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ARPq69 Acta Radiológica Portuguesa, Vol.XXIV, nº 96, pág. 69-72, Out.-Dez., 2012 Casos Clínicos / Radiological Case Reports Recebido a 26/10/2012 Aceite a 13/12/2012 Angiossarcoma Cardíaco – Caso clínico Cardiac Angiosarcoma – Case Report Teresa Dionísio 1 ; Sílvia Costa Dias 1 ; Vasco Mendes 2 ; Ana Catarina Costa 3 1 Interno do Internato Complementar de Radiologia do Hospital de Braga 2 Assistente Hospitalar de Radiologia do Hospital de Braga 3 Assistente Graduado de Radiologia do Hospital de Braga Director de Serviço: Dr. Carlos Pina Vaz Introdução Os angiossarcomas são os tumores cardíacos malignos primários mais frequentes, mas, ainda assim, são tumores raros [1]. O diagnóstico clínico de angiossarcoma é muitas vezes difícil, pela ausência de sintomas específicos associados a esta patologia. A disseminação local e sistémica precoce é típica, havendo frequentemente metastização aquando do diagnóstico (66 -89%), pelo que estes tumores apresentam, quase invariavelmente, evolução célere e fatal, com uma sobrevida média de 6 meses [1,2]. Apresentamos um caso clínico que ilustra a dificuldade em diagnosticar o angiossarcoma cardíaco em fase precoce e empreendemos uma discussão sobre tema, com base na revisão da literatura atual. Resumo O sarcoma cardíaco é uma entidade clínica rara, com uma incidência de 0,0001% em séries de autópsias. O angiossarcoma é o tipo de sarcoma cardíaco mais comum, correspondendo a 33% dos casos. O prognóstico destes tumores é bastante reservado, principalmente quando se encontram disseminados à data de diagnóstico, metastizando frequentemente para o pulmão e para o fígado. Os autores apresentam o caso clínico de um rapaz de 19 anos com o diagnóstico de angiossarcoma cardíaco, confirmado histologicamente. Os aspetos clínicos e imagiológicos desta entidade são discutidos, fazendo-se uma breve revisão bibliográfica do tema. Palavras-chave Angiossarcoma; Coração; Metástases. Abstract Cardiac sarcoma is a rare disorder with an incidence of 0.0001% in autopsy series. Angiosarcoma is the most common type amount cardiac sarcomas, representing 33% of cases. This type of tumor has a guarded prognosis, especially if they are metastasized at the time of diagnosis, spreading most commonly to the lung and the liver. The authors present a case report of a 19-year-old boy, with the diagnosis of cardiac angiosarcoma, confirmed histologically. The clinical and imaging findings of this entity are discussed and a brief review the literature is performed. Key-words Angiosarcoma; Heart; Metastases. Caso Clínico Jovem do sexo masculino com 19 anos, fumador de 2-4 cigarros/dia, com exposição profissional a tintas/diluentes, antecedentes de sinusite crónica há cerca de 4 anos e alergia a PCN. Foi admitido neste hospital, após transferência de outro hospital, por episódios de hemoptise e dor retroesternal com 3 meses de evolução. Realizou ecocardiograma, que demonstrou válvula aórtica bicúspide com insuficiência valvular ligeira, função sistólica ventricular conservada e presença de derrame pericárdico de grande volume, sem sinais de tamponamento. Realizou também ECG, que revelou ritmo sinusal, sem baixa voltagem ou sinais de isquemia. Foi ainda efetuada TC torácica, que revelou múltiplos nódulos pulmonares acompanhado de densificação alveolar junto da extremidade dos vasos.

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ARPq69

Acta Radiológica Portuguesa, Vol.XXIV, nº 96, pág. 69-72, Out.-Dez., 2012

Casos Clínicos / Radiological Case Reports

Recebido a 26/10/2012Aceite a 13/12/2012

Angiossarcoma Cardíaco – Caso clínico

Cardiac Angiosarcoma – Case Report

Teresa Dionísio1; Sílvia Costa Dias 1; Vasco Mendes2; Ana Catarina Costa3

1Interno do Internato Complementar de Radiologia do Hospital de Braga2Assistente Hospitalar de Radiologia do Hospital de Braga3Assistente Graduado de Radiologia do Hospital de BragaDirector de Serviço: Dr. Carlos Pina Vaz

Introdução

Os angiossarcomas são os tumores cardíacos malignosprimários mais frequentes, mas, ainda assim, são tumoresraros [1]. O diagnóstico clínico de angiossarcoma é muitasvezes difícil, pela ausência de sintomas específicosassociados a esta patologia. A disseminação local esistémica precoce é típica, havendo frequentementemetastização aquando do diagnóstico (66 -89%), pelo queestes tumores apresentam, quase invariavelmente, evoluçãocélere e fatal, com uma sobrevida média de 6 meses [1,2].Apresentamos um caso clínico que ilustra a dificuldadeem diagnosticar o angiossarcoma cardíaco em fase precocee empreendemos uma discussão sobre tema, com base narevisão da literatura atual.

Resumo

O sarcoma cardíaco é uma entidade clínica rara, com uma incidência de 0,0001% em séries de autópsias. O angiossarcoma é otipo de sarcoma cardíaco mais comum, correspondendo a 33% dos casos. O prognóstico destes tumores é bastante reservado,principalmente quando se encontram disseminados à data de diagnóstico, metastizando frequentemente para o pulmão e para ofígado.Os autores apresentam o caso clínico de um rapaz de 19 anos com o diagnóstico de angiossarcoma cardíaco, confirmadohistologicamente. Os aspetos clínicos e imagiológicos desta entidade são discutidos, fazendo-se uma breve revisão bibliográficado tema.

Palavras-chave

Angiossarcoma; Coração; Metástases.

Abstract

Cardiac sarcoma is a rare disorder with an incidence of 0.0001% in autopsy series. Angiosarcoma is the most common typeamount cardiac sarcomas, representing 33% of cases. This type of tumor has a guarded prognosis, especially if they are metastasizedat the time of diagnosis, spreading most commonly to the lung and the liver.The authors present a case report of a 19-year-old boy, with the diagnosis of cardiac angiosarcoma, confirmed histologically. Theclinical and imaging findings of this entity are discussed and a brief review the literature is performed.

Key-words

Angiosarcoma; Heart; Metastases.

Caso Clínico

Jovem do sexo masculino com 19 anos, fumador de 2-4cigarros/dia, com exposição profissional a tintas/diluentes,antecedentes de sinusite crónica há cerca de 4 anos e alergiaa PCN. Foi admitido neste hospital, após transferência deoutro hospital, por episódios de hemoptise e dorretroesternal com 3 meses de evolução. Realizouecocardiograma, que demonstrou válvula aórtica bicúspidecom insuficiência valvular ligeira, função sistólicaventricular conservada e presença de derrame pericárdicode grande volume, sem sinais de tamponamento. Realizoutambém ECG, que revelou ritmo sinusal, sem baixavoltagem ou sinais de isquemia. Foi ainda efetuada TCtorácica, que revelou múltiplos nódulos pulmonaresacompanhado de densificação alveolar junto daextremidade dos vasos.

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Foi efetuada drenagem pericárdica (volume total de 1300cc; glucose 47 mg/dL; proteínas 5,4; LDH 305; células6295, com 65% de linfócitos; ADA negativo), tendo ficadocom derrame pericárdico residual com 1,5 cm de espessura.Realizou-se Angio-TC (Fig. 1), que não demonstroufenómenos trombo-embólicos, mantendo-se o derramepericárdico, com espessura máxima de 1,5 cm. Persistiamtambém os pequenos nódulos relativamente densos, comhalo de densificação.A broncofibroscopia, realizada de seguida, revelou apresença de sangue recente desde as cordas vocais,projetando-se por toda a árvore respiratória distalmente,mas sem foco de hemorragia ativa. As árvores brônquicasdireita e esquerda apresentavam secreções mucosas queforam aspiradas, não se tendo visualizado lesões, tendo-se realizado lavado broncoalveolar.Efetou TC torácico de alta resolução (Fig. 2). Noparênquima pulmonar observavam-se inúmerasdensificações nodulariformes dispersas bilateralmente,predominantemente peri-vasculares e ligeiramente mais àperiferia, constituídas por região central densainfracentimétrica e rodeadas de halo em vidro despolido,mostrando-se relativamente sobreponíveis a estudoanterior. Identificavam-se adenopatias retrocava com cercade 1-1.5 cm, sem derrame pericárdico valorizável nessaaltura.Foram efetuadas biópsias pulmonar e óssea, ambas semalterações de relevo no contexto clínico.Realizou RM Cardíaca (Fig. 3), onde foi individualizadauma massa com 8x3.5x2 cm (diâmetros longitudinal xantero-posterior x transversal) a nível da parede anteriorda aurícula direita. Esta massa apresentava hipersinal nassequências ponderadas em T2, iso-sinal em T1 e captavade forma ligeira e heterogénea o produto de contraste.Estendia-se no sentido cranio-caudal desde a vertenteanterior de veia cava superior e aorta ascendente, estandoem contacto com estas estruturas em menos de 50% dasua circunferência. Prolongava-se pela parede anterior daaurícula direita, sem aparente invasão do sulco aurículo-ventricular ou artéria coronária direita nos seus segmentosproximal e médio. Neste exame não havia derramepericárdico ou pleural. Mantinham-se múltiplas lesõesfocais no parênquima pulmonar, bilateralmente, jáobservadas na TC. Perante esta massa, incluíram-se comodiagnósticos diferenciais a hipótese de angiossarcoma,linfoma, mesotelioma ou metástase.O paciente foi submetido a biopsia cirúrgica da lesãotumoral cardíaca, cujo estudo anatomopatológico foicompatível com angiossarcoma de origem cardíaca. Dadoo contexto de disseminação metastática para o pulmão ede se tratar de uma lesão cuja ressecção cirúrgica completanão era possível, o paciente foi proposto para terapêuticaquimioterápica.

Discussão

Os tumores cardíacos primários são extremamente raros,apresentando uma incidência em relatos de autópsias de0,001 a 0,03 [3]. No adulto, 75 % dos tumores cardíacosprimários são benignos, entre os quais o mixoma é o maisfrequente, e os restantes 25% são malignos, sendo os

sarcomas os mais comuns [4]. Estes últimos derivam dotecido mesenquimatoso, havendo vários tiposmorfológicos, sendo o angiossarcoma o mais comum,correspondendo a 30% dos sarcomas cardíacos [5].O angiossarcoma é mais frequente entre a terceira e a quartadécadas de vida e a incidência no homem é 2- 3 vezessuperior à da mulher [6].Geralmente apresentam sinais e sintomas inespecíficos,sendo o diagnóstico estabelecido por imagem e análisehistológica do tumor [7]. Surge preferencialmente naaurícula direita, o que o distingue dos tumores benignos,

Fig.1 - Na Angio-TC identifica-se retrospectivamente uma massa (seta)na vertente anterior da aurícula direita e apêndice direito, heterogénea ede contornos indentados, esboçando ténue captação de contraste (B).Identificam-se igualmente várias lesões pulmonares focais bilaterais comdimensões peri e infra-centimétricas e com sinal de halo, traduzindoneste contexto metástases hemorrágicas (C).

C

A

B

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mais frequentes na aurícula esquerda. Podem invadirestruturas vizinhas, nomeadamente a veia cava superiorou inferior ou a válvula tricúspide [8]. Estes tumores podemapresentar dois padrões de crescimento. No padrão decrescimento mais comum, a TC mostra geralmente umamassa de contornos bem definidos e de baixa densidade,nodular ou irregular, na aurícula direita, maisfrequentemente na sua parede livre [8,9]. Por vezes,apresentam áreas de hemorragia ou necrose, responsáveispelo padrão heterogéneo visível em RM. Áreas dehipersinal em T1 podem ser focais ou periféricas,admitindo-se que representem produtos sanguíneossubagudos [8]. A captação de contraste é tipicamenteheterogénea tanto em TC como em RM [9]. O padrão decrescimento menos comum envolve infiltração do tumorao longo do pericárdio, sendo que o espessamento e oderrame pericárdicos podem ser vistos na TC [9].Os angiossarcomas e os coriocarcinomas são as causasmais frequentes de metástases hemorrágicas. A fragilidadedos tecidos neovasculares, que leva a trombose e a rupturados vasos, é provavelmente a causa da hemorragia em tornoda metástase [10]. Essas lesões nodulares sólidas comhemorragia apresentam densidade de tecidos moles, compadrão de vidro despolido em redor dos nódulos,denominado “sinal do halo” em TC [10].

Fig. 3 - A TC de alta resolução (cortes axiais, janela de pulmão) revelainúmeras densificações nodulariformes dispersas bilateralmente,predominantemente peri-vasculares e ligeiramente mais à periferia,rodeadas por padrão em vidro despolido (sinal do halo), que no contextotraduzem metástases hemorrágicas (A, B). Em janela de mediastino sãoigualmente visíveis adenopatias retrocava com cerca de 1-1.5 cm (C).

Alguns autores consideram ainda que a presençasimultânea de metástases pulmonares e derramepericárdico deve levantar a suspeita de um tumor cardíacoprimário [1]. A alteração hemorrágica das metástases éconsiderada um aspeto característico do angiossarcoma edeve levar o radiologista a colocá-lo na lista de possíveisdiagnósticos diferenciais [11]. No caso clínico descrito,este foi o primeiro achado imagológico identificado naTC, motivando a consequente investigação etiológica.

A

B

CFig. 2 - A RM Cardíaca revela uma massa com 8x3.5x2 cm (LxAPxT) anível da parede livre da aurícula direita (A). Esta massa apresentahipersinal nas sequências ponderadas em T2, iso-sinal em T1 e captavade forma ligeira e heterogénea o produto de contraste (B).

A

B

72q ARP

A disseminação local e sistêmica precoce é típica, o quefaz restringir a indicação de ressecção cirúrgica a umpequeno número de pacientes. Frequentemente já hámetastização aquando do diagnóstico (66-89%), pelo queestes tumores apresentam, quase invariavelmente, evoluçãocélere e fatal, com uma sobrevida média de 6 meses [1,2].As modalidades terapêuticas atuais incluem a cirurgia,quimioterapia e radioterapia, isoladas ou em combinação.A cirurgia pode ser útil para ajudar a estabelecer odiagnóstico histológico e alívio dos sintomas. O estadioavançado e as dimensões alcançadas pelo tumor sãofactores limitantes do sucesso do tratamento cirúrgico. Aressecção completa é essencial se se pretender aumentar asobrevivência pós-operatória [12]. O transplante cardíacopode ser uma opção em casos não ressecáveis. Estas opçõesterapêuticas têm pouco sucesso, prolongando apenas asobrevida em alguns meses, mesmo em casos em que épossível uma ressecção cirúrgica ampla ou transplantecardíaco.A história natural é caracterizada por um curso clínicobreve e evolução fatal, mesmo após a cirurgia e terapêuticaadjuvante [3]. O prognóstico é sombrio, independente daterapêutica instituída, com uma sobrevida que nãoultrapassa os 2 anos, mesmo nos casos em que a resseçãotumoral completa ainda é possível.

Referências

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10. Tateishi, U.; Hasegawa, T.; Kusumoto, M.; Yamazaki, N.; Iinuma,G.; Muramatso et al - Metastatic Angiosarcoma Of The Lung: SpectrumOf CT Findings. AJR, 2003, 180.

11. Seo, J.; Im, J.; Goo, J.; Chung, M.; Kim, M. - Atypical PulmonarMetastases: Spectrum Of Radiologic Findings, RadioGraphics, 2001,21:403-417.

12. McFadden, P.; Ochsner, J. - Atrial Replacement And Tricuspid ValveReconstruction After Angiosarcoma Resection. Ann Thorac Surg, 1997,64:1164-6.

Correspondência

Teresa DionísioServiço de RadiologiaHospital de BragaSete Fontes – São Victor4710-243 Bragae-mail: [email protected]