alda lara

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Os (des)abrigos do “eu” e as metáforas da casa na poesia de Alda Lara, Conceição Lima e Glória de Sant’Anna 1 Érica Antunes Pereira 2 RESUMO: Neste artigo, pretendemos analisar como as metáforas da casa contribuem para a formação da identidade nacional e/ou feminina na poesia de Alda Lara, Conceição Lima e Glória de Sant’Anna. ABSTRACT: In this paper, we intend to analyze as the metaphors of the house contribute for the formation of the national and/or feminine identity in the poetry of Alda Lara, Conceição Lima and Glória de Sant’Anna. PALAVRAS-CHAVE: Literaturas Africanas de Língua Portuguesa; Poesia; Metáfora; Identidade. KEYWORDS: African Literatures of Portuguese Language; Poetry; Metaphor; Identity. Buscando uma “afirmação de identidade”... Para além da idéia de espaço concreto, a imagem que o substantivo “casa” costuma suscitar tem natureza simbólica e está ligada à sensação de abrigo, refúgio ou tranqüilidade. Na poesia, essa conjetura ganha especial força à medida que a metáfora desempenha, na expressão de Northrop Frye (2000, p. 152), o papel de “afirmação de identidade”, em que o sentido literal dos termos é subsumido pelas semelhanças ou pelas identificações entre eles estabelecidas. Nesse 1 Parte deste artigo foi apresentada oralmente no Colóquio “Caminhos da língua portuguesa: África-Brasil” realizado de 6 a 9 de novembro de 2006 na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). 2 Doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade de São Paulo (USP) e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Pesquisa: Da catana ao batom: Diferentes perspectivas da representação do feminino na poesia africana de língua portuguesa — análise das obras de Alda Espírito Santo, Alda Lara, Conceição Lima, Glória de Sant'Anna, Noémia de Sousa e Paula Tavares. E-mail: [email protected]. novembro de 2007 - Nº 2

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Tese sobre Alda Lara

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  • Os (des)abrigos do eu e as metforas da casa na poesia

    de Alda Lara, Conceio Lima e Glria de SantAnna1

    rica Antunes Pereira2

    RESUMO: Neste artigo, pretendemos analisar como as metforas da casa contribuem para a formao da identidade nacional e/ou feminina na poesia de Alda Lara, Conceio Lima e Glria de SantAnna. ABSTRACT: In this paper, we intend to analyze as the metaphors of the house contribute for the formation of the national and/or feminine identity in the poetry of Alda Lara, Conceio Lima and Glria de SantAnna. PALAVRAS-CHAVE: Literaturas Africanas de Lngua Portuguesa; Poesia; Metfora; Identidade. KEYWORDS: African Literatures of Portuguese Language; Poetry; Metaphor; Identity.

    Buscando uma afirmao de identidade...

    Para alm da idia de espao concreto, a imagem que o

    substantivo casa costuma suscitar tem natureza simblica e est

    ligada sensao de abrigo, refgio ou tranqilidade. Na poesia, essa

    conjetura ganha especial fora medida que a metfora desempenha,

    na expresso de Northrop Frye (2000, p. 152), o papel de afirmao de

    identidade, em que o sentido literal dos termos subsumido pelas

    semelhanas ou pelas identificaes entre eles estabelecidas. Nesse

    1 Parte deste artigo foi apresentada oralmente no Colquio Caminhos da lngua portuguesa: frica-Brasil realizado de 6 a 9 de novembro de 2006 na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). 2 Doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa na Universidade de So Paulo (USP) e bolsista da Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo (FAPESP). Pesquisa: Da catana ao batom: Diferentes perspectivas da representao do feminino na poesia africana de lngua portuguesa anlise das obras de Alda Esprito Santo, Alda Lara, Conceio Lima, Glria de Sant'Anna, Nomia de Sousa e Paula Tavares. E-mail: [email protected].

    novembro de 2007 - N 2

  • Revista Crioula n 2 novembro de 2007

    Artigos e Ensaios - rica Antunes Pereira

    caso, quando dizemos, por exemplo, que O campo o ninho do poeta,

    podemos encarar a metfora tanto como uma forma potica de

    expresso e ento as palavras campo e ninho tm pesos idnticos

    quanto, mais profundamente, como o meio revelador de um

    intrnseco vnculo simblico entre os dois espaos aqui, pela

    dimenso de um e de outro, o ninho assume uma roupagem protetora

    e aconchegante que no costuma caracterizar o campo e que, em

    ltima anlise, implica afirmar que campo e ninho se identificam,

    mas no se equivalem.

    A relao entre a identidade e a metfora, portanto, revela-se

    bastante estreita: se aquela se caracteriza pela definio do ser, esta

    diz respeito ao como o ser representado. Assim, considerando que

    o sujeito o eu constitui figura essencial quando tratamos da

    questo da identidade, j que ele quem indaga ou faz indagar acerca

    do fato de estar/ser/pertencer no/do/ao mundo, precisamos, o quanto

    antes, conhecer quem pergunta pela identidade, em que condies,

    contra quem, com que propsitos e com que resultados (SANTOS,

    2003, p. 135). Muitas vezes, o desvendamento de tais questes ocorre a

    partir da anlise das metforas contidas no texto, de modo a privilegiar

    o vnculo entre o sujeito e a representao do mesmo. No caso do

    exemplo de que nos valemos h pouco, o ninho se contrape

    extenso do campo e, paradoxal e concomitantemente, dele se

    aproxima, configurando a imagem do poeta como um sujeito em

    equilbrio.

    No entanto, tal qual a identidade, as metforas no so estticas,

    podem variar conforme o contexto e tomar sentidos muito diversos

    daqueles concebidos numa primeira leitura: o ninho, pois, se assim o

    determinar o universo diegtico, pode no mais se ligar noo de

    abrigo, refgio ou tranqilidade e adquirir novas direes. Para

    demonstrar como se do essas transformaes, passamos agora a

    analisar a relao dos sujeitos poticos com as metforas da casa em

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    alguns poemas da angolana Alda Lara, da so-tomense Conceio Lima

    e da moambicana Glria de SantAnna3.

    A casa como espao do abrigo e do desabrigo Ao pensarmos a casa como ndice de abrigo, refgio ou

    tranqilidade, lembramo-nos, imediatamente, de Davi Arrigucci Jr.,

    que, ao analisar o Poema s para Jaime Ovalle, de Manuel Bandeira,

    descreve o quarto habitado pelo poeta tomado, por analogia, como a

    casa deste como o espao do recolhimento, caracterizado por ser

    onde a vida se aconchega, aninhando-se no mais ntimo, mas onde se

    entrega tambm ao mundo de fora, resgatando-o interiormente; onde se

    processa o movimento que enlaa o sujeito e o objeto; onde, enfim, o

    vivido se muda por palavras em poesia (ARRIGUCCI JR., 2003, p. 64).

    Essa relao do espao exterior com o interior tambm aparece no

    poema Vida que se perdeu, de Alda Lara (1984, p. 61-62), em que o

    sujeito potico se encontra Na minha [sua] mesa de estudo, Na minha

    [sua] mesa de trabalho portanto, preso a um aposento e envolvido

    com seus afazeres.

    Mas as semelhanas entre os poemas terminam a; se o quarto de

    Bandeira arejado, onde o mundo penetra enquanto dimenso social e

    enquanto natureza (ARRIGUCCI JR., 2003, p. 64), o mesmo no pode

    ser dito a respeito do cmodo descrito no poema de Alda Lara: neste, a

    janela [est] fechada e para alm dela que Est a VIDA!.... A

    palavra VIDA, escrita com letras maisculas na segunda e terceira

    3 Pelo fato de Glria de SantAnna ter nascido em Portugal e por sua poesia ser considerada de cunho universal ou existencial, Russel G. Hamilton denomina-lhe euromoambicana (cf. HAMILTON, Russel G. Literatura africana, literatura necessria, II Moambique, Cabo Verde, Guin-Bissau, So Tom e Prncipe. Lisboa: Edies 70, 1984, p. 63 e 87). Desde j, registramos a nossa discordncia quanto a tal posicionamento, situando-nos ao lado de Carmen Lucia Tind Secco que, a respeito, afirma: Consideramos esse critrio bastante discutvel, pois apenas leva em considerao a ptria de nascimento da autora, ignorando os pactos afetivos de identificao tecidos durante sua longa vivncia em terras africanas (cf. SECCO, Carmen Lucia Tind. Uma potica de mar e silncio... In: A magia das letras africanas: ensaios escolhidos sobre as literaturas de Angola, Moambique e alguns outros dilogos. Rio de Janeiro: ABE Graph: Barroso Produes Editoriais, 2003, p. 158).

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    estrofes, acentua o grau de insatisfao do sujeito potico que, alm de

    fisicamente enclausurado, enfrenta o agravamento de sua sade

    psicolgica medida que passa todo o tempo e agora comeamos a

    perceber a relao tempo versus espao embutida no poema diante

    da mesa, entre as pobres concepes doentes e a tristeza emersa de

    seu interior. A janela fechada, portanto, representa o limite entre dois

    espaos diametralmente opostos; observemos, tambm, que o sujeito

    potico enxerga a VIDA atravs do vidro da janela, embora, ao

    contrrio do que ocorria com Manuel Bandeira, isso no implique seu

    resgate interior: de qualquer modo, tal fato acena para uma fora

    interna do sujeito potico que, apesar de estar com a cabea curvada/

    Sbre o palavriado/ Complexo/ E sem nexo,/ Que os livros contm!...,

    pode, a qualquer momento, insurgir-se contra a postura por si adotada

    e, por assim dizer, saltar a janela e sentir sobre a pele o sol

    esplendoroso de Vero,/ Um vestido de algodo ou partilhar o riso

    duma criana/ Que esvoaa/ E grita Esperana!....

    As rimas, ainda que pobres (trabalho/retalho; mesa/tristeza;

    Vero/ algodo; criana/Esperana; fechada/curvada; complexo/nexo;

    Espao/cansao), o recorrente emprego das reticncias e os interregnos

    entre vrias das estrofes (1 e 2, 3 e 4, 5 e 6 e aps a 6)

    demonstram que o sujeito potico se apanha em incansvel reflexo.

    Tanto essa idia tem fundamento que todo o poema construdo no

    presente do indicativo, exceo da quinta estrofe que, ao surgir

    isolada no pretrito perfeito, torna irreversvel a inrcia do sujeito

    potico diante dos fatos: Ah! Vida que eu apeteci/ Estreitar nos

    braos,/ De encontro ao peito,/ E que perdi.../ Ah! Vida que eu no

    vivi!... As duas interjeies contidas nessa mesma estrofe reforam o

    tom lamentoso do sujeito potico que, definitivamente, no consegue

    abrir a janela para viver a VIDA que sabe existir do lado de fora, da

    tambm o ttulo do poema ser Vida que se perdeu. Mais, os versos

    Estreitar nos braos,/ De encontro ao peito, alm de ilustrarem a

    relao que o sujeito potico desejaria estabelecer com a Vida,

    lembram o vnculo da me com o seu beb e trazem tona as sensaes

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    de aconchego e proteo: assim, o corpo do sujeito potico, ao se

    aproximar da figura materna, pode tambm ser visto como uma

    metfora da casa.

    Neste poema de Alda Lara, observamos, ento, a presena de dois

    espaos internos um representado pelo aposento e outro pelo corpo

    em confronto com um terceiro espao, agora externo, simbolizado

    pelas imagens do sol esplendoroso de Vero, do vestido de algodo e

    do riso duma criana, fortes o bastante para que o sujeito potico

    resuma nelas a VIDA!... sempre exclamativa e reticente. A janela

    fechada, mas de vidro, remete-nos simbologia do olho,

    costumeiramente tido como a janela da alma; assim, conforme a

    atitude do sujeito potico se mostre mais contemplativa e menos dada

    ao, mantendo a janela sempre fechada, instaura uma noo de

    inrcia que, para alm do sono, conduz sua morte interior e refora o

    ttulo do poema.

    Finalmente, a sexta e ltima estrofe No Espao/ Paira o meu

    [do sujeito potico] cansao!... , margeada por linhas pontilhadas que

    parecem materializar os hiatos da vida, torna ntida a afirmao de que,

    em Vida que se perdeu, a metfora da casa se exaure nos desabrigos

    interiores o do aposento e o do corpo pelo sujeito potico

    experimentados.

    O paraso revisitado

    No esteio das relaes entre abrigo e desabrigo, exterior e interior,

    o sujeito potico do poema A casa, de Glria de SantAnna (2005, p.

    22-23) apresenta um ambiente oposto ao aposento divisado em Vida

    que se perdeu. Os cinco versos iniciais, risos rompem a madrugada/

    que surge cor de rosa// passos leves palmilham/ o corredor// os

    chuveiros tilintam, s para exemplificar, so tomados por signos

    positivos, benficos, indutores de um dia agradvel. Esse clima de

    leveza introduzido verso a verso atinge um tom paradisaco com os

    pombos que atendem ao chamado do sujeito potico, as casuarinas

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    lentas/ a que brisas, as buganvlias rubras e as rosadas/ [que]

    abraam as petnias, alm dos colibris pairando nos hibiscos, das

    amoreiras e atas e papaias/ e mangas, das flores de santo antnio e

    das amndoas da ndia.

    A memria de um tempo idlico instaura a permanncia a partir

    do redivivo cultivo do cotidiano e pode ser percebida com base nos

    verbos conjugados no presente do indicativo em todo o poema; alm

    disso, o verso (mangas verdes com sal), ao ser disposto entre

    parnteses, alude a momentos bastante aprazveis, recuperadores da

    infncia. Nesse sentido, ao poema de Glria de SantAnna pode ser

    aplicada a anlise que Manoel de Souza Silva (1996, p. 105) faz do

    poema Mangas verdes com sal, de Rui Knopfli4, ao afirmar que a

    superao da ambivalncia5 no dispensa, sequer, a visitao das cores,

    cheiros e sabores da infncia, fundidos na memria, numa espcie de

    tentativa de recuperao de si mesmo num estgio menos propenso s

    racionalizaes.

    A recuperao da infncia e, portanto, do paraso ainda

    reiterada pela estrofe tudo murmura/ e os muros/ abertos a quem

    passa/ no tm portas, pois tudo [aquilo que] murmura vivo, freme,

    pulsa; mais, ainda que essa casa-jardim semelhe uma campnula, a

    penetrao em tal universo permitida a todos: tanto os muros so

    abertos quanto inexistem portas.

    De outra feita, mesmo esse universo ednico no se eterniza: a

    conjuno coordenativa adversativa mas, presente no verso mas

    agora (ai) agora, introduz o agora, instante-j, fase antes no

    experimentada porque os dias se sucediam com toda a calma. Essa 4 Eis o poema Mangas verdes com sal de Rui Knopfli: Sabor longnquo, sabor acre/ da infncia a canivete repartida/ no largo semicrculo da amizade.// Sabor lento, alegria reconstituda/ no instante desprevenido, na mar-baixa,/ no minuto da suprema humilhao.// Sabor insinuante que retorna devagar/ ao palato amargo, boca ardida,/ crista do tempo, ao meio da vida. (KNOPFLI, Rui. Mangas verdes com sal. In: FERREIRA, Manuel. No reino de Caliban III: antologia panormica de poesia africana de expresso portuguesa Moambique. Lisboa: Pltano, 1985, p. 284). 5 O autor utiliza a palavra ambivalncia para se referir queles casos que no contam com a aprovao unnime pelo menos enquanto se trata de sua aprovao como poetas moambicanos (1996, p. 103), o que tambm ocorre com Glria de SantAnna.

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    mudana de perspectiva reforada pela subjetividade do (ai)

    entremeado de agoras e abre passagem para a angstia. Assim, a

    partir de agora, a minha [do sujeito potico] casa est fechada/ por

    agudas e altas paliadas/ erguidas como espadas/ que escondem a

    ternura/ das flores das seivas dos abraos. Tal estrofe pode abarcar

    duas possveis leituras quanto ao quesito espacial: a primeira a de

    que a casa continue a ser a inscrio do den, embora ele agora esteja

    fechado, restrito a poucos, exclusivamente aos que forem autorizados a

    ultrapassar as agudas e altas paliadas que, como espadas,

    prestam-se defesa e instauram o maniquesmo para aqum e para

    alm dos limites dos muros; a segunda, a de que a casa no seja mais o

    espao externo, mas, ao revs, a prpria subjetividade do sujeito potico

    que se fecha em copas, tornando-o inatingvel graas a um absoluto

    recolhimento interior.

    Resta estabelecida, a partir dessa segunda leitura, a relao casa-

    corpo de que fala Mircea Eliade (2001, p. 144): Habita-se um corpo da

    mesma maneira que se habita uma casa ou o Cosmos que se criou para

    si mesmo. Precisamos estar atentos, porm, para o fato de que,

    diversamente do poema Vida que se perdeu, de Alda Lara, o sujeito

    potico que habita A casa, de Glria de SantAnna, no est

    desabrigado; muito pelo contrrio, to resguardado se encontra que

    toda a ternura/ das flores das seivas dos abraos desaparece entre as

    agudas e altas paliadas.

    Mas no s: toda essa transformao quer vista pelo prisma

    do espao externo, quer pelo do interno entristece o sujeito potico a

    tal ponto que justo sobre a ternura/ das flores das seivas dos abraos

    que tombam silentes/ estas lgrimas// sobre o cho de mosaico. O

    silncio, na potica de Glria de SantAnna, , conforme Carmen Lucia

    Tind Secco (2003, p. 164), tramado pela densidade de emoes e

    sentimentos despertados por situaes vrias: de beleza, de ternura, de

    dio, de dor, de medo, de angstia, de saudade. Se pensarmos no

    significado da palavra mosaico, podemos afirmar que as lgrimas que

    tombam silentes revelam, simbolicamente, tanto a fragmentao

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    interna vivenciada pelo sujeito potico quanto a sua fortaleza exterior:

    dois mundos que se comunicam pela metfora da casa.

    Um projeto de (re)construo

    Tom menos melanclico e mais incisivo tem o poema de

    Conceio Lima, cujo ttulo , tambm, A casa (2004, p. 19); nele,

    observamos ser recorrente o emprego de verbos de ao e de

    substantivos concretos e, medida que se opera a passagem do

    pretrito perfeito indicativo de algo efetivamente realizado para o

    presente, h o levantar de um projeto que, mesmo ainda no concludo,

    continua a ser acalentado.

    Ao iniciar o primeiro verso Aqui projectei a minha casa:

    com um advrbio de lugar, o sujeito potico, de plano, circunscreve o

    seu espao de atividade: aqui no um lugar qualquer, est

    delimitado, escolhido. Do mesmo modo, trata-se de uma casa nica,

    afirmao que abstramos do uso do artigo a e do pronome possessivo

    minha em anteposio ao substantivo. Alm disso, a casa projetada

    possui caractersticas que a tornam ainda mais singular: alta,

    perptua, de pedra e claridade, adjetivos positivos que, conotativa e

    respectivamente, apontam para a verticalidade, a perenidade e a

    tranqilidade ou a lucidez. A distino se d, ainda, pelo basalto negro,

    poroso/ [que] viria da Mesquita e pelo barro vermelho/ da cor dos

    ibiscos/ para o telhado oriundo do Riboque, caractersticas que, alm

    de funo utilitria, valem como ornamento. importante, nesse ponto,

    atentarmos para o fato de Mesquita e Riboque serem duas cidades

    vizinhas e prximas a So Tom, a capital de So Tom e Prncipe, pois,

    conforme afirma Inocncia Mata (2004, p. 12) na apresentao da obra

    O tero da casa ttulo para ns bastante sugestivo , este dos

    poemas que, situando-se num plano reflexivo, controem o relato de

    uma gerao, metonmia de um segmento narrativo do relato da nao.

    A idia da casa-nao toma consistncia do oitavo ao dcimo

    quarto verso, caso em que podemos ler: a) a Enorme janela e de vidro

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    como a representao do cu, da soberania e da transparncia poltica

    ou econmica ou de outra ordem em So Tom e Prncipe; b) a sala

    [que] exigia um certo ar de praa como a capital, So Tom, uma vez

    que a sala costuma ser considerada o principal compartimento da casa;

    c) O quintal [que] era plano, redondo/ sem trancas nos caminhos

    simbolizando todo o territrio so-tomense; e, d) a projeo da casa

    Sobre os escombros da cidade morta e recortada contra o mar como

    um indcio do desejo de reconstruo do pas manifestado aps a

    independncia. Observamos, ainda, que neste poema, a exemplo de A

    casa, de Glria de SantAnna, analisado anteriormente, uma extenso

    sem obstculos ansiada, ideal, porque acessvel a todos.

    Novamente, o advrbio de lugar Aqui. aparece, mas desta

    vez constituindo sozinho um verso, numa reiterao da certeza

    manifestada pelo sujeito potico acerca do espao; aquele e nenhum

    outro o seu lugar, o seu pas, a sua casa. O projeto da casa, porm,

    conforme j adiantamos alhures, no est concludo; o que canta o

    sujeito potico nos versos Sonho ainda o pilar / uma rectido de

    torre, de altar. Como sabemos, o pilar, simbolicamente, significa a

    relao do eu com o universo, uma espcie de sustentculo do cu,

    idia que se torna vivel quando pensamos, com Mircea Eliade, que o

    ato de instalar-se num territrio, construir uma morada pede (...) uma

    deciso vital, tanto para a comunidade como para o indivduo, pois

    trata-se de assumir a criao do mundo que se escolheu habitar

    (ELIADE, 2001, p. 49).

    O importante, nesse poema de Conceio Lima, percebermos

    que o sujeito potico no se esquiva do intento de (re)construir a casa

    em momento algum; tanto isso ajustado que o fato de ouvir

    murmrios de barcos/ na varanda azul quer pela vivificao

    promovida pelos murmrios, quer pela liberdade de trnsito

    caracterstica dos barcos ou, talvez, sobretudo pelo fato de a varanda

    ser azul, cor simbolicamente ligada transformao do real em

    imaginrio faz com que ele, tal qual as gregas Parcas tecedoras do

    destino dos homens, reinvente em cada rosto fio/ a fio/ as linhas

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    inacabadas do projecto, numa renovao esperanosa de, um dia, levar

    a cabo a (re)construo da casa, da nao e, por conseqncia, de si

    mesmo.

    Uma fnix renascida das cinzas

    Seguindo tambm uma linha que podemos chamar de social, o

    Poema para um dia de chuva, de Glria de SantAnna (2000, p. 60),

    apresenta um sujeito potico que parece empenhado em (re)construir as

    relaes humanas. No verso inicial A minha casa um farol no meio

    da noite , percebemos que conforme a luminosidade do farol se ope

    escurido noturna, a segurana experimentada pelo sujeito potico

    adquire fora incontestvel e o capacita para, imperativamente, sem

    nenhum medo, chamar: Vem, seja quem fores. A casa, aqui, como

    vimos h pouco no poema de Conceio Lima, pode simbolizar a nao

    ou, mais especificamente, o pas: feito a fnix, ele renasce das cinzas

    da guerra, da noite graas solidariedade e coragem de seu povo.

    O fato de o sujeito potico chamar para o interior da casa pessoas

    indistintas sejas quem fores demonstra ainda o seu

    desprendimento de questes raciais, sociais ou etnolgicas, por

    exemplo, adiantando o sentimento vindouro de seu interlocutor: ficars

    a princpio como a haste de uma flor/ gotejando sobre o tapete// e ns

    olhar-te-emos/ da cor da chuva, ou seja, recebido num espao que

    antes no lhe cabia, o estrangeiro se torna suscetvel, fragilizado, alvo

    de curiosidade posto que extico. O tapete , simbolicamente, o solo da

    nao; a casa, a prpria nao em sua integridade. Aqui, inevitvel

    entrevermos a relao entre colonizador e colonizado, mas com papis

    trocados: aquele que chega sejas quem fores no , na concepo

    do poema, o colonizador; a figura deste exercida pelo sujeito potico

    que, destemidamente, convida o estrangeiro para habitar a casa e tem

    conscincia da fragilidade do outro.

    No entanto, essa analogia se desfaz imediatamente, quase

    imediatamente, to logo o sujeito potico conforta seu interlocutor:

  • Revista Crioula n 2 novembro de 2007

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    sentirs nas tuas as palmas quentes/ das nossas mos// e achars no

    desenho dos nossos risos/ a traduo da hora. No h, portanto, os

    embates entre colonizador e colonizado to bem delineados por Albert

    Memmi (1989); neste poema, h, isto sim, unicamente pessoas. Em

    outras palavras, a idia do desabrigo advinda do ttulo Poema para um

    dia de chuva distanciada porque no fluir dos versos h a celebrao

    do acolhimento.

    No podemos, ainda, deixar de anotar que embora possua uma

    enorme carga existencial, este poema como muitos outros de

    Glria de SantAnna no deixa de problematizar as questes sociais

    (SECCO, 2003, p. 161); tanto isso tem substncia que a casa metaforiza

    a nao (re)construda a partir da fora conjunta, da solidariedade.

    Nesse sentido e para finalizar , so pertinentes as palavras de

    Theodor W. Adorno (2003, p. 74), para quem

    a lrica se mostra mais profundamente assegurada, em termos sociais, ali onde no fala conforme o gosto da sociedade, ali onde no comunica nada, mas sim onde o sujeito, alcanando a expresso feliz, chega a uma sintonia com a prpria linguagem, seguindo o caminho que ela mesma gostaria de seguir.

    Uma solidariedade solitria

    A solidariedade tambm aparece com muita fora no poema Para

    leres numa manh de chuva, de Alda Lara (1984, p. 119), ainda que s

    tenhamos condies de confirm-la nos dois ltimos versos. A

    construo sinttica relativamente simples, com fartura de verbos no

    presente do indicativo, de substantivos concretos e de adjetivos de

    carga simblica negativa, sem falar no advrbio quando que, iniciando

    trs versos, remete-nos relao tempo versus espao. A respeito da

    recorrncia, Alfredo Bosi (2000, p. 41) afirma que re-iterar um som, um

    prefixo, uma funo sinttica, uma frase inteira significa realizar uma

    operao dupla e ondeante: progressivo-regressiva, regressivo-

    progressiva.

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    Artigos e Ensaios - rica Antunes Pereira

    Neste poema, o sujeito potico expresso pela primeira pessoa do

    plural ns e acena para a idia de compartilhamento. Entretanto,

    na primeira estrofe, a chuva [que] cai de um cu pesado/ de

    amargura e acusao... impiedosa e rija, dolorosa e triste e

    encharca de lgrimas/ os telhados das casas todas..., gerando o

    desejo de afastamento e instaurando a solido no/do sujeito potico. A

    segunda estrofe confirma o hermetismo prenunciado medida que

    agonias esquecidas/ nos sobem outra vez no peito.../ (ah! essa

    sensao de nada se ter feito!...), bem como ...a lembrana das horas

    inteis,/ dos anseios desprezados,/ dos gestos impiedosamente

    deturpados....

    As reticncias, as rimas (dolorosa/ impiedosa; peito/feito;

    desprezados/ deturpados), a interjeio e a reiterao tambm

    divisadas em Vida que se perdeu, sinalizando alguns traos

    recorrentes na potica de Alda Lara do passagem para a reflexo e o

    lamento; assim, a despeito de o sujeito potico se anunciar em

    comunho com outros sujeitos, o ns camufla o cavar da solido

    interior. Em verdade, o sujeito potico habita uma casa-corpo to

    impermevel que beira o autismo, numa imagem que contradiz o ttulo

    do poema, naturalmente molhado. No entanto, essa secura interior

    abrandada aos poucos o ttulo, mais uma vez, significativo, sendo

    manh, h todo um dia pela frente , conforme o sujeito potico

    experimenta e para isso colabora o advrbio temporal quando que

    d incio a trs versos um parentesco entre si e a natureza. Contudo,

    somente aps um processo de depurao interna em que aflora toda a

    agonia de uma vida mesquinha que passa a existir uma identidade

    plena: o fato de o sujeito potico e a natureza chorarem/choverem

    juntos torna dois espaos o espao da intimidade e o espao do

    mundo, a casa-corpo e a casa-cosmo consoantes, pois, como afirma

    Gaston Bachelard (2005, p. 207), quando a grande solido do homem

    se aprofunda, as duas imensides se tocam, se confundem. Trata-se de

    uma solidariedade solitria, sem dvida. Mas solidria.

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    No centro do anel

    Tambm no poema So Joo da Vargem, de Conceio Lima

    (2006, p. 57-66), organizado em quatro partes distintas denominadas,

    respectivamente, como O anel das folhas, A sombra do quintal, As

    vozes e Os olhos dos retratos, o sujeito potico manifesta

    preocupao com a busca da prpria identidade. Embora essas partes

    possam ser lidas como poemas autnomos, em conjunto elas

    corroboram para a constituio da completude pessoal almejada pelo

    sujeito potico ao refazer o percurso dos espaos que habitou na

    infncia. Tal afirmao ganha notoriedade se pensarmos que cada uma

    dessas divises iniciada pelo advrbio de lugar quando eis-nos,

    novamente, merc da relao tempo versus espao e pela auto-

    anlise do sujeito potico que, ao empregar os verbos no pretrito

    imperfeito para tentar se definir em tais pocas, faz-nos acreditar que,

    no presente, os dramas identitrios tenham sido sanados. mesmo

    com esse sentido que Alfredo Bosi (2000, p. 42) trata da reiterao:

    Entre a primeira e a segunda apario do signo correu o tempo. O tempo que faz crescer a rvore, rebentar o boto, dourar o fruto. A volta no reconhece, apenas, o aspecto das coisas que voltam: abre-nos, tambm, o caminho para sentir o seu ser. A palavra que retorna pode dar imagem evocada a aura do mito. A volta um passo adiante na ordem da conotao, logo na ordem do valor.

    Analisando a primeira poro, intitulada O anel de folhas,

    percebemos um sujeito potico mergulhado na infncia pregressa:

    Quando eu no era eu/ Quando eu no sabia que j era eu/ Quando

    no sabia que era quem sou/ os dias eram longos e redondos e

    cercados/ e as noites profundas como almofadas. A memria afetiva

    ligada aos dias e s noites se manifesta a partir de imagens que

    lembram intensidade, circularidade, proteo e aconchego: uma

    criana feliz, que vive num mundo [que] era grande e [que] era fechado

    como um anel, mas que, ainda assim, podia sobrepujar, pois eu [o

    sujeito potico] era grande, eu [o sujeito potico] tinha o mundo, eu [o

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    sujeito potico] tinha o anel. Nessa senda, como diz Gaston Bachelard

    (2005, p. 35), para alm de todos os valores positivos de proteo, na

    casa natal se estabelecem valores de sonho, de modo que o sujeito

    potico, valendo-se de um sonho-lembrana, recria a casa onde Viviam

    plantas, viviam troncos, viviam sapos/ Vivia a escada, vivia a mesa, a

    voz dos pratos imagens que podemos facilmente reconstituir a partir

    de nossas prprias infncias , mas no s: havia tambm um

    untueiro, fruteiras, limoeiros, makks, berigelas, pega-latos/

    verdes kimis, sw-sws, o ido-ido, morcegos, Folhas da mina,

    fios dorvalho, libo dgua/ pinincanos, folha-ponto e salakontas,

    fy xalela e O micond, e muitos outros elementos da flora e da

    fauna so-tomense.

    Embora fosse interessante analisarmos cada um deles, vamos nos

    ater apenas ao micond por constar no ttulo da obra que alberga o

    poema, A dolorosa raiz do micond. Em So Joo da Vargem, o sujeito

    potico o define como a fora parada e recuada/ [que] escutava

    segredos, era soturno, era a fronteira/ e tinha frutos que baloiavam,

    baloiavam/ nunca paravam de baloiar, o que nos transporta para a

    simbologia da rvore do Mundo que, segundo Mircea Eliade,

    representa a ligao da Terra ao Cu (2001, p. 51); por isso que o

    sujeito potico qualifica o micond como a fronteira. E j que a idia

    de rvore do Mundo parece muito eficaz, o anel das folhas, farta e

    minuciosamente descrito, deve estar relacionado com a imagem do

    paraso por ns j vista quando da anlise do poema A casa, de Glria

    de SantAnna, aqui reforada pelos versos No havia horas, ningum

    tinha pressa/ seno minha [do sujeito potico] me.

    A segunda parte, denominada A sombra do quintal, tambm

    iniciada com as reflexes auto-analticas do sujeito potico Quando

    eu no sabia que era quem sou/ Quando eu ainda no sabia que j era

    eu e, da mesma forma que na anterior, lista uma srie de

    lembranas que o remetem infncia. A diferena que, agora, tais

    referncias, em sua maioria, no so alusivas fauna ou flora so-

    tomense, mas aos seus habitantes: o Dad, o Minho, o Buggy, o

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    Valdemar, a Aninha e o Z, Napoleo e av Nvi, infantilmente

    descrita como a que Trazia pestanas que se mexiam como asas

    severas/ Trazia saquinhos, bananas-ma em cachos de ouro/ Trazia

    consigo a voz que apagava o rudo das coisas. Aqui, o sujeito potico

    no fala mais no anel, mas ainda se entende como o dono do mundo e

    do quintal, mesmo j tendo a noo de que o mundo era [] grande.

    A poro seguinte, As vozes, continua absorvida na memria

    das gentes que habitaram a infncia do sujeito potico; no entanto, as

    reflexes acerca de sua presena no mundo se tornam nitidamente

    amadurecidas. Assim que a ateno voltada para os olhos da tia

    Esprito/ abertos buscando o caminho da luz, para as velhas primas

    Venida e Lochina/ com ecos de ontem na palma das mos, para a tia

    san Lmpia que nunca sabia do paradeiro/ do seu Nicolau e para a

    vida das peixeiras Ving, Malanzo, Adelina e Nlia. Nessa paragem, o

    sujeito potico j no possui mais o mundo o mundo se torna plano

    , mas ainda lhe resta o quintal. Acerca das representaes deste,

    invocamos Alfredo Margarido (1980, p. 397) que, apesar de se referir ao

    quintal vislumbrado em O segredo da morta, de Assis Jnior, no nos

    impede de tomar como vlidas as suas palavras tambm para este

    poema de Conceio Lima:

    Quer dizer que os africanos6 se encontram encerrados num espao fechado, o quintal, que todavia uma parte da natureza, pois no existe nenhuma cobertura, associando este grupo aos valores naturais. O que tambm quer dizer que estes homens so pensados como naturais ou seja no civilizados. O quintal assim vizinho da civilizao, mas no ainda civilizao. O que j no acontece com a burguesia, cujas casas repetem o modelo europeu, que separa o homem da natureza, e se lhe ope.

    Quando o sujeito potico afirma que ainda tem o quintal, deve,

    com base nessas idias de Alfredo Margarido, estar em busca da prpria

    identidade, ato materializado pela preservao tanto dos ditos valores

    6 Leiamos, aqui, so-tomenses.

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    naturais, quanto dos laos familiares. O quintal, portanto, reitera a

    noo do paraso.

    Por sua vez, a quarta e ltima parte que compe o poema,

    denominada Os olhos do retrato, retoma os percursos do sujeito

    potico rumo ao (re)conhecimento de si Quando eu no sabia que

    era eu/ Quando eu sentia que o mundo era meu/ Quando eu no sabia

    o mundo que era eu e, finalmente, compreende o ciclo da vida.

    Volta-se, ento, para a anlise dos retratos que, tanto quanto os vivos,

    habitam a casa: chamam-lhe a ateno os estranhos bigodes, os

    casacos de pontas compridas/ estranhos casacos, que faziam rir, as

    saias compridas e [as] longas mantilhas das mulheres, A velha prima

    Olmpia Barros que era to velha/ [e que] tinha uma me bem mais

    nova que ela demonstrando a dificuldade infantil de entender o tempo

    e o tio Palcio que tentara um dia disparar sobre o av, algumas

    imagens e muitas histrias ocultas para sempre por conta da fatalidade

    da morte. O sujeito potico, como vemos, procura resgatar uma

    identidade perdida a partir da observao e da querena guardada pelo

    seu lugar e pela sua gente. E cremos que consegue, pois, encerrando o

    ciclo, ele canta que dormia em paz, a casa era limpa no centro do

    anel, ou seja, mesmo nada possuindo materialmente falando, restou ao

    sujeito potico a paz de permanecer em casa.

    O ciclo da borboleta

    Outro poema que focaliza a infncia para questionar a identidade

    Estrelas mortas, de Alda Lara (1984, p. 80); desde o ttulo, notamos

    a oposio entre os termos: apesar de serem estrelas, o fato de

    estarem mortas as destitui de toda luminosidade. Logo, mais uma vez

    entrevemos a relao tempo versus espao, j que A menina cresceu...

    e Nunca mais usou laos no cabelo,/ nem chapus com fitas largas/ a

    esvoaar ao vento.../ Nunca mais ps bibes de riscado aos

    quadradinhos.../ ... E as borboletas,/ perderam-se, esquecidas nos

    caminhos... Essa primeira estrofe nos lembra Fita Verde no Cabelo:

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    nova velha estria, de Guimares Rosa (2004), obra que analisamos h

    algum tempo e cujas imagens guardam bastante intimidade com as do

    poema de Alda Lara, pois como afirmamos l e reafirmamos agora, elas

    as borboletas representam o desabrochar para a vida, ou, ainda,

    a adolescncia, momento em que o indivduo comea a enxergar o todo,

    tomando-se de dores e epifanias aliadas curiosidade de se sentir

    humano e participante do mundo (ANTUNES, 2002).

    No entanto, se em Fita Verde no Cabelo as borboletas ainda

    existiam, mas nunca em buqu nem em boto (ROSA, 2004), em

    Estrelas mortas elas perderam-se, esquecidas nos caminhos.... Com

    suas metamorfoses, as borboletas se ligam, simbolicamente, ao

    processo de crescimento do ser humano; assim, conforme restam, no

    poema, esquecidas nos caminhos, ntida se torna a referncia

    velhice. Tanto assim que, nas estrofes seguintes, o quarto de

    brinquedos aparece fechado para sempre e Na boca da menina,/ o

    tempo cavou um sorriso,/ sempre igual... e sempre triste.../ E as suas

    mos, agora longas,/ de unhas sangrentas,/ nunca mais quiseram

    agarrar a lua,/ nas noites belas.../ ... nunca mais.... Reunidos, esses

    emblemas remetem aos ciclos sazonais, sobre os quais escreve

    Benjamin Abdala Junior (2003, p. 230-231):

    Os smbolos terrestres tm ciclos sazonais regulados pelos anos solares. As interferncias nesses ciclos vm do ritmo lunar, que se fazem sentir numa periodicidade mais curta e em atmosfera noturna. So essas interferncias, no obstante, as mais fortes para a imaginao popular pela maior evidncia, sobretudo nos trpicos, das fases da lua. O ritmo lunar liga-se, evidente, situao da mulher em suas matizaes sexuais.

    A partir do momento em que as noites fizeram-se mais escuras,/

    e menos belas.../ Noites de bruma,/ onde as estrelas se apagaram

    todas,/ uma por uma..., a capacidade gerativa feminina se esgota e o

    processo de envelhecimento completado. Assim, o sujeito potico se v

    desabrigado desse corpo-casa que sempre habitou; mas, alm do corpo-

    casa, h seu desal(ojam)ento da casa-cosmo, uma vez que, sobre si,

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    agora, pairam apenas as Estrelas mortas e as noites [que] fizeram-se

    mais escuras. E tudo, porque a menina cresceu...

    A fora matriz da nao

    Encerrando a simbologia da maternidade desde o ttulo, o poema

    Mtria, de Conceio Lima (p. 2004, p. 17-18), apresenta, na anlise

    de Inocncia Mata (2004, p. 12), um sentido protector, de um lugar

    matricial em que assenta a busca da utopia e do sonho de nvel

    colectivo. A analogia dos vocbulos mtria e ptria, neste poema,

    traz tona a metfora da casa-nao, reiterada conforme se d a

    sucesso dos versos. Logo nos primeiros, quando sujeito potico afirma

    que se quer desperta/ se ao tero da casa retorno [retorna] para, com

    lucidez, tactear a diurna penumbra/ das paredes/ na pele dos dedos

    reviver a maciez/ dos dias subterrneos/ os momentos idos, manifesta

    o desejo de, simbolicamente, renascer e, palmo a palmo como

    observamos tambm em outro poema da autora, A casa ,

    (re)construir-se e nao.

    Obviamente que essa gana pelo refazimento s possvel porque o

    sujeito potico cr nesta amplido/ de praia talvez ou de deserto, bem

    como na insnia que verga/ este teatro de sombras, ou seja, acredita

    tanto no solo que corporifica a nao quanto na gente que luta para

    torn-la melhor. Na terceira estrofe, o sujeito potico se dirige a um

    interlocutor que parece mergulhado no desespero um riacho de dor

    cascata de fria/ pois a chuva demora e o ob entristece/ ao meio-dia

    e a ele, com toda convico, afirma: No lastimo a morte dos

    imbondeiros/ a Praa viva de chilreios e risonhos dedos, fato

    verificado porque o sujeito potico pressente que no h mais que uma

    questo de tempo para que da insnia que verga/ este teatro de

    sombras surja o projeto para a (re)construo da casa.

    Na estrofe final, o sujeito potico descreve o seu pas as ilhas

    de So Tom e Prncipe como Um degrau de basalto [que] emerge do

    mar e arremata: na dana das trepadeiras reabito/ o teu corpo/

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    templo mtrio/ meu castelo melanclico/ de tbuas rijas e de prumos.

    (Re)construir e (re)habitar a casa-nao, por conseguinte, constitui o

    seu projeto a tbua de salvao de vida.

    O equilbrio da concha

    O poema Bairro negro, de Glria de SantAnna (1961, p. 25-26),

    apresenta, nas trs primeiras estrofes, a descrio das pequenas casas

    maticadas/ [que] erguem-se de longe (de sculos, de antigas datas)/

    contra o mar e as ondas e as algas e de pronto estabelece um quadro

    opositivo entre o tempo e o espao e entre a pequenez das casas

    maticadas e a imensido do mar. No entanto, j nos previne o ttulo

    que se trata de um bairro e, apesar de serem maticadas feitas

    com terra e cana (SANTANNA, 1995) , reunidas tal feixes de cana

    , essas casas adquirem fora, erguendo-se de longe (de sculos, de

    antigas datas).

    Na segunda estrofe, ao serem tomadas Como remotas conchas

    embaciadas/ cadas de uma sbita mar alta (lcida e predestinada)/

    entre o areal e as ondulantes palmas, revela-se a metfora da casa-

    concha que a partir de ento permeia todo o poema. A concha, cuja

    simbologia costuma ser associada fecundidade, em Bairro negro

    recebe um valor protetrio tanto espacial quanto ontolgico. Melhor

    explicando, ao serem tambm descritas como cbicas e caladas/ Onde

    os problemas so primrios e as janelas fechadas, as casas sinalizam a

    idia de estabilidade e de paraso to caras ao abrigo, proteo;

    contudo, a quarta e a quinta estrofes constituem um enorme parntese

    que desestabiliza o sujeito potico conforme nele insere algumas

    preocupaes: (Quem sofre dentro das rsticas portas no

    aplainadas?/ Ou se encosta chorando s trmulas arestas/ projectadas

    entre ngulos de acaso?// Que mar indeterminado e abstracto/ se

    reflecte num olhar ou num gesto marcado/ Por um ignoto hbito?).

    Esse percurso interior parece conduzir para o que afirma Gaston

    Bachelard (2005, p. 123) quando trata da simbologia da concha: ao

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    conservar-se na imobilidade de sua concha, o ser prepara exploses

    temporais do ser, turbilhes do ser. O trao existencial que costuma

    caracterizar a potica de Glria de SantAnna confirmado na sexta e

    na stima estrofes com a recuperao do ttulo Bairro negro efetuada

    pelo sujeito potico quando proclama a igualdade entre as pessoas: O

    cu igual sobre cada telhado,/ o sol nasce o mesmo em todo o lugar/

    e a lua sempre dos poetas (fria e inacabada). Podemos, assim, afirmar

    que a casa-concha, neste poema, guarda dois interiores: o do espao

    externo em relao s casas e o do homem em relao a si mesmo,

    buscando a prpria identidade.

    Algumas palavras mais...

    Como procuramos assinalar, as metforas da casa aparecem com

    bastante freqncia e possuem contedo simblico variado na poesia de

    Alda Lara, Conceio Lima e Glria de SantAnna. Abrigando ou

    desabrigando, a casa pode ser vista enquanto espao fsico, mas

    tambm como a representao do paraso, do corpo, do cosmo, da

    memria, da solidariedade, da solido, entre tantas outras.

    A anlise dos poemas nos mostra, ainda e principalmente, que, a

    par de todas essas metforas da casa, a preocupao com a identidade

    constitui um dos traos mais marcantes na inscrio literria dessas

    trs autoras africanas de lngua portuguesa: Alda Lara demonstra

    predileo pelos espaos do interior ao criar sujeitos poticos que

    indagam sobre o estar no mundo; Conceio Lima parece se voltar

    mais para aes concretas e, por isso, os sujeitos que permeiam sua

    poesia freqentemente se preocupam com o fazer o mundo; por fim,

    Glria de SantAnna aparenta confirmar a voz da crtica ao apresentar

    uma potica existencial marcada, portanto, pelo interesse pelo ser do

    mundo.

    Para finalizar, registramos que a preocupao com a questo da

    identidade no uma exclusividade das autoras cujos poemas

    analisamos, constituindo um dos elementos norteadores das literaturas

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    africanas de lngua portuguesa. No entanto, no caso de Alda Lara,

    Conceio Lima e Glria de SantAnna, o interesse por tal insgnia se

    mostra de tal modo vinculado a suas poticas que, nesse sentido,

    tomamos como imprescindvel a proclamao de suas singularidades.

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