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A Mariposa e a Estrêla The desire of the moth for the star, of the night for the morrow, the devotion to something afar from the sphere of our sorrow. O vento mudou quando estavamos quase chegando à rive droite : levantaram-se as pontas do nevoeiro e a ilha Rousseau apareceu na noite. Os gansos do lago Leman também devem ter-se surpreendido com a mudança súbita, pois começaram a grasnar, todos juntos e muito forte; Andreij disse, rindo: "Eh bien, on bavarde aussi en Suisse..." E, por coincidência, a lua apareceu neste instante entre as nuvens, num luzeiro intenso e fantasmagórico. Foi assim que, voltando-me para ver o efeito de tudo isso na ponte, dei com a cara vulpina, inconfundível, de Karl Kretschmar a uns trinta metros atras de nós. Ele debruçou-se rápido na amurada da ponte, escondendo o rosto; mas já estava visto. Andreij continuava distraído com os gansos: "Tiens! La grande mère oie la bas, elle semble enragée, une vielle dame enragée". Não falei nada de Kretschmar ao iugoslavo; talvez porisso Andreij tenha retomado o tema do projeto da usina nuclear de Ljubliak, "igualzinha à de Angra dos Reis"; agora, sem a névoa, sua voz aguda e estridente parecia ir mais longe. Kretschmar escutava? Tinha escutado até agora? O certo é que Andreij escolheu aquele instante, ainda parado no mesmo A mariposa e a estrêla #

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A Mariposa e a Estrêla

The desire of the moth for the star, of the night for the morrow,

the devotion to something afar from the sphere of our sorrow.

O vento mudou quando estavamos quase chegando à rive droite: levantaram-se as pontas do nevoeiro e a ilha Rousseau apareceu na noite. Os gansos do lago Leman também devem ter-se surpreendido com a mudança súbita, pois começaram a grasnar, todos juntos e muito forte; Andreij disse, rindo: "Eh bien, on bavarde aussi en Suisse..." E, por coincidência, a lua apareceu neste instante entre as nuvens, num luzeiro intenso e fantasmagórico. Foi assim que, voltando-me para ver o efeito de tudo isso na ponte, dei com a cara vulpina, inconfundível, de Karl Kretschmar a uns trinta metros atras de nós. Ele debruçou-se rápido na amurada da ponte, escondendo o rosto; mas já estava visto.

Andreij continuava distraído com os gansos: "Tiens! La grande mère oie la bas, elle semble enragée, une vielle dame enragée". Não falei nada de Kretschmar ao iugoslavo; talvez porisso Andreij tenha retomado o tema do projeto da usina nuclear de Ljubliak, "igualzinha à de Angra dos Reis"; agora, sem a névoa, sua voz aguda e estridente parecia ir mais longe. Kretschmar escutava? Tinha escutado até agora? O certo é que Andreij escolheu aquele instante, ainda parado no mesmo lugar, para me passar um envelope amarelo - e isso o alemão não podia deixar de ver.

- "Voila les papiers de ton ami brésilien".

Meu amigo não era : não conhecia ninguém que oferecesse os planos de instalação da primeira usina nuclear brasileira à venda, ou pelo menos pelos quinze mil dólares que Andreij havia mencionado. De tudo quanto sabia, estas informações não eram secretas, principalmente no caso de uma "usina de referência", como Angra seria para Ljubliak: o padrão internacional de construção. Alguma coisa estava errada, e não era só Kretschmar escondendo o rosto na ponte do Rhône.

E se o iugoslavo soubesse o tempo todo do alemão? Não, Andreij era um homem honesto.

................

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Naquela noite cheguei a meu quarto tarde e sonolento. Jean Paul, o dono do hotel, tinha recebido novos pomatoma salatrix para seu aquário, e o entusiasmo do biólogo amador acabou me envolvendo até depois da meia noite. Não abri o envelope amarelo.

Na manhã seguinte, enfiei o envelope na pasta enquanto corria para a Rue Carteret; estava atrasado para a reunião na Delegação do Brasil. Mas é lógico que somente eu chegaria à hora marcada, ou não seria essa uma reunião entre funcionários públicos do Terceiro Mundo.

Karl Kretschmar - subitamente me lembrei, sentado sozinho na biblioteca da Delegação - não falava francês. Há uma semana, o delegado da Côte d'Ivoire havia submetido uma proposta claramente inaceitável para a República Democrática da Alemanha, e Kretschmar, distraído, havia deixado passar - porque não estava com os fones no ouvido. Andreij, de outro lado, sempre me falara em inglês até a noite anterior; durante o jantar no Pied de Cochon, aliás, continuara a usar a língua a que nos acostumaramos, para trocar para o francês ao começar a falar da usina nuclear, no meio da descida da Vielle Ville.

Não havia mais pretextos para adiar a abertura do envelope amarelo. Eram cinco documentos e o original de uma carta datada de Frankfurt, assinada com o próprio nome do subscritor, claro e por extenso. O inglês era capenga, inglês de brasileiro, e a desfaçatez muita. O signatário, pessoa conhecida, ligada ao programa nuclear, teria mesmo acesso às informações que dizia ter; a história de Andreij fazia sentido. Mas por que me escolher, entre todos os delegados brasileiro à conferência diplomática, por que revelar a história toda a um brasileiro, qualquer um? Só porque Andreij era um homem honesto?

De repente, entrou na sala Cienfuegos, o Primeiro Secretário da Delegação Cubana, e resolveu sentar ao meu lado. Cienfuegos não deveria estar ali: não fora convidado à reunião. Mas Cienfuegos era assim mesmo: faltava às sessões da conferência porque tinha um caso com a filandesa que arrumava seu quarto no hotel, depois vinha buscar as informações que lhe faltavam com os colegas das outras delegações. Cienfuegos sempre senta muito perto, toca em seu braço, fala em tom de grande confidência e não usa desodorante. Cienfuegos é um ótimo amigo.

No momento, era preciso dar sumiço à carta e seus anexos. Antes que o cubano desse a volta à mesa, as folhas já haviam sido enfiadas no Almanaque do Exército de 1979, que estava aberto para alguma consulta da noite anterior. Cienfuegos acabara de se instalar na cadeira a meu lado, quando o contínuo portugues entrou para arrumar a sala, e levar o almanaque para uma estante alta, à esquerda. Os papéis tinham sido enfiados na mesma página em que havia a fé do ofício de um major chamado Byron Shelley Silva. Inesquecível.

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Quando voltei ao hotel, de noite, descobri que toda a bagagem fora revirada: camisas e meias estavam espalhadas pelo chão, o forro das malas rasgados, os colchões desventrados. Jean Paul foi chamado e só fez um comentário: "En Suisse ça n'existe pas", o problema era meu, coisa de subdesenvolvido. Aliás, só havia sumido meu passaporte de serviço.

.............

Os olhos castanhos, que Ladine sabia fazer opacos e distantes, diziam que havia muito de loucura em toda a história; se ela tivesse que decidir, julgaria contra mim. Coisas assim não acontecem fora dos livros de John Le Carré. Ela detestava John Le Carré.

" - E o envelope amarelo, continua perdido?" perguntou ela. Perdido na biblioteca da Delegação do Brasil, Rue Carteret, Genebra. Sim, continuava lá, na terceira estante a esquerda de quem entra, nos braços do Major Byron Shelley.

Depois do assalto e do sumiço do passaporte, o tempo fora curto para fazer tudo o que devia. Conseguir a substituição do documento junto ao Consulado, correr à última sessão da Conferência, rearrumar a roupa nas malas dilasceradas... Vi Kretschmar de longe; na sua cara de bicho solerte, cara de vilão de filme mudo, nada havia mudado. Andreij viajara antes do encerramento. Não conseguira ir à biblioteca da Delegação antes de voltar ao Rio de Janeiro.

" - E que pretexto você acha que eu posso dar para estar mexendo no Almanaque do Exército?"

A pergunta era mera provocação. Ladine era exatamente o que seu nome dizia: astuta como um dos judeus hispânicos que a Inquisição expulsara. Ladina. Ela também era a próxima pessoa a ir a Genebra e a única em eu confiaria para resgatar os papéis.

Ladine Bonamie conhecia o programa nuclear melhor do que eu, e tinha seus meios de acesso a muito mais informações. Depois de alguns dias, quando voltei ao assunto, ela "se lembrou" que os seus amigos tinham confirmado a presença do signatário da carta em Frankfurt, à data relevante; a vida particular do tal homem estava muito confusa e, quem sabe... Tinham-lhe dito ainda mais coisas (ou não mudaria tão completamente de opinião), mas era seu prazer me deixar no escuro.

Fui conversar com o Coronel Ney, apesar da oposição frontal de Ladine. " Deixe-me falar antes com Annelise; o Coronel vai prestar mais atenção em sua história se lhe chegar aos ouvidos por meio dela". Annelise era doce, tinha lindos joelhos e, há meses, um caso com o

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chefe da Divisão de Segurança e Informações do Ministério - discretissimamente. Talvez fosse sensata a sugestão, se Annelise não tivesse mais interesse em Ladine do que em histórias de aventuras. "Sim, Ladine", ela diria, olhando fixo nos olhos da outra, "sim"; e o "sim" seria uma ordem.

Mas Ney pareceu interessado em toda a coisa. Na atitude galhofeira que era de seu normal, quis saber de detalhes quanto ao assalto ao meu quarto em Genebra, perguntou a distância que Kretschmar tinha se colocado na ponte, mas não questionou o principal: as informações sobre a usina. Não lhe disse do destino dos papéis, dando a entender que haviam sido levados do quarto. Depois eu acertaria os detalhes.

Não senti em Ney qualquer tentativa para classificar minha história como "informação" ou "informe", graduando sua verossimilhança. Outros fariam isto por êle. Apenas perguntou: " - O Ministro sabe?". Ainda não, respondi. - "Deixa para depois". E começou a falar de índios e como aboli-los do território nacional; era seu passatempo, antigo, conceber meios de acabar com a indiada.

Até New York, nunca mais Ney tocou no assunto comigo.

...............

Lucínio Couto, de todas as pessoas que eu conheço, é a mais parecida com um preá. Um discurso muito rápido, em que só os lábios e as narinas mexem, dão-lhe o jeito de roedor, e a impressão se completa ao constatar a rapidez com que foge de um problema. Dr. Lucínio é o Ministro.

" - O Sr. disse mesmo tudo o que está aqui no relatório?" Sim, ministro. Aliás era exatamente o que constava dos documentos preparatórios aprovados pelo Itamaraty (mas escritos por mim, deixei de dizer).

" - Tudo isto me parece muito ousado. Mas ninguém deixa eu dar minha opinião aqui dentro. O Ministro do Planejamento controla meus gastos, o Ministro da Fazenda controla minhas receitas, o Conselho de Segurança Nacional impõe quais devem ser minhas convicções, o Serviço fiscaliza minha fidelidade política, minha mulher diz o que eu tenho de comer, meus filhos carregam com meu carro e usam meu telefone. Agora, o Itamaraty se mete no meu Ministério, e me faz dizer estas ousadias através do senhor, e lá em Genebra. Ficar mal em Itajubá, ótimo, ninguém se importa com isso, pois que nunca disputei voto; mas em Genebra..."

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Fiquei com tanta pena do preá que acabei contando tudo a respeito de Ljubliak. Dois dias depois Ladine sumiu. Em Genebra.

Ela me havia telefonado no dia da chegada. Parecia preocupada. Já havia "comprado os poemas de Byron que eu encomendara". Eram muito espirituais, disse. Espirituais? Ela trocou de assunto, falando de Cienfuegos - o cubano a havia encontrado na entrada do Palais des Nations e perguntara por mim. µam jantar naquela noite. Cuidado, eu insisti. Ela riu. "Contente-se com a poesia, que eu fico com a prática". Deixou-me doido de ciúmes e com a promessa de que os poemas seriam colocados no correio imediatamente.

No dia seguinte, Ladine escreveu um cartão, falando de seu primo, delegado da Argélia em Genebra; nem uma palavra sobre Cienfuegos ou sobre Byron. E mais nada.

Levou uma semana para que o chefe da divisão de assuntos consulares do Itamaraty se lembrasse de telefonar para mim. "-Ladine Bonamie não é aquela sua amiga que cobre a Organização Cooperativista Mundial?". Sim, é ela: a mulher com rosto de árabe e cores nórdicas com quem você me encontrou em Ravena ano passado. "-Pois parece que sumiu em Genebra. Sumiu inteiramente. A polícia suiça entrou no circuito há quatro dias, e nada".

Eu queria acreditar numa piada idiota, num engano absurdo, numa aventura romântica de Ladine fugindo com Cienfuegos. Mas Helio Toutinegra, o homem dos assuntos consulares, nunca tivera qualquer senso de humor, nem a polícia suiça se engana numa coisa assim. Ladine fora sequestrada e eu me sentia o culpado por tê-la exposta a perigo sem nenhuma razão lógica.

Aliás o Ney tinha dito muito claramente para eu não falar nada ao ministro. Ele deveria ter sérias razões para isto.

..............

Mamãe me emprestou o dinheiro da viagem, o pai de Ladine me passou uma procuração, arranquei do Ministro uma licença para tratar de assuntos particulares e, travestido de advogado da família, embarquei para Genebra no dia seguinte. No aeroporto de Cointrin, veio ao meu encontro a diplomata com quem Ladine estivera nos seus ultimos momentos antes de desaparecer - para minha surpresa uma contemporânea de colégio, que os anos tinham melhorado em forma e fundo. Maria Holler, aos quarenta anos, era um belo animal racional.

" - Ladine saiu comigo do Palais des Nations às cinco e meia e foi até perto do Hotel Excelsior; mas nunca chegou lá". Maria estava preocupada e claramente tinha pena de mim. "Ela disse que ia sair de noite com um parente. Eu não sabia que ela tinha família aqui em Genebra."

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Maria me mostrou o lugar exato na Rue de Mont Blanc onde a havia deixado: na esquina da Rue Pierre Bouchet. Dali até o hotel não eram mais do que duzentos metros. Maria percorreu o quarteirão comigo, como antes havia feito com a polícia de Genebra. Era um espaço muito pequeno donde sumir uma brasileira loura de trinta e seis anos, com 1,65m, 60 quilos, fluente em francês, inglês, alemão e italiano. Talvez fluente demais.

A polícia suiça não falaria comigo, disse-me Maria logo na primeira noite. Somente aceitariam prestar informações a um advogado admitido a praticar no país, com autorização da família. Pois eu tinha um: Hubert Hahn, advogado de banco, que odiava prática criminal, mas devia muitos favores a seu antigo colega da faculdade de direito da New York University. Hubert não sabia inglês bastante, naqueles tempos, para fazer o curso. Eu lhe traduzira, em voz baixa, horas e horas de aula.

Hubert me surpreendeu: não foi nem lento nem reticente. Lembrou-se logo de mim ao telefone, veio encontrar-nos no Moevenpick em meia hora, e visivelmente impressionou-se com Maria. " - Para que procurar sua amiga? Madame la Secretaire aqui não lhe basta como companhia?". Quando eu o conhecera, muito suiço-alemão, Hubert era incapaz de uma galanteio e usava meias brancas.

Mesmo com o auxílio de Hubert e da procuração do pai de Ladine, as informações custaram e, ao sair, foram muito parcas. Alguém a vira caminhando pela Rue Chantepoulet na hora em que Maria a deixara, indo para a Rue de Cornavin; em direção contrária a do hotel, portanto. E ninguém deixara Genebra por trem, ônibus ou avião, que correspondesse à descrição de Ladine. Sua bagagem no hotel parecia ter sido também remexida, com menos fúria do que a minha, embora, e sem deixar impressões digitais; ao que percebessem, não faltava nada. Não, nada sabiam de encontros marcados para a noite em que ela havia desaparecido.

Hubert pareceu ficar triste com a falta de informações "Calma, que eles descobrem sua amiga. Não era para ela que você telefonava da faculdade, e vivia recolhendo moedas de todo mundo para pagar a ligação?" Hubert confiava inteiramente na polícia de Genebra, mas eu estava desconfiado de que o desaparecimento era do tipo de coisa que Jean Paul, o dono do meu hotel, dizia não existir na Suiça: coisa com que o governo da Confederação não tinha mesmo com que se preocupar.

Uma semana depois, fui com Maria almoçar em Divonne. Pelas pequenas estradas por que ela costumava levar seus filhos a escola, na França (onde a educação era gratuita), fui escamoteado sem visto nem passaporte através da fronteira. Um guarda aduaneiro de bigodes cansados nos olhou sem prestar atenção, e foi tudo. Maria era muito mais brasileira do que parecia.

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Tinham sido oito dias inúteis. Depois das informações iniciais, obtidas por Hubert, a polícia se fechara em copas. Apesar da insistência de Maria, o seu embaixador tinha se recusado a intervir, a representação junto à Confederação Helvética, em Berna, estava tratando o assunto por vias regulares; o consenso era que, se a polícia suíça não tinha conseguido encontrar Ladine, então ... Uma vez tive a impressão de que ela aparecia no fundo de uma cena externa num vídeo pornográfico da TV do hotel; tudo me fazia suspeitar da percepção, mas ao rever o filme, lá estava Ladine, passando sem perceber frente à câmera instalada na gare Cornavin.

Hubert se divertira imensamente com meu pedido de ajuda, e viera ao hotel constatar se Ladine aparecia vestida e composta, como eu dissera, ou como parte de alguma coisa mais interessante. Mas foi rápido em localizar a produtora do filme e em obter a data da gravação: 12 de maio. O dia de sua chegada a Genebra. Ladine estava andando sozinha, com os olhos postos nas casas da praça, apreciando a arquitetura, como era seu hábito; parecia feliz e descansada. Num fragmento do filme, ela aparecia de corpo inteiro, em meio plano: levava a sua bolsa, uma pasta de couro e um envelope amarelo. Seria o meu envelope?

Restava a história do primo de Ladine, o diplomata argelino. No caminho para Divonne, conversei com Maria sobre Yussef ben Lucif, de quem ela tinha uma ideia vaga - um cinquentão muito moreno, dono de uma voz enorme e de um Porsche. Iria investigar. O dia de fim de primavera estava muito claro mas ainda ameno, e conforme subíamos a colina do Château de Divonne a vista foi ficando mais bela; Nyon, além da fronteira, os reflexos do lago, até os sons de um carrilhão distante na França compunham a passagem. Maria estava linda.

Depois daqueles dias de comida insípida e cara em Genebra, o almoço no Castelo foi maravilhoso. Maria foi ganhando cores com o vinho, lembrou-se de um livro de sonetos de Camões que eu lhe tinha dado aos dezesseis anos (do qual já me havia esquecido), e entrou a reclamar do ex-marido. "-O Reginaldo nunca viria me procurar em Genebra, se eu tivesse desaparecido. Aliás, se eu desaparecesse no corredor do apartamento, ele nem se levantaria da cadeira para olhar." Mas eu levara Ladine a se expor a perigo, argumentei. "-O que tem esta Ladine de especial que eu não notei?" Maria começava a virar de novo a alemãzinha de Blumenau.

Para não estragar os bons espíritos do almoço, tirei da pasta o retrato de Ladine em Ravena. Excitada com os galanteios de uns estudantes de Napoles em excursão, interessada pela arquitetura justiniânea, ela aparecia na foto olhando um painel de mosaicos coloridos; em primeiro plano estavam os reflexos de uma coluna recoberta de cintilações, e muito próximo o rosto semítico e louro de Ladine envolto num clarão de sol. O ma^itre se inclinou para servir o vinho, deu um pequeno grito abafado, e interrompeu nossa conversa com um surpreendente "Excusez moi, m'ssieurs."

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Era minha amiga aquela senhora da foto? Pois então ele, o ma^itre, estava feliz de poder devolver a jóia que ela tinha esquecido sobre esta mesma mesa há duas semanas. Um pequeno anel de prata, mas esculpido de forma muito original ... Sim, disse eu, dois lírios enlançados, com as pétalas apenas enunciadas nas volutas do metal fundido. Perfeitamente! E o ma^itre correu para buscar o anel - o resultado de um acidente de fundição que Ladine usava há muitos anos e que não podia ter igual no mundo.

Sim, madame havia jantado no Château de Divonne há umas duas semanas. Que dia? Era fácil verificar, pois o cavalheiro havia pedido um Château Petrus, e era a primeira vez do ano que adega dava saída a um Petrus - 14 de maio. O cavaleiro era um argelino moreno de uns cinquenta anos, que tinha um Porsche?. "-Mais non, c'était un brésilien, parce que Antonio, le comis portugais, a reconnu l'idiome." Ladine nunca tirava o anel do dedo. "-Nem para ir para a cama," ela dizia. "-Nem para morrer".

Maria não gostava de aventuras. Subitamente lembrou-se que tinha uma reunião com o embaixador às três, e saímos sem comer a sobremesa.

....................

Da casa de Maria, em Nyon, eu havia telefonado para Ernesto Rosebud em Paris, e acertado a viagem.

"-Eu sou um correspondente de jornal, não um detetive particular, como vou descobrir para onde foi tua Ladine com o caso dela?" O assunto não é pessoal, Ernesto, e não estou seguindo nenhum amante de Ladine. É coisa séria, que eu te conto em Paris. Só quero um contato com a polícia francesa: estou aqui como advogado da família. "-Vamos conversar aqui. Talvez o assunto não seja com a polícia". Ernesto sabia das coisas. Eu achava.

Maria foi me levar ao aeroporto. Suspeito que ela preferia que eu ficasse um pouco mais, pesquisando os castelos próximos da fronteira nas tardes da primavera; suspeito que fosse muito mais proveitoso para meu futuro. Mas Ladine era meu dever e minha sina.

O segredo que abria o portão da Rue Quincampoix estava em algum lugar do caderninho, assim como a senha do cartão do banco de New York e o telefone de Ladine, que ela não dava a ninguém. Mas onde? Ernesto combinara de me encontrar lá em cima, no seu apartamento, e no meio do caminho havia um portão. Eis que veio por minhas costas uma mulher muito morena e muito bêbada, e eram dez e meia da manhã. "-Aidez moi, m'ssieur... Les numeros sont 9-9-7-6 mais ils ont decidé de ne répondre pas". O sotaque era grego, o francês péssimo, mas os números estavam certos.

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Ernesto abriu sua porta com uma folha de telex na mão e uma cara estranha. "-Adivinha o que acaba de me chegar: um pedido de matéria, solicitação direta do grande patrão, para cobrir o misterioso desaparecimento da assessora do Ministro da Agricultura, em Genebra. Tua amiga Ladine. Acho que estão me pagando pouco. Sou correspondente de jornal, e me usam como agente secreto. A matéria tem de seguir pela Varig, direto para as mãos do grande chefe. Não falar nada ao editor. Não comentar nada sequer com o filho ungido do grande chefe". Foi então que decidi contar tudo a Ernesto.

Ele detestou a notícia. A idéia de que Ladine poderia ter desaparecido por causa de um envelope amarelo era muito pior do que um caso amoroso e um velho amigo enciumado. A suspeita de que o desaparecimento estivesse ligado à minha confissão ao ministro pareceu-lhe horripilante. A encomenda de uma matéria sobre o assunto, só para os olhos do dono do jornal, era o pior de tudo. Ele agora estava dividindo a batata quente comigo.

Fomos almoçar com um adido da Embaixada Brasileira: um oficial de marinha com cara de peixe, chefe da comissão de compras navais na Europa. " Ele é quem sabe das coisas", disse Ernesto. Devia saber de muitas coisas mesmo, inclusive de como equilibrar um soldo de militar com gastos dispendiosos em Paris. Foi a única pessoa que jamais soube, que pedisse um Château Petrus 71' no almoço.

O Comandante Devereux já tinha ouvido falar no sumiço da funcionária brasileira. Apesar de não ter ainda sido uma linha nos jornais: na embaixada essas coisas correm. Ernesto lhe contou de todas as investigações da polícia de Genebra; eu, o advogado da família, falei da descoberta em Divonne. Ninguém mencionou o envelope amarelo.

Depois de ouvir tudo o comandante não fez perguntas. Falou das dificuldades de comprar material de interesse naval com o crédito ruim do Brasil destes tempos, perguntou-me se era eu mesmo quem tinha trabalhado na revisão do plano nuclear, mencionou alguns oficiais de marinha conhecidos...Foi só depois que veio a história.

Ele estava de férias no Rio, na semana anterior, quando um colega de Marinha o tinha chamado para auxiliar numa apreensão de material militar. Um contrabandista árabe havia sido flagrado pela Receita Federal quando embarcava um carregamento de combustível sólido para míssil, sem autorização do Conselho de Segurança Nacional. O árabe tinha sido levado para uma sala do oitavo andar do velho prédio do Minstério da Fazenda para ser interrogado, e o comandante e seu colega deviam traduzir as respostas e assessorar as perguntas.

Mas o interrogatório nunca se realizou. Quando o grupo entrou na sala, o árabe havia desaparecido, apesar da guarda da Polícia Federal na porta. Uma gritaria no pátio

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interno logo chamou a atenção dos fiscais da Receita: espalhado como uma estrela no chão, lá estava o corpo do contrabandista. Os homens da Polícia desceram pelas escadas correndo, mas o homem estava obviamente morto, e não havia nada que pudesse mudar isso.

Quando o comandante e seu colega íam saindo do Ministério da Fazenda no seu jipe militar, um rapaz de motocicleta fez sinal para que parassem. Num inglês carregado, de estrangeiro, o recado foi o seguinte:

"-It was no suicide. It is a Mossad affair, not yours. Tell them about it".

O Comandante passou algum tempo olhando o restinho do Pomerol no seu copo. "-Parece invenção barata, mas aconteceu mesmo, e duas vezes; a primeira em 1969, com um banqueiro judeu." Ernesto estava fazendo uma cara de profunda confusão. O comandante virou o vinho e começou a se levantar para ir embora.

"-No passaporte, o nome do árabe era Yussef ben Lucif."

.....................

Maria, ao telefone, soava como se estivesse magoada. Nada do primo argelino de Ladine - não estava em Genebra. Ela não ia sair perguntando por ele, para que não pensassem que o interesse era pessoal, mas ninguém o vira há dias. Na lista diplomática o seu nome continuava no mesmo cargo. Ela estava trabalhando muito, o embaixador viajara para consultas na capital, Genebra estava horrível.

Em Paris também nada acontecia. Ernesto havia escrito duas laudas de texto, falando do desaparecimento e da prisão no Rio do contrabandista árabe. As autoridades brasileiras (dizia o artigo) parecem ter razões para relacionar os dois eventos. O material seguiu e nunca foi publicado. Nem ninguém acreditou que viesse a ser.

Depois de três dias, telefonei para o pai de Ladine e para o Ministro. O velho, na sua voz rouca de sempre, confirmou que nada recebera ou ouvira da filha; estava triste mas muito contido. Dr. Lucínio disparou numa série de comentários sobre o tempo, encomendou uma garrafa de um vinho horrivel do Loire que bebia na juventude em Belo Horizonte, e recomendou, já que estava em Paris, que ficasse para esperar o Prof. Salles dois dias depois. Ele ia dar um jeito de me pagar diárias. Ladine não mereceu uma palavra; oficialmente ele não sabia de nada.

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Foi em Orly, enquanto esperava a chegada do Prof. Salles, que a pasmaceira acabou. Primeiro foi o grito em inglês, do outro lado do lobby. Era meu nome, com sotaque americano. Depois apareceu a figura permanentemente deslumbrada de Frank Birchenmayer. Procurei a mulher, para o proveito e sedução da qual o escândalo estava sendo encenado, e ela estava inevitavelmente ali, morena, petite, com um ar de "incerta ainda". Em dois dias ela ía se decidir e deixar Frank sozinho nos Champs Elysées, talvez até se esconder atrás das árvores para não voltar a encontrá-lo. Assim acontecia sempre: Frank era apenas suportável por três dias.

Você tem de sorrir para o Frank, ou ele se sente infinitamente agredido e berra mais alto suas demonstrações de afeto. "-My dear, my adorable friend, how lucky am I! I just met your Ladine in Kennedy Airport and now you are here. How international you are!" Como assim, Ladine em New York?

Com tempo e paciência, você tem tudo de Frank. É preciso ser apresentado à mulherzinha, aliás suave e assustada. É preciso ouvir falar do tio da moça, biólogo famoso, que tem um tipo de foca com seu nome. É preciso admirar as botas cintilantes de Frankie dearest, botas brasileiras compradas no Kaczinsky da 5a. Avenida. Só então ele consente em explicar que encontrara Ladine na noite anterior, entrando num taxi no Kennedy Airport; sim, era L-A-D-I-N-E de vestido preto e brincos de prata, sem a mais remota dúvida. Sozinha e triste, mas Ladine.

Frank não é homossexual. Ele prescinde disto.

....................

Eu devia ter imaginado que, ao lado do olímpico Prof. Salles, com suas cãs de prata e sua gravata de Oxford, viria a cara turva e torta do engenheiro X. O destino quis que todos os vilões desta história tivessem o aspecto que melhor lhes convêm, e o engenheiro X é o pior de todos. Albino, mas de um branco encardido, claudicante e maneta, ele tem un sotaque cearense borbotante e um nome de família espantoso. Para ser breve, é o signatário da carta de Ljubliak.

Para ser ainda mais breve, ele foi atingido na testa por um tiro de metralhadora. Nem chegou a passar pela alfândega.

A confusão que se seguiu foi total. Pelotões da C.R.S. surgiram do nada, armados até os dentes; flics de todo gênero isolaram a seção de bagagens. Um Professor Salles apavorado foi levado da nossa vista por soldados da Aeronáutica de capacetes. E eu fiquei sentado, quieto, atrás de um Frank e mudo e sua mulherzinha aterrada: o mundo é terrível.

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"-Como é que você sabe que a metralhadora era uma Uzi israelense, ô cara! Você virou técnico em balística agora?" É assim que Ernesto paga um favor. Ele tinha ficado em casa na Rue Quincapoix vendo "Atila o Rei dos Hunos" na TV, preocupado apenas em pedir que eu contasse, depois, a chegada do Prof. Salles para uma notinha no jornal. Eu lhe dou a mais quente cobertura dos fatos, com cor, som e emoção e ele discute a marca da metralhadora. É óbvio que o tiro tinha de partir de uma Uzi: não existe outro meio de matar um lobisomem cearense.

...................

Até chegar a nova remessa da mamãe, o único jeito de ganhar dinheiro em Paris era tocar flauta no Metro. Comecei com as suites para violoncello solo de Bach, na transcrição de Franz Bruggen; depois tentei "cai cai balão" e "Mamãe eu quero" e a féria quadriplicou. "-Eu não te disse que parisiense gosta é de exotismo?", insistiu o Ernesto. Passei a usar um chapéu de plumas verdes.

O meu segundo encontro com o comandante Devereux aconteceu no período Bach. Eu tocava na estação do Odeon, esperando acabar o espetáculo nos teatros da praça; os corredores estavam vazios. Interrompi a sonata em Fá menor do Getreue Musikmeister no segundo movimento para contar a receita: só havia cento e doze francos e ningém à vista. Foi aí que ouvi passos a distancia, vindos do corredor dos Les Halles, e vozes em português.

"-Algum problema com o pessoal de bordo?"

"-Não exatamente. Com os guardas-marinha não há problemas, mas de um cadete do exército eu ando suspeitando".

"-Desembarque o tal cadete em Haifa e invente algo para ele fazer longe, no meio do deserto. Para isto os sabras são ótimos. Enquanto ele estiver longe, você faz o embarque do material."

"-Eu confesso que não gosto de navegar com aquela carga no porão. É um navio escola, sem proteção radioativa".

De longe, já tinha reconhecido a voz do comandante Devereux; agora podia constatar à vista que era mesmo o adido naval, com um colega, fardado, da Marinha do Brasil - um capitão de mar-e-guerra.

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Ninguém olha para o rosto de um músico limpando seu instrumento numa esquina do Metro. Nem o comandante, nem o outro oficial, nem Karl Kretschmar que vinha vindo atrás.

.....................

No avião para New York, eu comecei a me lembrar da enormidade dos Estados Unidos. Não era provavel encontrar Ladine numa loja de brasileiros da rua 43 ou num show da moda. Ela poderia estar até fora de Manhattan, ou de New York; segundo Frank Birchenmayer, ela andava sozinha, e não parecia sequestrada nem coagida. Ladine estava pois desaparecida com um propósito específico.

Por tudo quanto dela conhecia, não era para proteger o infeliz que levara o tiro na testa em Orly. Ladine não teria nada em comum com um homem que oferece documentos secretos de seu país à venda por quinze mil dólares. Dificilmente ela se deixaria tentar por dinheiro; talvez se deixasse seduzir. Mas mais provavelmente estaria cumprindo seu dever e divertindo-se muito com as viagens e o clima romanesco.

Qual seria seu dever? Ladine estava ou estivera com a carta e a lista de documentos; alguma coisa ela tinha lido ali, que a mim me escapara. Ela conhecia intimidades do plano nuclear brasileiro, fragmentos e folclores, que, querendo, saberia juntar. Mas havia o episódio de Yussef ben Lucif, seu primo morto no Rio pelo Mossad. Nunca tendo sido muito próxima do ramo argelino de sua família, dificilmente seu dever estaria com o diplomata assassinado. De outro lado, Ladine não induziria alguém a ser morto, se soubesse do perigo.

Depois que descobrira a passagem dela pelo Château de Divonne, a pista ficara mais clara. O brasileiro com quem estivera no Castelo deveria ser o Comandante, chefe da comissão de compras na aparência, mas provavelmente um oficial de informações. Ney e o Devereux possivelmente estariam jogando juntos, o engenheiro morto e (por tudo que sabia) Lucínio Couto deviam estar numa linha oposta. Ladine, apesar das restrições ideológicas a todos os dois lados, não duvidaria em escolher o caminho do Comandante. Achava eu.

Dos elementos estranhos da trama, os israelenses pareciam estar com o Comandante. Kretschmar, porém ...

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Eu tinha um telefone, o nome de um guarda do Central Park, um endereço da Quinta

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Avenida e uma idéia para um classificado no New York Times.

O telefone era antigo, e já se achava desligado. A firma que antes o tivera - Brazinf Co. mudara-se para o Bronx há um ano. No novo número, ninguém conhecia Mrs. Bonamie, mas o nome de Ferraz teve eco. "-Mr. Ferraz is not here. He'll be back by the end of the week". Souza Ferraz, coronel engenheiro, era um velho conhecido de Ladine. Seu campo era eletrônica, e estava em New York há pelo menos cinco anos. Quem pagava o aluguel da Brazinf Co., pelo menos no seu antigo endereço no Rockfeller Center, era o Tesouro Nacional.

Jack Coppolini era um membro do Departamento de Polícia de New York que costumava dar serviço junto ao tanque das focas no Central Park. Jack também era o marido de uma prima de Ladine, Miriam Coppolini, n`ee Bonamie. Como o Zoo estava fechado, Jack passava os dias perto do carrossel recolhendo crianças perdidas e cachorros fugidos.

"-Hi, Jack." Ele me olhou de lado.

"-Hi, cous'n. How's Ladine?." Ele pronunciava Ladaine. Isso queria dizer que Ladine ainda não falara com a prima, como fazia sempre que em New York. Expliquei que houvera um desencontro, e eu estava atrás de Ladine desde Genebra. Jack me olhou desconfiado. Se ela aparecer para falar com Miriam, diga que eu estou na casa do Peter. Jack não respondeu; parecia já fatigado por tudo que tivera de falar.

Quinta Avenida com Rua 68. Numa esquina, escondida, a loja podia ser um sapateiro-remendão, ou um fotógrafo. Mas quem olhar pelas vitrinas para o mostruário desconchavado e poeirento vai ver maravilhas: muito marfim, prata e jade. Deuses-animais com pedras preciosas no lugar dos olhos. Pedaços de tecido, coloridos de tons bárbaros. Sapatos enormes de bicos finos, tingidos de carmezim brilhante. Marionetes de metal para teatro de sombras. Punhais curvos enfiados em cinturões incrustrados de metal. Joias toscas e esplêndidas. É o Tibet Curio Shop, especialista em Nepal, Bhutan, Bali, Punjab e outros sonhos orientais, verdadeiros ou de plástico.

A dona, uma velha de cabelo cinza e pele amarela amarfanhada, sabia vagamente quem eu era e abriu a porta; seu hábito era ficar quieta e muito atenta para não deixar o fregues furtar nada. Quando a escolha era feita e o preço perguntado, ela desfazia da autenticidade da peça e aumentava doidamente o seu valor, para evitar a perda de um ítem de sua coleção; não queria, no fundo, vender nada, fosse jade thai ou acrílico de Hong Kong. Mas era a fornecedora de Ladine de todos os brincos, colares, cintos e bijoux e ao ouvir o nome da freguesa tirou um sorriso guardado no fundo dos tempos: "-Ladine is a very beautiful lady and loves oriental jewels. She knows what she purchases. How's Signora Ladine?."

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Eu não sabia. Porisso mesmo vinha à loja crendo que Ladine apareceria por ali toda vez que passasse por Manhattan, para visitar a velha joalheira como se fosse gente de sua família. A velha riu, confusa. Daria meu recado. Na saída, comprei um pequeno broche de latão em forma de peixe e preguei-o no próprio vestido da velha; ela ficou me olhando até eu pegar o taxi, fazendo muita força para parecer a Punjabi linda que fora há uns sessenta anos.

Custou duzentos e cinquenta dólares:

_______________________________________________ | | | Wanted: papers from Byron and Shelley. Real | | stuff only, must come from Geneva. | |_______________________________________________|

Ladine lia pouco jornal, mas não perdia o New York Times de domingo: o anúncio na primeira página da seção "Living" chamaria sua atenção, e o endereço de Peter Nachtingaller diria que era eu a procurar os papéis. Na terça-feira, recebi um xerox de uma carta assinada por Mary Godwin e endereçada a "Dear Percy", mencionando Genebra como o momento mais feliz do amor de ambos. Não era o que eu queria, e o preço ultrapassava dez mil dólares.

Peter já começava a esconder o Philadelphia Cream Cheese do café da manhã para não ter que dividir comigo: era hora de eu ir para o hotel. Ele foi me ajudar no translado, com um jeito meio culpado, e prometeu me chamar para jantar sukiyaki na noite seguinte com uma amiga norueguesa. Certamente grande, impaciente e mal vestida.

Na quarta-feira, fui assistir o ensaio geral de Turandot no Metropolitan, e na volta cruzei o parque para aproveitar o entardecer. Da cerca do Sheeps' Meadows vi, longe, um casal rolando aos beijos pela grama, rindo pela brincadeira de crianças. Os sapatos dourados da mulher me chamaram atenção imediatamente: não eram coisa de americana; quando ela se pôs de joelhos, o perfil claramente recortado contra o sol poente, percebi que era o fim da viagem.

"-Ladine, filha da puta!" eu me ouvi berrando. Ernesto tinha raz,ão: eu tinha estado no fim das contas seguindo o amante dela.

Quando fui embarcar para o Rio, o F.B.I. me recolheu preso. Lucínio Couto tinha me acusado da morte em Orly, e o Prefecte de Police de Paris mandara me buscar em New York, só para ver se era verdade.

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Patricia, eu tenho certeza que o nome dele é Frank Birchenmayer, e que deve estar ainda em Paris: ele me disse que iria ficar três semanas. Não sei em que hotel, mas todo romance policial diz que Paris tem um arquivo central com o nome de cada hóspede da cidade. Por favor, Patricia, eu sei que você não é criminalista, mas não há nenhum criminalista da nossa turma da New York University, e eu estou sem dinheiro. Patricia, se você fosse presa no Brasil, eu ía lhe soltar, por que você não pode fazer o mesmo por mim? Patricia, eu não a repeli na faculdade, simplemente não notei que voc~e está interessada em mim. Desculpe, voc~e estava, não esta mais. Agora dá para perceber. Não, Patricia, Ladine não vai me ajudar, ela é uma "bitch" mas não é minha "bitch". Por favor, Patricia, eles vão cortar a ligação.

Na cela vizinha havia um índio boliviano de chapéu coco e poncho e uma bicha do Leblon. Parecia fim de peça de Nelson Rodrigues.

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O bicha do Leblon sentiu-se injustiçado quando chegou minha ordem de soltura. Frank Birchenmayer e sua mulherzinha assustada confirmaram que eu não poderia ter cometido o assassinato em Orly, "mesmo porque eu, assustado, tinha segurado as mãos do indigitado", disse Frankie. A comunicação veio por telex, e Patricia trouxe pessoalmente o mandado judicial me pondo livre. O bicha gemia em sua cela ao me ver sair: "vai me deixar sozinho aqui nesta prisão! Ajuda teu irmão!"

Coitada de Patricia. Seríssima, de uma família quaker, branca até a translucidez, ela detestava confusão, sujeira, pressa e surpresas em geral. Tinha ido para a faculdade de direito para ter uma profissão - que não incluisse visitas à cadeia federal em Manhattan. Patty, se você acha isto infecto, precisa ver uma prisão brasileira. Ela visivelmente não se sentiu consolada com a idéia.

Mas Patricia também era doce, suave e compassiva. Desta vez, fazia questão de demonstrar quão dedicada ela era aos amigos. "Let's tidy all this now", disse, com um ar de esperança. "Tidy" era sua palavra preferida. "Are you O.K.? Did they take care of you properly?". E lá ia ela sentadinha no seu lado do banco do taxi, subindo a Columbus Avenue, toda arrumada no seu terninho de lady lawyer. Quando passávamos

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pela Rua 75 o chofer se virou para avisar que tinha alguém nos seguindo, e estava fazendo sinal de que o carro parasse.

Olhei para trás, e era uma limousine Volga da era mesozóica. Ao lado do motorista, de casaco e colete, estava Karl Kreschmar, e tinha uma pistola na mão.

Coisa de país subdesenvolvido, pensei eu. Onde já se viu colocar um funcionário diplomático, lotado em Genebra, para correr mundo de trabuco na mão, dando tiros e quebrando dedos? Vai ver que na República Democrática da Alemanha eles adotaram o princípio da polícia montada do Canadá: Kretschmar tem de pegar o seu homem, e seu homem sou eu. Credo! Parece viadagem. Talvez ele me conheça, e isto simplifica as coisas, sei lá ...

Foi aí que soou o primeiro tiro e a cabeça do chofer explodiu na minha frente. Patricia soltou um guincho fino de mico estrela.

Vem, mulher, vamos sair daqui. Que sapatos altos, que nada - corre, mulher. A mãozinha de Patricia ainda reagiu no início, resistindo à corrida, mas o segundo tiro a convenceu. Mais leve, menos culpada do que eu, ela se atirou pela Columbus Avenue, rápida comu um beija-flor; fui eu atrás, negaceando pela calçada, enquanto o Volga escuro fazia força para se livrar do engarrafamento. Kreschmar saiu para a rua, descarregando a arma, uivando e pulando feito sioux de filme. O povo em torno se espalhava para todo lado.

A dez metros atrás de Patricia, eu ia contando os tiros: um dia a munição ía acabar. Um cachorro pastor afgã caiu no meu lado, ganindo. Sete. A vidraça da lojinha "Only Hearts" estilhaçou à direita de Patty. Oito. O guarda em frente à escola pública da Rua 77 tirou do revólver, e disparou para o lado de Krestchmar. Como é que eu conto este?

Patty, berrei, to the museum. Ela ouviu, e virou a direita, em direção ao Museu de História Natural. Eu já ofegava e trocava pernas; logo atrás, Kretschmar urrava e recarregava a pistola. Assim, para que contar mais?

Patty, gritei o mais alto que pude - ela estava ficando longe. To the music. Ela vacilou desta vez. Kretschmar recomeçara a atirar. Mas havia mesmo música vindo da saída do parque - algo tão grande e absurdo que Patricia decidiu que eu estava certo.

E, toda colorida, com um enorme estandarte onde, em letras cor-de-rosa, lia-se

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"Deus ex Machina", apareceu na esquina a Pé de Boi - a escola de samba de Manhattan. Na frente, sovando um bumbo, vinha o Coronel Ney, do Serviço Nacional de Informações.

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A Patricia, fiz força para explicar que, no Brasil, as coisas são assim. Fantasiar de baiana quarenta e três agentes do Serviço, contratar a própria Pé de Boi para fazer figuração, prever que Kretschmar iria começar a atirar em nós nas imediações do Museu com a Central Park West - tudo isto era o normal. Patty ofegava e concordava como se faz com um bando de insanos. Mas o seu problema não era um assassinato em Paris?, perguntou. Não esperou resposta - podia ser perigoso.

Com o Ney, no entanto, a conversa foi outra.

"Depois eu explico", repetia ele. "Estamos a serviço." Ney, eu não estou questionando por que o contribuinte tem de pagar a passagem deste povo todo para brincar carnaval aqui. Eu não estou perguntando nem por que Kretschmar resolveu me dar tiros, sem que eu saiba de nada que os valha. Só quero entender por que você colocou quarenta e três agentes justo alí, quando eu poderia correr para qualquer outro lado - e acertou.

Ney continuava quieto no seu canto, e o carro ia rápido por New Jersey. Entendi enfim, disse eu. Vocês estavam alí por puro acaso. Não há previsão possível para o que aconteceu. Ney, o que aquele batalhão de gente veio fazer em New York?

Tudo voltou a fazer sentido - depois de tanto tempo - quando Ney confessou, muito sério: "Compras".

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Entramos por uma série de estradinhas, por onde as casa iam rareando, um ou outro descampado aparecendo, até que surgiu uma campo de aviação. Dezenas de aviõezinhos de treinamento e esporte estavam estacionados na pista; havia um grande hangar pintado de vermelho, anunciando em letras colossais que aquilo era uma escola de pilotagem. Um velhíssimo DC-3 pintado com flores multicoloridas estava esquentando os motores. Mas Ney me levou para um Brasília, discreto num canto da pista, com os

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símbolos de uma companhia regional de aviação do Texas.

Curiosamente, os dois pilotos eram brasileiros, e se perfilaram perante o Ney. "Mas a autonomia de vôo?", perguntou um dêles em voz baixa. "Voem como no tempo da guerra", respondeu o coronel. Só fui entender o que ele queria dizer quando, após uma viagem interrompida a cada quinhentos quilometros para reabastecer, o avião decolou de Recife em direção ao sol nascente e não mudou mais de rumo. Estávamos indo para os lados de Dacar. Só parei de berrar de raiva horas depois, quando o radio-operador me ameaçou com um cabo de vassoura.

"Se você leu a lista que o iugoslavo lhe entregou, e já sabe do embarque em Haifa, é até mais seguro lhe mandar direto para lá", tinha dito o Ney no carro em New Jersey (e eu pensara que era brincadeira). "Quem sabe se em Haifa você não é mais útil ao país do que correndo mundo atrás de mulher?".

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Desde meus tempos de escoteiro que eu não ficava debaixo de um sol de 50 graus, deitado na poeira, procurando me esconder atrás das pedras para não ser visto. Naqueles tempos , pelo menos, o que estava em jogo era o distintivo de Segunda Classe, a coisa mais perto do Nirvana que eu conhecia. Agora eu não tinha a menor idéia do que estava acontecendo.

A dez metros de mim estava Joel Abijara, cadete das Agulhas Negras, no seu uniforme verde oliva, esperando alguma coisa acontecer, ao volante do jipe que havia tomado emprestado da guarnição de Bir-el-Morara. Os sabras afinal não eram tão bons assim: tinham acreditado que o cadete queria realmente passear pelo deserto ao meio dia, como se fosse um inglês ou um cachorro raivoso.

Nossa sorte fora chegar à cidadezinha do El Makrah logo depois da saída de Joel. Logo à chegada, o Comandante Devereux fora tentar comunicar-se com o navio; eu pedi transporte para seguir o cadete, mas os israelenses acharam graça: só tinham um camelo. O carro do consulado brasileiro em Haifa não aguentaria entrar no areal. E eis-me no lombo do bicho, seguindo a trilha do jipe nas dunas; o camelo fedia, eu suava, por que esses judeus não devolvem esta terra desgraçada para os árabes?

Abijara é nome árabe, me dei conta. Talvez porisso os israelenses do Mossad tivessem mantido vigilância sobre ele em Bir-el-Morara; pena que tivessem preferido traduzir eles mesmos a conversa telefônica de Joel com um alemão não identificado antes de nos avisar que o cadete estava ciente do embarque em Haifa, e que iria estar presente de qualquer jeito. Algo se armava. E até o Comandante receber as informações dos

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israelenses tempo demais tinha passado: Joel sumira da guarnição de fronteira onde tinha sido mandado para "estágio".

Isso só me fora dito durante a viagem para Bir-el-Morara. Eu não tenho nada com isto, comandante. Sou civil. Não pertenço ao Serviço. Detesto o programa nuclear. Fui trazido para aqui a força num Brasília da FAB através do Atlântico, com um motor rateando e ameaças de acabar o combustível. Comandante, eu entrei nesta história por causa de uma mulher, e agora que descobri que ela estava fugindo com outro amante, quero sair já desta confusão toda. Não vou andar por aí caçando um rapaz de vinte e um anos, treinado para a guerra. O Comandante fumava sem parar e guiava feito um louco pelas estradas indo para o sul de Haifa.

Em Bir-el-Morara, Devereux me entregou um fuzil brasileiro modelo FAL e avisou que a bala sai pelo cano quando se aperta aquela pecinha ali. Foi todo meu treinamento militar. O camelo, graças a Deus, sabia onde ir. E eis-me aqui deitado no pó do deserto, tentando imaginar o que devo fazer. Acerto o rapaz com um tiro, e acabo preso em Israel, sem status diplomático. Sigo-o, e o camelo não vai acompanhar a marcha do jipe. Tento prendê-lo, e certamente ele vai reagir.

Um barulho longe atraiu a atenção do rapaz. Não era carro nem caminhão; parecia motocicleta, mas aos poucos ficou claro que era um helicóptero voando muito baixo. Levantou-se uma nuvem de poeira, o barulho ficou agora mais forte, e o aparelho pousou a dez metros de distância. Na cauda da aeronave, era visi'vel a bandeira egípcia, pintada em cores vivas. A fronteira estava muitos quilometros além, no deserto.

Joel saiu do jipe e correu para o helicóptero. A situação ficou clara: nao havia dúvidas da traição do cadete, pelo menos perante os israelenses. Foi por isto que ergui o fuzil, apontei para o rapaz no meio da corrida e apertei o gatilho. Nada. Outra vez - nada. Joel entrou no aparelho, que começou a decolar. Dei ao gatilho mais três vezes - nada. O helicóptero subiu, esteve um instante parado no espaço, e se foi no meio dos meus palavrões.

Meu consolo foi ver, no momento em que se erguia a aeronave, a inscrição do fabricante na parte inferior. Dizia assim: "Made in Brazil". Igualzinho ao fuzil. Vai ver, e Joel não chega a parte alguma.

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Vi o porto de Haifa pela primeira vez do terraço de um café. Na mesa vizinha, um inglês vermelho como um bife cru dizia "You must believe me. In Uganda they play even worse". E todos em torno riram com a idéia. No convés do navio-escola a banda estava tocando Saudades de Matão. Os guardas-marinha desciam o portaló e vinham pelo cais, passando logo

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abaixo do terraço: "será que elas dão aqui?", ouvia-se.

Não era eu que poderia responder. Fora desembarcado do Brasília direto para as mãos do Comandante Devereux. Agora estava no terraço, tomando o café da manha. Dali, depois da conversa do comandante com o oficial israelense, sairíamos a toda pressa para tentar agarrar Joel Abijara. Voltaria tarde da noite, sujo, empoeirado, envergonhado com o tiro que não saíra. "Como você mesmo diz, você não tem nada com isto", comentou Devereux ante minhas lamentações. E continuava a dirigir ao dobro da velocidade máxima permitida.

Era a noite da recepção oficial aos guardas-marinha, na embaixada em Tel-Aviv, e do embarque do material de que Devereux falava no metro de Paris. A recepção tinha sido uma idéia do comandante do navio, para tirar de perto da zona de embarque as centenas de guardas-marinha, oficiais e tripulantes inúteis para a operação. Ficara apenas um destacamento de fuzileiros e doze marinheiros necessários para carregar o material: ele mesmo, o comandante da embarcação, dirigiria o embarque. Não fora por Joel Abijara, e tudo estaria perfeito.

Pouco depois de havermos chegado de Bir-el-Morara, voltamos para o carro enlameado do consulado. Eram umas dez da noite, e íamos esperar o carregamento no meio do caminho, trinta quilometros fora de Haifa. Os israelenses tiham optado pela discreção: a carga viria numa série de caminhões de marcas e cores diversas, trafegando a algum tempo de diferença um do outro. Uma coluna de dois carros de combate, imperceptível numa estrada de Israel, precedia o transporte; e em cada estrada lateral, havia um carro de polícia, de luzes apagadas, escondido em algum lugar.

A noite foi tediosa. µam passando por nós caminhões, que podiam ou não estar transportando a carga. Fazia muito calor. Os policiais do carro ao lado do nosso só falavam hebraico e (creio) árabe. Devereux detestava a música clássica das rádios. Ficamos assim horas conversando sem vontade sobre a infância do comandante na Copacabana da década de 50', relembrando as figuras folclóricas, as modas e estilos, filmes do tempo... Um outro grupo de blindados apareceu na estrada às duas e quinze; o espetáculo imperceptível acabara.

Devereux foi seguindo atrás dos carros, pintados de cinza-poeira. "Feito um relogio",disse ele. "Relogio elétrico", emendou, "sem falhar e sem fazer barulho". Chegamos ao cais em Haifa com a sensação de serviço bem feito: os soldados da marinha israelense do portão estavam até sorrindo. Enquanto subiamos o portaló, o último caminhão ligara os motores para ir embora. Só senti falta da sentinela que, a todo tempo, costumava ficar no alto da escada, apitando para dar notícias da chegada de oficiais a bordo.

Eu me despedira de Devereux e estava entrando no camarote que ele me indicara como meu, quando ouvi seus palavrões no lado de fora. Havia uma poça de sangue no corredor aos pés do comandante, meio turvo e já coagulado; e, apenas com a sola da botina aparecendo na

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esquina do corredor, estava o corpo de um dos fuzileiros da guarda, com o pescoço cortado como o de uma galinha. Parecia uma peça anatômica do curso de Medicina Legal, esverdeada e terrível, com sua cara de cearense contorcida do último susto.

Devereux, comandante de compras, estava claramente apavorado com a sangueira. "Mas não era assim que deveria ser...", disse. Pessoas falam coisas sem nexo nestas horas. Comandante, isto não é um crime isolado - onde estão os outros fuzileiros? Mas ele continuava transtornado: ao invés de investigar minha sugestão, subiu para a coberta com seu FAL na mão, foi para a amurada que dava para o mar e começou a dar tiros na noite.

"Filhas da Puta", Devereux berrava. Ao quarto ou quinto tiro, a noite respondeu, e com uma metralhadora. Um holofote acendeu-se de uns cem metros de distância e alongou-se em nossa direção. Devereux se jogou no chão, e realmente atrás da luz vinha uma rajada grossa. Só nesta hora percebi a sombra de uma chata a alguns metros do navio e o perfil do rebocador de onde nos estavam atirando, afastando-se para mar aberto.

Logo, porém, uma inundação de luz veio de terra: a defesa do porto acendia os faróis. Um jipe apareceu corcoveando pelo cais, atulhado de soldadinhos e de uma metralhadora. São rápidos estes israelenses para decidir de que lado estão os bandidos - eles começaram a despejar tudo o que tinham contra o rebocador. Devereux correu para uma das metralhadoras antiaéreas do convés, mas soltou outro grito de nojo. Os dois artilheiros estavam nas banquetas da peça, degolados. Longe, vinha vindo uma lancha da polícia, gemendo sua sereia.

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Eu não tinha o talento dos israelenses: mesmo depois do inquérito eu continuava incerto sobre quem era o mocinho.

Ninguém tinha falado à guarda sobre Joel Abijara. Apesar do telefonema de Devereux de Bir-el-Morara. O cadete tinha chegado as 22hs 30m na escada do portaló, o fuzileiro o tinha reconhecido e permitido que subisse. Uma vez lá em cima, Joel o rendera: um grupo de oito alemães subira a bordo, vindos do rebocador. Silenciosamente, de maneira a não levantar a suspeita da guarnição do porto, eles foram eliminando a guarda do convés com as hábeis facadinhas que tinham horrorizado Devereux.

A tripulação estava reunida para uma refeição tardia, antes do carregamento. Os alemães jogaram gás de mostarda na sala de armas e na cozinha, e selaram as portas: os corpos, todos voltados para a saída, tinham sido a mais horripilante visão de minha vida.

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Da guarnição daquela noite sobrou só um marinheiro de Sergipe, que fugira para se encontrar com uma mulher, e contava se apresentar preso no dia seguinte. O comandante do navio, único oficial a ficar a bordo, foi encontrado morto no convés ao lado do motor que abria a escoltilha para o porão, por onde entraria a carga; cuidadoso sempre, levava um dosímetro radioativo, para evitar contaminar-se.

Por que não avisara a guarda? Por que não pedira reforço à guarnição do porto?

Ùs onze horas, os marinheiros ainda morrendo com o gás, chegavam os primeiros caminhões para descarregar. Os tubos subiam pelos guindastes de bombordo, atravessavam o convés em um vagonete, e desciam pelo guindastes de estibordo, diretamente para a chata. Os alemães, declarou Joel, trabalhavam com calma e segurança, sabendo que só na manhã seguinte os guardas-marinha e o resto da tripulação voltariam de Tel-Aviv. "Mas por que vocês tinham de matar todo mundo?", perguntava histérico o Comandante Devereux. Era a única coisa que ele não entendia.

"Porque os alemães gostam de serviço limpo", disse o Joel.

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Joel também confessou o que para mim era claro: Lucínio Couto estava na jogada. Depois da primeira oferta, aos iugoslavos, o negócio havia se fechado com um emissário da RDA - e não eram os documentos, mas a carga israelense o objeto da venda. Kretschmar estivera no jogo para impedir que os iugoslavos acabassem frustrando a transação. Neste ponto da história entrara eu.

Não ouvi Joel contar isso, mas Devereux depois me reportou: o argelino Yussef ben Lucif, primeiro morto desta história, tinha vindo ao Rio fechar o acordo. Era ele o emissário dos alemães e tinha se encontrado pessoalmente com o ministro.

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"Tudo foi muito elegante e discreto. Os dois senhores de terno escuro chegaram depois das oito da noite no Ministério e entraram direto no gabinete de Lucínio Couto, sem se importar com os protestos da secretária. Quinze minutos depois, o ministro resolvia se retirar em companhia das visitas.

"-Dona Cristina, talvez eu tenha de fazer uma pequena viagem. Tente cancelar as

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audiências de amanhã, por favor". E, formal sempre, despedia-se de todos, descia pelo elevador particular para embarcar, não no seu carro de representação, mas num opala cinza com placa particular, no qual haviam chegado os senhores.

Era como se o ministro tivesse tido uma premonição. Na manhã seguinte, Lucínio Couto seria encontrado morto em sua cama, na mansão ministerial a beira do Lago Paranoá. Uma cardiopatia insuspeita e cabal tinha privado a República de um estadista".

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Assim terminaria esta história, se tivesse sido inventada por John Le Carré. Sendo autêntica, Lucínio Couto estava pacificamente em seu gabinete quando voltei a Brasília. As ante-salas, cheias de políticos, empresários, intelectuais, artistas e freiras de Itajubá. Não havia mudado em nada seu sorriso, continuava falando rápido, mexendo com as narinas: sempre um preá. Deu-me até um aumento.

Já com o Comandante Devereux, o enredo muda. Eu deixara Haifa quando os porões do navio escola começavam a receber a recarga do material apreendido na chata. Devereux já tinha mandado um rádio, solicitando assumir o comando, ostensivamente porque necessitava embarcar para entrar na lista de promoções para almirante. Para receber a resposta, o navio escola zarpou com cinco dias de atraso de Haifa, prosseguindo a viagem de instrução para Chipre, Atenas, Brindisi e Trieste.

Foi assim que, comandado por um oficial de informações, o navio entrou no Adriático. Talvez por inexperiência do oficial-comandante, a rota levou o navio muito para o leste, longe da costa italiana; a caminho de Trieste, Devereux resolveu passar entre as ilhas de Lagosta e Vis, fora da rota normal dos navios mercantes.

Duas fragatas iugoslavas imediatamente apareceram, e após notificar a entrada em águas territoriais, solicitaram que o navio se identificasse; invocando o Artigo XV do Tratado sobre o Alto Mar, sinalizaram que havia suspeitas de uso da embarcação para propósitos irregulares, e mandaram um pequeno destacamento subir a bordo para vistoriar o vaso de guerra. Sempre com grande cortesia, ao encontrar carga não manifestada, incompatível com a destinação militar do navio, apreenderam-na e realizaram o transbordo para uma das fragatas. Isto tudo, agora sim, com uma elegância extrema.

Devereux poderia ter reclamado do procedimento dos iugoslavos - afinal o tal Art.XV do Tratado fala de pirataria, o que óbviamente não era o caso. Não há nenhuma justificativa possível para abordar um navio de guerra estrangeiro desta forma, em tempo de paz. Mas a confusão, o susto, a falta de familiaridade com o comando de um navio daquele porte, tudo

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levou Devereux a ficar quieto, ou como disse maldosamente uma revista semanal, "paralisado de pura incopetência".

Mas ainda há homens honestos e de moral no País: envergonhado com o incidente de sua última viagem como oficial de marinha, Devereux desembarcou em Trieste e literalmente desapareceu no espaço. Aliás Andreij, sendo também é um homem honesto, possivelmente deu a Devereux o preço justo de mercado por uma carga de material físsil, prontinho para fazer uma bomba.Se foi este o caso, obviamente.

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Quando voltei ao Cel. Ney, com o envelope amarelo todo lanhado pelo correio de Mar de Espanha, onde a correspondência fora ter, o coronel parecia bastante embaraçado. Pensei que fosse com o episódio naval da história. Não era:

"-A propósito, você sabe onde está Ladine? Annelise desapareceu há seis dias e Ladine, você compreende..."

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