o ‘princesamento’ nas narrativas …
Post on 09-Nov-2021
1 Views
Preview:
TRANSCRIPT
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
137
O ‘PRINCESAMENTO’ NAS NARRATIVAS
CINEMATOGRÁFICAS INFANTIS E SUA RELAÇÃO COM
AS MATRIZES CULTURAIS DO FEMININO
The ‘princessing’ in children´s cinematographic narratives and its relationship
with the female matrixes.
El ‘princesamiento’ en las narrativas cinematográficas de los ninõs y su
relación com las matrices culturales
Heloisa Porto Borges Mariz Mestre em Estudos Culturais pela Universidade FUMEC/MG
heloisapborges@hotmail.com
Rodrigo Fonseca e Rodrigues Professor na Universidade FUMEC/MG
rfonseca@fumec.br
Resumo
O princesamento é um termo utilizado como parte de um processo social em que se tende a
valorizar apenas um determinado padrão de comportamento feminino, sendo necessário, para
isto, resgatar supostas habilidades tidas como específicas do gênero, que vão desde o papel da
mulher como cuidadora do lar e da família, até a manutenção de um padrão de beleza e
comportamentos estereotipados. O princesamento, ao se associar às animações infantis dos
Estúdios Disney, demonstra que a interação existente entre o cinema e o imaginário social
emerge de um processo complexo e multidirecional que engloba cultura, política, economia e
institucionalidades.
Palavras-chave: Matrizes culturais femininas. Narrativas cinematográficas. Contos de fada.
Abstract
“Princessing” is a term used as part of a social process in which it tends to value only a
certain pattern of female behavior, being necessary to rescue supposed gender-specific skills,
ranging from the role of the woman as caregiver home and family, to the maintenance of a
pattern of beauty and stereotyped behaviors. The joining of children's animations at the
Disney Studios demonstrates that the interaction between cinema and the social imaginary
emerges from a complex multidirectional process that encompasses culture, politics,
economy, and institutions.
Key words: Feminine cultural matrices. Cinematographic narratives. Fairy tales.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
138
Resumen
‘Princesamiento’ es un término utilizado como parte de un proceso social en el que uno tiende
a valorar solo un cierto patrón de comportamiento femenino, por lo que es necesario rescatar
supuestas habilidades consideradas específicas de género, que van desde el papel de la mujer
como cuidadora del hogar y la familia, hasta mantener un estándar de belleza y
comportamiento estereotipado. El ‘Princesamiento’ cuando se asocia con animaciones
infantiles en Disney Studios, demuestra que la interacción entre el cine y las imágenes
sociales surge de un proceso complejo y multidireccional que abarca cultura, política,
economía e institucionalidades.
Palabras clave: Matrices culturales femeninas. Narraciones cinematográficas. Cuentos de
hadas.
1 INTRODUÇÃO
Historicamente, as princesas se configuram como representações femininas que
possuem forte repercussão no imaginário popular, sendo suas figuras exploradas
continuamente pelas narrativas orais, literárias e cinematográficas. A coroa, os vestidos, o
castelo e o príncipe são elementos que tradicionalmente servem de inspiração para o
imaginário cultural infantil, que quando associados a discursos e apropriados, ganham
significações coletivas que reforçam modelos e padrões de condutas sociais. Uma vez que tais
discursos são aceitos e introjetados de forma coletiva, é que o imaginário passa a se refletir
também na vida social. O sufixo “mento” associado ao substantivo feminino princesas busca
evidenciar esta ação, pela qual um agente de causa externa promove um movimento que se
torna parte de um processo social maior, e que neste caso, serve como referência para a
determinação de padrões de comportamento.
Busca-se, portanto, neste estudo, compreender de que forma o princesamento como
elemento cultural se relaciona nas formas de socialização cotidianas, tendo como premissa a
seguinte questão: Como as narrativas audiovisuais convergem para a continuidade de um
padrão cultural centrado na permanente reconstrução de um imaginário midiatizado? A
abordagem tem como objetivo principal compreender a constante apropriação de matrizes
pelos meios de comunicação e o desempenho desse processo na vida social. Acolhe-se a
teoria das mediações de Martin-Barbero (2009), que ilustra conceitualmente a rede de
negociações existentes entre as representações midiatizadas e as socialidades. Como uma teia
interconectada, a indústria de conteúdo se apropria de elementos narrativos, personagens e
valores cultivados por expressões da cultura tradicional, incorporando-os a formatos
tecnológica e midiaticamente produzidos, e é sob esse olhar que o cinema, como elemento de
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
139
estudo, passa a ser percebido como um produto que vai muito além da catarse ou do simples
entretenimento. A forma pluralizada que permeia o contato do indivíduo com esta mídia
trespassada por diversas formas de mediações implícitas às próprias formas de relações
culturais.
Nesse sentido, devemos também considerar que, embora tenhamos a percepção do
cinema como um poderoso produto industrial e cultural de massa que tende a homogeneizar
os sujeitos, ao pensarmos sobre esse processo, mesmo que ainda na infância, devemos levar
em consideração a pluralidade de interesses e realidades existentes, que se apresentam com
fortes diferenças culturais e desigualdades sociais. Essa diversidade define também outras
realidades, e contribui para que a mídia reverbere de forma mais ou menos diferenciada.
Devemos pensar que as crianças também possuem uma competência particular na leitura e
percepção dos produtos midiáticos e, muito embora a mídia atue como uma estrutura
mediadora de valores e condutas sociais, existem no processo de recepção outras esferas que
se encontram interligadas. Scliar (1995, p. 04), por exemplo, comenta que a maioria das
crianças criadas no cinturão da miséria descobre desde muito cedo a difícil realidade em que
vivem, e que nem sempre o espaço mítico da infância pode ser experienciado por elas.
E é exatamente dentro do universo mítico infantil dos contos de fada, que as
personagens de princesa se apresentam como um poderoso produto cultural pelo qual as
representações femininas ganharam notório reconhecimento social. Como parte de um
universo midiaticamente adaptado, estas representações tendem a articular a ideologia com o
imaginário, se transformando muitas vezes em produtos “institucionalizados” a partir de
discursos estrategicamente configurados. Para a análise de expressão midiática e cultural
feminina, utilizaremos como referência as personagens de princesas do cinema infantil,
especificadamente aquelas produzidas pelos estúdios Disney, em que tendo como base o
pensamento transdisciplinar dos estudos culturais, buscaremos resgatar historicamente a
herança cultural por meio da qual estas personagens se constituem, e de que forma elas se
reverberam no cotidiano a partir dos formatos industrializados.
2 OS CONTOS DE FADA E O IMAGINÁRIO INFANTIL MASSIFICADO
De acordo com o mapa das mediações de Barbero (2001), o eixo diacrônico é o que
conecta as matrizes culturais aos formatos industriais. Porém, neste caminho, há uma série de
articulações que precisam ser consideradas. Entre as estruturas populares e históricas dos
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
140
contos e a estrutura social capitalista de mercantilização de mercadorias foi que o imaginário
também se transformou em produto, por meio de um constante processo de (re) adaptação.
Para entender melhor este processo no que diz respeito às representações do feminino, é
essencial a contextualização histórica e social entre os contos e as princesas, conectando estas
personagens tão tradicionais ao contexto social contemporâneo, no qual o cinema tem um
papel de grande destaque.
Curiosamente, os contos de fadas não eram estórias destinadas às crianças e, sim, aos
adultos como forma de entretenimento, e por isso continham em suas premissas contextos
sociais característicos da época e que se relacionavam à fome, às guerras, à violência e muitas
vezes aos atos sexuais. A infância até então não era socialmente reconhecida como parte de
um estágio diferenciado de vida onde se exige um cuidado especial. Aries (1978) menciona
que antes do século XVI, crianças e adultos compartilhavam dos mesmos ambientes, sendo
ele de trabalho ou lazer. E que somente com a valorização da estrutura familiar burguesa e a
necessidade moralizante da igreja que historicamente as crianças passaram a ganhar um
enfoque diferenciado.
Um forte apelo ao conceito de “proteção” e cuidado ajudou para que a literatura,
agora também segmentada ao gênero infantil, passasse a contribuir para um processo
educacional baseado na valorização da moralidade, associando a esfera privada a uma conduta
feminina fundada na obediência, no casamento e na vida doméstica. Ao resgatar no final do
século XVII as expressões folclóricas populares transmitidas oralmente durante séculos,
Charles Perrault se tornou conhecido por suas adaptações dos contos em que suavizava seu
caráter sexual original, utilizando-se de metáforas para educar especificamente o público
jovem, advertindo, sobretudo, às meninas camponesas sobre o risco da sedução e a
necessidade de vigilância.
De acordo com Nelly Coelho (1991), a popularização destes contos como forma
literária se deu na Europa somente no final do século XIX por meio dos vendedores
ambulantes (mascates). Por serem considerados livros baratos, com histórias simplificadas,
eles se transformaram rapidamente em produtos populares, consumidos por um público cada
vez maior e menos sofisticado. Foi desta forma que inicialmente tais narrativas se propagaram
por diferentes culturas europeias, promovendo de certa forma uma aculturação de valores e
ensinamentos, estimulando a homogeneidade de pensamentos. Pelo seu caráter disciplinador e
pela fácil adaptabilidade social, os contos foram rapidamente se institucionalizando no seio
familiar e nas esferas educacionais.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
141
Percebe-se neste processo uma mutação entre as mediações folclóricas da oralidade
para o meio impresso dos livros. Mas foi partir da modernização do espetáculo através da
transposição da escrita para a sala escura dos cinemas que os contos literários que já eram
populares no território europeu foram progressivamente maquinizados, transformando as
representações analógicas em elementos de uma cultura globalizada. Os novos formatos
industrializados dos contos ganharam maior credibilidade quando passaram a se relacionar à
veracidade daquilo que o olho vê e na visão de Canclini (1997), ao se unir a literatura dos
contos às narrativas cinematográficas construiu-se uma narrativa híbrida pela qual a oralidade,
a literatura e o cinema se fundiram.
É importante ressaltar que o cinema inicialmente tido como um gênero impuro,
advindo de um entretenimento de rua, e que tinha como público majoritário as classes
populares americanas, se transformou em algumas décadas em um uma grande indústria de
entretenimento massivo, por meio da produção dos mais variados gêneros, alcançando os
mais diversos públicos. Os altos investimentos, principalmente americanos, em narrativas
tecnologicamente produzidas no início do século XX contribuíram para que os contos se
adaptassem e se transformassem em importantes obras cinematográficas modernas. O
espetáculo das imagens ganha força e contribui para mediar às relações sociais, em uma
movimentação conceituada por Debord (1997) como inerentes à própria sociedade do
espetáculo. É dentro do espetáculo que os personagens ganham vida e uma identidade própria,
permitindo construir referências a partir de elementos comuns.
Podemos afirmar, a partir da visão de Barbero, que estes elementos comuns e
compartilhados entre indivíduos e personagens cinematográficos fazem parte de um processo
cognitivo que se associa, sobretudo, aos vínculos que criamos quando algo nos parece
familiar, ou seja, quando já existe um registro interno; e que foi denominado pelo autor como
parte de um processo de ancoragem. Os juízos de valor que formulamos acerca dos
personagens e de suas ações, comumente são ancorados em matrizes estruturais culturais, uma
vez que a cultura cria certa unidade nos conhecimentos compartilhados e de representações do
vivido, que quando reproduzidas a partir de representações, continuamente influenciam na
construção das próprias identidades.
Assim, de forma geral, as matrizes culturais legitimam o que vem a ser a “cultura
oficial” de um povo, que podem ser compartilhadas a partir da institucionalização de práticas,
símbolos, língua, religião e costumes. Quando relacionamos, portanto, o universo infantil, as
matrizes culturais do feminino e a consolidação de seus personagens, não nos passa
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
142
despercebida a importância dos contos de fada dentro deste imaginário coletivo. Segundo
Cashdan (2000) e Bettelheim (2002) tal situação ocorre por conta das projeções inconscientes
possíveis de serem personificadas. As narrativas caracterizadas como contos de fada
normalmente se passam em um contexto fora da realidade conhecida e vivenciada por nós
(em um contexto ficcional/irreal), mas apresentam como eixo gerador as problemáticas
existenciais comuns. Para tanto, o papel do herói ou heroína se torna essencial, pois, por meio
da superação dos obstáculos, os personagens se tornam grandes exemplos de persistência e de
luta e nos conduzem a certa autonomia existencial, produzida, sobretudo, por meio da
identificação. A verossimilhança psicológica proporcionada pelos personagens é o que
representa, segundo Bettelheim, o grande poder dos contos de fada. Para o autor, essas
narrativas, além de entreter, despertam a curiosidade infantil, estimulando a imaginação,
ajudando a tornar claras as emoções infantis. Suas problemáticas se adaptam facilmente às
questões relacionadas ao cotidiano vivido pelas crianças e jovens onde estas narrativas se
apresentam como uma jornada que se estruturam a partir da superação de três etapas
denominadas como a travessia, o encontro e a conquista, levando ao tão esperado final feliz.
A curiosidade, no entanto, é que as ambivalências inerentemente presentes nos seres
humanos normalmente não são enfatizadas nos personagens nas narrativas infantis. Os heróis
infantis trabalham com identificações positivas, sendo simples e diretos, ao contrário dos
vilões que são assustadores e mal-intencionados. A comparação nos leva a crer que a
percepção mimética se relaciona com as condutas e atitudes das personagens por conta de sua
aprovação social, levando à aceitação de uns e à desaprovação total a outros. O ‘eu’ e o
‘outro’ constituem-se de relações de identificação e oposição que se formam durante o
processo narrativo. Cashdan comenta que “as crianças, quando ouvem um conto de fada,
projetam inconscientemente partes delas mesmas em vários personagens da história, usando-
os como repositórios psicológicos para elementos contraditórios do eu” (CASHDAN, 2000, p.
31).
3 OS ESTÚDIOS DISNEY E AS MATRIZES CULTURAIS FEMININAS
Como vimos anteriormente, a infância moderna e suas formas de entretenimento e
consumo estão desde o início do século XX entrelaçados às produções cinematográficas
infantis, que não devem ser associadas apenas a uma fonte de entretenimento e estímulo à
imaginação, mas a uma ferramenta educacional que contribui para a legitimação de visões
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
143
culturais, de valores e condutas. Os contos de fada, por se caracterizarem como uma narrativa
que pode ser facilmente adaptada, representando uma fórmula quase que infalível de
aprovação e assertividade, são até hoje (re) contados através de novas técnicas de animação.
Os Estúdios Disney foram os primeiros estúdios de animação a desenvolver um longa-
metragem baseado em um conto infantil. Adaptado dos irmãos Grimm, Litlle Snow-White (ou
A Branca de Neve e os sete anões) trazia como personagem principal a figura feminina de
uma princesa, que de tão bela quase perdeu a vida, precisando fugir de seu castelo e após
muito sofrer foi resgatada pela figura masculina de um príncipe tendo como desenlace o
casamento como consolidação do final feliz. Branca de Neve como uma personagem feminina
típica da década de 1930 não só associou à personagem à personificação daquilo que era
socialmente valorizado na época, como contribuiu para a construção no imaginário coletivo
infantil a imagem da “mulher ideal”, reforçando características como a fragilidade, a beleza, a
doçura, o cuidado com o lar, com a família e a eterna busca pelo par romântico. Branca de
Neve alcançou na época recordes de bilheteria, se consagrando como uma obra-prima
audiovisual.
Porém, durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), por questões políticas
associadas à baixa de funcionários, as produções dos estúdios Disney tiveram que ser
direcionadas para filmes políticos e institucionais. Somente após este conturbado período os
estúdios Disney optaram por retomar novamente à antiga fórmula tão assertiva de lucro:
contos de fada, personagens femininas, príncipes e princesas. Em 1950, o filme Cinderela,
também adaptado dos irmãos Grimm, mostrou o grande sucesso que a animação de longa-
metragem ainda possuía. Tendo a personagem feminina de Cinderela como protagonista, esta
princesa se caracterizou como uma mulher bela, amável e frágil, se tornando assim como
Branca de Neve, vítima do ódio de outra mulher, neste caso, sua própria madrasta. A doçura e
a resiliência são pontos positivos associados a um diferencial feminino, e o trabalho
doméstico tão enfatizado nestas personagens se apresentavam como virtude e enquadravam
estas personagens ao tradicional modelo feminino das mulheres norte-americanas brancas de
classe média da década de 1950.
Essas figuras femininas se associam também, ao tradicional mito cristão como
elemento arquetípico que estrutura modelos-padrão de representações femininas ao transmitir
a ideia de que só a partir do próprio sofrimento é que as maiores recompensas são alcançadas,
culminando, neste sentido, no encontro da figura feminina com a figura patriarcal masculina
do príncipe encantado. Schmidt (2011) comenta que dentro dos arquétipos femininos o papel
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
144
da “cuidadora” desperta atenção por sua profunda relação com as personagens de princesas.
Normalmente, elas possuem como obrigação o cuidado com o outro, assumindo um papel
relevante como mães e esposas dedicadas. Branca de Neve tem um cuidado especial com seus
amigos anões enquanto Cinderela cuida da casa, das irmãs e da madrasta, e aposta no
casamento como a única saída para o sofrimento vivido. É importante mencionarmos que o
conceito de ‘cuidado’ se relaciona principalmente à habilidade de tratar do outro, de olhar e
auxiliar outra pessoa, e que também procura manter laços e afetos, envolvendo sentimentos de
caráter nobre, tais como o zelo, a ternura, a compreensão e a paciência. Esse diferencial
considerado próprio do feminino se evidencia em Branca de Neve, a primeira princesa
integrada ao imaginário infantil. Ao pedir aos anões que a protejam e a deixem ficar morando
com eles, Branca de Neve, em troca, negocia: “Se me deixarem ficar eu faço tudo: lavo,
passo, arrumo, costuro, cozinho... Sei fazer boas tortas e bons pudins! ” (A Branca de Neve e
os Sete Anões, 1937, 39:10). Além disto, Branca de Neve cantava aos anões antes de dormir,
se despedindo também de cada um deles com um beijo pela manhã antes de saírem para o
trabalho. Essas cenas a evidenciam como uma verdadeira mãe cuidadosa.
Este ideal tradicional de princesa, na verdade, carrega um esforço cultural em propagar
a valorização social da mulher por meio da conduta familiar e religiosa, associando as
personagens à figura feminina de Maria, mãe de cristo e mulher ideal (pura, devota e acima de
tudo, sofredora). Nestes contos, a ambiguidade entre Eva e Maria se apresenta entre as
personagens da princesa e a bruxa, ou da outra. Esta ideia do modo binário de conduta que
separa a santa da pecadora e se expressa pelos arquétipos (matrizes) culturais que determinam
condutas de personalidade; servem como ponto de partida para a elaboração de personagens e
guiam suas habilidades dentro da própria narrativa. Assim, a personificação social da mulher
manipuladora/sedutora, culturalmente representada pela figura de Eva ou da bruxa, reforça
nestas produções, a fraqueza e a falta de controle feminino, contribuindo para a percepção da
mulher errante como um sujeito que, além de manipulador, se não controlado, pode se tornar
inferior e perigoso. Foi desta forma que, o segundo sexo fora estrategicamente apresentado à
primeira geração do século XX, quando em meio a um cenário social conturbado no qual as
mulheres conquistavam seus direitos fundamentais, e começavam a aparecer na ordem do
mundo público, domesticá-las através das imagens se tornava a melhor estratégia de controle.
Diante desta percepção, podemos sugerir também, que as produções feitas na década
de 1950, que foram as princesas Cinderela e Aurora de A bela Adormecida também faziam
parte de um movimento que iria além da manutenção de uma identidade de gênero ou controle
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
145
do feminino. Neste período pós Segunda Grande Guerra, precisava-se que as mulheres
retornassem ao espaço privado, e um movimento comunicacional e publicitário de valorização
das prendas domésticas e de venda de eletrodomésticos como facilitador da vida feminina
foram habilidosamente articulados. Diante das necessidades econômicas enfrentadas durante a
Segunda Guerra muitas mulheres precisaram atuar em áreas tradicionalmente masculinas
como forma de subsistência, ocupando no espaço público o lugar daqueles que se deslocaram
para as trincheiras. Porém, com o retorno da força masculina das batalhas, se tornara
necessária a retirada dessas mulheres do mercado de trabalho para que os homens pudessem
novamente ocupar seus lugares, exercendo as antigas funções de provedores e chefes de
família. E foi neste ponto que o conflito de fato se instalou, pois, o modelo tradicional de
“mulher do lar” já não representava mais os anseios femininos, principalmente entre as
mulheres de classes mais baixas que há muito tempo e por necessidade de sobrevivência já
exerciam uma dupla jornada. A máxima acerca do feminino defendida por Simone de
Beauvoir (1949) estabelece no final da década de 1940 uma nova realidade ao defender que
“não se nasce mulher, se torna mulher” contribuindo para uma profunda análise sobre o papel
das mulheres na sociedade.
Esses fatores impulsionaram a reorganização da luta feminista a partir da preocupação
com relações culturalmente enraizadas, problematizando a igualdade e exigindo o fim da
discriminação, levantando questões de gênero e iniciando um ciclo de estudos ao respeito do
“ser mulher” e a construção de identidade. Iniciou-se, principalmente na década de 1960, um
novo questionamento político quanto às formas tradicionais de convívio social, buscando
reconstruir o conceito de padronização de identidades e de estereótipos. É importante ressaltar
que a década de 1960 foi historicamente importante para o mundo ocidental, marcada por
movimentos políticos e ideológicos, sendo um cenário favorável para o surgimento de
movimentos tidos como “libertários”. Elementos simbólicos passam a ser analisados e uma
maior consciência sobre imaginário e memória social desenvolvem-se como elementos
integrantes da própria psicologia social, que a partir da década de 1980 ganha força sobre a
ótica da Teoria das Representações Sociais de Moscovici (1978) que elabora mais
detalhadamente a dinâmica do pensamento social e o universo consensual que se estabelece
na vida cotidiana. Coincidentemente ou não, durante esse período de constantes contestações
sociais não foi produzido pelos estúdios Disney nenhum filme com princesas, afinal, este
personagem feminino ao ser entendido como intermediário do imaginário coletivo precisava
ser melhor compreendido neste novo cenário social.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
146
Foi somente a partir do reconhecimento pelas mulheres de toda sua opressão histórica,
e da importância das representações sociais neste processo, que no final da década de 1980 e
início de 1990, com seus direitos básicos já assegurados pelo estado, que surgiram os novos
ícones de princesas, sendo então representadas como figuras com estereótipos diferentes das
princesas clássicas e tradicionais. Classificadas por Breder (2013) como princesas rebeldes
(1989-1998) estas novas personagens surgem em um momento histórico marcado por
questionamentos acerca da construção social do feminino e em meio a uma dialética de
dominação e resistência. Por conta disto, as princesas rebeldes passaram a ser representadas
como garotas mais independentes, mais engajadas e determinadas, se desvencilhando aos
poucos da matriz tradicional que vinculava o papel feminino apenas com o espaço privado do
lar. Retratando o Oriente Médio do século IX, a princesa Jasmine foi baseada na princesa
Badroulbadour do conto Aladim e a Lâmpada Maravilhosa do livro As Mil e uma Noites.
Filha de um poderoso sultão, Jasmine vive prisioneira em um palácio, privada de qualquer
atuação na via pública, conforme as mulheres em sua cultura. Inconformada com esta situação
a princesa foge e se apaixona por um jovem que conheceu nas ruas, de classe social
completamente diferente da sua. Jasmine então, luta contra as leis locais para que como
mulher possa escolher com quem se casar sem perder sua posição social. Embora conquiste
este direito, Jasmine e Aladdin permanecem juntos como par romântico, mas não se casam.
Diferentemente dos contos anteriores, o filme trabalha dois pontos muito importantes: o
primeiro é que ele evidencia o contraste social entre classes, abordando temas como miséria e
a fome, uma realidade social que não era apresentada às crianças nos contos cinematográficos
anteriores, trabalhando a questão das diferentes infâncias e contextos sociais. O outro ponto
importante, é a não concretização do casamento, não vinculando a felicidade feminina ao
ritual do matrimônio, algo ainda muito expressivo dentro da cultura católica.
Já Pocahontas foi uma produção inspirada na lenda sobre uma índia norte americana,
portanto, foi a primeira animação do estúdio Disney que retratou um personagem real. A
princesa espirituosa de uma aldeia indígena se relaciona com um homem branco, que chega
ao novo mundo em busca de ouro. O contraste e os conflitos apresentados por estes dois
personagens representam claramente um choque cultural entre colonos e colonizados e assim
como em Alladin, esta produção enfatiza as diferenças, mas reforça o amor. A liberdade de
espírito da princesa é algo inédito nas produções, assim como a escolha racional ao invés da
emocional, que a fez ficar no seu país abdicando do casamento, uma instituição que sempre
reforçou a dependência feminina.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
147
Mulan foi a última produção das princesas rebeldes e foi considerado um marco nos
modelos de representações de princesas. Baseado na lenda chinesa de Huamulan, a narrativa
conta a história de uma jovem destemida e corajosa que coloca em risco a sua vida para salvar
seu pai e sua pátria. Ao ver seu pai doente e seu país invadido, a garota decide ocupar um
lugar no exército, para isso, Mulan se disfarça de homem e treina duro para se tornar um bom
soldado. Valente, ela aprende muitas lições de coragem, honra e amor, demonstrando
sobretudo, que o papel de gênero é historicamente construído, pois o sexo feminino pode e
deve, se assim quiser, desenvolver as mesmas habilidades que aquelas tidas como específicas
do sexo masculino. A crítica literária Walnice Galvão (1997) argumenta que o arquétipo da
guerreira já era comum na literatura e na história tendo como base os mesmos traços
característicos de Mulan, tais como Joana D’Arc ou Xena, a Princesa Guerreira, e que
normalmente elas cortam os cabelos, envergam trajes masculinos e abdicam das tradicionais
fraquezas femininas.
As representações de princesas trazidas pelos estúdios Disney no início da década de
1990 procuravam reforçar um papel feminino pelo qual a mulher assumisse um maior
protagonismo passando a ser a responsável pela escolha do seu destino. São essas
características dicotômicas ao modelo feminino tradicional de submissão que nos leva a
questionar a ideia de que o papel feminino de fato, nunca tenha sido monolítico. O arquétipo
de amazona ou guerreira ou da bruxa sedutora já se configuravam como o “outro lado” da
matriz da cuidadora, resgatando o lado masculino intrínseco no próprio feminino. Porém,
houve um cuidado todo “especial” para que durante séculos apenas uma destas matrizes
fossem socialmente valorizadas. Somente a partir da terceira onda feminina que marcou o
início de um novo século, é que a mulher contemporânea, ou “terceira mulher”, conforme
denominado por Gilles Lipovetsky (2000), passa a ganhar notória representatividade social.
Ela não se enxerga mais como a mulher clássica, recatada e subordinada, e nem tampouco
como a diabólica, sedutora ou que busca substituir o papel masculino. Ela se vê como a
mulher que aos poucos deixa de ser dependente do homem, que conquista seu espaço nas
diversas esferas da vida (pública e privada, individual e social), e assume sua autonomia
feminina como nunca antes presenciada. Esta mulher percebeu que possui o poder da escolha
e que pode optar pelo casamento e a família sem ter que abrir mão de seus próprios sonhos ou
objetivos. Ela apropria-se de diversas funções dentro do espaço público, não mais se
submetendo à determinação de um único papel. E é dessa forma que as princesas
contemporâneas (2009-2013) ora assumem o papel de mulher trabalhadora, ora se incorporam
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
148
a grupos sociais e étnicos mais diversos, podendo até optar por não se casarem. A aparência
como virtude feminina ainda é mantida, mas não como prioridade, sendo constantemente
questionada a cada vez que as princesas passam a ser elogiadas pelas suas habilidades e não
por suas características físicas. E suas habilidades, cada vez mais se relacionam à coragem,
liberdade, determinação e não ao papel de cuidadora da família e do lar.
4 DESPRINCESAR
Fernanda Breder classifica as princesas como clássicas, rebeldes e contemporâneas
não somente para agrupá-las dentro de contextos históricos específicos, mas como forma de
enfatizar suas diferenças. De acordo com Barbero, são estes movimentos históricos e sociais
que conectam através do eixo diacrônico, as matrizes culturais aos formatos industriais,
estimulando formas diferentes de identificações. Hoje, as doze personagens de princesas dos
estúdios Disney: Branca de Neve e Os Sete Anões (1937) – Cinderela (1950) – Aurora/A Bela
Adormecida (1959) – Ariel/A Pequena Sereia (1989) – Bela/A Bela e a Fera (1991) –
Jasmine/Aladim (1992) – /Pocahontas (1995) – Mulan (1998) – Tiana/A Princesa e o Sapo
(2009) – Rapunzel/Enrolados (2010) – Merida/Valente (2012) – Anna e Elsa /Frozen: Uma
Aventura Congelante (2013) sob a ótica da perspectiva social se tornam mais democráticas.
Young (2000, p.89) ao discutir sobre o tema das representações, define a perspectiva como
formas de “experiências diferentes, histórias e conhecimento social derivados de suas
posições na estrutura social”.
É nesse sentido que o eixo sincrônico das lógicas de produção vai se relacionando com
as competências de recepção e suas formas de sociabilidades, contribuindo ou não para
condutas e apropriações sociais. O termo “desprincesar” como um movimento
contemporâneo, promove justamente a desconstrução de condutas femininas culturalmente
enraizadas, estimulando o desenvolvimento e a apropriação de um “novo padrão” social. Des
(princesar) implica em desaprender, em desconstruir os estereótipos de gênero e as
identidades que são moldadas ainda na infância, estimulando a compreensão de que meninos
e meninas são iguais em direitos, mas que ainda se perpetua um contexto de desigualdade
entre estes universos. Essa é a concepção do empoderamento feminino, que consiste no
posicionamento das mulheres em todos os campos sociais, políticos e econômicos. Para essa
desconstrução o termo “princesas” vem sendo apropriado como ícone de um movimento pelos
qual se estimula o processo de desvinculação de uma matriz cultural enraizada, aquela da
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
149
mulher idealizada como cuidadora, recatada e subordinada, para dar espaço às mulheres
contemporâneas, estimulando a reinvenção de outros arquétipos como parte da sociedade e da
própria história feminina.
E foi neste contexto de re (construção) de valores e condutas que, tendo como base a
personagem do conto de fadas The Frog Prince dos Irmãos Grimm, o filme A princesa e o
sapo retratou a vida da jovem Tiana, uma garota negra e de origem humilde, que se esforçou
para juntar dinheiro e montar seu próprio restaurante. Tendo a cidade de Nova Orleans como
cenário, o enredo potencializa a ideia de empreendedorismo feminino tão característica do
século XXI. Tiana foi a primeira e única princesa afro-americana representada pelo cinema
infantil e a única a trabalhar fora de casa. Ao se casar com um príncipe, Tiana mostra que é
possível conciliar carreira, família e amor, tal como buscam as mulheres contemporâneas,
trazendo um grande avanço na representação étnica e cultural para o universo infantil.
Já Rapunzel, princesa de nascença, possui lindos cabelos dourados com poderes
mágicos de cura e rejuvenescimento. A garota se tornou uma poderosa arma para a juventude,
e por isso foi sequestrada e presa em uma torre pela vilã Mãe Gothel, para que seus cabelos
mágicos lhe transmitissem a beleza eterna. Diferente de seu conto de origem, Rapunzel não é
uma donzela em perigo. Certo dia, um ladrão se esconde em sua torre, mas acaba se tornando
refém da própria jovem. Eles fazem um acordo, pelo qual ela o livraria, com a condição de
que ele a levasse a um evento anual de balões. Entre muitas confusões, os dois acabam se
apaixonando, o humor associado ao melodrama favorece a releitura deste clássico
contemporâneo que questiona a busca desenfreada pela beleza física.
A primeira princesa que não é baseada em qualquer conto, lenda ou figura histórica é a
escocesa Merida. Protagonista da aventura intitulada Valente, Merida também é conhecida
como a princesa dos cabelos rebeldes. Ela desconstrói o padrão de beleza e comportamento
clássico feminino relacionado às princesas tradicionais, e recusa a se enquadrar nos padrões
de conduta nos quais sua mãe se dispõe a educá-la. Ela também não aceita casar-se com o
pretendente que sua família havia escolhido, questionando a tradição real das Terras Altas da
Escócia. Impetuosa, a garota demonstra coragem ao impedir que seu reino entre em guerra
com os povos vizinhos. Contudo, o ponto central da trama é o conflito entre Merida e sua
mãe, uma mulher comportada, que defende a etiqueta como obrigação social feminina, além
do casamento como objetivo para uma mulher. Como princesa, a personagem atua na
intermediação entre a liberdade da mulher guerreira e a tradição clássica defendida por sua
mãe. As duas personagens conflituosas são claramente dialéticas, sendo que cada uma delas
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
150
representa um arquétipo do feminino. Sua mãe representa a rainha clássica, em contraste com
uma nova geração de princesas rebeldes. Durante a narrativa, o dilema se dá pela tentativa das
duas mulheres em balancear estes dois lados da figura feminina, para que suas escolhas
pessoais não venham a destruir seus laços familiares.
Inspirado pelo conto de fadas A Rainha da Neve de Hans Christian Andersen, o filme
Frozen narra as aventuras das irmãs reais de Arendelle pela salvação de seu pequeno reino
norueguês. Com a ajuda de Kristoffe, uma leal rena de estimação e Olafum, boneco de neve,
as jovens e decididas princesas mostram ao final da história que a família e o amor entre
irmãos é o que verdadeiramente importa, e o que é necessário para um verdadeiro final feliz.
Em suma, todas essas personagens demonstram atitudes que correspondem ao atual
momento do feminismo, que defende não haver modelos certos ou errados de mulher, e que
elas devem ter direitos iguais, podendo ser tão livres quanto os homens. Por isso as decisões
nessas narrativas são tomadas pelas próprias princesas que brigam para trilharem seus
próprios caminhos. Essa se torna a grande dicotomia do discurso sobre o feminino, que ora se
apresenta como um ser frágil e delicado; ora como lutadora e guerreira. Nos filmes, assim
como nas sociabilidades cotidianas, a dualidade entre o público e privado, o eu e a outra,
dominação e resistência são constantemente enfatizados, pois fazem parte dos próprios
embates femininos ao longo de sua história. As personagens contemporâneas procuram
demonstrar que mais do que desconstruir padrões, devemos empoderar estas mulheres.
E foi sob a ótica do empoderamento infantil que a primeira oficina de
“desprincesamento” se desenvolveu em Iquique, no Chile, como parte de um experimento
feito pela Oficina de Proteção dos Direitos da Infância (OPD) da cidade e apoiada pelo
Serviço Nacional de menores. O objetivo era ensinar às meninas entre nove e doze anos a se
tornarem autossuficientes e independentes. O projeto nasceu de um problema social local
específico: em 2014 um terremoto deixou um grande número de famílias desalojadas, os
índices de vulnerabilidade e de abuso sexual de meninas se tornaram extremamente altos, e
elas precisavam construir uma autoconfiança para se defenderem de tais abusos. A ideia foi
muito bem aceita pela população local e passou a se difundir também em outros países,
incluindo o Brasil. Embora os contextos sejam diferentes, o objetivo permanece o mesmo,
discutir a autoimagem, ensinar autodefesa e desconstruir estereótipos e padrões, estimulando a
autonomia e a independência feminina infantil. Trata-se de ampliar os horizontes, se abrir às
possibilidades e se livrar do encarceramento que a dicotomia entre público e privado procura
continuamente enquadrar a figura feminina.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
151
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As narrativas audiovisuais convergem para a continuidade de um produto cultural que
ancoram por meio das imagens e dos discursos, elementos que, por serem familiares, se
tornam naturalizados, e por isso são continuamente propagados. A postura tida como correta
para uma princesa, ou mulher ‘de respeito’ ainda perpassa pela validação e pela reconstrução
de matrizes arquetipais culturais que, ao serem incorporadas nas personagens, se transformam
em modelos a serem seguidos, e estimulam ações. Essas ações tidas como tradicionais do
feminino é que denominamos como princesamento. A grande questão por detrás desta
estrutura de valor que contribui para que as mulheres, ainda na infância, associem a imagem
com discursos, não está na manutenção tradicional de valores como a família e nas
ritualidades do casamento, mas na reinvenção destes valores como elementos obrigatórios e
inerentes a própria figura feminina. Em suma, o princesamento também se apresenta como
consequência de um discurso midiático que estimula crianças à identificação com os
personagens, influenciando nas formas de socialização a partir de uma única matriz histórica.
O que se procurou mostrar neste ensaio é que um outro caminho também é possível.
As readaptações contemporâneas, embora recontem ainda, por meio das imagens, versões das
narrativas anteriores, contribuindo para a ancoragem em elementos identificatórios,
avançaram significativamente nas formas de representações femininas, contribuindo para que
novas configurações políticas, que eram quase que inquestionáveis, gerem novos discursos e
outras possibilidades. O papel dos contos na transmissão de valores principalmente na
infância ainda é extremamente relevante, e acreditamos que sempre será, mas o fato é que eles
podem se adaptar a cada contexto histórico se transformando em formatos industriais de
extremo valor no que diz respeito à desconstrução hegemônica no papel do feminino. Uma
outra forma de organização social se torna possível quando as diferenças são minimizadas e
mudanças culturais se abrem para novas subjetividades em um mundo que vai além das
essências uniformes do gênero, dando espaço para a eclosão de matrizes culturais diferentes, e
outras estruturas de identidades legitimadoras.
REFERÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
152
ARIÈS, P. (1978). História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e
Científicos Editora S.A.
BARBERO, Jésus Martin.(2001). Dos meios às mediações.Rio de Janeiro:Ed.UFRJ.
BEAUVOIR, Simone de (1949). O segundo sexo. Lisboa: Bertrand.
BETTELHEIM, B. (2002). A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
BREDER, F. (2013). Feminismo e príncipes encantados: a representação feminina nos filmes de
princesa da Disney. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Escola de
Comunicação – ECO.
CANCLINI, N. G. (1997). Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade.
Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP.
CASHDAN, S. (2000). Os sete pecados capitais nos contos de fadas: como os contos de fadas
influenciam nossas vidas. Rio de Janeiro: Campus.
COELHO, N. (1991). O Conto de fadas. São Paulo: Ática.
DEBORD, G. (1997). A sociedade do espetáculo: comentários sobre a sociedade do espetáculo. Rio
de Janeiro: Contraponto.
GALVÃO, W. (1997). A donzela-guerreira: um estudo de gênero. São Paulo: Editora SENAC.
LIPOVETSKY, Gilles (2000), A Terceira Mulher. Permanência e Revolução do Feminino, Maria
Lucia Machado (trad.), São Paulo: Companhia das Letras.
MOSCOVICI, S. (1978). A representação social da psicanálise. Tradução de Cabral. Rio de Janeiro:
Zahar.
SCHMIDT, V. L. (2011). 45 Master Characters, Revised Edition: Mythic Models for
Creating Original Characters. Writer's Digest Books; Edição: 3.
SCLIAR, Moacyr (1995). Um país chamado infância. São Paulo: Ática.
YOUNG, I. M. (2000). Inclusion and Democracy. Oxford: Oxford University
FILMOGRAFIA
-A Bela Adormecida (Sleeping Beauty). Direção: Clyde Geronimi, Les Clark, Eric Larson e
Wolfgang Reitherman. Produção: Walt Disney. Walt Disney Productions, 1959. 75 min, cor.
-A Bela e a Fera (Beauty and the Beast). Direção: Gary Trousdale e Kirk Wise. Produção:
Don Hahn. Walt Disney Pictures, 1991. 84 min, cor.
- A Branca de Neve e os Sete Anões (Snow White and the Seven Dwarfs). Direção: David
Hand, William Cottrell, Wilfred Jackson, Larry Morey, Perce Pearce e Ben Sharpsteen.
Produção: Walt Disney. Walt Disney Productions, 1937. 83 min, cor.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
153
- A Pequena Sereia (The Little Mermaid). Direção: Ron Clements e John Musker. Produção:
John Musker e Howard Ashman. Walt Disney Pictures, 1989. 82 min, cor.
- A Princesa e o Sapo (The Princess and the Frog). Direção: Ron Clements e John Musker.
Produção: Peter Del Vecho e John Lasseter. Walt Disney Pictures, 2009. 97 min, cor.
- Aladdin. Direção: Ron Clements e John Musker. Produção: Ron Clements e John Musker.
Walt Disney Pictures, 1992. 90 min, cor.
- Cinderela (Cinderella). Direção: Clyde Geronimi, Hamilton Luske e Wilfred Jackson.
Produção: Walt Disney. Walt Disney Productions, 1950. 74 min, cor.
- Enrolados (Tangled). Direção: Nathan Greno e Byron Howard. Produção: Roy Conli, John
Lasseter e Glen Keane. Walt Disney Pictures, 2010. 100 min, cor.
-Frozen - Uma Aventura Congelante. Direção: Jennifer Lee E Chris Buck. Produção: Peter
Del Vecho e John Lasseter. Walt Disney Pictures, 2014. 1h 42min, cor.
- Mulan. Direção: Tony Bancroft e Barry Cook. Produção: Pam Coats. Walt Disney Pictures,
1998. 87 min, cor.
- Pocahontas. Direção: Mike Gabriel e Eric Goldberg. Produção: James Pentecost. Walt
Disney Pictures, 1995. 81 min, cor.
- Valente (Brave). Direção: Mark Andrews e Brenda Chapman. Produção: Katherine Sarafian.
Pixar Animation Studios, 2012. 93 min, cor.
Original recebido em: 28 de junho de 2018
Aceito para publicação em: 19 de junho de 2019
Heloisa Porto Borges Mariz
Mestre em Estudos Culturais Contemporâneos, Heloisa Borges tem realizado investigações
nas linhas de pesquisa que relacionam cinema, gênero e processos midiáticos. No campo da
Comunicação, atua com Planejamento Estratégico e Análise de Mídia.
Rodrigo Fonseca e Rodrigues
Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e
Pós-doutor em Ciências da Linguagem pela Universidade Nova de Lisboa, atua como professor da
Universidade FUMEC lecionando diversas matérias na área de cinema, arte e estética.
Esta obra está licenciado com uma Licença
Creative Commons Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional
top related