a ideia de sacrifício, a partir das fontes da antiguidade clássica, em a arte de ser português de...

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Ágora. Estudos Clássicos em Debate 19 (2017) 409-435 — ISSN: 0874-5498 A ideia de sacrifício, a partir das fontes da Antiguidade Clássica, em a Arte de Ser Português de Teixeira de Pascoaes The idea of sacrifice based on the sources of Classical Antiquity in Arte de Ser Português by Teixeira de Pascoaes ANTÓNIO MARIA MARTINS MELO 1 (UCP, Braga — Portugal) Abstract: We first situate Arte de Ser Português, a work of maturity, in the context of its time. Afterwards, we identify some thematic strands of Hellenic inspiration which seem to underlie the definition of the idea of sacrifice presented by Teixeira de Pascoaes in this short manual for civic education. We recognize a movement driven by the notion of “literature of reuse” and ultimately of intertextuality. Keywords: idea of sacrifice; Classical Antiquity; Portuguese Literature; Teixeira de Pascoaes; Arte de Ser Português. João Maia, numa reflexão em torno do que é”Preparar para a Vida”, relata que o filósofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955), já no seu tempo, afrontou o velho dilema do “assincronismo de vida e cultura”: “partiu do facto insólito de os ingleses enviarem, em cada geração, para Oxford e Cam- bridge, os mais dotados moços (…) e os formarem em latim e grego”, para concluir que “assim formados, vinham a ser dos mais sagazes adminis- tradores, dos que mais se adaptavam à vida…” 2 . Por outro lado, são conhe- cidos de todos os laços de estreita amizade, vertidos em extenso epistolário, que aproximavam o homem e o pensamento de Miguel Unamuno do habitante do solar de Pascoaes e que foram objeto de estudo aprofundado 1 [email protected]. Este trabalho foi produzido no âmbito da UID/FIL/00683/2013, Centro de Estudos Filosóficos e Humanísticos 2015-2017, financiado pela FCT — Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Este texto agora publicado corres- ponde, em parte, a uma comunicação apresentada por mim no âmbito do 2.º Congresso Internacional do Triénio Pascoalino¸ intitulado “Arte de Ser Português no centenário da sua publicação”, promovido pelo CLEPUL da Faculdade de Letras da Univiversidade de Lisboa, nos dias 13, 14 e 15 de outubro de 2015, que teve lugar na Academia das Ciências de Lisboa, na Faculdade de Letras da Univiversidade de Lisboa e na BN de Portugal. URL: http://congressobiografias-trieniopascoalino.blogspot.pt/p/programa2015.html. O título foi sugerido pela Comissão Organizadora, na pessoa da Doutora Sofia A. Carvalho, a quem estou muito grato. 2 MAIA (2012) 4.

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  • gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017) 409-435 ISSN: 0874-5498

    A ideia de sacrifcio, a partir das fontes da Antiguidade

    Clssica, em a Arte de Ser Portugus de Teixeira de Pascoaes

    The idea of sacrifice based on the sources of Classical Antiquity in

    Arte de Ser Portugus by Teixeira de Pascoaes

    ANTNIO MARIA MARTINS MELO1 (UCP, Braga Portugal)

    Abstract: We first situate Arte de Ser Portugus, a work of maturity, in the context of its

    time. Afterwards, we identify some thematic strands of Hellenic inspiration which seem

    to underlie the definition of the idea of sacrifice presented by Teixeira de Pascoaes in this

    short manual for civic education. We recognize a movement driven by the notion of

    literature of reuse and ultimately of intertextuality.

    Keywords: idea of sacrifice; Classical Antiquity; Portuguese Literature; Teixeira de

    Pascoaes; Arte de Ser Portugus.

    Joo Maia, numa reflexo em torno do que Preparar para a Vida,

    relata que o filsofo espanhol Ortega y Gasset (1883-1955), j no seu tempo,

    afrontou o velho dilema do assincronismo de vida e cultura: partiu do

    facto inslito de os ingleses enviarem, em cada gerao, para Oxford e Cam-

    bridge, os mais dotados moos () e os formarem em latim e grego, para

    concluir que assim formados, vinham a ser dos mais sagazes adminis-

    tradores, dos que mais se adaptavam vida2. Por outro lado, so conhe-

    cidos de todos os laos de estreita amizade, vertidos em extenso epistolrio,

    que aproximavam o homem e o pensamento de Miguel Unamuno do

    habitante do solar de Pascoaes e que foram objeto de estudo aprofundado

    1 [email protected]. Este trabalho foi produzido no mbito da

    UID/FIL/00683/2013, Centro de Estudos Filosficos e Humansticos 2015-2017, financiado

    pela FCT Fundao para a Cincia e a Tecnologia. Este texto agora publicado corres-

    ponde, em parte, a uma comunicao apresentada por mim no mbito do 2. Congresso

    Internacional do Trinio Pascoalino intitulado Arte de Ser Portugus no centenrio da sua

    publicao, promovido pelo CLEPUL da Faculdade de Letras da Univiversidade de

    Lisboa, nos dias 13, 14 e 15 de outubro de 2015, que teve lugar na Academia das Cincias

    de Lisboa, na Faculdade de Letras da Univiversidade de Lisboa e na BN de Portugal.

    URL: http://congressobiografias-trieniopascoalino.blogspot.pt/p/programa2015.html.

    O ttulo foi sugerido pela Comisso Organizadora, na pessoa da Doutora Sofia A.

    Carvalho, a quem estou muito grato. 2 MAIA (2012) 4.

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    Antnio Maria Martins Melo

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    por Barros Dias, em dois grossos volumes3. Alis, o pensador basco viria

    mesmo a anuir ao pedido que Pascoaes lhe dirigiu para integrar o elenco de

    colaboradores da revista A guia, como havia de ser anunciado na pgina

    dezasseis do terceiro nmero da I. Srie, editado a 1 de janeiro de 19114. Por

    isso, resultam compreensveis, nesta mundividncia, as palavras do poeta

    amarantino, insertas num texto publicado na revista A guia, II Srie, n. 2,

    em fevereiro de 1912, numa altura em que ele prprio tinha assumido a sua

    direo. Depois de afirmar que as nicas foras invencveis so as foras do

    Esprito e de atirar contra o acinte da ingenuidade dos que se julgam

    prticos, modernos, logo identifica o mal do seu tempo:

    O preconceito do senso prtico, no sentido vulgar e universal, um dos maiores

    males modernos, porque esteriliza o homem, redu-lo a um pobre autmato, a uma

    pequena mquina banal que pratica aces mortas, inertes, como as outras, as de ferro,

    fazem calado ou alfinetes5.

    E acrescenta, ainda neste seu artigo intitulado Renascena (O esprito

    da nossa raa), que esta a origem da morte que h na vida de hoje; que

    este preconceito o inimigo de toda a audcia fecunda, de todo o mpeto

    heroico, de todo o gesto criador. E isto, continua o poeta, diminui o

    homem () f-lo retrogradar, baixar sombra originria e simiesca6.

    O mesmo dizer, o homem perde a sua caracterstica identitria de ser

    humano, com os seus sonhos e a sua capacidade nica de comunicar, que o

    individualiza no seio da natureza. A soluo apresenta-a o poeta de Gato no

    artigo Mais palavras ao homem da espada de pau, publicado nesta mesma

    revista7 em resposta ao artigo de Antnio Srgio, intitulado Explicaes

    necessrias do homem da espada de pau ao arcanjo da espada dum relm-

    pago e publicado no nmero anterior8. Ali pode ler-se:

    3 DIAS (2002). 4 DIAS (2002) I, 157. A informao pode ser conferida na BND, A guia: revista

    quinzenal ilustrada de literatura e crtica, Porto, 1910-1932 (http://purl.pt/12152), con-sultada em 10 de outubro de 2016.

    5 PASCOAES (1912b); rep. SAMUEL (2004) 157-158. 6 PASCOAES (1912b); rep. SAMUEL (2004) 158. 7 PASCOAES (1914a) 1-5. 8 SRGIO (1914) 170-175.

    http://purl.pt/12152

  • A ideia de sacrifcio, a partir das fontes da Antiguidade Clssica, em a

    Arte de Ser Portugus de Teixeira de Pascoaes

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    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    A educao tem de ser sentimental e prtica, preparando o homem para viver pela

    alma uma vida superior e, ao mesmo tempo, de trabalho fecundo e livre. O homem

    carne e osso, sentimento e inteligncia.

    E, no nosso caso nacional, a educao verdadeira ser aquela que tornar os por-

    tugueses conscientes da sua Ptria e aptos para o trabalho que produz riqueza material

    e espiritual9.

    A harmonia entre estes dois princpios, entre a alma que sonha e

    o corpo que trabalha traduz-se pelo Saudosismo, que tem por alma a

    saudade10.

    Estas palavras de Teixeira de Pascoaes, de seu nome de batismo

    Joaquim Pereira Teixeira de Vasconcelos, tm de ser situadas no mbito da

    Renascena Portuguesa, uma associao de cariz cultural, da segunda dcada

    do sculo XX, com sede no Porto, e de que ele foi um dos principais mentores.

    Segundo ele, o objeto desta Sociedade criar um novo Portugal, ou melhor,

    ressuscitar a Ptria Portuguesa11, o que explica a sua designao:

    Mas no imagine o leitor que a palavra Renascena significa simples regresso ao

    Passado. No! Renascer regressar s fontes originais da vida, mas para criar uma

    nova vida.

    Renascer dar a um antigo corpo uma nova alma fraterna, em harmonia com ele12.

    Dois anos mais tarde, Teixeira de Pascoaes retoma esta ideia, em confe-

    rncia realizada na Associao de Estudantes do Porto, intitulada A era

    lusada e de que se publicou um excerto no rgo oficial da Renascena Portu-

    guesa13. Diz ele, em citao a partir da coletnea de Paulo Samuel, intitulada

    Teixeira de Pascoaes na Revista A guia, e que me tem servido de guia:

    Ns, os portugueses, queremos renascer e no apenas progredir. Queremos vida e

    no movimento inanimado, esprito e no retrica ().

    Mas ns, os portugueses, devemos amar alguma coisa mais do que o progresso.

    Ns queremos renascer. Portugal j viveu, j foi algum. Pois que esse algum

    readquira a sua velha fisionomia, animado, muito embora, de nova vida; que esse

    algum ressuscite e venha cumprir ainda, sobre a terra, um alto destino14.

    9 PASCOAES (1914b) 5. 10 PASCOAES (1914b) 5. 11 PASCOAES (1912a) 1. 12 PASCOAES (1912a) 1. 13 PASCOAES (1914a) 97-101. 14 PASCOAES (1914a) 99.

  • 412

    Antnio Maria Martins Melo

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    O idealismo espiritualista pascoalino, para usar uma expresso de

    Lusa de Castro Soares15, leva o poeta a identificar o princpio vital desta por-

    tugalidade renascida na alma portuguesa: Sim: a alma portuguesa existe,

    e o seu perfil eterno e original16, como desassombradamente confessa em

    1912, na revista A guia, em texto h pouco mencionado. Era esta ideia que

    lhe alimentava o sonho de novo Portugal, mas portugus, ideia essa que ele

    vai retomar insistentemente na sua conferncia A era lusada, j atrs

    referida:

    Queremos um Portugal portugus e, ao mesmo tempo, humano. Queremos a

    nossa Ptria de acordo com o Passado e o Futuro, mergulhando as razes na noite da

    Recordao para florescer luz da Esperana e criar a sua obra espiritual, religiosa,

    obra de amor e sacrifcio17.

    Pascoaes, sentindo a brisa dominante do seu tempo, fechado meta-

    fsica, e focando a sua ateno no pobre autmato em que se transformou o

    homem, perscruta nele uma alma humana que sofre, que sofre no ntimo do

    corpo e j se inquieta e sonha com uma nova esperana18: O sonho do

    homem libertar-se do que , ligando-se ao que foi e ao que h de ser ().

    O sonho do homem despir o seu hbito carnal, matar o instante presente,

    expiar a pena de viver, como se pode ler num artigo seu, intitulado

    O tempo (1914-1915), editado na revista A guia19.

    Com efeito, a existncia humana, enquanto reflexo da pessoa mate-

    rial, revela-se no instante presente, na conscincia dolorosa da sua vida, da

    sua vida que e no da que foi ou que h-de ser20. Uma existncia subordinada

    a um ideal, que representa a mais alta realidade. E acrescenta Pascoaes no

    seu artigo Portugal e a Guerra e a Orientao das Novas Naes: o homem

    s d a vida pelo ideal, ou esse ideal seja ptria, a alma dum povo, uma crena

    religiosa, a liberdade, a justia, o direito (). Da o seu trgico destino de

    15 SOARES (2010) 611. 16 PASCOAES (1912a) 3. 17 PASCOAES (1914a) 99. 18 PASCOAES (1914a) 100. 19 PASCOAES (1915) 2. 20 PASCOAES (1915) 1.

  • A ideia de sacrifcio, a partir das fontes da Antiguidade Clssica, em a

    Arte de Ser Portugus de Teixeira de Pascoaes

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    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    sacrifi-cado21. Uns pargrafos mais adiante, de forma lapidar, bem se pode

    dizer, define assim o poeta amarantino a natureza da educao do gnio

    portugus, da alma lusada: Abnegao, amor, sacrifcio, eis o mrmore

    divino em que precisamos de esculpir a prpria alma22.

    Assim se anuncia o aparecimento da Arte de Ser Portugus, pequeno

    volume sado a lume em 1915, escrito em quinze dias e que organiza, nas

    palavras de Pascoaes, as ideias que tenho espalhado em conferncias e ar-

    tigos publicados n A guia23. No mesmo ano em que Antnio Srgio publicou

    a sua Educao Cvica24. Nesta altura, pois, parece natural que se coloque a

    questo que at aqui nos trouxe: qual a natureza desta ideia de sacrifcio que

    Pascoaes eleva a lei suprema, A lei suprema da Vida a lei do sacrifcio25,

    como escreveu o poeta na Arte de Ser Portugus? Como conjugar a resposta a

    esta questo com o desejo do poeta que sonha com um Portugal portugus

    e incentiva a mocidade a cultivar o original carcter portugus? Trata-se

    da vexata quaestio das influncias e da irredutibilidade da sua obra a uma

    classificao clssica, de que exemplo o artigo de Lusa Malato Borralho26

    que discorre justificadamente em torno da questo Teixeira Pascoaes: um

    clssico romntico? Curiosamente, com exceo deste estudo, no mais se

    encontra a expresso de cultura greco-latina ou de influncias clssicas para

    caracterizar o pensamento do poeta de Gato. E no foram poucos os estudos

    compulsados para este trabalho. Segundo Joaquim de Carvalho, em Pas-

    coaes, as influncias que sofreu produziram-se, no por imitao (), mas

    por sugerncia e pelo choque emocional que as leituras lhe provocaram,

    umas vezes alentando e nutrindo o desenvolvimento de coincidncias, outras

    vezes gerando, por contraste, a ecloso do prprio pensamento27. O prprio

    21 PASCOAES (1914c) 165. 22 PASCOAES (1914c) 166. 23 PASCOAES (1991) 9. 24 SRGIO (1984). A primeira edio data de 1915, com a chancela da Renascena

    Portuguesa, no Porto. Trata-se de um compndio que recolhe os artigos publicados pelo

    seu autor na revista A guia. 25 PASCOAES (1991) 28. 26 BORRALHO (2004). 27 CARVALHO (1987) 75.

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    Antnio Maria Martins Melo

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    reclama a sua originalidade, a sua marca telrica de um autctone que vive

    desassombradamente este ditame vital e espiritual, confessando em

    Homem Universal, em versos j citados por Jorge Coutinho28: O meu pensa-

    mento sou eu prprio (). O meu pensamento sou eu, a minha dor em aco

    ou feita verbo, por um processo misterioso, como a onda invisvel que se faz

    luz29. A sinceridade destas palavras j h muito o reconhecera Lcio Cra-

    veiro da Silva, para quem seria caminho perdido ou menos indicado querer

    defini-lo, nas suas atitudes fundamentais, por influncias de autores ou

    leituras de livros30.

    Pois bem. Este pensamento parece ser contrariado, ou talvez no, por

    Leonardo Coimbra, filsofo portuense contemporneo e confrade do poeta

    amarantino. Com efeito, no segundo livro de O Criacionismo, intitulado

    Sntese Filosfica e que havia de ser publicado em 1912, trs anos antes da

    edio da Arte de Ser Portugus, quando caracteriza a gerao dos poetas

    novos, dizendo que neles h a confirmao e o exemplo da natureza

    dialtica da arte, a certa altura fala de Pascoaes nestes termos:

    Pascoaes precipitou-se, a cabeleira empoada de astros, os olhos acesos em

    relmpagos, dos confins sidrios. Atravessou o corpo arrefecido da terra, para de novo

    surgir do outro lado, entre as constelaes.

    O seu helenismo o rasto da Terra incendiada31.

    Deste pequeno trecho, fica para reflexo, essencialmente, a referncia

    ao helenismo. Impe-se, assim, a busca do rasto desta centelha espiritual,

    perscrutar algumas dessas manifestaes plausveis neste seu pequeno ma-

    nual de educao cvica, a Arte de Ser Portugus. E, paulatinamente, se h de

    concluir acerca da natureza do Sacrifcio, ou melhor, se h de discorrer acerca

    das eventuais marcas identitrias da teoria do sacrifcio aqui vertida.

    28 COUTINHO (1995) 40. 29 PASCOAES (1993) 14-15. 30 SILVA (1994) 222. 31 COIMBRA (1958) 66.

  • A ideia de sacrifcio, a partir das fontes da Antiguidade Clssica, em a

    Arte de Ser Portugus de Teixeira de Pascoaes

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    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    Diz Teixeira de Pascoaes que ser portugus tambm uma arte, e uma

    arte de grande alcance nacional32, e, por isso, bem digna de cultura33. Dois

    pargrafos depois, ele vai identificar o seu objetivo: o fim desta Arte a

    renascena de Portugal34. Ora a Arte, como alguns crticos a concebem,

    nomeadamente Joo Mendes, revela-se-nos sempre como alguma coisa de

    intencional e reflexo35. Resulta, pois, daqui, que o poeta opta consciente-

    mente pela repetio da palavra arte e opta por uma conceo de arte

    prpria da mundividncia helnica. Com efeito, o segundo pargrafo aponta

    para a etimologia da palavra (do latim ars), no sentido de a considerar uma

    habilidade, natural ou adquirida, que tem por objetivo a execuo de uma

    finalidade, prtica ou terica. Por isso, a arte pode ser ensinada, mas tambm

    aprendida: O mestre" diz Pascoaes36 no seu manual que ensinar aos

    seus alunos, trabalhar como se fora um escultor, modelando as almas

    juvenis para lhes imprimir os traos fisionmicos da Raa lusada. E, a pro-

    psito, no se deixe passar em vo esta metfora de inspirao platnica,

    do tratado A Repblica (377c). Diz Plato, ao falar da educao das crianas,

    quando recomenda que se lhes ensinem apenas as fbulas que forem boas:

    ,

    , isto , persuadiremos as amas e as mes a cont-las s

    crianas, e a moldar as suas almas por meio das fbulas, com muito mais

    cuidado do que os corpos com as mos37. Nesta primeira pgina da Arte de

    Ser Portugus, qual portada premonitria, se assim se pode dizer, quando o

    poeta do Gato fala em reconduzir, reintegrar a juventude no carcter da

    tradio do ser-se portugus, a fim de ali colherem uma renovada energia

    moral e social, remata que toda esta atividade deve ser subordinada a um

    32 Diz PASCOAES (1991) 9, em nota: E julgmo-la to urgente, que apressmos a

    publicao deste livro escrito em quinze dias. Nele tentei somente organizar as ideias que

    tenho espalhado em conferncias e artigos publicados n A guia. 33 PASCOAES (1991) 9. 34 PASCOAES (1991) 9. 35 MENDES (1982) 49. 36 PASCOAES (1991) 9. 37 PLATO (2008) 87.

    http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=964;959;8058;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=948;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=7952;947;954;961;953;952;8051;957;964;945;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=960;949;8055;963;959;956;949;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=964;8048;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=964;961;959;966;959;8059;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=964;949;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=954;945;8054;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=956;951;964;8051;961;945;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=955;8051;947;949;953;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=964;959;8150;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=960;945;953;963;8055;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=954;945;8054;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=960;955;8049;964;964;949;953;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=964;8048;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=968;965;967;8048;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=945;8016;964;8182;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=964;959;8150;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=956;8059;952;959;953;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=960;959;955;8058;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=956;8118;955;955;959;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=7970;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=964;8048;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=963;8061;956;945;964;945;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=964;945;8150;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/platon_republique_02/precise.cfm?txt=967;949;961;963;8055;957;

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    Antnio Maria Martins Melo

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    objectivo comum supe-rior, que o ressurgimento da Ptria. Bem prximo

    destas palavras est este passo do dilogo platnico Crton38, citado por

    Antnio Freire39, quando S-crates declara que

    , isto , a Ptria mais digna de honra, mais respeitvel,

    mais sagrada e tida em mais alto apreo pelos deuses e pelos homens

    sensatos, do que o pai, a me e todos os antepassados. A edio que estamos

    a citar da Arte de Ser Portugus encerra esta sua primeira pgina com a palavra

    Destino colocar a nossa Ptria ressurgida em frente do seu Destino40

    que, com a veemncia que aqui se pressupe, pode considerar-se uma

    aluso41 terrvel moira grega, fixa e inamovvel, ao jugo da qual o prprio

    Zeus parecia curvar-se42. Tradi-cionalmente, este o passo dos Poemas

    Homricos citado em abono daquela afirmao. Zeus, vendo o perigo que

    espreitava o seu filho Sarpdon na batalha empreendida pelos Aqueus nas

    praias de Troia, tem vontade de o retirar, mas logo Hera lhe replica:

    .

    .

    ,

    Crnida terribilssimo, que palavra foste tu dizer!

    A homem mortal, h muito fadado pelo destino,

    Queres tu salvar de novo de morte funesta?

    F-lo. Mas todos ns, demais deuses, te no louvaremos43.

    Uma conceo que no estranha ao universo espiritual de Teixeira de

    Pascoaes, a que ele prprio d expresso em texto publicado na revista

    38 PLAT. Crit. 51a-51b. 39 FREIRE (1967) 246. 40 PASCOAES (1991) 9. 41 No sentido de uma evocao. No mbito das relaes de intertextualidade,

    tradio de discursos de uso repetido [LAUSBERG (1972) 81], vamos seguir a nomen-

    clatura da tipologia formal da citao estabelecida por DAZ LAVADO (1999). 42 HOM. Il.16.440-443. 43 HOMERO (2005) 332.

    http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=o%28%2Fti&la=greek&can=o%28%2Fti0&prior=sehttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=mhtro%2Fs&la=greek&can=mhtro%2Fs0&prior=o%28/tihttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=te&la=greek&can=te0&prior=mhtro/shttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=kai%5C&la=greek&can=kai%5C4&prior=tehttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=patro%5Cs&la=greek&can=patro%5Cs0&prior=kai%5Chttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=kai%5C&la=greek&can=kai%5C5&prior=patro%5Cshttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=tw%3Dn&la=greek&can=tw%3Dn0&prior=kai%5Chttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=a%29%2Fllwn&la=greek&can=a%29%2Fllwn0&prior=tw=nhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=progo%2Fnwn&la=greek&can=progo%2Fnwn0&prior=a%29/llwnhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=a%28pa%2Fntwn&la=greek&can=a%28pa%2Fntwn0&prior=progo/nwnhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=timiw%2Ftero%2Fn&la=greek&can=timiw%2Ftero%2Fn0&prior=a%28pa/ntwnhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=e%29stin&la=greek&can=e%29stin0&prior=timiw/tero/nhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=patri%5Cs&la=greek&can=patri%5Cs0&prior=e%29stinhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=kai%5C&la=greek&can=kai%5C6&prior=patri%5Cshttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=semno%2Fteron&la=greek&can=semno%2Fteron0&prior=kai%5Chttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=kai%5C&la=greek&can=kai%5C7&prior=semno/teronhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=a%28giw%2Fteron&la=greek&can=a%28giw%2Fteron0&prior=kai%5Chttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=kai%5C&la=greek&can=kai%5C0&prior=%5dhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=e%29n&la=greek&can=e%29n0&prior=kai%5Chttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=mei%2Fzoni&la=greek&can=mei%2Fzoni0&prior=e%29nhttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=moi%2Fra%7C&la=greek&can=moi%2Fra%7C0&prior=mei/zonihttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=kai%5C&la=greek&can=kai%5C1&prior=moi/ra%7Chttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=para%5C&la=greek&can=para%5C0&prior=kai%5Chttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=qeoi%3Ds&la=greek&can=qeoi%3Ds0&prior=para%5Chttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=kai%5C&la=greek&can=kai%5C2&prior=qeoi=shttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=par%27&la=greek&can=par%270&prior=kai%5Chttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=a%29nqrw%2Fpois&la=greek&can=a%29nqrw%2Fpois0&prior=par%27http://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=toi%3Ds&la=greek&can=toi%3Ds0&prior=a%29nqrw/poishttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=nou%3Dn&la=greek&can=nou%3Dn0&prior=toi=shttp://www.perseus.tufts.edu/hopper/morph?l=e%29%2Fxousi&la=greek&can=e%29%2Fxousi0&prior=nou=nhttp://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=945;7984;957;8057;964;945;964;949;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=922;961;959;957;8055;948;951;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=960;959;8150;959;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=964;8056;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=956;8166;952;959;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=7956;949;953;960;949;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=7940;957;948;961;945;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=952;957;951;964;8056;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=7952;8057;957;964;945;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=960;8049;955;945;953;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=960;949;960;961;969;956;8051;957;959;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=945;7988;963;8131;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=7938;968;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=7952;952;8051;955;949;953;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=952;945;957;8049;964;959;953;959;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=948;965;963;951;967;8051;959;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=7952;958;945;957;945;955;8166;963;945;953;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=7956;961;948;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=7936;964;8048;961;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=959;8020;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=964;959;953;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=960;8049;957;964;949;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=7952;960;945;953;957;8051;959;956;949;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=952;949;959;8054;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=7940;955;955;959;953;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=7940;955;955;959;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=948;8051;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=964;959;953;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=7952;961;8051;969;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=963;8058;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=948;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=7952;957;8054;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=966;961;949;963;8054;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=946;8049;955;955;949;959;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad16/precise.cfm?txt=963;8135;963;953;957;

  • A ideia de sacrifcio, a partir das fontes da Antiguidade Clssica, em a

    Arte de Ser Portugus de Teixeira de Pascoaes

    417

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    A guia, intitulado Uma carta a dois filsofos. O espectro do destino,

    o mistrio trgico do Fatum, esse limite de treva impenetrvel a quem

    nem a Cruz do Calvrio e o Rochedo do Cucaso destroem: O Destino a

    quem o prprio Jpiter obedece, dizia um poeta grego. E o mais trgico e miste-

    rioso do Destino esta sua majestade infinita reinando sobre os homens e os

    Deuses 44, numa referncia genrica Ilada de Homero. Noutro stio, ainda

    a propsito, podemos ler este testemunho da proximidade e admirao de

    Pascoaes aos gigantes que aos ombros ainda hoje impulsionam esta nossa

    civilizao ocidental: Sim: eu sofro o vosso orgulho crucificado, velhos Fil-

    sofos da Grcia, que passeastes, no tmulo vitorioso e estpido de Roma,

    toda a tragdia da vossa ptria submetida45. Neste texto em que discorre

    acerca Da guerra, em pargrafo anterior, j ele tinha manifestado igual

    inclinao, sob a forma de testemunho, ao defender os aliados, isto , a Raa

    latina, a Civilizao greco-judaica firmada no culto enternecido da Beleza e

    da Justia, num sentimento de humanitarismo e destino evanglico que

    motivo transcendente da nossa inadaptao vida prtica46. Deste modo,

    uma nova luz ganham as palavras de Lcio Craveiro ao vaticinar que nele

    encontramos um Bergson ou um Plato, por exemplo, como deparamos com

    outros pensadores, escritores ou poetas; mas no se pode dizer que Pascoaes

    seja da escola de Bergson ou de Plato47. Isso explica, por exemplo, que

    Pascoaes se afaste da doutrina platnica, ao considerar que a ideia vai-se

    formando atravs do conhecimento da realidade que nos fornecem as

    sensaes48.

    Mas o poder, a fora deste estmulo espiritual helnico pode vislum-

    brar-se, desde logo, no ttulo, Arte de Ser Portugus. Com efeito, a etimologia

    do vocbulo portugus Arte, do latim Ars, leva-nos at tkhne () grega

    que, na poca, designava um tratado que oferecia um conjunto de princpios

    tericos e normas prticas (regulae), elaboradas a partir da experincia, que

    compreendiam a forma de realizar uma ao tendente ao seu aperfeioa-

    44 PASCOAES (1915a) 13. 45 PASCOAES (1915b) 59. 46 PASCOAES (1915b) 58. 47 SILVA (1994) 222. 48 BATELLI (1953) 35.

  • 418

    Antnio Maria Martins Melo

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    mento, ao essa que suscetvel de ser ensinada e aprendida. Desta ao

    pode resultar uma obra (opus), a qual h de implicar certamente uma prtica

    repetida (exercitatio) e a referncia a modelos (exempla) que sero objeto de

    imitao pelo aprendiz49.

    assim que a Arte se configura como um tratado terico-prtico em

    que, maneira de Aristteles, comea por aplicar a sua filosofia prtica,

    isto , a sua filosofia platnico-emprica aos princpios tradicionais para da

    inferir normas, regras e, em consonncia, fazer as suas recomendaes ou dar

    os seus conselhos. Como escreve Lpez Eire50

    , Aristteles filosofa sobre todas

    as coisas:

    esas filosofas prcticas aristotlicas () versan bien sobre el arte de la poesa,

    bien sobre el arte de persuadir, e incluso sobre la manera de conseguir la felicidad del

    individuo y del estado... dieron lugar, respectivamente, a la Potica, la Retrica, la

    tica y la Poltica, artes todas ellas que al pasar por el tamiz de la filosofa platnico-

    emprica del Estagirita se convirtieron en filosofas prcticas

    Ora, tendo em conta esta reflexo do professor que foi da Universidade

    de Salamanca, talvez se possa avanar, agora, com alguma segurana, para o

    estudo da conceo de Sacrifcio para Teixeira de Pascoaes, na Arte de Ser

    Portugus, o mesmo dizer, conhecer mais aprofundadamente a sua teori-

    zao do sacrifcio. E falamos em concepo pois deste modo que Teixeira de

    Pascoaes h-de vir a definir o seu pensamento em O Homem Universal, um

    pensamento que, sendo sincero, natural e implica uma concepo, no

    conceito, mais ou menos lgica do homem51. Por aqui se levado para um

    certo dinamismo que se insinua na etimologia do vocbulo conceo e define

    o modo de ser intrnseco alma humana, que obedece a um movimento

    rtmico de ascenso e queda, enquanto vive, como escreve Pascoaes52 no seu

    artigo Uma carta a dois filsofos j acima referido.

    Esta dinmica de ascenso e queda, continua o poeta Teixeira de

    Pascoaes, em que o ser humano se sente arrastado, ora para o Bem atravs de

    uma divina mo de luz, ora para o Mal, pela mo das trevas, no se equi-

    49 MUOZ MARTN (2006) 221-222. 50 EIRE (2004) 12-13. 51 PASCOAES (1993) 113. 52 PASCOAES (1915a) 13.

  • A ideia de sacrifcio, a partir das fontes da Antiguidade Clssica, em a

    Arte de Ser Portugus de Teixeira de Pascoaes

    419

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    valem; porm, o campo tenebroso () poder acaso ser reduzido pelas

    almas hericas, nesta caminhada em que a dor salvadora nos eleva para o

    cu, o sonho da Redeno, pelo sacrifcio do individual ao espiritual, como

    j se pode ler na Arte de Ser Portugus53.

    Nesta obra, a palavra sacrifcio aparece dezassete vezes e ganha uma

    centralidade renovada com os captulos IV e V. Depois de tratar do entendi-

    mento que tem do ser-se portugus, de herana e tradio, do carcter que

    faz a raa e da raa que origina a Ptria, Pascoaes vai concluir que Portugal

    tambm uma Ptria, porque uma Raa politicamente independente,

    senhora do seu destino54. Logo a seguir, no captulo III55, o seu pensamento,

    em crescendo, situa a Ptria numa esfera que transcende as vidas individuais

    dos portu-gueses, enquanto seres animais e humanos, e ao ser espiritual, a

    Ptria, deve ser sacrificada essa vida animal e transitria, isto , o sacrifcio

    um meio para alcanar um fim, a ptria espiritual.

    Ora isto traduz-se numa conceo hierarquizada da vivncia humana,

    que implica uma ascenso do indivduo ao plano mais elevado da espirituali-

    dade. Por outras palavras, vemos que os (seres) imperfeitos diz Pascoaes

    representam transies para os mais perfeitos56. Com efeito, a Vida desen-

    volve-se segundo esta Lei Suprema, curiosamente o ttulo do captulo IV,

    lei suprema essa que a lei do sacrifcio das formas inferiores s superiores.

    a lei do sacrifcio o meio posto ao servio do indivduo para que ele cumpra

    sumamente o seu destino, tornando-se Famlia, Ptria, Humanidade que,

    enquanto seres espirituais que so, so pessoas de Deus57, como se l em

    nota; isto , o indivduo sobe da sua natureza individual e animal perfeita

    natureza do Esprito58. E d como exemplo Nuno lvares Pereira, que

    morreu como homem para viver como Portugal, donde a necessidade de

    incutir aos portugueses este esprito heroico, que efetivamente a verda-

    deira finalidade deste manual cvico, como confessa, ainda nesta pgina,

    53 PASCOAES (1991) 57. 54 PASCOAES (1991) 20. 55 PASCOAES (1991) 23-24. 56 PASCOAES (1991) 27. 57 PASCOAES (1991) 28. 58 PASCOAES (1991) 28.

  • 420

    Antnio Maria Martins Melo

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    o poeta de Gato. E atravs deste herosmo que a alma dos portugueses

    empresta Ptria novas energias e virtudes de que aquela est carecida:

    sem aco moral pode haver existncia, mas no h vida59. Daqui se pode

    inferir, como observa Ferreira Patrcio60, que o humanismo de Pascoaes

    inclui e transcende o seu patriotismo. Com efeito, diz Pascoaes61: A Ptria,

    ser espiritual, est intimamente ligada Humanidade. Est para a Huma-

    nidade, como o indivduo para a sociedade.

    maneira de uma arte de cariz helnico, primeiro, estabelece os princ-

    pios, generaliza, d o conjunto de normas, maneira de um filsofo62, para,

    de seguida, estabelecer normas prticas de ao. A esta luz se deve compre-

    ender o ttulo do captulo V, Como cultivar o sentimento de sacrifcio.

    Teixeira de Pascoaes, a partir da noo de complexidade, em biologia, sin-

    nimo de perfeio, isto , quanto mais complexo o ser vivo, mais perfeito ele

    , vai retomar o seu pensamento, desenvolvendo-o no sentido ascendente, di-

    zendo que o ser supremo Deus: Famlia, Ptria, Humanidade representam

    seres espirituais, cada vez mais complexos, que findam no supremo ser espi-

    ritual63. O homem que ocupa o lugar mais elevado entre os seres espirituais

    o homem sublime, o santo, vive ainda a vida da Humanidade e mesmo

    a do Universo. Elevar o homem do plano individual ao coletivo, diz

    Pascoaes, implica que ele cultive o sentimento de sacrifcio, a voluntria e

    consciente obedincia Lei suprema. Trata-se de um sentimento de sacri-

    fcio que, para o ser, exige aquele excesso de vida que nos leva a desprezar

    a morte e a trabalhar alegremente64. E assim que, pelo sacrifcio, a Lei su-

    prema da Vida, o Indivduo cultiva a sade, em ordem a ser um bom Pai

    o casamento deve ser, portanto, um acto religioso e de sacrifcio aos

    filhos65 pilar de uma Famlia que existe politicamente atravs da vida

    municipal e, em si, contm potencialmente a natureza de uma Ptria: O bom

    59 PASCOAES (1991) 29. 60 PATRCIO (1996) 30. 61 PASCOAES (1991) 29. 62 PASCOAES (1993) 19. 63 PASCOAES (1991) 33. 64 PASCOAES (1991) 34. 65 PASCOAES (1991) 41.

  • A ideia de sacrifcio, a partir das fontes da Antiguidade Clssica, em a

    Arte de Ser Portugus de Teixeira de Pascoaes

    421

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    portugus deve cultivar em si o patriota, que abrange o indivduo, o pai e o

    muncipe e os excede66.

    Esta pequena smula da teoria do sacrifcio a partir da Arte de Ser

    Portugus vem plasmada de uma aura otimista que decorre de uma essncia

    ontolgica que define o pensamento potico de Teixeira de Pascoaes:

    o destino do homem ser conscincia do universo em ascenso perptua

    para Deus, como se l em O Homem Universal67. No foi indiferente ao poeta,

    por esta poca, o pessimismo de um humanismo fechado ao Absoluto ins-

    crito na Nova Teoria do Sacrifcio do seu confrade e filsofo portuense, Jos Tei-

    xeira Rego, de quem cita estas trgicas palavras, na Carta a dois filsofos:

    o homem uma aberrao, um verdadeiro escndalo da Natureza. Mais

    adiante refora a sua condenao desta estranha teoria, afirmando que ela

    desintegra o homem da Natureza e, com ele, todo o seu extraordinrio

    sonho de Divindade, e o abandona, frgil e casual, condio patolgica de

    monstro!68. A conceo do Sobre-humano de Pascoaes afasta-se, assim, do

    Super-homem teorizado por Nietszche em Assim falava Zaratustra.

    O primeiro representa a esperana num mundo melhor, ao invs do segundo

    que o pessimismo do niilismo ou a inutilidade de se viver para nada69.

    Recorde-se que a teoria de Teixeira Rego foi uma resposta s teses de Roberto

    Guilherme Woodhouse (1828-1876), catlico fervoroso que, em 1872,

    tentava adequar as teorias evolucionistas com o livro dos Gnesis70.

    Esta evoluo dinmica, condio da existncia superior71 do ser

    humano, tem por centro vital o sacrifcio, enquanto processo por que o

    imperfeito material se torna perfeio espiritual. que o ser humano ()

    no realiza em si, o seu destino, mas nos seres espirituais: Famlia, Ptria,

    66 PASCOAES (1991) 48. 67 PASCOAES (1993) 5. 68 PASCOAES (1915a) 16. 69 TAVARES (2012) 46. 70 CARVALHO (2015a) 125. 71 PASCOAES (1915a) 18.

  • 422

    Antnio Maria Martins Melo

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    Humanidade, Deus72. Da que o sacrifcio se desvele ao esprito humano com

    uma aura sagrada. Diz Pascoaes em Uma carta a dois filosofos73:

    O espiritual comeou a viver do animal. esta a lei do sacrifcio a lei suprema

    da Natura:

    E assim, a Vida o grande sacrifcio

    Que a Deus faz a sensvel Natureza,

    Para que Deus exista em dor e amor

    (As Sombras)

    O Esprito no traduz, portanto, uma aberrao da Natureza, mas a sua virtude

    sobrenatural, o seu poder infinito de excedncia, de autotransfigurao ideal.

    A dimenso sagrada do sacrifcio algo que j se encontra inscrito no

    prprio vocbulo, se atentarmos na sua etimologia (sacer, que no pode ser

    tocado, sem ser manchado, sagrado); por outro lado, diz-se sagrado porque

    se trata de uma oferenda ritual feita a uma divindade (facere, fazer). sagrado

    (sacrum) e, por isso, designa aquilo que prprio do mundo divino, dos

    deuses, por oposio ao profano (profanum), prprio da vida corrente dos

    homens. E impossvel nesta altura deter o nosso esprito, que rapidamente

    se satisfaz em rememorar as tradies religiosas entre os Gregos da Antigui-

    dade, onde o sacrifcio cruento ocupava uma inusitada centralidade na vida

    da polis, uma vivncia estranha mentalidade contempornea, dando um

    carcter sagrado ordem humana e social, como nos relata Jean-Pierre

    Vernant: Na guerra ou na paz, antes de travar batalha ou na abertura de

    uma assembleia, ou ainda na posse dos magistrados, a execuo de um sacri-

    fcio no menos necessria que durante as grandes festas religiosas do

    calendrio sacro74. O sacrifcio lendrio de Ifignia, ordenado pelo prprio

    pai, Agammnon, a fim de propiciar a vontade de rtemis e, assim, libertar

    a armada aqueia que se encontrava prisioneira de uma prolongada calmaria

    em ulis, bem o smbolo disso mesmo. Mas a deusa, como se sabe, no derra-

    deiro momento, substituiu a jovem por uma cora.

    A par deste culto pblico, a mentalidade grega tambm acolheu outras

    formas de expresso da religiosidade popular, mais identificadas com as as-

    72 PASCOAES (1991) 123. 73 PASCOAES (1915a) 18. 74 VERNANT (2009) 60.

  • A ideia de sacrifcio, a partir das fontes da Antiguidade Clssica, em a

    Arte de Ser Portugus de Teixeira de Pascoaes

    423

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    piraes individuais, que nasceram de um desejo de contacto pessoal com a

    divindade; todas estas manifestaes integraram o denominado misticismo

    grego, olhado, em alguns casos, com alguma suspeio pela plis. aqui que

    se situa o orfismo, corrente que rejeita o sacrifcio cruento e busca uma unio

    com o divino mediada por uma vida pura, baseada num regime vegetariano,

    o que levar os seus seguidores a escapar finitude e morte, desde que

    observem uma certa disciplina nos seus exerccios espirituais. E Pascoaes

    testemunha esta eterna aspirao humana, j celebrada nos Mistrios de

    Elusis, entrevista nas clogas de Virglio75. Porm, a religio grega no

    conheceu a personagem do renunciante. Foi a filosofia que, ao transpor para

    seu prprio registo os temas da ascese, da purificao da alma, da imortali-

    dade desta, assumiu esta tarefa76.

    Na verdade, Plato, no seu tratado A Repblica77, fala desta ascese, as-

    censo, e da sua natureza, ao caracteriz-la como um conjunto de exerccios,

    no s espirituais, atravs da msica, que compreende a literatura, mas

    tambm a ginstica para o corpo, que ocupa o segundo lugar, o que nos apro-

    xima do conceito de paideia ou instruo. Ora isto remete-nos, como j o

    demonstrou Jos Rosa78, para uma proximidade com o Liber Sapientiae, do

    Vetus Testamentum. Tambm aqui o carcter deste desejo de ascenso se re-

    vela de forma idntica, como, por exemplo, neste passo: initium enim illius

    verissima est disciplinae concupiscentia, cura vero disciplinae dilectio est, isto ,

    o princpio da sabedoria o desejo sincero de se instruir, e desejar instruir-

    se j am-la79. O prprio processo que aqui se descreve de ascese mstica

    em tudo se parece com a via ascensional ao supremo Bem no Banquete de

    Plato80. Esta referncia Bblia parece-nos fator relevante pelo lugar que ela

    ocupa nas suas leituras, a par de outras de alguns poetas da sua preferncia:

    Lucrcio, Virglio, Dante, Cames, Frei Agostinho de Santa Cruz81.

    75 PASCOAES (1991) 107. 76 VERNANT (2009) 88. 77 PLAT. Rsp. 376e. 78 ROSA (1997) 52. 79 Vulg. Sap. 6.17. 80 PLAT. Conv. 210a-212. 81 COUTINHO (1995) 53.

  • 424

    Antnio Maria Martins Melo

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    eloquente, a respeito do que se est a dizer, este passo do artigo

    Da guerra, inserto na revista A guia: O portugus profunda e lastima-

    velmente partidarista. Trocou Os Lusadas e a Bblia pelo Sculo e pela

    Carta82.

    Neste momento, uma questo pertinente: por que razo Pascoaes

    nunca usa a palavra ascese, no contexto do sacrifcio, enquanto meio para

    atingir o Ser espiritual, a Perfeio? Sabendo ns que se trata de um conceito

    fundamental da cultura grega e que passou mundividncia judaico-cristo,

    ser que isso pode denunciar aquilo que Ferreira Patrcio83 j afirmou,

    dizendo que Pascoaes est fora da tradio judaico-crist? Explicar esta

    atitude do poeta do Maro a sua defesa de uma Igreja lusitana, como se pode

    ler na Arte de Ser Portugus? Diz ele:

    to vivo em ns o esprito de independncia religiosa, que os nossos melhores

    telogos sempre defenderam princpios de acordo com a autonomia da nossa Igreja.

    Assim Diogo Paiva de Andrade, Frei Bartolomeu dos Mrtires e o clebre telogo

    Antnio Pereira, num tempo em que era absorvente o poder papal e o jesutico,

    defenderam todos os princpios libertadores e nacionalizadores da Igreja lusitana84.

    Retomando o fio condutor da nossa reflexo em torno da natureza do

    sacrifcio luz das fontes da Antiguidade Clssica, vai ficando clara a impor-

    tncia da cultura grega e, de forma mais abrangente, do helenismo que sabia-

    mente harmonizou a filosofia grega com a tradio judaico-crist, como

    bem visvel na obra de Flon de Alexandria (20/13 a.C. c. 50 d.C.) e, mais

    tarde, na de Flvio Josefo (37/38 c. 100).

    O carcter deste sacrifcio, na linha da tradio platnica acima refe-

    rida, aponta na direo da paideia grega, com um sentido de instruo, edu-

    cao. Por outro lado, este sacrifcio mediador entre o humano e o divino,

    entre o material e o espiritual e, por isso, transformou-se em Lei Suprema, lei

    essa que s existe no Universo, intermdio entre um princpio e um fim, como

    se pode concluir a partir da leitura de Santo Agostinho do poeta amarantino85.

    82 PASCOAES (1915b) 60. 83 PATRCIO (1963) 53. 84 PASCOAES (1991) 83. 85 TAVARES (2012) 43.

  • A ideia de sacrifcio, a partir das fontes da Antiguidade Clssica, em a

    Arte de Ser Portugus de Teixeira de Pascoaes

    425

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    Mas esta educao h de cumprir-se sob o signo da dialtica, na tenso

    contnua entre a ascenso e a queda, entre a luz e as trevas. Tudo isto nos

    remete para uma aluso alegoria dos cavalos e corcis descrita no Fedro de

    Plato e que ilustra bem esta afirmao, um mito de que j nos aparece notcia

    em Pndaro. Diz Plato: ,

    ,

    , isto , quanto a ns, somos os cocheiros de uma atrelagem puxada

    por dois cavalos, sendo um belo e bom, de boa raa, e sendo o outro precisa-

    mente o contrrio, de natureza oposta, de onde provm a dificuldade que h

    em conduzirmos o nosso prprio carro86 (passo traduzido por P. Gomes87).

    Deste af resulta que ao cocheiro humano torna-se vital a harmonia da

    parelha.

    na riqussima tradio da arte do dilogo entre os gregos que a dia-

    ltica ganha expresso enquanto caminho ou mtodo88 que procede se-

    gundo um duplo movimento de subida e descida89:

    , ,

    (533d) ,

    ,

    O mtodo da dialctica o nico que procede, por meio da destruio de hipteses,

    a caminho do autntico princpio, a fim de tornar seguros os seus resultados, e que

    arrasta aos poucos os olhos da alma da espcie do lodo brbaro em que est atolada e

    eleva-os s alturas, utilizando como auxiliares para ajudar a conduzi-los as artes que

    analismos90.

    A mesma simbologia se encontra no mito de Glauco, no Livro X de

    A Repblica91. Mas mais importante que este mtodo dialtico que Plato

    considera a cpula das cincias92, talvez seja surpreender na obra deste poeta

    86 Plat. Phaedr. 246a-b. 87 GOMES (1989) 56. 88 PLAT. Rsp. 533b. 89 PLAT. Rsp. 533d. 90 PLATO (2008). 91 PLAT. Rsp. 611-612a. 92 PLAT. Rsp. 534e.

  • 426

    Antnio Maria Martins Melo

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    uma das caractersticas mais identitrias do esprito grego, a sua predispo-

    sio agonstica, isto , o seu esprito de competio, com largas repercusses

    na cultura ocidental, a que j se referiu Joo Beato93:

    Uma das bases fundamentais da cultura ocidental a forma de espiritualidade

    ritualizada no Drama dionisaco e no gon olmpico, os dois plos de um culto que

    explora as noes de dualidade e oposio como meios para atingir a unidade, ou seja,

    o estado de conscincia representado pelo heri, um ser humano com atributos divinos.

    Esta dualidade est bem presente na Arte de Ser Portugus, em expres-

    ses como imperfeito e perfeito, formas inferiores e superiores94, vida

    animal e vida espiritual, homem rudimentar e homem superior95, in-

    divduo belo e saudvel e indivduo doente e feio96, Esprito e Matria97

    que nos remetem para a dicotomia fundamental de paganismo-cristianismo,

    que deve ser lida luz das condies da poca em que viveu Pascoaes e que

    havia de traduzir-se, de forma singular, no seu poemeto Jesus e P, de 1903,

    em que se vislumbra a forma mentis do poeta que busca uma espcie de coin-

    cidentia oppositorum 98, conforme se l na Terceira Fala do seu Jesus e P99:

    preciso ligar, fundir na mesma luz

    A vida deste mundo e uma existncia ideal;

    A alegria da Flora e a paixo de Jesus,

    O beijo criador e a prece virginal!

    preciso reunir na mesma comunho

    A aspereza do mundo doura do cu,

    A leveza do lrio ao peso do alvio,

    E ao canto do trabalho a tua lira, Orfeu!

    ()

    preciso amar tudo e compreender tudo,

    S neste sbio amor a Perfeio existe!

    93 BEATO (2007) 97. 94 PASCOAES (1991) 27. 95 PASCOAES (1991) 33. 96 PASCOAES (1991) 121. 97 PASCOAES (1991) 83. 98 ALVES (1996) 591. 99 PASCOAES (1966) 48.

  • A ideia de sacrifcio, a partir das fontes da Antiguidade Clssica, em a

    Arte de Ser Portugus de Teixeira de Pascoaes

    427

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    Na Arte de Ser Portugus, Pascoaes vai diz-lo de forma insofismvel,

    primeiro, quando diz que a alma ptria , portanto, caracterizada pela fuso

    que se realizou, na nossa Raa, do princpio naturalista ou ariano e do prin-

    cpio espiritualista ou semita100. Depois, quando fala do carcter do gnio

    lusada que idealmente se completa pela feio religiosa que, absorvendo a

    ideia crist e a pag, deste dualismo extrai a sua unidade sentimental, aquele

    sentimento saudoso das Coisas, da Vida e de Deus, que anima de original e mstica

    beleza a nossa Arte, Poesia, Literatura e Cristianismo101. E mais frente, l

    reaparece o deus P a pr o povo em convivncia com o outro Mundo102.

    O ideal de Pascoaes transmutar o demonaco em divino103, isto ,

    consiste em elevar o portugus, enquanto indivduo, condio de patriota,

    sacrificando tudo, a sua prpria vida Ptria, ser espiritual e divino104. Fala

    mesmo em destino de sacrifcio e redeno105, a que ningum se pode

    furtar. A falta de persistncia e a imitao conduzem a uma queda do esp-

    rito de sacrifcio, a quebra da relao entre o indivduo e o seu destino de

    chefe de famlia e patriota106.

    E so as almas heroicas que, por excelncia, podem manter vivo este

    esprito de sacrifcio e apressar a transmutao do material para o divino, do

    individual para o coletivo, sobrelevando-se a Ptria espiritual. E, por isso, o

    poeta amarantino deseja impulsionar o culto religioso dos nossos antepas-

    sados, apresentando como primeiro ldimo representante de uma Alma que

    se ergueu bem alto por entre a confuso das raas da Ibria a figura hom-

    rica de Viriato107, em que a referncia geral avocada ao adjetivo homrica

    d figura de Viriato uma colorao mais augusta e de maior universalidade.

    Por isso, o adjetivo homrica no aparece aqui em vo, com toda a

    certeza. em Homero que se manifesta uma das mais importantes idiossin-

    100 PASCOAES (1991) 61-62. 101 PASCOAES (1991) 62. 102 PASCOAES (1991) 70. 103 PASCOAES (1991) 120. 104 PASCOAES (1991) 28. 105 PASCOAES (1991) 123. 106 PASCOAES (1991) 104. 107 PASCOAES (1991) 83.

  • 428

    Antnio Maria Martins Melo

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    crasias do esprito grego na sociedade da poca arcaica, que o esprito de

    competio, o mesmo dizer, o esprito agnico dos gregos. O costume de

    concursos desportivos est documentado em Homero, na Ilada, quando se

    descrevem os jogos fnebres em honra de Ptroclo, no Canto XXIII, no m-

    bito dos quais essas provas se tornam dominantes; mas tambm se encontram

    no Canto VIII da Odisseia, quando se relata a receo que os Feaces fizeram

    ao heri Ulisses, organizando jogos em sua honra. E quando se pensa na

    Ilada, est desde logo presente o antagonismo entre Aquiles e Heitor, exacer-

    bado com a morte de Ptroclo. Para o heri grego era bem prefervel a morte

    heroica a uma vida longa e sem honra (IX.410-416), como Ttis anuncia ao

    seu filho Ulisses108:

    .

    ,

    ,

    ,

    ,

    , .

    Na verdade, me disse minha me, Ttis de ps prateados,

    Que um dual destino me leva at ao termo da morte:

    Se eu aqui ficar a combater em torno da cidade de Tria,

    Perece o meu regresso, mas terei uma vida longa,

    E o termo da morte no vir depressa ao meu encontro109.

    Ora este esprito agnico, a partir do exerccio prtico e disciplinado,

    o sentido original de ascese, traduzia-se na procura constante da superao

    dos limites humanos, rumo a um modelo humano de excelncia, que se iden-

    tificava com o heri. Este heri olmpico, para os espectadores, era algum

    divinizado, era um ser humano mais prximo da divindade, simultanea-

    mente expoente da beleza fsica, mas tambm exemplo da tica da tradio

    pica, isto , belo e bom, que se exprime pela palavra , o grande

    ideal humano da poca arcaica da Grcia Antiga. nas competies atlticas

    que se manifesta o princpio de Apolo, em que o ser humano se eleva, assim,

    contemplao do absoluto, da totalidade, que se manifesta em Zeus, sinal

    108 HOM. Il.9.410-416. 109 HOMERO (2005) 191.

    http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=956;8053;964;951;961;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=947;8049;961;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=964;8051;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=956;8051;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=966;951;963;953;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=952;949;8048;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=920;8051;964;953;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=7936;961;947;965;961;8057;960;949;950;945;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=948;953;967;952;945;948;8055;945;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=954;8134;961;945;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=966;949;961;8051;956;949;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=952;945;957;8049;964;959;953;959;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=964;8051;955;959;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=948;8051;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=949;7984;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=956;8051;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=954;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=945;8022;952;953;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=956;8051;957;969;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=932;961;8061;969;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=960;8057;955;953;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=7936;956;966;953;956;8049;967;969;956;945;953;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=8036;955;949;964;959;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=956;8051;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=956;959;953;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=957;8057;963;964;959;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=7936;964;8048;961;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=954;955;8051;959;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=7940;966;952;953;964;959;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=7956;963;964;945;953;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=949;7984;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=948;8051;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=954;949;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=959;7988;954;945;948;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=7989;954;969;956;953;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=966;8055;955;951;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=7952;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=960;945;964;961;8055;948;945;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=947;945;8150;945;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=8036;955;949;964;8057;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=956;959;953;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=954;955;8051;959;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=7952;963;952;955;8057;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=7952;960;8054;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=948;951;961;8056;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=948;8051;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=956;959;953;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=945;7984;8060;957;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=7956;963;963;949;964;945;953;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=959;8016;948;8051;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=954;8051;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=956;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=8038;954;945;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=964;8051;955;959;962;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=952;945;957;8049;964;959;953;959;http://mercure.fltr.ucl.ac.be/Hodoi/concordances/homere_iliad09/precise.cfm?txt=954;953;967;949;8055;951;

  • A ideia de sacrifcio, a partir das fontes da Antiguidade Clssica, em a

    Arte de Ser Portugus de Teixeira de Pascoaes

    429

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    de transcendncia. Com efeito, as divindades so consideradas manifestaes

    parcelares da unidade da manifestao, que Zeus. Mas a par desta manifes-

    tao prpria do universo pago, perfila-se o culto do Drama, que aflora

    pena do poeta do Maro, na Arte de Ser Portugus, a propsito do deus P,

    numa referncia geral a um dos autores mais importantes da tragdia grega:

    Este medo, esta Dor fantasma, terrvel por indefinida, e ansiosa por inatin-

    gvel, no encontrou ainda o seu squilo110.

    Da mesma ndole a natureza do sacrifcio, do heri na Arte de ser Por-

    tugus: O sentimento de ser sacrifcio, para ser, exige aquele excesso de vida

    que nos leva a desprezar a morte e a trabalhar alegremente111.

    Teixeira de Pascoaes vive num tempo profundamente influenciado

    pela obra de Nietzsche e de Freud, que promovem a recuperao e a revalo-

    rizao do universo dionisaco, fazendo-o regressar superfcie da Terra,

    isto , conscincia112, como j escreveu Joo Beato113. Jorge Coutinho, a este

    propsito, claro ao definir a forma mentis de Pascoaes, mais prxima da

    sugesto simblica e metafrica, no o do conceito rigoroso e cientfico.

    Pascoaes muito mais filho de Dionsio que de Apolo. O seu reino o do luar

    nocturno no o da claridade diurna. A fora anmica que traz o pensamento

    linguagem no a da razo clara e distinta, mas a do sentimento arracional

    e obscuro114.

    A esta influncia do autor alemo, Nietzsche, se refere ele no Santo

    Agostinho (1945: 101): A obra de Nietzsche foi, na verdade, um deslumbra-

    mento. E chegou a ser embriaguez, tal a virtude bquica do seu estilo!115. Na

    Arte de Ser Portugus, pode ler-se, a propsito de uma quadra popular em que

    se v o nosso Cristianismo colorido de vivas tintas pags: na primeira

    quadra, a embriaguez dionisaca tinge de alvoroo alegre a celeste figura da

    Virgem que vai colher o negro fruto da Alegria116. Por outro lado, foi

    110 PASCOAES (1991) 70. 111 PASCOAES (1991) 34. 112 PASCOAES (1991) 34. 113 BEATO (2007) 100. 114 COUTINHO (1995) 429. 115 PASCOAES (1945) 101. 116 PASCOAES (1945) 85-86.

  • 430

    Antnio Maria Martins Melo

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    aquela educao homrica, fundada no esprito agonstico, que influenciou

    este autor alemo em diversos momentos da criao da sua obra, como o

    demonstra Nunes Bittencourt117 citando, nomeadamente, A Disputa de

    Homero, A Viso Dionisaca do Mundo, A Filosofia na Idade Trgica dos Gregos,

    Ecce homo como algum se torna o que se , O nascimento da Tragdia ou o

    helenismo e o pessimismo.

    Teixeira de Pascoaes viveu num tempo em que se assistiu a um revigo-

    rado interesse pela cultura grega antiga e que via nela uma porta para a

    soluo dos seus problemas. Nesta cultura se parece inspirar o poeta do

    Maro quando faz o diagnstico da atualidade da sua Ptria, deixando

    entrever uma soluo apolnea, em luta com a tendncia dionisaca: A antiga

    concrdia entre a Unidade disciplinadora e a livre iniciativa quebrou-se,

    estabelecendo-se a confuso do Caos, no qual os elementos dissolvidos

    procuram animar-se de uma nova Simpatia que os organize118.

    Era impossvel Pascoaes no ter vivido com renovado interesse a aven-

    tura do rico comerciante alemo Heinrich Schliemann que, de Ilada na mo,

    havia de descobrir a majestosa civilizao de Micenas e identificar a famosa

    Troia clssica na localidade de Hissarlik, situada nas colinas da Anatlia,

    atual Turquia. Que no se deixasse contagiar pelo heri Ulisses que, encar-

    nao da curiosidade e do esprito agnico caractersticos da mentalidade

    grega e, por extenso, do ser humano em geral , comporta de igual modo

    uma sujeio ao perigo, pois a aventura do conhecimento pressupe sempre

    uma exposio aos riscos da incerteza, experincia do sofrimento vivido119.

    A atitude deste heri do sacrifcio, que muito sofreu, mas que no virou a

    cara a novos desafios, permitiu, assim, diz Delfim Leo no mesmo stio, que

    a odisseia do progresso civilizacional continuasse a compor novos captulos

    da histria da humanidade. Outro heri tambm se distinguiu pela sua

    capacidade de persuaso no uso da palavra em plena Assembleia, o que d

    oportunidade a Pascoaes para fazer mais uma referncia geral Cultura

    Grega e que, eventualmente, pode explicar a deciso do poeta do Maro para

    117 BITTENCOURT (2010) 1-5. 118 PASCOAES (1991) 99. 119 LEO (2013) 23.

  • A ideia de sacrifcio, a partir das fontes da Antiguidade Clssica, em a

    Arte de Ser Portugus de Teixeira de Pascoaes

    431

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    a escrita deste seu manual de pendor cvico, em ambiente de esprito blicos:

    Disse Filipe da Macednia em outros tempos (belos tempos!) que temia mais

    o verbo de Demosthenes que os exrcitos de Darius120.

    Como resulta do que foi dito, a ideia de sacrifcio na Arte de Ser Por-

    tugus identifica-se muito com este esprito agnico dos primeiros gregos: en-

    quanto sinnimo de ascese, aproxima-se da paideia grega, que implica a

    formao, a educao do heri do sacrifcio a partir de textos fundacionais da

    cultura portuguesa onde mais se manifesta o gnio da alma patria, donde

    resulta um evidente carter didtico deste manual pascoalino. Tambm ele,

    semelhana dos gnios que o precederam, se mostrou um esprito inquieto,

    com a mania de investigar a alma das coisas, ou essa apario simbolizada

    nas aparncias121, procurando transmitir posteridade a sua conceo de ser

    humano, enquanto arauto de uma nova era, consciente, porm, da sua

    finitude122:

    Os artistas possuindo o culto da existncia, ambicionavam dignific-la e embelez-

    la conforme o prottipo idealizado. Se no temos ainda o homem, temos a sua esttua.

    Os artistas da Grcia realizaram o indivduo eleito, deram-lhe uma forma, que sendo

    humana atinge a Divindade. Fdias esculpindo corpos, foi o precursor de Paulo o

    escultor de almas.

    Bibliografia

    A guia: revista quinzenal ilustrada de literatura e crtica. Dir. e propr. lvaro

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    435

    gora. Estudos Clssicos em Debate 19 (2017)

    * * * * * * * * *

    Resumo: O Autor situa o aparecimento da Arte de Ser Portugus, uma obra de maturidade,

    no contexto da sua poca. Depois, identifica algumas linhas temticas de inspirao

    predominantemente helnica que parecem estar presentes na definio da ideia de

    sacrifcio apresentada por Teixeira de Pascoaes, neste seu pequeno manual de natureza

    cvica. Uma dinmica impulsionada pela noo de literatura de reuso e, na sequncia,

    de intertualidade.

    Palavras-chave: Ideia de sacrifcio; Antiguidade Clssica; Literatura Portuguesa; Teixeira

    de Pascoaes; Arte de Ser Portugus.

    Resumen: El autor sita el Arte de Ser Portugus, una obra de madurez, en el contexto de

    su poca. Tras esto, identifica algunas lneas temticas de inspiracin predominantemente

    helnica que parecen estar presentes en la definicin de la idea de sacrificio presentada

    por Teixeira de Pascoaes en este pequeo manual suyo de naturaleza cvica. Una dinmica

    impulsada por la nocin de literatura de reutilizacin y, en consecuencia, de

    intertextualidad,

    Palabras clave: idea de sacrificio; Antigedad Clsica; Literatura Portuguesa; Teixeira de

    Pascoaes; Arte de Ser Portugus.

    Rsum: Lauteur situe lapparition de LArt dtre Portugais, une uvre de maturit, dans

    le contexte de son poque. Ensuite, il identifie certaines lignes thmatiques dinspiration

    essentiellement hellnique qui semblent tre prsentes dans la dfinition de lide de

    sacrifice prsente par Teixeira de Pascoaes, dans son petit manuel de nature civique. Une

    dynamique renforce par la notion de littrature de remploi et, dans la foule,

    dintertextualit.

    Mots-cls : ide de sacrifice ; Antiquit Classique ; Littrature portugaise ; Teixeira de

    Pascoaes ; LArt dtre Portugais.

    Antnio Maria Martins Melo (UCP, Braga Portugal)Abstract: We first situate Arte de Ser Portugus, a work of maturity, in the context of its time. Afterwards, we identify some thematic strands of Hellenic inspiration which seem to underlie the definition of the idea of sacrifice presented by Teixeir...Keywords: idea of sacrifice; Classical Antiquity; Portuguese Literature; Teixeira de Pascoaes; Arte de Ser Portugus.Resumo: O Autor situa o aparecimento da Arte de Ser Portugus, uma obra de maturidade, no contexto da sua poca. Depois, identifica algumas linhas temticas de inspirao predominantemente helnica que parecem estar presentes na definio da ideia de ...Palavras-chave: Ideia de sacrifcio; Antiguidade Clssica; Literatura Portuguesa; Teixeira de Pascoaes; Arte de Ser Portugus.Resumen: El autor sita el Arte de Ser Portugus, una obra de madurez, en el contexto de su poca. Tras esto, identifica algunas lneas temticas de inspiracin predominantemente helnica que parecen estar presentes en la definicin de la idea de sacr...Palabras clave: idea de sacrificio; Antigedad Clsica; Literatura Portuguesa; Teixeira de Pascoaes; Arte de Ser Portugus.Rsum: Lauteur situe lapparition de LArt dtre Portugais, une uvre de maturit, dans le contexte de son poque. Ensuite, il identifie certaines lignes thmatiques dinspiration essentiellement hellnique qui semblent tre prsentes dans la dfin...Mots-cls : ide de sacrifice ; Antiquit Classique ; Littrature portugaise ; Teixeira de Pascoaes ; LArt dtre Portugais.