a polícia moderna: degenerescência democrática e guerra civil · 4 foucault, michel. segurança,...
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Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.08,N.04,2017,p.2574-2598.AugustoJobimdoAmaraleLucaseSilvaBatistaPilauDOI:10.1590/2179-8966/2017/24717|ISSN:2179-8966
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A políciamoderna: degenerescênciademocrática e guerracivilThemodernpolice:democraticdegenerationandcivilwar
AugustoJobimdoAmaralPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:[email protected].
LucaseSilvaBatistaPilauPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail:[email protected].
Recebidoem21/07/2016eaceitoem10/01/2017.
Rev.DireitoPráx.,RiodeJaneiro,Vol.08,N.04,2017,p.2574-2598.AugustoJobimdoAmaraleLucaseSilvaBatistaPilauDOI:10.1590/2179-8966/2017/24717|ISSN:2179-8966
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Resumo
O presente texto pretende realizar uma abordagem da polícia interrogando-a como
instituição penalmoderna, focando principalmente nas análises realizadas porMichel
Foucault e Giorgio Agamben. Com isso, busca-se trazer novos horizontes acerca do
espectro da soberania na imagem da polícia, apontando ainda seu papel no âmbito
político-democráticoapartirdoparadigmadaguerracivil.
Palavras-chave:Polícia;soberania;guerracivil;democracia.
Abstract
The present text intends to analyze the police, questioning it as a modern penal
institution, throughauthors suchasMichelFoucaultandGiorgioAgamben. It seeks to
bring newhorizons inwhat comes to the spectrumof sovereignty that surrounds the
imageof police, alsopointingout the institution’s role in thepolitical anddemocratic
scopesincethecivilwarparadigm.
Keywords:Police;Sovereignty;Civilwar;Democracy.
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1.introdução
Foucault, é sabido, foi umpensadorqueproduziu em larga escala.Alémde inúmeros
livros,seuscursosnoCollègedeFrance(instituiçãoondeproferiuconferênciasde1970
atésuamorteem1984)jáforamtranscritosporex-alunoseespecialistas,perdendo-se
aquantidadedetraduçõesrealizadas1.Devidoàamplitudedesuasanálises,sãodiversas
as áreas do conhecimento que aproveitam suas obras: da psiquiatria à filosofia, do
direitoàeducação.Nessesentido,apenasdemaneiradidática,aproduçãodeFoucault
pode ser dividia em três grandes fases: arqueologia do saber, genealogia do poder e
ética. É na dita segunda fase que o presente investe sua ênfase, instante a partir da
décadade setentaemque Foucault, para a realizaçãode suas reflexões, buscoubase
especial também em Friederich Nietzsche (1844-1900), ambicionando desvelar as
relaçõesdepoderquecorrespondemàsproduçõesdesaber.
Sendo assim, por agora, importa demonstrar algumas análises realizadas pelo
autor sobre a polícia, desde logo adiantando que ela, em sua versão moderna, está
inscritanumanovagovernamentalidade.NoséculoXVIII,passaanãomaisvisarauma
mera regulamentação dos indivíduos, mas à repressão das possíveis desordens da
chamada população. Um mecanismo que funciona desde o desenvolvimento de um
biopoder ou de uma biopolítica, em que a vida das pessoas passa a fazer parte dos
cálculos estatais. Para potencializar a análise, busca-se, por um lado, trazer as
apreciações realizadas pelo pensador italiano Giorgio Agamben, o qual, de forma
bastantepeculiar,deuprosseguimentoaosrastrosdeixadosporMichelFoucaultesua
noção de biopolítica, aliando-a às teorias de Hannah Arendt,Walter Benjamin, entre
outros autores2; portanto, por outro viés, desde Jacques Derrida, pretende-se
compreender, numa visão radical, a atuação da polícia como extensão do poder
soberanodentrodomodelopolíticodemocrático.Ao final, lança-seoespectropolicial
emumanovavisãodojogopolíticocontemporâneoexpostaporFoucaulte,muitosanos
depois, aprofundada por Agamben, os quais evitarão deixar de fora das relações de
poderanoçãodeguerracivil,percebendoqueessa,aocontráriodeameaçaropoder,
1 Para uma noção geral, ver: CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. 1. ed. Belo Horizonte: AutênticaEditora,2014.2ParaumamelhorcompreensãodasanálisescontemporâneasrealizadasporGiorgioAgambenemtornodoestadodeexceção,ver:PONTEL,Evandro.Estadodeexceção:estudoemGiorgioAgamben.PassoFundo:IFIPE,2014.
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serveaele.GenealogiaexpostadesdeaGréciaAntiga,ondeesseelementoessencialdo
podereraconhecidocomostasis.
Diantedisso,otrabalhoédivididoemtrêsmomentos:numprimeiromomento,
tenta-se trazeraabordagemdeMichelFoucault sobrepolícia constanteemseucurso
Segurança, Território e População, no qual não só aponta o surgimento da instituição
policialnos séculosXVII eXVIII,masavançaparademonstrar suaoperacionalidadena
artedegovernarcomosmecanismosdesegurança.Após,problematiza-seaquestãoda
políciacontemporâneadesdeosrastrosdeixadosporWalterBenjamin,JacquesDerrida
eGiorgioAgambennoâmbitodademocracia.Noinstantefinal,asreflexõesdeFoucault
eAgambenretornamqualificadasatravésdaanálisesobreaguerracivil,ondeemerge
um novo olhar sobre a atuação da polícia, em especial, no tocante à necessidade de
profaná-la para que seus efeitos de despolitização sejam permanentemente
desestabilizados.
2.Onascimentodapolícia:ogolpedeestadopermanente
Foicomosurgimentodapopulação,comocategoriapolíticaapartirdoséculoXVIII,que
o poder soberano (que se pautava, preponderantemente, por mecanismos jurídico-
legais e disciplinadores sobre seus súditos) vai, aos poucos, cedendo lugar a uma
diferenteartedegovernar.Comaaberturadascidades(antesmuradas)eanecessidade
de circulação (de mercadorias e pessoas), mecanismos de segurança começam a ter
preponderância. Foucault demonstra que se antes as medidas tomadas pelo poder
soberanovisavamàmultiplicidadedeindivíduos–assimtomadosevistoscomosúditos
–,apartirdoséculoXVIII,énoníveldapopulaçãoqueasaçõeseconômico-políticasdo
governopassarãoasedar,vezqueapopulaçãosetornaofococentral.Osexemplosda
escassezalimentaredasepidemiastrazidosporFoucaultsãobastanteilustrativospara
demonstrar o giro de um poder engessado em medidas repressivas (leis, decretos,
ordens etc.) para um poder em que a dinâmica da sociedade (e principalmente da
população) passar a ser a base de todas as ações governamentais, pautadas em
mecanismosdesegurança.
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Aescassezalimentareravistacomoumflageloparaapopulação,comocrisedo
governooutambémcomomáfortuna–numavisãofilosóficadadesgraçapolíticaque
se dá na falta de alimentos3. Para tanto, o soberano dispunha de todo um aparato
jurídico e disciplinar para preveni-la: limitação de preços e do direito de estocagem,
limitação de exportação etc. Trata-se de um sistema de antiescassez da época
mercantilista,demodoquetodasessasproibiçõese impedimentosfariamcomqueos
cereais fossem colocados no mercado o mais depressa possível, evitando a fome
generalizada.Nota-sequeosoberanobuscava,apartirdeumacontecimentoeventual
(escassezalimentar) impordisciplinaemeios repressivosparaprevenirouatémesmo
extirpar esseacontecimento,oqual causava,deum lado, altospreços (devidoà farta
demanda)e,aocabo,oquemaistraziatemoraoreino:revoltadapopulação4.
No entanto, a partir do século XVIII, uma nova teoria econômica, derivada da
doutrinafisiocráticapassaacolocarcomoprincípiofundamentaldogovernoeconômico
o princípio da liberdade de comércio e de circulação dos cereais5. Para Foucault, é
instaladoumnovodispositivodesegurança,oqualirianamãocontráriadoolharparao
mercado interno, passando a ampliar a visão sobre as suas possibilidades de
estabilizaçãonas épocasde escassez alimentar: a economiapolítica6. Se antes apenas
vislumbrava-searelaçãoescassezalimentar-carestia,agorasevislumbrarátodaacadeia
deproduçãodoscereais (eascondiçõesclimáticas,qualidadedoterreno,abundância,
escassez, colocação no mercado, etc.) até o momento em que passa pelos seus
protagonistas(internoseexternos)echegaaosconsumidores,buscandoentendercomo
agememdeterminadacadasituação.7
Éissotudo,istoé,esseelementodecomportamentoplenamenteconcretodohomo oeconomicus, que deve ser levado igualmente em consideração.Emoutraspalavras,umaeconomia,ouumaanáliseeconômico-política,queintegre o momento da produção, que integre o mercado mundial e que
3FOUCAULT,Michel.Segurança,territórioepopulação:cursodadonoCollègedeFrance(1977-1978).SãoPaulo:MartinsFontes,2008,p.41.4FOUCAULT,Michel.Segurança,territórioepopulação,pp.42-43.5FOUCAULT,Michel.Segurança,territórioepopulação,p.44.6 Na impossibilidade de adentrar de formamais profunda no tema, torna-se necessário destacar que aeconomiapolítica,na formado liberalismoedoneoliberalismo,éparaFoucaulta formadesaberquedásuporteaessanovarazãogovernamental.Paramaisdetalhes,principalmentesobresuasnoçõeseobjetivosde autolimitação do governo, ver FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: EditoraMartinsFontes,2008,pp.19-24.7FOUCAULT,Michel.Segurança,territórioepopulação,p.44.
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integreenfimoscomportamentoseconômicosdapopulação,produtoreseconsumidores8.
Ainda,nessaoposiçãodisciplina/segurança,éinteressanteanalisarcomosedáa
normalizaçãosobreapopulaçãoemumeoutro,voltando-separaaquelarealizadapor
Foucault acercadasepidemias. Segundoele, adisciplinadecompõeoselementosque
sãosuficientespara,deumlado,serempercebidose,deoutro,modificados.Elaotimiza
as sequências e coordenações; omodo comoos gestos devem se encadear; comoos
soldados devem ser divididos pormanobras; comodistribuir as crianças escolarizadas
porhierarquiasedentrodeclassificações.Emsuma,demarcaonormaldoanormal,a
partir de um modelo ótimo que é construído em função de um certo resultado,
consistindo a normalização da disciplina em tornar as pessoas, os gestos, os atos,
conformeessemodelo,sendonormalaquelesquesãocapazesdeseconformarcoma
normaeanormalosquenãosão9.
Destaca-sequefoiemVigiarePunirqueMichelFoucaultaprofundou–poisem
obras anteriores já havia tocado no tema– o estudo do poder disciplinar, a partir de
uma “história das práticas punitivas”, percorrendo desde o suplício até os meios
modernosdeaprisionamentoecaminhosdadisciplina,osquais,segundoele,atravésda
pena,agirãosobreoindivíduoparamaximizarsuautilidadeeconômica10.
Diantedisso,Foucaultdemonstraque, seantes se tentava impedirasdoenças
impondorestrições–comoaprisionamentoeminstituiçõesmédicasouquarentenas–,a
partir do século XVIII, uma doença endêmico-epidêmica irá demonstrar que esses
procedimentosjánãosãomaisaplicáveis:avaríolaseráinoculadanopacienteafimde
provocar-lheseusefeitosnomundorealparaque, juntodeoutrascircunstâncias,eles
pudessem ser anulados. Não é difícil notar que a morfologia do mecanismo de
segurançaaplicadoàvaríolaéamesmadaescassezalimentar,vezquejánãosetenta
mais impedir sua ocorrência através de dispositivos jurídico-legais ou disciplinares
(atravésdedecretose leisemanadasdeumsoberano),masdeixaqueocorramcomo
dadosaseremprevenidose,nolimite,controlados.Deixa-sedeseveradoençacomo
algoreinantenasociedade–elementodeumaépoca,deumacidade,deumgrupo–e
8FOUCAULT,Michel.Segurança,territórioepopulação,p.53.9FOUCAULT,Michel.Segurança,territórioepopulação,p.75.10FOUCAULT,Michel.VigiarePunir:nascimentodaprisão.Petrópolis,RiodeJaneiro:Vozes,2009,p.118.
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passa-seavê-lacomofrutodeumcaso,algoindividualizadoedistribuídanapopulação
circunscritanotempoounoespaço11.
Esses exemplos servemparademonstrar a principal diferença entreos efeitos
capilarizadosdadisciplinaeasredescomqueosmecanismosdesegurançatrabalham.
Não obstante, são capazes também de demonstrar a função da polícia nesses dois
modelos. Ela vai diferenciando-se na medida em que a arte de governar – com
dispositivos de segurança – uma população vai ganhando preponderância. Se num
primeiro momento, séculos XV e XVI, a palavra polícia conotava três sentidos – as
comunidades que eram regidas por autoridades públicas, os atos emanados por
autoridades públicas e os regimentos associados àmaneira de governar – a partir do
século XVII o sentidomuda. A polícia passa a ser oesplendor do Estado, tendo como
função principal fazer crescer suas forças ao mesmo tempo que mantém a ordem
interna.
ApartirdoséculoXVII,vai-secomeçarachamarde“polícia”oconjuntodosmeiospelosquaisépossívelfazerasforçasdoEstadocrescerem,mantendoaomesmotempoaboaordemdesseEstado.Emoutraspalavras,apolíciavai ser o cálculo e a técnica que possibilitarão estabelecer uma relaçãomóvel,masapesardetudoestávelecontrolável,entreaordeminternadoEstadoeocrescimentodassuasforças12.
A polícia, então, passa a exercer amplas funções na arte de governar,
preocupando-secomosjovens,comocomércio,comacaridade,comasaúdepública,
comosbenseconstituindo-se,sobretudo,comoumafunçãoinerentedoEstado,junto
dajustiça,doexércitoedasfinanças13.Estabelece-secomoinstituiçãoqueagesobreo
corpo dos indivíduos para que as disposições do poder soberano e dos aparatos
disciplinaresemanadosàsociedadefuncionem:operadesdeosistemaantiescassezaté
a segregação de pessoas consideradas doentes, tendo como forma de aplicação da
disciplina(edocilizaçãodecorpos)omeioprisional.Oobjetivodapolícia,emsuma,será
o controle e a responsabilidade pelas atividades dos homens, já que essas atividades
poderiamconstituirumdiferencialnodesenvolvimentodasforçasdoEstado14.
11FOUCAULT,Michel.Segurança,territórioepopulação,pp.78-79.12FOUCAULT,Michel.Segurança,territórioepopulação,p.421.13FOUCAULT,Michel.Segurança,territórioepopulação,p.431.14FOUCAULT,Michel.Segurança,territórioepopulação,p.433.
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É interessantenotarqueapolícianãoéo soberanoagindoatravésda justiça,
massimdiretamentesobreseussúditos,atravésdedecretos,regulamentos,proibições
e instruções. Não se trata do prolongamento da justiça. Trata-se, sobremaneira, da
governamentalidade do soberano como soberano: um golpe de estado permanente,
agindoemnomeeemfunçãodeprincípioscomracionalidadeprópria,semsemoldar
oumodelarpelasregrasestabelecidaspelajustiça15.
Comoantecipado,apartirdas tesesdoseconomistasdo séculoXVII,umnovo
saber é introduzido (economia política) que passa a ver uma naturezamodificável na
população,nãohavendomaisnecessidadedequetudosejaregulado.16Aliberdade,que
vaidocomércioàscidades,passaaserintroduzidacomoelementoessencialparaaarte
degovernarancoradanosmecanismosdesegurança.Poróbvio,umaliberdadeartificial,
organizada, regulada e fabricada a cada instante17. Portanto, não se busca mais a
regulaçãodosindivíduos,masagestãodapopulação18.
Nessavirada,afunçãodapolícia,antesregulamentar,passaaseradeeliminar
as possibilidades de que se produzam certas desordens. O antigo projeto de polícia,
vinculadoà regulamentaçãodavida,desarticula-seea repressãodasdesordenspassa
sersuanovaemoderna função19.OqueeraobjetodapolícianoséculoXVII– fazeras
forças do Estado crescer respeitando a ordem geral – acaba por ser orientado pelos
mecanismosdaeconomiapolíticaedagestãodapopulação.Aocontráriodas funções
de incentivo-regulação, a instituição policial passa, no século XVIII, a ter uma função
negativa,tentandofazercomquesediminuaomáximopossíveldedesordens.
Assim,nota-seque,paraFoucault,osurgimentoeodesenvolvimentodapolícia
vinculada às tecnologias de governo estão diretamente atrelados às formas de saber
queconstituíamasociedade,sendobastantenotávelquequandoaeconomiapolítica,a
partir do século XVII, passa a ser preponderante na racionalidade das práticas de
governo,suasfunções,queanteseramamplaseestavamligadasàsnoçõesdecontrole
eregulamentaçãodasvidasqueconstituíameelevavamasforçasdoEstado,passama
ser de repressão e de mitigação de desordens, alterando inteiramente sua noção e
assumindoumsentidopuramentenegativo.
15FOUCAULT,Michel.Segurança,territórioepopulação,p.457.16FOUCAULT,Michel.Segurança,territórioepopulação,p.465.17FOUCAULT,Michel.Onascimentodabiopolítica,p.88.18FOUCAULT,Michel.Segurança,territórioepopulação,p.474.19FOUCAULT,Michel.Segurança,territórioepopulação,p.475.
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Essa entrada do liberalismo como racionalidade governamental, vai propor
MáximoSozzo,nãoproduziráumaaboliçãodaideiaousequerdapráticadapolícia.Na
verdade,pode-seidentificarcríticasàsformasqueapolíciaassumiuduranteosséculos
XVII e XVIII, buscando uma transformação liberal para uma nova polícia. A primeira
críticaidentificadaserelaciona,assim,comacaracterísticatotalitáriadapolícia,devido
àsuaintervençãoemdiversasáreasdasociedade,emespecialcomrespeitoàeconomia
esobreo indivíduocomo“sujeitode interesses” (privados,econômicos,comerciais...).
Ou seja, a figura da polícia está diretamente associada à uma ideia de governo
excessivo20.
Nesse sentido, e com a forte influência das obras de Adam Smith, a
prosperidadeeobem-estarsocialsãotidoscomoprodutosdeum“esforçonatural”de
cada indivíduo transformado em comerciante, desde um resultado dos interesses
privadosguiadospela“mãoinvisível”domercado.AoEstado,caberiaapenasgarantira
segurançainternaeexternaeproverosserviçosquenenhumindivíduoestáinteressado
emproporcionar.Pode-se identificar,nessemovimento,umabuscapela“minimização
dapolícia”21.
Umasegundacrítica liberal àvelhapolícia (dos séculosXVIIeXVIII) insisteem
seu caráter totalitário, mas agora não sobre os interesses dos sujeitos, mas sobre o
respeito aos seus direitos, quer dizer, como “sujeito de direitos”. Nesse sentido, a lei
cumprirápapelcentralnaconstruçãodoliberalismocomoracionalidadegovernamental,
surgindo aqui a distinção (e, ao mesmo tempo, oposição) entre Estado de polícia e
Estado de direito: os membros da sociedade civil devem viver como sujeitos
independentes ao serem titulares de uma série de direitos individuais, sendo iguais
entrealeielivresparaseguirseusprópriosinteresseseseautodesenvolver22.Poressa
visão, busca-se limitar o poder do soberano, devendo esse restringir-se a assegurar
igualdadeeliberdade,assimcomoosdireitosfundamentais.Olimitedasoberania,pois,
estariadadopela leiepelodireito,notando-seumafortetendênciado liberalismoem
submeter a esses as intervenções policiais, caracterizando uma “legalização da
polícia”23.
20SOZZO,Máximo.“Policía,gobiernoyracionalidad:exploracionesapartirdeMichelFoucault”.In:SOZZO,Máximo.Inseguridad,prevenciónypolicía.FLACSO:Equador,2008,p.247.21SOZZO,Máximo.“Policía,gobiernoyracionalidad:exploracionesapartirdeMichelFoucault”,pp.247-48.22SOZZO,Máximo.“Policía,gobiernoyracionalidad:exploracionesapartirdeMichelFoucault”,p.248.23SOZZO,Máximo.“Policía,gobiernoyracionalidad:exploracionesapartirdeMichelFoucault”,p.248.
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Embora Foucault e Sozzo analisem essas novas funções da polícia em épocas,
localidades e ordenamentos diferentes, considera-se ser uma pista do que seria sua
atuação durante os mais diversos regimes que se instalam a partir do século XVIII,
vendo-se serem potencializadas as funções de controle e repressão durante regimes
totalitários ou ditaduras enquanto que em contextos democráticos, torna-se
determinante, como fator de governabilidade de sistemas capitalistas no Ocidente, a
funçãosimplesepuramenterepressiva.
Por sua vez,Gabriel Anitua corrobora comessa visão.Odesenvolvimentodos
estados burgueses na Europa do século XVIII, principalmente na Inglaterra, pautou-se
pela burocratização dos segmentos estatais a partir de discursos disciplinares e
utilitários.SenoAnciénRégimeeracomumoaçoite,aforca,aguilhotina,enfim,apena
demorteeos suplícios, agorao sistemadeprodução instaladonecessitaráde corpos
paramanterasfábricasfuncionando.Eparaosexcluídoseexploradoscomasituação,
prisãoepolíciarespectivamente24.
Nãoénenhumanovidadequeaprisãoassumeumnovoprotagonismoapartir
darevoluçãoindustrial.Aoinvésdesimpleslocaldedepósitodepessoas,aprisãopassa
aserodispositivoreformadorqueimpunhaadisciplinanecessáriaparaqueoprogresso
moraldapessoafosseefetivado,dando-lheumautilidadenosistemacapitalistaliberal
nascente. Nesse sentido, a tentativa de criar um modelo eficiente de punição por
Jeremy Bentham, através do denominado panóptico, é sintomática25. Arquitetura
mistura-secomeconomiaparaaumentaropoderereduziroscustos–nadamaisafeito
à ode liberal: poder com baixos custos, já que o preso do panóptico acabaria por
introjetarovigilantecompoucoesforço.
Seantesaspuniçõesnãoconsistiamnaperdadaliberdade,éporquealiberdade
nãoeraconsideradaumvalorcujaprivaçãopudessesertomadacomoummal.Énesse
novomododeproduçãoque,segundoMassimoPavarini,aliberdadeadquireumvalor
econômico: quando as formas de riqueza social são reconhecidas no comum
denominador de trabalho humano medido em tempo (trabalho assalariado) foi
concebívelqueapenaprivasseoculpáveldeumaparceladesualiberdade,querdizer,
24 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução Sérgio Lamarão. Rio deJaneiro:Revan:InstitutoCariocadeCriminologia,2008,p.202.25 Para uma visão geral, ver: BENTHAM, Jeremy [et al.]. O Panóptico. Organização de Tomaz Tadeu.TraduçõesdeGuaciraLopesLouro,M.D.Magno,TomazTadeu.2ªed.BeloHorizonte:AutênticaEditora,2008.
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deumaparceladetrabalhoassalariado26.Masmaisdoqueisso,comojáexposto,esse
tempoqueoindivíduoestavaàdisposiçãoemumaprisão,eraomomentopropíciopara
exercitarsobreelesumpoderdisciplinar,ouseja,umapráticapedagógicadeeducação
voltadaàsnecessidadesdoprocessoprodutivo27.
No liberalismoeconômico, tantoaacumulaçãoderiquezaquantoademiséria
passamafigurarcomofatossociaisnaturais,diretamenteligadosaumanovafontede
saber (revestidode cientificidade)queultrapassava inclusiveoantigo igualitarismodo
pacto social: o positivismo28. Era necessário reprimir o proletariado quando cada vez
restava exposto o nervo desigual desse novo sistema, vez que esses se mostravam
adversários irredutíveis e prejudicavam a certeza burguesa ao portar uma esperança
inadmissível:arevoluçãoparaumasociedadesemclasses29.
Essa linhapositivistafoirepresentada, jánoséculoXIX,pordiversosautores,e
jamaispoderiaserreduzidaaumpaísougrupodeintelectuais.Tratava-sedeummodo
de pensar transversal que inundava a Europa como um todo representado pelo que
mais privilegiado havia na sua intelligentsia. Entre eles, naturalmente, ficaram para a
históriaCesareLombroso(1935–1909),EnricoFerri(1856–1929)eRaffaeleGarofalo
(1852–1934).Asideiasdessespensadores,advindasdeumaépocaemqueaverdade
estava sendo paulatinamente atestada pelo cientificismo, foram diretamente
influenciadas por Herbert Spencer (1820 – 1903) e seu evolucionismo social, sem
olvidar, a rigor, no spencerismo biológico de Charles Darwin (1809 – 1882) com sua
seleçãonatural30.Asanálisesdessestrêsautores,semumauniformidade,estavam,em
parte, direcionadas para aspectos biológicos do delinquente, apontando para uma
antropologia criminal, e em parte para aspectos ambientais que consideravam
trabalharem como gatilhos das características propriamente biológicas31. Essa
explicaçãodocrimereduziadeterminadaspessoasàcondiçãodeatávicos–ouseja,com
umdesenvolvimentobiológico interrompido– tornando-os vulneráveis a todo tipode
26 PAVARINI, Massimo. Control y dominación: teorías criminológicas burguesas y proyecto hegemónico.EpílogodeRobertoBergalli.SigloVeintiunoEditores:Madrid,1996,p.36.27PAVARINI,Massimo.Controlydominación,p.37.28PAVARINI,Massimo.Controlydominación,p.41.29PAVARINI,Massimo.Controlydominación,pp.41-42.30ZAFFARONI,EugenioRaúl.Lapalabrade losmuertos:Conferenciasdecriminologíacautelar–1ªed.1ªreimp.–BuenosAires:Ediar,2011,pp.88-89.31Conferir,inicialmente,ainteressanteanálisefeitaem:MOLINÉ,JoséCid;LARRAURI,ElenaPijoan.TeoríasCriminológicas: explicación y prevención de la delincuencia. Barcelona: Editorial Bosch, 2001.PrincipalmentenocapítuloIII,emqueosautorestratamdasteoriasbiológicas.
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açãopreventivaourepressivadoEstadoeconcretizandoadesigualdadedoliberalismo
econômico através de uma teoria tida como científica – e que pauta, também, o
nascimentodaciênciacriminológica.
Amedicinaveiosalvaroparadoxoentreasuposiçãodeumcontratosocialprodutor de indivíduos como pactantes livres e iguais, e o fato de que oEstado,eoscapitalistasprivados,usasseaviolênciacontraalguns,aquelesfora, na realidade, do contrato e que, portanto, não seriam tão iguais. Amedicina individual, e dentro dela, particularmente a psiquiatria alienista,unida àmedicina social ou higienismo,mostrariam quemesmo quando osujeito humano tem uma base física e temperamental imodificável, épossível fazer algo em relação a determinados sujeitos portadores deanomalias ou imperfeições, para o bem deles mesmos e de todos.Igualmente, e demaneira diretamente relacionada com amodificação doindivíduo,ocarátereomeiosocialtambémpodiamsermudados.Eésobreestesdoisobjetivosqueatuariaapolíticaguiadaporcritériosmédicos,como concurso da principal instituição de confinamento do momento: omanicômioeoasilo32.
Nessesentido,apolícianascecomo intuitodereprimiraspossíveis revoltase
greves do proletariado urbano firmado nesse germe capitalista. Os comerciantes e
industriais são intolerantes quanto aos ilegalismos antes permitidos. Ao invés de
simplesmente punir, passou-se na Europa em pensar na prevenção dos delitos como
formadeagirmaiseficazcomumcorpopolicialburocratizado–assimcomodeagentes
penitenciários – prontos a cumprir essa função.33 É possível perceber claramente que
essaprevençãoestavadiretamenteligadaàproteçãodapropriedadeprivada,comercial
eindustrial34.
No entanto, se amedicina passava a figurar como saber sem poder, a polícia
configurava-secomoumpodersemsaber35.Auniãodessesdoisvetoresproporcionará,
noséculoXIX,oqueFoucaultviriaachamardeagrandeinternação,oqualserealizava
emmanicômioseasiloseseoperacionalizavacomoum“problemadepolícia”36.Cabia
aosmédicosdizeremquemeraperigosoounãoeàpolícia,mesmosemaocorrênciade
um delito comprovado, tomar as medidas de repressão37. Uma verdadeira lógica
32 ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução Sérgio Lamarão. Rio deJaneiro:Revan:InstitutoCariocadeCriminologia,2008,p.237.33ANITUA,GabrielIgnacio.Históriasdospensamentoscriminológicos,p.215.34ANITUA,GabrielIgnacio.Históriasdospensamentoscriminológicos,p.216.35ZAFFARONI,EugenioRaúl.Lapalabradelosmuertos:Conferenciasdecriminologíacautelar,p.95.36FOUCAULT,Michel.HistóriadaloucuranaIdadeClássica.SãoPaulo:Perspectiva,2012,p.72.37ANITUA,GabrielIgnacio.Históriasdospensamentoscriminológicos,p.210.
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higienista. Mais tarde, mais ou menos dois séculos depois, a conhecida lógica de
higienizaçãosocialdascidadesdaquelaépoca–queseutilizavadeumadigeríveltécnica
de neutralização a respeito dos tidos como anormais e biologicamente inferiores –
levaria a um dos maiores massacres do século XX, realizado nos campos de
concentraçãoalemãese,nãoporcoincidência,levadoacaboporforçaspoliciais.
3.Omaldepolícia:aradicalidadeexposta38
Alguma lição deve emergir desencadeada pelo cenário atual de (auto)compreensão
social, diretamente percebida entorno do ponto indicado pela entrada definitiva da
soberania na imagem da polícia. Justamente, namedida em que opoder soberano é
aquelequepreservaodireitodeagireimporsoberanamente(até)amorteaoscidadãos
a cada momento, definindo-os como vida nua (“porque eu quis!” poderá sempre
proclamar algum impávido agente da ordem...), ao contrário de algum senso comum
quepodenapolíciaverapenasafunçãoadministrativadeexecuçãododireito(primado
sobopontodevistainternoquepodeserretratadonaorgânicaafirmaçãodahierarquia
edocumprimentodeordens),nãoé temerárioarriscarqueestejaaío localdemaior
clarezaeproximidadedatrocaconstitutivaentreviolênciaedireito–precisamenteaía
imagemsoberana.Vezmais:énomovediço terrenodacontiguidadeentreviolênciae
direito que a polícia se apresenta. Se o soberano é, de fato, vez mais aquele que,
proclamandooestadodeexceçãoesuspendendoavalidadedalei,assinalaopontode
indistinção entre violência e direito, propriamente é a polícia que se move desde o
próprioestadodeexceção39.
GiorgioAgamben40,comsuaintensagenealogiasobreoconceitodesegurança,
naesteirafoucaultiana,alertaquetalcampo–alémdeconvocaratodos“porrazõesde
segurança” a abrir mão daquilo que em qualquer outra circunstância não teríamos
38Paraumavisãomaisamplae relacionadaàumacriminologia radical, ver:AMARAL,Augusto Jobimdo.“Maldepolícia”–Àpropósitodeumacriminologiaradical.RevistaBrasileiradeCiênciasCriminais,ano22,vol.111,nov-dez/2014.39AGAMBEN,Giorgio.Homosacer:opodersoberanoeavidanua.BeloHorizonte:EditoraUFMG,2002,pp.23-36.40AGAMBEN,Giorgio.“PorumaTeoriadoPoderDestituinte”,(11.02.2014),5dias.netweb.Disponívelem:[http://5dias.wordpress.com/2014/02/11/por-uma-teoria-do-poder-destituinte-de-giorgio-agamben].Acessoem:14.07.2016.
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motivos para aceitar, nos dizeres de Hannah Arendt41 – é diretamente hoje
representação de uma tecnologia permanente de governo. Este arrepiante e ficcional
estado,noqual convergemas razões securitárias, faz identificar anormalidade coma
criseequalquer instantededecisão,quenãosejaadaperpétuaexceção,desaparece.
Importa destacar que foi na revolução francesa que o conceito de segurança (sureté)
ligou-seinexoravelmenteaodapolícia,momentoemqueadefiniçãodeambasseforjou
mutuamente.
A cada tempo,exibem-sepor armas (cinicamentenão letais,masapenaspara
certaclientela)umpoderaomesmotempoamorfoemetódico,espectraleviolentoque
se realizanacriminalizaçãodo inimigo–primeiroexcluídodequalquerhumanidadee
depois aniquilado por alguma “operação de polícia”. Entretanto, deve-se alertar a
qualquergovernante impávidodiantedodeslizamentodasoberaniaàsáreasobscuras
dapolícia–nãoraroainda, investidorassíduodasbateriascriminalizadorasdooutro–
para não esquecer que a virtualidade de tal imagem também poderá concretizar-se
sobresi.Éacriminalizaçãodoadversárioqueserendenecessárianocoroláriosoberano.
Nãoháespaçoaíparaengano,poisquemquerquevistaotristemantodasoberania42,
no fundo sabe poder um dia ser tratado como criminoso – mostrando, afinal, a sua
originalpromiscuidadecomele.
Seéda impossibilidadedenarrarAuschwitz comocatástrofeprototípica43que
deveseextrairaexpressãomaisagudadeumamatrizracional44,éporque,emtermos
genocidas,nãopodemosesquecerjamaisquetalforarealizadaporforçasdepolícia.A
“solução final”, deste ponto de vista, nunca deixou de ser, a sua vez, além da uma
decisãohistórico-política estampadanaConferência deWannsee em janeiro de 1942,
comoasseveraDerrida,uma“decisãodepolícia,depolíciaciviledepolíciamilitar,sem
que se possa jamais discernir entre as duas”45. Genocídios são e continuarão a ser
concatenados institucional,burocráticoe juridicamenteviasistemapenale,paraalém
41 ARENDT,Hannah. Eichmman em Jerusalém. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Cia das Letras,1999,p.314.42 AGAMBEN, Giorgio. “Polizia sovrana”.Mezzi senza fine: Note sulla política. Torino: Bollati Boringhieri,1996,p.86.43 SOUZA, Ricardo Timm de. Justiça em seus termos – Dignidade humana, dignidade domundo. Rio deJaneiro:LumenJuris,2010,pp.07-08.44BAUMAN,Zigmunt.Modernidadeeholocausto. TraduçãoMarcusPenchel.Riode Janeiro: JorgeZahar,1998,p.37.45DERRIDA,Jacques.“ForcedeLoi:“FondementeMystiquedel’Autorité”.CardozoLawReview,vol.11.n.5-6.P.919-1045.TranslatedbyMaryQuaintance.NewYork.July-aug.1990,p.1041.
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dele,pordispositivoslegaisdeumarazãojurídico-estatal,sobretudotransbordando-ae
organizados como força de polícia-força de lei. Como extrema consequência de uma
lógicadonazismo,estaradicalizaçãodomalestáligadatambémaumafatalcorrupção
da democracia parlamentar e representativa por parte de uma polícia moderna
convertida em legisladora e cuja espectralidade acaba por governar a totalidade do
espaçopolítico46.
Nadaàtoaumdosmaisradicaistextossobreacrisedomodelodedemocracia
burguesa, liberal e parlamentar deposite um de seus nós górdios sobre a figura da
polícia.SerádesdeafirmadeWalterBenjaminaconduçãoaumpatamarinédito–sob
sua “filosofia da história” principalmente através do clássico “Crítica da Violência –
Crítica do Poder” (Zur Kritik der Gewalt) – do conceito de violência indissociável do
direito47:sobreointeressedomonopóliodaviolênciapelodireitoquerepousaaprópria
tautologiafundadoradalei–odireitoprotegeasiatravésdestaperformance48.Neste
traço,desconstruir apolícia comDerridaeBenjaminpassapordestacarumaviolência
fundadora (die rechtsetzende Gewalt), que institui e estabelece o direito, e uma
violência que conserva (die reschtserhaltende Gewalt), mantém e confirma o direito.
Permite-sevislumbrar,assim,alémdofatodequeaviolêncianãoéexterioraordemdo
direito,masvemdelee,aomesmotempo,oameaça,a insuperávelproposiçãodeum
momento(nãodeoposição!)emqueambassetocamnumaespéciede“contaminação
diferensial” – algo como que um instante de “iterabilidade” (iterabilité), de posição e
conservação do direito que não se poderá nunca romper. Em suma, a violência que
fundaimplicaaviolênciadaconservaçãododireito.Aquiloqueocoloca(põe)jánoseu
âmagomaisprofundosuspende-o(depõe).
Tocamos inelutavelmenteocernedaquestãosemsubterfúgios.Aanomaliada
juridicidadeinscreve-seruidosamente,“poisopodermantenedordodireitoéumpoder
ameaçador”49.Ameaçaaoedodireitodesdeseuinterior,nãoessencialmenteumaforça
bruta pronta a atingir certo fim, entretanto, contraditoriamente, uma autoridade que
consiste em ameaçar ou destruir uma ordem de direito dada, precisamente é aquela
46DERRIDA,Jacques.“ForcedeLoi:“FondementeMystiquedel’Autorité”,p.1041.47 BENJAMIN,Walter. “Crítica da Violência – Crítica do Poder”. Documentos de Cultura, Documentos deBarbárie (escritosescolhidos).SeleçãoeapresentaçãodeWilliBolle.TraduçãodeCelestedeSousaet.al.SãoPaulo:Cultrix/USP,1986,pp.160-175.48BENJAMIN,Walter.“CríticadaViolência–CríticadoPoder”,p.162.49BENJAMIN,Walter.“CríticadaViolência–CríticadoPoder”,p.165.
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mesma que concede ao direito esse direito à violência. Ameaça do direito: em si
ameaçadoreameaçado,destinoquevemdeleeaeleameaça50.Seaorigemdodireito,
pois, é uma posição violenta, este instante se manifesta de maneira mais pura ali
exatamenteondeémaisabsoluto,soboadágiodadecisãosobreavidaeamorte–tal
comosepropõenapossibilidadedaprópriapenademorte(afinal,de/odireito,pode-se
não falar da pena demorte? Aboli-la e desautorizá-la é tocar no princípiomesmo do
direito, não de outra forma, é também sumariamente confirmar o coração podre,
arruinadoecarcomidododireito)51.
Todavia, não será este índice apenas o único a manifestar o princípio
benjaminianodequehá“umelementodepodridãodentrododireito”(etwasMorsches
im Recht)52. Para que se leve minimamente a termo uma radical crítica à violência,
fundadora e conservadora do direito, não se deve perder tal momento de decisão
excepcional, alucinante e espectral aomesmo tempo, que borra a distinção entre as
duas violências53, contaminação necessariamente testemunhada precisamente pela
modernainstituiçãodapolícia–(sempreprontaalembrarmo-nos,arigor,desermeio
dapossibilidadedapenademorte)54.Oconceitodeviolência,aoperpassarodireito,a
políticaouamoral,depõesobretodasasformasdeautorização,eencontraespaçode
misturaespectral55.Defato,pois,violênciaquefundaeviolênciaqueconservaodireito
–comoseumaviolênciaobsessivamenteconvocasseaoutranafigurapolicial.Investida,
diga-se logo, muito para além dos seus agentes (uniformizados ou não) sob uma
estrutura(civilounão)demodelomilitar,nãosomentenasrepresentaçõesinstituídas,
“a polícia não é só polícia”, mas constitui-se como “índice de uma violência
fantasmática”, ou seja,possibilidadepereneque coloniza coextensivamente a política,
excede e a transborda: “a polícia está presente ou está representada ali onde haja a
forçadelei”56.
50DERRIDA,Jacques.“ForcedeLoi:“FondementeMystiquedel’Autorité”,p.1002.51 DERRIDA, Jacques. Séminaire La peine de mort. Volume I (1999-2000). Édition établie par GeoffreyBennington,Marc Crépon et Thomas Dutoit. Paris: Galiléé, 2012, pp. 49-50. Sucintamente em DERRIDA,Jacques;ROUDINESCO,Elisabeth.Dequeamanhã...Diálogo.TraduçãoAndréTelles.Riode Janeiro: JorgeZaharEd.,2004,p.166-198.52BENJAMIN,Walter.“CríticadaViolência–CríticadoPoder”,p.166.53DERRIDA,Jacques.“ForcedeLoi:“FondementeMystiquedel’Autorité”,pp.1000e1002.54DERRIDA,Jacques.“ForcedeLoi:“FondementeMystiquedel’Autorité”,p.1012.55BENJAMIN,Walter.“CríticadaViolência–CríticadoPoder”,p.166.56DERRIDA,Jacques.“ForcedeLoi:“FondementeMystiquedel’Autorité”,pp.1008-1010.
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Quandosedebateopapeleafunçãocentralexercidapelaforçapolicial,oque
não se pode perder de vista, a rigor, é que seu exercício deve ser indefinível e assim
permanecer – por mais que haja esforços bem intencionados para a assunção de
protocolos (inter)nacionais de conduta policial. E não se está de qualquer forma
defendendoqueaatuaçãopolicialdevasedaralheiaaoslimitesfundamentadosemlei.
Apenasestá-seadestacara fragilidadedestaconcepção,oumaispropriamenteoque
este investimento ingênuo supõe oumesmo pode ignorar. O que se está a ressaltar,
portanto, é que, se fosse diferente, se o poder policial de atuação pudesse ser
claramente delineado (próximo à conformação menos plástica do poder judicial), tal
condiçãoofariadesaparecer.
É sob esse elemento indecidível de razão securitária, quer dizer, um “buraco
negro”, nas palavras de Agamben57, que atualmente somos lançados. Tendo como
objeto o “bom uso” das forças do Estado, a polícia como precário instrumento do
esplendor de uma arte estatal (mais afeita aos regulamentos do que às leis) – desde
suas raízes modernas, no século XVIII, quando do surgimento de uma “ciência da
polícia”(Polizeiwissenschaft)–oquesempreesteveemjogofoiuma“artedegovernar”,
um exercício que se identifica com a totalidade do governo. O que isto quer dizer?
Precisamente que aquilo que o dispositivo policial apresenta hoje, ademais de ser a
governabilidadediretadosoberanoexercidatalcomoogolpedeestadopermanente,é
escancarar a sua própria coincidência com a política: a colonização perpétua de uma
“polizeipolitique”!Seademocraciadevesepreocuparcomumavidapolítica,eoEstado
moderno, de alguma forma, abandona a política a esta “terra de ninguém”58, neste
buraco negro incestuoso da relação promíscua do Estado consigo mesmo, podemos
designaroestadoemquevivemoscomodemocrático,quiçácomopolítico?
Tal exceção decreta uma zona de indiferença, onde a vida do indivíduo é
colocada à disposição de um poder sem limites. Assim surge a figura dohomo sacer,
figura do direito romano arcaico, em que a vida é colocada à disposição da esfera
soberana, tornando-sematável e, aomesmo tempo, insacrificável – podematar sem
cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício59. Uma vida nua, politicamente
57AGAMBEN,Giorgio.“PorumaTeoriadoPoderDestituinte”.58AGAMBEN,Giorgio.Estadodeexceção.TraduçãodeIraciD.Poleti–2.ed.–SãoPaulo:Boitempo,2004,p.12.59AGAMBEN,Giorgio.Homosacer:opodersoberanoeavidanua,p.91.
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desqualificada, eque,por vezes, nãoédignade ser vivida60.Maisdoque isso, valeo
alerta(afimdeevitarleiturasequivocadas)dequeessavidanuanãoestáàmargemdo
direito,comoumdefeitoconsertável,bastandolevá-loatéela,mastaléconsequência
doprópriodireito61.
Um“maldepolícia”,seéquetalsepodedizer,nãoéapreensívelsenãodesde
esteassombro,presença(i)legíveldeumpoderamorfo,aomesmotempo,umaaparição
onipresentesemnenhumaessência.Por ser intrinsicamenteumaaçãoalavancadapor
umaviolênciasemescrúpulos(namonarquia,aomenos,vê-seestaautoridadeaícomo
normal), a violência policial como espírito na democracia se degenera. Por que então
nãoassumirquea“degenerescênciadopoderdemocráticonãoteriaoutronomesenão
polícia”62? Diretamente: porque em democracia não se deve(ria) conceber – porque
ilegítimo–talespíritodaviolênciadapolícia.Aofinal,oqueseconstatatambéméquea
democracia, pela violência policial, nega seu próprio princípio, imiscuindo-se num
deplorávelespetáculohipócritadecompromissodemocrático.
4.Políciaeaguerracivilcomoparadigmapolítico
Colocada a degenerescência do panorama democrático, sob os auspícios de uma
perpétua exceção, ao contrário do que se poderia deduzir, faz-se claro que a polícia
contemporâneanãoestáa serviçodealgumparadigmadecontrato social,derivado–
comsuaspeculiaridadespróprias–dospensamentosdeThomasHobbes,Jean-Jacques
RousseauouJohnLocke.Guardadaasdiferençasentreospensadores,sobestaégide,o
contratualismogarantiriaigualdadeentreaquelesquedoamsualiberdadeaosoberano
paraqueaguerrade todoscontra todoscessasseeumpodercentral fosse instalado.
No Leviatã, de Thomas Hobbes, encontram-se aproximações emblemáticas as quais
tornam-se essenciais serem enfrentadas, principalmente frente ao cenário
contemporâneo: as noções de guerra civil e de guerra de todos contra todos. Nesta
senda,voltaràguerradetodoscontratodosseriaregressaraofantasiosoemetafórico
60Idem,p.146.61 PEREIRA, Gustavo Oliveira de Lima. Vida nua e estado de exceção permanente: a rearticulação dabiopolítica em tempos de império e tecnocapitalismo. Revista Sistema Penal & Violência. Porto Alegre,volume06,número02,p.215-231,jul/dez.2014,p.220.62DERRIDA,Jacques.“ForcedeLoi:“FondementeMystiquedel’Autorité”,p.1012.
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estado de natureza, onde as pessoas ainda não haviam se tornado súditos, pois não
firmado um pacto social que concederia poder de governo ao soberano. No entanto,
algumas peculiaridades da noção da guerra permanente entre todos não podem ser
atribuídasàguerracivil.
A seu turno, Foucault vai criticar de forma contundente essa aproximação.
Primeiro, porque um primeiro elemento de uma guerra de todos contra todos supõe
que os homens são iguais nos objetos e nos objetivos que visam, assim como
equivalentesnosmeiosquetemparaobteroquebuscam,demodoqueasubstituição
deumhomempelooutroéfacilitadapelodesejoemcomum,criandoumadesconfiança
(poiscadaumsaberiaqueoutropodeviresubstituí-lo).Todaaapropriaçãodegozoou
posse torna-seprecária, criandouma rivalidadepermanente63.Diantedisso, e aqui se
encontrariaumasegundadimensãodaguerradetodoscontratodosparaFoucault,só
háummeiodecalaradesconfiançageradaedeterarivalidadeperpétuacriada:vencer
os outros como acúmulodepoder, ou seja, sair da igualdadeesquemática delineada
entreoshomens,querdizer,“aumentodepodercujoefeitoesperadoéprecisamenteo
denãoprocuraremmaissubstituí-loedeelepodergozartranquilamenteoquetem,ou
seja,deserrespeitado”64.
Estabelecidoumpodercentral, instala-seoqueHobbeschamavadeglória65(o
quenãosedistanciamuitodoesplendoraqueapolíciaestavadestinadaagarantir):a
capacidade de impor respeito aos que pretendiam substituir-lhe através de signos
exteriores.Acondiçãodeguerra,de forma inescapável,era frutodaspaixõesnaturais
dos homens, vai trazer Hobbes66. Assim, depreende-se que em Hobbes somente a
ordemcivil,comoaparecimentodeumsoberano,vaipôrfimàguerradetodoscontra
todos.Somentecomatransferênciadopoderaosoberanoéqueessaguerrateráfim.
Nomesmosentido,seessepoderseatenuaesedissipa,aospoucossevoltaaoestado
63 FOUCAULT,Michel. A sociedade punitiva: curso no Collège de France (1972-1973). Tradução Ivone C.Benedetti.SãoPaulo:EditoraWMFMartinsFontes,2015,p.25.64FOUCAULT,Michel.Asociedadepunitiva,p.26.65 Sobre a questão da glória estatal vinculada à uma noção teológica, numa visão Agambeniana,interessanteparalinhasgeraisé:RUIZ,CastorM.M.Bartolomé.GiorgioAgamben,liturgia(e)política:porqueopodernecessitadaGlória?In:RevistaBrasileiradeEstudosPolíticos,BeloHorizonte,n.108,pp.185-213,jan/jun.2014.66HOBBES,Thomas.Leviatán:Lamateria,formaypoderdeunEstadoeclesiásticoycivil.AlianzaEditorial:Madrid,1992.
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de guerra permanente, estando cada indivíduo livre para proceder conforme seu
discernimento67.
Assim,fazendoumaleituradaobradeHobbes,nota-sequeaguerracivilseriao
estadoterminaldadissoluçãodopodersoberano,mastambémseriaoestadoiniciala
partirdoqualo soberanopoderia seconstituir.Epor issomesmoFoucaultvaipropor
novostermosparasepensaraguerracivil,longeenadireçãoopostadaideiadeguerra
detodoscontratodos.Primeiro,porquesegundoFoucaultaguerracivilnãosedariano
nível da individualidade, mas sim entre elementos coletivos (famílias, etnias,
comunidades linguísticas, classes, etc.), de modo que “os atores da guerra civil são
sempregruposnaqualidadedegrupos”68.Alémdisso,senopensamentohobbesianoa
guerra civil tinha lugar deslocado de qualquer forma de poder – antes ou depois da
constituiçãodeumpodercentralexercidoporumsoberano–Foucaultvaiencararesse
paradigmadiretamente:elepercorre,desloca-se,movimenta-seeseexercedentrodas
própriasrelaçõesdepoder.
Aguerracivilnãoéumaespéciedeantítesedopoder,aquiloqueexistiriaantes dele ou reapareceria depois dele. Ela não está numa relação deexclusãocomopoder.Aguerracivildesenrola-senoteatrodopoder.Nãoháguerracivil anãosernoelementodopoderpolíticoconstituído;ela sedesenrola para manter ou para conquistar o poder, para confiscá-lo outransformá-lo. Ela não é o que ignora ou destrói pura e simplesmente opoder,massempreseapoiaemelementosdopoder69.
Portanto,Foucaultfogeaolugar-comumondesepensaseraguerracivilexterna
ao poder estabelecido – e de seus instrumentos de exercício – mas ao contrário a
observacomoaquiloqueassombraopoder,habitando-o,permeando-o, investindo-o,
animando-o integralmente, “na forma da vigilância, da ameaça, da posse da força
armada, enfim, de todos os instrumentos de coerção que o poder efetivamente
estabelecidoadotaparaexercer-se”70,deformaqueoimportante“paraumaanáliseda
penalidadeéverqueopodernãoéoquesuprimeaguerracivil,masoqueatravaelhe
dácontinuidade”71.
67FOUCAULT,Michel.Asociedadepunitiva,p.26.68FOUCAULT,Michel.Asociedadepunitiva,p.26.69FOUCAULT,Michel.Asociedadepunitiva,p.28.70FOUCAULT,Michel.Asociedadepunitiva,p.30.71FOUCAULT,Michel.Asociedadepunitiva,p.31.
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Introduzir a noção de guerra civil como algo interno às relações de poder,
conformepropõeFoucault,tenderiaainverteromodoconsensualcomoasociedadeé
vista,mormenteno tocanteaosaber jurídico-penal.Querdizer, senosúltimosanoso
debatepriorizouapenaspensaraguerracomoelementoexterno–comoasdeclaradas
aoutrospaíses–éporquehaviaalgumatendênciaporpartedequemdetémopoder,
sejaglobalouinternamente,emnãodemonstraroconflitodescarado(quesedesenrola
através da violência que conserva e ao mesmo tempo produz o direito) criado pelas
formas de (re)pressão. Com este afinco, é necessário profanar, como aconselha
Agamben72,osistemapenal (emaisespecificamenteoespectropolicial)apartirdessa
novafigura.
Parapensardemodomaisprofundoaindaaquestão,GiorgioAgambeninveste
nareflexãoapartirdafiguradastasis,nomedadoàguerracivilnaGréciaAntiga.Emum
primeiroplano,tentalocalizaresseelementodentrodaoikos(casa,governodafamília,
gestão dos indivíduos e bens da família), como a guerra que se estabelece entre o
parentesco consanguíneo e onde as vidas são marcadas pela zoé73. Num segundo
momento, traz a polis, local privilegiadamente político onde a bíos (vida qualificada
politicamente)sedesenrola.Noentanto,énumazonadeindiferença,então,próximoa
umestadodeexceção,queastasis(ouguerracivil)iráselocalizar74.
Dessaforma,aguerracivilnapolíticacontemporâneaocidental,assimcomona
GréciaAntiga,vai funcionarno limiarentreapolitizaçãoeadespolitização,atravésda
qualaoikosvaiseexcedernacidade.Eacidade,naviacontrária,vaireduziroscidadãos
àfamília.UmexemplotrazidoéaLeideSolone,aqualpuniacomaatimia(retornoao
larpaternoecassaçãodosdireitospolíticos)aqueleque,ocorridaumaguerracivil,não
combatiamporqualquerumdoslados,expulsando-o,portanto,dapoliseconfinando-o
noâmbitoprivadodaoikos75.Assim,nota-sehaverumapolarizaçãodeumcampode
força emque figuramnas extremidadesoikos epolis enquanto no epicentro a stasis.
Noutros termos,aguerracivil (como jádemonstradoporFoucault)partedas relações
72AGAMBEN,Giorgio.Profanações.TraduçãoeapresentaçãodeSelvinoJoséAssman.SãoPaulo:Boitempo,2007,p.65.73SegundoAgamben,zoéexprimeosimplesfatodevivercomumatodososseresvivos(vidahumanapuraesimples)enquantoqueabíos,éumamaneiraprópriadeviverdedeterminadogrupo,istoé,umaformaqualificadadeseviver(AGAMBEN,Giorgio.Homosacer:opodersoberanoeavidanua,p.09).74AGAMBEN,Giorgio.Stasis:aguerracivilecomeparadigmapolitico.Homosacer,II,2.BollatiBoringhieri:Torino,2015,p.24.75AGAMBEN,Giorgio.Stasis:aguerracivilecomeparadigmapolitico,p.25.
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depodere tomaoespaço relativoapolitizaroudespolitizaroscidadãos.Seguindoas
pistas de Agamben, o terrorismo talvez seria a forma contemporâneamais visível de
umaguerracivilanívelglobal,jáqueavidaéposta,atravésdaexposiçãoàmorte(como
vidanuaqueé),no jogodapolítica.Enãoesqueçamosqueoaparatopersecutórioàs
ameaçasglobaisjamaisdispensarãoopoderpunitivoesuamáquinagenocida.
Diantedisso,apolíciacomodegenerescênciadopanoramapolítico-democrático
se locomoverá nessa zona de indistinção em que se localiza a stasis – ou estado de
exceção–(re)produzindopolitizaçãoatravésdainclusãodedeterminadosindivíduosnas
cidades e despolitização namedida da repressão de outros. Se umdia sua função foi
maisamplaelogoapósreduzidaàrepressãodedesordens,demodoaserincluídanos
contextos democráticos como a representação do soberano, é na stasis que a polícia
encontraseulugarpropriamentemoderno.
Em suma, as forças policiais de um Estado nada mais são que a estampa do
poder soberano, pronta a reatualizar a guerra civil dentro das relações de forças
existentes na sociedade, atuando diretamente sobre os indivíduos. Espelho de uma
microfísica que impele à politização de um lado (ou seja, a uma vida qualificada) e à
despolitizaçãodeoutro(retornandoaooikoscomoqualqueroutroservivo),fazendoda
democraciaumjogopolíticoemquevidasnuassãomeraspeçasdeumtabuleiroonde
se joga contra um autômato programado para ganhar sempre. O desafio, portanto,
coloca-senãomaisemapontarotítere(referênciaexpressaàpolícia)etentarreformá-
loparaquesecomportedemododiverso,afinaloautômatoserá“capazderesponder
(...)a cada lancedo seuadversárioedeassegurara vitórianapartida”.Desligar seus
mecanismos passa primeiramente por apontar o “anão corcunda” [a exceção como
regra]queocultou-seaí”76–enquantoaindahátempo.
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SobreosautoresAugustoJobimdoAmaral
Doutor em Altos Estudos Contemporâneos (Ciência Política, História das Ideias e EstudosInternacionais Comparativos) pela Universidade de Coimbra. Doutor,Mestre e Especialista emCiênciasCriminaispelaPontifíciaUniversidadeCatólicadoRioGrandedoSul(PUCRS).ProfessordoProgramadePós-GraduaçãoemCiênciasCriminais(MestradoeDoutorado)daPUCRS.E-mail:[email protected]
MestreemCiênciasCriminaispelaPontifíciaUniversidadeCatólicadoRioGrandedoSul(PUCRS).Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel). Advogado. E-mail:[email protected]ãoosúnicosresponsáveispelaredaçãodoartigo.