão

aqui vai a descrição

deste vero cataclismo,

que é o vício do alcoolismo.

Porque fazem parte do dia-a-dia, as bestialidades do animal autonomeado racional,

passam a ser coisa normal como se fosse normal matar os seres da mesma espécie; andar

vestido, mesmo no Verão com 40 graus à sombra, como se o corpo fosse uma vergonha;

enfim, cozinhar os alimentos, destruindo-lhes os nutrientes, com o respectivo briol a reforçar

a destruição.

É possível que a história das bebidas alcoólicas tenha começado com a própria

História da Humanidade, quando Adão e Eva foram expulsos do Paraíso, por causa daquela

estória da maçã, que não entra na cabeça de ninguém com bom senso q. b.

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Não teria andado aqui o dedinho maroto do Diabo, provocando a fermentação da

maçã e a cidra resultante ter feito apanhar uma piela monumental ao pai Adão e à mãe Eva,

que pudesse ter transformado o Paraíso num Inferno e nós todos a pagar as favas no

Purgatório da vida?

Verdade ou mentira, o certo é que a cidra é uma das mais antigas bebidas alcoólicas,

juntamente com a cerveja e o vinho, cujo, como se sabe, passou ao primeiro lugar do ranking

mundial da copologia e por via da vinhaça é que surgiu a raça negra. Palavra de Deus. Vem

na Bíblia. Por ser um inveterado borracholas, o filho de Noé, Cão, foi desterrado para África

pelo pai e foi uma encanzinação, porque os seus descendentes passaram a nascer de cor preta.

Mas como a contradição é o motor da História, o briol é simultaneamente

amaldiçoado e abençoado, como faz a Santa Madre Igreja, cuja, se por um lado, amaldiçoa o

vinho pecaminoso, por outro lado abençoa o dito cujo, consagrando-lhe honras de sangue de

Cristo, cujo padre celebrante da missa não tem qualquer pejo canibal em beber.

Na mesma Roma onde fica o Vaticano, os romanos antigos fizeram o mesmo que a

Igreja Católica: divinizaram a vinhaça, nomeando-lhe um provador/provedor, o deus Baco,

de onde derivam as bacanais das danças de roda dos festins com a cabeça a andar à roda nos

chinfrins, cujas mantêm todo o seu vigor enológico nos nossos dias de farras estudantis e

festas académicas, onde beber um litro de briol mais um litro de cervejal mais um litro de

bagaço e é igual ao litro.

A cristianíssima Idade Média apurou a destilação alcoólica nos mosteiros, onde foi

formatada a figura històrico-literária do frade borrachão.

Inventando o fabrico em série de economia global, a Revolução Industrial criou a

sociologia mundial de expansão universal de vinhos, cervejas, aguardentes, licores e demais

copologia bacanal.

Cá por casa, no nosso cantinho doméstico de país-de-brandos-costumes, nos tempos

da ditadura a política copológica oficial subordinava-se à palavra de ordem beber-vinho-é-

dar-de-comer-a-um-milhão-de-portugueses e depois com a democracia temos hoje as

confrarias das capelinhas do culto do néctar divino, de onde se conclui que os usos e

costumes do tempo da extremíssima Direita não são assim tão incompatíveis com os usos e

costumes democráticos, ao contrário do que é politicamente correcto dizer-se.

Pode ser que tudo isto sejam os respeitáveis valores culturais, como se diz por aí, mas

será que tais supostos valores não terão nada a ver com a doença social de dependência

compulsiva do álcool, ou seja, o alcoolismo?

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É claro que – tomado por conta, peso e medida – o briol até é bem capaz de saber

animar a malta, como o café ou o tabaco. (Sim, o tabaco. Os índios não o usam para efeitos

terapêuticos e para celebrar um acto de paz não fumam o cachimbo da dita?).

O pior é que do uso se faz abuso, entra a cabeça em parafuso, os maus fígados

chateiam a malta e o cérebro começa a fazer falta, o que não quer dizer que o alcoólico seja

forçosamente um atrasadinho mental, um acabado imbecil ou um idiota de nascença.

Como diria Monsieur de La Palisse, é uma pessoa como qualquer outra e, por isso

mesmo, o alcoólico pode/deve ser clinicamente tratado, seja qual for o grau por ele atingido

na escala copofónica, cuja – posto que três foi a conta que Deus fez – se resume aos três

níveis do evasivo bebedor ocasional, do inofensivo bebedor normal e do compulsivo bebedor

animal, todos eles criados pelos usos e costumes sociais do macho ibérico que é temente a

Deus, venerador da Pátria, bom chefe de Família, cidadão eleitor, sócio do Benfica, agarra o

touro pelos cornos, dá tapona na mulher, pisa o rabo do gato e emborca briol como quem

enche uma pipa esburacada e, sendo assim, por vezes arranja chinfrim, no dia seguinte fica

com a boca a saber a papeis de música, o pior é que a música convida a sessões repetidas e,

de repetição em repetição, o musicómano passa a insistir, existir e consistir na repetição cada

vez mais frequente da sua música preferida, sempre com justificações alienatórias dos seus

excessos copofónicos: ou porque está um frio de rachar, ou porque está um calor de abafar,

ou porque está uma tempestade de alarmar, ou porque está um vento de abanar, em suma, só

o vinho aquece, acaricia e conforta e como o Manuel não acredita na ressurreição dos mortos,

espera que o defunto briol esteja na paz do Senhor e dos seus anjos celestiais, por todos os

séculos dos séculos.

Ámen.