alain caillé - nem holismo nem individualismo metodolÓgicos. marcel muss e o paradigma da dádiva

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  • 8/3/2019 Alain Caill - NEM HOLISMO NEM INDIVIDUALISMO METODOLGICOS. Marcel Muss e o paradigma da ddiva

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    Revista Brasileira de Cincias SociaisPrint version ISSN 0102-6909

    Rev. bras. Ci. Soc. vol. 13 n. 38 So Paulo Oct. 1998

    http://dx.doi.org/10.1590/S0102-69091998000300001

    NEM HOLISMO NEM INDIVIDUALISMOMETODOLGICOS.Marcel Mauss e o paradigma da ddiva*

    Alain Caill

    A histria das cincias sociais e da Sociologia que normalmente se conta contm,

    evidente e necessariamente, vrios esquecimentos e injustias. Necessariamente, j que

    no haveria razes para ocorrer, nesse caso, algo diferente do que ocorre alhures. Como

    exemplo, podemos lembrar Johann Sebastian Bach e Vermeer de Delft, que durante

    muito tempo foram considerados, respectivamente, como um msico e um pintor de

    menor importncia. Na Frana, h apenas pouco mais de um sculo Shakespeare passou

    a ser considerado um autor que se pode ler e encenar no original, mas ningum ainda l

    Goethe ou Leopardi. Se nos perguntarmos qual autor, nas cincias sociais, foi vtima de

    uma subestima de alcance comparvel, a resposta que se impe , parece-nos, Marcel

    Mauss.

    No que ele seja ignorado, longe disso. Qualquer pessoa informada conhece o papel

    decisivo que ele desempenhou na constituio da etnologia cientfica francesa, e aprofunda influncia que exerceu em discpulos, fiis ou heterodoxos, to diversos e

    importantes quanto Claude Lvi-Strauss, Roger Caillois, Georges Bataille e Louis

    Dumont. Quando a filosofia francesa, com Sartre e Merleau-Ponty, ainda buscava

    inspirao nas cincias sociais, suas duas principais fontes de inspirao eram Marcel

    Mauss e Claude Lvi-Strauss. E at 1970, no havia nenhum candidato licenciatura

    em Filosofia que no tivesse lido pelo menos o "Ensaio sobre a ddiva", e

    provavelmente tambm os textos que o acompanham e emolduram na coletnea de

    artigos intitulada Sociologia e Antropologia (Mauss, 1966), prefaciada, com o brilho e a

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=0102-6909&lng=en&nrm=isohttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=0102-6909&lng=en&nrm=isohttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#backhttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#backhttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#backhttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_serial&pid=0102-6909&lng=en&nrm=iso
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    importncia histrica que se sabe, por Lvi-Strauss. Tambm a bela biografia que

    Marcel Fournier (1994) lhe dedicou h poucos anos mostra claramente que sem a

    incansvel, ainda que inconstante, atividade de Mauss, a publicao daAnne

    Sociologiqueno teria sido retomada aps a Primeira Guerra Mundial, e a escola

    sociolgica francesa ter-se-ia praticamente desintegrado.

    A nica crtica que se pode, contudo, fazer ao livro de Fournier justo o fato de no ir

    at o fim naquilo que ele mesmo demonstra, de no insistir suficientemente no fato de

    que a escola sociolgica francesa no ao contrrio do que a histria das idias,

    convencional e acomodada, mantm basicamente e quase que exclusivamente mile

    Durkheim, cujos discpulos desempenhariam, certo, um papel importante, mas no

    mais importante do que o dos apstolos em relao a Cristo; de no insistir em que suabase so as obras de Durkheim e de Mauss, talvez mais as de Mauss do que as de

    Durkheim. Ou melhor, que partindo de Durkheim, a Sociologia francesa s se realiza

    plenamente com Mauss, a partir do momento em que este consegue reformular as

    questes colocadas pelo tio no nico campo em que so passveis de serem respondidas,

    o da natureza do simblico e de sua ligao com a obrigao de dar.

    Tal afirmao parece temerria. J que, por enquanto, perguntamo-nos quem merece

    subir ao panteo e por que, convm uma explicaoquanto a esse ponto. Raciocinemos,

    pois, de um modo um tanto bobomas que nos parece esclarecedor, apesar de tudo

    , considerando o resultado das contendas pela glria sociolgica e antropolgica, e

    perguntemo-nos se no h a razo para apresentar uma queixa.

    Em Sociologia, no h grandes dvidas quanto lista dos vitoriosos. Se excetuarmos

    aqueles que so considerados os "precursores", como Marx ou Tocqueville,

    encontraremos certamente nos degraus mais altos Max Weber e mile Durkheim. Emseguida, um pouco ou bem abaixo, dependendo do caso, Georg Simmel e Vilfredo

    Pareto. Quase mesma altura, ou um pouco abaixo, dependendo de se levar ou no em

    conta autores mais recentes, encontraremos umas duas dezenas de nomes, como Talcott

    Parsons, Norbert Elias, Erving Goffman, Garfinkel, Bourdieu, Schutz, Habermas ou

    Luhmann. Marcel Mauss s apareceria bem abaixo desses nomes, em especial nos

    manuais anglo-saxes, que do cada vez mais o tom na matria e nos quais largamente

    ignorado. Na melhor das hipteses, ele figuraria como um membro da escoladurkheimiana entre outros, no mesmo nvel que Maurice Halbwachs, Franois Simiand,

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    Clestin Bougl ou Marcel Granet, que, alis, s so mencionados para constar. Em

    Etnologia, sua posio certamente mais elevada, mas fora da Frana est longe de

    alcanar a dos grandes, mesmo porque os etnlogos no tm certeza de que ele seja um

    deles.

    Ns, por termos caminhado durante 15 anos sob a gide do nome de Mauss sem por

    isso lhe termos jamais votado um culto particular, nem pretendido nenhuma erudio a

    respeito de sua obra e por termos tido o sentimento, ao longo desse percurso, de

    descobrir ou achar nele, pouco a pouco, como que por acaso e por milagre, as questes e

    respostas que se tinham formado em ns por vias diferentes das suas, fomos sendo

    levados convico de que, ainda que fosse exclusivamente pela riqueza e originalidade

    do contedo, se no pela fora e alcance sistemtico, a obra de Mauss deveria lhe valeros degraus mais altos no pdio das cincias sociais. Ao lado de Durkheim e Weber,

    talvez at acima deles.

    Marcel Mauss, um autor gravemente subestimado

    Por que Mauss no tem o lugar que merece no panteo sociolgico?

    preciso reconhecer que vrios fatores impedem, num primeiro momento, de levar a

    srio essa afirmao. Se Mauss subestimado, isso no se deve nem ao acaso nem a

    uma espcie de compl. Ao contrrio, pode ser explicado por vrias razes, umas

    melhores que outras. A primeira , provavelmente, o fato de que, conforme ao que

    constitui a ambio da escola sociolgica francesa, a obra de Mauss no se encaixa em

    nenhuma das atuais disciplinas das cincias sociais. Entre os socilogos, ele aparececomo um etnlogo, e os etnlogos no podem realmente reconhecer como um dos seus

    algum que no se submeteu ao rito inicitico do campo, ainda que seja o autor de um

    preciosoManual de etnografia (Mauss, 1967[1947]).Quanto aos economistas, que

    deveriam ser os mais afetados por certas descobertas de Marcel Mauss, tanto o seu

    contedo quanto o modo como so expostas tornam-nas praticamente imperceptveis e

    ininteligveis.

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    Do mesmo modo, para a etnologia anglo-sax, geralmente mais preocupada com a

    qualidade emprica das monografias do que com sistematizaes tericas, h ainda nos

    escritos de Mauss algo de decididamente "continental" e abstrato demais. Assim, em

    vez de discutir sua teoria da ddiva ou da magia, multiplicam-se os exemplos empricos

    que parecem no se encaixar bem no quadro do aparato conceitual maussiano.

    Inversamente, porm, esse mesmo aparato conceitual, aos olhos dos filsofos e dos

    socilogos tericos, na Frana e na Alemanha, parece demasiado simples e rudimentar,

    j que no constitui objeto de uma reflexo sistemtica e no exibe de modo explcito o

    carter reflexivo que, no entanto, o alimenta. diferena de Marx, de Durkheim e,

    principalmente, de Weber, Mauss no pertence ao corpus dos autores cannicos da

    tradio filosfica.

    A outra srie de razes, provavelmente decisivas, do relativo descrdito de que padece

    Mauss est ligada ao fato de ele no ser autor de nenhum livro e fato que explicaria

    em larga medida o outro de seu pensamento ser particularmente resistente a qualquer

    tentativa de sistematizao. Nada h nele que possa ser facilmente exposto num manual,

    ou elegantemente retomado numa dissertao filosfica. Por que Mauss nunca terminou

    sua tese acerca da orao nem escreveu um livro inteiro, como lhe cobrava, ainda

    recentemente, a crtica do socilogo Henri Mandras, justamente para negar-lhe qualquerdireito de ocupar um lugar de destaque na histria da Sociologia? Pierre Bourdieu, do

    mesmo modo, no esconde seu desprezo por aqueles que no so capazes de escrever

    nem um livro "de verdade".

    Quanto s razes da incapacidade e/ou falta de vontade de Mauss de conquistar o ttulo

    de autor de pelo menos um livro "de verdade", ficamos reduzidos s conjecturas. O que

    foi decisivo? Um certo diletantismo, paradoxal nesse erudito excepcional ("Mauss sabe

    tudo", diziam com razo seus discpulos), que preferiu no renunciar aos prazeres da

    vida, da amizade, do amor e do esporte, e s escrever por obrigao, por paixo ou por

    prazer, e nunca em virtude de qualquer considerao carreirstica ou pela busca de fama

    abstrata e artificial, vainglory oububble reputation ? Ou foi a falta de tempo, j que o

    senso do dever cientfico ou filial, de dvida para com os "dois tios" mile Durkheim

    e Sylvain Lvi , obrigava-o a se dedicar ao ensino, aos alunos e execuo das

    tarefas administrativas indispensveis ao bom funcionamento da cadeira de Cincias

    Religiosas da cole Pratique des Hautes tudes?

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    Sem contar que Mauss sempre se quis militante, ao mesmo tempo em prol da causa

    cvica e socialista, e seu envolvimentonestas questes era sabido. O livro de Fournier

    surpreende ao mostrar quo profundo era esse envolvimento, e que Mauss no se

    contentou em ser por algum tempo o brao direito de Jaurs e, bem mais tarde, um dos

    prximos de Lon Blum: tornou-se talvez o mais ativo advogadona Frana do

    socialismo associativo, no hesitando em investir a prpria pessoa e os prprios bens

    para apoiar essa causa.

    Mas todas essas razes so provavelmente secundrias em relao a um modo de pensar

    singular, prprio de Mauss, pelo qual talvez devesse ser louvado em vez de acusado, e

    que pode ser resumido em algumas palavras: horror sistematizao. Se, como cremos,

    o prprio das cincias sociais, em comparao com a Filosofia, , sem renunciar teorizao, dar o devido lugar inesgotvel diversidade da realidade emprica, e

    recusar-se a admitir que esta possa ser submetida e reduzida inteiramente lgica do

    conceito, ento Mauss , sem sombra de dvida, aquele que com mais razes deve ser

    considerado o arauto e heri por excelncia do esprito das cincias sociais. Ningum

    mais atento do que ele ao concreto e ao fato de este extrapolar todas as categorias que

    sobre ele lanamos, como redes condenadas a deixar escapar a maior parte de suas

    presas. "O que nomeamos to mal troca, ddiva, interesse", escreve Mauss (1966, p.266), permanentemente em dvida quanto ao prprio alcance das palavras que emprega

    para tentar apreender seu objeto.

    Mais do que isso, no preciso for-lo para v-lo reconhecer que no apenas devido

    a uma mera dificuldade epistemolgica que nossos conceitos tropeam na tentativa de

    se adequarem ao real mas, de modo muito mais profundo, porque tudo na realidade que

    tentam apreender est em luta declarada contra eles. Ora, a ddiva s existe na mgica

    do que indissociavelmente a negao e a denegao da troca e do interesse. E vice-

    versa, sem dvida. Alm disso, como sugere eloqentemente o "Ensaio sobre algumas

    formas primitivas de classificao", de Durkheim e Mauss (in Mauss, 1971), entre a

    realidade, o ser social real, como diria Marx, e as categorias que a designam h uma

    profunda relao de incerteza e de imbricao ao mesmo tempo, j que, num certo

    sentido, as categorias do pensamento no so seno a prpria forma do ser social

    prtico. E vice-versa, sem dvida, novamente.

    O reducionismo dos herdeiros e dos discpulos infiis

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    A prpria forma do ser social prtico? Isso pode gerar confuso. Como aquela em que, a

    nosso ver, caiu parcialmente Lvi-Strauss. Sua obra como um todo e, em particular, a

    "Introduo" que escreveu para apresentar a coletnea clssica dos escritos de Mauss

    (Lvi-Strauss, 1966[1950]) acabaram no prestando servio algum compreenso e

    posteridade deste. Outra dentre as razes profundas do relativo esquecimento de que

    padece Mauss , na verdade, o fato de seus discpulos se terem tornado, num certo

    sentido, mais famosos do que ele, porm custa de um desmembramento da

    complexidade de seu pensamento ou da nfase unilateral, e portanto equivocada, de uma

    de suas dimenses. Literatos outrora de vanguarda e filsofos da desconstruo,

    repelidos pelo humanismo temperado de Mauss, preferem as intuies sulfurosas de

    Georges Bataille1e os prolongamentos de Maurice Blanchot.

    E a reflexo francesa mais viva, durante trs dcadas, conformou-se aos moldes do

    estruturalismo inventado por Lvi-Strauss, na seara de Marcel Mauss, mas tambm

    contra ele. Afirmando que a cincia no tinha lugar para as categorias nativas de alma

    ou de "esprito da coisa dada", afirmando que no existem trs obrigaes distintas, de

    dar, receber e retribuir, mas apenas uma, a de trocar, Lvi-Strauss praticamente reduziu

    a ddiva troca e abriu caminho para o desenvolvimento de uma cincia das categorias

    primitivas que passaria a dar ateno exclusivamente sua estrutura formal, emdetrimento tanto do contedo como de seu modo de emergncia.

    Do ser social real e concreto a cincia estruturalista s quer conhecer a forma,

    acreditando poder abstrair tudo o que o faz surgir, o movimento da vida social

    autoconstituda e autoconstituinte, e sua dimenso de prxis. Na operao, desaparecem

    a ddiva e a luta dos homens, comonotouimediatamente Claude Lefort (1951), numa

    profunda crtica ab initio daquilo que viria a ser o estruturalismo francesa.2Crtica da

    qual ainda esto por ser avaliadas todas as implicaes, que so, a nosso ver,

    considerveis. Basta pensar no que poderia ter sido da Psicanlise relida por Lacan se

    este, como fez durante algum tempo, no incio, num de seus principais textos,Fonction

    et champ de la parole et du langage en Psychanalyse, se tivesse mantido prximo da

    concepo maussiana do simbolismo, em vez de, alegando inspirar-se em Lvi-Strauss,

    misturar e confundir praticamente tudo sob a noo de simblico: linguagem, lgica

    formal, troca, ddiva e teoria dos jogos. Mas, sem nos precipitarmos, dediquemos algum

    tempo noo de simbolismo.

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    A superao de Durkheim pela descoberta do simbolismo

    Como deixam claro, com muito vigor, duas releituras recentes da obra de Mauss

    (Karsenti, 1994 e 1996; Tarot, 1994 e 1996), foi, na verdade, mediante a utilizao

    dessa noo de simbolismo que Marcel Mauss, discretamente e sem fazer alarde, foi

    pouco a pouco se afastando da insustentvel rigidez conceitual do sistema legado por

    seu tio, e o fez evoluir de dentro. Se ele tivesse anunciado em altos brados, e explicitado

    a revoluo terica que estava fazendo, tudo teria ficado mais claro para todos, e sua

    glria mais garantida. Mas nada indica que ele tivesse conscincia de estar realizando

    uma tal revoluo. Mesmo porque vrios fios que o conduzem a ela j tinham sido

    tecidos havia muito tempo, em colaborao com Durkheim. E o prprio Durkheim j

    tinha praticamente chegado idia de que a sociedade deve ser concebida como umarealidade de ordem simblica, uma totalidade ligada por smbolos. Seria a sociedade,

    indagava ele em seu "Dtermination du fait moral", "basicamente um conjunto de

    idias, de crenas, de sentimentos de todos os tipos, que se realizam atravs dos

    indivduos"? (Durkheim, 1974 [1906], p. 79).3

    O que prprio de Mauss, que estende o emprego da noo de smbolo para muito alm

    dos signos lingsticos ou pictricos exclusivamente, o fato de radicalizar esse

    conceito da natureza simblica da relao social, e de tirar da todas as implicaes,

    negativas e positivas. "As palavras, as saudaes, os presentes, solenemente trocados e

    recebidos, e obrigatoriamente retribudos sob risco de guerra, o que so, seno

    smbolos?". O que so, continua B. Karsenti (1994, p. 87), de quem emprestamos essa

    citao de Mauss, "seno tradues individuais da presena do grupo por um lado, e das

    necessidades diretas de cada um e de todos, de suas personalidades, de suas inter-

    relaes, por outro"? "Nossas festas, explicam os neocalednios, so os movimentos da

    agulha usada para unir as partes do telhado de palha, para fazer um telhado nico."

    (apudKarsenti, 1994,p. 98). O mesmo poderia ser dito dos smbolos, segundo Mauss.

    Ou das ddivas.

    Pois, como acabamos de ver, no fundo smbolos e ddivas so idnticos para Mauss, ou

    pelo menos co-extensivos num sentido que ainda est por explorar. No h ddiva

    que no exceda, por sua dimenso simblica, a dimenso utilitria e funcional dos bens

    e servios. E, reciprocamente, o que um smbolo, senoas palavras, gestos, atos,objetos e, principalmente, as mulheres e, portanto, os filhos por vir, que so dados

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    solenemente, criando a aliana que afasta a guerra, uma aliana constantemente

    ameaada de recair no conflito? Assim, a ddiva e o smbolo so de fato co-extensivos,

    ou reversveis, mas de um modo difcil de entender, cuja melhor apreenso talvez seja a

    formulao de Camille Tarot (1996): "O smbolo maussiano do smbolo no a palavra

    ou o fonema, a ddiva."

    O simples fato de raciocinar desse modo, sistematicamente e por princpio, em termos

    de simbolismo, basta para resolver e diluir todas as antinomias prprias ao

    durkheimianismo dogmtico. Antinomias que sem dvida serviram a Durkheim como

    muletas necessrias para avanar na via que abriam, instrumento indispensvel para

    traar o sulco original, mas que logo o impediriam de avanar. Mauss provavelmente

    sentia que Durkheim as teria eventualmente dispensado, que j as tinha parcialmentedescartado, e que a morte o impedira de faz-lo de modo definitivo. E que ele apenas

    conclua o gesto dotio.

    Mas, uma vez realizado esse gesto iniciado quando o tio ainda vivia, em 1904,

    na Thorie de la magie, tudo muda. Ainda que no o diga expressamente, Mauss

    abandona, assim, a oposio central e constitutiva da sociologia durkheimiana do fato

    religioso: a oposio entre sagrado e profano. Durkheim acreditara poder "tudo explicar

    pela religio".4A partir de ento, tudo se poder compreendera partir do simbolismo.

    Deixa de ser necessrio recorrer dicotomia entre o sagrado e o profano, j que basta a

    oposio simples entre simblico e utilitrio, de onde retirado todo o poder da

    distino conceitual primitiva. Ao inverso da concepo durkheimiana do sagrado e do

    profano, Mauss insistir continuamente na imbricao entre utilitrio e simblico, entre

    interesse e desinteresse. Cai ao mesmo tempo a oposio durkheimiana radical entre

    sociolgico e psicolgico, pois entre o social e o individual no h mais ruptura, mas

    gradao e traduo recproca, j que os simbolismos constitutivos de um plano so

    passveis de traduo nos do outro.

    E alm disso, ainda que por razes exclusivamente metodolgicas, os fatos sociais no

    podem mais ser realmente considerados como coisas, uma vez que o prprio andamento

    da pesquisa revela que a oposio entre coisas e pessoas s tem sentido e alcance aos

    olhos do nosso Direito moderno, e que em toda parte, fora dele, a mescla das

    dimenses reais e pessoais que predomina. Os fatos sociais, diramos, para resumir damelhor forma a especificidade da viso maussiana, tornam-se totais (Tarot, 1996) e no

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    devem mais ser considerados como coisas, e sim como smbolos. Esse princpio no

    tem um alcance apenas metodolgico, mas scio-ontolgico. No mais se dir que se

    deve tratar os fatos sociais "como [se fossem] coisas", subentendendo "quando sabemos

    perfeitamente que no o so", e sim que se deve tratar os fatos sociais como smbolos,

    porque sabemos perfeitamente que essa, na verdade, a sua natureza.

    Considerados como realidades de ordem simblica, os fatos sociais, que a partir de

    ento se tornam totais, so ainda menos passveis de serem considerados como coisas na

    medida em que, dada a sua co-extensividade ao registro da ddiva, passa a faltar-lhes

    aquilo que, segundo Durkheim, podia garantir a sua objetividade: a obrigatoriedade.

    No que ela desaparea; para Mauss, existe claramente uma obrigao de se submeter

    lei do simbolismo, bem como exigncia de dar, receber e retribuir. Mesmo porque tudo uma coisa s. Mas essa obrigao deixa de ser exercida com a exterioridade que,

    segundo Durkheim, constitutiva do fato social, j que entre indivduo e sociedade no

    h mais um hiato, mas uma relao de co-traduo.

    Mas, principalmente, trata-se de uma obrigao de liberdade. De onde decorre uma

    concepo maussiana da causalidade social que, decididamente, no pode ser reduzida

    aos determinismos objetivistas caractersticos do durkheimianismo inicial. Como

    observa Mauss (1967, p. 130), alis, contrariamente a todos os holismos tradicionais em

    Etnologia, nessas sociedades (tradicionais) em que "o trabalho em conjunto ao mesmo

    tempo necessrio, obrigatrio e voluntrio, no h meios de coero; o indivduo

    livre"..5Karsenti resume brilhantemente a preocupao de Mauss quando observa:

    "Trata-se de superar a temtica da obrigatoriedade, de romper sua funo explicativa

    exclusiva, para chegar a umaproblemtica dadeterminao que atue justamente como

    liberdade" (Karsenti, 1994, p. 23; grifos do autor).

    Substituir o determinismo objetivista por uma determinao pela liberdade ou, melhor

    dizendo, pela obrigao da liberdade, implica, evidentemente, e para formul-lo em

    termos j convencionais, por demais convencionais, que se deixa de apenas

    tentar explicara relao social, para poder compreend-la e interpret-la . Mas

    compreender e interpretar a partir do que, em que termos? A resposta a essa questo

    ficar mais clara, certamente, se notarmos que Marcel Mauss abandona tambm mais

    uma dicotomia, central no durkheimianismo, aquela entrenormal epatolgico. Sabe-seque era por intermdio dela que Durkheim esperava poder passar da cincia moral, e

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    derivar os julgamentos de valor dos julgamentos de fato. Essa era, a seus olhos de

    herdeiro de Comte e Saint-Simon, a tarefa crucial da Sociologia. Se fosse abandonada,

    nenhum esforo pelo conhecimento valeria a pena, como ele explica de todos os modos

    concebveis. Porm, afirmar que o desejvel poderia ser idntico ao que

    estatisticamente normal algo que nem todo o talento de Durkheim poderia defender

    por muito tempo. Ainda mais porque Durkheim no se impede de julgar o que em

    nome do que ser ou poderia ser a normalidade futura. A partir desse momento, no nos

    encontramos mais diante de uma oposio simples entre um normal e um patolgico

    correspondentes, mas confrontados a uma multiplicidade infinita de normalidades e

    patologias, passadas, presentes ou virtuais.

    Era preciso encontrar outra coisa. E essa outra coisa que Mauss vai encontrar oupensar ter encontrado, isso pode ser debatido no final do "Ensaio sobre a ddiva",

    quando evoca o "rochedo da moral eterna", aquela que sempre, em toda parte, manda

    dar ao mesmo tempo livre e obrigatoriamente e prescreve a retribuio da "ddiva

    nobre". Que, em suma, faz da liberdade e da espontaneidade uma obrigao. A

    genialidade ou a fora de Mauss est, portanto, em superar ousadamente o irresolvido

    hiato durkheimiano entre julgamento de fato e julgamento de valor, entre normal e

    patolgico, afirmando como moralmente desejvel exatamente aquilo que o conjuntodas sociedades conhecidas parece de fato afirmar como tal, o ncleo invariante de

    todas as morais. O que os homens devem fazer deixa de ser intrinsecamente diferente

    daquilo que de fato j fazem. Ao mesmo tempo, surge uma resposta para a nossa dvida

    quanto aos termos em que se deve interpretar a ao social. Ora talvez respondesse

    Mauss , nos prprios termos da ao social concreta, sendo esta por natureza

    simblica, encarregada de significar ativamente, mesclando indissociavelmente

    obrigao e liberdade, interesse e desinteresse.

    Se o leitor nos acompanhou at aqui, certamente compreender melhor por que

    consideramos possvel e desejvel colocar Marcel Mauss no primeiro degrau do

    panteosociolgico, acima at de Durkheim e Weber.6Se ele merece essa posio ,

    cremos, porque traa com muita preciso o campo comum em que poderia ser realizada

    a desejvel harmonizao das duas grandes sociologias histricas. Na tica maussiana,

    de fato possvel reconhecer o fundamento de toda a crtica weberiana ao objetivismo

    sociolgico. Porm, de modo simtrico, a herana durkheimiana permite escapar dos

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    exageros do relativismo weberiano e esperar dar uma base mais slida para seus tipos-

    ideais inclusivos, sem renunciar, de sada, busca de invariantes sociolgicas,

    antropolgicas e ticas.

    Em direo ao paradigma da ddiva

    Neste ponto, contudo, surge outra sria dvida. Na verdade, acabamos de sugerir que

    um dos mritos de Mauss consistiu em se livrar das dicotomias insustentveis que

    herdara do tio: entre sagrado e profano, indivduo e sociedade, normal e patolgico. Mas

    tal mrito , assim formulado, puramente negativo. E se o de Mauss se limitasse a isso,

    deveramos ver nele apenas uma espcie de coveiro do durkheimianismo, e de modo

    algum oautor deum progresso decisivo na formulao de questes sociolgicas eantropolgicas cruciais. Indicamos que a investigao de Mauss caminhou em direo a

    uma considerao do simbolismo. Mas, pode-se perguntar, e com razo, se h nisso algo

    alm de meras intuies e pistas de pesquisa, na verdade inexploradas, e nada

    aprofundadas. Dvida ainda mais legtima na medida em que, como notvamos de

    sada, os manuais nem mesmo identificam tais pistas em Mauss.

    A hiptese que gostaramos de defender, como deve estar patente, a de que existe de

    fato em Mauss uma teoria sociolgica poderosa e coerente, que fornece as linhas

    mestras no apenas de um paradigma sociolgico entre outros, mas do nico paradigma

    propriamente sociolgico que se possa conceber e defender. Duas coisas, sobretudo,

    impedem de perceber claramente a existncia desse paradigma maussiano. Ao encontro

    de Durkheim que, partindo de uma preocupao inicial totalmente cientificista e

    naturalista de objetivar a realidade social, adquirira repentinamente, em 1895, uma

    conscincia aguda de sua natureza profundamente religiosa, entrevendo o fato de que a

    religio da ordem da realidade simblica, mas sem ter tido o tempo de levar adescoberta s suas ltimas conseqncias , Mauss foi rapidamente tomado pela

    certeza da natureza simblica da realidade social, e descobriu 20 anos mais tarde, com o

    "Ensaio sobre a ddiva", que existe uma ntima ligao entre o simbolismo e a

    obrigao de dar, receber e retribuir. Mas no parece ter tido clara conscincia disso. De

    qualquer modo, no declarou a sua descoberta explicitamente, e no enunciou

    ofato da co-extensividade entre ddiva e smbolo.

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    Fato? Sejamos prudentes. Seria melhor falar de uma hiptese apenas, tendo em vista o

    quanto a prpria idia de uma relao entre ddiva e simbolismo permanece obscura.

    Contudo, no temos a menor dvida de que o que confere ao pensamento de Marcel

    Mauss toda a sua fora e fecundidade est nos laos estreitos que estabelece, sem

    afirm-lo suficientemente nem explicar-se, entre a ddiva, a temtica do simbolismo e

    seu conceito de fato ou fenmeno social total.7De qualquer modo, essa hiptese que

    ir guiar nossa tentativa de delinear aqui um paradigma da ddiva, embora insistamos

    muito mais, nas pginas seguintes, na ddiva encarada do ponto de vista dos atores

    sociais do que no simbolismo em si ou na dimenso do fenmeno social total .8

    Convenhamos, a ausncia de explicaes, por parte de Mauss, acerca desses pontos

    cruciais deixa pairar sobre sua obra uma considervel dimenso de obscuridade. E esta reforada pelo fato de que, para atingir a clareza total, seria preciso retomar todos os

    escritos anteriores do autor, especialmente o "Esboo de uma teoria geral da magia"

    (Hubert e Mauss, 1902-1903) e o "Ensaio sobre a natureza e a funo do sacrifcio"

    (Hubert e Mauss, 1899),9 luz da descoberta que ele s faria bem mais tarde, no

    "Ensaio sobre a ddiva" (Mauss, 1923-24), e do estabelecimento da equivalncia entre

    ddiva e smbolo. Esta , em nossa opinio, a tarefa central que se apresenta

    teorizao sociolgica: a de explicitar o paradigma da ddiva assim esboado porMauss. Antes de tentarmos avanar um pouco mais nessa direo, talvez seja til

    lembrar como ns mesmos chegamos a essa hiptese e formulao desse programa de

    trabalho terico.

    Do antiutilitarismo negativo a um antiutilitarismo positivo

    Durante uma dcada, a revista do MAUSS(Movimento Antiutilitarista em Cincias

    Sociais), colocada desde suas primeiras pginas sob a gide de Marcel Mauss, limitou-se, num certo sentido, basicamente a tentar resgatar o esprito crtico que presidira

    inveno e ao sucesso da escola sociolgica francesa. Parece-nos que os manuais de

    histria da Sociologia no do a devida nfase a essa dimenso crtica. Pois foi

    declaradamente para escapar do utilitarismo spenceriano, desprezando completamente

    as abstraes da economia poltica, que Durkheim enunciou suas regras do mtodo

    sociolgico. E foi essa a inspirao primordial que continuou alimentando a obra de

    Mauss at sua morte.

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#7nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#7nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#7nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#8nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#8nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#8nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#9nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#9nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#9nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#9nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#8nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#7not
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    No se deve renegar essa postura crtica. Que, alis, no implica de modo algum

    subestimar a priori a fora ou a legitimidade dos interesses materiais, utilitrios. E

    tampouco leva a afirmar que os homens, ignorando o interesse, o clculo, a esperteza ou

    a estratgia, agiriam por puro desprendimento. Pelo mero fato de sugerir que nenhuma

    sociedade humana poderia edificar-se exclusivamente sobre o registro do contrato e do

    utilitrio, insistindo, ao contrrio, em que a solidariedade indispensvel a qualquer

    ordem social s pode surgir da subordinao dos interesses materiais a uma regra

    simblica que os transcende, essa postura crtica j lana sobre os assuntos humanos

    uma luz singular e poderosa. Que no tinha, e ainda no tem, equivalente nem na

    economia poltica nem nas filosofias polticas contratualistas e/ou utilitaristas.

    Conseqentemente, mesmo reduzido sua dimenso crtica, o antiutilitarismo que sepoderia qualificar de negativo tem o seu valor. Resta saber se isso bastaria para

    determinar e cristalizar um paradigma, o que mais duvidoso. Em vrios aspectos,

    esse antiutilitarismo negativoem outras palavras, e resumindo, a afirmao de que a

    ordem social irredutvel ordem econmica e contratual comum a todas as

    grandes sociologias clssicas, tanto a de Weber como a de Pareto, a do jovem Parsons e

    a de Tocqueville e, evidentemente, a de Simmel. ele que traa o prprio campo da

    Sociologia clssica;10

    sua fora e sua fragilidade. Sua fora, porque define, contra aeconomia poltica e longe dela, um campo de investigao comum a todas as

    sociologias (e a todas as antropologias). Sua fagilidade porque, diferena da economia

    poltica, no chega a desembocar num conjunto de conceitos e de hipteses gerais

    compartilhadas por todos os investigadores. O esfacelamento definhamento,

    involuo, como queiram da Sociologia contempornea (e, junto com ela, da

    Antropologia) parece claramente ligado a essa incapacidade das diversas sociologias de

    se cristalizarem, ainda que minimamente, num paradigma comum. As observaes queprecedem permitem-nos agora formular uma primeira hiptese: o malogro histrico da

    Sociologia clssica, apesar das maravilhosas promessas que continha, decorre de sua

    impossibilidade de transformar seu antiutilitarismo crtico, ou negativo, inicial num

    antiutilitarismo positivo claramente formulado.

    A expresso antiutilitarismo positivo pode parecer estranha. Ficar mais clara assim que

    enunciarmos nossa segunda hiptese: a de que o "Ensaio sobre addiva" de Marcel

    Mauss nos fornece os fundamentos de um paradigma positivo e no apenas crtico,

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#10nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#10nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#10nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#10not
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    ou por negao em Sociologia e em Antropologia. E, de modo mais geral, para o

    conjunto das cincias sociais. Pois ele nos d a prova emprica, um comeo de prova,

    em todo caso, um indcio, de que no so apenas os socilogos da virada do sculo que

    criticam o utilitarismo econmico, mas os homens de todas as sociedades humanas. De

    que a obrigao paradoxal da generosidadeesse antiutilitarismo prticoconstitui a

    base, o rochedo, como diz Mauss, de toda moral possvel, e, conseqentemente, a, e

    no num improvvel e inencontrvel contrato social original, que se deve buscar a

    essncia e o cerne de toda sociabilidade. E se essa descoberta se confirmar, haveria algo

    mais importante no campo das cincias sociais?

    Foicom o esprito de fidelidade a essa descoberta que, h quatro anos, demos a um dos

    nmeros deLa Revue du MAUSS (n. 11, 1991) o ttuloDar, receber e retribuir: o outroparadigma. nesse mesmo esprito que os autores informalmente reunidos em torno

    deLaRevue du MAUSS semestrielle prosseguem doravante boa parte de suas reflexes.

    preciso reconhecer que essa hiptese de que um paradigma sociolgico e

    antropolgico positivo deve se basear na afirmao de uma certa universalidade da

    tripla obrigao de dar, receber e retribuir extremamente ambiciosa. Se fosse

    confirmada, permitiria retomar em novos termos captulos inteiros da histria das

    religies e da filosofia, e colocar sob uma nova perspectiva um nmero considervel dequestes antropolgicas, ticas e econmicas. Conforme o prprio programa da escola

    sociolgica francesa, trata-se de nada menos do que pr termo hegemonia do

    economicismo sobre nossos espritos e retraduzir muitas das questes oriundas da

    tradio filosfica num questionamento passvel de um esclarecimento emprico

    pertinente.

    Essa tentativa de fundar um paradigma em cincias sociais na hiptese da

    universalidade da obrigao de dar seria sustentvel, e comque condies? A questo

    assume dimenses ainda maiores na medida em que no se pode seriamente responder a

    ela por princpio e a priori, e apenas a utilizao efetiva do paradigma seria capaz de

    convencer os cticos. No pretendemos resolver a questo, mas apontaremos

    resumidamente um certo nmero de razes que, a nosso ver, tornam a aposta plausvel.

    Em seguida consideraremos algumas dificuldades e obstculos que se apresentam no

    caminho.

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    Situao e delineamentos de um paradigma da ddiva

    Antes de comearmos a defender a idia de que existe e deve existir em cincias sociais

    um paradigma da ddiva, ainda que seja, como veremos, antiparadigmtico, talvez fosse

    conveniente explicar e justificar a utilizao do termo "paradigma". Permitam-nos ser

    breves e dogmticos. O prprio autor que introduziu o termo nos estudos sobre a

    cincia, Thomas Kuhn, reconhece que, por ter tantas acepes diferentes, corre-se o

    risco de entrar num labirinto escolstico. Entendamos, pois, por paradigma

    simplesmente um modo generalizado e mais ou menos inconscientemente

    compartilhado de questionar a realidade social histrica e de conceber respostas para

    essas questes. J que cremos ainda que, nas cincias do social histrico, ao contrrio

    das cincias matemticas ou experimentais, a dimenso estritamente cognitiva , por

    princpio, indissocivel da dimenso normativa ou, melhor dizendo, entre

    julgamentos de fato, julgamentos de razo e julgamentos de valor existe uma relao de

    incerteza e que o momento normativo , neste caso, em ltima instncia, dominante,

    entenderemos mais especificamente por paradigma nas cincias do social histrico um

    modo generalizado e mais ou menos inconscientemente compartilhado de questionar

    normativamente a realidade social histrica e de propor para tais questes respostas

    positiva e normativamente significativas.

    A bem dizer, essa caracterizao ainda bastante vaga. No limite, qualquer teoria que

    goze de alguma popularidade entre os pesquisadores poderia, assim, passar por

    paradigma. E a palavra designaria apenas aquilo que os anglo-saxes gostam de chamar

    de "programas de pesquisa". Quando falamos em paradigma, temos em mente algo de

    maior alcance epistemolgico e histrico, que pode ser avaliado se acrescentarmos que,

    a nosso ver, existem nas cincias sociais dois, e apenas dois, grandes paradigmas, e que

    o paradigma da ddiva e do simbolismo tem vocao para figurar como o terceiro.

    O primeiro, atualmente designado, de modo geral, pela expresso individualismo

    metodolgico, parte da idia de que as relaes sociais podem e devem ser

    compreendidas como resultante do entrecruzamento dos clculos efetuados pelos

    indivduos. Esse certamente o pavilho mais genrico, capaz de abrigar as mercadorias

    mais diversas, mas cuja diversidade s se torna evidente se olharmos bem de perto;

    como exemplos, podem ser mencionados a teoria da ao racional, a teoria da

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    racionalidade limitada, o neo-institucionalismo, o utilitarismo, a teoria dos direitos de

    propriedade. Traduzido em termos ainda mais simples e rudimentares, o que todas essas

    linhas de pensamento tm em comum o fato de se inspirarem em algum tipo de viso

    simples, simplista ou, ao contrrio, sofisticada da figura do homo oeconomicus. Max

    Weber s vezes apresentado como campeo do individualismo metodolgico;

    equivocadamente, em nossa opinio. Contudo, grande a tentao de aceitar

    temporariamente essa interpretao equivocada de sua obra, para melhor definir a

    simetria em relao a Durkheim.

    Este ltimo , de fato, quase que unanimemente considerado como campeo do segundo

    grande paradigma utilizado pelas cincias sociais. Paradigma esse que, desde os

    trabalhos de Louis Dumont, que o reivindica, se convm geralmente chamar de holismo.A vantagem desse termo , sem dvida, a de designar a oposio diametral em relao

    ao individualismo, decorrente da certeza de que h na totalidade considerada enquanto

    tal algo mais do que nas partes ou em sua soma, e de que a totalidade historicamente,

    logicamente, cognitivamente e normativamente mais importante hierarquicamente

    superior do que os indivduos que contm. Em suma, o individualismo metodolgico

    postula que os indivduos existem empiricamente, e possuem valor normativo, antes da

    totalidade que formam, ao passo que o holismo postula o inverso. Pode parecer que oholismo desempenha, nas cincias sociais, um papel nitidamente menos importante do

    que o individualismo metodolgico. Principalmente na atualidade, j que ningum, a

    no ser Louis Dumont, o reivindica explicitamente. De modo que acaba servindo mais

    como referncia de oposio do que como signo de convergncia. Contudo, a postura

    holista teve, e ainda tem, um papel central nas cincias sociais, o que fica patente se

    acrescentarmos que possvel ligar a ela o culturalismo, o funcionalismo e o

    estruturalismo. E grande parte do marxismo, pelo menos antes de ser relido, por alguns,atravs das lentes do individualismo.

    Aporias do individualismo e do holismo metodolgicos

    H lugar para um terceiro paradigma, e necessidade de institu-lo. Tal sugesto parece

    fcil quando lembramos de como e por que os dois paradigmas reconhecidos se

    mostram totalmente incapazes de pensar ao contrrio do que crem a gnese do

    lao social e a aliana. Totalmente incapazes, tambm, de pensar a ddiva. E, porconseguinte, o poltico (Caill, 1993). Basta lembrar rapidamente as razes desse

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    fracasso para ver surgir em negativo o lugar desse terceiro paradigma, e compreender

    por que deve ser um paradigma da ddiva e do simbolismo.

    mais simples comear pelas dificuldades prprias ao holismo, pois so, nesse

    particular, patentes e congnitas. O holismo no tem nada a dizer sobre o modo como o

    lao social gerado, o que fica evidente quando se observa que nem mesmo se coloca a

    questo. Por hiptese, postula que o lao social sempre est dado de sada e preexiste

    ontologicamente ao dos sujeitos sociais. Mas seria possvel falar em ao nesse

    caso? Dificilmente, j que nessa perspectiva supe-se que os sujeitos, individuais ou

    coletivos, no fazem seno aplicar um modelo e uma lei que existiam antes deles.

    Limitam-se a expressar os valores de sua cultura, cumprir as funes sociais

    determinadas ou colocar em prtica as regras envolvidas na lgica da estrutura de quedependem.A fortiori, numa tal perspectiva, a ddiva inexistente e impensvel. Onde

    os homens e os tericos da ddiva acreditam v-la em ao, os defensores de uma

    abordagem holista trataro de mostrar que se trata unicamente de submisso s

    prescries do ritual e cumprimento das tarefas necessrias reproduo da ordem

    funcional e estrutural.

    Sempre se melhor crtico dos outros do que de si mesmo. Os partidrios de uma

    abordagem individualista facilmente colocam em evidncia a tendncia hiptese que

    se encontra no cerne do holismo e notam que este postula como um dado justamente

    aquilo que est por explicar: a produo da relao social e da totalidade. Mas, ao

    contrrio do que crem, seu paradigma no se sai melhor do que o rival. Se o holismo

    reifica e hipostasia a totalidade, o individualismo metodolgico faz o mesmo com o

    indivduo. O que menos visvel e menos chocante primeira vista, em razo da

    diferena de escala e porque a figura fsica do indivduo menos impalpvel do que a

    da sociedade. Mas ser que de realidades fsicas que se trata? Tudo bem considerado,

    to injustificado supor os indivduos como dados, presentes desde sempre, quanto a

    sociedade. E mesmo "dando" a si mesmo o indivduo, com os traos que lhe agradam,

    de indivduos ilhados, calculistas racionais e egostas (self-regarding eself-interested), o

    individualismo metodolgico revela-se to incapaz de proceder gerao lgica do elo

    que une esses tomos individuais quanto um mgico de tirar um coelho de um chapu

    vazio.

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    No falaremos aqui das recentes sofisticaes da verso standarde ancestral do

    paradigma, que revelam uma conscientizao parcial parcial apenas , por parte de

    seus defensores, dos problemas que coloca. Levar em conta os custos da informao e

    sua incompletude, o carter limitado e contextual da racionalidade, descobrir que os

    indivduos so incapazes de coordenar suas aes, a menos que regras de coordenao

    preexistam, de modo que antes de tentar descrever suas aes individuais preciso

    pensar o modo como so geradas as convenes em torno das quais se unem, nada disso

    muda, no fundo, o problema que Durkheim tinha percebido com clareza: no possvel

    fazer o altrusmo nascer do egosmo.

    Ou, mais precisamente, impossvel convencer os egostas racionais, isolados e

    "mutuamente indiferentes" a levar adiante a teoria de que seria vantajoso para elescooperar, ou seja, confiar uns nos outros e estabelecer uma relao de aliana. Pode-se

    torcer o dilema do prisioneiro em todas as direes, submet-lo a backward inductionou

    torn-lo evolutivo, repeti-lo ao infinito ou analis-lo na instantaneidade, e sempre se

    chegar mesma concluso: se os sujeitos sociais forem fixados em sua posio de

    separao inicial e de desconfiana, nada poder fazer com que saiam disso, tanto que

    para se precaverem individualmente, evitando o risco do pior a possvel traio do

    outro, tomaro a dianteira na traio, e todos se encontraro numa situao bem piordo que aquela que a confiana teria permitido instaurar (Cordonnier, 1993 e 1994;

    Nemo, 1994;La Revue du MAUSS semestrielle, 1994a).

    A ddiva como aposta e como soluo das aporias do holismo e do individualismo

    bastante fcil tirar as concluses dessas breves observaes, pelo menos para um

    leitor de Marcel Mauss. O nico meio de escapar das aporias do dilema do prisioneiro e

    do individualismo metodolgico, o nico meio de criar a confiana e moldar a relaosocial, tentar a aposta da ddiva. Pois, como se v claramente e estabelec-lo com

    extremo rigor o mrito da literatura acerca do dilema do prisioneiro , s pode ser

    uma aposta. Pois , de fato, unicamente numa situao de incerteza estrutual que o

    problema da confiana e da tessitura do lao social se coloca.

    Partamos do princpio de que nos encontramos num universo holista, onde tudo regido

    pelo costume, os valores ou regras, e ningum trair, j que cada um sabe que o

    comportamento do outro regido pelo costume, e que este lhe ordena escolher a via da

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    honra, que a da generosidade. A via da ddiva obrigatria.11Tudo se passa como se

    estivssemos diante de um Deus infinitamente bom e benevolente, de modo que no h

    a menor dificuldade em escolher a melhor via. Consideremos, ao contrrio, que nos

    encontramos mergulhados nas guas glaciais do clculo egosta, postulado pela

    axiomtica do interesse, e tampouco haver hesitao, j que, por hiptese, no

    podemos esperar nenhum sinal de generosidade em nosso parceiro e adversrio.

    Concluiremos, assim, que o holismo e o individualismo s nos esclarecem quanto a dois

    casos extremos e muito particulares: no primeiro, todas as pessoas com quem nos

    relacionamos podem ser consideradas santos, ou algo assim, fosse apenas porque so

    to previsveis quanto santos; no segundo, todas as pessoas com quem nos relacionamos

    devem ser consideradas escroques. Falta, portanto, elaborar um modelo que se refira realidade concreta, essa na qual no sabemos para que lado tendem ou tendero nossos

    parceiros passados, presentes, futuros ou possveis, porque tendem aos dois ao mesmo

    tempo.

    "Confiar totalmente ou desconfiar totalmente", eis a soluo que, de modo precursor,

    Mauss dava ao dilema do prisioneiro (Mauss, 1966, p. 277). Ou, antes, a soluo que ele

    demonstrava ter sido efetiva e historicamente dada ao problema pelas sociedades

    arcaicas: apostar na aliana e na confiana, e concretizar a aposta por meio de ddivas

    que so smbolos performadores dessa aposta primeira. Ou recair na guerra. Em

    outras palavras, apostar na incondicionalidade pois na aliana se deve dar tudo

    mas reservando-se a possibilidade de recair, a qualquer momento, na desconfiana. Ou

    ainda, mergulhar na incondicionalidade (pois na situao do dilema do prisioneiro, por

    hiptese, sem comunicao com meu parceiro-adversrio, a escolha tem de ser, num

    determinado momento, sem condies) mas no incondicionalmente nem

    necessariamente para sempre. Permanecendo, pois, num ter de ambivalncia

    irredutvel, porque constitutivo da aliana entre inimigos e rivais. Ambivalncia que

    explica o fato de que as ddivas obrigatrias obriguem a quem d e a quem recebe, que

    sejam ao mesmo tempo remdio e veneno (gift/gift, pharmakos), benefcio e desafio,

    uma ambivalncia prpria ao regime que se pode chamar de incondicionalidade

    condicional (Caill, 1996).

    Uma teoria paradoxal e pluridimensional da ao

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#11nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#11nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#11nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#11not
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    No fundo, Marcel Mauss sugere, de modo pioneiro, que o nico modo possvel de

    responder ao dilema (do prisioneiro) faz-lo por meio de um paradoxo. A aposta da

    ddiva , de fato, intrinsecamente paradoxal, j que apenas a gratuidade demonstrada, a

    incondicionalidade, so capazes de selar a aliana que beneficiar a todos e, finalmente,

    quele que tomou a iniciativa do desinteresse. Aquele que, homenageando Joseph

    Schumpeter, tinha percebido claramente a natureza do problema econmico colocado,

    ficaramos tentados a chamar deempreendedor da ddiva. Mas, justamente, retrucaro o

    individualismo metodolgico e as mil e uma formas de utilitarismo cientfico,

    justamente, um empreendedor, e na verdade por interesse que age. E se assim,

    diro ainda, abusivo falar de ddiva.

    Ao que um partidrio do paradigma da ddiva responder que, raciocinando assim,cairemos novamente na ladainha de que mal acabamos de sair, desconsiderando

    totalmente o fato da aposta, da abertura para a incerteza quanto ao retorno que

    constitui a generosidade e a ddiva iniciais, sem as quais no haveria absolutamente

    nada. O empreendedor da ddiva, o chefe selvagem sedento de prestgio ou o cavalheiro

    que se recusa a trair seriam "realmente desinteressados"? Seu desinteresse no deve ser

    posto em dvida, ainda mais porque s vezes, freqentemente ou quase sempre (o que

    mais plausvel? Eis um vasto tema) ganham com isso? Questo sem sentido, seformulada nesses termos. Talvez eles "ganhem", mas por terem corrido o risco de

    perder, at de perder tudo, inclusive a prpria vida.

    E isso deve bastar, por ora, para notar uma grande diferena entre o paradigma da

    ddiva e seus dois rivais. Estes acreditam ter uma teoria da ao, mas na verdade no

    tm nenhuma, j que para eles todas as aes podem ser creditadas a um nico mvel. O

    sujeito da ao apresentado pelo holismo incapaz de dar. Controlado demais pelo

    exterior para atingir a liberdade e o sentido, pode, na melhor das hipteses, apenas

    cumprir corretamente o rito, a regra ou a funo, submetendo-se ao seu destino. Est

    controlado demais, obrigado demais para agir. Inversamente, o indivduo do

    individualismo metodolgico ao mesmo tempo livre demais e fechado demais em si

    mesmo para ser capaz de sair, agir e realmente se relacionar com as outras mnadas.

    Utilizando os termos de Max Weber, diramos que o holismo s concebe a ao

    tradicional, e o individualismo s concebe a ao instrumentalzweckrational.

  • 8/3/2019 Alain Caill - NEM HOLISMO NEM INDIVIDUALISMO METODOLGICOS. Marcel Muss e o paradigma da ddiva

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    Os comentadores de Mauss talvez no tenham dado suficiente nfase ao fato de que era

    um modelo de ao social totalmente diferente o que ele nos apresentava na reflexo

    acerca do sacrifcio ou da ddiva, um modelo intrinsecamente plural. Pois a ddiva ,

    segundo ele, indissociavelmente "livre e obrigada" de um lado, e interessada e

    desinteressada do outro. Obrigada, pois no se d qualquer coisa a qualquer pessoa,

    num momento qualquer ou de qualquer modo, sendo os momentos e as formas da

    ddiva de fato socialmente institudos, como bem nota o holismo. Contudo, se se

    tratasse unicamente de mero ritual e pura mecnica, expresso obrigatria de

    sentimentos obrigados de generosidade, ento nada ocorreria na verdade, j que, mesmo

    socialmente imposta, a ddiva s adquire sentido numa certa atmosfera de

    espontaneidade. preciso dar e retribuir. Sim, mas quando, quanto, com que gestos,

    quais entonaes? Quanto a isso, mesmo a sociedade selvagem mais controlada pela

    obrigao ritual deixa ainda um grande espao para a iniciativa pessoal.

    A definio da relao entre interesse e desinteresse mais delicada ainda, j que no

    somente o ganho acaba indo possivelmente, mas no garantidamente para aquele

    que soube correr o risco da perda, mas tambm porque a ddiva arcaica, ddiva

    nobre cujos restos Mauss exuma, no tem, nem pretende ter, nada de caridosa. Trata-se,

    como Mauss deixa bem claro, de ddiva agonstica, rivalidade pela ddiva. Uma outraforma da guerra, portanto. Guerra continuada por outros meios, como se descreveu certa

    vez o poltico, esse perfeito equivalente da ddiva em maior escala. De modo que o

    interesse se encontra duplamente presente e imbricado nessa ostentao simblica de

    generosidade. Que mais do que ostentao, alis, uma vez que a traz realidade. O

    interesse est no final do processo (e no no incio, como quer o utilitarismo), pois a

    generosidade, se tudo correr bem (mas no h como ter certeza de que tudo correr

    bem), acaba compensando. Sob outra forma, porm, encontra-se tambm no prpriocerne do processo inteiro, estruturado pela rivalidade agonstica dos parceiros. O

    paradoxo suplementar que essa rivalidade , em si mesma, a condio da aliana e da

    amizade.

    O que confere anlise mais do que esboada por Mauss sua enorme fora potencial o

    fato de no se apresentar como resultado de uma construo especulativa, mas como

    desvendamento da complexidade do concreto em si. Mantendo-se no nvel da

    especulao, no muito difcil perceber os defeitos que notvamos h pouco no

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    holismo e no individualismo metodolgicos, e tentar super-los multiplicando as

    hipteses e os modelosad hoc, obtidos pela manipulao mais ou menos arbitrria de

    algum parmetro. Nada disso ocorre em Mauss. Sem dvida, possvel e legtimo

    discutir infindavelmente a sua escolha das palavras. Estaria correto em utilizar o termo

    ddiva, em vez de troca simblica ou prestao agonstica (como s vezes faz)? Pode-se

    realmente falar em interesse, ou obrigao etc.? Ele mesmo tinha conscincia demais da

    extraordinria variabilidade histrica do sentido das palavras foi, inclusive, o

    primeiro terico disso, com o seu "Ensaio sobre algumas formas primitivas de

    classificao"(Durkheim e Mauss, in Mauss, 1971) para esconder suas dvidas

    quanto a cada um dos termos empregados. Contudo, no que diz respeito ao sentido geral

    da resposta que prope, h poucas dvidas. Poucas dvidas de que a ddiva "no

    funcionaria", no seria o operador privilegiado da sociabilidade que se no fosse,

    efetivamente, ao mesmo tempo e paradoxalmente obrigada e livre, interessada e

    desinteressada.

    Interacionismo, ddiva e redes

    O modo como tentamos, at agora, entrar no paradigma da ddiva certamente ter

    deixado cticos no s os defensores intransigentes do individualismo ou do holismo

    metodolgicos, como tambm todos aqueles, cada vez mais numerosos, que se filiam

    atualmente ao interacionismo. E atualmente todos o fazem, ainda que se trate

    unicamente de se distanciar dos defeitos mais grosseiros e mais gritantes dos dois

    paradigmas dominantes. Quem discordaria de que, em princpio, preciso evitar reificar

    e hipostasiar as figuras do indivduo e da sociedade? E tudo o que se tem buscado nas

    cincias sociais, nas ltimas trs dcadas, no constitui uma tentativa de abrir um

    caminho intermedirio, evitando tanto os escolhos do individualismo como os do

    holismo tradicionais?

    No h um ar de famlia, que consiste exatamente nisso, entre o interacionismo

    simblico de E. Goffman, a etnometodologia de Garfinkel, a antropologia das cincias

    de M. Caillon e B. Latour, a sociologia econmica de Mark Granovetter e Richard

    Swedberg, a economia das convenes de L. Thvenot ou, num gnero totalmente

    diferente, J.-P. Dupuy e A. Orlan, e a sociologia da competncia de Luc Boltanski?12E

    se assim, como tudo leva a crer inicialmente, no seria vergonhosamente abusivo

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#12nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#12nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#12nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#12not
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    atribuir a um nico autor, ainda por cima discreto quanto a esse tema, o mrito

    exclusivo de ter formulado uma questo que , na verdade, a de todos?

    No negamos que existe, de fato, um ar de famlia entre todos esses autores, e entre eles

    e Mauss. inclusive possvel descobrir interacionismo no prprio Durkheim e, a

    fortiori, em Weber. Sem mencionar G. Simmel, que , sem dvida, ao lado de Mauss, o

    outro inventor do paradigma que aqui tentamos fixar. Mas a questo crucial saber se

    existe, entre os autores que se dizem ou so ditos interacionistas, ferramentas tericas e

    conceitosespecificamente interacionistas. Nem sempre o caso. Vrias descries feitas

    por Goffman se referem, de fato, a interaes. Mas para explic-las, Goffman ora se

    apia na distino mais pesadamente holista de Durkheim, evocando a obrigao ritual,

    ora, ao contrrio, se inspira na teoria de T. Schelling e na teoria dos jogos, ou seja, noinstrumento privilegiado do individualismo metodolgico contemporneo.13

    Os economistas das convenes, por sua vez, a nosso ver se incluem totalmente no

    quadro do individualismo metodolgico que, alis, reivindicam explicitamente , e

    se limitam basicamente a introduzir nele um grau suplementar de flexibilidade.14Alis,

    a prpria idia de interacionismo no fica clara, e talvez fosse melhor, seguindo Norbert

    Elias, explorar as possibilidades do que poderamos chamar de interdependentismo,

    propondo a anlise do conjunto das interdependncias concretas que ligam os

    indivduos, do qual o interacionismo, isto , a anlise das inter-relaes face a face ou

    em relao de conhecimento mtuo, constituiria apenas um subconjunto.

    Seja como for, no somos evidentemente loucos de pretender que Mauss tenha

    inventado tudo sozinho e que, exceo dele, nada valha a pena. Notadamente, como

    acabamos de sugerir, parece que boa parte das descobertas que lhe atribumos poderia

    ser igualmente atribuda a GeorgSimmel, autor que tem ainda em comum com Mauss ohorror ao esprito de sistema. E nada se percebe nele que, em princpio, seja estranho

    abordagem do discpulo privilegiado de Simmel que Norbert Elias.

    Entre os autores contemporneos, aqueles com quem as afinidades deveriam ser mais

    pronunciadas so os que centram sua anlise na utilizao da noo de rede. o caso da

    antropologia das cincias e tambm da sociologia econmica tal como entendida e

    defendida por M. Granovetter e R. Swedberg (1994), entre outros. Quer seja no mbito

    da cincia ou no da empresa, esses autores mostram de modo sugestivo como sua

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#13nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#13nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#13nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#14nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#14nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#14nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#14nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#13not
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    anlise escapa das interpretaes correntes. O que produz a descoberta cientfica no a

    razo universal e impessoal em ao, mas a capacidade dos especialistas de constituir

    alianas, tecer redes e obter apoio de colegas, administradores, financiadores e

    jornalistas, e aparelhos, micrbios ou moluscos. O que faz funcionar as empresas e d

    vida aos mercados econmicos no a universal e abstrata lei econmica da oferta e da

    procura, mas a cadeia de (inter)dependncias e relaes de confiana de que so feitas

    as redes. As sociologias da cincia e da economia convergem, assim, para uma tipologia

    das redes.

    Nada mais de acordo com aquilo que constitui o ncleo da postura de Marcel Mauss. De

    fato, a primeira anlise de rede jamais realizada pelas cincias sociais e que ocupa

    um lugar central no"Ensaio sobre a ddiva" a de Malinowski, emArgonautas doPacfico (sic), quando descreve as ddivas simblicas de bens preciosos, osvaygu'as,

    realizadas pelos nativos das ilhas Trobriand por ocasio de suas famosas

    expedies kula. A palavrakula, explicava Malinowski, significa crculo, o grande

    crculo do comrcio simblico intertribal. Crculo ou rede, d no mesmo. Sem saber

    j que os socilogos americanos ignoram completamente Mauss , Granovetter centra

    sua reflexo a respeito das redes exatamente naquilo que Mauss descobrira em sua

    busca da ddiva atravs da infinita variedade de culturas: fidelidade e confiana.

    A rede o conjunto das pessoas em relao s quais a manuteno de relaes

    interpessoais, de amizade ou de camaradagem, permite conservar e esperar confiana e

    fidelidade. Mais do que em relao aos que esto fora da rede, em todo caso.15A nica

    coisa que falta a priori nessas anlises reconhecer que essa aliana generalizada que

    constitui as redes, atualmente como nas sociedades arcaicas, s se cria a partir da aposta

    da ddiva e da confiana.16E constatar que o vocabulrio da fidelidade e da confiana

    indissocivel do da ddiva (Servet, 1994), j que a palavra dada, mais do que o

    juramento e antes dele (Verdier, 1991). Contudo, e logo voltaremos a isso, a referncia

    ddiva, em razo de sua natureza simblica, abre imediatamente para uma dimenso que

    irredutvel s redes concretas e empiricamente determinadas.

    Mas acrescentemos desde j que por uma outra dimenso, igualmente forte, que essas

    anlises em termos de redes se inscrevem to facilmente no quadro da reflexo aberta

    por Mauss. De fato, holismo e individualismo tm em comum o fato de pensarem asociedade segundo um eixo vertical. Um para afirmar o peso esmagador do topo sobre a

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#15nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#15nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#15nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#16nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#16nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#16nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#16nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#15not
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    base, do todo sobre as partes e os indivduos. O outro, ao contrrio, para negar essa

    preeminncia perguntando, alm disso, totalidade: "quem te fez rainha?" ,

    pretendendo reproduzir logicamente a gerao do alto pelo baixo. Em ambos os casos,

    preciso supor que um dos dois termos preexiste gerao e seria, assim, transcendente

    realidade que gera. Raciocinar em termos do interacionismo da ddiva, de pensamento

    do poltico, , ao contrrio, adotar um ponto de vista radicalmente imanente,

    horizontalista, e mostrar que do mesmo movimento que se produzem ou se

    reproduzem os termos opostos, a base e o topo.

    "De sada", isto , o tempo todo, agora, no h nem indivduo nem sociedade nem

    natureza nem sociedade, diria Latour , mas a (inter)ao dos homens concretos.17A

    prxis, diria o jovem Marx deAideologia alem. Afirmao com que Mauss certamenteconcordaria, ele que, alis, era grande admirador de Marx e, por mais estranho que

    possa parecer, poderia justificadamente ser considerado como seu principal herdeiro.18

    Estabelecendo relaes que so determinadas pelas obrigaes que contraem ao se

    aliarem e dando uns aos outros, submetendo-se lei dos smbolos que criam e fazem

    circular, os homens produzem simultaneamente sua individualidade, sua comunidade e

    o conjunto social no seio do qual se desenvolve a sua rivalidade. Eis, aproximadamente,

    o que poderia dizer um Marx cruzado com Mauss e com alguns harmnicos do lado do

    atual pensamento de redes.

    Resta saber se os representantes desta ltima concordam com o que dela dizemos.19A

    principal implicao disso que o que poderamos chamar de modalidade reticular do

    interacionismo de modo menos pedante, as escolas que praticam o interacionismo

    baseadas na anlise das redes no representaria seno uma utilizao do paradigma

    da ddiva. Sendo de lamentar apenas que no tenha mais conscincia disso. E que,como insiste com justeza Olivier Schwartz (1993), num texto luminoso que constitui

    uma homenagem vibrante a Marcel Mauss e sua sociologia compreensiva, limitando-

    se a observar interaes empricas mais ou menos arbitrariamente recortadas, o

    interacionismo no saiba, em geral, abrir-se para a profundidade do simbolismo e do

    fato social total. Assim, escreve esse autor:

    Se o interacionismo se sente especialmente vontade no plano das unidades ou

    seqncias interacionais claramente delimitadas [...] uma perspectiva maussiana

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#17nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#17nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#17nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#18nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#18nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#18nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#19nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#19nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#19nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#19nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#18nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#17not
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    constri seus fatos de outro modo [...]: 1o. substitui um modo de recorte dos objetos

    operado em funo das necessidades da anlise do investigador por uma construo dos

    fatos segundo as situaes em que so efetivamente pertinentes para os grupos

    estudados; 2o. as unidades observadas no so constitudas em isolado [...] A

    originalidade de sua posio decorre, precisamente, de sua capacidade de circular entre

    o plano mais "situacional" e o mais "estrutural", de praticar o go-between entre nveis

    diferentes de organizao do fato social. (Schwartz, 1993, p. 303)

    O componente normativo do paradigma da ddiva

    Afirmvamos h pouco que, nas cincias sociais, o componente normativo

    hierarquicamente superior em relao s dimenses estritamente cognitivas. A aluso aMarx que acabamos de fazer permite precisar a situao de Mauss desse ponto de vista,

    e insistir no fato de que esses debates, que devem parecer bizantinos para os leigos,

    acerca do lugar que devem ocupar, respectivamente, os paradigmas holista,

    individualista e interacionista, esto longe de ter um alcance puramente acadmico.

    Atravs deles, e rapidamente, desemboca-se diretamente na questo das escolhas ticas

    e polticas. Simplificando um pouco, e correndo o risco de ficar exposto a numerosas

    refutaes empricas fceis, parece pouco duvidoso que existe uma forte correlao

    entre a adoo do paradigma individualista e uma certa preferncia pelo liberalismo

    econmico (e poltico) e, reciprocamente, entre a escolha de uma abordagem holista e,

    no mnimo, uma certa reticncia quanto a esse mesmo liberalismo econmico. Os

    individualistas desejam deixar ao livre jogo do mercado a organizao da maior parte da

    existncia social. Os holistas, ao contrrio, tm mais tendncia a desejar que o Estado

    desempenhe um papel importante.

    Nesse sentido, os debates acadmicos apenas reproduzem a oposio, to central namodernidade, entre liberais mais ou menos rgidos (ou o contrrio) e socialistas mais ou

    menos flexveis (ou o contrrio). Os primeiros falam a partir do ponto de vista do

    mercado, os ltimos, do ponto de vista do Estado (quando no do da religio ou de seus

    sucedneos modernos). Aqui tambm se sente uma grande lacuna, a de uma doutrina

    que, sem negar a necessidade do Estado e do mercado, tratasse de desenvolver uma

    viso poltica a partir do ponto de vista da prpria sociedade (e de sua autoconsistncia,

    sua Selbstandigkeit), na medida em que esta irredutvel ao mercado e ao Estado. Olivro de Fournier atesta a contento que era essa a viso de Mauss, que durante toda a

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    vida militou, e muitas vezes na linha de frente notadamente por ocasio de sua

    colaborao estreita com Jaurs , pelo advento de um socialismo associativo. Ser

    lcito pensar que a exigncia cada vez mais atual, mesmo que tudo parea nos afastar

    disso, e que o desenvolvimento da economia solidria, quaternria, associativa, plural

    etc., que todos desejamos profundamente, e pouco importa aqui sua designao exata,

    s pode surgir se reconhecer em si mesma um conjunto de mveis complexos, os que

    impelem paraa ddiva e para o investimento livre em redes de obrigaes, e no apenas

    por interesse individual isolado ou por obrigao estatal?

    Essa breve digresso normativa revela imediatamente a necessidade de efetuar um

    ajuste no alcance do paradigma da ddiva. Apesar de dezenas ou centenas de pginas

    escritas para especificar o contrrio, muitos leitores deLa Revue du MAUSS, mais oumenos benevolentes, acreditaram ler nela um manifesto romntico em favor de

    alternativas totalmente radicais e inditas para a ordem prtica e terica reinante. Como

    criticvamos a hipertrofia da economia de mercado, a hiptese de sua naturalidade e a

    de sua imaculada concepo, e como colocvamos srias dvidas quanto capacidade

    da cincia econmica de analis-lo, deduziu-se que desejvamos sua substituio por

    uma economia completamente diferente, uma economia fundada na ddiva e na

    gratuidade, por exemplo. E essas poucas linhas, rpidas e, portanto, desajeitadas queacabamos de escrever para mostrar a proximidade de inspirao entre aspectos de Marx

    e Mauss no vo certamente contribuir para resolver o problema. Pois a loucura do

    marxismo no sculo XX consistiu, justamente, em pretender construir, sobre as runas

    do mercado e do Estado burgueses, uma economia completamente diferente, fundada

    em motivaes altrustas, na ddiva, em prol da causa do proletariado.

    intil reafirmar aqui que nenhum desgnio sombrio ou ideolgico desse tipo nos

    inspira, e que, como Mauss, no clamamos de modo algum pela abolio do mercado ou

    do Estado, mas por sua reinsero numa ordem social e poltica que faa um sentido

    global seu reembedding, diria K. Polanyi. Ser certamente mais interessante precisar

    uma das razes tericas fundamentais para isso: nem a economia de mercado, nem a

    economia pblica, nem o capitalismo, nem o Estado so incomensurveis e

    absolutamente estranhos economia ou sociedade da ddiva, ou, pelo menos, no do

    modo como geralmente se imagina. Oprincpio da economia de mercado, para falar

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    como Montesquieu, o interesse (e, secundariamente, a liberdade). O princpio da

    economia pblica a obrigao (e, secundariamente, a igualdade).

    Nenhum desses princpios est ausente do registro da ddiva. Sua especificidade,

    comparadoa esses grandes maquinrios modernos impessoais que so o mercado e o

    Estado, no de modo algum o desprezo do interesse e da obrigao, da liberdade ou da

    reciprocidade, mas o fato de mesclar todos esses princpios, temperando um com o

    outro, quando a modernidade deixa cada ordem obedecer a seu prprio princpio,

    procurando torn-los compatveis, mas apenas a posteriori. No existe,

    portanto, um modelo da economia da ddiva que pudesse ser, enquanto tal, oposto ao do

    mercado ou da economia estatal. Isso exige que se torne ainda mais preciso o sentido no

    qual nos parece possvel buscar delimitar um paradigma da ddiva.

    Um paradigma anti-sistemtico e antiparadigmtico (as quatro entradas para a

    ddiva)

    Assim como se imputou Revue du MAUSS um rousseaunianismo ingnuo e perigoso,

    muitos de seus leitores apressados acreditaram que, como criticvamos a axiomtica do

    interesse a pretenso de tudo explicar pelo famoso interesse , decorria que

    pretendamos poder tudo explicar pelo desinteresse, quem sabe at pelo esprito de

    caridade. Pois bem, correndo o risco de surpreender, no hesitamos em declarar e repetir

    que o paradigma da ddiva no implica nenhuma condenao das explicaes pelo

    interesse enquanto tais, inclusive o interesse econmico. O "Ensaio sobre a ddiva",

    alis, recheado de consideraes nesse sentido, a ponto de alguns autores terem achado

    que poderiam situ-lo sob a bandeira de uma certa forma de marxismo economicista.

    "Ser o primeiro, o mais belo, o mais sortudo, o mais forte e o mais rico, isso o que se

    busca e assim se o obtm." (Mauss, 1966, p. 270). Essa frase aparentemente simplestransborda, decerto, de sutilezas ocultas, pois poderamos refletir longamente acerca da

    hierarquia relativa desses diversos objetivos e do modo como cada um deles pode ser

    atingido.

    Por uma longa srie de razes, que tomaria muito tempo desenvolver aqui, parece que

    uma das implicaes lgicas do antiutilitarismo e do paradigma da ddiva deva ser a

    afirmao de que os interesses instrumentais so hierarquicamente secundrios em

    relao ao que se poderia chamar de interesses de forma ou de apresentao de

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    si (Selbstdarstellung), que os interesses estritamente econmicos ou materiais so

    secundrios em relao aos interesses de glria ou fama, dir-se-ia ainda h pouco tempo

    atrs. E isso porque, antes de ter interesses econmicos, instrumentais ou de posse,

    preciso que os sujeitos, individuais ou coletivos, existam, e se constituam enquanto tais.

    Seja como for, fica suficientemente claro nessa discusso que o paradigma da ddiva

    no o inimigoa priorida axiomtica do interesse (exceto em sua dimenso axiomtica

    ou paradigmtica), nem de nenhum outro tipo de explicao. Ope-se, sim, a todo e

    qualquer reducionismo e, assim, a toda teorizao unilateral. E, sobretudo, a toda

    teoria a priori. A quem fala apenas de interesse preciso retrucar que h tambm

    obrigao, e espontaneidade, e prazer, e vice-versa.

    Se refletirmos acerca da extraordinria complexidade analtica imediatamenteintroduzida pela frmula da tripla obrigao de dar, receber e retribuir, e de sua

    combinao com a certeza de Marcel Mauss de que, na ddiva, h ao mesmo tempo

    obrigao e liberdade, interesse e desinteresse, compreende-se melhor por que Mauss,

    inimigo de qualquer sistema, no deixou nehuma teoria acabada e formalmente

    satisfatria. Se quisssemos adotar um procedimento tipologizante, poderamos de fato

    distinguir entre as aes que so regidas primeiramente pela obrigao de dar, ou pela

    de receber, ou pela de retribuir,20

    e refazer a operao para cada um dos trs outrosmotivos e depois considerar as combinaes de motivos. Isso bastaria para constituir um

    instrumental tipolgico respeitvel, e provavelmente necessrio.21Porm, sem desejar

    ou pretender ir to longe, para ter uma idia da plasticidade intrnseca do paradigma

    bastar notar a extraordinria pluralidade dos escritos explicitamente inspirados

    nele.22E que, surpresa, podem muito bem ser reagrupados de acordo com as quatro

    dimenses da ao isoladas por Mauss.

    Uma primeira categoria de textos, os mais prximos de uma abordagem etnolgica ou

    antropolgica profissional, insistem primariamente no fato da obrigao ritual. Para

    eles, a ddiva antes de mais nada ddiva ritual. Ou exclusivamente isso. O autor mais

    representativo dessa concepo certamente Guy Nicolas (1986), que, alis, dedicou a

    suas manifestaes na frica, no Niger, na regio de Maradi, uma das mais belas

    monografias jamais produzidas em Etnologia, na nossa opinio,23e que atualmente

    estende sua anlise s sociedades contemporneas e ao estudo do martrio e da vontade

    de morrer pela ptria (Nicolas, 1995 e 1996).

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#20nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#20nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#20nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#21nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#21nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#21nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#22nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#22nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#22nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#23nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#23nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#23nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#23nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#22nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#21nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#20not
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    Com nuanas j que seus autores no so etnlogos de profisso , poderamos

    ligar a essa inspirao o belo livro de Dominique Temple e Mireille Chabal (1995), La

    reciprocit et la naissance des valeurs humaines, que mostra admiravelmente que antes

    da ddiva positiva, ddiva de bens, e da ddiva negativa, ddiva dos males e da morte,

    existe uma obrigao de reciprocidade, anterior a qualquer ddiva concreta, que regula a

    alternncia dos gestos.24De onde provm essa obrigao de reciprocidade? Por que

    mesmo na mais terrvel das guerras h sempre regras? Eis, de fato, um campo de

    reflexo de suma importncia. E um campo emprico evidentemente inesgotvel, j que

    o prprio campo da Antropologia, inclusive da antropologia das sociedades modernas.

    Seguindo a lgica estruturalista das oposies binrias, as anlises mais opostas quelas

    que raciocinam em termos de ritual so as que vem primeiramente na ddiva, em vezda obrigao, a dimenso da liberdade, na medida em que beira a espontaneidade e a

    criao. A generosidade, neste caso, est do lado do engendramento e da gerao a

    da paternidade e da maternidade, ou ainda a do artista criador (cf. Hyde, 1983). No

    primeiro caso, dom de vida; no segundo, dom do artista, justamente na medida em que

    ele recebeu um dom, e que faz com que esse dom recebido das musas circule em prol

    dos outros.

    A ddiva , assim, ddiva do que surge, ddiva do prprio surgir. Essa a ddiva que

    ocupa os filsofos, mais do que os etnlogos, principalmente se forem fenomenlogos.

    Se a ddiva dos etnlogos basicamente ddiva ritual, aqui torna-se doao, ou ddiva-

    doao. Dentre os autores que contriburam naRevue du MAUSS, o mais sensvel a essa

    dimenso da ddiva certamente Jacques Dewitte (1993), particularmente atento obra

    do bilogo A. Portmann, sobre a qual Hannah Arendt baseava parte de suas reflexes

    relativas ao desejo de aparecer. No resta dvida de que est a uma dimenso essencial

    do antiutilitarismo, j que as anlises de Portmann permitem descartar qualquer

    interpretao utilitarista, funcional ou instrumental do ser vivo, mostrando como ele se

    desenvolve no jbilo da apresentao de si (Selbstdarstellung) e como esta ltima

    hierarquicamente primeira em relao s necessidades orgnicas e funcionais.

    Essa meno ao jbilo inerente ao fato de aparecer lana uma ponte entre a tradio

    fenomenolgica de Arendt, Portmann e Dewitte e uma entrada totalmente diferente na

    complexidade da ddiva, a da rivalidade e do Agn. No existe apenas desejo deaparecer, diria Jean-Luc Boileau, seu mais firme e fogoso defensor, mas luta e

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#24nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#24nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#24nothttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091998000300001#24not
  • 8/3/2019 Alain Caill - NEM HOLISMO NEM INDIVIDUALISMO METODOLGICOS. Marcel Muss e o paradigma da ddiva

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    competio para impor seu prprio aparecer perante o dos outros. Esse o verdadeiro

    motivo primeiro. O desejo de glria, de ser o mais belo. A ddiva, aqui, agonstica. E

    a posio de Boileau forte, j que sem dvida da ddiva agonstica, e no de outr