a influÊncia das ideias de joÃo de paris (joÃo … · marcÍlio de pÁdua na construÇÃo do...

25
7028 A INFLUÊNCIA DAS IDEIAS DE JOÃO DE PARIS (JOÃO QUIDORT) E DE MARCÍLIO DE PÁDUA NA CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO * THE INFLUENCE OF THE IDEAS OF JOHN OF PARIS (JOHN QUIDORT) AND MARCILIUS OF PADUA IN THE CONSTRUCTION OF THE MODERN POLITICAL THOUGHT. Leonardo Varella Giannetti RESUMO Cresce o estudo pela filosofia medieval, pois a Idade Moderna possui suas raízes na Idade Média. Nesse período, as relações entre Igreja e Estado provocaram debates prolongados e acesos. As ideias que João de Paris e Marcílio de Pádua formularam para combater a pretensão do Papa na plenitude do poder ajudaram na construção de conceitos que foram utilizados séculos depois, como o de soberania popular e Estado laico. João de Paris entende que o Estado possui um fim em si mesmo e que era possível uma autoridade civil se ocupar apenas com as coisas terrenas, inclusive de julgá-las, despreocupada com os preceitos religiosos. Marcílio de Pádua, vinte anos depois, mantém tal debate, alegando que a paz, entendida aqui como a ausência de conflito no interior da sociedade civil, é constantemente ameaçada pela pretensão papal à plenitude do poder. PALAVRAS-CHAVES: IGREJA; ESTADO; MARCÍLIO DE PÁDUA; JOÃO DE PARIS (QUIDORT); PLENITUDO POTESTATIS. ABSTRACT The study of medieval philosophy has increased, because the Modern Age has its roots in the Middle ages. During this period, the relations between Church and State had caused excited debates. The ideas that John of Paris and Marcilius of Padua had formulated to fight against the Pope's desire in fulfillment of power helped in building concepts that had been used centuries later, as popular sovereignty and secular State. John of Paris understands that the State has a purpose in itself and the civil authority could be occupied just with the mundane things, also to judge them, and could be unconcerned with the religious rules. Marcilius of Padua, twenty years later, keeps such debate, claiming that the peace, understood here as the absence of conflict in the interior of the civil society, is constantly threatened by the pope’s pretension to the fullness of the power. KEYWORDS: CHURCH; STATE; MARCILIUS OF PADUA; JOHN OF PARIS (QUIDORT); PLENITUDO POTESTATIS. * Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

Upload: hahuong

Post on 10-Dec-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

7028

A INFLUÊNCIA DAS IDEIAS DE JOÃO DE PARIS (JOÃO QUIDORT) E DE MARCÍLIO DE PÁDUA NA CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO POLÍTICO

MODERNO*

THE INFLUENCE OF THE IDEAS OF JOHN OF PARIS (JOHN QUIDORT) AND MARCILIUS OF PADUA IN THE CONSTRUCTION OF THE MODERN

POLITICAL THOUGHT.

Leonardo Varella Giannetti

RESUMO

Cresce o estudo pela filosofia medieval, pois a Idade Moderna possui suas raízes na Idade Média. Nesse período, as relações entre Igreja e Estado provocaram debates prolongados e acesos. As ideias que João de Paris e Marcílio de Pádua formularam para combater a pretensão do Papa na plenitude do poder ajudaram na construção de conceitos que foram utilizados séculos depois, como o de soberania popular e Estado laico. João de Paris entende que o Estado possui um fim em si mesmo e que era possível uma autoridade civil se ocupar apenas com as coisas terrenas, inclusive de julgá-las, despreocupada com os preceitos religiosos. Marcílio de Pádua, vinte anos depois, mantém tal debate, alegando que a paz, entendida aqui como a ausência de conflito no interior da sociedade civil, é constantemente ameaçada pela pretensão papal à plenitude do poder.

PALAVRAS-CHAVES: IGREJA; ESTADO; MARCÍLIO DE PÁDUA; JOÃO DE PARIS (QUIDORT); PLENITUDO POTESTATIS.

ABSTRACT

The study of medieval philosophy has increased, because the Modern Age has its roots in the Middle ages. During this period, the relations between Church and State had caused excited debates. The ideas that John of Paris and Marcilius of Padua had formulated to fight against the Pope's desire in fulfillment of power helped in building concepts that had been used centuries later, as popular sovereignty and secular State. John of Paris understands that the State has a purpose in itself and the civil authority could be occupied just with the mundane things, also to judge them, and could be unconcerned with the religious rules. Marcilius of Padua, twenty years later, keeps such debate, claiming that the peace, understood here as the absence of conflict in the interior of the civil society, is constantly threatened by the pope’s pretension to the fullness of the power.

KEYWORDS: CHURCH; STATE; MARCILIUS OF PADUA; JOHN OF PARIS (QUIDORT); PLENITUDO POTESTATIS.

* Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo – SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.

7029

1. Introdução

Atualmente, cresce o interesse pela Filosofia Medieval e a repercussão das ideias construídas no medievo, vinculando-as também ao estudo da Política, da História, da Antropologia e do Direito. Aos poucos, diversos estudos comprovam que o Estado Moderno possui raízes na Baixa Idade Média. [1] DE BONI consigna que por muitos anos se pensou que a Filosofia Moderna teria surgido quase de si própria, sem possuir qualquer relação com os tempos que a precederam (2000, p. 10). Contudo, principalmente a partir do século XIX, percebeu-se que a Idade Média “constituía a chave de compreensão da cultura ocidental.” (DE BONI, 2000, p. 11).

Da mesma forma, VILANI nos mostra que os principais fundamentos da democracia moderna têm suas origens no pensamento político que surgiu na Europa, entre os séculos XIII e XIV (2000, p. 13).

Esse período é caracterizado pelo embate entre o Império e o Papado na justificativa de quem seria o titular do poder, ou quem o teria em sua plenitude, pois crescia, em ambas as instituições, a tendência a uma unificação. Segundo SIMONE GOYARD-FABRE, “a noção de Poder político foi geralmente, na história, ligada à idéia do comando ditado por aquele ou aqueles que detêm a autoridade” (2002, p. 55). Essa disputa pelo poder incluía, também, a luta por terras, direitos e privilégios, que incluía, logicamente, a tributação: a entidade eclesiástica buscando manter o direito às imposições fiscais e os reinos e o Império buscando acabar ou reduzir a imunidade da Igreja. [2]

E foi neste clima político tenso entre os governos civis e a cúpula da Igreja que surgem diversas doutrinas de filosofia política. Sobre o tema, nomes como Egídio Romano, João de Paris (ou João Quidort), Marcílio de Pádua e Guilherme de Ockham (ou Occam, segundo alguns autores) são sempre citados pela doutrina nacional e internacional, em razão da influência que suas ideias, com suas respectivas características, trouxeram na construção do pensamento moderno, que culminará nas revoluções burguesas do século XVIII.

Este trabalho enfocará, principalmente, as ideias principais de João de Paris e de Marcílio de Pádua que influenciaram a formação do pensamento político moderno e na própria construção deste Estado. Antes, contudo, é importante consignar algumas teorias de Santo Agostinho e de Santo Tomás de Aquino que, em cada época específica, foram adotadas pela Igreja e que influenciaram toda construção do Poder político.

2. A influência de Santo Agostinho e o panorama político da Alta Idade Média.

7030

Com os Imperadores Licínio (no Oriente) e Constantino (no Ocidente), através do Édito de Milão, em 313 d.c, e depois apenas com Constantino, com o Édito de Nicéia, em 325 d.c, torna-se permitido o culto livre à religião católica. A Igreja, começa, assim, a ter sua estrutura, adaptando-se à do Império, “aproveitando o quadro administrativo para sua organização, mantendo bispos nas cidades e fazendo coincidir a metrópole eclesiástica com a província” (NUNES, 2005, p. 118). [3]

Mesmo com a queda do Império Romano, a Igreja Católica permanece forte e em ascensão, sendo o mundo feudal caracterizado essencialmente pelo predomínio e controle eclesiástico, que irão influenciar a dinâmica da sociedade, as tradições e os valores culturais e as formas de exercício do poder político (WOLKMER, 2005, p. 15).

Nessa época surge Santo Agostinho (354-430), um dos primeiros teóricos que trata da conexão entre os reinos da política e da religião. Elabora uma doutrina do conhecimento pela iluminação divina, de matriz ainda platônica [4], mas totalmente cristã. Basta lembrar que a justiça, para ele, era sinônimo de Deus (O que Deus quer); que não só a justiça, mas todo o direito residiam na lei eterna (VILLEY, 2005, p. 85); e as Sagradas Escrituras representavam a única fonte autêntica.

Sua principal obra, a Cidade de Deus, influencia toda a Idade Média e começa a ser superada apenas no século XIII, com a obra de Tomás de Aquino. É profundamente influenciado pelo idealismo de Platão. A visão do Bispo de Hipona parte da divisão entre corpo e alma. Os anjos, seres perfeitos, não possuem corpo, mas apenas alma. Contudo, em razão do pecado original de Adão e Eva, o corpo tornou-se a prisão da alma e o objetivo principal da vida moral é nos libertar deste pecado (LOPES, 2008, p. 4). [5]

Teríamos, assim, duas cidades, a terrena e a divida. Ambas coexistem, porém com funções distintas. A cidade que temos diante de nós é a terrena, idealizada no Império Romano, cujos destinos são “frágeis, provisórios, seus bens enganosos, sua justiça falsa, não merecendo apego de nosso coração” (VILLEY, 2005, p. 82). Nossa pátria é a cidade de Deus, que é um mito, mas que se encarna historicamente na Igreja Cristã. Apesar de Agostinho entender que a origem das comunidades políticas está no pecado original, ele também não condena sua existência. Afinal, Deus assim determinou. MICHEL VILLEY sintetiza muito bem essa ideia do teólogo:

Enquanto dure a história, enquanto realizemos nossa ‘peregrinação terrestre’ e enquanto o joio não tiver sido separado da boa semente, é da essência das duas cidades elas coexistirem, estarem mescladas, imbricadas. E a própria cidade terrena tem, na história, sua razão de ser; é obra, como todas as coisas, da providência divina e cumpre certa função em nosso caminho para a salvação. Por isso o Estado, as leis, o direito de nossas cidades humanas históricas – cujo valor é questionado e que é preciso confrontar com os da cidade celeste – serão tratados por santo Agostinho do ponto de vista de nossa salvação. (2005, p. 83)

7031

Assim, a cidade terrena e suas instituições (entre elas o Direito) eram vistas apenas como algo útil em razão de um fim específico, que é a salvação. Segundo CASSIRER:

Mesmo no Estado ideal, descrito por Platão, S. Agostinho não conseguia encontrar um pólo fixo, um ponto sobre o que pousar. O Estado, mesmo o Estado mais perfeito, não pode satisfazer os nossos desejos. O único repouso verdadeiro para o homem é o repouso em Deus. (2003, p. 104)

A imagem de um homem decaído, que está na cidade terrena (imperfeita) apenas como passagem para conseguir a salvação na cidade de Deus (perfeição) é uma síntese que domina a Alta Idade Média e que irá influenciar as doutrinas que irão, mais tarde, buscar justificar a plenitude do poder papal. [6]

Afinal, a Igreja, como detentora do conhecimento e a única autorizada a interpretar as Sagradas Escrituras, era quem poderia encaminhar e ajudar o homem a alcançar a revelação divina. E no campo político, o que existia era um poder pulverizado em múltiplas esferas de governo.

Assim, se até o Século IV o Imperador Romano era, ao mesmo tempo, a autoridade secular e espiritual, a partir do Século V começa a ocorrer uma separação desses poderes, tendo merecido destaque o Papa Gelásio I, que viveu no final do século V e que apresentou, segundo DUMONT, “uma fantástica teoria da relação entre a Igreja e o imperador, o qual foi em seguida acolhida na tradição e abundantemente utilizada. (1985, p. 54) [7]. Em uma carta dirigida ao imperador Anastácio, o pontífice disse o seguinte:

Há principalmente duas coisas, augusto imperador, pelas quais este mundo é governado: a autoridade sagrada dos pontífices e o poder real. Destas duas coisas, os sacerdotes são portadores de uma responsabilidade tanto maior como porquanto devem prestar contas ao Senhor até dos atos dos reis, submetendo-os ao julgamento divino … Deveis curvar uma cabeça submissa perante os ministros das coisas divinas e … é deles que deveis receber os meios de vossa salvação.”

Nas coisas respeitantes à disciplina pública, os chefes religiosos entendem que o poder imperial vos foi conferido do alto e eles próprios obedecem às vossas leis, temendo parecer que são contrários à vossa vontade nos negócios do mundo. (apud DUMONT, 1985, p. 55)

7032

Nota-se, assim, que há uma distinção entre a autoridade do papa (autoridade moral e religiosa) e o poder do imperador (o poder material, o império). Para DUMONT, o sacerdote estava submetido ao rei apenas nos assuntos terrenos, que dizem respeito à ordem pública. Mas o primeiro era superior ao imperador, pois somente no nível inferior (secular) é que o sacerdote estava submetido ao poder imperial.

Dessa forma, conclui o autor francês que não se trata de simples correlação nem de submissão dos reis aos sacerdotes, “mas de uma complementaridade hierárquica” (DUMONT, 1985, p. 55).

A Alta Idade Média é marcada pela fragmentação do poder político civil, período em que os reinos buscaram alianças com a Igreja que, assim, se fortaleceu e passou a deter muitos direitos e privilégios (CREVELD, 2004, p. 85).

Do século XI ao XIII são travadas constantes disputas entre a cúpula da Igreja e os príncipes dos Reinos ou com o Pontificado e o Imperador do Sacro Império Romano Germânico. Com Gregório VII (final do século XI), aprofunda-se a defesa da superioridade do poder papal sobre o secular. Isso porque, para essa doutrina, em razão da origem e instituição divina do poder espiritual, este deveria ser considerado superior, podendo o Papa influenciar e interferir no poder do Príncipe sobre os súditos (NUNES, 2005, p. 121; CREVELD, 2004, p. 85). O poder da Igreja foi aos poucos só aumentando (cesaropapismo), chegando ao ápice com o Papa Bonifácio VIII (1294-1303) que, em 1302, publicou a bula Unam sanctum Ecclesiam, documento que será visto com mais detalhe no tópico a seguir.

DUMONT consigna acertadamente que, na essência, verifica-se no final da Alta Idade Média e no começo da Baixa Idade Média um movimento dos Papas em arrogarem para si uma função política (1985, p. 59). Sobre esse período, o antropólogo francês assim conclui:

Do nosso ponto de vista, o que importa aqui, em primeiro lugar, é a mudança ideológica que assim se vê começar e que será plenamente desenvolvida mais tarde, de um modo totalmente independente do futuro reservado, de fato, à pretensão papal. Com a reivindicação de um direito inerente ao poder político, introduz-se uma mudança na relação entre o divino e o terreno: o divino pretende agora reinar sobre o mundo por intermédio da Igreja, e a Igreja torna-se mundana num sentido em que não o era até então. Os Papas, por uma opção histórica, anularam a formulação lógica por Gelásio da relação entre a função religiosa e a função política e escolheram uma outra. A diarquia hierárquica de Gelásio é substituída por uma monarquia de um tipo sem precedentes, uma monarquia espiritual. Os dois domínios ou funções são reunidos e sua distinção é relegada do nível fundamental para um nível secundário, como se divergissem não em natureza mas tão-somente em grau. É a distinção entre espiritual e temporal, tal como a conhecemos desde então, e o campo é unificado, de modo que podemos falar em “poderes” espiritual e temporal. É característico que o espiritual seja concebido como superior ao temporal, mesmo em nível temporal, como se fosse um grau superior do temporal, ou, por assim dizer, temporal elevado a uma potência superior. É segundo

7033

esse eixo que, mais tarde, o Papa poderá ser concebido como a autoridade que “delega” o poder temporal ao imperador como seu representante. (DUMONT, 1985, p. 59/60)

Será nesse contexto que irão surgir doutrinas contrárias à pretensão papal, teorias estas que, apoiadas e financiadas pelos príncipes e imperadores, irão fundamentar o pensamento político moderno.

Entretanto, faz-se necessário antes tecermos algumas considerações sobre as ideias de Tomás de Aquino, que irão trazer inovações importantes e irão influenciar também esses teóricos.

3. Síntese do pensamento de Santo Tomás de Aquino

Como bem demonstra CASSIRER, “quanto mais os pensadores medievais conheciam as obras dos pensadores antigos, tanto menos podiam persistir na sua atitude meramente negativa em relação à ordem social” (2003, p. 138). Certamente existia um elemento mítico não podia ser superado, qual seja, o pecado original. Duvidar do mesmo era inconcebível. Por outro lado, a natureza decaída do homem desafiava o pensamento da Baixa Idade Média, pois desprezava completamente a racionalidade humana.

Santo Tomás de Aquino foi um dos mais influentes escritores da Baixa Idade Média. Ele procurou harmonizar razão e fé, tendo sido fortemente influenciado pela obra de Aristóteles. Todavia, ele não se desligou completamente da visão agostiniana. Como bem sintetiza LIMA, “Tomás assimila as virtudes aristotélicas, mas pela visão advinda dos estóicos, por meio de Agostinho” (2005, p. 249).

A razão não seria inteiramente corrupta. Conservava um direito e uma esfera própria. Passa-se a valorar o mundo empírico e o conhecimento filosófico, não apenas o teológico. A razão seria o meio pela qual se chegaria à revelação. [8]

O Doutor Angélico busca também superar a ideia de divisão entre corpo e alma e comprovar que o homem é uma unidade orgânica e atua como tal. Racionalidade e percepção estão inseridas na atividade de conhecimento. A concepção organista é frequente nos textos do Aquinate, o que remete à influência de Aristóteles.

No que tange à concepção política, Santo Tomás não aceita a corrente doutrinária de que o Estado é uma instituição divina autorizada por Deus servindo como um simples remédio para o pecado humano (CASSIRER, 2003, p. 143).

Para ele, o Estado nasce do instinto social do homem. Revive, aqui, a ideia aristoteliana de que o homem é um animal social. Não é um produto apenas natural, mas também racional, e que depende de uma atividade consciente e livre. Apesar do pecado

7034

original, a natureza humana manteve sua integridade constitutiva que impulsiona o homem viver e se desenvolver em sociedade.

Logicamente, como frisa CASSIRER, Deus ainda é a causa remota do Estado. Mas será o homem, por seu próprio esforço, construir a ordem e a justiça. Não há, mais, assim, um abismo entre o reino temporal e celestial, tal como concebia Santo Agostinho, mas uma fusão em uma unidade perfeita. ERNTS CASSIRER bem sintetiza a ideia de Tomás de Aquino:

S. Tomás de Aquino está convencido de que o mais alto bem, o summum bonum dos antigos filósofos, não podia ser alcançado unicamente pela razão. A visio beatifica, a visão mística de Deus, continua sendo o objetivo absoluto – e esse objetivo depende sempre de um ato de graça divina. Mas o próprio homem deve começar a obra e a preparação para esse evento. O direito divino não revoga o direito humano originado na razão. A graça não destrói a natureza: aperfeiçoa-a (Gratia naturam non tollit, sed perficit). A despeito da queda, portanto, o homem não perdeu a faculdade de usar as suas forças devidamente, preparando-se assim para a sua própria salvação. Ele não desempenha um papel passivo no grande drama religioso; a sua contribuição ativa é reclamada, e, na verdade, indispensável. Nessa concepção, a vida política do homem ganhou nova dignidade. O Estado terreno e a Cidade de Deus já não são pólos opostos; relacionam-se e completam-se um ao outro. (2003, p. 144)

É sempre importante lembrar que, apesar de o Estado ser uma sociedade perfeita, uma vez que é a reunião de muitos para fazer algo em comum, Deus é o fim último do homem. Logo, enquanto para Aristóteles o homem realiza-se completamente na vida política terrena, o Aquinate defende um fim eterno ao homem (a bem-aventurança eterna), que precisa ultrapassar os limites da ordem temporal (COSTA, SANTOS, 2007, p. 4). [9]

Tomás mantém, ainda, uma moral teológica da sociedade, pois, para se alcançar a paz e a justiça, é necessário o convívio de amizade entre o homem e o seu criador, sendo que o primeiro deverá ser portador das virtudes teológicas (fé, esperança e caridade) (LIMA, 2005, p. 250).

Ainda assim, a concepção de que o Estado é fruto da própria natureza humana irá influenciar muito os doutrinadores que irão contestar a plenitude do poder papal. O próprio Santo Tomás já enunciava que há uma separação entre ambos e que não merecia vingar a tese da hierocracia.

Além disso, enuncia também o entendimento de que o poder espiritual não constitui o temporal e que a titularidade do poder está em Cristo, e não no papa. Este seria apenas um ministro. JOÃO JIVALDO LIMA bem sintetiza esse entendimento:

7035

O Aquinate é partidário da coexistência de “duas cidades” — a temporal e a espiritual — e de seus cidadãos. Os fins precípuos de cada uma são distintos, sendo a finalidade da cidade temporal o bem-viver e o fim da cidade espiritual a salvação eterna, a fruição de Deus. Assim, seus dirigentes possuem missões específicas, consoante a natureza de cada uma das “cidades” ou comunidades, ao potentado terreno cabe levar a bom termo a finalidade da Comunidade Política, ao potentado espiritual cabe levar a bom termo a possibilidade de todos alcançarem a Beatitude Eterna. A questão específica que se coloca neste momento é que o potentado terreno é aquele legitimamente colocado no poder, enquanto o potentado espiritual não é o papa, mas Cristo. Portanto, na concepção da relação entre a esfera político-temporal e a esfera da administração religiosa, Tomás afirma que Jesus Cristo é como que uma contraparte espiritual do rei terreno, abalando — indireta, mas efetivamente — a tese da autoridade política do papa. Como, por analogia, o potentado é o soberano, a cabeça da Comunidade Política, assim Cristo é o soberano, a cabeça da Igreja. O lugar, pois, determinado ao papa — por conseqüência — não é o de fonte do poder, mas é o de ministro, não de soberano, e, por conseguinte, nunca um termo de comparação com o rei. O verdadeiro rei espiritual é Jesus Cristo, que efetivamente leva os homens à vida sobrenatural oferecendo os meios proporcionais que lhes permitem sua consecução, como ao rei cabe fazê-lo na ordem natural, no tocante à obtenção do Bem Comum Político. (2005, p. 252/253)

Contudo, apesar da autonomia entre ambos e de estarem submetidos ao Poder de Deus, “o poder espiritual precede em dignidade ao temporal, pelo fato de aquele se relacionar como Fim Último Verdadeiro do homem que é a vida sobrenatural, enquanto o poder secular vincula-se ao fim imediato e subalterno.” (LIMA, 2005, p. 253).

Apesar disso tudo, o Estado irá se tornar mais secular em sua esfera de ação e a Igreja mais espiritual e menos terrena e, a partir de então, o caminho da separação entre as duas instituições tenderá a crescer cada vez mais.

4. João de Paris e o embate com a doutrina de Bonifácio VIII e Egídio Romano.

João de Paris, também chamado de João Quidort, é um autor não muito conhecido, mas de grande importância. [10] Este dominicano buscou, antes de Marcílio da Pádua e Guilherme de Ockham, justamente promover a distinção entre o poder imperial e o espiritual. Sua principal obra – De Regia Potestate et Papali (Sobre o poder régio e papal) foi escrita em 1302 – podendo ter sido estendida até meados de 1303 - [11] e, historicamente, estava inserida no amplo debate entre o Papa Bonifácio VIII e Filipe, o Belo, Rei da França. [12]

7036

Entre os autores que o francês critica, merece destaque Egídio Romano. Este era ex-aluno de São Tomás de Aquino e pertencia à ordem dos Agostinianos. Apesar de transitar bem entre o Papa e o Rei (DE BONI, 2003, p. 140), ele acabou ficando do lado de Bonifácio VIII e escreveu, entre 1301 e 1302, a obra De ecclesiastica potestate.

Tal obra irá buscar definir a “relação entre o poder eclesiástico e o civil na constituição de novos estados soberanos”, pois “é necessário redefinir competências entre as autoridades religiosas supranacionais e as autoridades civis nacionais que nesse momento se afirmam” (DE BONI, 2003, p. 142).

Logo após sua publicação, Bonifácio VIII edita a bula Unam sanctam, cujo teor, em linhas gerais, concorda com a obra de Egídio (DE BONI, 2003, p. 143), e que, amparado nas Sagradas Escrituras, defende a plenitude do poder papal [13]:

Una, santa, católica e apostólica: esta é a Igreja que devemos crer e professar já que é isso o que a ensina a fé. Nesta Igreja cremos com firmeza e com simplicidade testemunhamos. Fora dela não há salvação, nem remissão dos pecados, como declara o esposo no Cântico: "Uma só é minha pomba sem defeito. Uma só a preferida pela mãe que a gerou" (Ct 6,9). Ela representa o único corpo místico, cuja cabeça é Cristo e Deus é a cabeça de Cristo. Nela existe "um só Senhor, uma só fé e um só batismo" (Ef 4,5). De fato, apenas uma foi a arca de Noé na época do dilúvio; ela foi a figura antecipada da única Igreja; encerrada com "um côvado" (Gn 6,16), teve um único piloto e um único chefe: Noé. Como lemos, tudo o que existia fora dela, sobre a terra, foi destruído.

A esta única Igreja, nós a veneramos, como diz o Senhor pelo profeta: "Salva minha vida da espada, meu único ser, da pata do cão" (Sl 21,21). Ao mesmo tempo que Ele pediu pela alma - ou seja, pela cabeça - também pediu pelo corpo, porque chamou o seu corpo como único, isto é, a Igreja, por causa da unidade da Igreja no seu esposo, na fé, nos sacramentos e na caridade. Ela é a veste sem costura (Jo 19,23) do Salvador, que não foi dividida, mas tirada à sorte. Por isso, esta Igreja, una e única, tem um só corpo e uma só cabeça, e não duas como um monstro: é Cristo e Pedro, vigário de Cristo, e o sucessor de Pedro, conforme o que disse o Senhor ao próprio Pedro: "Apascenta as minhas ovelhas" (Jo 21,17). Disse "minhas" em geral e não "esta" ou "aquela" em particular, de forma que se subentende que todas lhe foram confiadas.

Assim, se os gregos ou outros dizem que não foram confiados a Pedro e aos seus sucessores, é necessário que reconheçam que não fazem parte das ovelhas de Cristo pois o Senhor disse no evangelho de São João: "Há um só rebanho e um só Pastor" (Jo 10,16).

As palavras do Evangelho nos ensinam: esta potência comporta duas espadas, todas as duas estão em poder da Igreja: a espada espiritual e a espada temporal. Mas esta última deve ser usada para a Igreja enquanto que a primeira deve ser usada pela Igreja. O espiritual deve ser manuseado pela mão do padre; o temporal, pela mão dos reis e cavaleiros, com o consenso e segundo a vontade do padre. Uma espada deve estar subordinada à outra espada; a autoridade temporal deve ser submissa à autoridade espiritual. O poder espiritual deve superar em dignidade e nobreza toda espécie de poder terrestre. Devemos reconhecer isso quando mais nitidamente percebemos que as coisas

7037

espirituais sobrepujam as temporais. A verdade o atesta: o poder espiritual pode estabelecer o poder terrestre e julgá-lo se este não for bom. Ora, se o poder terrestre se desvia, será julgado pelo poder espiritual. Se o poder espiritual inferior se desvia, será julgado pelo poder superior. Mas, se o poder superior se desvia, somente Deus poderá julgá-lo e não o homem. Assim testemunha o apóstolo: "O homem espiritual julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado" (1Cor 2,15).

Esta autoridade, ainda que tenha sido dada a um homem e por ele seja exercida, não é humana, mas de Deus. Foi dada a Pedro pela boca de Deus e fundada para ele e seus sucessores Naquele que ele, a rocha, confessou, quando o Senhor disse a Pedro: "Tudo o que ligares..." (Mt 16,19). Assim, quem resiste a este poder determinado por Deus "resiste à ordem de Deus" (Rm 13,2), a menos que não esteja imaginando dois princípios, como fez Manes, opinião que julgamos falsa e herética, já que, conforme Moisés, não é "nos princípios", mas "no princípio Deus criou o céu e a terra" (Gn 1,1).

Por isso, declaramos, dizemos, definimos e pronunciamos que é a absolutamente necessário à salvação de toda criatura humana estar sujeita ao romano pontífice.

Dada no Vaticano, no oitavo ano de nosso pontificado [18 de novembro de 1302].

Ao dizer que a “espada temporal” deve ser utilizada para a Igreja e que a “espada espiritual” deve ser utilizada pela Igreja, enfatiza o Pontífice que o Poder secular está submetido ao Poder da Igreja.

Egídio defende que o Estado, apesar de ser uma exigência da natureza, é voltado para o fim superior da natureza: a salvação do homem. Ele seria apenas um momento intermediário, transitório, que o homem passaria apenas para verem satisfeitas suas necessidades terrenas. Sem a Igreja, o Estado não possuiria qualquer fim, sendo mero meio, instrumento para a salvação. Alia a tudo isso a afirmação de que é o poder espiritual que dá existência ao temporal (DE BONI, 2003, p. 150).

João de Paris é contrário a tal posição. Teoricamente se fundamenta em Aristóteles e nos autores estóicos para explicar o governo civil, e, como não podia deixar de ser, busca elementos na Bíblia para compreender o poder eclesiástico. Contudo, o Direito também é uma fonte usada em sua obra. DE BONI enfatiza que o autor conhecia o pensamento jurídico de sua época e que foi o primeiro teólogo que incorporou algumas teorias jurídicas, há mais tempo existentes, sobre a soberania do Concílio no governo da Igreja (2003, p. 171).

O autor francês faz três observações: a primeira é sobre a origem e intuito do poder civil e eclesiástico; a segunda, exclui a ideia de governo universal, pois o poder civil só aparece, quando há poder de coerção adaptada a cada povo em relação a seus usos e costumes. E por fim, ele insere algumas concepções aristotélicas-tomistas à Igreja, desenvolvendo um poder organizado de bases fortes, que terá como objetivo o bem comum, em que todos possam compartilhar do poder e com isso democratizar a instituição eclesiástica. É visível, portanto, a sua intenção em separar poder real do poder eclesiástico, antecedendo bastante os tempos modernos.

7038

João de Paris resgata a influência de Aristóteles, renovada por Santo Tomás de Aquino, que o homem é um animal político. Porém, o homem não vive sozinho; é necessário que o mesmo viva em cidades, reinos, forme uma comunidade, em que as pessoas busquem seus interesses. Tal comunidade ele chamará de multidão perfeita. Tal construção exigia esforço e argumentação. Os que a aceitavam, ligavam-se por leis gerais e vinculadas à vida comum. Essas leis eram humanas e não decorrentes de um direito natural, e, segundo DE BONI, era, na terminologia medieval, amparada no direito das gentes. (2003, p. 172) [14]. Assim expressa João de Paris:

E como os homens, pela comunidade de palavras, não conseguiam passar da vida animal para a vida comum correspondente à sua natureza (…), então, alguns homens, que faziam maior uso da razão e sofriam sob a falta de rumo de seus semelhantes, empreenderam a obra de, através de argumentos persuasivos, convencer os demais a partir para uma vida comum ordenada, sob a direção de um único chefe, conforme narra Cícero. Os que concordaram, foram ligados por certas leis relativas à vida comum, que aqui são chamadas direito das gentes. (apud DE BONI, 2003, p. 172).

Segundo DE BONI, para o autor parisiense, apesar de a política não ser o fim último do homem, ainda assim é possível que o agir social possua uma finalidade própria que não seja de figurar como um meio para a salvação. Em outras palavras, a vida política não existe em função de um outro fim e é possível viver com virtude na cidade (2003, p. 174):

Viver segundo a virtude, que é a finalidade da polis conforme Aristóteles, não implica, de modo algum, o atrelamento do poder político ao religioso, como se coubesse a alguma autoridade fora e acima do Estado – e da constituição racional deste – indicar o que é a virtude. O Estado é uma construção da natureza racional do homem e, como tal, pode ser pensado e realizado com o empenho único e exclusivo da razão. Quidort observa com precisão a respeito que “as virtudes morais podem ser perfeitamente adquiridas sem as teologias, e não são aperfeiçoadas por estas a não ser de modo acidental (…). Portanto, também sem a direção de Cristo pode haver a justiça verdadeira e perfeita que se requer para o reino, pois o reino ordena-se a viver segundo a virtude moral adquirida.” (c. XVIII ad 27). (DE BONI, 2003, p. 174)

Assim, o autor francês entende que o Estado possui um fim em si mesmo (influência tomista), sendo que era possível uma autoridade civil, cuja função era ampla, ocupando-se com as coisas terrenas, inclusive de julgá-las, despreocupada com os preceitos religiosos e que não se fundamentava na instituição divina. Como bem expressa PIEREZAN:

Segundo Joahnnes Quidort, qualquer reino poderia alcançar a virtude máxima e a finalidade natural a que foi destinado: proporcionar aos súditos o viver segundo a

7039

virtude e a moral que lhe são próprias. Tal máxima considera essas virtudes independentes do beneplácito da Igreja e dos poderes sobrenaturais. …

Nesse sentido, a legitimidade do reino está garantida por um princípio de origem, já que advém da natureza e da razão humanas. Essa característica do argumento propõe que o reino, dessa forma, dependa única e exclusivamente dos indivíduos, em face de uma moral natural. … O que até então se concebia como hierocracia, não entra na lógica do pensamento político de Quidort, pois o reino necessita tão somente da virtude moral e natural do sábio rei para distinguir o que deve ser mantido e rejeitado. (2008, p. 192)

Tal postura abre caminho à laicização dos séculos seguintes. Contudo, o homem não só se ordena para o bem que pode ser adquirido normalmente, mas também se guia para um fim transcendental, sobrenatural, que é a vida eterna. Porém, o responsável por tal fim é Jesus Cristo, sendo que, da mesma forma que Tomás de Aquino [15] o Papa era mero ministro, nunca um rei (DE BONI, 2003, p. 181/182).

Logo, João de Paris separa totalmente as esferas de poder, como ele próprio diz no capítulo V do De Regia Potestate et Papali:

“Assim, pois, o poder secular é superior ao espiritual em algumas coisas, isto é, nas coisas temporais, e neste assunto não se encontra sujeito em nada ao espiritual, pois não procede dele, mas ambos provêm imediatamente de um só poder supremo, que é divino, e por isto o poder inferior não está sujeito ao superior em todas as coisas, mas apenas naquelas em que o poder supremo o colocou sob o superior.” (apud DE BONI, 2003, p. 187).

Contudo, DE BONI alerta para um fato importante, que o diferencia de seu mestre: João de Paris não equaciona os dois poderes dentro de uma mesma cristandade, mas busca “situá-los em duas instituições diferentes, independentes e correlatas”. O Estado agora se torna mundano, apesar de Deus ser o princípio remoto do poder real (2003, p. 188; LIMA, 2006, p. 143). E esse poder político não vem pela via descendente, ou seja, de Deus diretamente aos detentores do poder e destes aos seus ministros e delegatários. Ao contrário, a visão de João de Paris é ascendente, ou seja, de que o poder vem de Deus para o povo e deste ao monarca ou à família da qual este sairá (LIMA, 2006, p. 144).

Tal posição configura um prenúncio da participação popular. Os membros da comunidade seriam responsáveis pela eleição do seu governante, cuja responsabilidade será, sempre, a procura, ou a busca pelo bem comum. Este bem, para João de Paris, não se equivalia ao bem particular do dirigente eleito, mas sim um bem ético, adequado à multidão perfeita, que atrairá e orientará a atividade dos membros da comunidade política e evitará que esta se dissolva por interesses egoísticos particulares. [16]

7040

Uma questão também importante na obra de João de Paris e que o difere de seu mestre é a preocupação com o homem como indivíduo inserido na sociedade. Esse homem é o homem econômico, que irá organizar o Estado (Reino). Neste haverá uma divergência de interesses, que só se mantém graças à força da autoridade. A perspectiva individual, que irá surgir mais tarde com todo fôlego, já se faz presente na obra do dominicano. [17]

Esse pretenso individualismo influencia a concepção de sociedade para João de Paris. Esta não é uma unidade superior e diferente do conjunto dos indivíduos. Ela é a soma de seus componentes, que delegaram a uma autoridade a prerrogativa de lhes governar.

Outra perspectiva da obra de João de Paris é o fato de que a sociedade é formada por um pacto. Tal pacto possui vínculo com ideias estóicas, sendo diverso do que será tratado na modernidade, inclusive por Rousseau. [18] Mas Quidort já indicava que a aquisição de bens e a proteção da propriedade constituem o motivo pelo qual “foi instituído pelo povo um príncipe, que como juiz preside nesses casos, discernindo entre o justo e o injusto, punindo a apropriação indébita’ (c. VIII)” (DE BONI, 2003, p. 173).

Em suma, a obra de João de Paris não ousou, em nenhum momento, suprimir o poder eclesiástico, mas procurou encontrar um equilíbrio entre os dois poderes em conflito, aparando os erros das demais teorias: o erro daqueles que exaltavam em demasia a autoridade universal e hierocrática e o erro dos que propunham como fim único e verdadeiro o poder do rei (PIEREZAN, 2008, p. 8).

Ela surgiu justamente no momento de maior combate à hierocracia, na qual o dominicano adaptou as teorias políticas à nova realidade ao dizer que o poder régio é legítimo e apto, inclusive, para solicitar a deposição do Papa.

5. Marsílio de Pádua e o Defensor da Paz

Marcílio Mainardini, ou Marcílio de Pádua (em razão da cidade italiana), foi um filósofo medieval cujas ideias foram muito importantes para a construção dos poderes régios. Certamente tomou conhecimento da obra de João de Paris, pois, da mesma forma que o antecessor, ele foi reitor da Universidade de Paris (1312-1313). Sua obra mais importante foi o Defensor da Paz, feita em 1324. [19] Posteriormente, por volta de 1340, escreveu o Defensor Minor.

O contexto histórico da época ainda era o embate sobre quem teria a plenitude do poder (plenitudo potestatis). Os atores, contudo, eram distintos. Agora, o confronto era entre o Papa João XXII e Luiz (ou Ludovico) da Baviera, ou seja, entre o Papado e o Santo Império Romano Germânico.

7041

Marcílio, como os demais de sua época, não é um pensador moderno, pois ainda está vinculado às tradições cristãs. Porém, é um crítico da Igreja, tendo se refugiado na Corte do Imperador Luis da Baviera.

Apesar de não ser original, a obra de Marcílio representa um protesto contra a pretensão do Papa de obter a plenitude do poder. Para tanto, buscou forte suporte em Aristóteles e Cícero. [20]

Contudo, a inovação trazida por Marcílio começa quando o mesmo alega que a paz, entendida aqui como a ausência de conflito no interior da sociedade civil [21], é constantemente ameaçada pela pretensão papal à plenitude do poder:

"Daí ser necessário desmascarar o sofisma que existe por detrás daquela causa já mencionada [a plenitude do poder pontifícia], única em sua espécie, geradora das disputas que ameaçam todas as comunidades e reinos com prejuízos incomensuráveis.Qualquer pessoa tem a obrigação de saber que a utilidade e o bem comum são necessidades indispensáveis a todos, e por isso, a sociedade em geral deve ter um cuidado e solicitude diligentes para consegui-los. Assim sendo, se este sofisma não for desmascarado, essa peste com seus efeitos perniciosos não serão evitados e tampouco extirpados de todos os reinos ou sociedades civis." DP, I, I, 4, p.70 e 71 (TÔRRES, 2003, p. 09)

Apesar da paz não ser o fim último da atividade política, ela é de grande importância para a construção de uma vida fundada no “bem viver” [22], que ocorrerá na cidade, na dimensão terrestre. Marcílio sustenta que o bom governo e a “suficiência da vida” são os “frutos da paz e da tranquilidade.” (apud SKINNER, 1996, p. 77). E TÔRRES, com amparo em MAIRET, afirma que a finalidade única da civitas “é prover necessidades materiais e trocar mutuamente os bens capazes de satisfazê-las.” (2003, p. 16).

Marcílio entende que há uma inclinação da natureza do homem e o Estado é naturalmente necessário, sendo que, a partir da união do homem e da mulher, inicialmente na formação do lar, chegaremos à constituição de uma sociedade politicamente organizada e vivendo em uma cidade. Nela, restará configurará a “vida perfeita”. Ou seja, há a evolução de uma estrutura mais simples para uma mais complexa e perfeita. [23] Como bem assinala VILANI, essa comunidade civil representa uma totalidade orgânica, composta de dimensões físicas e éticas, que são necessárias para uma vida organizada e plena de virtude (2000, p. 47;48).

Essa vida em sociedade, portanto, não possui conteúdo teológico. Contudo, como não poderia ser diferente em razão do contexto histórico no qual estava inserido, o autor também não desconhece que Deus é a causa remota de todo poder. Mas, como adverte VILANI, Deus não interfere na esfera temporal, “deixando a razão humana decidir sobre como o organizar a vida coletiva” (2000, p. 48). Salvação eterna é assunto espiritual, a ser tratado pela Igreja. Essa orientação não era nova. Mas para o paduano, a perfeição era alcançada em uma cidade.

Na cidade, os indivíduos procuram exercer alguma atividade que lhes proporciona viver bem. Mas essas funções não são exercidas isoladamente. Elas se

7042

integram num único corpo, o político (BARBALHO, 2008, p. 72). A sociedade é composta por seis partes que estão organicamente unidas ao todo da cidade. São elas:

“… a agricultura, destinada a “produzir e manter as ações nutritivas”; o artesanato, responsável pela adaptação do homem ao mundo e a criação de melhores condições de existência; a parte judicial ou conciliativa, encarregada de “regular os excessos dos atos produzidos pela inteligência e vontade”; o exército, responsável pela segurança externa e a ordem interna; a financista, encarregada de administração das riquezas, a provisão das necessidades futuras e o gerenciamento das atividades internas; e, por último, o clero: embora sua existência não corresponda a nenhuma necessidade vital neste mundo, tem uma utilidade moral na medida em que infunde a idéia de que Deus “atribuirá um prêmio aos bons e um castigo aos maus”. (AMES, 2003, p. 3).

Marsílio mantém o clero inserido na sua idéia de Estado. Afinal, os cidadãos são fiéis. Mesmo que todos os fins perseguidos pelo Estado sejam mundanos, não se pode deixar de se preocupar com os seus membros. O agir reto, a “saúde” das suas almas, coincide com o agir adequado neste mundo.

A paz e tranquilidade, contudo, são mantidas pela observância das leis humanas, que irá prever o que justo ou injusto, útil ou não. Descumprida, deve-se exigir a aplicação do poder coercitivo. Marcílio não desconhece nem descarta a lei divina, contudo, entende que a mesma não trata de assuntos humanos e temporais, mas buscam apenas orientar a vida das pessoas para garantir a vida eterna. Somente a lei humana pode regrar a vida na esfera secular, incluindo a previsão de sanções:

No entanto, a lei considerada propriamente é um preceito coercitivo permitindo ou proibindo fazer determinadas ações e com a capacidade de infligir um castigo aos seus transgressores. A Lei Divina é um preceito coercitivo estabelecido imediatamente por Deus, sem nenhuma participação humana, com o propósito de levar as criaturas humanas a alcançar o fim último da vida futura e capaz de infligir um castigo aos seus transgressores apenas na outra vida, não nesta. Ao contrário, a lei humana é um preceito coercitivo, procedente de modo imediato da vontade ou decisão humana, com o propósito de se alcançar um objetivo neste mundo, cujos infratores serão castigados aqui na terra somente. (DM,XIII,3, p.:87) (apud TÔRRES, 2003, p. 21)

JOSÉ OLIVEIRA BARBALHO, em tese de doutorado sobre a obra de Marcílio, traz as seguintes considerações:

Posto que a comunidade política é uma sociedade humana legalmente organizada, o estudo da lei é indispensável à sua compreensão. As leis humanas são fundamentais na estruturação da civitas. Elas tratam do justo ou do útil, e do injusto ou do nocivo à comunidade dos cidadãos. A partir dela, efetua-se o julgamento dos atos humanos. Se o cidadão age corretamente neste mundo, é porque ele não se opôs às leis da vida

7043

presente, da civitas. O bom cidadão, igualmente o governante, “(...) não pode agir arbitrariamente e à margem das leis ao julgar ou fazer outras coisas”

As obrigações e costumes religiosos que ele assume para conquistar a vida depois da morte não definem o que é justo para comunidade perfeita. Ele pode pensar equivocadamente que o indivíduo correto é aquele que segue os mandamentos de Deus, mas a verdade é que no interior do corpo político o justo é aquele que, distanciando-se de seus sentimentos egoístas, segue as determinações da comunidade política referente ao viver bem neste mundo. Essas determinações ordenam ou proíbem fazer certas coisas. Se alguém não as obedece é punido. Constituem um tipo de regra que “(...) deve estar isenta de qualquer motivo perverso, pois não é elaborada para favorecer a um amigo ou prejudicar a um inimigo, mas para ter uma aplicação universal, quer dizer, a todo cidadão que age bem ou mal”. (2008, p. 76)

Marcílio, inclusive, legitima a tributação dos clérigos, pois “os tributos são necessários para garantir muitos benefícios à comunidade” (BARBALHO, 2008, p. 81).

Como bem reconhece WOLKMER, a perspectiva adotada por pelo patavino o revela como um “precursor da moderna concepção de secularização e positivação do Direito, fundado no poder político e não na vontade de uma pessoa” (2005, p. 28). Nota-se, portanto, na obra de Marcílio, que o poder político não possui qualquer vinculação ou influência eclesiástica. Era sua intenção excluir realmente qualquer pretensão papal de atuação na ordem política.

Mas quem terá legitimidade para criar esta lei humana? Para Marcílio, toda autoridade política está no povo, sendo o governante mero depositário:

O supremo legislador humano, desde a época de Cristo, e talvez mesmo há algum tempo antes, até hoje, é e deve ser o conjunto de todos os homens ou sua parte mais relevante em cada uma das regiões e províncias, os quais têm de estar subordinados aos preceitos coercitivos da lei (Defensor Minor, Cap. XII). (Apud VILANI, 2000, p. 49)

Logicamente, “povo”, no contexto, não possuía o sentido moderno e atual, mas representava o conjunto de cidadãos, cristãos ou não, leigos ou sacerdotes, excluindo-se as mulheres, os servos e escravos. Assim, o ordenamento do corpo social é resultante da ação conjunta do povo (universitas civium) ou de sua parte mais relevante (valentiors pars). A lei nasce, assim, do consenso e irá reger a comunidade. Segundo VILANI:

Para o pensador patavino é no povo que reside a garantia da paz civil e da comunidade perfeita. A cidade deve sua existência à dinâmica da natureza, mas quem dá vida a esse

7044

corpo natural é a vontade popular. Ela decide quem governa e quais são as leis que estabelecem as regras da conduta social. (2000, p. 50)

Entretanto, quem irá aplicar a lei será o governante eleito. É importante enfatizar que há não só uma nítida separação entre a função legislativa e a executiva, como uma superioridade da primeira sobre a segunda. Isso porque o governante, além de indicado, é limitado na sua atividade, cabendo apenas aplicar a lei. O príncipe de Marcílio não é um tirano ou déspota. Possui o mesmo um papel instrumental.

Marcílio também adverte que o povo apenas delega o poder; ele não transfere o direito ao exercício de sua soberania para o princípio ou regente. A autoridade última permanece nas mãos do povo, que irá controlar o governante, podendo destituí-lo se este não observar a lei e agir com excesso de poderes (SKINNER, 1996, p. 83 e 84).

Assim, a legitimidade do regente está no consenso, e seu poder é limitado pela lei criada pelo supremo legislador humano. Não será a eventual virtude que fará determinada pessoa ser um príncipe. Ele pode ter todas as características e predicados para ser um governante perfeito, mas deverá, para ter autoridade, ser eleito (AMES, 2003, p. 5).

Cumpre ainda dizer que Marcílio não desconsidera o sacerdócio, pois este é um ofício de grande utilidade que não pode desaparecer na vida dos cidadãos. Afinal, mesmo antes de Cristo, as outras religiões orientavam os seus sacerdotes, cidadãos de boa reputação, a buscarem a tranqüilidade. Contudo, é uma classe que compõe e está submetida ao Estado. Como frisa VILANI, “todos os assuntos que dizem respeito à vida social, inclusive os morais e religiosos, devem situar-se dentro da esfera de controle do Estado.” (2000, p. 53).

A própria Igreja perde sua força, pois o autor italiano nega autoridade ao papa – pois não havia hierarquia entre os apóstolos de Cristo - e a entende como uma comunidade de fiéis (universitas fidelium), fazendo um paralelo com comunidade de cidadãos (universitas civium).[24]

Marcílio acaba tendo uma concepção monolítica do poder. Ao estruturar suas ideias dentro de uma visão organicista aristotélica, finda por qualquer divisão ou diferença de jurisdição. Ele não admitia a interferência da Igreja nos assuntos temporais – até porque, segundo o autor, esta era uma das causas de intranquilidade – mas o Imperador seria a única autoridade, mandante de todas as leis e ministro de Deus.

VILANI conclui que Marsílio, apesar de propor novas ideias para os problemas de seu tempo, ainda está atrelado a algumas concepções medievais. Ele não nega a cristandade nem a plenitude do poder, que seria posta na pessoa do Imperador. A comunidade seria dirigida por “um príncipe cristão, com plenitude do poder, agindo por delegação do ‘legislador humano’. O governante era, ao mesmo tempo, mandatário do povo e ministro de Deus sobre a terra.” (VILANI, 2000, p. 54 e 55).

Sua obra não contempla uma sociedade não cristã, ou governada por um príncipe não cristão e nem uma sociedade pluralista e com liberdade civil, já inicialmente idealizada

7045

por seu contemporâneo, Guilherme de Ockham. Mas, de qualquer forma, ela é bastante relevante, pois, como bem sintetiza SIMONE GOYARD-FABRE “o reconhecimento de uma ordem sociopolítica independente da ordem eclesiástica abria, assim, caminho para a concepção do Estado moderno, cuja soberania logo será apresentada como ‘forma’ ou a ‘essência’” (2002, p. 9). [25]

6. Conclusão

Como restou visto no trabalho, o estudo do pensamento medieval possui grande importância e mostra como a Idade Moderna foi influenciada por ideias surgidas na Baixa Idade Média. Conceitos como lei, soberania popular, liberdade, propriedade, governo, foram tratados por teóricos que não eram desconhecidos para autores como Hobbes, Locke e Grotius (DE BONI, 2003, p. 12).

Esse grande movimento de mudança não partiu de revoltas ou revoluções, mas a partir de lentas percepções que alteraram as ações e as ideias do homem medieval. Este começou a defender um sentimento de comunidade política em torno de interesses comuns e mundanos, reconhecendo que sua existência na terra fazia sentido e que nela ele poderia alcançar a felicidade. Aos poucos, a perspectiva teológica deixa de guiar os passos do homem na terra, fazendo com que apareça o humanismo antropocêntrico, que, mais tarde, vingará no individualismo.

As ideias de João de Paris e Marcílio de Pádua foram de grande importância, na medida em que combateram a pretensão do papa à plenitude do poder. Na construção de suas teorias, resgatam algumas ideias clássicas, especialmente de Aristóteles e Cícero, e as incorporam ao contexto cristão, fomentando, assim, o surgimento do Estado Moderno - em especial a superação e influência da Igreja no Estado - permitindo que o mesmo tenha um governo eleito pelo povo, e não imposto por uma autoridade que se diz divina.

7. Bibliografia

AMES, José Luiz. Estado e Governo no pensamento de Marsílio de Pádua: raízes medievais de uma teoria moderna. in Revista Ética & Filosofia Política, Volume 6, Número 2, Novembro/2003. http://www.eticaefilosofia.ufjf.br/6_2_joseluiz.htm.

BARBALHO, José de Oliveira. O sacerdote e a cidade. Tese (Doutorado em Filosofia) 141. fl. 2008. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1640

7046

BONIFÁCIO VIII – Bula Unam Sanctam. Montfort Associação Cultural. http://www.pem.ifcs.ufrj.br/ConceitoImperio.pdf

GARCIA, Talita Cristina. A paz como finalidade do poder civil: o Defensor Pacis de Marcílio de Pádua (1324). Dissertação (Mestrado em História) 144 fl. 2008. Universidade de São Paulo, São Paulo. http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-07012009-163308

GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do Direito político moderno. Trad. Irene A. Paternot. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

KRITSCH, Raquel. Soberania: a construção de um conceito. São Paulo: Humanitas/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 2002.

LIMA, João Jivaldo. Da Política à Ética: O Itinerário de Santo Tomás de Aquino. 2005, Tese, 266 fl. (Doutorado em Filosofia). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. http://www.cipedya.com/web/FileDetails.aspx?IDFile=151080

LIMA, José Jivaldo. O poder temporal em João Quidort. Dissertatio n° 24. Universidade Federal de Pelotas, verão de 2006, p. 136. http://ich.ufpel.edu.br/depfil/filesdis/dissertatio24.pdf

LOPES, Dawisson Belém. Da cruz às espadas. A autoridade política no pensamento medieval ocidental. Revista Estudos Hum(e)anos. IUPERJ. Volume 0, número 0, Agosto de 2008. http://www.estudoshumeanos.com/publicacoes_estudos.html.

MARQUES, Mário Reis. História do Direito Português Medieval e Moderno. 2.ed. Coimbra: Almedina, 2002.

MIETHKE, Jürgen. João Quidort de Paris: De Regia Potestate et Papali. Ocasião e caráter de um escrito polêmico. in A Cidade dos Homens e a Cidade de Deus. Org. Ernildo Stein. Porto Alegre: EST Edições, 2007, p. 123/132.

7047

NUNES, Rosa Dionízio. Das relações da Igreja com o Estado. Coimbra: Almedina, 2005.

PAVANI, Sérgio Augusto Zampol. Estado e processo civilizatório. São Paulo: MP Editora, 2009.

PIEREZAN, Alexandre. De Regia Potestate et Papali. O equilíbrio de poderes segundo Johannes Quidort (1270?-1306). 2008. 233 fl. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro. http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Tese-2008_PIEREZAN_Alexandre-S.pdf.

SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Trad. Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta. 5ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

STREFLING, Sérgio Ricardo. A disputa entre o Papa Bonifácio VIII e o Rei Filipe IV no final do século XIII. Teocomunicações, vol. 37, n. 157, set. 2007. Porto Alegre, p. 409/419.http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/teo/article/viewFile/2721/2069.

STREFLING, Sérgio Ricardo. O desmantelamento do poder papal na eclesiologia de Marcílio de Pádua. in A Cidade dos Homens e a Cidade de Deus. Org. Ernildo Stein. Porto Alegre: EST Edições, 2007, p. 166/173.

TARNAS, Richard. A epopéia do pensamento ocidental: para compreender as idéias que moldaram nossa visão de mundo. Tradução Beatriz Sidou. 7.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005

TÔRRES, Moisés Romanazzi. A Filosofia Política de Marsílio de Pádua: Os Novos Conceitos de Pax, de Civitas e de Lex. Mirabilia - Revista Eletrônica de História Antiga e Medieval, vol. 3. Dezembro de 2003. http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num3/artigos/art9.htm.

7048

TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991.

VAN CREVELD, Martin. Ascensão e declínio do Estado. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

VILANI, Maria Cristina Seixas. Origens medievais da democracia moderna. Belo Horizonte: Inédita, 2000.

VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes.

WOLKMER, Antônio Carlos. O Direito como parte da ordem divina: Justiniano, Santo Tomás de Aquino e Marcílio de Pádua. in Fundamentos do humanismo jurídico do ocidente. Org. Antônio Carlos Wolkmer. São Paulo: Manole, Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2005.

[1] É referência sobre o tema a obra de Quentin Skinner, denominada As fundações do pensamento político moderno. Trad. Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta. 5ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Para uma abordagem que envolva a discussão da soberania, conferir: KRITSCH, Raquel. Soberania: a construção de um conceito. São Paulo: Humanitas/Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 2002.

[2] Nessa época, até o século XVIII, teremos o Estado Patrimonial. Este possui duas características principais: primeiro, a de se fundar nas rendas patrimoniais ou dominiais do príncipe; segundo, a total confusão da esfera pública com a privada. Sobre o tema, conferir TORRES, Ricardo Lobo. A idéia de liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 1991.

[3] Segundo Martin Van Creveld, no período da Alta Idade Média, especialmente na época do Império Carolíngio, “a Igreja herdara a língua do Império Romano ocidental bem como muitas de suas tradições jurídicas e políticas. Durante séculos, exerceu um monopólio quase total sobre a educação, o que tornava seus serviços indispensáveis para qualquer governante secular cujos territórios fossem vastos e que desejasse transformá-lo em algo mais do que mero domínio ou feudo.” (Ascensão e declínio do Estado. Trad. Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 84)

7049

[4] Ernst Cassirer aponta, contudo, as diferenças da teoria de Santo Agostinho e de Platão, especialmente na concepção do Estado (O mito do Estado. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Conex, 2003, p. 103/123; 134/144)

[5] Conferir, também, VILANI, Maria Cristina Seixas. Origens medievais da democracia moderna. Belo Horizonte: Inédita, 2000, p. 30/35.

[6] Richard Tarnas consigna o seguinte: “a visão decisiva de Agostinho em relação à natureza humana teve um corolário em sua avaliação da história secular. Como bispo influente em sua época, no final da vida Agostinho foi dominado por duas preocurações urgentes: de um lado, a preservação da unidade da Igreja e da uniformidade doutrinária em relação à influência entrópica dos diversos grandes movimentos heréticos; de outro, o embate histórico da queda do Império Romano sob as invasões bárbaras. Diante do império que desmoronava e o aparente fim da própria civilização, Agostinho não via grandes possibilidades de algum genuíno progresso histórico neste mundo. Nos males, crueldades, guerras e assassinatos manifestos, na cobiça, arrogância, licenciosidade, vícios, ignorância e sofrimentos que todos os seres humanos estavam obrigados a sentir, ele via a demonstração da força absoluta e permanente do Pecado Original, que fazia desta vida um tormento, um inferno na Terra, do qual Cristo poderia salvar o Homem. Agostinho respondeu à grande crítica dos pagãos romanos sobreviventes à religião cristã, de que a cristandade teria solapado a integridade do poder imperial romano e assim aberto caminho para o triunfo bárbaro, com um diferente conjunto de valores e diferente visão da História: todo o progresso verdadeiro era necessariamente espiritual e transcendia este mundo e seu destino negativo. O importante para o bem-estar do Homem não era o império secular, mas a Igreja Católica. A divina Providência e a salvação espiritual eram os fatores fundamentais na existência humana, o que reduzia o significado da história secular, com seus valores efêmeros e seu progresso flutuante e em geral negativo.” (A epopéia do pensamento ocidental: para compreender as idéias que moldaram nossa visão de mundo. Tradução Beatriz Sidou. 7.ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 167/168).

[7] Conferir também VILANI, ob. cit. p. 35/36.

[8] Sobre o tema verificar também VILLEY, Michel. A formação do pensamento jurídico moderno. Trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, p. 181/198; WOLKMER, Antônio Carlos. O Direito como parte da ordem divina: Justiniano, Santo Tomás de Aquino e Marcílio de Pádua. in Fundamentos do humanismo jurídico do ocidente. Org. Antônio Carlos Wolkmer. São Paulo: Manole, Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2005, p. 22/27;

[9] João Jivaldo Lima possui a mesma conclusão: Na senda de Agostinho, Tomás coloca na sociedade humana a necessidade de encontrar a paz, não a paz humana, mas a que advém da amizade do homem com Deus, o que está muito além das perspectivas previstas por Aristóteles, para quem os horizontes das relações humanas não vão além dos limites da pólis. [Da Política à Ética: O Itinerário de Santo Tomás de Aquino. 2005, Tese, 266 fl. (Doutorado em Filosofia). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, p. 250].

7050

[10] Sobre o autor e sua obra, conferir tese de doutorado em História de Alexandre Pierezan, com o título De Regia Potestate et Papali. O equilíbrio de poderes segundo Johannes Quidort (1270?-1306). 2008. 233 fl. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro. http://www.historia.uff.br/stricto/teses/Tese-2008_PIEREZAN_Alexandre-S.pdf, acesso em 17 de julho de 2009; MIETHKE, Jürgen. João Quidort de Paris: De Regia Potestate et Papali. Ocasião e caráter de um escrito polêmico. in A Cidade dos Homens e a Cidade de Deus. Org. Ernildo Stein. Porto Alegre: EST Edições, 2007, p. 123/132.

[11] Conferir DE BONI, Luis Alberto. De Aberlardo a Lutero. Estudos sobre filosofia prática da Idade Média. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003, p. 164.

[12] Sobre o embate entre o papa e o rei, conferir STREFLING, Sérgio Ricardo. A disputa entre o Papa Bonifácio VIII e o Rei Filipe IV no final do século XIII. Teocomunicações, vol. 37, n. 157, set. 2007. Porto Alegre, p. 409/419. http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/teo/article/viewFile/2721/2069, acesso em 15 de julho de 2009.

[13] Papa Bonifácio VIII – Bula Unam Sanctam. Montfort Associação Cultural.

[14] Também nesse sentido: “Em suma, o frade parisiense tem que o princípio de sua ‘multidão perfeita’ é a natureza comum aos homens, sua causa eficiente principal é a vontade positiva daqueles que persuadiram os demais a se associarem; a causa eficiente instrumental é a persuasão efetivada nos primórdios da história; a causa material são os próprios indivíduos consorciados; a causa formal é a vontade permanente de assim permanecerem e se darem leis e a causa final é o bem comum da sua ‘cidade’. (LIMA, José Jivaldo. O poder temporal em João Quidort. Dissertatio n° 24. Universidade Federal de Pelotas, verão de 2006, p. 136. http://ich.ufpel.edu.br/depfil/filesdis/dissertatio24.pdf, acesso em 19 de julho de 2009.)

[15] Conferir o seguinte trecho da tese de doutorado de João Jivaldo Lima, orientada pelo Prof. Dr. Luis Alberto de Boni:

Por conseguinte, na visão tomasiana, a distinção quanto à dignidade dos dois poderes não advém de uma relação causal entre ambos, o temporal advindo do espiritual ou inversamente. Na concepção do Angélico, o poder papal não é causa instituidora do poder secular, aliás — por conseqüência — o poder papal não institui qualquer outro poder, mesmo o poder espiritual, o papa apenas exerce o poder sacerdotal em grau máximo, o qual foi instituído por Jesus Cristo e não por ele, quer dizer, não foi o primeiro Papa, o Apóstolo Pedro, que instituiu os demais Apóstolos e lhes deu poderes e enviou-os a pregar. O Papa não chega até mesmo a ser o intermediário na distribuição do poder e da jurisdição espiritual para os demais bispos, mas apenas o ministro para dirigir a Igreja. O meio é o Sacramento da Ordem, que todos os bispos, inclusive o Romano Pontífice, o possuem em plenitude, no entanto, o poder sacramental vem diretamente de Cristo e não lhes outorga, por isso, algum poder temporal.

A argumentação de Santo Tomás de Aquino se constitui, pois, na superação da aporia entre Hierocracia e Teocracia Régia sem fazer concessões comprometedoras a uma ou a outra tendência político-religiosa de sua época, cujas origens e extensões transcendem o seu tempo. O Aquinate é consciente disso e enceta esse caminho por

7051

opção, coerente aos seus postulados cristãos, filosóficos e políticos hauridos nas já referidas fontes disponíveis então. E não poderia se de outro modo para este frade dominicano, aluno de Alberto Magno, leitor dos Padres da Igreja e de Aristóteles e de espírito independente. (LIMA, ob. cit. 2005, p. 253/254)

[16] João Quidort entende que – positivamente - a competência do potentado secular é guiar os súditos ao bem comum, discernindo o justo do injusto, legislando sobre o que convém ao reino, possibilitando a prática das virtudes, estipulando os devidos impostos89, punindo os roubos ou furtos, legislando sobre os bens dos cidadãos, depondo acidentalmente o soberano pontífice em caso de necessidade. E negativamente “removendo os impedimentos que se opõem no caminho do fim (...)”.

Em suma, o “bem comum” intramundano no tratado Sobre o Poder Régio e Papal é a causa final do poder secular - com o que concorda o Aquinate -, mas já não é um bem formalmente de toda a “multidão perfeita”, é um bem que se identifica com a soma dos bens particulares dos pactuados - o que não podemos afirmar do Angélico sem contradizer seu pensamento.” (LIMA, ob.cit. 2006, p. 153/154)

[17] Conferir LIMA, ob. cit. 2006, p. 148/151, em que o autor comenta a relação de bem particular e bem público.

[18] Conferir LIMA, ob. cit. 2006, p. 139/142.

[19] Há alguns autores, como WOLKMER, que dizem que tal obra foi escrita com a colaboração de Juan de Jandún. (ob.cit., p. 27).

[20] Para JOSÉ LUIZ AMES, o paduano buscou “suavizar” o naturalismo aristotélico, tendo admitido o impulso natural até o Estado, mas se omitindo sobre sua existência por natureza (Estado e Governo no pensamento de Marsílio de Pádua: raízes medievais de uma teoria moderna. in Revista Ética & Filosofia Política, Volume 6, Número 2, Novembro/2003. http://www.eticaefilosofia.ufjf.br/6_2_joseluiz.htm, acesso em 20 de julho de 2009.)

[21] “Em Marsílio o conceito de paz (pax) integra-se com o de cidade (civitas), uma vez que a primeira é simultaneamente instrumento e condição da vida suficiente fundada sobre o "bem viver", ou seja, instrumento e condição do estado de saúde da civitas.” (TÔRRES, Moisés Romanazzi. A Filosofia Política de Marsílio de Pádua: Os Novos Conceitos de Pax, de Civitas e de Lex. Mirabilia - Revista Eletrônica de História Antiga e Medieval, vol. 3. Dezembro de 2003. http://www.revistamirabilia.com/Numeros/Num3/artigos/art9.htm, acesso em 19 de julho de 2009).

[22] “Todo reino deve buscar a tranqüilidade, pois ela proporciona o desenvolvimento da população e salvaguarda o interesse das nações. De fato, a paz é a causa total da beleza, das artes e das ciências. É ela que, multiplicando a raça dos mortais, mediante uma sucessão regenerada, aperfeiçoa as possibilidades e cultiva os costumes, sugerindo-nos a idéia de que o ignorante desconhece tais bens porque jamais os procurou.’ (CASSIODORO, VARIAE,I,1,MGH,AA,XII,10. Apud MARSÍLIO DE PÁDUA, DP, I,I,1,p.67” (TÔRRES, ob. cit., p. 8).

7052

[23] “A vida civil perfeita só se realiza na Cidade, comunidade natural e auto-suficiente que serve à finalidade humana do ‘bem viver’. (VILANI, ob. cit. p. 47)

[24] Sobre as críticas de Marcílio à Igreja e à hierocracia, conferir STREFLING, Sérgio Ricardo. O desmantelamento do poder papal na eclesiologia de Marcílio de Pádua. in A Cidade dos Homens e a Cidade de Deus. Org. Ernildo Stein. Porto Alegre: EST Edições, 2007, p. 166/173.

[25] SKINNER também assinala que “a doutrina da soberania popular assim desenvolvida por Marsílio e Bartolo estava fadada a representar papel de destaque na constituição das versões mais radicais do constitucionalismo de inícios dos tempos modernos.” (ob. cit. p. 85)