antónio damásio - ao encontro de espinosa

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António Damásio - Ao Encontro de Espinosa

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António Damásio

EM BUSCA DE ESPINOSAPrazer e dor na ciência dos sentimentos

2ª reimpressão

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COMPANHIA DAS LETRAS

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Tradução do autor Título originalLooking for Spinoza: joy, sorrow and thefeeling brain

Adaptação para o português doBrasil Laura Teixeira Motta

Capa

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Raul Loureiro sobre obra sem título(1968,1971),deCy Twombly. Cortesiada galeria Karsten Greve Köln, Paris,Milano, St. MoritzÍndice remissivo Luciano MarchioriPreparação Maysa Monção

Revisão

Olga Cafalcchio Isabel Jorge CuryDados Internacionais de Catalogação naPublicação (cip)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Damásio, AntónioEm busca de Espinosa: prazer e dor

na ciência dos sentimentos/AntónioDamásio; adaptação para o portuguêsdo Brasil Laura Teixeira Motta. São

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Paulo: Companhia das Letras, 2004.Título original: Looking for Spinoza :

joy, sorrow, and the feeling brainISBN 978-85-359-0490-11. Dor 2. Emoções 3. Neuropsicologia

4. Neurobiologia 5. Prazer 6. Spinoza,Benedictus de, 1632-1677 Crítica einterpretação I. Título. II Título: Prazer edor na ciência dos sentimentos04-2146 CDD-152.4

Indice para catálogo sistemático:1. Emoções e sentimentos: Conceitosde Espinosa :Neuropsicologia 152.4

[2009]Todos os direitos destaedição reservados àEDITORA SCHWARCZLTDA.Rua Bandeira Paulista702 cj. 32 04532-002São Paulo SP Telefone(11) 3707-3500

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Fax(ll)3707-3501 www.companhiadasletras.com.br

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Para Hanna

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Sumário

1. ENTRAM EM CENA OSSENTIMENTOS

Dar a palavra aos sentimentos

Haia, 1º de dezembro de 1999

À procura de Espinosa

Cuidado

De novo no Paviljoensgracht

2. OS APETITES E AS EMOÇÕES

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Shakespeare já tinha dito

As emoções precedem ossentimentos

Um curioso princípio deorganização

Da regulação homeostáticasimples às emoções propriamenteditas

As emoções dos organismossimples

As emoções propriamente ditas

Uma hipótese em forma dedefinição

A maquinaria cerebral dasemoções

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O desencadeamento e a execuçãodas emoções

Subitamente

Um interruptor do tronco cerebral

De súbito, o riso

Um pouco mais de riso e algumaslágrimas

Do corpo ativo à mente

3. OS SENTIMENTOS

O que são os sentimentos

Além da percepção do corpo

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Os sentimentos são percepçõesinterativas

A memória e o desejo: um aparte

Os sentimentos no cérebro: novosdados

Dados adicionais

Algumas provas adicionais

O substrato dos sentimentos

Quem pode ter sentimentos?

Estados do corpo e mapas docorpo

Estados do corpo: a realidade e asimulação

Analgesia natural

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Empatia

Alucinar o corpo

A química do sentimento

As drogas da felicidade

Têm a palavra os recalcitrantes

4. DEPOIS DOS SENTIMENTOS

A alegria e a mágoa

Os sentimentos e ocomportamento social

Dentro do mecanismo dasdecisões

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Os benefícios do mecanismo

A perturbação de um mecanismonormal

Lesões pré-frontais em crianças

E se o mundo?

Neurobiologia e comportamentoséticos

A homeostasia e o governo da vidasocial

Os fundamentos da virtude

Para que servem os sentimentos?

5. CORPO, CÉREBRO E MENTE

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Corpo e mente

Haia, 2 de dezembro de 1999

O corpo invisível

Perder o corpo e perder a mente

A construção das imagens docorpo

Uma palavra de cautela

A construção da realidade

A visão das coisas

As origens da mente

Corpo, mente e Espinosa

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O Dr. Tulp

6. UMA VISITA A ESPINOSA

Rijnsburg, 6 de julho de 2000

A Idade de Ouro

Haia, 1670

Amsterdam, 1632

Ideias e acontecimentos

O caso de Uriel da Costa

A perseguição judaica e a tradiçãomarrana

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A excomunhão

O legado de Espinosa

Além do Iluminismo

Haia, 1677

A biblioteca

O Espinosa que finalmenteencontrei

7. QUEM ESTÁ AÍ?

Uma vida feliz

A solução Espinosa

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A qualidade de uma solução

O espinosismo

Será possível acabar bem?

Apêndice 1

Apêndice 11

Notas

Glossário

Agradecimentos

Crédito das ilustrações

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1. Entram em cena os sentimentos

DAR A PALAVRA AOS SENTIMENTOS

Os sentimentos de dor ou prazer sãoos alicerces da mente. É fácil não darconta dessa simples realidade porqueas imagens dos objetos e dosacontecimentos que nos rodeiam, bemcomo as imagens das palavras e frasesque os descrevem, ocupam toda anossa modesta atenção, ou quase toda.Mas é assim. Os sentimentos de prazerou de dor ou de toda e qualquerqualidade entre dor e prazer, ossentimentos de toda e qualqueremoção, ou dos diversos estados quese relacionam com uma emoçãoqualquer, são a mais universal dasmelodias, uma canção que só descansaquando chega o sono, e que se tornaum verdadeiro hino quando a alegrianos ocupa, ou se desfaz em lúgubreréquiem quando a tristeza nos invade.

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Dada a ubiquidade dos sentimentos,seria fácil pensar que a sua ciênciaestaria já há muito elucidada. Mas nãoestá. Dentre todos os fenômenosmentais que podemos descrever, ossentimentos e os seus ingredientesessenciais a dor e o prazer são delonge os menos compreendidos no quediz respeito à sua biologia e emparticular à neurobiologia. Isso éespecialmente surpreendente quandopensamos que as sociedadesavançadas cultivam os sentimentos daforma mais despudorada e manipulamos sentimentos com álcool ou drogasilícitas, medicamentos, boa e máalimentação, sexo real e virtual, todaespécie de consumos e práticas sociaise religiosas cuja única finalidade é obem-estar. Tratamos dos nossossentimentos com comprimidos,bebidas, exercícios físicos e espirituais,mas nem o público nem a ciênciafazem uma ideia clara do que são ossentimentos do ponto de vistabiológico.

Não posso me declarar inteiramentesurpreso com esse estado de coisasdadas as estranhas ideias com quecresci no que diz respeito aos

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sentimentos. Por exemplo, costumavapensar que os sentimentos não podiamse definir de forma específica, aocontrário dos objetos que se veem, quese ouvem ou em que se pode tocar. Aocontrário dessas entidades concretas,os sentimentos eram intangíveis.Quando comecei a pensar na formacomo o cérebro criava a mente, aceiteisem protesto a ideia de que ossentimentos não cabiam em nenhumprograma científico. Podíamos estudara forma como o cérebro nosmovimenta. Podíamos estudarprocessos sensitivos, tais como a visão,e compreender como se organiza opensamento. Podíamos até estudar asreações emocionais com as quaisrespondemos a diversos objetos esituações. Mas os sentimentos que,como veremos no próximo capítulo,podem ser distinguidos das emoçõescontinuavam fora do nosso alcance,para sempre misteriosos e inacessíveis.Não era possível explicar comoaconteciam os sentimentos e, menosainda, o local onde aconteciam.

Como era o caso com a consciência,os sentimentos existiam fora das portasda ciência, aí mantidos

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cuidadosamente não só por uma certafilosofia empenhada em negar qualquerexplicação neurocientífica para osfenômenos mentais, mas também porneurocientistas diplomados que lhesnegavam a entrada. A prova de quetomei a sério essas diversas limitaçõesé o fato de que durante muitos anosevitei qualquer projeto que dissesserespeito aos sentimentos. Levei muitotempo para descobrir que os obstáculospostos à ciência dos sentimentos nãotinham cabimento e que a neurologiados sentimentos não era menos viáveldo que a da visão ou a da memória.Mas a realidade de certos doentesneurológicos forçou-me, ao fim e aocabo, a rever a minha posição.

Imaginem, por exemplo, encontraralguém a quem uma certa lesãocerebral tornou incapaz de sentirvergonha ou compaixão, mas em nadaalterou a capacidade de sentir tristeza,felicidade ou medo. Imaginem umapessoa a quem uma lesão de outraregião cerebral tornou incapaz de sentirmedo, mas não interferia com acapacidade de sentir compaixão ouvergonha. A crueldade da doençaneurológica é um poço sem fundo para

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as suas vítimas os doentes, bem comoos médicos que os observam e tratam.Mas a doença neurológica também temqualquer coisa de redenção: a doençafunciona como um bisturi que separa océrebro normal do cérebro doente comespantosa precisão e que assimpermite uma rara porta de entrada nafortaleza do cérebro e mente.

A reflexão sobre a situação dessesdoentes e de outros com problemascomparáveis levou-me à construção dediversas hipóteses. Primeiro, era óbvioque certas espécies de sentimentospodiam ser bloqueadas pela lesão deum setor cerebral discreto; a perda deum setor cerebral específico implicavaa perda de uma classe específica defenômeno mental. Segundo, eratambém óbvio que sistemas cerebraisdiferentes controlavam diferentesespécies de sentimentos; a lesão deuma certa região anatômica cerebralnão causava a perda de todas asformas possíveis de sentimento.Terceiro, quando os doentes perdiam acapacidade de exprimir uma certaemoção também perdiam a capacidadede ter o correspondente sentimento. Deforma surpreendente, contudo, alguns

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doentes incapazes de ter certossentimentos eram ainda capazes deexprimir as emoções que lhescorrespondem ou seja, era possívelexibir uma expressão de medo mas nãosentir medo. A emoção e o sentimentoeram irmãos gêmeos, mas tudoindicava que a emoção tinha nascidoprimeiro, seguida pelo sentimento, eque o sentimento se seguia sempre àemoção como uma sombra. Apesar daintimidade e aparente simultaneidade,tudo indicava que a emoção precedia osentimento. Entrever essa relaçãoespecífica permitiu, como iremos ver,uma perspectiva privilegiada nainvestigação dos sentimentos.

Essas hipóteses podiam ser testadascom a ajuda de técnicas deneuroimagem que permitem a criaçãode imagens da anatomia e atividade docérebro humano. Passo a passo,primeiro em doentes e depois tanto emdoentes como em pessoas sem doençaneurológica, começamos a mapear ageografia do cérebro que sente. A metaera elucidar a teia de mecanismos quepermitem aos nossos pensamentosdesencadear estados emocionais econstruir sentimentos.1

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A emoção e o sentimento já tinhamdesempenhado um papel importante,embora bem diferente, em dois livrosprecedentes. Em O erro de Descartesabordei o papel da emoção e dosentimento na tomada de decisões. EmO mistério da consciência descrevi opapel da emoção e do sentimento naconstrução do self. O foco deste novolivro são os sentimentos propriamenteditos, aquilo que são e aquilo quefazem. A maior parte dos dados queagora apresento não existiam quandoescrevi os livros anteriores, e temoshoje uma plataforma bem mais sólidapara o entendimento da biologia dossentimentos. Em suma, a finalidadeprincipal deste livro é descrever oprogresso que se tem feito noentendimento da natureza e significadohumano dos sentimentos, tal como osvejo agora, como neurologista,neurocientista e consumidor habitual.

Na minha perspectiva atual, ossentimentos são a expressão doflorescimento ou do sofrimentohumano, na mente e no corpo. Ossentimentos não são uma meradecoração das emoções, qualquer coisaque possamos guardar ou jogar fora. Os

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sentimentos podem ser, e geralmentesão, revelações do estado da vidadentro do organismo. São o levantar deum véu no sentido literal do termo.Considerando a vida como umaacrobacia na corda bamba, a maiorparte dos sentimentos são expressõesde uma luta contínua para atingir oequilíbrio, reflexos de todos osminúsculos ajustamentos e correçõessem os quais o espetáculo colapsa porinteiro. Na existência do dia-a-dia ossentimentos revelam,simultaneamente, a nossa grandeza e anossa pequenez.

A forma como a revelação seintroduz na mente só agora começa,ela mesma, a ser revelada. O cérebrodedica várias regiões que trabalhamem concerto a retratar de diversosaspectos as atividades do corpo sob aforma de mapas neurais. Esse retrato éuma imagem composta da vida nassuas contínuas modificações. As viasquímicas e neurais que trazem aocérebro os sinais com que esse retratoda vida é pintado são tão específicascomo a tela que os recebe. O mistériodo sentir está se tornando, assim, umpouco menos misterioso.

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É perfeitamente legítimo perguntarse a tentativa de elucidar ossentimentos tem qualquer espécie devalor além da satisfação da nossacuriosidade. Não deve surpreenderninguém que a minha resposta sejaafirmativa. Elucidar a neurobiologia dossentimentos e das emoções que ospercebem altera a nossa visão doproblema mente-corpo, um problemacujo debate é central para a nossacompreensão daquilo que somos. Aemoção e as várias reações com elarelacionadas estão alinhadas com ocorpo, enquanto os sentimentos estãoalinhados com a mente. A investigaçãoda forma como os pensamentosdesencadeiam as emoções e de comoas modificações do corpo durante asemoções se transformam nosfenômenos mentais a que chamamossentimentos abre um panorama novosobre o corpo e sobre a mente, duasmanifestações aparentementeseparadas de um organismo integradoe singular.

Mas a tentativa de explicar abiologia dos sentimentos e dasemoções também tem resultadospráticos. Vai contribuir sem dúvida para

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a descoberta de tratamentos eficazesde algumas das causas principais dosofrimento humano, como por exemploa depressão, a dor e a toxicomania.Além disso, compreender o que são ossentimentos, a forma como funcioname o seu significado humano são passosindispensáveis para a construção futurade uma visão dos seres humanos maiscorreta do que a atual, uma visão quelevará em conta todo o espetacularprogresso que se tem feito nas ciênciassociais, nas ciências cognitivas e nabiologia. E por que razão terá aconstrução dessa nova perspectivaqualquer valor prático? A razão ésimples: o êxito ou o fracasso dahumanidade depende em grande partedo modo como o público e asinstituições que governam a vidapública puderem incorporar essa novaperspectiva da natureza humana emprincípios, métodos e leis.Compreender a neurobiologia dasemoções e dos sentimentos énecessário para que se possamformular princípios, métodos e leiscapazes de reduzir o sofrimentohumano e engrandecer o florescimentohumano. De fato, a nova perspectivadiz respeito até ao modo como os sereshumanos poderão abordar conflitos

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latentes entre interpretações sagradasou seculares da sua própria existência.

Agora que expliquei a finalidadeprincipal deste livro, é hora de explicara razão por que um trabalho dedicado aideias novas sobre a natureza esignificado dos sentimentos evocaEspinosa no seu título. Dado que nãosou filósofo e que a finalidade destelivro não é discutir a filosofia deEspinosa, é legítimo perguntar: por queEspinosa? A resposta curta é fácil.Espinosa é profundamente relevantepara qualquer discussão sobre aemoção e sentimentos humanos.Espinosa considerava as pulsões(drives) e motivações, emoções esentimentos o conjunto que Espinosadesignava como afetos um aspectocentral da humanidade. A alegria e atristeza foram dois conceitosfundamentais na sua tentativa decompreender os seres humanos esugerir maneiras de a vida ser maisbem vivida. A resposta longa é maispessoal e muito mais trabalhosa.

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HAIA, 1º DE DEZEMBRO DE 1999

O simpático porteiro do Hotel desIndes insiste: “O senhor não devia saircom este tempo, deixe-me arranjar umcarro. Está uma ventania terrível, isto équase um furacão, olhe só para asbandeiras”. E é verdade, bandeiras enuvens correm para o oriente e asembaixadas de Haia preparam-se paralevantar voo. No entanto, apesar datempestade agradeço a oferta mas nãoaceito. Prefiro andar a pé. O simpáticoporteiro não faz nenhuma ideia do meudestino, e não vou lhe contar. O que éque ele pensaria?

A chuva quase parou, e o vento nãofaz grande diferença. De fato, consigocaminhar rapidamente e seguir comfacilidade o mapa mental que há muitoformei desta parte da cidade. No finalda promenade, que fica defronte aoHotel des Indes, do meu lado direito,avisto já o palácio e a Mauritshuisengalanada com o rosto de Rembrandt,que anuncia a retrospectiva dos seus

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auto-retratos. Passada a praça domuseu, as ruas estão praticamentedesertas, embora isso seja o centro dacidade e seja dia de trabalho. Deve terhavido avisos recomendando que aspessoas ficassem em casa. Tantomelhor. Chego ao Spui sem ter deatravessar uma única multidão. Depoisde passar pela Igreja Nova, a rota deixade ser familiar e hesito por umsegundo, mas a escolha torna-se clara:viro à direita na Jacobstraat, depois àesquerda na Wagenstraat, e de novo àdireita na Stilleverkade. Cinco minutosmais tarde estou no Paviljoensgracht eparo defronte ao número 72-74.

A fachada da casa é exatamentecomo a imaginei, pequena, com trêsandares e uma largura de três janelas,uma versão média de uma casa decanal, mais modesta do que rica. Acasa está em excelentes condições edeve ter tido precisamente o mesmoaspecto no século XVII. Todas asjanelas estão fechadas e não hánenhum sinal de vida. A porta está bempintada e na orla da campainha bempolida está escrita a palavra“Spinosahuis”. Toco a campainha semgrande esperança. Não ouço nenhum

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ruído dentro da casa nem vejo nenhummovimento nas cortinas. Ninguém tinhaatendido quando tentei telefonaralgumas horas antes. Decididamente,Espinosa não está.

Foi aqui que Espinosa viveu osúltimos sete anos da sua curta vida, efoi aqui que morreu em 1677. OTratado teológico-político, que consigotrazia quando chegou a esse lugar, foipublicado anonimamente enquantoaqui vivia, e a Ética foi completadanesta casa e publicada depois da suamorte, de forma quase tão anônima.

Não tenho nenhuma esperança devisitar a casa hoje, mas nem tudo estáperdido. No jardim inesperado quesepara as duas faixas doPaviljoensgracht, descubro o próprioEspinosa, meio obscurecido pelavegetação soprada pelo vento,pensativa e calmamente sentado,numa inabalável perpetuidade debronze. Tem um ar satisfeito e não estáde todo preocupado com a perturbaçãometeorológica que o rodeia.

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Há vários anos que ando à procurade Espinosa, às vezes em livros, àsvezes em lugares, e é essa a razão porque aqui estou hoje. Um passatempocurioso, como podem ver, umpassatempo que não me recordo de teradotado conscientemente. A razão porque o adotei tem muito a ver com acoincidência. Li Espinosa pela primeiravez na minha adolescência - não hámelhor idade para ler o Espinosa quetrata da religião e da política - mas,embora algumas ideias tenham meinfluenciado grandemente, a verdade éque a reverência que criei em relação aEspinosa era bastante abstrata.Espinosa era ao mesmo tempofascinante e inabordável. Mais tarde,nunca pensei que Espinosa fosseespecialmente pertinente para o meutrabalho, e o meu conhecimento dassuas ideias continuou a ser incompleto.E no entanto houve uma citação deEspinosa que sempre guardei comouma espécie de tesouro provém daÉtica e diz respeito ao selfe foi sóquando decidi utilizar essa citação eprecisei verificar se estava correta queEspinosa regressou à minha vida.Encontrei a citação, bem entendido, econfirmei que o conteúdo do papeldesbotado em que estava escrita era

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exato. Mas quando comecei a lerEspinosa à volta dessas palavrasespecíficas, descobri com grandesurpresa que não podia parar. Espinosaainda era o mesmo, claro, mas eu tinhamudado. Aquilo que muitos anos atrástinha me parecido impenetrável eraagora perfeitamente familiar,estranhamente familiar, de fato, einteiramente relevante para diversosaspectos do meu trabalho recente. Nãose tratava de concordar com tudo oque Espinosa dizia. Algumas passagenscontinuavam tão opacas quanto antes,e havia conflitos e inconsistências deideias que mesmo as leituras repetidasnão apagavam. Continuava perplexo eaté exasperado. Contudo, na maiorparte do tempo, encontrei umaagradável ressonância com as ideias,um pouco como o personagem de TheFixer de Bernard Malamud, que leualgumas páginas de Espinosa econtinuou sem parar como se um ventoa favor o empurrasse para diante: “...não é que percebesse todas aspalavras, mas quando se depara comtais ideias uma pessoa sente-setransportada num tapete mágico”.2

Espinosa tratava dos temas que maisme preocupam como cientista anatureza das emoções e dos

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sentimentos e a relação entre o corpo ea mente e esses mesmos temaspreocuparam muitos pensadores dopassado. Aos meus olhos, contudo,Espinosa parecia ter vislumbradosoluções que a ciência só agora estáoferecendo para vários dessesproblemas, e isso, sem dúvida, erasurpreendente.

Por exemplo, quando Espinosa diziaque O amor nada mais é do que umestado agradável, a alegria,acompanhado pela ideia de uma causaexterior, Espinosa estava separandocom grande clareza o processo dosentir do processo de ter uma ideiasobre um objeto que pode causar umaemoção.3 A alegria era uma coisa e oobjeto que causava a alegria era outracoisa. Alegria ou tristeza, bem como aideia dos objetos que causavam umaou outra, iriam juntar-se na mente, porfim, mas começavam distintos.Espinosa tinha descrito umaorganização funcional que a ciênciamoderna está revelando como um fato:os organismos vivos são dotados deuma capacidade de reagiremocionalmente a diferentes objetos eacontecimentos. A reação, a emoção no

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sentido literal do termo, é seguida porum sentimento. A sensação de prazerou dor é um componente necessáriodesse sentimento.

Espinosa propôs também que opoder dos afetos é tal que a únicapossibilidade de triunfar sobre um afetonegativo-uma paixão irracional requerum afeto positivo ainda mais forte,desencadeado pela razão. Um afetonão pode ser controlado ouneutralizado exceto por um afetocontrário mais forte do que o afeto quenecessita ser controlado.4 Em outraspalavras, Espinosa recomendava quelutássemos contra as emoçõesnegativas com emoções ainda maisfortes mas positivas, conseguidas pormeio do raciocínio e do esforçointelectual. A noção de que subjugar aspaixões devia depender de emoçõesguiadas pela razão, e não da razãopura, é parte central do pensamentoespinosiano. Essa recomendação não éfácil de realizar mas Espinosa nuncadeu grande valor a nada que fossefácil.

Outra das noções de Espinosa que

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se revelou pertinente para os temas domeu trabalho, talvez mesmo a noçãode Espinosa a que darei maisimportância, tem a ver com a sua ideiade que mente e corpo são atributosparalelos, chamemo-los demanifestações, da mesma substância.5

Espinosa recusava-se a basear mente ecorpo em substâncias diferentes, umaatitude de todo incompatível com asolução do problema da mente-corpoque era mais popular no seu tempo.Ainda mais fascinante, contudo, era asua noção de que a mente humana é aideia do corpo humano.6 Articuladasdessa forma, essas palavraslevantavam a possibilidade de queEspinosa talvez tivesse entrevistoprincípios que se escondem por trás demecanismos naturais responsáveispelas manifestações paralelas do corpoe do espírito. Como indicarei adiante,estou convencido de que os processosmentais se alicerçam nosmapeamentos do corpo que o cérebroconstrói, as coleções de padrõesneurais que retratam as respostas aosestímulos que causam emoções esentimentos. É difícil imaginar qualquercoisa mais intelectualmentereconfortante do que encontrar essasafirmações de Espinosa e ponderar os

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seus possíveis significados.

Tudo isso teria sido mais do quesuficiente para alimentar a minhacuriosidade sobre Espinosa, masencontrei muito mais. Para Espinosa, osorganismos tendem natural enecessariamente a perseverar no seupróprio ser. Essa tendência necessáriaconstitui a essência desses seres. Osorganismos nascem com a capacidadede regular a vida e sobreviver. De ummodo natural, os organismos tendem aatingir uma “maior perfeição” das suasfunções, uma perfeição que Espinosaconsidera sinônimo da alegria. Todasessas tendências e esforços atuam demodo inconsciente.

As frases de Espinosa, simples esem qualquer adorno, revelam comoentreviu uma arquitetura para aregulação da vida semelhante àquelaque William James, Claude Bernard eSigmund Freud viriam a propor doisséculos mais tarde. Mas a modernidadede Espinosa não termina aí. Espinosarecusou-se a reconhecer uma finalidadenos planos da natureza e concebeucorpos e mentes como construídos a

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partir de componentes que se podiamcombinar em diversos padrões e formardiferentes espécies. Assim, Espinosa écompatível com o pensamentoevolucionário de Charles Darwin.

Munido de uma concepção nova danatureza humana, Espinosaestabeleceu um nexo entre as noçõesde bem e mal, de liberdade e salvação,por um lado, e os afetos e a regulaçãoda vida, por outro. Espinosa sugeriuque as normas que governam a nossaconduta pessoal e social devem serconstruídas a partir de umconhecimento profundo dahumanidade, um conhecimento que fazcontato com o Deus ou Natureza queexiste dentro de cada um de nós.

Certas ideias de Espinosa fazemparte da cultura contemporânea, mas,tanto quanto eu saiba, Espinosa não éreferência corrente nas neurociências.7

Essa ausência merece um comentário.Espinosa é um pensador bem maisfamoso do que conhecido. Por vezesaparece-nos como se viesse do nada,em esplendor solitário e inexplicável,embora essa impressão seja falsa.

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Apesar da sua originalidade, Espinosa éparte integrante do seu meiointelectual. Por vezes Espinosadesaparece, de súbito, semcontinuidade, outra falsa impressão,dado que a essência de algumas daspropostas proibidas se encontraregularmente no século que se seguiu àsua morte.8

Uma das explicações para toda essacelebridade desconhecida tem a vercom o escândalo que Espinosa causouno seu próprio tempo. Como veremos(capítulo 6), as suas palavras heregesforam banidas décadas a fio e comraras exceções eram citadas para oatacar e não para o defender. Acontinuidade de reconhecimentointelectual que normalmente mantém otrabalho de um pensador foi assiminterrompida, e várias ideias deEspinosa foram usadas sem atribuição.Tal estado de coisas, contudo, nãochega para explicar por que Espinosacontinuou a ganhar fama maspermaneceu desconhecido, uma vezque Goethe e Wordsworth se tornaramseus defensores públicos. Talvez aexplicação mais direta seja queEspinosa não é fácil de conhecer.

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A dificuldade começa com oproblema de que não há um sóEspinosa, mas vários, pelo menosquatro pelas minhas contas. O primeiroé o Espinosa acessível, o radical eruditoque discorda das igrejas do seu tempo,apresenta uma nova concepção deDeus e propõe um caminho novo para asalvação humana. O Espinosa seguinteé o arquiteto político, o pensador quedescreve as características de umestado democrático ideal, habitado porcidadãos responsáveis e felizes. Oterceiro Espinosa é o menos acessívelda coleção: o filósofo que usa fatoscientíficos, um método dedemonstração geométrico e a intuiçãopara formular uma concepção douniverso e dos seres humanos.

Reconhecer esses três Espinosas e ateia das suas dependências chega parasugerir a grande complexidade deEspinosa. Mas o problema não fica poraí, porque há um quarto Espinosa, oprotobiologista, o pensador da vidaescondido por trás de numerosasproposições, axiomas, provas, lemas eescólios. Dado que o progresso daciência das emoções e dos sentimentosse coaduna com as propostas que

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Espinosa começou a articular, asegunda finalidade deste livro éestabelecer a ligação entre esseEspinosa menos conhecido e aneurobiologia de hoje que lhecorresponde. Faço notar, de novo, quea finalidade deste livro não é adiscussão da filosofia de Espinosa. Olivro não aborda o pensamento deEspinosa fora dos aspectos que meparecem pertinentes para a biologia. Oalvo é bem mais modesto. Através dahistória, a filosofia tem prefigurado aciência, e julgo que a ciência devereconhecer esse esforço histórico,sempre que possível e devido, o que épor certo o caso com Espinosa.

Espinosa é pertinente para aneurobiologia, apesar de as suasreflexões sobre a mente humana nãoterem origem numa prática científica,mas sim numa preocupação geral coma condição humana. A preocupaçãosuprema de Espinosa era a relaçãoentre os seres humanos e a natureza.Espinosa tentou clarificar essa relaçãode forma a propor métodos eficazespara a salvação humana. Alguns dessesmétodos eram pessoais, sob o controledo indivíduo, mas outros dependiam da

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ajuda que certas formas de organizaçãosocial e política davam ao indivíduo. Opensamento de Espinosa descende dode Aristóteles, mas os alicercesbiológicos são mais firmes, como seriade esperar. Espinosa parece terentrevisto uma relação entre afelicidade pessoal e a coletiva, por umlado, e a salvação humana e aestrutura do Estado, por outro, muitoantes de John Stuart Mill. Pelo menosno que diz respeito às consequênciassociais do seu pensamento, Espinosa éhoje regularmente reconhecido.9

Espinosa prescreveu o Estadodemocrático ideal, marcado pelaliberdade da palavra-cada um pense oque quiser e diga o que pensa10 -, pelaseparação prática do Estado e dareligião e por um contrato socialgeneroso que promovia o bem-estardos cidadãos e a harmonia do governo.Espinosa prescreveu tudo isso mais deum século antes da Declaração deIndependência dos Estados Unidos e daprimeira emenda da Constituiçãoamericana.

Quem é então esse homem que

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pensava sobre a mente e o corpo deum modo não só profundamentediferente da maior parte dos seuscontemporâneos mas tambémnotavelmente moderno? Quais ascircunstâncias que produziram umespírito tão rebelde? Para tentarresponder a essas perguntasprecisamos refletir sobre ainda maisum Espinosa, o homem por trás de trêsnomes próprios Bento, Baruch,Benedictus -, uma pessoa ao mesmotempo corajosa e cautelosa, inflexível eversátil, arrogante e modesta,admirável e irritante, próxima damatéria concreta e observável e, aomesmo tempo, abertamente espiritual.Os sentimentos pessoais de Espinosanunca são revelados diretamente noestilo da sua prosa e apenas podem seradivinhados, aqui e ali, a partir deindícios esparsos.

Quase sem me dar conta, comecei àprocura da pessoa por trás daestranheza da obra. Queria apenasencontrar-me com Espinosa na minhaimaginação, conversar um pouco,pedir-lhe para autografar a Ética.Escrever sobre a minha procura deEspinosa e sobre a história da sua vida

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passou a ser a terceira finalidade destelivro.

Espinosa nasceu na próspera cidadede Amsterdam em 1632, no meio daIdade de Ouro da Holanda. Nessemesmo ano, perto da casa da famíliaEspinosa, um jovem Rembrandt de 23anos estava pintando A lição âeanatomia do Doutor Tulp, o quadro queiniciou a sua fama. O mecenas deRembrandt, Constantijn Huygens,estadista e poeta, secretário dopríncipe de Orange e amigo de JohnDonne, acabava de se tornar pai deChristiaan Huygens, que viria a ser umdos mais célebres astrônomos e físicosda história.

Descartes, o mais famoso filósofodessa era, tinha então 32 anos e viviatambém em Amsterdam, noPrinsengraacht, e nesse tempopreocupava-se com a forma como assuas ideias sobre a natureza humanaseriam recebidas na Holanda e no restoda Europa. Poucos anos mais tarde,Descartes viria a ensinar álgebra aojovem Christiaan Huygens. Sem dúvida,Espinosa veio ao mundo rodeado por

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uma pletora de riquezas, intelectuais efinanceiras, um verdadeiro embaraçode riquezas, no dizer de SimonSchama.11

Bento foi o nome que lhe foi dadoquando nasceu, pelos seus pais Miguele Hana Debora, judeus sefarditasportugueses que tinham se instaladoem Amsterdam. Na sinagoga e entre osamigos, Espinosa era conhecido porBaruch, o nome que sempre oacompanhou na infância e naadolescência passadas nessacomunidade afluente de mercadores eestudiosos judeus. Mas aos 24 anos,depois de ter sido expulso da suaprópria sinagoga, Espinosa adotou onome de Benedictus, abandonou oconforto da casa da família e começoua calma e deliberada jornada cujaúltima paragem foi aqui noPaviljoensgracht. O nome portuguêsBento, o nome hebreu Baruch e o nomeBenedictus em latim têm precisamenteo mesmo significado: bendito. Quediferença faz um nome ou outro? Umaimensa diferença, diria eu; as palavraspodem ser superficialmenteequivalentes, mas o conceito por trásde cada uma delas era radicalmente

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diferente.

CUIDADO

A porta do Paviljoensgracht continuafechada, e de momento a única coisaque posso fazer é imaginar alguémsaindo de uma barca atracada próximado número 72 e caminhando para acasa na esperança de ser recebido porEspinosa nesses tempos, oPaviljoensgracht era um canal largo;mais tarde o canal foi recheado deentulho e transformado numa rua, talcomo tantos outros canais emAmsterdam ou Veneza. O simpático Vander Spijk, senhorio de Espinosa epintor, abre a porta. Manda entrar ovisitante em seu estúdio, que fica atrásdas duas grandes janelas junto à portaprincipal, e pede-lhe para esperarenquanto avisa Espinosa, o seuinquilino.

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Os cômodos de Espinosa são noterceiro andar, e ele irá descer pelaescada em caracol, uma daquelasescadas íngremes e apertadas que dãomau nome à arquitetura holandesa.Espinosa está elegantemente vestidona sua roupa fidalga nada de muitonovo, nada de muito gasto, tudo embom estado, colarinho brancoengomado, calças pretas de veludo,colete de cor preta, casaco de pelo decamelo preto, corte perfeito, sapatosde verniz preto e fivela de prata. Ah,falta a bengala de madeira,indispensável para descer a escada.

A entrada de Espinosa é fulgurante.Tem um rosto equilibrado, uma pelebarbeada e os olhos negros e brilhantesdominam a sua presença. O cabelo épreto, a pele amendoada, a estaturamediana.

Com delicadeza e afabilidade mascom grande economia de palavras,Espinosa pede ao visitante que faça assuas perguntas. As respostas virãodurante o chá. Van der Spijk continuaráa pintar silenciosamente, mas com umadignidade salubre e democrática. Os

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seus sete filhos não perturbam a calmada tarde. A senhora Van der Spijkcostura fora da cena. As duas criadaspreparam o jantar.

Espinosa fuma o seu cachimbo, e oaroma do tabaco colide com o daaguarrás durante as perguntas erespostas. Entardece. Atrás dessasjanelas Espinosa recebeu centenas devisitantes, desde vizinhos e familiaresdos Van der Spijk a jovens estudantes,desde Gottfried Leibniz e ChristiaanHuygens a Henry Oldenburg,presidente da recém-criada RoyalSociety inglesa. A julgar pelo tom dasua correspondência, Espinosa erasimpático com a gente simples eimpaciente com os seus pares. Ao queparece, tolerava aqueles que eramtolos mas modestos, mas não a outraespécie de tolos.

Também posso imaginar um cortejofúnebre num outro dia cinzento, 25 defevereiro de 1677. O caixão tosco deEspinosa, seguido, a pé, pela famíliaVan der Spijk e por muitos homensilustres ocupando seis carruagens, emmarcha vagarosa a caminho da Igreja

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Nova. Decido então caminhar para aIgreja Nova reconstituindo o trajetoprovável do cortejo. Sei que o túmulode Espinosa está no adro da igreja, e dacasa dos vivos talvez não seja má ideiair para a casa dos mortos.

Não se trata de um cemitério nosentido próprio do termo. É um adro deigreja, por trás de grades mas comportões abertos, rodeado por edifíciosda cidade, arbustos e relvado, musgo,trilhos de pedra e lama no meio deárvores altas. Encontro o túmuloexatamente onde tinha previsto, atrásda igreja, uma campa rasa e uma pedravertical, envelhecidas pelo tempo esem qualquer decoração. A pedravertical tem o nome de Espinosa e ainscrição caute, o que significa“cuidado”. O conselho é um poucoarrepiante quando se pensa que osrestos mortais de Espinosa não estãode fato aqui, e que o seu corpo foiroubado, não se sabe por quem,enquanto jazia na igreja, algumas horasdepois do funeral. Espinosa tinha-nosdito que cada um devia pensar o quequisesse e dizer aquilo que pensava,mas mais devagar. Era preciso tercuidado. Ainda é. Cuidado com o que se

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diz e se escreve, ou nem os ossos seaproveitam.

Espinosa usou a palavra caute nasua correspondência, por baixo dodesenho de uma rosa. Durante a últimadécada da sua vida todas as suaspalavras foram sub-rosa, sigilosas. Ofrontispício do Tractatus indicava umimpressor fictício e uma cidade deimpressão (Hamburgo) onde o livro nãofoi de fato impresso. O espaço para onome do autor estava em branco.Mesmo assim, e apesar de o livro tersido escrito em latim e não emholandês, as autoridades holandesasproibiram-no em 1674. Como era deesperar, o livro foi colocado no Index doVaticano. A Igreja considerou o livro umataque à religião organizada e ao poderpolítico. Depois disso Espinosa deixoude publicar. Os seus últimos escritosainda estavam na gaveta daescrivaninha no dia da sua morte, masVan der Spijk tinha instruções precisas:a escrivaninha foi colocada numa barcarumo a Amsterdam, onde foi entregueao verdadeiro editor de Espinosa, JohnRieuwertz. A coleção dos manuscritospóstumos a Ética, constantementerevista, a Gramática hebraica, o

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segundo e incompleto Tratado político,o Ensaio para a melhoria dacompreensão e a Correspondência foipublicada nesse mesmo ano de 1677sob as iniciais B. de S. Devemosrecordar essa situação sempre quepensamos nas províncias holandesascomo um paraíso de tolerânciaintelectual. Eram de fato um paraíso,mas a tolerância tinha limites.

Durante a maior parte da vida deEspinosa a Holanda foi uma república, edurante a vida adulta de Espinosa avida política holandesa foi dominadapor Jan de Witt no seu papel de GrandePensionário. De Witt era ambicioso eautocrático, mas era um espíritoesclarecido. Não se sabe ao certo se DeWitt e Espinosa se conhecerampessoalmente, mas sem dúvida De Wittconhecia o trabalho de Espinosa e éprovável que tenha contido, mais deuma vez, a fúria dos políticoscalvinistas mais conservadores naaltura em que o Tractatus começou acausar escândalo. É sabido que De Wittpossuía o Tractatus desde 1670, epensa-se que se aconselhou comEspinosa. Seja como for, não restadúvida de que De Witt manifestou

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interesse pelo pensamento político deEspinosa e tinha considerável simpatiapelas suas opiniões religiosas. Espinosatinha boas razões para se sentirprotegido pela presença de De Witt.

Essa relativa segurança de Espinosaterminou abruptamente em 1672durante uma das horas mais negras dahistória da Holanda. Num episódioinesperado que define uma erapoliticamente volátil, De Witt e o seuirmão foram assassinados por umaturba, em consequência da suspeitainfundada de que eram traidores dacausa holandesa na guerra com aFrança que então acontecia. Osatacantes espancaram e esfaquearamos irmãos De Witt e arrastaram-nos atéos cadafalsos da cidade aonde amboschegaram já mortos. Os corpos foramdespidos, pendurados como numaçougue, esquartejados, e osfragmentos vendidos como recordaçõesou comidos no meio de um regozijodoentio. Tudo isso se passou perto deonde estou neste momento,praticamente ao virar a esquina dacasa de Espinosa. O episódio chocou aEuropa intelectual da época. Leibnizdeclarou-se horrorizado, tal como o

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eternamente calmo Huygens, nasegurança da sua vida parisiense. Maspara Espinosa o acontecimento foidevastador. A revelação da naturezahumana no que há de mais selvagem evergonhoso abalou a equanimidadeque Espinosa mantinha com enormedisciplina. Espinosa preparou um dísticocom as palavras ultimi barborum (“ocúmulo da barbaridade”), e dispunha-se a ir colocá-lo junto do que restavados irmãos De Witt. Felizmente, asensatez de Van der Spijklevou amelhor. Van der Spijk fechou a porta dacasa à chave e assim evitou queEspinosa enfrentasse uma morte certa.Espinosa chorou em público pela únicavez, ao que parece. O porto de abrigointelectual, mesmo que imperfeito,tinha desaparecido.

Olho para o túmulo de Espinosa,uma vez mais, e recordo-me dainscrição que Descartes preparou parao seu próprio túmulo: “aquele que seescondeu bem viveu bem”.12 Apenas 27anos separam a morte de Descartes dade Espinosa (Descartes morreu em1650). Ambos passaram a maior parteda vida no paraíso holandês, um delespor direito de nascimento, o outro por

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escolha deliberada Descartes tinhadecidido no princípio da sua carreiraque as suas ideias entrariam emprovável conflito com a Igreja católica ecom a monarquia francesa, e tinhapartido discretamente para a Holanda.Ambos tinham tido que esconder efingir, e no caso de Descartes, talvezdistorcer as próprias ideias. Ambosagiram com sensatez e por razõesóbvias. Em 1633, um ano depois donascimento de Espinosa, Galileu foiinterrogado pela Inquisição romana epreso na sua própria casa. Nessemesmo ano, Descartes suspendeu apublicação do seu Tratado do homem,e, mesmo assim, teve de responder aataques ferozes às suas opiniões. Em1642, contradizendo o seu pensamentoinicial, Descartes postulava uma almaimortal separada de um corpoperecível, talvez como uma tentativadesesperada de evitar novos ataques.Se foi essa a sua intenção a estratégiafuncionou, embora não propriamentedurante a sua vida. Mais tarde, dandonovas provas de prudência, trocou aHolanda pela Suécia, onde foi ensinar airreverente rainha Cristina. Descartesmorreu no meio do seu primeiroinverno em Estocolmo, aos 54 anos.Devemos ser gratos por viver numa

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época bem mais tolerante, mas,mesmo assim, continua a recomendar-se prudência.

É difícil ignorar o significado bizarrodesse local. Por que razão Espinosa,que nasceu judeu, é celebrado junto aessa poderosa Igreja protestante? Aresposta, tal como tudo o que tem aver com Espinosa, é complicada. Talvezseja cultuado aqui porque, tendo sidoexpulso pelos seus correligionários,Espinosa era visto como uma espéciede cristão e, por certo, não poderia tersido enterrado no cemitério judeu deOuderkerk. Mas no fundo não estárealmente aqui, talvez porque nunca setornou protestante ou católicopropriamente dito, e porque na opiniãode muitos era um ateu. Claro que tudoisso faz grande sentido. O deus deEspinosa não era judeu nem cristão. Odeus de Espinosa estava em todaparte, dentro de cada partícula douniverso, sem princípio nem fim, masnão respondia nem a preces nem alamentações. Enterrado edesenterrado, judeu e não judeu,português mas não exatamente,holandês mas não completamente,Espinosa não pertencia a parte

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nenhuma e estava em toda parte.

De volta ao Hotel des Indes, oporteiro fica contente de me ver são esalvo. Não resisto a dizer que ando àprocura de Espinosa, que venho dacasa dele. O meu simpático porteiro éapanhado sem resposta. Meio confuso,depois de uma longa pausa, pergunta:“Estáse referindo... ao filósofo?”. Bem,pelo menos sabe de quem estoufalando, o que não surpreende, dadoque estou na Holanda. Mas não faznenhuma ideia de que Espinosa viveu aúltima parte da sua vida aqui em Haia,aqui acabou o seu trabalho maisimportante, aqui morreu, aqui estáenterrado ou quase, e aqui mantém osseus bens materiais, uma estátua euma pedra tumular, a uma dúzia dequarteirões. Mas é claro que muitopouca gente faz qualquer ideia dessasituação. “Não se fala muito dele hojeem dia”, diz o meu simpático porteiro.

DE NOVO NO PAVILJOENSGRACHT

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Dois dias depois regresso aoPaviljoensgracht, dessa vez com visitamarcada. O tempo continua piorando euma espécie de tufão sopra do mar doNorte.

O estúdio de Van der Spijk estáabrigado da intempérie, mas ainda estámais escuro aqui do que na rua. Opequeno espaço, que na minhamemória é todo cinzento, verde ecastanho, é fácil de manipular naimaginação. Reorganizo o mobiliário,imagino uma iluminação diferente eimagino os movimentos de Espinosa eVan der Spijk nesse palco exíguo, masnão vejo maneira de o transformar nosalão confortável que Espinosamerecia. Nesse pequeno espaçorecebeu Leibniz e Huygens. Nessepequeno espaço Espinosa almoçou ejantou, teve longas conversas com asenhora Van der Spijk e as suasanimadas crianças. Uma lição demodéstia.

Como é que Espinosa pôde

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sobreviver a esse constrangimento?Sem dúvida porque pôde se libertar naexpansão infinita do seu próprioespírito, um lugar maior e não menosrequintado do que Versalhes e os seusjardins, onde, por esses mesmos dias,Luís xiv, apenas seis anos mais novo doque Espinosa e destinado a sobrevivera ele por mais trinta, andaria a passearcom a sua corte atrás de si.

Provavelmente Emily Dickinson tinharazão: um simples cérebro, sendo bemmais largo do que o céu, podeacomodar confortavelmente o intelectode um homem de bem e o resto domundo, lado a lado.

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2. Os apetites e as emoções

SHAKESPEARE JÁ TINHA DITO

Na parte final de Ricardo II, com acoroa já perdida e a prisão cada vezmais perto, Ricardo explica aBolingbroke a distinção entre emoção esentimento.1 Ricardo pede que lhetragam um espelho e confronta no seurosto o espetáculo do declínio. Declaraentão que a “forma exterior delamentos” que o seu rosto exprimenada mais é do que “as sombras dopesar que ninguém vê”, um pesar que“se avoluma em silêncio na almatorturada”. O seu pesar, diz ele,“éinteiramente interior”. Em apenasquatro versos, Shakespeare anunciaque o processo unificado eaparentemente singular dos afetos, aque geralmente nos referimos,indiscriminadamente, como emoçõesou sentimentos, pode ser analisado empartes. A elucidação dos sentimentosrequer essa distinção.

É verdade que o uso habitual dapalavra “emoção” tende a incluir anoção de sentimento. Mas na tentativade compreender a cadeia complexa deacontecimentos que começa na

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emoção e termina no sentimento,separar a parte do processo que setorna pública da que sempre semantém privada ajuda a clarificar asideias. À parte pública do processochamo emoção e à parte privadasentimento, de acordo com osignificado de sentimento queapresentei no capítulo 1. Peço ao leitorque me acompanhe nessa escolha depalavras e conceitos, porque essaescolha vai nos permitir descobrirqualquer coisa de novo na biologia queconcerne a esses fenômenos. No finaldo capítulo 3 prometo reunir de novoemoção e sentimento.2

No contexto deste livro, as emoçõessão ações ou movimentos, muitos delespúblicos, que ocorrem no rosto, na vozou em comportamentos específicos.Alguns comportamentos da emoçãonão são perceptíveis a olho nu, maspodem se tornar “visíveis” com sondascientíficas modernas, tais como adeterminação de níveis hormonaissanguíneos ou de padrões de ondaseletrofisiológicas. Os sentimentos, pelocontrário, são necessariamenteinvisíveis para o público, como é o casocom todas as outras imagens mentais,escondidas de quem quer que sejaexceto do seu devido proprietário, a

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propriedade mais privada do organismoem cujo cérebro ocorrem.

As emoções ocorrem no teatro docorpo. Os sentimentos ocorrem noteatro da mente.3 Como veremos, asemoções e as várias reações que asconstituem fazem parte dosmecanismos básicos da regulação davida. Os sentimentos tambémcontribuem para a regulação da vida,mas em um nível mais alto. Asemoções e as reações a elasrelacionadas parecem preceder ossentimentos na história da vida econstituir o alicerce dos sentimentos.Os sentimentos, por outro lado,constituem o pano de fundo da mente.

As emoções e os sentimentos estãotão intimamente relacionados ao longode um processo contínuo que tendemosa vê-los, compreensivelmente, comouma entidade simples. No entanto, épossível entrever setores diferentesnesse processo contínuo e, com a ajudado microscópio da neurociênciacognitiva, é possível e legítimodissociar esses setores. Com a ajudados métodos científicos modernos, umobservador pode examinarobjetivamente os comportamentos queperfazem uma emoção e, desse modo,estudar o prelúdio dos processos do

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sentimento. Transformar emoção esentimento em objetos separados depesquisa ajuda-nos a descobrir como sesente.

A finalidade deste capítulo é explicaros mecanismos cerebrais e corporaisresponsáveis pelo desencadeamento eexecução de uma emoção. O focopreciso dessa tentativa é a maquinariaintrínseca da emoção, e não ascircunstâncias que levam à emoção, naesperança de que a elucidação dasemoções nos esclareça a origem dossentimentos.

AS EMOÇÕES PRECEDEM OSSENTIMENTOS

Ao discutir a precedência da emoçãosobre o sentimento, devo começar porchamar a atenção para algo queShakespeare deixou ambíguo nos seusversos para Ricardo. A ambiguidadetem a ver com a palavra “sombra” ecom a possibilidade de que osentimento pudesse surgir antes darespectiva emoção, uma possibilidadeque de fato não se verifica. Oslamentos exteriores são uma sombrado pesar invisível, diz Ricardo, umaespécie de reflexão, no espelho, doobjeto principal o sentimento de pesar

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tal como o rosto de Ricardo, noespelho, reflete Ricardo o objetoprincipal da peça. Essa ambiguidade éfácil de compreender. Gostamos deacreditar que aquilo que está escondidoé a origem daquilo que exprimimos, eclaro que acreditamos que, no que dizrespeito à mente, o sentimento é aquiloque conta. “Eis a substância”, dizRicardo quando fala do seu pesaroculto, e concordamos com ele. Mas“principal” não significa “que veioprimeiro” e, ainda menos, “causativo”.A grande importância dos sentimentosnão deixa entrever facilmente a formacomo os sentimentos surgem, e podelevar à falsa ideia de que ossentimentos ocorrem primeiro e, emseguida, se exprimem em emoções.Esse ponto de vista é incorreto e é umadas causas do atraso no estudoneurobiológico dos sentimentos.

Na realidade são os sentimentos queconstituem sombras das manifestaçõesemocionais. Com efeito, o que Ricardodevia ter dito, com as devidasdesculpas para Shakespeare, é oseguinte: “Ó como esta forma exteriorde lamentos lança uma sombraintolerável de pesar sobre o silêncio daminha alma torturada”. (O que melembra James Joyce quando diz em

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Ulisses: “Shakespeare é o refúgio felizde todos os espíritos que perderam oseu equilíbrio”.)4

É hora de perguntar: por que asemoções precedem os sentimentos? Aminha resposta é simples: temosemoções primeiro e sentimentos depoisporque na evolução biológica asemoções vieram primeiro e ossentimentos depois. As emoções foramconstruídas a partir de reações simplesque promovem a sobrevida de umorganismo e que foram facilmenteadotadas pela evolução.

Tem-se a impressão de que osdeuses deram grande esperteza naturalàs criaturas que queriam salvar. Comefeito, muito antes de os seres vivosterem uma inteligência criadora e aindaantes de terem cérebros propriamenteditos, é como se a natureza tivessedecidido que a vida era, ao mesmotempo, extremamente precária eextremamente preciosa. É claro quesabemos que a natureza não funcionade acordo com os planos de nenhumarquiteto e não decide como os artistasou engenheiros decidem, mas talvez ametáfora nos ajude. Todos osorganismos vivos, desde a humildeameba até o ser humano, nascem comdispositivos que solucionam

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automaticamente, sem qualquerraciocínio prévio, os problemas básicosda vida. Esses problemas são osseguintes: encontrar fontes de energia;incorporar e transformar energia;manter, no interior do organismo, umequilíbrio químico compatível com avida; substituir os subcomponentes queenvelhecem e morrem de forma amanter a estrutura do organismo; edefender o organismo de processos dedoença e de lesão física. A palavra“homeostasia” descreve esse conjuntode processos de regulação e, aomesmo tempo, o resultante estado devida bem regulada.5

No curso da evolução biológica, oequipamento inato e automático dogoverno da vida a máquinahomeostática tornou-se muitosofisticado. Na base da organização dahomeostasia encontramos respostassimples, tais como a de aproximação(approach) ou de retraimento(withdrawal) de um organismo inteiroem relação a um determinado objeto,ou a de excitação ou quiescência. Nosníveis mais altos da organizaçãoencontramos respostas competitivas oude cooperatividade.6 Podemos imaginara máquina da homeostasia como umaárvore bem alta e larga em que os

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variados ramos são os fenômenosautomáticos da regulação da vida. Emorganismos multicelulares, caminhandodo chão para o topo, eis o que devemosencontrar nesta árvore.

Nos ramos mais baixos• O processo de metabolismo. Esse

processo inclui componentes químicose mecânicos (por exemplo, secreçõesendócrinas/hormonais; contraçõesmusculares relacionadas com a

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digestão) que mantêm o equilíbrioquímico interior. Essas reaçõesgovernam o ritmo cardíaco e a pressãoarterial, dos quais dependem adistribuição apropriada do fluxosanguíneo no corpo, os ajustamentosda acidez e da alcalinidade do meiointerior (os fluidos que circulam nosangue e nos espaços entre as células)e o armazenamento e distribuição deproteínas, lipídios e carboidratos,necessários para abastecer oorganismo de energia, energia que, porsua vez, é necessária para omovimento, para a fabricação deenzimas e para manter e renovar aestrutura do organismo.

• Os reflexos básicos. Incluem oreflexo de startle (reflexo de alarme oususto) que os organismos exibemquando reagem a um ruído inesperado,e os tropismos ou “taxes”, que levamos organismos a escolher a luz e não oescuro, ou a evitar o frio e o calorextremos.

• O sistema imunológico. É umsistema que defende o organismo devírus, de bactérias, de parasitas e demoléculas tóxicas que podem invadir oorganismo. Curiosamente, o sistemaimunológico também está preparadopara manejar moléculas que

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normalmente residem em célulassaudáveis do organismo, e que podemse tornar tóxicas quando as célulasdoentes ou mortas as liberam no meiointerior (por exemplo, o ácido glutâmicoe o ácido hialurônico). Em suma, osistema imunológico constitui umaprimeira linha de defesa dosorganismos vertebrados quando a suaintegridade é ameaçada, quer doexterior quer do interior.

Nos ramos médios

• Comportamentos normalmenteassociados à noção de prazer (erecompensa) ou dor (e punição). Essescomportamentos incluem reações de

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aproximação e retraimento doorganismo em relação a um objeto ousituação específicos. Nos sereshumanos, que não apenas sentem mastambém podem relatar aquilo quesentem, essas reações são descritascomo dolorosas ou aprazíveis, comorecompensadoras ou punitivas. Porexemplo, quando os tecidos celularesdo corpo estão à beira de sofrer umalesão - o que acontece no caso de umaqueimadura ou de uma infecção -, ascélulas da região afetada emitem sinaisquímicos chamados nociceptivos (apalavra nociceptivo significa “indicadorde dor”). Em resposta a esses sinais, oorganismo reage automaticamente comcomportamentos de dor ecomportamentos de doença. Essescomportamentos são uma série deações, por vezes sutis, por vezesóbvias, com as quais a natureza tentarestabelecer o equilíbrio biológico deforma automática. Da lista dessasações faz parte o retraimento do corpo(ou de uma parte do corpo) em relaçãoà origem do problema, a proteção daparte do corpo afetada e expressõesfaciais de alarme e sofrimento. Taisações são acompanhadas de diversasrespostas, invisíveis a olho nu,organizadas pelo sistema imunológico.

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Dentre essas respostas constam oaumento de certas classes de glóbulosbrancos, o envio desses glóbulosbrancos para as áreas do corpoameaçadas e a produção de moléculas,tais como as citocinas, que ajudamtanto na luta contra a causa do ataque(o micróbio invasor) como narestauração de um tecido lesionado. Éo conjunto dessas ações e dos sinaisquímicos relacionados com a suaprodução que resulta na experiência aque chamamos dor.• Da mesma forma que o cérebro

reage a um problema que se declara nocorpo, também reage quando o corpofunciona bem. Quando o corpo funcionasem dificuldade, e quando atransformação e a utilização de energiaocorrem com facilidade, o corpocomporta-se com um estilo definido. Aaproximação em relação a outros éfacilitada. Nota-se uma descontração eabertura do corpo, bem comoexpressões que traduzem confiança ebemestar; por outro lado, liberam-secertas classes de moléculas tais comoas endorfinas. O conjunto dessasreações e dos sinais químicos com elasassociados resultam na experiência doprazer.• A dor ou o prazer têm causas

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diversas problemas da função corporal,funcionamento ideal do metabolismo,ou acontecimentos exteriores queameaçam o organismo ou promovem asua proteção. Mas a experiência da dorou do prazer não é a causa doscomportamentos de dor ou de prazer, enão é sequer necessária para que essescomportamentos ocorram. Tal comoveremos na seção seguinte, seresextremamente simples exibemcomportamentos emotivos, embora aprobabilidade de sentirem essescomportamentos seja pequena.

• Certas pulsões e motivações. Osexemplos principais incluem a fome, asede, a curiosidade e oscomportamentos exploratórios, oscomportamentos lúdicos e oscomportamentos sexuais. Espinosacolocou todas essas reações sob aexcelente designação de apetites e,com grande refinamento, usou umaoutra palavra, desejo, para a situaçãoem que o indivíduo consciente tomaconhecimento de um apetite. A palavraapetite designa o estadocomportamental de um organismoafetado por uma pulsão; a palavradesejo refere-se ao sentimentoconsciente de um apetite e àconsumação ou frustração de um

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apetite. Essa distinção espinosiana éequivalente à distinção entre emoção esentimento com que começamos estecapítulo. É claro que os seres humanostêm tanto apetites como desejosligados, de forma sutil, às emoções eaos sentimentos.

Próximo do cume

• As emoções propriamente ditas. Éaqui que encontramos as jóias daregulação automática da vida: asemoções no sentido estrito do termo-daalegria à mágoa, do medo ao orgulho,da vergonha à simpatia. E na partemais alta da árvore, na ponta dos seusdiversos ramos, vamos encontrar ossentimentos de que trataremos nocapítulo seguinte.

• O genoma garante que todosesses dispositivos estejam ativos nadata do nascimento, ou pouco depois,com pouca ou nenhuma dependênciada aprendizagem, embora aaprendizagem venha a desempenharum papel importante na determinaçãodas ocasiões em que esses dispositivosvirão a ser usados. Quanto maiscomplexa a reação, mais aaprendizagem assume esse papel.Reações como chorar e soluçar estão

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prontas na data do nascimento, mas asrazões por que choramos ou soluçamosao longo da vida variam com nossaexperiência. Todas essas reações sãoautomáticas e, em geral,estereotipadas, embora aaprendizagem possa modelar aexecução de certos padrõesestereotipados. O riso ou o choro sãoexecutados “de forma diferente” emcircunstâncias diferentes, tal como asnotas que constituem a partitura deuma sonata podem ser tocadas deforma diferente. Seja como for, todasessas reações têm como fim, de formadireta ou indireta, regular a vida epromover a sobrevida. Oscomportamentos de prazer e de dor, aspulsões e as motivações e as emoçõespropriamente ditas são por vezesdesignadas pela mesma palavra,emoções no sentido lato do termo, oque é aceitável e razoável dado quetodas essas reações têm umasemelhança formal e têm precisamentea mesma finalidade.7

• Não contente com as benesses dasobrevida, a natureza tratou de nosproporcionar uma mais-valia: oequipamento inato da regulação davida não está desenhado para produzirum estado neutro, a meio caminho

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entre a vida e a morte. Pelo contrário, afinalidade do esforço homeostático éproduzir um estado de vida melhor doque neutro, produzir aquilo que nós,seres pensantes, identificamos com obem-estar.

• A coleção inteira de processoshomeostáticos governa a vida, demomento a momento, em cada célulado nosso corpo. Esse governo éconseguido por meio de um arranjosimples. Primeiro, opera-se umamudança no ambiente de umorganismo, interna ou externamente.Segundo, as mudanças podem alterarpotencialmente o curso da vida de umorganismo, constituindo uma ameaçapara a sua integridade ou umaoportunidade para a sua melhoria.Terceiro, o organismo detecta amudança e responde de forma a criaruma situação mais benéfica para a suaautopreservação. Todas as reaçõeshomeostáticas funcionam dessamaneira e constituem, por isso mesmo,meios de avaliar as circunstânciasinternas ou externas de um organismode modo a permitir uma atuação quecorresponda a essas circunstâncias. Asreações homeostáticas detectamdificuldades ou oportunidades eresolvem, por meio de ações, o

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problema de eliminar as dificuldades ouaproveitar as oportunidades. Veremosmais tarde que se mantém esse arranjomesmo no nível das emoçõespropriamente ditas. O que difere, nessenível, é a complexidade da avaliação eda resposta, maiores do que nassimples reações a partir das quais asemoções propriamente ditas foramconstruídas no curso da evoluçãobiológica.

• É claro que a tentativa contínua deconseguir um estado de vidaequilibrado é um aspecto profundo edefinidor da nossa existência. É o quenos diz Espinosa, que vai mais longe echama a essa tentativa a primeirarealidade da nossa existência, umarealidade que ele descreve como oesforço implacável da autopreservaçãopresente em qualquer ser. Espinosadesigna esse esforço implacável com otermo conatus, a palavra latina quepode também se traduzir comotendência, no sentido em que aparecenas Proposições VI, VII e VIII da Ética,Parte m. Nas palavras de Espinosa:“cada coisa, na medida do seu poder,esforça-se por perseverar no seu ser” e“o esforço através do qual cada coisatende a perseverar no seu ser nadamais é do que a essência dessa coisa”.

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Interpretada à luz do conhecimentoatual, a noção de Espinosa implica queum organismo vivo está construído deforma a lutar, contra toda e qualquerameaça, pela manutenção da coerênciadas suas estruturas e funções.

• O conatus diz respeito não só aoímpeto de autopreservação, mastambém ao conjunto dos atos deautopreservação que mantêm aintegridade de um corpo. Apesar detodas as transformações por que umcorpo vivo passa, à medida que ele sedesenvolve, substitui as suas partesconstitutivas e envelhece, o conatusencarrega-se de respeitar o mesmoplano estrutural em todas essasoperações e, desse modo, manter omesmo indivíduo. E o que é o conatusde Espinosa em termos biológicoscontemporâneos? O conatus é oagregado de disposições presentes emcircuitos cerebrais que, uma vezativados por certas condições doambiente interno ou externo, levam àprocura da sobrevida e do bem-estar.Veremos no próximo capítulo que asvariadas atividades do conatus estãorepresentadas no cérebro por sinaisquímicos e neurais. Os numerososaspectos do processo da vida sãocontinuamente representados no

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cérebro em mapas constituídos porcélulas nervosas que se encontram emdiversos locais do cérebro.

UM CURIOSO PRINCÍPIO DEORGANIZAÇÃO

Quando consideramos a lista dasações regulatórias que asseguram anossa homeostasia, entrevemos umplano muito curioso. Consiste emincorporar partes das reações maissimples como componentes dasreações mais complexas, ou seja,incorporar o simples dentro do

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complexo. Por exemplo, algunscomponentes do sistema imunológico edo sistema de regulação dometabolismo integram-se namaquinaria que executa oscomportamentos da dor e do prazer.Por sua vez, alguns destes últimosfazem parte integrante da maquinariadas pulsões e motivações, a maiorparte das quais revolve em torno decorreções metabólicas e envolve,necessariamente, dor ou prazer. Porúltimo, numerosos componentes dosníveis de regulação mais simples-reflexos, respostas imunitárias,equilíbrio metabólico, comportamentosde dor e prazer, pulsõesfazem parteintegrante da maquinaria das emoçõespropriamente ditas. Como veremos, osdiversos níveis da emoção estãoconstruídos com base no mesmoprincípio. O conjunto recorda umaboneca russa, dado que uma parte seencaixa dentro de outra, que contémuma outra, e assim por diante. Mas aimagem da boneca russa não écompletamente satisfatória, uma vezque na realidade biológica as bonecasmaiores não são uma mera ampliaçãodas menores. A natureza raramenteexibe a precisão e a clareza daengenharia, mas apesar disso o

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princípio que estou descrevendo aplica-se inteieramente. As reações simples“encaixam-se” dentro das maiscomplexas. Cada uma das diferentesações regulatórias de que venhofalando não constitui um processoradicalmente novo, desenhadoexclusivamente para a sua finalidadeespecífica. Cada reação é construída apartir de rearranjos de pedaços deoutras reações mais simples. Todas elasvisam o mesmo alvo a sobrevida combem-estar mas cada uma dascombinações de pedaços antigosaponta para um problema novo cujasolução é necessária para que asobrevida e o bem-estar sejamatingidos. A solução de cada novoproblema é necessária para o equilíbrioglobal do organismo.

O conjunto dessas reações não separece de todo com uma hierarquiasimples e linear. É por isso quedescrevê-lo como se fosse um edifícioalto e com muitos andares não secoaduna com a realidade biológica.Uma metáfora mais adequada é a deuma árvore alta, com uma profusão deramos, que se entrecruzam em váriosníveis, mas em que mesmo os ramosmais altos e mais distantes mantêmuma ligação com o tronco principal e

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com as raízes. Pode-se dizer que ahistória da evolução biológica seinscreve no desenho dessa árvore.

DA REGULAÇÃO HOMEOSTÁTICASIMPLES ÀS EMOÇÕES PROPRIAMENTEDITAS

Algumas das reações regulatóriasque vimos considerando constituemrespostas a um objeto ou situação doambiente, seja uma situação perigosa,seja uma oportunidade de encontraralimento ou acasalamento. No entanto,algumas das reações respondem a umobjeto ou situação dentro do organismopor exemplo, a redução da quantidadede nutrientes necessária para produzirenergia, redução essa que é causa decomportamentos apetitivos, como afome, que incluem a procura dealimentos. Mas a situação tambémpode ser o aumento de umdeterminado hormônio que leva àprocura de um encontro sexual, ou umferimento que provoca as reações que,no seu conjunto, constituem a dor.Todas essas reações ocorrem dentro doorganismo, num corpo limitado poruma fronteira dentro do qual a vidapulsa. Todas essas reações, direta ouindiretamente, têm uma finalidade

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óbvia: fazer com que a economiainterna da vida prossiga com eficiência.A quantidade de certas moléculas temde ser mantida dentro de valoresapropriados, nem mais altos nem maisbaixos, porque fora dos limitessuperiores ou inferiores desses valoresa vida não é possível. A temperaturatem de ser mantida dentro de umaestreita amplitude. É necessárioencontrar fontes de energia, e por issoé necessário ativar comportamentos decuriosidade e comportamentosexploratórios, sem os quais não épossível encontrar essas fontes. Umavez encontradas, essas fontes deenergia devem ser incorporadascolocadas dentro do corpo emodificadas, quer para consumoimediato quer para armazenamento. Énecessário também eliminar os detritosque resultam de todas essasmodificações, bem como restaurar ostecidos gastos ou danificados emresultado das transformações deutilização de energia, de forma que aintegridade do organismo seja mantida.

Até mesmo as emoçõespropriamente ditas o medo, afelicidade, a tristeza, a simpatia e avergonha visam à regulação da vida,direta ou indiretamente. Não quer isso

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dizer que cada vez que nosemocionamos estejamos contribuindoimediatamente para a nossa sobrevidae bem-estar. Nem todas as emoçõessão iguais no que diz respeito à suacapacidade de promover sobrevida ebemestar, e tanto o contexto em que aemoção ocorre como a sua intensidadetêm muito a ver com os possíveisbenefícios da emoção. Mas o fato deque certas emoções acabam por serpouco ou nada adaptativas, em certascircunstâncias humanas atuais, nãonega de forma nenhuma o papeladaptativo que essas funçõesdesempenharam na regulação da vidaem fases bem diferentes da evolução.Numa sociedade moderna a zanga écontraproducente, assim como atristeza. As fobias são um enormeobstáculo. E no entanto é evidente quea raiva e o medo salvaram numerosasvidas ao longo da evolução. Essasreações prevaleceram na evoluçãoexatamente porque levaram àsobrevida, direta e automaticamente, eainda estão conosco porque continuama desempenhar um papel valioso, emcertas circunstâncias.

Compreender a biologia dasemoções e o fato de que o valor dasdiferentes emoções depende das

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circunstâncias atuais ofereceoportunidades novas para acompreensão moderna docomportamento humano. Podemoscompreender, por exemplo, que certasemoções são más conselheiras eprocurar modos de suprimir ou reduziras consequências desses mausconselhos. Estou pensando nas reaçõesque levam a preconceitos raciais eculturais e que se baseiam ememoções sociais cujo valorevolucionário residia em detectardiferenças em outros indivíduos porqueessas diferenças eram indicadoras deperigos possíveis e promover agressãoou retraimento. Esse tipo de reaçãodeverá ter produzido resultadosextremamente úteis numa sociedadetribal, mas não é nem útil nemaceitável no mundo atual. É evidenteque é importante saber que os nossoscérebros continuam equipados com amaquinaria biológica que nos leva areagir de um modo ancestral, ineficaz einaceitável, em certas circunstâncias.Precisamos estar alertas para esse fatoe aprender a controlar essas reaçõesindividualmente na sociedade em quevivemos. Voltarei a este assunto nocapítulo 4.

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AS EMOÇÕES DOS ORGANISMOSSIMPLES

Há provas abundantes de que osorganismos simples exibem reaçõesemocionais. Basta pensar no solitárioparamécio, um organismo unicelular,todo feito de corpo, nada de cérebro emenos ainda de mente, nadandorapidamente para evitar um perigo napiscina natural do seu hábitat.

Que perigo? Talvez a pipeta de umcientista, ou o calor excessivo, ou umavibração inesperada. Pensemos aindano paramécio nadando ao longo de umnutriente de ingredientes químicos acaminho da parte da piscina onde podealmoçar regaladamente. Esseorganismo simples está preparado paradetectar certos sinais de perigovariações rápidas de temperatura,vibrações excessivas ou contato comum objeto capaz de romper a suamembrana e reagir de forma aencontrar rapidamente um local maiscalmo, seguro e temperado. E damesma forma, o paramécio, depois dedetectar a presença do tipo demolécula de que necessita parasobreviver, nadará para o local ondehouver mais rico pasto. Osacontecimentos que estou descrevendo

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nessa criatura sem cérebro contêm já aessência do processo de emoçãopresente nos seres humanos adetecção de objetos ou situações querecomendam circunspecção ou evasão,ou, por outro lado, bom acolhimento eaproximação. A capacidade de reagirdessa forma não foi ensinada. Não hápedagogia alguma na escola dosparamécios. Essa capacidade estácontida na maquinaria, aparentementesimples mas no fundo bem complicada,do genoma do pobre e descerebradoparamécio. Tudo isso nos mostra comoa natureza sempre se preocupou emproporcionar aos organismos vivos osmeios para regularem e manterem avida, automaticamente, sem que sejanecessária qualquer espécie deconsciência, raciocínio ou decisão.

Claro que possuir um cérebro,mesmo que modesto, ajuda a sobrevidae é, evidentemente, indispensável emambientes mais complexos do que o doparamécio. Pensemos na pobre mosca,uma criatura sem espinha, mas comum pequeno sistema nervoso.Experimente o leitor matar uma mosca,sem sucesso, e verá como ela exibemanifestações de raiva e continuará aevitar, com repetidos mergulhossupersônicos, o esmagamento fatal.

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Também é possível fazer uma moscafeliz, dando-lhe açúcar. A mosca move-se mais vagarosamente, com maisdoçura, contente com a guloseima. Atépodemos fazer a moscavertiginosamente feliz com um métodohá muito apreciado pelos sereshumanos: a ingestão de álcool. Nãoestou inventando. A experiência foirealizada numa espécie de mosca, aDrosophila melanogaster * Depois deserem expostas aos vapores do etanol,as moscas perdem a coordenaçãomotora, tal como nós a perderíamoscom uma dose comparável de álcool.As moscas marcham com o abandonode uma bebedeira descontraída e caemdentro de um tubo de experimentaçãocomo um bêbado que tromba com umposte. Claro que as moscas têmemoções, embora eu não queira dizerque sentem essas emoções e, aindamenos, que possam refletir sobresentimentos que elas não têm. E sealguém não quiser acreditar nasofisticação dos mecanismos daregulação da vida em tais criaturas, épossível que se convença quandoestudar os mecanismos do sono damosca que foram descritos por RalphGreenspan e pelos seus colegas.9 Aminúscula Drosophila possui o

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equivalente dos nossos ciclos de dia-e-noite, períodos de intensa atividade ede sono restaurador, e têm até omesmo tipo de resposta à privação dosono que exibimos quando estamos sobo efeito do jet lag. Precisam dormirmais, tal como nós.

Pensemos ainda na Aplysiacalifornica, um caracol marinho comum cérebro rudimentar. Quando tocadana guelra, a Aplysia enrola-se sobre simesma, aumenta a sua pressãoarterial, acelera o ritmo cardíaco eemite uma tinta negra com que podeconfundir o inimigo. A Aplysia produzum conjunto de reações integradas,que, transposto para mim ou para oleitor, seria facilmente reconhecidocomo uma emoção de medo. Será quea Aplysia tem emoções? Com certeza.Será que tem sentimentos? Não sei,provavelmente não.10

Nenhum desses organismos produzessas reações como resultado de umadeliberação consciente. Nenhumdesses organismos constrói essasreações, e nenhum exibe originalidadeou estilo algum na forma como executaa reação. Os organismos reagemautomaticamente, de modo reflexivo eestereotipado. Tal como um compradordistraído que sem pensar escolhe uma

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peça de roupa numa loja, essesorganismos simples “selecionam”respostas “prontas” e seguem a suavida. Não seria correto apelidar essasreações de reflexos porque os reflexosclássicos são respostas ainda maissimples, e as reações de que estoufalando são coleções relativamentecomplexas de respostas. Amultiplicidade de componentes e acoordenação da execução servem paradistinguir os reflexos das emoçõespropriamente ditas. Mas éperfeitamente aceitável dizer que asemoções são coleções de respostasreflexas cujo conjunto pode atingirníveis de elaboração e coordenaçãoextraordinários.

AS EMOÇÕES PROPRIAMENTE DITAS

Embora os rótulos de que dispomospara classificar as emoções sejammanifestamente inadequados,classificar é um mal necessário. Àmedida que os nossos conhecimentosaumentam, os rótulos e asclassificações deverão melhorar etornar-se um mal menor. A classificaçãobásica que utilizo para as emoçõespropriamente ditas faz uso de trêscategorias: emoções de fundo,

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emoções primárias e emoções sociais.Claro que a fronteira entre essascategorias é porosa, mas aclassificação ajuda a organizar adescrição desses fenômenos.

Como o termo sugere, as emoçõesde fundo não são especialmenteproeminentes, embora sejamnotavelmente importantes. Se o leitorcostuma diagnosticar rapidamente aenergia ou o entusiasmo de alguémque acaba de conhecer, ou se é capazde detectar mal-estar ou ansiedade nosseus amigos e colegas, é bem provávelque seja um bom leitor de emoções defundo. Se for capaz de fazer taisdiagnósticos sem ouvir sequer umapalavra da parte do diagnosticado,pode mesmo ser um excelente leitor deemoções de fundo. O diagnóstico dasemoções de fundo depende demanifestações sutis, como o perfil dosmovimentos dos membros ou do corpointeiro a força desses movimentos, asua precisão, a sua frequência eamplitude -, bem como de expressõesfaciais. Quanto à linguagem, aquilo quemais conta para as emoções de fundonão são as palavras propriamente ditasnem o seu significado, mas sim amúsica da voz, as cadências dodiscurso, a prosódia.

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As emoções de fundo distinguem-sedo humor (mood), que se refere aemoções mantidas durante longosperíodos, medidos em horas ou dias(como quando dizemos que “Pedro estáde péssimo humor”). A palavra“humor” pode também ser aplicada àativação repetida da mesma emoção(como quando dizemos que “Rita andamuito irritável e ninguém percebe oporquê”).

Quando comecei a usar o conceitoda emoção de fundo,11 comeceitambém a ver as emoções de fundocomo a consequência de pôr emmarcha certas combinações de reaçõesregulatórias simples. As emoções defundo são manifestações compostasdessas reações regulatórias na medidaem que elas se desenrolam einterceptam momento a momento.Imagino as emoções de fundo como oresultado imprevisível dodesencadeamento simultâneo dediversos processos regulatórios dentrodo nosso organismo. A gama dessesprocessos inclui não só os ajustamentosmetabólicos necessários a cadamomento mas também as reações quecontinuamente ocorrem como respostaa situações exteriores. O nosso bem-estar ou mal-estar resulta dessa calda

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imensa de interações regulatórias.É legítimo perguntar quais são as

reações regulatórias que maisfrequentemente contribuem paraconstituir emoções de fundo como alassidão ou o entusiasmo, ou como éque o temperamento e o estado geralde saúde interagem com as emoçõesde fundo. Mas a verdade é que nãosabemos. As investigações necessáriaspara responder a essas perguntasainda não foram feitas.

As emoções primárias (ou básicas)são mais fáceis de definir porque háuma tradição bem estabelecida emrelação às emoções que devem fazerparte desse grupo. A lista inclui omedo, a raiva, o nojo, a surpresa, atristeza e a felicidade, aquelas emoçõesem suma que primeiro vêm à ideiaquando se pronuncia a palavra“emoção”. A facilidade da definiçãoprovém também da forma como essasemoções são rapidamente identificadasem seres humanos das mais diversasculturas e também em seres nãohumanos.12 As circunstâncias quecausam as emoções primárias e oscomportamentos que as definem sãoigualmente consistentes em diversasculturas e espécies. Como é de esperar,a maior parte daquilo que sabemos

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sobre a neurobiologia da emoçãoprovém do estudo das emoçõesprimárias.13 Tal como Alfired Hitchcockteria previsto, o medo é a maisestudada das emoções primárias, mashá também um progresso notável aregistrar no que diz respeito ao nojo,14 eà tristeza e felicidade.15

As emoções sociais incluem asimpatia, a compaixão, o embaraço, avergonha, a culpa, o orgulho, o ciúme,a inveja, a gratidão, a admiração e oespanto, a indignação e o desprezo.Numerosas reações regulatórias, bemcomo componentes das emoções

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primárias, são parte integrante, emdiversas combinações, das emoçõessociais. O encaixamento decomponentes mais simples éobservável, por exemplo, quando odesprezo utiliza as expressões faciaisdo nojo, uma emoção primária, queevoluiu em associação com a rejeiçãoautomática e benéfica de alimentospotencialmente tóxicos. Até mesmo aspalavras que utilizamos para descreversituações de desprezo e indignaçãomoral-confessamo-nos enojados oudesgostosos em relação a certassituações sociais giram à volta desseprincípio de encaixamento eincorporação. Ingredientes de dor e deprazer são igualmente bem evidentesna profundidade das emoções sociais.

Só agora começamos a perceber aforma como o cérebro desencadeia eexecuta as emoções sociais. Dado quea palavra “social” recordainevitavelmente as noções desociedade e cultura, é importante notarque as emoções sociais não seconfinam, de forma nenhuma, aosseres humanos. Encontramos emoçõessociais à nossa volta em chimpanzés,golfinhos, leões, lobos e, é claro, noscães e nos gatos. Os exemplosabundam. Basta pensar no andar

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orgulhoso de um macaco dominante,no comportamento aristocrático de umlobo dominante que comanda orespeito do seu grupo, nocomportamento humilhado de umanimal que não domina os seus pares eque é obrigado a ceder espaço eprecedência a outros no momento emque se alimenta, na compaixão que umelefante demonstra para com outro queestá ferido e sofre, ou no embaraço deum cão que fez aquilo que não deviafazer.16

Dado que é improvável que algumdesses animais tenha sido ensinado aexibir essas emoções, tudo indica que adisposição que permite uma emoçãosocial está profundamente gravada nocérebro desses organismos, prontapara ser utilizada quando chega omomento apropriado. Não há dúvida deque o arranjo cerebral que permite taiscomportamentos sofisticados, naausência de linguagem ou instrumentosde cultura, é um notável dom dogenoma de certas espécies. É um domque faz parte da lista dos dispositivosinatos da regulação automática davida, na linha dos vários outrosdispositivos que descrevemos acima.

Quer isso dizer que essas emoçõessão inatas, no sentido estrito do termo,

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e que estão prontas para ser usadaslogo após o nascimento, tal como aregulação metabólica está pronta malnascemos? A resposta não é a mesmapara todas as emoções. Em certoscasos, as emoções são de fatointeiramente inatas. Noutros casos,requerem um grau mínimo deexposição apropriada ao ambiente. Otrabalho de Robert Hinde sugere aquiloque provavelmente acontece com asemoções sociais. Hinde mostrou que o“medo inato” que os macacossupostamente têm das cobras sóaparece depois de o macaco ter vistona mãe uma expressão de medo emrelação à cobra. Uma simplesexposição é suficiente para ocomportamento de medo ser ativado,mas sem essa primeira exposição ocomportamento dito “inato” não podeser executado.17 Qualquer coisa desemelhante acontece provavelmentecom as emoções sociais no que dizrespeito, por exemplo, aoestabelecimento de padrões dedominância ou submissão em primatasmuito jovens.

Para alguém que esteja convencidode que os comportamentos sociais sãoexclusivamente resultado da educação,é sempre difícil aceitar que espécies

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animais extremamente simples possamexibir comportamentos sociaisinteligentes. Mas a verdade é quepodem e nem sequer precisam de umcérebro gigante para fazê-lo. A minhocaC. elegans tem exatamente 302neurônios e cerca de 5 mil conexõesinterneuronais (como termo decomparação, os seres humanospossuem vários bilhões de neurônios evários trilhões de conexões). Quandoessas criaturinhas hermafroditas seencontram num ambiente comsuficiente comida e com poucoestresse, vivem ensimesmadas ealimentam-se em perfeito isolamento.Mas quando a comida escasseia ouquando, por exemplo, detectam ummau odor no ambiente para a C.elegans os odores são uma das formasprincipais de detectar o perigo - essesanimais formam grupos e alimentam-seem conjunto.18 Esse curiosocomportamento faz pensar em váriosconceitos sociais: segurança por meioda cooperação, apertar o cinto,altruísmo, sindicatos, conceitos quenormalmente atribuímos à invençãohumana. Todos esses conceitos sociaise muitos outros podem ser deduzidostambém de criaturas como as abelhas,cuja vida social é intensa. Mas claro

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que a abelha tem 95 mil neurônios, umcérebro enorme comparado com o daminhoca e insignificante comparadocom o nosso.

É muito provável que a existência deemoções sociais tenha tido um papelno desenvolvimento dos mecanismosculturais da regulação social (vercapítulo 4). É também verdade quealgumas das emoções sociais humanassão provocadas sem que o estímuloseja imediatamente aparente nem paraos observadores nem para quem exibea emoção. As reações de dominânciaou submissão social são um exemplonotável que encontramos a cada passono mundo do esporte, da política e noslocais de trabalho em geral. Uma dasrazões por que algumas pessoas setornam líderes e outras seguidoras, porque algumas impõem respeito e outrasse acovardam, tem muitas vezes poucoa ver com os conhecimentos ouaptidões dessas pessoas, masmuitíssimo a ver com qualidades físicasque promovem certas respostasemocionais nos outros. Para quemobserva tais respostas e, por vezes,para quem as exibe, essas emoçõesaparecem sem qualquer motivoaparente porque a sua origem residenos mecanismos automáticos da

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emoção social. Devemos agradecer aDarwin, uma vez mais, por ter nosorientado para a história evolucionáriadesses fenômenos.

Devo notar que as emoções cujodesencadeamento é aparentementemisterioso não se confinam às emoçõessociais inatas. Existe uma outra classede reações cuja origem não éconsciente, mas é formada pelaaprendizagem durante odesenvolvimento individual. Estou mereferindo àquilo de que aprendemos agostar ou que passamos a detestar,distintamente, durante uma longaexperiência de percepção e emoção emrelação a pessoas, grupos, objetos,atividades e lugares. Nesse particulardevemos reservar a nossa gratidãopara Freud. Curiosamente, as duasséries de reações não conscientes enão deliberadas as inatas e aquelasque aprendemos pareceminterrelacionar-se intimamente no poçosem fundo do nosso inconsciente.Somos tentados a dizer que o seu jogoinconsciente assinala oentrecruzamento de dois testamentosintelectuais, o de Darwin e o de Freud,dois pensadores que se dedicaram aoestudo das influências subterrâneasnaquilo que é inato e naquilo que é

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adquirido.19

Todos os fenômenos de que vimosfalando têm a ver, direta ouindiretamente, com a saúde doorganismo. Sem nenhuma exceção,todos esses fenômenos se relacionamcom correções adaptativas do estadodo corpo e levam finalmente amudanças no mapeamento dos estadosdo corpo. O encaixe do simples dentrodo complexo garante que a finalidaderegulatória se mantenha presentemesmo nos pontos mais altos da cadeiade regulação.

As situações que iniciam asrespostas adaptativas e a finalidadeespecífica dessas respostas variam. Afome e a sede, por exemplo, sãoapetites simples. O objeto que as causaé geralmente interno uma diminuiçãode um componente químico vital para asobrevida. Os comportamentos que seseguem visam o ambiente e envolvemuma procura daquilo que falta, umaprocura que requer movimentosexploratórios no ambiente e a detecçãoadequada de um objeto procurado.Aquilo que acontece com noções comoo medo e a raiva é comparável. Se osobjetos que desencadeiam o medo e araiva são geralmente exteriores, quertenham sido prescritos pela evolução

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ou aprendidos na nossa experiênciaindividual, os estímulos maisfrequentes para a fome ou para a sedetendem a ser internos (emborapossamos desencadear fome ou sedeindiretamente, como por exemploquando vemos a cena de um belíssimojantar num filme francês). Emboraalgumas pulsões em seres nãohumanos sejam periódicas e ligadas àsestações do ano ou a ciclos fisiológicos,como por exemplo a atividade sexual,as emoções ocorrem a qualquermomento. Há também interaçõescuriosas entre as diversas classes dereação regulatória: as emoçõespropriamente ditas influenciam osapetites, e o inverso também éverdadeiro. Por exemplo, o medo inibea fome e a atividade sexual, e o mesmoacontece com a tristeza e o nojo. Pelocontrário, a alegria promove a fome e osexo. A satisfação das pulsões fome,sede e sexo-causa alegria; masbloquear a satisfação dessas pulsõespode causar raiva, desespero e tristeza.Tal como notei anteriormente, oconjunto de ocorrências dessas reaçõesadaptativas constitui as emoções defundo e define o humor no decurso dotempo.20

A maior parte dos seres vivos que

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exibem emoções detecta a presença decertos estímulos no ambiente eresponde impensadamente comemoção. A maior parte dos seres vivosage; possivelmente não sente comonós sentimos e não pensa como nóspensamos. É evidente que não possogarantir a verdade dessa afirmação,mas é provável que não seja falsa,dado aquilo que é necessário do pontode vista cerebral para o processo dosentir que abordarei no capítulo 3.Faltam a esses seres vivos simples asestruturas cerebrais necessárias pararepresentarem em mapas sensitivos astransformações que ocorrem no corpodurante uma emoção. Também faltam aesses seres vivos as estruturascerebrais necessárias para representara simulação antevista dessastransformações, aquilo que constituiriaa base, por exemplo, do desejo ou daansiedade.

É evidente que as ações regulatóriasdiscutidas acima são vantajosas para oorganismo que as exibe. É tambémevidente que a causa dessas reaçõesos objetos ou situações que asdesencadeiam pode ser classificadacomo “boa” ou “má” de acordo com oseu impacto na sobrevida e no bem-estar. Mas também é evidente que o

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paramécio, ou a mosca, ou o esquilo,não conhecem esses objetos emtermos de bem ou mal. Quando osseres humanos equilibramautomaticamente o pH do seu meiointerno, ou reagem com felicidade oumedo a certos objetos, também nãoestão deliberadamente escolhendo obem ou o mal. Os nossos organismosgravitam naturalmente para umresultado “bom”, por vezesdiretamente, como numa resposta dealegria, por vezes indiretamente, comonuma resposta de medo que começapor evitar o “mal” e levasubsequentemente a um bomresultado. Quero com isso dizer, evoltarei a esse ponto no capítulo 4, quecertos organismos podem produzirreações vantajosas que levam a bonsresultados sem decidirem produziressas reações e possivelmente mesmosem sentirem a ocorrência dessasreações.

Os seres humanos estão deparabéns, pelo menos em parte, porduas razões. Primeiro porque, emsituações comparáveis, as reaçõesautomáticas criam no organismohumano, sem dúvida, condições quesão mapeadas no sistema nervoso,representadas como agradáveis ou

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dolorosas, e finalmente feitasconscientes. É exatamente nessacapacidade que têm origem a glória e atragédia humanas. Quanto à segundarazão para os parabéns: os sereshumanos conscientes da relação entrecertos objetivos e certas emoçõespodem esforçar-se, de livre eespontânea vontade, para controlar assuas emoções, pelo menos em parte.Podemos decidir quais os objetos equais as situações que podem ou nãofazer parte do nosso ambiente, quais osobjetos e quais as situações nos quaisqueremos investir tempo e atenção.Podemos, por exemplo, decidir que nãovamos mais ver televisão e fazer umacampanha para que a televisão sejabanida eternamente das casas doscidadãos inteligentes. Graças aocontrole da nossa interação com osobjetos que causam emoções,conseguimos exercer algum controlesobre o nosso processo de vida econseguimos levar o nosso organismo aum estado de maior ou menorharmonia tal como Espinosa desejava.Podemos dessa feita libertar-nos doautomatismo tirânico e impensado damaquinaria emocional. Curiosamente,os seres humanos há muitodescobriram essa possibilidade,

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embora sem saberem exatamente abase fisiológica para as estratégias deque têm feito uso. É isso afinal quefazemos quando escolhemos o quelemos, aonde vamos e de quem somosamigos. É isso que os seres humanostêm feito há séculos quando seguemcertos preceitos sociais e religiosos quemodificam o ambiente e a nossarelação com ele. É isso que fazemosquando seguimos dietas e programasde exercício físico.

Não é portanto verdade que asreações regulatórias, incluindo asemoções propriamente ditas, sejamfatal e inevitavelmente estereotipadas.Algumas são e devem ser. Claro quenão devemos interferir na sabedoria danatureza quando se trata de regular afunção cardíaca ou fugir ao perigo. Masalgumas reações podem sermodificadas, especialmente quandocontrolamos os estímulos que asprovocam. Às vezes, dizer não é omelhor remédio.

UMA HIPÓTESE EM FORMA DEDEFINIÇÃO

Tendo discorrido sobre as diversasespécies de emoção, posso agoraapresentar uma hipótese de trabalho

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sobre o que é uma emoção.1. Uma emoção propriamente dita é

uma coleção de respostas químicas eneurais que formam um padrãodistinto.

2. As respostas são produzidasquando o cérebro normal detecta umestímulo-emocional-competente (umEEC), O objeto ou acontecimento cujapresença real ou relembradadesencadeia a emoção. As respostassão automáticas.

3. O cérebro está preparado pelaevolução para responder a certos EECcom repertórios de ação específicos.Mas a lista dos EEC não se limitaàqueles que foram prescritos pelaevolução. Inclui muitos outrosadquiridos pela experiência individual.

4. O resultado imediato dessasrespostas é uma alteração temporáriado estado do corpo e do estado dasestruturas cerebrais que mapeiam ocorpo e sustentam o pensamento.

5. O resultado final das respostas é acolocação do organismo, direta ouindiretamente, em circunstâncias quelevam à sobrevida e ao bem-estar.21

Os comportamentos clássicos daemoção estão incluídos nessadefinição, embora a separação dasfases do processo e o valor atribuído a

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essas fases não sejam convencionais. Oprocesso começa por uma fase deavaliação que corresponde à detecçãodo EEC. O meu trabalho concentra-senaquilo que acontece após o estímuloser detectado na mente, ou seja, àparte final da avaliação. Por razõesóbvias, os sentimentos que se seguemà emoção estão fora da definição daemoção propriamente dita.

Poderíamos dizer, tendo em vista apureza da definição, que a fase deavaliação também deveria ficar fora dadefinição no sentido estrito, a avaliaçãoleva à emoção, mas não é, ela própria,emoção. Mas a eliminação radical daavaliação não deixaria entrever tãofacilmente o valor real das emoções,que reside, no meu entender, naligação inteligente entre o EEC e asreações que alteram o estado do corpoe do pensamento de uma forma tãoprofunda. Deixar de fora a fase daavaliação correria o risco de trivializaras emoções e transformá-las emacontecimentos sem significado. Seriamais difícil vislumbrar a beleza e aespantosa inteligência representadaspelas emoções, bem como a formapoderosa como as emoções resolvemtantos dos nossos problemas.22

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A MAQUINARIA CEREBRAL DASEMOÇÕES

As emoções são um meio natural deavaliar o ambiente que nos rodeia ereagir de forma adaptativa. Por vezesavaliamos conscientemente os objetosque causam as emoções, no verdadeirosentido da palavra avaliar, notando nãosó a presença de um objeto mas a suarelação com outros objetos e a sualigação com o passado. Nessasocasiões o aparelho das emoçõesavalia e o aparelho da menteconsciente avalia também,pensadamente. Como resultado dessaco-avaliação podemos mesmo modularas nossas respostas emocionais. Comefeito, uma das finalidades principaisda nossa educação é interpor umaetapa de avaliação não automáticaentre os objetos que podem causaremoções e as respostas emocionais.Essa modulação é uma tentativa deacomodar as nossas respostasemocionais aos ditames da cultura.Contudo, apesar de todas essascircunstâncias em que a avaliação é umfato, quero sublinhar que em muitasoutras as emoções ocorrem sem quepossamos fazer qualquer avaliação doobjeto que as causa e ainda menos da

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situação em que esse objeto aparece.Também quero sublinhar que,

mesmo quando uma emoção ocorresem que tenhamos consciência doestímulo-emocional-competente, aemoção continua a indicar que oorganismo avaliou, de certo modo, asituação. O conceito de avaliação nãodeve ser exageradamente literal, e nãopode ser sinônimo de avaliaçãoconsciente. É necessário reconhecerque apreciar e responder a umasituação automaticamente é umsucesso notável da biologia e não é, deforma nenhuma, menos notável do quea apreciação consciente de umasituação.

Um dos aspectos fundamentais dahistória do desenvolvimento humanodiz respeito ao modo como a maiorparte dos objetos que nos rodeiamacaba por ser capaz de desencadearemoções, fortes ou fracas, boas oumás, conscientemente ou não. Algunsdos objetos são emocionalmentecompetentes por razões evolucionárias.Mas outros transformam-se emestímulos emocionais competentes nocurso da nossa experiência individual.Pense o leitor na casa onde, na suainfância, teve uma experiência demedo intenso. Se hoje visitar essa casa,

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é possível que sinta um certo mal-estarsem que haja qualquer justificação realpara esse mal-estar. Pode atéacontecer que numa outra casa,diferente mas com certas semelhanças,possa sentir o mesmo desconforto, denovo sem qualquer justificação realexceto aquela que é imposta pelamemória emocional.

Claro que não há nenhuma estruturano cérebro humano desenhada pararesponder com mal-estar a casas decerto tipo. Mas a experiência da suavida fez com que o seu cérebroassociasse certo tipo de casas com omal-estar que num certo dia sentiu.Pouco importa que a causa do mal-estar nada tivesse a ver com essaprimeira casa. A casa é um espectadorinocente. O leitor foi condicionado parasentir desconforto em certas casas,talvez até para detestar certas casas,sem saber necessariamente por quê.Ou condicionado a sentir-se bem emcertas casas, precisamente pelomesmo mecanismo. O gosto ou aversãoque nutrimos pelos mais variadosobjetos tem muitas vezes essa simplesorigem, e as fobias, que não são nemnormais nem banais, podem seradquiridas por esse mesmomecanismo. Seja como for, um dos

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sinais da nossa chegada à idade adultaé o de que poucos objetos nestemundo, ou mesmo nenhum, mantêmqualquer inocência emocional. É muitodifícil imaginar objetos emocionalmenteneutros. Alguns objetos evocamreações emocionais fracas, quaseimperceptíveis, enquanto outrosevocam reações emocionais fortes. Masa emoção é a regra. Começamosapenas agora a compreender osmecanismos moleculares e celularesnecessários para a ocorrência daaprendizagem emocional.23

Os organismos complexos aprendemtambém a modular a execução dasemoções de acordo com ascircunstâncias individuais. Hádispositivos de modulação quegraduam a magnitude da expressãoemocional de forma não consciente.Um simples exemplo: quando ouvimosuma piada podemos rir ou sorrir deforma inteiramente diferentedependendo do contexto social: umjantar diplomático, um jantar entreamigos íntimos ou um encontro casual.Não precisamos pensar no contexto. Oajustamento é automático. Claro que oajustamento pode também serconscientemente deliberado. Por boasou más razões podemos ocultar o

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divertimento ou o desprezo com querecebemos as palavras da pessoa comquem estamos conversando.

Os objetos emocionalmentecompetentes podem estar presentes narealidade atual ou ser recuperados damemória. Já vimos como uma memóriacondicionada, não consciente, podelevar a uma emoção. Mas a memóriapode também provocar emoções à luzda consciência. Por exemplo, o acidenteque nos causou medo muitos anosatrás pode ser recordado agora ecausar uma nova experiência de medo.O efeito é o mesmo quer o objetoesteja de fato presente, como imagemperceptível acabada de construir, oucomo imagem reconstruída a partir damemória. Se o estímulo temcompetência emocional, segue-se umaemoção. Todos os mais variados 64métodos e escolas de representaçãoteatral utilizam diariamente essamemória emocional para o seutrabalho. Em alguns casos, deixam quea memória os conduza abertamente àemoção. Em outros casos, deixam quea memória infiltre a sua atuação deforma sutil, levando-os indiretamente aatuar de uma certa maneira. O nossoperspicaz Espinosa também teve algo adizer sobre esse assunto: Um homem é

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tão afetado, agradavelmente oudolorosamente, pela imagem de umacoisa passada ou futura, como pelaimagem de uma coisa presente. (Ética,Parte III, proposição 28.)

O DESENCADEAMENTO E AEXECUÇÃO DAS EMOÇÕES

A cadeia de fenômenos que leva àemoção inicia-se com o aparecimentona mente do estímulo-emocional-competente. Em termos neurais, asimagens do estímulo competente sãoapresentadas nas diversas regiõessensitivas que mapeiam as suascaracterísticas, por exemplo, noscórtices visuais ou auditivos.Chamamos a essa parte do processo afase de “apresentação”. Na faseseguinte, sinais ligados à representaçãosensitiva do estímulo são enviados paravários outros locais do cérebro,sobretudo para os locais capazes dedesencadear emoções. Podemosconceber esses locais como fechadurasque apenas podem se abrir com aschaves que lhes correspondem. Essaschaves são, evidentemente, osestímulos emocionais competentes.Deve-se notar que as chaves“selecionam” uma fechadura

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preexistente e que não instruem océrebro na construção de umafechadura nova.

A atividade nesses locaisdesencadeadores é a causa imediatado estado emocional que ocorre nocorpo e no cérebro. Mais cedo ou maistarde essa cadeia de acontecimentospode reverberar e amplificar-se oureduzir-se e terminar. Concluindo, emlinguagem neuroanatômica ouneurofisiológica, a cadeia começaquando os sinais neuraiscorrespondentes a um certo objeto (porexemplo, os sinais que representam umobjeto ameaçador nos córtices visuais)são comunicados em paralelo ao longode diversas projeções neurais paraoutras regiões do cérebro. Algumas dasregiões receptoras, como por exemploa amígdala, entram em ação quandodetectam uma certa configuração desinais ou seja, quando a chave serve nafechadura e por sua vez iniciam sinaisque alvejam outras regiões cerebrais,continuando dessa forma a cadeia deacontecimentos que virá a tornar-seuma emoção.

Essas descrições lembram de certomodo as de um antígeno (por exemplo,um vírus) que entra na correntesanguínea e que leva a uma resposta

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imunológica feita de numerososanticorpos capazes de neutralizar oantígeno. O processo neural e oprocesso imunológico têm uma certasemelhança formal. No caso da emoçãoo “antígeno” é apresentado através dosistema nervoso e o “anticorpo” é aresposta emocional. A seleção é feitanum dos diversos locaisdesencadeadores de emoções. Ascondições em que os dois tipos deprocessos ocorrem são comparáveis, eos resultados são igualmentebenéficos. A natureza não é dada agrandes invenções, uma vez quedescobre soluções eficazes.

Algumas das regiões do cérebro hojeidentificadas como desencadeadorasde emoção incluem a amígdala, situadana profundeza do lobo temporal, umaparte do lobo frontal a que chamamoscórtex pré-frontal ventromedial e umaoutra região frontal no córtex docíngulo e na área motora suplementar.Claro que há outros locaisdesencadeadores, mas esses são osmais conhecidos. Essas regiões entramem ação em consequência de sinaisnaturais os sinais eletroquímicos quesuportam as imagens da nossa mente.Mas também podem entrar em açãocom estímulos artificiais-por exemplo,

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uma corrente elétrica aplicada aotecido celular. Nada há de rígido nesseslocais desencadeadores, embora a suaatuação tenda a produzir efeitos muitosemelhantes. Deve-se notar, noentanto, que diversas influênciaspodem modelar a atividade dessasregiões.

O estudo da amígdala em animaistem trazido novos dados sobre aemoção, notavelmente graças aotrabalho de Joseph LeDoux, e astécnicas de imaging cerebral têmtornado possível o estudo da amígdalahumana, principalmente nasinvestigações de Ralph Adolphs e de

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Raymond Dolan.24 Esses estudossugerem que a amígdala é umainterface importante entre estímulosvisuais e auditivos competentes e odesencadeamento das emoções,especialmente, embora nãoexclusivamente, do medo e da raiva.Os doentes com lesões da amígdalanão conseguem desencadear o medoou a raiva e consequentemente nãotêm os sentimentos que lhescorrespondem. Faltam-lhes asfechaduras do medo e da raiva, pelomenos no que corresponde às chavesvisuais e auditivas. Estudos recentesmostram também que uma notávelproporção de neurônios da amígdalahumana estão sintonizados pararesponder a estímulosdesagradáveis.25Curiosamente, aamígdala normal funciona querestejamos ou não conscientes dapresença de um estímulo competente,tal como Paul Whalen demonstrou.26

Scans da amígdala mostram que elaentra em ação mesmo quando nãotemos consciência de ter visto umaimagem ameaçadora. O trabalhorecente de Ar nie Ohman e de RaymondDolan também revela que podemosaprender, sem o saber, que certosestímulos estão associados a um

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acontecimento desagradável. Porexemplo, uma imagem visual associadaa uma emoção desagradável de formasubliminar ativa a amígdala direita.27

Os estímulos competentesemocionais são detectados de formaextremamente rápida antes que atensão incida sobre eles, como umestudo recente demonstra: depois delesões occipitais ou parietais causaremperda de visão, certos estímuloscompetentes, por exemplo umaexpressão de medo, ultrapassam abarreira da cegueira e são, mesmoassim, detectados pelo cérebro.28

As regiões desencadeadoras captamesses estímulos porque os sinaispassam ao lado das cadeias deprocessamento normal, aquelas quelevariam a uma avaliação cognitiva quenão pode ocorrer devido à cegueira. Ovalor desse bypass biológico natural éóbvio: quer estejamos ou nãoprestando atenção, o cérebro podedetectar um estímulo potencialmenteperigoso ou útil. Em seguida àdetecção, a atenção e o raciocíniopodem ser orientados para esseestímulo.

Outro local desencadeadorimportante é a região pré-frontalventromedial. Essa região está

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sintonizada para a detecção deestímulos mais complexos, comoobjetos e situações, naturais ouadquiridos, capazes de desencadearemoções sociais. Quandotestemunhamos um acidente em quealguém sofre, a compaixão que esseacidente provoca depende da atividadedessa região. Muitos dos estímulos queadquirem significados particulares nanossa vida-por exemplo, a tal casa quecausa mal-estar-provocam as suasemoções através dessa região.

Em colaboração com meus colegasAntoine Bechara, Hanna Damásio eDaniel Tranel, demonstramos que aslesões do lobo frontal alteram acapacidade de resposta emocional aosestímulos sociais. Alterações desse tipocomprometem o comportamento socialnormal.29 (Ver capítulo 4.)

Numa série de estudos recentes nonosso laboratório, Ralph Adolphsdemonstrou que os neurônios da regiãopré-frontal ventromedial respondemdiferentemente ao conteúdo agradávelou desagradável de imagens visuais.Em estudos realizados em doentesneurológicos que estavam emavaliação para o tratamento cirúrgicode epilepsia, descobriu-se que muitosdos neurônios dessa região, e em

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especial os do hemisfério direito,respondem dramaticamente a imagenscapazes de causar emoções negativas.Esses neurônios começam a reagircerca de 120 milissegundos depois daapresentação do estímulo. A primeiraparte da reação consiste na suspensãodos seus disparos espontâneos. Aseguir, depois de um intervalo desilêncio, disparam ainda maisintensamente e com maior frequência.Poucos neurônios respondem aimagens capazes de induzir emoçõespositivas, e aqueles que assimrespondem fazem-no sem o padrão destop and go dos neurônios sintonizadospara as emoções negativas.30 Essaassimetria cerebral é bem maismarcada do que previ, mas está deacordo com uma proposta feita hávários anos por Richard Davidson. Combase em estudos eletroencefalográficosrealizados em indivíduos normais,Davidson sugeriu que os córticesfrontais direitos estavam maisrelacionados com as emoçõesnegativas do que os esquerdos.

Para levar à criação de um estadoemocional, a atividade das regiõesdesencadeadoras precisa serpropagada aos locais de execução pormeio de conexões neurais. Os locais de

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execução identificados até agoraincluem o prosencéfalo basal, ohipotálamo e certos núcleos do troncocerebral. O hipotálamo é o executormestre de diversas respostas químicasque fazem parte integrante dasemoções. Diretamente ou através daglândula pituitária, o hipotálamo liberana corrente sanguínea moléculas quealteram o meio interno, a função dasvísceras e a função do sistema nervosocentral. A ocitocina e a vasopressina,ambos peptídeos, são exemplos demoléculas liberadas sob controlehipotalâmico com ajuda da porçãoposterior da glândula pituitária.Diversos comportamentos emocionais,tais como o apego afetivo e oscomportamentos maternais, dependemda disponibilidade desses hormôniosdentro das estruturas cerebrais queordenam a execução dessescomportamentos. Da mesma forma, adisponibilidade local de moléculascomo a dopamina e a serotonina,ambas moduladoras da atividadenervosa, causa a ocorrência de certoscomportamentos. Por exemplo, oscomportamentos cuja experiência ésentida como recompensadora eagradável parecem depender daliberação da dopamina a partir de uma

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área particular (a área ventrotegmentaldo tronco cerebral) e do seu transportepara uma outra área (o núcleoacumbens do prosencéfalo basal). Emsuma, os núcleos do prosencéfalo e dohipotálamo, alguns núcleos dotegmento do tronco cerebral e osnúcleos do tronco cerebral quecontrolam os movimentos do rosto e avoz (língua, faringe e laringe) são osexecutores supremos dos variadoscomportamentos, simples oucomplicados, que definem as emoções,do choro ao riso, do fugir de medo aofazer a corte. Os repertórios complexosde ações que o estudante de emoçõesobserva é o resultado de umacoordenação refinada da atividade dosnúcleos que contribuem para o todocom a execução de diversas partesintegradas e em boa ordem.31

Em toda e qualquer emoção, asondas múltiplas de respostas químicase neurais alteram o meio interior, oestado das vísceras e o estado dosmúsculos durante um certo período ecom um certo perfil. É assim que seconsegue realizar expressões faciais,verbalizações, certas posturas do corpoe certos padrões de comportamentoespecífico, tais como correr de medo ouficar paralisado de medo. A emoção é

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uma perturbação do corpo, por vezes éuma verdadeira convulsão. Em paralelocom a agitação corporal, as estruturascerebrais que suportam a criação deimagens e que controlam a atençãomudam também. Em consequência,algumas áreas do córtex cerebralparecem menos ativas enquanto outrasaumentam a sua atividade. Numdiagrama que tentei simplificar tantoquanto me foi possível (Figura 2.5), eisum exemplo de como um estímuloameaçador apresentado visualmentedesencadeia a emoção de medo e levaà sua execução.

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Para conseguir uma descriçãocompreensível do processo que vai daemoção ao sentimento, apresento-ocomo se dependesse de uma simplescadeia de acontecimentos quecomeçaria com um estímulo singular eterminaria com o estabelecimento dasbases do sentimento relacionadas comesse estímulo. Na realidade, como seria

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de esperar, o processo espalha-selateralmente e envolve cadeiasparalelas, e, além disso, amplifica-se.Essa extensão e amplificaçãoacontecem porque a presença doestímulo competente inicial levafrequentemente à recordação deestímulos relacionados que são, elestambém, emocionalmentecompetentes. Ao longo do tempo, essesestímulos competentes adicionaispodem levar ao desencadeamento damesma emoção ou aodesencadeamento de modificaçõesdessa emoção, ou até induzir emoçõesque colidem com a original. Em relaçãoao estímulo inicial, a continuação e aintensidade do estado emocional estãoà mercê do desenrolar do processocognitivo. Os conteúdos da mente ouprovocam novas reações emotivas oureduzem a sua probabilidade e, comoconsequência, a emotividade amplifica-se ou reduz-se.

Em suma, o fluxo de conteúdosmentais provoca respostas emocionais,que ocorrem no domínio do corpo oudos seus mapas cerebrais e queeventualmente conduzem aossentimentos. Curiosamente, quando oprocesso atinge a fase dossentimentos, regressa ao domínio

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mental onde tudo começou. Ossentimentos, como iremos ver nocapítulo 3, são tão mentais como osobjetos e as situações quedesencadeiam as emoções.

SUBITAMENTE

Uma série recente de estudosneurológicos tem permitido uma visãomais clara da estrutura que controla aexecução das emoções. Um dos maisvaliosos desses estudos foi feito numamulher que estava sendo tratada demal de Parkinson. Nada tinha levado apensar que a tentativa de reduzir osseus sintomas nos daria a oportunidadede compreender melhor a ocorrênciadas emoções e a forma como elas serelacionam com os sentimentos.

O mal de Parkinson é um problemaneurológico comum que compromete acapacidade de movimento normal. Emvez de causar uma paralisia, a doençacausa rigidez dos músculos, tremor eacinesia (uma dificuldade de iniciar osmovimentos que é talvez o sintomamais importante da doença). Em geralos movimentos são lentos, sintoma querecebe o nome de bradicinesia.Antigamente a doença era incurável,mas já há cerca de trinta anos tem sido

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possível aliviar os seus sintomas com ouso de uma medicação que contémlevodopa, a substância precursora doneurotransmissor de dopamina. Emdoentes com Parkinson a dopaminanatural desaparece de certos circuitoscerebrais, mais ou menos como ainsulina natural desaparece dopâncreas dos doentes com diabetes.Morrem os neurônios que produzemdopamina na pars compacta dasubstância negra, um pequeno núcleodo tronco cerebral, e a dopamina deixade ser liberada numa outra regiãocerebral, a região dos gânglios da base.Infelizmente, as medicações queaumentam o nível de dopamina noscircuitos cerebrais de onde eladesaparece não são eficazes em todosos doentes. Pior ainda, naqueles emquem são eficazes, as medicaçõesperdem eficácia ao longo do tempo, oucausam outras perturbações domovimento que são tanto ou maisincapacitantes do que os sintomasiniciais da doença. Por essa razão, vêmsendo desenvolvidas outrasmodalidades de tratamento, uma dasquais é particularmente promissora.Requer a implantação de pequenoseletrodos no tronco cerebral dosdoentes com Parkinson, de forma a

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permitir a passagem de uma correnteelétrica de baixa intensidade e altafrequência que modifica a forma comoos núcleos motores funcionam. Osresultados são geralmente espantosos.Quando a corrente elétrica passa, ossintomas desaparecem como que pormagia. Os doentes voltam a mover asmãos com precisão e voltam a andarnormalmente.

A colocação exata dos eletrodos é achave do sucesso desse tratamento.Para conseguir uma colocação perfeita,o neurocirurgião utiliza um dispositivoestereotáxico (um aparelho quepermite a localização das estruturascerebrais num espaço tridimensional),e conduz cuidadosamente os eletrodospara a parte do tronco cerebralconhecida como mesencéfalo. Oneurocirurgião coloca dois eletrodosorientados verticalmente, um do ladoesquerdo do tronco cerebral, outro dolado direito, cada um deles com quatrocontatos. Cada um dos contatos,separados por uma distância de doismilímetros, pode dar,independentemente, passagem a umacorrente elétrica. O cirurgião pode,portanto, estimular o cérebro atravésde cada um dos contatos,individualmente, e pode dessa forma

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determinar qual deles produz maiorgrau de melhoria para o doente.

A história fascinante que agora voucontar diz respeito a uma doenteestudada pelo meu colega Yves Agid epelo seu grupo no hospital daSalpêtrière, em Paris. A paciente tinha65 anos de idade e uma longa históriade parkinsonismo que a levodopa jánão conseguia tratar. Não tinhanenhuma história de depressão, antesou depois do início do mal deParkinson, e nunca tinha sequer sofridodas mudanças de humor que aparecempor vezes durante o tratamento comlevodopa. Não tinha nenhum histórico,pessoal ou familiar, de doençapsiquiátrica.

Uma vez colocados os eletrodos,tudo correu com essa mulher como nosdezenove doentes que esse mesmogrupo tinha já tratado antes delautilizando o mesmo método. Osmédicos encontraram o contato quealiviava os sintomas de Parkinson semgrande problema. Mas, de súbito, algode inesperado aconteceu, quando acorrente elétrica passou por um dosquatro contatos esquerdos, exatamentedois milímetros abaixo do contato quemiraculosamente acabava com adoença. De repente, a doente

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suspendeu a conversa que estavatendo, olhou para o lado direito e parao chão, inclinou-se ligeiramente para adireita e transformou radicalmente asua expressão facial numa máscara detristeza. Alguns segundos mais tardecomeçou a chorar. As lágrimas corriame o seu comportamento revelava umpesar profundo. Pouco depois começoua soluçar e, um pouco mais tardeainda, recomeçou a falar, dessa vezpara confessar a grande tristeza que aestava invadindo, a exaustão queestava sentindo e o desespero que nãolhe permitia continuar vivendo dessamaneira. Quando lhe perguntaram oque estava acontecendo, as suaspalavras não poderiam ser mais claras:

Estou caindo dentro da minhaprópria cabeça, já não quero maisviver,

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nem ver nada, nem ouvir nada, nemsentir nada...

Estou farta da vida, já chega... jánão quero viver mais, tenho nojo da

vida...

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É tudo inútil... não presto paranada...

Tenho medo deste mundo...

Quero esconder-me num canto...claro que estou chorando por mim

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mesma... perdi a esperançay porqueé que os estou aborrecendo com

tudo isto?

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O médico encarregado dotratamento percebeu que esse episódioestava sendo causado pela correnteelétrica e suspendeu a sessãoimediatamente. Cerca de noventasegundos depois de a corrente serinterrompida, o comportamento dadoente regressou ao normal. Os soluçospararam tão abruptamente comotinham começado. O pesardesapareceu do seu rosto. Os relatosde tristeza terminaram. De súbitocomeçou a sorrir, com um aspectoaliviado, e durante os cinco minutosque se seguiram adotou um tom debrincadeira. Que diabo estavaacontecendo?, perguntou. É verdadeque se sentira mal, mas não sabia detodo por quê. O que tinha provocado oseu desespero incontrolável? A verdadeé que estava tão confusa como osobservadores que a rodeavam.

Mas a resposta às suas perguntasera bem clara. A corrente elétrica nãotinha sido levada às estruturas decontrole motor a que se destinava. Emvez disso, a corrente tinha sido dirigidapara um ou mais núcleos do troncocerebral que controlam as ações que,no seu conjunto, produzem a emoção aque chamamos tristeza. Esse repertóriode ações inclui movimentos da

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musculatura facial, movimentos deboca, faringe, laringe e diafragmanecessários para chorar e soluçar ediversas ações que resultam naprodução e eliminação de lágrimas.

Tudo tinha se passado como se uminterruptor tivesse sido ligado dentrodo cérebro em resposta ao interruptorque tinha sido ligado no aparelho. Tudotinha se passado como num concertoinstrumental, cada compassoexecutado na altura própria, de talmodo que o repertório de ações pareciamanifestar a presença de pensamentoscapazes de causar tristeza. Mas, comosabemos, nada indica que a pacientetenha tido qualquer pensamento capazde produzir tristeza nos instantes queprecederam o episódio. Pelo contrário,a conversa que estava tendo antes doepisódio tinha sido bem-humorada.Também sabemos que a paciente nãotinha nenhuma tendência depressiva.Os pensamentos relacionados com atristeza só apareceram depois de aemoção começar.

Hamlet espanta-se com acapacidade que os atores demonstramquando produzem uma emoção semcom ela terem qualquer espécie decausa pessoal. “Não é entãomonstruoso que esse ator, numa ficção,

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num sonho de paixão, seja capaz deforçar a sua alma a obedecer a umcerto conceito, e daí que a suafisionomia se desvaneça, queapareçam lágrimas nos seus olhos, quea voz fique entrecortada e que o seucorpo por inteiro se acomode às formasdesse conceito?” O ator não temnenhuma causa pessoal para a suaemoção o ator está falando do destinode um personagem chamado Hécuba e,tal como diz Hamlet, “o que é queHécuba tem a ver com ele ou ele comHécuba?” E apesar disso, o atorconstrói na sua mente os pensamentosque lhe permitem desencadear aemoção e que o seu talentoconsequentemente refina. Mas nada desemelhante se passou com a mulhercom mal de Parkinson. Não houvenenhum “conceito” antes da suaemoção. Não houve nenhuma espéciede pensamento capaz de induzir ocomportamento, nenhuma ideiaperturbadora que tivesse surgido noseu cérebro espontaneamente, nemninguém lhe pediu que conjurassequalquer ideia perturbadora. A exibiçãode tristeza, com toda a sua notávelcomplexidade, apareceu do nada. E foiapenas depois de a exibição de tristezase organizar e estar em curso que ela

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começou a ter o sentimento de tristeza.Só depois de indicar que se sentia tristeé que começou também a terpensamentos consonantes com atristeza-preocupação com a suadoença, fadiga, desespero, desejo demorrer.

A sequência de acontecimentosdescrita revela que a emoção detristeza chegou primeiro. O sentimentode tristeza veio depois, acompanhadopor pensamentos do tipo que,normalmente, causam e acompanhama emoção de tristeza, pensamentosesses que são característicos do estadode espírito que descrevemoscoloquialmente como “sentir tristeza”Logo que a estimulação elétrica parou,terminaram todas essas manifestações.A emoção desapareceu edesapareceram também o sentimentoe os pensamentos preocupantes.

É fácil ver a importância desseepisódio neurológico raro. Emcondições normais, a velocidade comque as emoções surgem e dão lugaraos sentimentos e aos pensamentosque com elas se relacionam torna difícila análise da sequência exata dessesfenômenos. Os pensamentos quenormalmente causam emoçõesaparecem na mente, desencadeiam

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emoções, e estas levam a sentimentosque provocam uma outra série depensamentos, tematicamenterelacionados e que em geral amplificamo estado emocional. Esses novospensamentos, que sobrevêm na esteiradas emoções e sentimentos, podem atédesencadear novas emoções esentimentos, de tal forma que oprocesso continua até que ou a razãoou a distração lhe ponham fim. Depoisde todos esses fenômenos entraremem ação, é difícil analisar,introspectivamente, a sua ordem exatade ocorrência. O caso retratado ajuda-nos a descobrir essa ordem e a verificaraté que ponto ela faz sentido nocontexto da emoção. Ajuda-nos ainda aentrever a autonomia relativa dosmecanismos que desencadeiam aemoção e a forma como se distinguemfisiologicamente tanto da fase deavaliação que os precede como da fasede sentimento que lhes sucede.

É legítimo perguntar por que razão océrebro dessa mulher conseguiu evocaro tipo de pensamentos ligados àtristeza, dado que a sua emoção esentimentos não tiveram a motivaçãohabitual. A resposta a essa perguntatem a ver com os mecanismosfascinantes da memória. Na nossa

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experiência passada, a aprendizagemvem associando emoções epensamentos numa rede que funcionaem duas direções. Certos pensamentosevocam certas emoções e certasemoções evocam certos pensamentos.Os planos cognitivos e emocionaisestão constantemente ligados poressas interações. Essa ligação foidemonstrada experimentalmente emtrabalhos de Paul Ekman e dos seuscolegas. Ekman pediu a indivíduosnormais que movessem certosmúsculos do rosto, cada um por suavez, em determinadas sequências, detal modo que, sem que as pessoas osoubessem, a sequência acabava porcompor certas expressões emocionais,como por exemplo as da alegria oumedo. O truque da experiênciaconsistia em não permitir às pessoasautodiagnosticar as expressõesemocionais que os seus rostos estavamretratando. A grande surpresa doresultado dessa experiência foi que aspessoas, apesar de nada saberem,acabavam por ter o sentimentocorrespondente à emoção compostapelo experimentador.32 Em suma, oscomponentes de um certo padrãoemocional foram introduzidos peloexperimentador, e não motivados pelo

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estado de espírito da pessoa, masmesmo assim sobreveio o sentimentorespectivo. Claro que tudo issoconfirma a sabedoria de Rodgers eHammerstein. Anna, (Referência àpeça teatral e ao filme O rei e eu deRichard Rodgers e OscarHammerstein II.) aquela que foi aoSião para ensinar as crianças do rei,convence o seu próprio filho econvence-se a si mesma de queassobiar uma melodia feliztransformará o medo em confiança.“For when I fool the people I fear, I foolmyself as well” (“Quando engano aspessoas de quem tenho medo, enganoa mim mesma”). Mesmo que asexpressões emocionais não tenhammotivação psicológica e sejam“representadas”, elas são capazes decausar sentimentos e de provocar otipo de pensamentos que, um dia,foram aprendidos em conjunto comessas emoções.

Do ponto de vista subjetivo, oestudo relatado do “contato zeroesquerdo” recorda as situações em quepor vezes nos encontramos quando, desúbito, notamos que estamos tendo aexperiência de certos sentimentos semfazer qualquer ideia da sua causa.Quantas vezes notamos, num certo

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momento, que estamos nos sentindoparticularmente bem, cheios de energiae esperança, sem saber por quê, ouque nos sentimos ansiosos? Ospensamentos que iniciam essesestados ocorrem fora da consciência,mas são, apesar de tudo, capazes dedesencadear emoções e sentimentos.Por vezes conseguimos perceber aorigem desses estados, por vezes não.

O grupo de médicos einvestigadores responsável pelotratamento dessa mulher continuou ainvestigar o seu caso.33 A passagem dacorrente elétrica em qualquer dosoutros contatos nada causava deanormal e, como já indiquei, a reaçãode tristeza não tinha ocorrido emnenhum dos dezenove doentes quetinham sido tratados até então pelomesmo grupo e com o mesmo método.Em duas sessões subsequentes, e coma colaboração e autorização expressasda paciente, o grupo pôde concluir oseguinte. Primeiro, quando lhe diziamque estavam estimulando o contato“zero esquerdo” mas estavam de fatoapenas ligando o interruptor, o episódionunca se repetia. Nada se observavade anormal e a mulher nada sentia dediferente. Segundo, quando o “contatozero esquerdo” foi de novo estimulado

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sem qualquer aviso, o episódio detristeza repetiu-se por completo. Nãohavia dúvida de que o fenômeno eradeterminado pela estimulação elétrica.

Os investigadores tambémrealizaram um estudo de imagingfuncional (usando a tomografia poremissão de pósitrons) durante aestimulação do “contato zeroesquerdo”. Um dado curioso trazido poresse estudo foi a atividade notável dasestruturas do lobo parietal direito, umaregião ligada à representação doestado do corpo e8o em particular aoestado do corpo no espaço. Essaatividade relaciona-se, provavelmente,com as experiências corporais que apaciente tão bem descreve, incluindo asensação de queda no espaço.

O valor científico dos estudos queenvolvem um único indivíduo é,evidentemente, limitado. Os dados queresultam de tais estudos sãogeralmente o ponto de partida paranovas hipóteses e raramenteconstituem a conclusão de umapesquisa. Mas mesmo assim os dadosdesse caso são extremamente valiosos.Os dados sustentam a ideia de que osprocessos de emoção e sentimentopodem ser analisados no nível dessescomponentes. Os dados também

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fortalecem uma ideia fundamental daneurociência cognitiva: toda e qualquerfunção mental resulta das contribuiçõescoordenadas de muitas regiõescerebrais, em diversos níveis dosistema nervoso central, e não dofuncionamento de uma só regiãocerebral concebida à maneira de umcentro frenológico.

UM INTERRUPTOR DO TRONCOCEREBRAL

Não é possível determinar qual onúcleo do tronco cerebral quedesencadeou a tristeza no episódiodescrito. O contato responsável estavapróximo da substância negra, mas acorrente elétrica pode ter atingidooutros núcleos. O tronco cerebral é umapequena região do sistema nervosocentral, apinhada de núcleos e circuitosque apóiam as mais diversas funções.Alguns desses núcleos são minúsculos,e teria bastado uma variação mínimada anatomia habitual para que acorrente elétrica passasse através deuma zona diferente daquela para ondese destinava. No entanto, é evidenteque o episódio começou nomesencéfalo e recrutou, nessa região,diversos núcleos envolvidos na

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execução das emoções. É até possível,dado o que sabemos de experiênciasrealizadas com animais, que osprincipais responsáveis pelo episódiotenham sido núcleos da PAG(periaqueductalgray), uma massacinzenta que circunda o troncocerebral. Seja como for, o certo é queos acontecimentos começaram numdos núcleos do mesencéfalo e que daípartiram ordens para modificar o corpono rosto, na voz, no tórax, sem falarnas alterações químicas que não sepodiam observar diretamente. Asmodificações do corpo levaram a umsentimento e, à medida que o processose desenrolou, aparecerampensamentos sintonizados com oprocesso. Em vez de começar no córtexcerebral, a cadeia de modificaçõescomeçou numa região subcortical, masos resultados foram bem semelhantesaos que teriam sido produzidos por umacontecimento trágico. Quem quer quetivesse observado a cena depois de ointerruptor ser ligado não teria sidocapaz de dizer se o episódiocorrespondia a um estado natural deemoção e sentimento, ou a um estadode emoção e sentimento criado pelotalento de uma magnífica atriz.

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DE SÚBITO, O RISO

Para que ninguém pense que o queacabei de escrever apenas se aplica aochoro e à tristeza, devo agora dizer queestá descrito um fenômeno equivalenteque diz respeito ao riso e à alegria.34 Ascircunstâncias são semelhantes, dadoque também envolvem um indivíduosujeito a uma estimulação elétrica nocérebro. A finalidade era ligeiramentediferente: o mapeamento de funçõesno córtex cerebral. Com a finalidade detratar doentes com epilepsia refratáriaa medicamentos antiepilépticos, épossível remover cirurgicamente aregião circunscrita do cérebro de ondepartem as crises epilépticas. Para isso,antes da cirurgia, o neurocirurgião develocalizar com precisão a área cerebralque necessita ser removida e identificartambém áreas que não podem serremovidas dadas as suas funçõesessenciais, por exemplo áreas ligadas àlinguagem. Esse diagnóstico cuidadosoé feito com base numa pacienteestimulação elétrica de diversasregiões cerebrais e na observação doscomportamentos que resultam ou nãodessas diversas estimulações.

No caso da doente A. K., quando oscirurgiões começaram a estimular a

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área suplementar motora do lobofrontal esquerdo, observaram comsurpresa que a estimulação provocavao riso, de forma consistente eexclusiva. Esse riso era inteiramentegenuíno, tanto assim que osobservadores o descreveram comocontagioso. Mas era um riso que vinhaverdadeiramente do nada. Ninguémtinha mostrado à mulher nada departicularmente engraçado, ninguémtinha lhe contado uma piada, e comose veio a descobrir, a paciente nãoestava tendo nenhum pensamentoengraçado. Apesar dessa falta demotivação, o realismo do riso eranotável. O riso fez-se seguir de umasensação de divertimento e de alegria,apesar de nada justificar taissentimentos. Curiosamente, a pacienteatribuiu a causa do riso a todo equalquer objeto para o qual estivesseolhando no momento da estimulação.Por exemplo, quando estava vendo afotografia de um cavalo na altura emque a estimulação provocou o riso,declarou “que cavalo engraçado!”. Emcertas ocasiões atribuiu o riso aospróprios investigadores: “Vocês sãomesmo cômicos.

A região cerebral de onde seevocaram todas essas gargalhadas

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estava confinada a uma zona quadradacom dois centímetros de lado. Foradessa zona a estimulação causavadiversos resultados bem conhecidospara a área suplementar motora, taiscomo a parada da fala ou domovimento das mãos. Fora da zonacrítica não era de todo possível evocaro riso. Devo ainda notar que o risonunca fez parte das crises epilépticasespontâneas dessa paciente.

A estimulação da zona identificadanesse estudo pôs em ação núcleos dotronco cerebral capazes de produzir oriso. Quando consideramos esses doiscasos em conjunto, conseguimosentrever as diversas camadas daestrutura neural responsável pelasemoções.

Depois do processamento de umestímulo competente, regiões do córtexcerebral iniciam a emoção por meio dodesencadeamento da atividade emoutros locais do sistema nervosocentral, predominantementesubcorticais, atividade que leva por suavez à execução das emoções. No casodo riso, parece que os locais dedesencadeamento cortical estãosituados em regiões dorsais e internasdo lobo frontal, tais como a áreasuplementar motora e o córtex do

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cíngulo anterior. No caso do choro, oslocais críticos para o desencadeamentocortical estão colocados na regiãoventral e interna do lobo frontal. Mastanto no riso como no choro, osprincipais locais de execuçãoencontram-se no tronco cerebral. Apropósito, os resultados desse estudodo riso estão de acordo com os nossospróprios resultados em doentes comlesões da área suplementar motora oudo cíngulo anterior. Escrevemos hámuitos anos que esses doentes nãoconseguem produzir um sorriso natural,o tipo de sorriso espontâneo de quemachou graça numa dada situação.Nesses doentes, o sorriso é sempreartificial, o tipo de sorriso forçado queacabamos inventando quando alguéminsiste em nos tirar um retrato.35

Esses estudos mostram aseparabilidade das etapas emecanismos dos processos de emoçãoe sentimento. No estudo que dizrespeito ao riso e à alegria, a correnteelétrica revela o processo na etapa quese sucederia à avaliação do estímulo.No estudo que diz respeito ao choro e àtristeza, a estimulação elétricaintervém numa fase mais tardia doprocesso, dentro já da etapa deexecução da emoção.

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UM POUCO MAIS DE RISO EALGUMAS LÁGRIMAS

Uma outra situação neurológicapode dar-nos uma perspectiva adicionalsobre os interruptores da emoção.Trata-se da situação conhecida como“riso e choro patológico”. É umproblema há muito conhecido nahistória da neurologia mas que sórecentemente tem começado a serelucidado satisfatoriamente. Umdoente que estudei em colaboraçãocom Josef Parvizi e Steven Andersonilustra o problema com nitidez.36

Quando o doente C. sofreu umacidente vascular que afetou o troncocerebral, o médico que primeiro otratou disse-lhe que o caso poderia tersido bem pior, e com alguma razão.Alguns dos acidentes vasculares dotronco cerebral são fatais, e muitosdeles causam sintomas extremamenteincapacitantes. Nesse caso, ossintomas eram ligeiros eexclusivamente motores, e tudoapontava para um bom prognóstico.Inesperadamente, contudo, surgiu umsintoma que nada tinha de benigno eque deixou o doente, a família e omédico bastante confusos. Sem

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qualquer causa que se pudesseidentificar, o doente começava a chorarcopiosamente ou punha-se a rir com asmais sonoras gargalhadas. Não só era omotivo desses intensos e frequentesepisódios de emoção inteiramentedesconhecido mas também severificava, por vezes, que o seu valoremocional era diametralmente opostoao tom afetivo do momento. No meiode uma conversa séria sobre a suasaúde ou finanças, o doente podiarebentar de riso e assim continuardurante um minuto ou mais, enquantotentava sem êxito suprimir essaemoção. Por outro lado, no meio damais inócua das conversas, o doentepodia começar a soluçar sem qualquerespécie de controle sobre essa reaçãoindesejada. Os episódios podiamseguir-se rapidamente uns aos outrosdeixando o doente exausto e capazapenas, com dificuldade, de respirarfundo e anunciar que nem o riso nem ochoro tinham significado algum, quenada havia no seu espírito quejustificasse esse comportamentobizarro. Claro que não preciso dizer queo doente não estava ligado a nenhumacorrente elétrica e que nada disso tinhaa ver com ligar ou desligarinterruptores, embora, no seu

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essencial, os episódios fossemperfeitamente comparáveis ao dos doiscasos que discutíamos anteriormente.Tão comparáveis, de fato, que ao fimde uma série de crises de choro opaciente acabava por se sentir triste edepois de uma série de crises de riso sesentia alegre, embora, antes dosepisódios, não se sentisse nem alegrenem triste e não tivesse pensamentossintonizados com a alegria ou com atristeza. Uma vez mais, uma emoçãonão motivada causava um sentimentocom a valência afetiva expressa pelasações do corpo.

A explicação dos sintomas desseindivíduo, contudo, é bem diferente daexplicação dos sintomas dos casosanteriores. O doente C. tinha lesões nosistema constituído por certos núcleosdo tronco cerebral e do cerebelo. Omecanismo que nos permite modular oriso e o choro de acordo com ocontexto social e cognitivo tem sido ummistério. O estudo do doente C. reduzem parte esse mistério e revela que osnúcleos da protuberância e do cerebelodesempenham um papel importantenessa modulação. Podemos imaginar omecanismo da seguinte maneira:dentro do tronco cerebral a atividadede vários grupos de núcleos e

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projeções neurais provoca o riso ou ochoro estereotípicos. Depois, dentro docerebelo, um outro sistema modula osdispositivos do riso e do choro. Essamodulação depende, por exemplo, damudança do limiar para o riso e para ochoro bem como da mudança daintensidade e da duração das diversasações que o constituem.37 Emcircunstâncias normais a atividade docórtex cerebral influencia todo essemecanismo. Ou seja, as várias regiõesdo córtex cerebral cujo conjuntorepresenta em cada momento ocontexto em que o estímulocompetente ocorre determinam,indiretamente, o perfil do riso ou dochoro. Por sua vez, esse sistema deexecução pode também influenciar ocórtex cerebral.

O caso do doente C. deixa entrevera ligação entre o processo de avaliaçãoque precede as emoções e a execuçãodessas emoções. A fase de avaliaçãopode normalmente modular o estadoemocional e por ele pode vir a sermodulada. Mas quando os processos deavaliação e de execução estãodesconectados, tal como acontece nodoente C., o resultado pode ser caótico.

Se os casos anteriores revelamcomo processos comportamentais e

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mentais dependem de sistemas comdiversos componentes, o caso dodoente C. revela como esses processosdependem também da interaçãodesses próprios componentes. Estamosaqui bem longe de centros funcionaisisolados, bem longe da ideia de que asprojeções neurais funcionam apenasnuma direção.

DO CORPO ATIVO À MENTE

Os fenômenos que discutimos nestecapítulo as emoções propriamenteditas, os apetites e as reaçõesregulatórias simples ocorrem no teatrodo corpo guiados por um cérebrocongenitamente sagaz a quem aevolução entregou a administração docorpo. Espinosa teve a intuição dessasagacidade neurobiológica congênita eencapsulou essa intuição nasafirmações que descrevem o conatus, anoção de que todos os seres vivos seesforçam necessariamente parapreservar a si mesmos sem quetenham consciência da empresa a quese dedicam e sem terem decididodedicar-se a essa empresa. Em suma,sem conhecerem de todo o problemaque estão tentando resolver. Quando asconsequências dessa sabedoria natural

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são mapeadas no cérebro, o resultadoé o sentimento. Mais tarde, comoveremos, os sentimentos orientam osesforços conscientes e deliberados daautoconservação e ajudam-nos a fazerescolhas que dizem respeito à maneiracomo a autopreservação deve serealizar. Os sentimentos abrem a portaa uma nova possibilidade: o controlevoluntário daquilo que até então eraautomático.

A evolução parece ter construído aestrutura da emoção e sentimento aprestações. Construiu primeiro osmecanismos para aprodução dereações a objetos e circunstâncias aestrutura da emoção. Construiu depoisos mecanismos para a produção demapas cerebrais que representamessas reações e os seus resultados aestrutura do sentimento.

O primeiro dispositivo deu aosorganismos a capacidade de respondercom eficácia, mas de um modo poucooriginal, a várias circunstâncias quepromovem ou ameaçam a vidacircunstâncias boas ou más para a vida.O segundo dispositivo, o dosentimento, introduziu um alertamental para as boas e máscircunstâncias e permitiu prolongar oimpacto das emoções ao afetar a

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atenção e a memória de maneiraduradoura. Mais tarde, numacombinação frutífera de memórias dopassado, imaginação e raciocínio, ossentimentos levaram à emergência dacapacidade de antevisão e previsão deproblemas e à possibilidade de criarsoluções novas e não estereotipadas.

Como acontece frequentementequando um dispositivo novo éincorporado no repertório biológico, anatureza serve-se daquilo de que jádispunha, o que, no caso dosentimento, nada mais é do que aemoção. No princípio foi a emoção,claro, e no princípio da emoção estevea ação.

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3. Os sentimentos

O QUE SÃO OS SENTIMENTOS

Na minha tentativa de explicar o quesão os sentimentos, começo porperguntar ao leitor: quando pensa numsentimento de que tenha tidoexperiência, agradável ou não, intensoou não, o que constitui para você oconteúdo desse sentimento? Repareque a minha pergunta não tem a vercom a causa do sentimento, com aintensidade do sentimento, com a suavalência positiva ou negativa ou com ospensamentos que lhe vieram aoespírito na sequência do sentimento. Apergunta tem a ver com os conteúdosmentais, com os ingredientes, digamos,que constituem o sentimento.

Para facilitar a resposta, deixe-mefazer uma sugestão: imagine-sedeitado na areia de uma bela praia,com o sol do fim da tarde aquecendosua pele, com o mar a desfazer-segentilmente aos seus pés, uma brisaligeira a agitar os pinheiros em algumlugar lá atrás e um céu azul semsombra de nuvem. Dê tempo ao tempoe recorde a experiência em pormenor.Presumo que você tenha se sentido

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bem, e a pergunta que lhe faço dizrespeito a esse bem-estar que vocêsentiu. Em que consiste esse bem-estar? Há várias possibilidades: talvez obem-estar tenha vindo em boa parte datemperatura confortável da sua pele.Ou da respiração calma e fácil, libertade qualquer resistência no peito ou nagarganta. Os seus músculos estavamtão distendidos que não exerciamnenhuma tração nas articulações. Ocorpo estava leve, bem implantado nochão, mas leve; era possível sentir oorganismo como um todo, dar-se contade um mecanismo que funcionava semqualquer problema, sem dor, numasimples perfeição. Recorde-se, talvez,de que tinha energia para semovimentar mas que preferia estarquieto, numa combinação um poucoparadoxal da capacidade e inclinaçãode agir e do saborear da quietude. Emsuma, o corpo tinha se modificado aolongo de diversas dimensões. Algumasdessas dimensões eram óbvias e o seulocal era fácil de identificar. Outrasdimensões eram mais problemáticas.Por exemplo, era difícil localizar nocorpo a sensação de bem-estar daquelemomento.

As consequências mentais do estadoque acabei de descrever são notáveis.

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Recorde que quando você conseguiadesviar a sua atenção da sensaçãopura de bem-estar, quando conseguiaconcentrar-se em ideias que não diziamrespeito diretamente ao corpo,encontrava no seu espíritopensamentos cujos temas criavam umanova onda de sentimentos de prazer.Imagens de acontecimentos agradáveisque aguardava com expectativa iam evinham do seu espírito, como imagensde acontecimentos aprazíveis dopassado. A sua disposição mental nãopodia ser mais feliz. No modo depensamento em que se encontrava, asimagens mentais tinham um foco nítidoe surgiam abundantemente e semesforço. O sentimento do momentoestava gerando duas consequências. Aprimeira era o aparecimento depensamentos cujos temas eramconsonantes com a emoção e osentimento de que você estava tendoexperiência. A segunda consequênciaera um modo de pensamento, um estilode processo mental, digamos, queaumentava a velocidade da geraçãodas imagens mentais e as tornavaassim mais abundantes. Tal comoWordsworth, nos seus poemas deTintem Abbey, o leitor tinha “docessensações sentidas no sangue e

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sentidas ao longo do coração”, e davaconta de que essas sensações“purificavam o espírito numarecuperação tranquila”. Aquilo que oleitor normalmente considera “corpo” e“espírito” juntava-se em perfeitaharmonia. Todos os conflitos que otinham preocupado antes dessemomento nada mais eram do quememórias distantes.

Eu diria que aquilo que definia osentimento agradável dessesmomentos, aquilo que justifica o uso dotermo “sentimento” e a ideia de que osentimento é diferente de qualqueroutro tipo de pensamento, era arepresentação mental do corpofuncionando de uma certa maneira. Osentimento de uma emoção, no seumais puro e estreito significado, era aiáéia do corpo funcionando de umacerta maneira. Nessa definição apalavra“ ideia” pode ser substituídapelas palavras “pensamento” ou“percepção”. No momento em que oleitor considerava o sentimento na suaessência, separado do objeto que ocausava e dos pensamentos e modo depensar que lhe eram consequentes, oconteúdo do sentimento apareciaclaramente como a representação deum estado muito particular do corpo.

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Esse comentário aplica-seinteiramente aos sentimentos detristeza, aos sentimentos de qualqueroutra emoção, aos sentimentos dosapetites e aos sentimentos das váriasações regulatórias que continuamenteocorrem no organismo. Os sentimentos,no sentido em que a palavra é usadaneste livro, emergem das mais variadasreações homeostáticas, não somentedas reações a que chamamos emoçõesno sentido restrito do termo. De ummodo geral, os sentimentos traduzem oestado da vida na linguagem doespírito. Aquilo que proponho é que asdiversas reações homeostáticas, dasmais simples às mais complexas, sãoacompanhadas necessariamente deestados do corpo que são bemdistintos. Os objetos mais variados danossa experiência do dia-a-dia, desdeaqueles que são prescritos pelaevolução biológica àqueles queaprendemos na nossa históriaindividual, têm a capacidade deproduzir certos padrões de reaçãohomeostática (no seu papel de objetosemocionalmente competentes, comodescrevemos no capítulo 2), e étambém verdade que certas maneirasde estar do corpo estão fortementeassociadas a certos temas de

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pensamento e a certos modos depensar. A tristeza, por exemplo, éacompanhada de uma produçãoreduzida de imagens mentais e de umaatenção excessiva para essas poucasimagens. Por outro lado, nos estados defelicidade as imagens mudamrapidamente, e a atenção que lhes édada é reduzida. Em essência, ossentimentos são percepções, e aquiloque proponho é que o apoiofundamental dessas percepções dizrespeito aos mapas cerebrais do estadodo corpo (por razões que ficarão clarasno decorrer deste capítulo, faço notarque me refiro à percepção do conteúdode mapas cerebrais do corpo e não,necessariamente, à percepção diretado estado do corpo).

Na construção de um sentimento, apercepção do estado do corpo é, assim,acompanhada pela percepção de temasconsonantes com esse estado e pelapercepção de um certo modo depensar. Esses dois acompanhantesresultam da construção demetarrepresentações no nossoprocesso mental, uma operação de altonível na qual uma parte do nossoespírito representa uma outra partedesse mesmo espírito. É esse processode alto nível que nos permite dar conta

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de que os nossos pensamentos sãomais ou menos vagarosos, de que maisou menos atenção lhes é devotada.Concluindo, a minha hipótese detrabalho sobre aquilo que são ossentimentos indica que um sentimentoé uma percepção de um certo estadodo corpo, acompanhado pelapercepção de pensamentos com certostemas e pela percepção de um certomodo de pensar. Todo esse conjuntoperceptivo se refere à causa que lhedeu origem. Os sentimentos emergemquando a acumulação dos detalhesmapeados no cérebro atinge umdeterminado nível. A filósofa Suzanne

Langer captou a natureza dessemomento de emergência dizendo que osentimento começa quando a atividadedo sistema nervoso atinge uma“frequência crítica”.1

A minha hipótese não é compatívelcom a ideia de que a essência dossentimentos, ou a essência dasemoções, quando emoções esentimentos são consideradossinônimos, é simplesmente umacoleção de pensamentos com certostemas ligados a um certo rótuloemocional, como por exemplopensamentos de situações de perda emrelação a tristeza e referidos ao objeto

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que os causou. Julgo que essa ideiatradicional sobre aquilo que são ossentimentos, sem referência ao estadodo corpo, esvazia irremediavelmente oconceito de sentimento e de emoção.Se os sentimentos fossem merosagrupamentos de pensamentos comcertos temas, como seria possíveldistingui-los de quaisquer outrospensamentos? Como seria possívelmanter a individualidade funcional quejustifica os sentimentos de emoçõescomo um processo mental particular? Aminha ideia é que os sentimentos deemoções são funcionalmente distintosporque a sua essência consiste empensamentos sobre o corposurpreendido no ato de reagir a certosobjetos e situações. Quando se removeessa essência corporal, a noção desentimentos desaparece. Quando seremove essa essência corporal, deixade ser possível dizer “sinto-me feliz”, epassamos a ser obrigados a dizer“penso-me feliz”. E é evidente que sepassássemos a falar da nossa felicidadecom a expressão “penso-me feliz”,seria legítimo perguntar por que razãoos pensamentos são “felizes”. Se nãotivéssemos a experiência do corpo emestados aprazíveis e que consideramos“bons” e “positivos” no enquadramento

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geral da vida, não teríamos nenhumarazão para considerar qualquerpensamento como feliz ou triste.

Na minha perspectiva, a origem daspercepções que constituem a essênciados pensamentos é clara: o corpo écontinuamente mapeado num certonúmero de estruturas cerebrais. Osconteúdos das percepções também sãoclaros: estados do corpo retratados nosmapas cerebrais do corpo. Por exemplo,a estrutura muscular de músculos sobtensão é diferente da dos músculosrelaxados e o seu mapeamento écorrespondentemente diferente; omesmo se pode dizer do estado deórgãos internos tal como o coração, e omesmo se pode dizer no que concerneà composição do sangue relativa acertas moléculas da qual a nossa vidadepende e cuja concentração émapeada continuamente em regiõescerebrais específicas. O substratoimediato dos sentimentos é constituídopelos mapas cerebrais do corpo nosquais se encontram representados osmais diversos parâmetros da estruturae da operação do corpo. Como veremosmais adiante, embora tais mapasdigam sempre respeito ao estado docorpo, o conteúdo exato de cadamomento pode não corresponder de

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forma fidedigna ao conteúdo exato docorpo nesse momento. Essa situaçãoresulta do fato de os sinais relacionadosà atividade corporal poderem sermodificados por ações diretas de certoscomponentes do sistema nervosocentral.

É de notar que não registramosconscientemente a percepção de todosesses aspectos do funcionamento docorpo, e ainda bem. Temos experiênciade muitos deles, especificamente enem sempre agradavelmente, tal comona percepção que podemos ter de umaarritmia cardíaca, ou da contraçãodolorosa do intestino. Na maior partedos casos, no entanto, acabamos porter uma experiência “integrada” decertos parâmetros da fisiologia docorpo. Por exemplo, certos padrõesquímicos do nosso organismo sãoregistrados como sentimentos de fundo- de fadiga, energia ou mal-estar.Outros sentimentos “integrados” dizemrespeito aos nossos apetites oudesejos. É evidente que nunca“sentimos” o nível da glicose sanguíneacaindo abaixo dos seus valores ideais.O que sentimos são as consequênciasdessa queda: a fome, por exemplo, oua falta de energia para o movimento.

Ter experiência de um sentimento,

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tal como um sentimento de prazer,consiste em ter uma percepção docorpo num certo estado, e ter apercepção do corpo em qualquerestado requer a presença de mapassensitivos nos quais certos padrõesneurais possam ser executados e apartir dos quais certas imagensmentais possam ser construídas.Aproveito este momento para lembrarque a emergência das imagens mentaisa partir de padrões neurais não estácompletamente elucidada. Existe umalarga falha na nossa compreensãodesse processo, à qual me refiro nocapítulo 5. No entanto, sabemos osuficiente sobre o processo para poderdizer que a construção de imagens seapóia em substratos identificáveis que,no caso dos sentimentos, são diversosmapas do estado corporal colocadosem diversas regiões cerebrais, desde otronco cerebral até o córtex cerebral.Todas essas regiões interagem atravésde conexões nervosas, e é importantenotar que a nossa experiência do que éo sentimento não resulta do trabalhode nenhuma dessas regiões cerebraisde forma isolada. Trata-se sempre deum sistema de regiões em estreitacooperação, e o produto mental a quechamamos sentimento resulta da

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cooperação estreita desse grupo decomponentes do sistema.

Concluindo, o conteúdo essencialdos sentimentos é um estado corporalmapeado num sistema de regiõescerebrais a partir do qual uma certaimagem mental do corpo pode emergir.Na sua essência, um sentimento é umaideia, uma ideia do corpo, uma ideia deum certo aspecto do corpo quando oorganismo é levado a reagir a um certoobjeto ou situação. Um sentimento deemoção é uma ideia do corpo quandoeste é perturbado pelo processoemocional, ou seja, quando umestímulo emocionalmente competentedesencadeia uma emoção. O cernedessa noção de sentimento que hojedefendo provém das propostas deWilliam James sobre o fenômeno daemoção (ver O erro de Descartes e Omistério da consciência para umareferência mais pormenorizada àspropostas de William James). Comoveremos adiante, contudo, omapeamento do corpo que constitui aparte principal da minha hipótese não étão simples nem tão direto comoWilliam James imaginou há cerca de120 anos.

ALÉM DA PERCEPÇÃO DO CORPO

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Quando digo que os sentimentos sãoconstituídos, sobretudo, pela percepçãode um certo estado do corpo, ouquando digo que a percepção doestado do corpo forma a essência dosentimento, insisto no valor daspalavras “sobretudo” e “essência”. Arazão para essa sutileza é fácil deentrever quando se analisaatentamente a hipótese-definição desentimento que venho discutindo. Emmuitas circunstâncias, especialmentequando há pouco ou nenhum tempopara reflexão, os sentimentos são defato constituídos pela percepção de umcerto estado do corpo. Noutrascircunstâncias, contudo, os sentimentosenvolvem a percepção de um certoestado do corpo e a percepção de umcerto estado de espírito. Temosimagens não só de um certo estado docorpo mas também, em paralelo,imagens de uma certa forma de pensar.

Em muitos exemplos de sentimento,o processo não é de todo simples. Paraalém das imagens do corpo que dão aosentimento o seu conteúdo distinto,temos que incluir a representação daforma de pensar que acompanha apercepção do corpo, bem como apercepção dos pensamentos que

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concordam, em matéria de tema, como tipo de emoção que estamossentindo. Nessas ocasiões é bemcorreto dizer que, quando temos aexperiência de um sentimento positivo,a mente representa mais do que bem-estar, a mente representa tambémbem-pensar. A carne funcionaharmoniosamente, é o que nos diz oespírito, e a nossa capacidade depensar está assim enriquecida. Poroutro lado, sentir a tristeza não dizrespeito apenas ao mal-estar. Dizrespeito também a um modo ineficientede pensar, concentrado em torno deum número limitado de ideias de perda.

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Figura 3.1: Continuação do diagramada figura 2.5, mostrando o processo daemoção até chegar aos sentimentos(de medo). A transmissão dos sinais docorpo para o cérebro (a seta quecomeça na caixa E, embaixo e àesquerda, e que vai até à caixa F, emcima à direita) pode ser influenciada apartir das regiões de desencadeamentoe execução (setas da caixa 1“modificação da transmissão dossinais”). As regiões dedesencadeamento e execução tambéminfluenciam o processo, criando

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“modificações de estilo cognitivo”(caixa 2) efazendo diretamente“alterações dos mapas somáticos”(caixa 3) que constituem o substratoimediato dos sentimentos.

OS SENTIMENTOS SÃO PERCEPÇÕESINTERATIVAS

Os sentimentos são percepções e,nesse sentido, são comparáveis aoutras percepções. Por exemplo, aspercepções visuais correspondem aobjetos exteriores ao corpo cujascaracterísticas físicas alteram o estadodas nossas retinas e modificamtemporariamente os padrões sensitivosdos mapas do sistema visual. Comopercepções, os sentimentos tambémtêm um objeto imediato que está naorigem de uma série de sinais quetransitam através de mapas dentro docérebro. Como no caso da percepçãovisual, uma parte do fenômeno édevida à construção interna que océrebro faz desse objeto. Mas umacoisa que é bem diferente no caso dossentimentos, e a diferença não é detodo trivial, é que os objetos esituações que constituem as origensimediatas da essência do sentimento

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estão colocados dentro do corpo e nãofora dele. Os sentimentos são tãomentais como qualquer outrapercepção, mas os objetos imediatosque lhes servem de conteúdo fazemparte do organismo vivo do qual ossentimentos emergem.

Essa diferença importante seriasuficiente para conferir aossentimentos um status especial. Mas háoutras diferenças. Além de estaremligados a um objeto imediato, o corpo,os sentimentos estão também ligadosao objeto emocionalmente competenteque deu início à cadeia emoção-sentimento. De uma forma bemcuriosa, o objeto emocionalmentecompetente é responsável peloestabelecimento do objeto que está naorigem imediata do sentimento. Porisso, quando nos referimos ao objeto“de uma emoção ou de umsentimento”, é necessário qualificar adiferença e deixar bem claro a queobjeto estamos nos referindo. Opanorama espetacular de um pôr-do-solsobre o oceano é um objetoemocionalmente competente. Mas oestado do corpo que resulta decontemplar esse panorama é o objetoimediato que está na origem dosentimento, e é o objeto cuja

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percepção constitui a essência dosentimento.

Uma outra diferença diz respeito aofato de que o cérebro tem meiosdiretos para responder a esse objetoimediato, dado que o objeto imediatose encontra dentro do corpo, e não foradele. O cérebro pode atuar diretamentesobre a estrutura do objeto que estáem vias de perceber. Por exemplo, podemodificar o estado do objeto, ou seja,alterar o estado do corpo, ou modificara transmissão dos sinais que lhechegam do corpo. O objeto imediato dosentimento e o mapa desse objetopodem influenciar-se mutuamentenuma espécie de processoreverberativo que não é possívelencontrar na percepção de um objetoexterior ao corpo. O leitor podecontemplar a Guernica de Picasso, tãointensamente quanto quiser, durante otempo que quiser, tão emocionalmentecomo quiser, mas nada vai acontecer àtela. Os seus pensamentos sobre a telavão mudar, claro, mas a tela vaicontinuar intacta, espera-se. No casodo sentimento, o objeto imediato é elepróprio modificável, por vezes de umaforma radical. O equivalente dessasmodificações no exemplo de Guernicaseria uma modificação substancial da

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estrutura da tela.Em outras palavras, os sentimentos

não são de todo uma percepçãopassiva, um relâmpago que desapareceda nossa vista. Uma vez que se instalauma ocasião de sentimento,especialmente no caso de sentimentosde alegria e de tristeza, tem lugar umrecrutamento dinâmico do corpo, umrecrutamento repetido também, quedura vários segundos ou até minutos, ea que correspondem variaçõesdinâmicas da nossa percepção, ou seja,do nosso sentimento. Aquilo de que nosdamos conta é uma série de transiçõese, em alguns casos, uma luta abertaentre as alterações do corpo iniciadaspela emoção e a resistência que ocorpo oferece a essas alterações.2

Nesta altura, o leitor pode talvezdiscordar das minhas palavras econtrapor que a minha descrição seaplica aos sentimentos de emoção esentimentos dos fenômenos derevelação da vida, mas que talvez nãose aplique a outras espécies desentimento. E aqui eu teria deresponder que a única outra utilizaçãoapropriada do termo sentimento, comoindiquei no princípio do livro, dizrespeito a atos como o de tocar umobjeto ou ao resultado de tais atos, ou

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seja, a percepção tátil. No que dizrespeito à utilização dominante dotermo “sentimento”, eu diria que todosos sentimentos são de uma das formasde regulação básica da vida quediscutimos no capítulo anterior, ousentimentos de apetites e desejos, ousentimentos de emoções no sentidorestrito do termo, desde os sentimentosde dor aos de beatitude. Quandofalamos do sentimento de um certotom de azul ou do sentimento de umacerta nota musical, estamos nosreferindo, de fato, ao sentimentoafetivo que acompanha a nossapercepção desse tom de azul ou àaudição do som de uma certa nota.3

Mesmo quando deslizamos para o usoincorreto da noção de sentimento -como na frase “sinto que tenho razãoneste argumento” ou “sinto que nãoposso concordar com você” - estamosnos referindo, pelo menos de umaforma vaga, ao sentimento queacompanha a ideia de acreditar numcerto fato ou de concordar com umacerta posição intelectual. Isso se deve,provavelmente, ao fato de queconcordar ou acreditar causamnaturalmente uma certa emoção. Tantoquanto sabemos, poucas percepções(talvez nenhuma) de qualquer objeto

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ou situação, presente na realidade ourecordado da nossa memória, podemser classificadas como neutras emtermos emocionais. Devido às suascondições evolucionárias e à nossaaprendizagem individual, a maior partedos objetos com que jamais nosencontramos, talvez mesmo todosesses objetos, causam emoções,mesmo que fracas, e causamsentimentos, mesmo que tépidos.

A MEMÓRIA E O DESEJO: UM APARTE(“Mixing memory with desire”, nooriginal: uma referência à poesia de T.S. Eliot)

Ao longo dos anos tenho ouvidovárias vezes dizer que talvez sejapossível utilizar o corpo para explicar aalegria, a tristeza e o medo, mas que ocorpo nada pode explicar no que dizrespeito ao desejo, ao amor ou aoorgulho. Fico sempre perplexo peranteessa relutância, e sempre que aafirmação é feita diretamente respondoda mesma maneira: por que não?Deixe-me tentar. Quer o meu opositorseja homem ou mulher, proponhosempre a mesma experiência mental:considere a ocasião, espero querecente, em que viu uma mulher ou um

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homem (a preferência é sua) que lhedespertou, nuns escassos segundos,um desejo ardente, o eterno pecado daluxúria. E peço a seguir, ao meuoponente (bem como ao leitor), quetente reconstituir aquilo que se passou,em termos fisiológicos, no seu próprioorganismo.

O objeto causador desse despertaraprazível provavelmente se apresentounão no todo, mas em partes. Talvezaquilo que primeiro chamou a suaatenção tenha sido a forma de umtornozelo, a maneira como este serelacionava com um sapato e comocontinuava no resto do corpo, maisimaginado do que visto, coberto poruma saia. (“Ela cresceu para mim empartes; tinha mais curvas que umaestrada marginal”, assim dizia FredAstaire ao descrever a chegada dasedutora Cyd Charisse em A roda dafortuna). Ou talvez tenha sido odesenho de uma nuca ou da suarelação com uma camisa. Ou talvez nãotenha sido mesmo uma parte de umcorpo, mas sim o movimento de umcorpo inteiro no espaço, a energia edecisão que animavam esse corpo.Qualquer que tenha sido aapresentação, o sistema neural dosapetites entrou em ação e as respostas

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apropriadas foram selecionadas. Deque foram feitas essas respostas? Bem,foram feitas de preparações esimulações. O sistema dos apetitespromoveu um número de modificaçõescorporais, algumas sutis e outras talveznão, que fazem parte da rotina queconduz, finalmente, à consumação doapetite. Não se preocupe o leitor com ofato de que, em companhia civilizada, aconsumação do apetite nunca venha ater lugar. Deram-se rápidas alteraçõesquímicas no seu meio interno,mudanças de ritmo cardíaco erespiração compatíveis com um desejoainda mal definido, redistribuições dofluxo sanguíneo e preparaçõesmusculares para toda uma série demovimentos que poderiam vir a serutilizados mas que provavelmente nãoforam. O jogo de tensões do sistemamuscular foi reorganizado e, de fato,surgiram tensões onde não havia,apenas poucos momentos antes, enoutras zonas do sistema muscularapareceram também relaxamentos quenão estavam presentes. Além de tudoisso a imaginação do leitor começou atrabalhar mais intensamente, tornandoagora os seus desejos um pouco maisclaros. A curiosa maquinaria darecompensa, quimicamente e

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neurofisiologicamente falando, entrouem alerta completo, e o corpo começoua exibir alguns dos comportamentosque normalmente associamos aosestados de prazer. Perturbadorasmanifestações sem dúvida, todas elasmapeáveis nas regiões do cérebro quese preocupam com o corpo e com acognição. Em suma, pensar na meta doapetite causou emoções agradáveis eos correspondentes sentimentosagradáveis. O desejo tinha se instalado.

Nesse exemplo, a articulação sutilde apetites, emoções e sentimentos ébem evidente. Se a meta do apetitefosse permissível e consumável, asatisfação do apetite causaria aemoção de alegria e faria com que osentimento de desejo desse lugar aossentimentos de prazer e exultação. Se,por outro lado, o atingir da meta fosseimpedido, o sentimento final seria o defrustração, raiva ou cólera. No caso deo processo ficar suspenso durantealgum tempo, na região deliciosa dossonhos que sonhamos acordados, tudoacabaria em calma. Seria pena ter queacabar sem um cigarro meditativo, masa verdade é que não estamos dentro deum filme noir.

Será possível que a fome e a sedesejam assim tão diferentes do desejo

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sexual? Mais simples, sem dúvida, masnão realmente diferentes em matériade mecanismo. Essa é a razão, semdúvida, por que fome, sede e desejosexual podem se misturar tãofacilmente e por vezes compensar-semutuamente. A distinção principalentre esses estados tem a ver com amemória, com a maneira como arecordação e o arranjo permanente dasnossas experiências pessoais têm umpapel dominante na ocorrência dodesejo mais do que geralmente têm emrelação à fome ou à sede (mas éevidente que esse comentário não seaplica aos gastrônomos, ou aosconhecedores de vinhos ou àquelespara quem a fome resulta de umatragédia social). Seja como for, o objetodo desejo e as memórias pessoais quedizem respeito a esse objeto interagemmútua e abundantemente. As ocasiõespassadas de desejo, as nossasaspirações passadas, os nossosprazeres passados, reais ouimaginários, todos eles contribuempara que o desejo se projete de formaparticular na nossa mente.

Será que é possível descrever oamor romântico e as ligações afetivasnos termos biológicos que acabo deutilizar? Não vejo por que não, desde

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que a elucidação dos mecanismosfundamentais não seja levada ao pontode explicar desnecessária etrivialmente as nossas experiênciaspessoais e reduzir a suaindividualidade. E por certo possívelseparar a atividade sexual da paixão,graças ao estudo de dois hormôniosque o nosso corpo fabricacontinuamente, os peptideosocitocina ea vasopressina, que influenciam aatividade sexual e as ligações afetivasde certas espécies de roedores como osprairie voles. Quando se bloqueia aocitocina na fêmea antes do encontrosexual, o comportamento sexualmantém-se, mas não se estabelecenenhuma ligação afetiva com o macho.Numa palavra, sim ao sexo, não àfidelidade. O bloqueio da vasopressinano macho antes do encontro sexualtem uma consequência comparável. Oencontro sexual tem lugarnormalmente, mas o macho, quehabitualmente é fiel à fêmea, não sepreocupa de todo com ela e nãoprotege os rebentos.4 É claro que aatividade sexual e as ligações afetivasque estou descrevendo não sãoexatamente aquilo a que chamamosamor romântico, mas nem por issodeixam de fazer parte da sua

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genealogia.5

É possível fazer comentáriossemelhantes para o orgulho ou para avergonha, dois afetos cuja ligação aocorpo é frequentemente negada. Comoé possível imaginar uma posturacorporal mais distinta do que aquela dapessoa que está radiante de orgulho?Aquilo que irradia são os olhos, claro,bem abertos, bem focados no ato deincorporar o universo que os rodeia, umato de incorporação ajudado pelaelevação do queixo, pela expansão dopeito que se enche de ar sem qualquertimidez, pelo andar firme e solidamenteplantado no chão, apenas algumas dasalterações do corpo que podemosfacilmente observar. Que retrato bemdiferente é o da pessoa que acaba deser humilhada. Orgulho e humilhaçãotêm estímulos emocionalmentecompetentes que diferem,radicalmente, e pensamentossubsequentes que também diferem deforma radical. Mas têm igualmenteconfigurações corporais que são fáceisde distinguir e que constituem umaessência diferente para os respectivossentimentos.

Julgo que o mesmo se passa com oamor fraternal, o mais redentor detodos os sentimentos, um sentimento

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que depende, para a sua modelação,do arquivo autobiográfico único quedefine a nossa identidade. Seja comofor, o amor fraternal depende, comoEspinosa tão claramente entreviu, deocasiões de prazer que a contemplaçãode certos objetos pode nosproporcionar.

OS SENTIMENTOS NO CÉREBRO:NOVOS DADOS

A ideia de que os sentimentos estãoligados a mapeamentos neurais docorpo tem sido submetida a testesexperimentais. Recentementerealizamos uma investigação sobre ospadrões de atividade cerebral queocorrem em associação com ossentimentos de certas emoções.6

A hipótese que guiou o nossotrabalho indicava que, em paralelo coma ocorrência de sentimentos, há umrecrutamento significativo das áreas docérebro que recebem sinais de diversaspartes do corpo e que estão, por isso,em posição de mapear o estado doorganismo. Essas áreas cerebrais, queestão colocadas em diversos níveis dosistema nervoso central, incluem ocórtex do cíngulo, os córticessomatossensitivos (a ínsula e as

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regiões SII e SI), o hipotálamo; e váriosnúcleos do tegumento do troncocerebral (a parte posterior do troncocerebral).

Figura 3.2: As regiõessomatossensitivas principais, do níveldo tronco cerebral ao do córtexcerebral. Os sentimentos de emoçãorequerem a integridade de todas essasregiões, mas o papel que cada umadesempenha é diferente. Todas asregiões são importantes, mas algumasdelas (ínsula, córtex do cíngulo etronco cerebral) são mais importantesdo que as restantes. A ínsula pode bemser a mais importante entre todas.

Para testar essa hipótese, os meuscolegas Antoine Bechara, HannaDamásio e Daniel Tranel e eusolicitamos a cooperação de mais de

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quarenta pessoas. Nenhuma dessaspessoas jamais tinha sofrido de doençaneurológica ou psiquiátrica. A todosdissemos que o nosso intuito eraestudar os padrões de atividade dosseus cérebros durante o período emque tivessem a vivência de quatrosentimentos possíveis: felicidade,tristeza, medo ou raiva.

A investigação dependia da medidado fluxo sanguíneo em várias regiõesdo cérebro com o uso de uma técnicaconhecida como PET (em Portugal TEP, oque corresponde a tomografia poremissão de pósitrons). É bem sabidoque a distribuição do fluxo sanguíneoem diversas regiões do cérebro estáestreitamente correlacionada com ometabolismo dos neurônios dessaregião, e que o metabolismo da região,por seu turno, está correlacionado coma atividade local dos respectivosneurônios. Faz parte da tradição dessatécnica que os aumentos oudiminuições de fluxo sanguíneo que sãoestatisticamente significativos indicam,respectivamente, que os neurônios dadita região estavamdesproporcionadamente ativos ouinativos durante a execução de umadeterminada tarefa mental.

O aspecto mais difícil da nossa

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experiência consistia em encontraruma maneira de desencadear asemoções. Pedimos a cada um dosparticipantes que pensasse numepisódio emocional da sua vida, quefosse de grande intensidade e tivesse aver com felicidade, tristeza, medo ouraiva. A seguir pedimos a cada um dosindivíduos que refletisse sobre cadaepisódio específico, em detalhes, de talforma que pudesse recordar imagensdessas vivências passadas e quepudesse desse modo reviver e“reexecutar” essas emoções passadas.O uso desse tipo de memóriaemocional é corrente em certastécnicas de arte dramática, e foi comimenso alívio que verificamos quefuncionava perfeitamente na nossaexperiência. A maior parte dos adultosnormais tem tido vivências de episódiosemocionais desse tipo, e é curiosoconstatar que quase todos conseguemrecordar os pormenores dessasexperiências e reviver emoções esentimentos com uma intensidadesurpreendente.

Durante a fase pré-experimentaldeterminamos, para cada participante,qual era a emoção que eles podiammelhor reviver e reexecutar, e medimosdiversos parâmetros fisiológicos tais

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como o ritmo cardíaco e a condutânciacutânea durante o período darevivência. A experiência propriamentedita veio a seguir. Pedimos a cada umdos participantes que trabalhasse comuma só emoção de forma a quecomeçasse o processo imaginativo dorespectivo episódio. Cada um dosparticipantes devia fazer um pequenomovimento de um dedo da mão direitano momento em que começasse asentir a emoção, e foi só a partir dessemomento que começamos a recolheros dados da tomografia funcional.Dessa forma, a experiência poderiamedir a atividade cerebral durante operíodo de sentimento propriamentedito, excluindo assim as fases iniciaisdo processo durante as quais oestímulo emocionalmente competenteera recordado e a emoçãodesencadeada.

A análise dos dados forneceu umapoio claro para a nossa hipótese. Asáreas somatossensitivas que faziamparte da hipótese - o córtex do cíngulo,o córtex da ínsula, SII e SI, e os núcleosdo tegumento do tronco cerebral -mostraram um padrão nítido deativações ou desativaçõessignificativas.

Esse resultado indicava que o

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mapeamento de estados corporaistinha sido modificadosignificativamente durante o processodo sentimento. E tal comoesperávamos, esses padrões deatividade variavam segundo asemoções. Da mesma forma quesentimos como a conformação donosso corpo é diferente durante osentimento de alegria ou de tristeza,podíamos agora verificar que os mapascerebrais que correspondem a essesestados do corpo também eramdiferentes.

Figura 3.3: Mapa das regiões cerebraisativadas durante os sentimentos dealegria numa experiência com pet. Asduas imagens da direita mostram uma

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perspectiva mediana (interna) dohemisfério direito (em cima) e dohemisfério esquerdo (embaixo).Notam-se alterações significativas daatividade da região do cíngulo anterior(ac), do cíngulo posterior (pc), dohipotálamo (hyp),e do prosencéfalobasal (bf). Os quatro painéis daesquerda revelam seções do cérebronuma perspectiva quase horizontal. Ohemisfério direito está marcado com aletra R e o esquerdo com a letra L. É denotar a atividade muito significativa daregião da ínsula (in) e da região docíngulo posterior (pc).

Claro que foi agradável verificar queo sentimento de uma emoção estavade fato associado com alterações domapeamento cerebral do estado docorpo. Mas a importância desses dadosreside no fato de que apontavam, deforma segura e certa, para as zonascerebrais que devíamos estudar commais afinco. Esses novos resultadosindicavam, sem dúvida, que alguns dosmistérios da fisiologia dos sentimentospoderiam ser resolvidos pelo estudodos circuitos neurais das regiõessomatossensitivas e pelo estudo daneurofisiologia e neuroquímica desses

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circuitos.

Figura 3.4: Mapas cerebraisprovenientes da mesma experiência,mas correspondendo a sentimentos detristeza. Há atividade significativa daínsula (in), de novo em ambos oshemisférios e em mais de uma seção. Éde notar que o padrão das modificaçõesda ínsula, bem como na região docíngulo anterior, é diferente dasmodificações observadas na condiçãode alegria.

O nosso estudo trouxe tambémalguns resultados inesperados, masbem-vindos. Como eu disse, durante aexperiência tínhamos monitorado

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vários parâmetros fisiológicos, como oritmo cardíaco e a condutânciacutânea, o que nos permitiu descobrirque as alterações de condutânciacutânea precediam, em todos os casos,o sinal que indicava o começo da fasede sentimento. Em outras palavras, aatividade sísmica da emoção apareciasempre antes de cada participanteindicar com o movimento de um dedoque o sentimento da emoção estavacomeçando. Esse resultado mostravainequivocamente que a emoção vemprimeiro e o sentimento dela depois.

Um outro resultado sugestivo tem aver com o estado das regiões do córtexcerebral que se relacionam com opensamento e a imaginação,especificamente os cortices do lobofrontal no nível do polo frontal e dasregiões laterais. Não tínhamosformulado nenhuma hipótese quanto àforma como diferentes modos depensar acompanham diferentessentimentos. No entanto, os dados querecolhemos forçaram-nos a prestaratenção nesse problema. Na condiçãoexperimental de tristeza notamosdesativações muito significativas docórtex pré-frontal, enquanto nacondição experimental de felicidade,notamos a ativação das mesmas

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regiões. Em certa medida, essesresultados sugerem que os circuitosdessas regiões estavam menos ou maisativos, respectivamente, durante atristeza e a felicidade, um resultadoque está bem de acordo com a ideia deque a fluência das ideias está reduzidana tristeza e aumenta durante afelicidade.

DADOS ADICIONAIS

É sempre agradável encontrar dadosque favorecem as nossas preferênciasteóricas, mas é importante refrear oentusiasmo até encontrar evidênciacorroborativa no trabalho de outrosinvestigadores. Com efeito, asalterações de atividade nas regiõessomatossensitivas que tínhamosdescoberto no nosso estudo eram umaevidência sólida, e outrosinvestigadores encontrariam semdúvida dados semelhantes. E foi issomesmo que se passou. Num curtointervalo de tempo, numerosos dadoscompatíveis com os nossos têm sidoapresentados, todos tendo como base omesmo tipo de estudo de imagingfuncional. Os estudos de RaymondDolan e dos seus colegas sãoespecialmente pertinentes, visto que a

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sua finalidade era avaliar os nossospróprios resultados.7 Mas quer se tratedo prazer de comer chocolate ou dosdesvarios do amor, dos sentimentos deculpa de Clitemnestra ou da excitaçãoerótica, as regiões cerebraisidentificadas pelas nossas experiências,como o córtex da ínsula e o córtex daregião cingular, manifestam alteraçõessignificativas. Todas essas regiões setornam mais ou menos ativas, empadrões variados de acordo com aemoção do momento, dando apoio àideia de que os sentimentos estãocorrelacionados com a atividade dessasregiões cerebrais.8 As nossasexperiências mostraram também queas regiões do cérebro ligadas ao iníciodas emoções também tinhamalterações significativas, mas aconclusão principal dessas experiênciasé que os sentimentos estãoestreitamente ligados às alterações deatividade das regiõessomatossensitivas. Como veremosadiante, os sentimentos ligados àtoxicomania estão igualmente ligados aalterações significativas dessasmesmas regiões somatossensitivas.

É bem conhecida a ligaçãotriangular entre certos tipos de música,sentimentos de tristeza e alegria e

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sensações corporais de arrepio e “pelede galinha”. Por razões que não estãocompletamente esclarecidas, certosinstrumentos musicais, em especial avoz humana, e certas composiçõesmusicais evocam estados emocionaisque incluem alterações da pele taiscomo os arrepios e a palidez.9 Comrelação a esse assunto, um estudo deAnne Blood e de Robert Zatorre é deespecial interesse. Os autorespretendiam estudar os correlatosneurais dos estados de prazer causadospela audição de música capaz deevocar frisson,10 e encontraram essescorrelatos nas regiõessomatossensitivas da ínsula e docíngulo, cuja atividade se modificousubstancialmente quando osparticipantes escutavam peçasmusicais excitantes. Além disso, osinvestigadores puderam tambémcorrelacionar a intensidade dasativações cerebrais com a capacidadede “excitação” de cada uma das peçasmusicais. Em outras palavras, asativações cerebrais não estavamrelacionadas meramente com escutarmúsica, mas sim com escutar músicacom um valor emocional particular.Curiosamente, é também sabido que oaparecimento de arrepios musicais está

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ligado à presença de opióidesendógenos em certas regiõessomatossensitivas.11

Uma série de estudos sobre a dor étambém relevante para este tema.Kenneth Casey realizou umaexperiência particularmenteinteressante. Os participantes ou eramcolocados numa situação de dor nasmãos (provocada pela imersão dasmãos em água gelada) ou numasituação em que recebiam um estímulovibratório não doloroso.12 O scanningdessas duas situações mostrou quedurante a condição de dor haviaalterações notáveis de duas regiõessomatossensitivas ligadas aossentimentos de emoção: a ínsula e aregião sn. Na condição de vibraçãonotaram-se alterações na região si masnão na ínsula ou na região Sn. Ou seja,na condição de vibração não houvealterações nas regiões maisestreitamente ligadas aos sentimentosda emoção. Na fase seguinte daexperiência, os participantes tomaramfentanyl, um medicamento cuja ação seassemelha à da morfina e que atua emreceptores opióides de tipo mu. Nacondição de dor, o resultado dofentanyl foi reduzir, ao mesmo tempo, ador propriamente dita e a ativação da

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ínsula e da região sn. Na condição devibração, o fentanyl não teve nenhumefeito, nem na percepção da vibraçãonem na ativação da região si. Essesresultados revelam a separaçãofisiológica dos sentimentosrelacionados com a dor ou com oprazer, por um lado, e dos“sentimentos” relacionados comsensações táteis ou vibratórias. Aínsula e a região sn estão associadascom os sentimentos de dor e prazer,enquanto a região si está associadacom o tato ou a vibração. Como fiznotar em livros anteriores, aadministração de um medicamentocomo o Valium produz separaçõesfisiológicas semelhantes em relação àdor. O componente afetivo da dor éremovido pelo Valium, mas a sensaçãode dor mantém-se intacta. Vai-se apreocupação mas fica a dor.13

Foi também possível demonstrarque o sentimento de sede está tambémassociado a alterações significativas daatividade do córtex do cíngulo e docórtex da ínsula.14 O estado de sederesulta da detecção de um desequilíbriodo metabolismo da água e de um jogosutil de hormônios tais como avasopressina e a angiotensina ii emregiões do cérebro como o hipotálamo

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e a região PAG (a região cinzenta emtorno do aqueduto cerebral) cujo papelfisiológico é o de pôr em ação omecanismo do alívio da sede, umasérie muito bem coordenada desecreções hormonais e programasmotores.15

Quero poupar o leitor da descriçãodas consequências últimas dasatisfação da sede (sentir anecessidade de esvaziar a bexiga), masposso assinalar que tanto essesentimento de urgência como osentimento que se segue aoesvaziamento propriamente dito estãobem correlacionados com a atividadeneural no córtex do cíngulo.16 E antesde concluir esta seção, gostaria dedizer uma palavra sobre os apetites edesejos causados pela apreciação defilmes eróticos. Como seria de preverdado tudo o que escrevi acima, tanto ocórtex do cíngulo como o córtex daínsula estão significativamente ativosdurante a excitação erótica, e o córtexórbito-frontal e os núcleos da baseestão também envolvidos no processo.Nota curiosa no que diz respeito aosexo dos participantes: nos homens háigualmente um recrutamento notáveldo hipotálamo, que não se nota de todonas mulheres.17

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O SUBSTRATO DOS SENTIMENTOS

Quando David Hubel e TorstenWiesel começaram o seu célebretrabalho sobre a base neural da visão,nos anos 1950, não tinham nenhumaindicação sobre o tipo de organizaçãoque viriam a descobrir dentro do córtexvisual primário. Refiro-me,especificamente, ao tipo deorganização modular que nos permiteconstruir mapas de um objeto visual.18

Os mecanismos por trás dosmapeamentos visuais eram ummistério. Por outro lado, sabia-se, comcerteza, quais as regiões do cérebroonde se deveriam procurar essessegredos da visão: a cadeia de regiõescerebrais que começa na retina etermina nos córtices visuais. Quandopensamos, hoje em dia, naneurobiologia do sentimento,percebemos que só agora estamoschegando a um estado deconhecimento comparável ao daneurobiologia da visão quando Hubel eWiesel lançaram o seu programa. Temhavido até agora relutância em aceitarque o sistema somatossensitivopudesse ser substrato crítico para ossentimentos. É possível que essa

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relutância seja o último baluarte daresistência ao pensamento de WilliamJames, que, tal como é bem sabido ecomo apresentei nos livrosprecedentes, pensava que sentir umaemoção depende da percepção deestados corporais. A relutância de quefalo é especialmente estranha porquepressupõe a ideia de que o sentimentode emoções não teria uma basefisiológica comparável à da visão ou daaudição. Ou seja, enquanto a visão ou aaudição dependem de uma cadeia desinalização que liga pontos específicosdo corpo a mapas neurais do sistemanervoso central, os sentimentos dasemoções dependeriam sabe-se lá dequê. Os dados que temos apresentadocom base em estudos de doentesneurológicos e, mais recentemente,com base em estudos de imagingfuncional modificaram esse panorama.Não há dúvida de que as regiõessomatossensitivas estão envolvidas noprocesso de sentir as emoções e não hádúvida de que, nos seres humanos, ocórtex da ínsula e o do cíngulodesempenham papéis notáveis.

Os fatos que acabo de expor reúnemduas linhas importantes de evidência.Por um lado, a evidência que vem daanálise introspectiva de estados de

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sentimento e que nos diz que ossentimentos estão ligados atransformações do corpo. Por outrolado, a evidência da neurofisiologia eda imaging funcional que nos diz queas regiões somatossensitivas estãoativadas de forma significativa emestados de sentimento.19

Mas o valor dessa convergência dedados introspectivos e fisiológicos estáagora significativamente aumentadopor uma outra linha de evidência.Acontece que as fibras dos nervosperiféricos e as projeções neurais queconduzem informações sobre o estadointerior do corpo para o cérebro nãoterminam, como antigamente sepensava, no córtex cerebral que recebesinais ligados ao tato ou à vibração (ouseja, o córtex somatossensitivoprimário ou si). Essas fibras e projeçõesligadas ao interior do corpo terminamno córtex da ínsula, precisamente namesma região onde se encontramcorrelatos para os sentimentos deemoção.20

O neurofisiologista eneuroanatomista A. D. Craig temdescoberto dados importantes no quediz respeito a esse problema e temrecuperado uma ideia antiga daneurofisiologia que os livros de

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neurologia geralmente negam - a ideiade que temos acesso a um sentidomuito especial, o sentido do interior docorpo, ou seja, o sentidointeroceptivo.21

Em outras palavras, precisamente amesma região cerebral que, com basenas nossas propostas teóricas e nosdados sobre lesões cerebrais e imagingfuncional, está ligada aos sentimentosde emoção, está também ligada àrecepção dos sinais que maisdiretamente representam o conteúdodos sentimentos. Esses sinais estãoligados à temperatura do corpo, aosestados de dor, ao corar da pele, aosarrepios, à comichão, às sensaçõesviscerais e genitais, ao estado damusculatura lisa dos vasos sanguíneose das paredes das vísceras, ao pH local,ao nível de glicose, à osmolalidade e àpresença de agentes inflamatórios.Qualquer que seja a perspectiva, asregiões somatossensitivas aparecemcomo substrato crítico para ossentimentos de emoção, e regiõescorticais como a ínsula representam onível mais alto do sistema. Essaconclusão, que é hoje em dia mais doque uma mera hipótese, constitui aplataforma a partir da qual se podemlançar as etapas seguintes do inquérito

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sobre a neurobiologia dos sentimentos.

Figura 3.5A: Os sinais do corpo têmduas vias de transmissão para océrebro: a via humoral (em que, porexemplo, moléculas químicastransportadas pela corrente sanguíneaativam diretamente sensores neuraisna região do hipotálamo ou de órgãoscentrum-ventriculares tais como a áreapóstrema) e a via neural (na qual os

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sinais eletroquímicos são transmitidosem feixes nervosos pelos neurônios).Há duas origens para todos essessinais: o mundo exterior (sinaisexteroceptivos) e o mundo interior docorpo (sinais introceptivos). Em grandeparte, as emoções são modificações domundo interior e, por isso, os sinaissensitivos que constituem a baseprincipal dos sentimentos de emoçãosão sobretudo introceptivos. As origensprincipais desses sinais são as víscerase o meio interior, mas há também sinaisque provêm do sistema musculo-esquelético e vestibular.22

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Figura 3.5B: Um diagrama dasestruturas empenhadas na transmissãode sinais do meio interno e vísceras

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para o cérebro. Uma parte muitosubstancial desses sinais é transmitidaporfeixes nervosos apartirda medulaespinhal e do núcleo do nervo trigêmeo(no tronco cerebral). Em todos os níveisda medula espinhal e no núcleo dotrigêmeo, numa região conhecida pelonome de “Lâmina I” (situada no cornoposterior da massa cinzenta da medulaespinhal e na parte caudal do núcleo dotrigêmeo), a informação trazida porfibras nervosas periféricas do tipo C eAd (fibras finas, não mielinizadas, queconduzem sinais muito lentamente), élevada para o sistema nervoso central.Essa transmissão provém depraticamente todos os pontos do nossocorpo e diz respeito a parâmetros tãodiversos como o estado de contraçãodos músculos lisos das artérias, o fluxosanguíneo de uma determinada regiãodo corpo, a temperatura local, apresença de substâncias químicas queassinalam a lesão de tecidos do corpo,o nível do pH, do O2 e do CO2. Todaessa informação é subsequentementetrazida para um núcleo especializadodo tálamo (VMpo), e daí para mapasneurais das regiões posterior e anterior

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da ínsula. Em seguida, a ínsula enviasinais para o córtex pré-frontalventromedial e a região anterior docíngulo. A caminho do tálamo, essainformação é também enviada para onúcleo tractus solitarius (NTS), querecebe sinais do nervo vago (umagrande parte da informação queprovém das vísceras e que passainteiramente ao lado da medulaespinhal); para o núcleo parabraquial(PB); e para o hipotálamo (hipotal). OPB e o NTS, por seu turno, tambémenviam sinais para a ínsula através deum outro núcleo talâmico (VMb). É denotar que os feixes nervosos ligados aomovimento do corpo e à sua posição noespaço usam vias de transmissãointeiramente diferentes. As fibrasnervosas periféricas que conduzemesses sinais (Ab) são espessas econduzem sinais a alta velocidade. Ossetores da medula espinhal e do núcleodo nervo trigêmeo que são utilizadospara o movimento do corpo sãotambém diferentes, tal como o são osnúcleos do tálamo e as regiões docórtex para onde essa informação étrazida (córtex somatossensitivo I).

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QUEM PODE TER SENTIMENTOS?

Na tentativa de descobrir osprocessos básicos que permitem osentimento, podemos começar com asseguintes considerações. Em primeirolugar, uma entidade capaz de sentirprecisa ter não só um corpo mastambém meios para representar essecorpo dentro de si mesma. É possívelpensar em organismos complexos, taiscomo as plantas, que sem dúvidaalguma estão vivos e têm um corpo,mas que não têm meios de representarpartes ou estados desse corpo emqualquer forma de mapa cerebral. Asplantas reagem a diversos estímulos,como por exemplo a luz, o calor, apresença ou falta de água e de fontesde nutrição. Mas, tanto quantosabemos, as plantas não são capazesde sentir nenhuma dessas reações nosentido comum do termo. Emconclusão, a primeira necessidade queé preciso satisfazer para que hajasentimento é a presença de um sistemanervoso.

Em segundo lugar, esse sistemanervoso deve ser capaz de mapear asestruturas do corpo e os seus diversosestados e ser capaz também de

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transformar os padrões neurais dessesmapas em padrões mentais, ou seja,em imagens. Sem que este últimopasso tenha lugar, o sistema nervosopode muito bem mapear as alteraçõescorporais que constituem o substratodos sentimentos sem chegarpropriamente ao ponto de produzir oestado mental a que chamamossentimento.

Em terceiro lugar, a ocorrência deum sentimento no sentido tradicionaldo termo requer que os conteúdosdesse sentimento sejam conhecidospelo organismo, ou seja, a consciênciaé também uma necessidade básicapara a ocorrência do sentimento nosentido tradicional do termo. A relaçãoexata entre sentimento e consciência écomplicada. De uma forma geral, épossível dizer que não somos capazesde sentir se não estivermosconscientes. Por outro lado, é tambémverdade que os dispositivos fisiológicosdo sentimento fazem, eles mesmos,parte dos processos que dão origem àconsciência. Recordo aqui que a criaçãodo self depende, ela mesma, deestrutura fisiológica do sentimento, eque sem self não é possível conhecercoisa nenhuma, não é possível terconsciência. Essa dificuldade aparente

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é superada quando percebemos que osprocessos de sentimento têm diversosníveis e ramos. Alguns dos níveis eramos necessários para produzir umsentimento de emoção sãoprecisamente os mesmos que sãonecessários para produzir o proto-self,no qual o self propriamente dito e aconsciência se baseiam.

Em quarto lugar, os mapas cerebraisque constituem o substrato básico dossentimentos exibem padrões de estadocorporal que foram executados sob ocomando de outras regiões do mesmocérebro em que se exibem. Em outraspalavras, o cérebro de um organismoque sente é, ele mesmo, o criador dosestados corporais que evocamsentimentos quando esse organismoreage a objetos e situações comemoções ou apetites. Ou seja, nosorganismos que são capazes de sentir,o cérebro é uma necessidade dupla. Porum lado, o cérebro é necessário porquesó ele pode produzir mapas neurais doestado do corpo. Mas antes que essesmapas possam ser produzidos, océrebro necessita construir os estadosemocionais do corpo cujo mapeamentopermite os sentimentos.

Tais circunstâncias chamam aatenção para uma das razões que

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podem explicar o aparecimento dossentimentos na evolução. Oaparecimento dos sentimentos só foipossível quando os organismospassaram a possuir mapas cerebraiscapazes de representar estados docorpo. Por seu turno, esses mapascerebrais foram possíveis porque eramimprescindíveis para a regulaçãocerebral do estado do corpo, sem aqual a vida não pode continuar. Tudoisso significa que os sentimentosdependem não apenas da presença deum corpo e da presença de um cérebrocapaz de representar esse corpo, masdependem também da existênciaprévia de dispositivos de regulação davida que incluem os mecanismos deemoção e apetite. Sem a existênciaprévia de todos esses dispositivosregulatórios, é bem possível que nadahouvesse de interessante para sentir.Uma vez mais, encontramos na origemde todo esse processo a emoção e osseus alicerces. O sentimento não é, deforma alguma, um processo passivo.Em linhas gerais, a proposta que estouapresentando não é especialmentecomplexa, e por isso é hora decomplicar o processo. Como preâmbulo,começo por apresentar duas questões.

A minha hipótese é que aquilo que

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sentimos se baseia, na sua essência,num padrão de atividade de regiõescerebrais somatossensitivas. Se essasregiões somatossensitivas nãoestivessem disponíveis, nada seríamoscapazes de sentir, exatamente domesmo modo que não seríamoscapazes de ver coisa nenhuma seestivéssemos privados das regiõesvisuais do cérebro. As regiõessomatossensitivas têm a amabilidadede permitir os nossos sentimentos.Preparados como estamos por todos osdados que apresentei, é talvez possívelque essa hipótese pareça, subitamente,perfeitamente óbvia. Devo recordar, noentanto, que até há bem pouco tempoa ciência das emoções evitavacuidadosamente a ligação dossentimentos com qualquer sistemacerebral. Dir-se-ia que os sentimentosexistiam como uma espécie de vaporsuspenso à volta do cérebro.

E eis a primeira das questões: emdiversas circunstâncias, as regiõessomatossensitivas produzem um mapapreciso daquilo que está de fatoacontecendo no corpo, enquanto emoutras circunstâncias o mapa perde asua fidelidade. Por quê? Pela simplesrazão de que ou a atividade das regiõesque executam o mapeamento se

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modificou, ou os sinais vindos do corposão modificados. Mapeamento do corpoe estado do corpo deixam de coincidir.É legítimo perguntar se essa falta decoincidência compromete de algummodo a ideia de que aquilo quesentimos tem como base os mapas emregiões somatossensitivas cerebrais. Aresposta, como explicaremos adiante, éde que a falta de coincidência nãocompromete de todo a hipótese.

E eis a segunda questão que dizrespeito a William James. Ele propôsque os sentimentos são,necessariamente, uma percepção doestado do corpo propriamente ditoquando ele é modificado pela emoção.Uma das razões por que a conjetura tãoperspicaz de William James foi atacadae eventualmente abandonada durantequase um século tem muito a ver coma noção de que, de certo modo, fazercom que os sentimentos dependamnecessariamente da percepção diretados estados do corpo implicaria umconsumo exagerado de tempo e,inevitavelmente, uma perda de eficáciado processo. Na realidade, contudo,sentir leva o seu tempo. A experiênciamental de alegria ou tristeza envolveuma duração relativamente longa e nãoé de forma alguma mais rápida que as

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alterações corporais que vimosdiscutindo. Pelo contrário, dadosrecentes sugerem que a ocorrência dossentimentos requer vários segundos.23

No entanto, a objeção tem algummérito, visto que, se o sistemafuncionasse exatamente do modo comoWiliam James o concebeu, não seria tãoeficiente como é na realidade. Há cercade dez anos propus uma alternativapara o sistema desenhado por WilliamJames. A alternativa depende de umaideia principal: os sentimentos não têmorigem necessariamente no estado realdo corpo, mas sim no estado real dosmapas cerebrais que as regiõessomatossensitivas constroem em cadamomento. Uma vez apresentadas essasduas questões, podemos discutir aminha proposta exata para aorganização e funcionamento dosistema dos sentimentos.

ESTADOS DO CORPO: A REALIDADEE A SIMULAÇÃO

A todo momento, as regiõessomatossensitivas do cérebro recebemsinais com os quais constroem mapasdo estado do corpo. Podemos imaginaresses mapas como coleções decorrespondências entre todo e qualquer

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ponto do corpo e as regiõessomatossensitivas. Essa imagem nítidaperde, no entanto, parte da sua clarezaquando se toma conhecimento de queoutras regiões cerebrais podeminterferir diretamente na transmissãodos sinais do corpo para as regiõessomatossensitivas, ou interferirdiretamente na atividade das própriasregiões somatossensitivas. O resultadodessas “interferências” é curioso. Dadoque a única fonte de imagensconscientes sobre o corpo é constituídapelos padrões de atividade das regiõessomatossensitivas, acontece quequalquer interferência no mapeamentoacaba por criar mapas “falsos”.

Analgesia natural

Um bom exemplo de mapas falsosdo corpo ocorre em certascircunstâncias em que o cérebroimpede a passagem de sinais que têma ver com a dor (sinais nociceptivos). Océrebro consegue eliminar de formaeficaz a transmissão de sinais cujomapeamento levaria à experiência dador. Há razões interessantes quepodem explicar por que essemecanismo de representação falsateria prevalecido na evolução. Por

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exemplo, quando tentamos fugir de umdeterminado perigo é uma ótima ideianão sentir a dor que sobreviria no casode termos sido feridos pela fonte deperigo ou no caso de o próprio ato dafuga causar ferimentos.

Sabemos agora como é que essetipo de interferência ocorre. Núcleossituados no tegumento do troncocerebral, na região PAG de que falamosacima, enviam mensagens para osfeixes nervosos que normalmentetransmitiriam sinais da lesão detecidos, sinais que por sua vez levariamà experiência da dor. As mensagensvindas da região PAG interrompem apassagem desses sinais.24 O resultadodessa filtragem de sinais é a criação deum falso mapa do corpo. É evidenteque esse falso mapa continua a seralimentado por sinais do corpo. O “falsosentimento” que tem base nesse falsomapa continua a ser construído nalinguagem do corpo. Mas a verdade éque aquilo que realmente sentimos nãoé exatamente aquilo que teríamossentido sem a sagaz interferência daregião PAG. Essa interferência éequivalente a tomar uma alta dose deaspirina ou de morfina ou sersubmetido ao efeito de anestesia local,e é claro que o cérebro assume

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automaticamente o papel de médico. Apropósito, a metáfora da morfinaaplica-se particularmente bem porqueuma das variedades dessa interferênciausa moléculas parecidas com as damorfina mas que são geradas natural einternamente - peptídeos opióidescomo as endorfinas. Há várias classesde peptídeos opióides, todos elesfabricados pelo nosso próprio corpo e,por isso, mesmo chamados de“endógenos”. Os peptídeos opióidesincluem as endomorfinas, a encefalinae a dinorfina, além das endorfinas.Essas moléculas se encaixam emclasses específicas de receptores, emcertos neurônios de certas regiões docérebro. É curioso pensar que, em casode necessidade, a natureza nosadministra o mesmo tratamento para ador que o médico receita para o doenteque sofre.

Basta olhar à nossa volta eencontramos provas de todos essesmecanismos. Aqueles dentre nós queestão habituados a falar em público,atores ou conferencistas, já tiveram porcerto a experiência de ser obrigados aatuar mesmo quando estão doentes.Nessas circunstâncias, é bem provávelque tenham notado o estranho e súbitodesaparecimento dos sintomas físicos

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no momento preciso em que entram nopalco. A sabedoria dos séculos atribuiesse milagre “à adrenalina que protegequem quer que atue em público”, e anoção de que uma molécula química éresponsável por esse efeito éperfeitamente válida. Mas essa noçãonada nos diz sobre o ponto onde amolécula produz os seus efeitos ou arazão por que pode produzir essesefeitos. Julgo que aquilo que aconteceem tais circunstâncias é umamodificação altamente conveniente domapeamento verídico do estado docorpo. Essa modificação requer açõesde certas regiões cerebrais e envolvecertas moléculas químicas, embora aadrenalina provavelmente não seja aprincipal. Os soldados empenhados emcombate também modificam os mapasdo corpo que lhes revelariam dor emedo. Sem tais modificações os atosde heroísmo seriam talvez menosprováveis. Se a possibilidade de taismodificações não tivesse sido incluídano menu dos nossos cérebros, é bempossível que a evolução tivesse jáacabado com a forma de nascer a quechamamos parto em favor de umavariedade menos dolorosa dereprodução.

É bem provável que certas

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condições psicopatológicas façam usodesse mecanismo normal. As chamadasreações histéricas ou de conversão,que permitem aos doentes não sentiruma parte do corpo ou não ser capazde a mover, podem ser decorrentes deuma alteração transitória mas radicaldos mapas corporais. De um modogeral, as doenças psiquiátricas ditas“somatoformes” poderiam serexplicadas com base nessa ideia. Apropósito, uma simples variação nessesmecanismos poderia levar à supressãoda recordação de situações que nopassado tivessem causado grandeangústia.

Empatia

É bem provável também que océrebro possa simular certos estadosemocionais do corpo, internamente,como acontece no processo em que aemoção de “simpatia” se transforma nosentimento de “empatia”. Imagine oleitor, por exemplo, que acabam de lhecontar um acidente horrível em quealguém bem conhecido ficougravemente ferido. Durante algunsmomentos o leitor pode sentir a dor ouaté a náusea que representa bem, nasua própria mente, a possível dor e

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náusea da pessoa em questão. Durantealguns momentos, o leitor sente comose fosse a vítima, e o sentimento serámais ou menos intenso dependendo dadimensão do acidente e da sua relaçãocom o acidentado. Descrevi omecanismo necessário para produziresse tipo de sentimento há mais deuma década com o título de “como-se-fosse-o-corpo” (“as-if-bodyloop”-literalmente, alça corpórea virtual). Omecanismo do “como-se-fosse-o-corpo”requer uma simulação interna queocorre no cérebro e que consiste numamodificação rápida do mapeamento docorpo. Essa simulação ocorre quandocertas regiões cerebrais, como oscórtices pré-frontais/pré-motores,enviam sinais diretos para as regiõessomatossensitivas. A existência e alocalização de neurônios capazes derealizar essa tarefa está hoje bemestabelecida. Esses neurônios, cujapresença foi identificada no córtexfrontal tanto de macacos como deseres humanos - os “neurônios-espelho” - podem levar o nossocérebro, por exemplo, a simularinternamente o movimento que outrosorganismos realizam no seu campo devisão.25 Esse tipo de simulação permiteuma antevisão de movimentos que

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podem vir a ser necessários para acomunicação com o indivíduo cujosmovimentos serão “espelhados”. Creioque o mecanismo “como-se-fosse-o-corpo” utiliza uma variante deneurônios-espelho para a suaexecução.

O resultado da simulação direta deestados do corpo em regiõessomatossensitivas é semelhante ao queresulta da filtragem de sinais vindos docorpo para o cérebro. Em ambos oscasos o cérebro criamomentaneamente uma série demapas do corpo que não correspondeexatamente à realidade corrente dessecorpo. O cérebro utiliza os sinais vindosdo corpo para esculpir um estadoparticular do corpo como se essessinais não passassem de argila. Aquiloque sentimos nesses momentos baseia-se numa construção falsa, e não noverdadeiro estado do corpo.

Um estudo recente de Ralph Adolphtem a ver diretamente com a simulaçãode estados do corpo.26 O estudo tevecomo finalidade investigar a empatia, efoi levado a cabo em cem doentesneurológicos com lesões em diversoslocais do córtex cerebral. Pediu-se aesses doentes que participassem deuma tarefa ligada à empatia. Cada

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participante observava fotografias depessoas inteiramente desconhecidas,cada uma das quais exibia uma certaexpressão emocional. A tarefa consistiaem indicar o presumível sentimentoque cada um dos desconhecidos estariaexperimentando. Os investigadorespediram a cada um dos participantesque se colocasse na mente dodesconhecido e adivinhasse o seuestado de espírito. A hipótese quepretendíamos testar era a de que osdoentes com lesões nas regiõessomatossensitivas do córtex cerebralnão seriam capazes de realizar essatarefa de modo normal.

A maior parte dos doentescomportou-se precisamente da mesmamaneira que os participantessaudáveis. Dois grupos de doentes, noentanto, comportaram-se de formaanormal. O primeiro grupo eraconstituído por doentes com lesões doscórtices visuais, especialmente doscórtices visuais do hemisfério direito,na sua região ventral. Essa região docérebro é responsável pela apreciaçãode configurações visuais. Uma lesãonessa região implica que as expressõesfaciais apresentadas nas fotografiasnão podiam ser apreciadas no seu todo,mesmo quando a percepção visual das

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fotografias não estava alterada em simesma. Nada de surpreendente,portanto, no fato de que esses doentesnão tivessem um comportamentonormal na tarefa experimental.

O outro grupo de doentes era muitomais interessante. Consistia emdoentes com lesões na região doscórtices somatossensitivos direitos,especificamente a região que inclui aínsula, o córtex SII e o córtex si dohemisfério cerebral direito. Trata-se dasregiões cerebrais onde o cérebroprovavelmente realiza o nível maisintegrado do mapeamento do corpocerebral. Na ausência dessas regiõesnão é fácil ao cérebro simular qualquerestado do corpo. O cérebro perde,assim, o teatro onde seria possívelrepresentar variações sobre o tema docorpo.

É especialmente interessante notarque os doentes com lesões simétricasmas colocadas no hemisfério cerebraldireito não mostraram nenhumaperturbação. Os doentes com lesões docomplexo somatossensitivo esquerdocomportaram-se na tarefa de empatiade modo inteiramente normal. Acombinação desses dados demonstra,uma vez mais, que os córticessomatossensitivos direitos são

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“dominantes” no que diz respeito à“integração” dos mapas do corpo. Essaé também a razão por que as lesões docomplexo somatossensitivo direito têmsido consistentemente associadas adefeitos de emoção e sentimento, bemcomo a condições tais como aanosognosia e o “neglect”, cujomecanismo depende de uma perda daimagem real do corpo.27 A assimetriaque se nota entre o complexosomatossensitivo esquerdo e o direitonos seres humanos é devida, muitoprovavelmente, ao fato de que ocomplexo somatossensitivo esquerdo énecessário para apoiar os processos delinguagem.

Há vários outros dados quecorroboram a ideia que estamosapresentando sobre empatia. É o caso,por exemplo, de estudos em queindivíduos normais, cuja tarefa eraobservar fotografias com expressõesemocionais, ativavam de forma sutildiversos grupos musculares do seupróprio rosto, precisamente os gruposmusculares que seriam necessáriospara executar as expressõesemocionais que estavam observandonas fotografias. Os participantes não sedavam mesmo conta de que osmúsculos do seu próprio rosto estavam

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se preparando, como se se tratasse deum espelho, para executar asexpressões da fotografia caso fossenecessário. Embora os participantesnão tivessem consciência desse fato,foi possível registrar alteraçõeseletromiográficas nos músculos dorosto.28

Em conclusão, as áreassomatossensitivas constituem umaespécie de teatro onde podem ter lugarrepresentações de estado do corpo,reais ou falsos.

ALUCINAR O CORPO

É possível ter alucinação de certosestados do corpo e é possível tambémimaginar como tal possibilidadecomeçou na história da evolução.Durante algum tempo o cérebro teriasido simplesmente capaz de produzirmapas verídicos do estado do corpo.Mais tarde teriam surgido outraspossibilidades, como por exemplo aeliminação temporária demapeamentos relacionados com a dor.Mais tarde ainda teria havido apossibilidade de simular estados de dor.Essas novas possibilidades traziamconsigo evidentes benefícios, e osindivíduos que tiveram acesso a esses

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benefícios puderam prosperar esobreviver. E assim se mantiveram asnovas possibilidades no respectivogenoma. Como acontece com outrosdispositivos valiosos da nossa natureza,certas variações patológicas podemcorromper esse valor, o que ocorre porcerto no caso da histeria e de outrascondições somatoformes.

Um dos valores práticos dessesmecanismos de alucinação é a suavelocidade. O cérebro pode produzirmodificações dos mapas do corpomuito rapidamente, numa escalatemporal de centenas de milissegundosou menos, um intervalo de temponecessário para que axônios curtos emielinados transmitam sinais da regiãodo córtex pré-frontal para as regiõessomatossensitivas que se encontram auns escassos centímetros da regiãopré-frontal. Como é sabido, o cérebroprecisa de alguns segundos parainduzir modificações do corpopropriamente dito. É necessário cercade um segundo para que axônioslongos e por vezes sem mielinatransmitam sinais a partes do corposituadas a várias dezenas decentímetros do cérebro. O intervalo detempo necessário para que umhormônio seja liberado da corrente

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sanguínea e comece a produzir os seusefeitos é também da ordem desegundos. A presença de mecanismosde simulação permite explicar por que,em tantas circunstâncias, somoscapazes de ter consciência da relaçãoprecisa entre certos sentimentos sutis eos pensamentos que lhes deramorigem ou que lhes são consequentes.A alta velocidade dos mecanismos“comose-fosse-o-corpo” aproxima, notempo, o pensamento e o sentimento.Essa aproximação não seria tão fácil seo sentimento dependesse puramentede alterações no corpo propriamentedito.

É importante notar que asalucinações não têm valor adaptativoquando ocorrem em sistemassensitivos que nada têm a ver com ocorpo. As alucinações visuais, porexemplo, são altamente perturbadoras,e o mesmo se passa com asalucinações auditivas. Não trazemnenhuma vantagem para os doentesneurológicos ou psiquiátricos quesofrem suas consequências. O mesmose pode dizer das alucinações do olfatoe do paladar que ocorrem em doentesepilépticos. Pelo contrário, asalucinações do estado do corpo, comexceção daquelas que acontecem nas

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condições psicopatológicas de quefalamos acima, são dispositivosvaliosíssimos para a mente normal.

A QUÍMICA DO SENTIMENTO

É sabido que certos medicamentospsicotrópicos transformam ossentimentos de tristeza ou deincapacidade em sentimentos decontentamento e segurança. Muitoantes da fase Prozac da nossa vidacultural, sabia-se que o álcool, osnarcóticos, os analgésicos e hormônioscomo os estrógenos e a testosteronaalteravam, sem dúvida, os sentimentos.É claro que a ação dessas substâncias édevida à estrutura das suas moléculas.Mas como é que essas moléculasproduzem os seus notáveis efeitos? Aexplicação que é mais correntementeinvocada declara que essas moléculasatuam em certos neurônios de certasregiões do cérebro e assim produzem odesejável resultado. Mas numaperspectiva neurobiológica essasexplicações soam a magia negra.Tristão e Isolda bebem a poção do amore pronto, na cena seguinte já estãoapaixonados. Não se percebe de todocomo é que o atracar da substância Xaos neurônios da região Y consegue

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levar à paixão ou suspender a angústia.Não se entrevê o valor explicativo dedizer que jovens adolescentes podemse tornar violentos ou sexualmentepromíscuos quando a testosteronaaumenta na corrente sanguínea. Háuma falha grave na cadeia explicativa,qualquer coisa misteriosa que ocorreentre a presença da molécula detestosterona e a presença de um certocomportamento adolescente.

Essa falha grave provém do fato deque a origem dos estados desentimento, a sua natureza mental, nãotem sido conceitualizada em termosneurobiológicos. O nível molecular daexplicação faz parte da solução doproblema mas não alcança exatamenteaquilo que pretendemos explicar. Osmecanismos moleculares que resultamda introdução de uma certa droga nosistema explicam apenas o princípio dacadeia de processos que finalmentelevam à alteração do sentimento, masnão explicam os processos que levamao estabelecimento desse sentimento.Ou seja, na explicação corrente nada sediz sobre as funções neurais que sãoalteradas por uma certa droga e cujoresultado é a alteração dossentimentos. E pouco ou nada se dizsobre os sistemas que apóiam essas

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funções neurais. Sabemos, pelo menosem parte, da localização de receptoresneuronais aos quais certas moléculasquímicas podem se ligar. Por exemplo,sabemos que os receptores opióides daclasse mu estão localizados em regiõesdo cérebro como o córtex do cíngulo, esabemos que os opióides, tantoexternos como internos, atuam atravésdesses receptores.29

Sabemos também que a ligação demoléculas a esses receptores leva osrespectivos neurônios a mudar o seucomportamento. Quando os opióides seligam aos receptores mu de certosneurônios corticais, os neurônios daregião ventrotegmental do troncocerebral entram em atividade e levamà liberação de dopamina em estruturascomo o núcleo acumbens doprosencéfalo basal. Por seu turno, umcerto número de comportamentos derecompensa ocorre então, e finalmenteum sentimento de prazer ocorretambém.30 Contudo, os padrões neuraisque formam a base para ossentimentos não ocorrem somente nosneurônios nas várias regiões cerebraisque acabamos de mencionar. Maisimportante ainda, os padrões neuraisque constituem os sentimentos nãoocorrem de todo nesses neurônios.

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Esses padrões neurais, aqueles queconstituem o substrato mais imediatode um estado de sentimento, ocorremnuma outra série de estruturascerebrais que inclui, por exemplo, nonível do córtex cerebral, a região daínsula. Logo, os padrões neurais queestão mais imediatamente ligados aossentimentos acabam por ser umaconsequência relativamente remota daação inicial de certas moléculasquímicas e requerem toda uma cadeiade processos intermediários.

Se a minha hipótese for correta, e seos sentimentos tiverem origem empadrões neurais que mapeiam os maisvariados aspectos do estado do corpo,então será também verdade que assubstâncias químicas que alteram onosso humor podem produzir a suamagia através de uma alteração dospadrões de atividade das regiõessomatossensitivas. Imagino que essaalteração dependa de três mecanismosdiferentes, que podem trabalharseparadamente ou em conjunto. Ummecanismo interferiria na transmissãode sinais vindos do corpo. Um outromecanismo estaria encarregado decriar um padrão de atividade particulardentro dos mapas do corpo. E umterceiro mecanismo atuaria por meio de

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uma mudança direta do estado docorpo propriamente dito.

AS DROGAS DA FELICIDADE

As frases dos toxicômanos contêmreferências frequentes às alterações docorpo que ocorrem durante os picos dadroga e constituem mais uma linha deevidência no que diz respeito à relaçãoentre corpo e sentimento. Vale a penaanalisar algumas dessas declaraçõestípicas:

O meu corpo estava cheio deenergia e ao mesmo tempocompletamente relaxado.

É como se todas as células e ossos

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do meu corpo estivessem dançandocom prazer.

Notei uma certa propriedadeanestésica... uma sensaçãogeneralizada de calor.

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É como se tivesse tido um orgasmono corpo inteiro.

A sensação de calor erageneralizada.

Uma espécie de banho quente, tão

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agradável que me impedia de falar.

Era como se a cabeça estivessepronta a explodir... uma sensação decalor agradável e um sentimento derelaxamento intenso.

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É como aquilo que se sente depoisdo sexo, mas melhor.

Um êxtase do corpo.

É como se tivesse sido envolvido nomais agradável, quente e confortável

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cobertor.

Senti um calor instantâneo no corpo,especialmente no rosto, que estavamuito quente.31

Todas essas declarações descrevem

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alterações do corpo - relaxamento,calor, anestesia, analgesia, libertaçãoorgástica, energia. Do ponto de vistafisiológico não faz nenhuma diferençase essas alterações ocorrem de fato nocorpo e são transmitidas aos mapassomatossensitivos, se são fabricadasnesses mapas ou se ambos osmecanismos estão envolvidos noprocesso. Todas essas sensações sãogeralmente acompanhadas por umconjunto de pensamentos bemsintonizados com a natureza dassensações - pensamentos que sereferem a acontecimentos positivos, auma capacidade aumentada de“compreensão”, a um aumento dopoder físico e intelectual, a umaremoção de limites e preocupações.Curiosamente, as drogas que levaram aessas declarações são diferentes. Asprimeiras declarações estãorelacionadas com a cocaína, asseguintes com o ecstasy e as últimascom a heroína. O álcool, como se sabe,produz efeitos do mesmo tipo emboramais modestos. O fato de que todasessas declarações partilham o corpo étanto mais notável quanto se sabe queas substâncias que causaram essesestados são quimicamente diferentes eatuam em sistemas diferentes do

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cérebro. Por exemplo, a cocaína e aanfetamina atuam através dadopamina. Mas a variante daanfetamina que está na moda, oecstasy, uma molécula de nomecomplicado conhecida pelas iniciaisMDMA ou metilenodioximetanfetamina,atua através da serotonina. Por outrolado, a heroína e outras substânciasparecidas com o ópio atuam nosreceptores mu e em receptores delta. Oálcool atua através de receptores GABAA e através de receptores do glutamatodo tipo NMDA.32

Devo notar também que orecrutamento sistemático das regiõessomatossensitivas, que descrevi nasexperiências ligadas aos sentimentosnaturais, tinha também em conta osestudos em que os participantes têmsentimentos de emoção depois deusarem heroína, cocaína, maconha,ecstasy, ou também quandosimplesmente necessitam de uma dosede cada uma dessas drogas em estadosde craving [ “fissura”]. De novo, ocórtex do cíngulo e a ínsula são asregiões mais frequentementerecrutadas.33 A distribuição anatômicados receptores nos quais essasdiferentes substâncias atuam éextremamente variada e diferente para

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cada uma das drogas. E, no entanto, ossentimentos que as várias drogasproduzem são semelhantes. É legítimopensar que, de certo modo, cada umadessas moléculas conduz à realizaçãode certos padrões de atividade dasregiões somatossensitivas. Em outraspalavras, os sentimentos propriamenteditos resultam de alterações numsistema partilhado por todas essasdrogas. Os sentimentos resultam decadeias de ação diferentes iniciadaspor cada uma dessas substâncias numponto diferente do cérebro.

Dado que todos os sentimentoscontêm como ingrediente fundamentalum componente de dor ou prazer, edado que as imagens mentais a quechamamos sentimentos têm origem emmapeamentos do estado do corpo, élegítimo propor que a dor e as suasvariantes correspondem a uma certaconfiguração dos mapas do estado docorpo.

Do mesmo modo, o prazer e as suasvariantes são o resultado de um certomapeamento do corpo. Sentir dor ouprazer resulta da presença de umacerta imagem do corpo tal como érepresentada, em certo momento, emmapas do corpo. A morfina ou aaspirina podem alterar essa imagem. O

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uísque ou o ecstasy também. E osanestésicos. E certas formas demeditação. E o desespero. E aesperança.

TÊM A PALAVRA OSRECALCITRANTES

É possível que neste ponto da nossadiscussão alguns leitores continueminsatisfeitos e me digam que ainda nãoconsegui explicar as verdadeiras razõespor que sentimos aquilo que sentimos.Claro que eu poderia responder quesentimos aquilo que sentimos porque anatureza assim decide, mas essaresposta não seria muito produtiva.Vale a pena tentar ir mais longe eindicar com tanta especificidade quantopossível qual é a natureza íntima dosmapeamentos que contribuem para osentimento.

Habitualmente os mapeamentos docorpo que se traduzem em sentimentossão concebidos como representaçõesvagas e grosseiras do estado dasvísceras ou dos músculos. Mas não ébem verdade. É importante perceberque praticamente todas as regiões docorpo, pequenas ou grandes, estãosendo mapeadas a cada momento,visto que todas as regiões do corpo

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contêm terminações nervosas quepodem enviar sinais ao sistemanervoso central e indicar o estado dascélulas vivas que constituem essaregião. A sinalização é complexa. Nãose trata de “zeros” ou de “uns”indicando muito simplesmente se umacélula está trabalhando ou em repouso.Os sinais são extremamente variados.Por exemplo, as terminações nervosaspodem indicar a magnitude daconcentração de oxigênio ou de dióxidode carbono na vizinhança de umadeterminada célula. Podem indicar ovalor do pH do banho químico no qualcada célula viva está imersa. Podemindicar a presença de compostostóxicos vindos do interior ou do exteriordo corpo. Podem também detectar oaparecimento de moléculas químicasgeradas internamente, tais como ascitocinas, moléculas que indicam osofrimento de uma célula viva etraduzem a ameaça de doença oumorte.

Além disso, as terminações nervosaspodem também indicar o estado decontração das fibras musculares, tantodas fibras musculares lisas queconstituem a parede das artérias dequalquer parte do corpo como dasfibras musculares estriadas que

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constituem os músculos dos nossosmembros e do rosto. As terminaçõesnervosas indicam ao cérebro aquilo quea pele ou o intestino fazem em cadamomento. Mas o cérebro recebe aindamais em matéria de informações docorpo. Em paralelo com os sinaisenviados pelas fibras nervosas, aconcentração de moléculas químicas nacorrente sanguínea também enviasinais para o cérebro utilizando umarota não neural.

Por exemplo, na parte do cérebroconhecida como hipotálamo, grupos deneurônios lêem diretamente aconcentração de glicose (açúcar) ouágua presentes na corrente sanguíneae atuam de acordo com essa leituraproduzindo uma pulsão ou apetite. Adiminuição da concentração de glicoseleva a um estado de fome e ao início decomportamentos que visam a ingestãode alimentos e eventualmente àcorreção do nível baixo de glicose. Damesma forma, uma diminuição daconcentração de água leva à sede e àretenção de líquidos. Os rins travam aeliminação da água e a respiração éalterada em paralelo de forma a quemenos água se perca no ar querespiramos. Várias outras regiões dosistema nervoso central se comportam

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como o hipotálamo, nomeadamente aárea postrema do tronco cerebral e osórgãos subfórnicos junto aosventrículos laterais do telencéfalo.Convertem sinais químicos trazidospela corrente sanguínea em sinaisneurais transmitidos ao longo deprojeções nervosas dentro do cérebro.O resultado é o mesmo: o cérebromapeia o estado do corpo.

O detalhamento desse mapeamentolocal e global, nervoso e químico, éverdadeiramente espantoso. Emseguida, com base em numerosasamostragens do estado do corpo, océrebro destila, no sentido literal dotermo, mapas integrados do estado docorpo. Estou convencido de que quandodizemos que nos sentimos bem ou mal,a sensação de que nos damos contatem origem na integração dessasamostragens, talvez especialmentedaquelas que têm a ver com o perfilquímico do meio interno. Não é de todocorreto dizer, como tantas vezesdizemos, que os sinais que provêm dotronco cerebral e do hipotálamo nuncase tornam conscientes. Pelo contrário,julgo que uma parte desses sinais entracontinuamente na consciência sob umaforma particular, a forma desentimentos de fundo. E se é verdade

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que os sentimentos de fundo muitasvezes nos escapam, também é verdadeque em numerosas circunstânciasatraem a atenção e dominam a nossaconsciência. Basta apenas pensar naforma como nos sentimos quando omalestar da doença nos invade ouquando a energia da saúde plena nosfaz sentir no topo do mundo.

É hora de dar a palavra a um novogrupo de recalcitrantes que selevantam para apresentar o seguinteproblema: a cabina de pilotagem dosaviões modernos está cheia desensores para o corpo do avião,sensores que se parecem com aquelesque acabo de descrever. Será que oavião também pode sentir? E, se podesentir, o que é que sente?

Qualquer tentativa de assemelharaquilo que acontece num organismovivo complexo àquilo que acontecenuma dessas maravilhas daengenharia, por exemplo o Boeing 777,é extremamente arriscada. É bemverdade que os computadores de bordodos aviões mais modernos incluemmapas que fazem a monitoração dediversas funções do avião, de momentoa momento, por exemplo a posição daspartes móveis das asas, a posição doestabilizador horizontal e do leme,

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diversos parâmetros da operação dosmotores, consumo de combustível ediversos outros. As variáveisambientais, como a temperatura do ar,a velocidade do vento e a altitude, sãotambém monitoradas a todo instante.Alguns dos computadores de bordointer-relacionam toda essa informaçãode forma contínua e levam à execuçãode correções inteligentes nocomportamento do avião. Asemelhança com os mecanismoshomeostáticos do nosso corpo éevidente. Mas não são menos evidentesas enormes diferenças entre a naturezados mapas presentes no cérebro de umorganismo vivo e os mapas do“cérebro” do Boeing 777.

Em primeiro lugar, há uma diferençaque tem a ver com a escala dopormenor em que as estruturas eoperações são representadas. Osdispositivos de monitoragem do aviãonão passam de uma versão tímida dosdispositivos de monitoração do sistemanervoso central de um organismo vivo.O seu nível de monitoraçãocorresponde, no nosso corpo, àindicação da posição das nossaspernas, cruzadas ou não, à medição doritmo cardíaco e da temperatura e àindicação aproximada de quantas horas

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de energia temos disponíveis até apróxima refeição. Claro que tudo isso ébem importante para a sobrevida, masnão é suficiente. Devo esclarecer quenão tenho nenhum intuito deamesquinhar o magnífico Boeing 777. Afinalidade do meu argumento édemonstrar que o 777 necessita demuito mais monitoração do que aquelaque os seus computadores lheoferecem e que essa monitoração estáligada aos pilotos vivos que têm aresponsabilidade de conduzir o avião.Precisamente o mesmo argumento quese aplica aos aviões espiões sem-pilotoque hoje em dia sobrevoam o mundointeiro. A “vida” desses aviões dependedo controlador da missão.

Alguns dos componentes de umavião são “animados”, como o leme, osaerofólios, os freios aerodinâmicos ou otrem de aterrissagem, mas nenhumdesses componentes está “vivo” nosentido biológico do termo. Nenhumdesses componentes é feito de célulasvivas cuja integridade depende dapresença de oxigênio e de nutrientes.Pelo contrário, cada uma das parteselementares de um organismo, cadauma das células de um corpo, tem maisdo que animação: tem vida. E aquichegamos ao ponto principal: cada uma

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das células de organismo vivoindividual é, ela própria, um organismoindividual, com uma data denascimento, um ciclo de vida, uma dataprovável de morte. Cada célula é umorganismo que necessita velar pela suaprópria vida, e cuja sobrevida dependedas instruções do seu próprio genoma edas circunstâncias do seu ambiente. Osdispositivos de regulação da vida quedescrevi anteriormente estão presentesem todos os níveis do nosso organismo,em todos os seus sistemas, em todosos seus órgãos, em todos os seustecidos, em cada uma das células. Qualé então a “partícula” elementar de umorganismo vivo? A resposta é simples:uma célula viva. A partícula elementarcrítica não é o átomo.

Nada há de verdadeiramenteequivalente a essa célula viva nastoneladas de alumínio, ligas compostas,plástico, borracha e silício queconstituem o maravilhoso pássaroBoeing. Há quilômetros e quilômetrosde fios elétricos, milhares de metrosquadrados de ligas metálicas, milhõesde porcas e parafusos na pele do avião.É bem verdade que todos essescomponentes são feitos de matéria eque essa matéria é feita de átomos. Nonível da sua microestrutura, a carne

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humana também é feita de átomos.Mas a matéria física elementar do aviãoé inanimada, os seus componentes nãosão feitos de matéria viva possuída deuma herança genética, de um destinobiológico e de um risco de vida. Mesmoque quiséssemos levar a metáfora aoseu extremo e dizer que oscomputadores de bordo se“preocupam” com a sobrevida doavião, uma preocupação que pode atécorrigir a manobra errada de um pilotodistraído, a diferença fundamentalentre o avião e o organismo vivo éinescapável. Os computadores debordo preocupam-se com a execuçãodo voo. Os nossos cérebros e a suarespectiva mente preocupam-se com aintegridade do nosso corpo vivo porinteiro, e cada um dos subcomponenteslocais desse corpo vivo preocupa-se,por sua vez, com a sua própria vidalocal.

Essas distinções são raramentefeitas quando organismos vivos emáquinas inteligentes são comparados.Devo sublinhar que não pretendo deforma alguma menosprezar o valor dascriaturas artificiais que Gerald Edelmanou Rodney Brooks têm criado nos seuslaboratórios. Essas criaturas artificiaispodem aprofundar a nossa

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compreensão de certos processoscerebrais e podem também tornar-secomplementos extremamente úteis donosso equipamento cerebral. Apenaspretendo notar que as criaturasartificiais que hoje nos rodeiam nãotêm vida no sentido preciso em que nóstemos, e que, por isso mesmo, éimprovável que sintam da maneira quesentimos.34

E devo sublinhar também que ascriaturas artificiais do futuro podembem vir a ser diferentes nesse domínio.

Gostaria ainda de chamar a atençãopara algo curioso e tambémcronicamente esquecido: os sensoresnervosos que transmitem informaçõesdo corpo para o cérebro e os núcleos efeixes nervosos que mapeiam essainformação são, eles próprios, feitos decélulas vivas, sujeitos ao mesmo riscode vida de qualquer outra célula, eprecisam, eles também, de regulaçãohomeostática. Essas células nervosasnão são observadores passivos eimparciais. Não são espelhos inocentesà espera de refletir o que quer queseja, ou lousas limpas à espera de quealguém nelas inscreva uma fórmulamágica. Os neurônios encarregados desinalizar e mapear têm qualquer coisaa dizer acerca daquilo que sinalizam e

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mapeiam. É evidente que as atividadesdo corpo dão uma certa forma aomapa, lhe conferem uma certaintensidade e perfil temporal econtribuem no seu conjunto para aquiloque sentimos. Mas uma parte daqualidade daquilo que sentimosdepende provavelmente do desenhoíntimo dos próprios neurônios. Aqualidade daquilo que sentimosdepende provavelmente do “meio”(medium) em que são executados.

Por último, gostaria de chamar aatenção para algo bem curioso esempre esquecido com relação à“animação” das partes móveis doBoeing e dos nossos corpos. Aanimação do Boeing diz respeito àsfunções que o avião foi desenhado paraexecutar - taxiar, decolar, voar,aterrissar. O equivalente nos nossoscorpos é a animação que ocorrequando olhamos, escutamos, andamos,corremos ou saltamos, nadamos. Masrepare o leitor que essa parte daanimação humana nada mais é que aponta do iceberg. A parte escondida doiceberg diz respeito à animação cujafinalidade é a manutenção da vida naspartes e no todo do nosso organismo.Ora, é precisamente essa parte danossa animação que constitui o

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substrato crítico dos sentimentos, e nãohá ainda equivalente para essa parteda animação nas máquinas inteligentesde que hoje dispomos. A resposta finalpara os recalcitrantes é, ao fim e aocabo, que o 777 nada pode sentir quese pareça com um sentimento humanoporque, entre outras razões, nada temde equivalente à nossa vida interior noque diz respeito ao seu manejo e à suarepresentação.

Concluindo, os sentimentosbaseiam-se em representaçõesintegradas do estado da vida paripassu com os ajustamentosnecessários para que esse estado sejacompatível com a sobrevida. Aquilo quesentimos tem, portanto, a ver com oseguinte:

1. O desenho íntimo do processo davida num organismo multicelular comum cérebro complexo.

2. As operações do processo da vida.3. As reações corretivas que certos

estados da vida provocam,automaticamente, e as reações inatas eadquiridas que os organismosdesencadeiam quando certos objetos esituações são mapeados nos seuscérebros.

4. O fato de que, quando se

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desencadeiam as reações regulatórias,o fluir da vida se torna mais eficienteou, pelo contrário, menos eficiente.

5. A natureza do “medium” neuralno qual todas essas estruturas eprocessos são mapeados.

Várias vezes fui questionado seessas ideias podem explicar anegatividade ou positividade dossentimentos, sendo a implicação dapergunta que o sinal positivo ounegativo dos sentimentos não pode serexplicado. Discordo dessa posição. Háestados do organismo em que aregulação da vida se tornaextremamente eficiente, ótimadigamos, fluindo com facilidade eliberdade. Isso é um fato fisiológicobem estabelecido. Não se trata de umahipótese. Os sentimentos queacompanham esses estados fisiológicosideais são naturalmente considerados“positivos”. São caracterizados não sópela ausência de dor mas também porvariedades de prazer. E há tambémestados do organismo em que osprocessos da vida lutam arduamentepor recuperar o equilíbrio e podem atéperder essa luta e entrar em caos. Ossentimentos que ocorrem nessesestados são considerados “negativos” e

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são caracterizados não só pelaausência de prazer mas por variedadesde dor.

Julgo que é possível dizer, comalguma confiança, que os sentimentospositivos e negativos são determinadospela regulação da vida. O sinal positivoou negativo é conferido pelaproximidade ou distância relativamenteaos estados que representam umaregulação ótima da vida. A propósito, aintensidade dos sentimentos tambémestá provavelmente ligada ao grau decorreções que é necessário fazer nosestados ditos negativos e à medida queos estados ditos positivos excedem onível homeostático necessário para asobrevida e traduzem uma regulaçãootimizada.

Embora o “medium” neuralcontribua para a natureza daquilo quesentimos, julgo que o contribuinteprincipal dessa natureza íntimarelaciona-se ao fato de a regulação davida ser mais ou menos fluida a cadamomento. Os estados de regulaçãofluida são aqueles que o nosso conatusprefere. Gravitamos naturalmente paraesses estados fluidos. Os estados deregulação da vida em que éconstantemente necessário superarobstáculos são naturalmente evitados

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pelo nosso conatus. Na trajetória danossa vida, os estados de regulaçãofluida são sentidos como positivos eassociam-se a situações a quechamamos boas, enquanto os estadosde regulação que traduzem esforço eresistência são sentidos comonegativos e se associam a situaçõesque apelidamos de más.

É hora de concluir este capítulo comuma formulação mais refinada daquiloque propus no seu início. O corpo e assuas partes constituem a origem dossentimentos. Mas podemos agora irmais adiante e descobrir uma origemmais fina por trás desse nível dedescrição: as numerosas células queconstituem os componentes do corpo eque existem tanto como organismosindividuais, com o seu próprio conatus,quanto como membros de umasociedade cooperativa a quechamamos corpo humano, cujo todo émantido pelo conatus do organismo.

Os conteúdos essenciais dossentimentos são as configurações doestado do corpo que os mapassomatossensitivos representam. Masagora podemos também dizer que osmapeamentos transitórios do corpo setransformam rapidamente, por meio deinfluências mútuas e reverberativas do

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cérebro e do corpo, durante aocorrência de uma ocasião desentimento. E que tanto a valênciapositiva ou negativa dos sentimentoscomo a sua intensidade estão alinhadascom a facilidade ou dificuldade daregulação da vida.

Finalmente, podemos também dizerque as células vivas que constituem asregiões somatossensitivas, bem comoas projeções nervosas que lhesfornecem sinais do corpo, não sãoindiferentes ao processo em que seempenham, e contribuem,provavelmente, para a qualidade dapercepção daquilo a que chamamossentimentos.

É agora o momento de juntar aquiloque comecei por separar. Uma dasrazões por que distingui emoção desentimento tem a ver com umaestratégia de pesquisa. Para conseguircompreender a série completa defenômenos afetivos é importanteseparar os seus componentes, estudaras suas operações, tentar compreendercomo esses componentes se articulamno tempo. Mas, uma vez conseguidosesses propósitos, ou pelo menos algunsdeles, é também importante colocartudo quanto separamos no seu própriolugar para que possamos apreciar,

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mesmo que transitoriamente, o todofuncional que constituem.

A apreciação do todo deve nosrecordar Espinosa e a sua proposta deque corpo e mente são atributos damesma substância. Separamo-los sob omicroscópio da biologia porquequeremos saber como é que essasubstância única funciona, e como éque os atributos corpo e mente seconstituem dentro dessa substância.Depois de investigar a emoção e osentimento de forma relativamenteseparada podemos, durante umpequeno intervalo, juntar os dois denovo, sob a forma de afetos.

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4. Depois dos sentimentos

A ALEGRIA E A MÁGOA

Agora que sabemos o que são ossentimentos, é hora de perguntar paraque servem. Na tentativa de dar umaresposta, é conveniente começar poruma reflexão sobre a alegria e amágoa, os dois emblemas da nossavida afetiva. Como se constroem aalegria e a mágoa? O querepresentam?

A alegria e a mágoa começam coma apresentação de um estímuloemocionalmente competente. Oprocessamento desse estímulo dentrodo contexto em que ocorre leva àseleção e execução de um programapreexistente de emoção. Por seu turno,a emoção leva à construção de umasérie de mapas neurais do organismopara os quais sinais vindos do corpopropriamente dito contribuem de modoimportante. Mapas com umadeterminada configuração formam abase do estado mental a quechamamos alegria e as suas variantes,uma partitura composta na clave doprazer. Outros mapas formam a basedo estado mental a que chamamos

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mágoa, que, na ampla definição deEspinosa, inclui estados negativoscomo a angústia, o medo, a culpa e odesespero. Trata-se de partiturascompostas na clave da dor.

Os mapas ligados à alegriasignificam estados de equilíbrio para oorganismo. Esses estados podem ounão ocorrer no corpo. Os estados dealegria traduzem uma coordenaçãofisiológica ótima e um fluxodesimpedido das operações da vida.Conduzem não só à sobrevida mas àsobrevida com bem-estar. Os estadosde alegria são também caracterizadospor uma maior facilidade dacapacidade de agir.

Podemos bem concordar comEspinosa quando disse que a alegria(laetitia no seu texto latino) estavaassociada a uma transição doorganismo para um estado de maiorperfeição.1 Maior perfeição no sentidode maior harmonia funcional, semdúvida, maior perfeição no sentido deque o poder e a liberdade de açãoestão aumentados.2 Mas é preciso terem mente o fato de que os mapas daalegria podem ser falsificados pelasdrogas e podem, por isso mesmo, nãorefletir o estado atual do organismo.Alguns dos mapas ligados às drogas

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refletem uma melhoria transitória dasfunções do organismo. Cedo ou tarde,no entanto, a melhoria não ésustentável biologicamente e serveapenas de prelúdio para a degradaçãodas funções biológicas.

Os mapas relacionados com amágoa, tanto no sentido estreito comoamplo da palavra, estão associados aestados de desequilíbrio funcional. Afacilidade de ação reduz-se. Nota-se apresença da dor, de sinais de doençaou de sinais de desacordo fisiológico,todos eles indicando uma coordenaçãodiminuída das funções vitais. Se amágoa não é corrigida, seguem-se adoença e a morte.

Na maior parte das circunstâncias,os mapas da mágoa e da tristezarefletem o estado real do organismo.Ninguém abusa de drogas que levem àmágoa e à depressão. No entanto, asdrogas de que tantos abusam acabampor induzir mágoa e depressão, que seseguem rapidamente aos êxtases quecomeçam por produzir. Por exemplo, oecstasy produz picos caracterizados porum prazer calmo que se acompanha depensamentos benignos, mas o usorepetido da droga induz depressõesque se tornam cada vez maismarcadas, e que se seguem a êxtases

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cuja amplitude é cada vez menor. Aoperação normal do sistema daserotonina é afetada diretamente, euma droga que de início foi consideradainocente vem se revelando cada vezmais perigosa.

De acordo com o que Espinosa dissequando discutiu a noção de tristitia, osmapas da mágoa estão associados auma transição do organismo para umestado de menor perfeição. O poder e aliberdade de agir reduzem-se. Naperspectiva espinosiana, a pessoa éinvadida pela tristeza separada do seuconatus, é separada da sua tendêncianatural para a autopreservação. Taldescrição aplica-se por certo aossentimentos que se encontram nasdepressões graves e às suasconsequências últimas no suicídio. Adepressão pode ser vista como partede uma“síndrome de doença”. Ossistemas endócrinos e imunológicosparticipam na depressão crônica comose um agente patogênico, por exemplouma bactéria ou um vírus, tivesseminvadido o organismo.3 De formaisolada, momentos de tristeza, medoou raiva não precipitam a espiral dedeterioração da doença. Contudo, todaocasião de emoção negativa coloca oorganismo num estado marginal.

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Quando a emoção é o medo, esseestado marginal pode ter vantagens -desde que o medo seja justificado eque não seja o resultado de umaapreciação incorreta da situação, ousintoma de uma fobia. O medojustificado é uma excelente apólice deseguros, que tem salvado oumelhorado muitas vidas. Mas a raiva oua tristeza são menos benéficas,pessoalmente ou socialmente. A raivabem dirigida pode, é claro,desencorajar o abuso e servir comodefesa, como assim continua a servirna selva. Em muitas situações sociais epolíticas, contudo, a raiva é um bomexemplo de uma emoção cujo valorhomeostático está em declínio. Omesmo se pode dizer da tristeza, umapelo sem lágrimas à compaixão. Issonão quer dizer que a tristeza não possaser eficaz, em certas circunstâncias,por exemplo, quando nos ajuda aenfrentar uma perda pessoal. Mas se atristeza permanece para além de umperíodo breve, o resultado é semprenocivo.

Assim, os sentimentos podem ser ossensores mentais do interior doorganismo, as testemunhas do estadoda vida. Os sentimentos podemtambém ser sentinelas, dado que

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permitem ao nosso self que tomeconhecimento do estado da vida noorganismo durante um breve intervalode tempo. Os sentimentos são, emsuma, as manifestações mentais doequilíbrio e da harmonia, dadesarmonia ou do desacordo. Não sereferem necessariamente à harmoniaou ao desacordo dos objetos e dassituações exteriores ao organismo,embora seja evidente que também opodem fazer. Referem-se maisimediatamente à harmonia e aodesacordo que acontecem no interiordo corpo. A alegria e a mágoa, bemcomo os sentimentos que serelacionam com elas, sãoprimariamente ideias do corpo noprocesso de obter estados de sobrevidaótimos. A alegria e a mágoa sãorevelações mentais desse processo demanobra, exceto quando drogas oudepressão corrompem a fidelidade darevelação (embora seja possíveldefender o argumento de que a doençarevelada pela depressão é, ao fim e aocabo, bem fiel ao estado da vida noorganismo deprimido).

É curioso pensar que os sentimentossão testemunhas do nível maisrecôndito da vida. E quando tentamosinverter a marcha da engenharia da

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evolução e descobrir as origens dossentimentos, é legítimo perguntar se arazão por que os sentimentosprevaleceram como fenômenoimportante dos seres vivos complexos éprecisamente porque são capazes dedar testemunho sobre a vida à medidaque ocorrem na mente.

OS SENTIMENTOS E OCOMPORTAMENTO SOCIAL

Cada dia que passa acumulam-semais dados sobre o fato de que ossentimentos, bem como os apetites eas emoções que os causam,desempenham um papel decisivo nocomportamento social. Em diversosestudos publicados ao longo das duasúltimas décadas, o nosso grupo deinvestigação, bem como outros grupos,tem mostrado que quando indivíduosque eram inteiramente normais sofremlesões em regiões cerebraisnecessárias para que ocorram certasemoções e sentimentos, perdem acapacidade de governar o seucomportamento na sociedade em quevivem. A capacidade de decisão,especialmente em situações de grandeincerteza, está fortementecomprometida. Exemplo de decisões

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tomadas em clima de incerteza inclueminvestimentos financeiros ou relaçõeshumanas de amizade.4 Nesses doentes,rompem-se os contratos sociais.Frequentemente os casamentosdissolvem-se, as relações entre pais efilhos deterioram-se, e perdem-setambém os empregos.

Uma vez estabelecidas as lesõescerebrais, esses doentes deixam de sercapazes de manter o seu status social eperdem a sua independênciafinanceira. É raro que se tornemviolentos, e em suas rupturas docontrato social eles tendem a nãodesrespeitar as leis propriamente ditas,embora desrespeitem por certo asconvenções sociais. No entanto, ogoverno geral da sua vida éprofundamente afetado. É fácil ver que,sem ajuda de outros, o bem-estar e atéa sobrevida desses doentes não seriamde todo possíveis.

O doente típico com esse tipo deproblema tinha sido, antes do começoda doença, um indivíduo socialmenteexemplar. Trabalhador, bem-sucedido,capaz de atividades altamentecompetentes e de obter a largarecompensa financeira que acompanhatais qualidades. Alguns dos doentesque estudamos tinham até atividade

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notável em matéria de vida social eeram vistos por outros como pilares dacomunidade. Uma vez que as lesõespré-frontais têm lugar, contudo, taispersonalidades modificam-se de formanotável. Não é que as aptidões dessesdoentes se deteriorem e, de fato, elestêm aptidões perfeitamentecompatíveis com os mais variadosempregos. O problema é que ninguémpode contar com eles para que seapresentem no trabalho ou para queexecutem as várias tarefas que sãonecessárias para que uma certa metaseja atingida. A capacidade de planejaratividades está comprometida tanto noimediato como no que respeita aofuturo. O planejamento financeiro estáespecialmente comprometido.

Uma das áreas de maior dificuldadepara esses doentes diz respeito àsrelações sociais. Não é fácil para elesdecidir em quem devem ter confiançaou de quem devem desconfiar. Falta-lhes o sentido daquilo que ésocialmente permissível, por vezes deforma altamente embaraçosa. Nãoobservam certas convenções sociais epodem também não observar certasregras da ética.

Um dos problemas notáveis dessesdoentes tem a ver com a falta de

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empatia. Seus maridos ou mulheresqueixam-se amargamente desseproblema. A mulher de um dos nossosdoentes fez-nos notar como o marido,que costumava apoiá-la com grandecarinho sempre que se sentiapreocupada, passou a reagir comindiferença nessas mesmascircunstâncias. Doentes que, antes docomeço da sua doença, estavamenvolvidos em projetos sociais nas suascomunidades e que eram apreciadospela sua capacidade de aconselharamigos em dificuldade, deixam demostrar qualquer inclinação para taisatividades.

Quando nos perguntamos o porquêdessa trágica situação, encontramosum número de respostas curiosas. Acausa imediata do problema é semdúvida uma lesão cerebral numa regiãoespecífica. Nos casos mais sérios eexemplares do problema, aqueles emque a perturbação do comportamentosocial domina o quadro clínico, aslesões estão situadas no lobo frontal. Osetor pré-frontal, especialmente a partechamada de ventromedial, estácomprometido na maioria de tais casos.Em geral, as lesões que se restringemao setor lateral esquerdo do lobofrontal não causam esse problema,

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embora haja exceções e embora aslesões que se limitam ao setor lateraldireito possam causar o problema.5 [Verfigura 4.1 ]

Figura 4.1: Lesões do lobo frontal deum doente adulto reveladas pelareconstrução em três dimensões de umscan de ressonância magnética. Aregião do cérebro destruída pelaslesões nota-se facilmente (aparece emnegro enquanto o cérebro normalaparece em tons de cinza). As duas

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imagens superiores mostram o cérebrovisto em perspectivas direita eesquerda. As duas imagens do meiomostram uma perspectiva mediana(interna) dos hemisférios. As duasúltimas imagens revelam a superfícieorbitaria do cérebro (à esquerda) e opólo do lobo frontal (à direita).

As lesões de outras regiõescerebrais, principalmente o setorparietal do hemisfério cerebral direito,causam problemas desse tipo, emborade forma menos pura, dado que outrossintomas neurológicos também estãopresentes. Os doentes com lesõesparietais estão geralmente paralisadosno lado esquerdo do corpo, pelo menosem parte. Aquilo que distingue osdoentes com lesões no setorventromedial do lobo frontal é que osseus problemas permitem umcomportamento social bem estranho. Àparte esse comportamento bizarro, osdoentes nada mostram de anormal.

A análise neuropsicológica dessesdoentes revela que eles parecemintelectualmente intactos. Falamnormalmente, movemse normalmentee não têm problemas de percepçãovisual ou auditiva. Empenham-se numa

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conversa sem se distraírem. Aprendeme recordam fatos que lhes ocorrem eaté conseguem se lembrar dasconvenções e das regras sociais quedesrespeitam a cada passo. Podem atéperceber, desde que alguém lheschame a atenção, que acabam dedesrespeitar essas convenções eregras. Esses indivíduos sãointeligentes, no sentido técnico dotermo, ou seja, podem ter pontuaçõesbem altas nos seus quocientes deinteligência. Não têm nenhumadificuldade na solução de problemaslógicos.

Durante muito tempo tentou-seexplicar as desastrosas decisões quetais pessoas tomam com base emperturbações cognitivas. Pensava-seque talvez o problema tivesse comobase uma perturbação daaprendizagem ou da recordaçãodaquilo de que necessitamos para noscomportarmos de modo correto.Pensou-se também que o problemapudesse se dever a um defeito dacapacidade de raciocinar. Ou talvez adificuldade fosse devida à incapacidadede manter na mente, durante um certoperíodo de tempo, todas as premissasde um problema que são necessáriaspara a sua solução (essa capacidade de

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manter informação na mente éconhecida como memória de trabalho).6

Contudo, nenhuma dessas explicaçõesera satisfatória. Foi possível verificarque a maioria desses doentes não temum problema primário em nenhumadessas capacidades. De fato, éaltamente desconcertante verificar quesão capazes de raciocinar de formainteligente e de resolver com sucessotoda uma gama de problemas sociaisquando estes são apresentados nolaboratório, sob a forma de um testenuma situação hipotética. Taisproblemas sociais podem serprecisamente do mesmo tipo que osdoentes acabam não sendo capazes deresolver na vida real e em tempo real.Em suma, essas pessoas são capazesde exibir uma enorme sabedoria sobreas mesmas situações sociais que nãosão de todo capazes de gerir na vidareal. Podem saber as premissas doproblema, podem saber as opções deação e podem saber também asconsequências dessas ações noimediato e no futuro, bem como aforma de navegar tal sabedoria de umaforma lógica.7 Mas de pouco lhes servetoda essa sabedoria quando enfrentama realidade.

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DENTRO DO MECANISMO DASDECISÕES

Algum tempo depois de ter dadoinício ao estudo desses pacientes,começou a intrigar-me a possibilidadede que o problema das suas decisõesnão estivesse ligado primariamente aum defeito cognitivo, mas sim a umdefeito da emoção e do sentimento.Houve dois fatores que contribuírampara essa ideia. O primeiro tinha a vercom a manifesta incapacidade deexplicar o problema com base numadisfunção cognitiva primária. Osegundo tinha a ver com umaimportante observação clínica: elestinham um defeito evidente deressonância emocional, especialmenteno que diz respeito às suas emoçõessociais. Dei-me conta de que emoçõescomo o embaraço, a simpatia, ou aculpa pareciam estar diminuídas ouausentes. Surpreendi-me um diaquando verifiquei que eu próprio ficavamais triste ou mais embaraçadoquando ouvia algumas das históriaspessoais desses indivíduos do que elespareciam estar à medida que ascontavam.8

Foi assim que cheguei à hipótese deque seu defeito de decisão, seu defeito

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de governo da vida, podia se dever àperturbação de um sinal ligado àsemoções. Sugeri então que, quandoesses pacientes enfrentam umadeterminada situação, e representammentalmente tanto opções de açãocomo os resultados dessas possíveisações, eles não conseguem ativar asmemórias emocionais que os ajudariama escolher, com mais eficiência, entrediversas opções. Eles não estariamfazendo uso da experiência emocionalacumulada ao longo da sua vida. Asdecisões tomadas nessas condições deemoção empobrecida levavam, assim,a resultados erráticos ou negativos,especialmente no que diz respeito àsconsequências futuras. O compromissoera especialmente notável emsituações que envolviam opções emconflito aberto e incerteza deresultados. Escolher uma carreira,decidir com quem se casar ou lançar-seem uma nova empresa são exemplosde decisões cujos resultados sãoincertos mesmo que a preparaçãodessas decisões tenha sidofundamentada em excelentesconhecimentos e muita cautela.

Como é que a emoção e osentimento desempenham um papelem tais decisões? De variadas formas,

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é a resposta; algumas sutis, outras não,algumas práticas, outras não. Aemoção e o sentimento desempenhamum papel no raciocínio, e esse papel égeralmente benéfico. Quando o papel ébenéfico, a presença da emoção e dosentimento é indispensável.

À medida que acumulamosexperiência pessoal, formamos diversascategorias de situação social. Osconhecimentos que armazenamos noque diz respeito a essa experiênciaincluem:

1. Os fatos que se relacionam com oproblema.

2. A opção que escolhemos pararesolvê-lo.

3 O resultado factual da solução.4. O resultado da solução em termos

de emoção e sentimento, ou seja, emtermos de punição ou recompensa.

Quer a solução para um certoproblema do passado tenha se feitoacompanhar por emoções esentimentos de dor ou prazer, demágoa ou alegria, de vergonha ouorgulho, guardamos cuidadosamenteessa informação. Guardamos tambémna nossa memória o resultado futurodessas soluções no que diz respeito à

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punição ou à recompensa. É de notarque uma solução que possa ter sidoacompanhada por recompensaimediata pode ter levado no futuro aum resultado punitivo. Ou seja, háfrequentemente uma discordânciaentre as emoções e os sentimentos queacompanham uma determinadadecisão e as emoções e os sentimentosligados às consequências futuras dessadecisão.

A ênfase que estou dando àsconsequências futuras da decisãochama a atenção para qualquer coisade bem particular no comportamentohumano. Um dos traços maisimportantes do comportamentocivilizado diz respeito à nossa relaçãocom o futuro. A nossa enorme bagagemde sabedoria e a nossa capacidade decomparar o passado e o presenteabrem a possibilidade de nospreocuparmos com o futuro, apossibilidade de o antever sob a formade uma simulação imaginária, ou seja,de prevê-lo, a possibilidade, em suma,de moldar o futuro de uma formabenéfica. No comportamento humanocivilizado trocamos a gratificaçãoinstantânea e o prazer imediato por umfuturo melhor, e aceitamos ossacrifícios imediatos que esse contrato

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requer.Tal como notamos anteriormente,

cada experiência da nossa vida éacompanhada por algum grau deemoção, por menor que seja, e essefato é especialmente notável emrelação a problemas sociais e pessoaisimportantes. Quer a emoção respondaa um estímulo escolhido pela evolução,como acontece no caso da simpatia, oua um estímulo aprendidoindividualmente, como acontece nomedo que podemos ter adquirido emrelação a um certo objeto emconsequência de o termos associado aum estímulo de medo primário, o fato éque as emoções, positivas ounegativas, bem como os sentimentosque se lhes seguem, tornam-secomponentes obrigatórios das nossasexperiências sociais.

A ideia que estou apresentando éque, ao longo do tempo, nãorespondemos apenas aos componentesde uma situação social com orepertório de emoções sociais inatas deque dispomos. Sob a influência dasemoções sociais (da simpatia e davergonha ao orgulho e à indignaçãomoral) e das emoções que sãoinduzidas pelas punições erecompensas (que são variantes da

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alegria e da mágoa), somos capazes decategorizar gradualmente as situaçõesde que temos experiência.Categorizamos os erros em queparticipamos, os seus componentes e oseu significado em termos da grandenarrativa pessoal. Somos capazes, alémdisso, de associar as categoriasconceituais que vamos formando -tanto no nível mental como no neural-com os dispositivos cerebrais quedesencadeiam as emoções. Porexemplo, diferentes opções de ação ediferentes resultados futuros acabamsendo associados a diferentes emoçõese sentimentos. Em virtude dessasassociações, quando uma situação quecorresponde ao perfil de uma certacategoria é de novo encontrada, somoscapazes de desencadear rápida eautomaticamente a emoção que lhecorresponde.

Em termos neurais, esse mecanismofunciona da seguinte forma. Quando oscircuitos dos córtices sensitivosposteriores e das regiões parietais etemporais processam uma situação quepertence a uma certa categoriaconceituai, tornam-se ativos oscircuitos pré-frontais que detêmmemórias relativas a essa categoriaconceituai. Vem a seguir a ativação de

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regiões cerebrais que desencadeiam ossinais emocionais propriamente ditos,tais como a região ventromedial pré-frontal, uma ativação que é devida àaquisição de uma ligação entre acategoria da situação e as respectivasrespostas de emoção e sentimento queaconteceram no passado.

Essa rede de interligações permite-nos conectar categorias deconhecimento social com osdispositivos inatos das emoções sociaise dos sentimentos que se lhes seguem.

Dou especial valor às emoções esentimentos ligados às consequênciasfuturas das decisões, visto que elesconstituem uma antevisão daconsequência das ações, uma espéciede previsão do futuro. No seu conjunto,esse mecanismo é um belíssimoexemplo de como a natureza justapõesistemas e de como essa justaposiçãocria uma complexidade maior do que aque resultaria da soma das partes. Porsi sós, as emoções e os sentimentosnão têm nenhuma bola de cristal quelhes permita ver o futuro. Mas, quandouma emoção e o seu sentimento sãodesencadeados num contextoapropriado, a sua presença “prevê”aquilo que de bom ou mau poderáacontecer num futuro distante. Como

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veremos adiante, esse papel preditivodas emoções e dos sentimentos podeser parcial ou completo, consciente ouinconsciente.

OS BENEFÍCIOS DO MECANISMO

Quando uma emoçãocorrespondente a uma situação dopassado é posta de novo em ação nopresente, acontece que, consciente ouinconscientemente, passamos a focar anossa atenção sobre certos aspectos deum dado problema e por issomelhoramos a sua análise. Quando osinal emocional é avaliadoconscientemente, produz-se um sinalde alarme automático que aponta, deimediato, para opções de ação quepodem muito bem levar aconsequências negativas. Esse sinalautomático, que podemos sentir sob aforma de uma alteração do ritmocardíaco ou de uma contraçãointestinal, pode levar-nos a nãoescolher qualquer coisa que no passadoteve consequências negativas. Essesinal emocional aparece geralmenteantes que o nosso próprio raciocínionos tenha aconselhado claramente anão fazer uma certa escolha. É claroque o sinal emocional pode também

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produzir o contrário de um alarme elevar-nos a fazer uma determinadaescolha ainda mais rapidamente combase no fato de que no passado umaescolha desse mesmo tipo nos levou abom porto. Em suma, o sinal emocionalmarca opções e consequências comuma carga positiva ou negativa. Essacarga reduz o leque de decisões eaumenta a probabilidade de que anossa decisão esteja de acordo com aexperiência que tivemos do passado.Dado que todos esses sinaisemocionais têm sempre a ver com ocorpo, ou “soma”, designei essa sériede ideias pela expressão “hipótese dosmarcadores somáticos”.

É importante notar que o sinalemocional não é um substituto doraciocínio. O sinal emocional tem umpapel auxiliar. Aumenta a eficiência doraciocínio e também a sua rapidez. Emcertos casos, o sinal emocional podetornar o processo de raciocíniosupérfluo, o que acontece quandorejeitamos decididamente uma escolhaque levaria por certo a uma catástrofe,ou quando, pelo contrário, fazemosuma escolha vantajosa cujaprobabilidade de sucesso éextremamente alta.

Em certos casos, um sinal emocional

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especialmente forte leva a umareativação parcial de emoções, como omedo ou a felicidade, seguidas pelosentimento consciente que lhescorresponde. Esse é o mecanismo queutiliza o corpo propriamente dito. Há noentanto outros meios bem mais sutisque permitem ao sinal emocionaldesempenhar o seu papel. É bempossível que esses meios mais sutissejam até o modo maisfrequentemente utilizado pelos sinaisemocionais. Por um lado, comoacabamos de ver no capítulo anterior, épossível produzir certasemoções/sentimentos sem utilizar ocorpo propriamente dito, fazendo usodo sistema de simulação “como-se-fosse-o-corpo”. Em segundo lugar, e deforma não menos importante, o sinalemocional pode atuar inteiramente forado radar da consciência. Pode, porexemplo, produzir alterações damemória de trabalho, da atenção e doraciocínio, de forma a que osmecanismos de decisão sejaminfluenciados no sentido de selecionar aescolha que, por exemplo, levará àmelhor das consequências, dada aexperiência anterior do sistema. Apessoa que faz uma determinadaescolha pode não ter de todo

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consciência dessa operação secreta.Acabamos por intuir uma decisão e pô-la em prática, de forma rápida eeficiente, sem nos darmos conta dessasetapas intermediárias.

Figura 4.2: Quando somosconfrontados por uma situação querequer uma decisão, temos à nossadisposição duas vias complementarespara realizar esse processo. A via Aprovoca o aparecimento de imagensrelacionadas com a situação, tais comoopções de ação e antevisão deconsequências futuras. Diversasestratégias de raciocínio atuam sobreesses conhecimentos e produzem uma

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decisão. A via B funciona em paralelo eleva à ativação de experiênciasemocionais que tenham ocorrido emsituações comparáveis. Por seu turno, areativação dessas experiênciasemocionais, consciente ouinconsciente, influencia o processo dedecisão, quer interferindo com asestratégias de raciocínio quer forçandoa atenção sobre as representações deconsequências futuras. Por vezes, a viaB pode levar diretamente a umadecisão (por exemplo, quando umpalpite nos leva afazer uma certaescolha imediata). A proporção de usoda via A, da via B, ou da combinaçãodas duas depende, evidentemente, dapessoa que decide, da sua experiênciaanterior e das circunstâncias dasituação atual. Certos padrões dedecisão inesperados descritos porinvestigadores como DanielKahnemann e Amos Tversky, nos anos70, são com grande probabilidade oresultado da utilização da via B.

O nosso grupo de pesquisas, bemcomo outros grupos, vem acumulandodados que confirmam a presença detais mecanismos.9 Mas o modo comotodas essas operações estão ligadas aocorpo tem sido notado na sabedoria

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milenar. A palavra da língua portuguesaque mais diretamente traduz essessinais emocionais é a palavra “palpite”,cuja ligação com o ritmo cardíaco éevidente.

A ideia de que as emoções têm umaracionalidade intrínseca tem uma longahistória. Tanto Aristóteles comoEspinosa pensavam que algumas dasemoções, em circunstânciasapropriadas, eram perfeitamenteracionais. De certo modo, David Humee Adam Smith também assimpensavam. Certos filósofoscontemporâneos, entre eles Ronald deSousa e Martha Nussbaum, tambémtêm argumentado de forma persuasivaque a emoção é intrinsecamenteracional. Nesse contexto, o termo“racional” não denota raciocínio lógicoexplícito, mas uma correlação entrecertas ações e consequênciasbenéficas. Os sinais emocionais nãosão em si mesmos racionais, masacabam promovendo consequênciasque poderiam ter sido deduzidasracionalmente. Talvez o melhor termopara descrever essa propriedade dasemoções não seja racional mas sim“razoável”, um termo que foi sugeridopor Stephen Heck.10

Como é que as lesões cerebrais que

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ocorrem em indivíduos até então normais provocam os defeitos de comportamento social que descrevemos acima? As lesões provocam dois tipos de defeito. Em primeiro lugar, destroem uma região vital para o desencadeamento das emoções sociais. Em segundo lugar, destroem uma região que apóia o nexo entre certas categorias de situação e asemoções que lhes correspondem. Em consequência desse duplo defeito, o repertório de emoções sociais que herdamos da evolução biológica não pode ser utilizado em resposta aos estímulos naturais que provocariam essas emoções, e, por outro lado, os novos estímulos que adquirimos na nossa experiência deixam também de provocar as emoções respectivas. Na ausência de todas essas emoções, é evidente que os sentimentos que se lhes seguiriam estão também ausentes.A gravidade do defeito varia de doente para doente. Contudo, em todos os casos, os doentes deixam de produzir de maneira confiável as emoções e sentimentos sintonizados com certas categorias de situação social.

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O uso de estratégias decomportamento cooperativo estábloqueado em doentes com essaslesões, e o seu desempenho em tarefasque dependem da cooperação estácomprometido." Sabemos hojetambém, com base em experiências deimagery funcional, que quandoindivíduos normais utilizam estratégiasde cooperação social - necessárias pararesolver o tipo de problema posto peloDilema do Prisioneiro - a regiãoventromedial do lobo frontal éfortemente ativada (o Dilema doPrisioneiro é uma tarefa experimentalque permite identificar os indivíduosque cooperam socialmente bem eaqueles que trapaceiam). A propósito,num estudo recente, o uso deestratégias de cooperação social levoutambém à ativação de regiõescerebrais ligadas à liberação dedopamina e aos comportamentos deprazer, sugerindo, curiosamente, que avirtude é a sua própria recompensa.12

A miopia do futuro causada pelaslesões frontais tem qualquer coisa desemelhante com a situação dostoxicômanos ou alcoólicos crônicos. Omapeamento do corpo ésistematicamente falso. Talvez sepudesse pensar que essa distorção

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teria as suas vantagens. À primeiravista, dir-se-ia que o bem-estarproduzido por todas essas substânciasseria valioso. Mas não é. Tanto noalcoolismo como na toxicomania osprocessos de decisão deterioram-se e onúmero de decisões vantajosas para opróprio indivíduo reduz-se com otempo. O termo “miopia do futuro”descreve com precisão a situaçãodesses indivíduos.

LESÕES PRÉ-FRONTAIS EMCRIANÇAS

Os dados e as interpretações quedizem respeito aos doentes adultoscom lesões frontais são particularmenteimportantes à luz de descriçõesrecentes de jovens adultos que foramvítimas de lesões semelhantes mascom uma diferença importante: aslesões ocorreram quando eramcrianças.13 Em colaboração com osmeus colegas Steven Anderson eHanna Damásio, temos constatado queesses doentes são, de um modo geral,parecidos com aqueles que sofremlesões na idade adulta, mas tambémmostram diferenças interessantes.Como é o caso entre os adultos, essesjovens doentes não exibem as emoções

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de simpatia, embaraço ou culpa, e tudoleva a crer que nunca tiveram taisemoções ou sentimentos. Mas nocapítulo das diferenças nota-se que osdefeitos de comportamento social sãogeralmente mais graves e nota-setambém que, ao contrário dos doentesadultos, os jovens parecem nunca teraprendido as regras ou as convençõesque desrespeitam com tanto abandono.Eis um exemplo.

O primeiro doente desse tipo queestudamos tinha vinte anos quando avimos pela primeira vez. Os pais e osirmãos, que não tinham nenhumhistórico neurológico ou psiquiátrico,formavam uma família estável e viviamconfortavelmente. A lesão cerebraltinha ocorrido aos quinze meses deidade como resultado de um acidentede trânsito. A doente tivera umarecuperação completa nos dias que seseguiram ao acidente e nenhumaalteração comportamental se pôdeverificar até a idade de três anos,quando os pais notaram que a meninaparecia ser indiferente aos castigosverbais ou físicos. Esse comportamentodiferia inteiramente do dos seus irmãos(que vieram a ser adolescentes ejovens adultos normais). Aos catorzeanos, o comportamento da doente era

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tão perturbador que ela foi internadanuma clínica, a primeira de muitas.Academicamente, os professoresindicavam que a garota eraintelectualmente capaz mas notavamque raramente completava qualquertarefa. Sua adolescência foi marcadapor um desrespeito sistemático deregras de todo e qualquer tipo e porconfrontações frequentes com outrosadolescentes e com adultos. Ela secomportava sempre em relação aosoutros de forma abusiva, física everbalmente. Mentia sistematicamente.Foi detida várias vezes por roubo emlojas e, em diversas ocasiões, rouboucoisas de colegas ou de membros dasua própria família. Desde muito cedoteve comportamentos sexuaisarriscados e engravidou aos dezoitoanos. Depois do nascimento da criança,o seu comportamento maternalmostrou-se deficiente. Mostrava-secompletamente indiferente àsnecessidades do bebê. Nunca lhe foipossível manter nenhum tipo deemprego devido ao desrespeito aoshorários e a outras regras de trabalho.Nunca exprimiu sentimentos de culpaou remorso e nunca mostrou simpatiaem relação aos outros. Pelo contrário,culpava sempre os outros e atribuía-

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lhes a responsabilidade pelos seuspróprios problemas. O uso de váriasterapias comportamentais emedicamentos psicotrópicos nãoajudou em nada a situação. Depois deter corrido diversos riscos físicos efinanceiros, a doente tornou-se, porfim, inteiramente dependente dos paisou de instituições sociais, quepassaram a se responsabilizar pela suavida. Nunca formulou nenhuma espéciede plano para o futuro e nunca mostrounenhum desejo de se empregar deforma estável.

Curiosamente, a hipótese de lesãocerebral nunca tinha sido posta emrelação a essa doente, e a história detraumatismo craniano tinha sidopraticamente esquecida. Quando ospais cogitaram a hipótese de que osproblemas da filha pudessem partir deuma lesão cerebral e a trouxeram ànossa clínica, foi fácil demonstrar, comum estudo de ressonância magnéticado cérebro, que a garota tinha de fatosofrido uma lesão cerebral grave,semelhante àquelas que temosencontrado em tantos doentes adultoscom problemas de decisão. Nos últimosquatro anos, no seguimento daprimeira publicação que descreveu doisjovens doentes com esse tipo de

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problema, tem-nos sido possívelestudar vários outros em que acorrelação entre lesão pré-frontal edefeito de comportamento social severifica sistematicamente.

Figura 4.3: Reconstrução em trêsdimensões do cérebro de um jovemadulto que sofreu lesão da região pré-frontal na infância. Tal como na Figura4.1, a reconstrução tem como base aressonância magnética. É de notar asemelhança da área lesionada nosadultos e na criança.

Claro que não estou sugerindo quetodos os adolescentes que apresentamcomportamentos semelhantes foramigualmente vítimas de lesões cerebraisainda não diagnosticadas. Éinteiramente possível que em certoscasos tais comportamentos se possamexplicar em termos do ambiente

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cultural em que o adolescente sedesenvolveu. Mas é também possívelque alguns adolescentes com umcomportamento comparável sofram deuma disfunção dos mesmos sistemascerebrais que, nos nossos doentes,foram parcialmente destruídos porlesões macroestruturais. Em tais casos,a disfunção teria por base defeitosmicroscópicos, no nível celular, defeitoscujas origens seriam variadas. Épossível pensar em fatores dedesenvolvimento biológico,relacionados tanto com o ambiente (porexemplo, nutrição, educação), comocom uma predisposição genética, e épossível que em certos casos mais doque um simples fator possa interagir.Só a investigação futura nos poderádizer se essa ideia é ou não correta.

Com base nos dados queapresentamos em relação aos adultos,podemos perceber por que lesões naregião pré-frontal sofridas no princípioda vida podem ter consequências tãodevastadoras. É evidente que nascrianças com tais lesões as emoçõessociais inatas e os seus sentimentosnunca chegam a ser exibidos de formanormal. A consequência imediata dessedefeito é que as interações com osoutros, crianças ou adultos, nunca

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podem ser normais. A criança doentereage de forma inadequada às maisvariadas situações sociais, e por suavez os outros lhes respondem de formaigualmente inadequada. As criançasafetadas por lesões constroeminevitavelmente um conceito anormaldo mundo social. Em segundo lugar, ascrianças com lesões nunca sintonizamas emoções que ainda têm disponíveiscom as ações a que podem estarligadas. Essa falha de sintonizaçãoacontece porque a aprendizagem deum nexo entre uma certa ação e assuas consequências emocionaisdepende da integridade da região pré-frontal. Dessa forma, a experiência dador, que faz parte das situações depunição, nunca é aprendida em ligaçãocom a ação que causou essa punição.Não se forma nenhuma memória daconjunção entre ação e emoção, e porisso não é possível utilizar essamemória no futuro. Tudo indica que aaprendizagem relacionada àrecompensa seja também anormal,embora tenhamos alguma esperançade que o sistema da punição e osistema da recompensa não estejamigualmente afetados. Por fim, aacumulação de conhecimentos sobre omundo que nos rodeia, que ocorre

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sobretudo durante a infância e aadolescência, não pode, de todo,realizar-se normalmente. Há um defeitosistemático da categorização dassituações, da categorização dasrespostas a essas situações, e daassimilação de regras e convenções.14

E SE O MUNDO?...

Considerando todos os dados quevimos descrevendo acerca da relaçãoentre comportamento social e emoçãoe sentimento, é legítimo perguntar emque mundo viveríamos hoje se umaparte significativa da populaçãosofresse de qualquer coisa parecidacom aquilo de que os nossos doentesfrontais padecem. Seria tambémlegítimo perguntar como é que omundo teria evoluído se a humanidadetivesse começado com um grupo deseres humanos privados, porconstituição natural, da capacidade deresponder uns aos outros com reaçõesde simpatia, embaraço, apego e outrasemoções sociais.

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Figura 4.4: Algumas das principaisemoções sociais tanto negativas comopositivas. Para cada grupo de emoçõesestão indicados o estímulo-emocionalmente-competente (EEC), asconsequências do desencadeamentoda emoção e a base fisiológica dessaemoção. Para maiores detalhes sobre

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as emoções sociais, ver o texto bemcomo o trabalho de J. Haidte R.Shweder.15

Numa sociedade privada de taisemoções e sentimentos nunca teriahavido a exibição espontânea dasreações sociais inatas que auguram oaparecimento de um sistema éticosimples - o altruísmo não teria por ondecomeçar, não teria aparecido agenerosidade, não haveria a censuraaos outros ou a nós próprios. Naausência dos sentimentos de taisemoções, os seres humanos não teriamse empenhado na negociação que visaencontrar soluções para os problemasdo grupo, ou seja, soluções para oencontro e partilha de alimentos, paraa defesa contra ameaças exteriores epara os conflitos entre os membros deum determinado grupo. Não teriahavido um acúmulo gradual deconhecimento sobre as relações entrediversas situações sociais, reaçõesnaturais e as punições ou recompensasque se verificariam quando as reaçõesnaturais fossem inibidas ou permitidas.Sem que tivesse sido possível descobrirconvenções ou regras, não teria sidotambém possível codificá-las sob a

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forma de leis, sistemas de justiça esistemas de organização sociopolítica,mesmo supondo que os sistemas daaprendizagem, da imaginação e doraciocínio poderiam se manter intactosna ausência de um sistema emocionalnormal, o que é, evidentemente,altamente improvável. Uma vez perdidoo sistema natural de navegaçãoemocional, não teria sido possívelsintonizar o indivíduo com o mundo queo rodeia. Na ausência de um sistemabásico de valores biológicos, sistemaesse que a regulação biológica emgeral e a emoção e sentimento emparticular fornecem ao organismo, nãoteria sido possível construir um códigode navegação social puramentebaseado em fatos.

Esse cenário desastroso seria arealidade desse mundo sem emoção,qualquer que seja o conceito quefazemos da origem dos princípios éticosque governam a vida social. Porexemplo, se os princípios éticos tiverememergido de um processo denegociação cultural conduzido sob ainfluência das emoções sociais, osseres humanos com lesões frontaisnunca teriam participado em talprocesso e não teriam sequercomeçado a construir um código ético.

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Mas o problema se mantém seacreditarmos que os princípios éticosnos chegaram por intermédio de umaprofecia religiosa. Se concebermos areligião como uma das maisextraordinárias criações humanas, édifícil imaginar que seres humanosprivados de emoções e sentimentossociais jamais tivessem criado umsistema religioso. Tal como indico nocapítulo 7, as narrativas religiosaspodem ter surgido como resposta acertas pressões especialmenteimportantes, principalmente a análiseconsciente dos estados de mágoa ealegria, bem como da necessidade decriar uma autoridade capaz de validar emanter regras éticas. Na ausência deemoções normais não teria havido atendência natural para a criação de umsistema religioso. Não teria havido nemprofetas, nem seguidores de profetas,animados pela tendência emocional dese submeterem com espanto eadmiração a uma figura dominantecapaz de liderar, proteger,recompensar e explicar o inexplicável.Na ausência da emoção teria sido difícilconceber a figura de Deus.

As coisas não teriam caminhadomelhor, contudo, se as profeciasreligiosas fossem concebidas como

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tendo uma origem sobrenatural em queo profeta é um mero veículo para arevelação. Nessas condições,continuaria a ser necessário inculcar osprincípios éticos na criança, o querequereria, do ponto de vista daaprendizagem, a influência darecompensa e da punição, ou seja, ainfluência da emoção. Mesmo que fossepossível imaginar a presença de alegriaou mágoa na ausência das emoçõessociais, os seres humanos quecrescessem em tais circunstâncias nãoseriam capazes de associar essaalegria e mágoa às categorias deconhecimento pessoal e socialnecessários para estabelecer princípioséticos. Em suma, quer se concebam osprincípios éticos como baseados nabiologia natural ou como baseados emestruturas religiosas, é legítimo concluirque na ausência de emoções esentimentos normais, especialmente naausência de emoções sociais, aemergência de comportamentos éticosseria improvável.

A eliminação da emoção e dosentimento acarreta umempobrecimento da organização daexperiência humana. Na ausência deemoções e sentimentos normais, oindivíduo deixa de poder categorizar a

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sua experiência de acordo com a marcaemocional que confere a cadaexperiência a qualidade do “bem” oudo “mal”. Em tais circunstâncias adescoberta e a elaboração das noçõesde bem e de mal seriam mais difíceis, ea construção cultural daquilo que deveser considerado bom ou mau seria maisdifícil.

NEUROBIOLOGIA ECOMPORTAMENTOS ÉTICOS

Na ausência de emoções esentimentos sociais, mesmo que,improvavelmente, se pudessem manteroutras capacidades intelectuais, osinstrumentos culturais conhecidoscomo comportamentos éticos, crençasreligiosas, leis, justiça e organizaçãopolítica não teriam emergido ou teriamemergido sob uma forma bemdiferente. Devo frisar imediatamenteque não quero de forma alguma dizerque as emoções e os sentimentos são acausa única da emergência dessesinstrumentos culturais. Em primeirolugar, as característicasneurobiológicas que facilitaram aemergência de tais instrumentosculturais incluem não apenas asemoções e os sentimentos, mas

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também uma memória pessoal degrande amplitude que permite aosseres humanos construir umaautobiografia complexa. Incluemtambém um processo de consciênciaampliada que facilita as inter-relaçõesentre os sentimentos, o self e osacontecimentos exteriores. Emsegundo lugar, uma explicaçãoneurobiológica simples da emergênciada ética, da religião, das leis e dajustiça não é de todo viável. Parece-melegítimo supor que a neurobiologiadesempenhará um papel importantenas explicações futuras de todas essasestruturas culturais. Mas para que sejapossível compreender esses fenômenosculturais de forma satisfatória énecessário incluir ideias vindas daantropologia, da sociologia, dapsicanálise e da psicologiaevolucionária, bem como dados vindosdos estudos, propriamente ditos, daética, leis e religião. Nesse domínio, asexplicações mais interessantes deverãoprovir da investigação de hipótesesbaseadas em conhecimentosintegrados de todas essas disciplinasem forte ligação com a neurobiologia.16

Uma tal abordagem do problema sóhoje começa a ser possível e está muitoalém da minha preparação e daquilo

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que posso dizer neste capítulo. Julgoque é sensato dizer, no entanto, que asemoções e os sentimentos terão sidoum alicerce necessário para oscomportamentos éticos muito antes deos seres humanos terem iniciado aconstrução deliberada de normasinteligentes de conduta social. Asemoções e os sentimentos teriamcomeçado a fazer parte dos organismoscomplexos em etapas evolucionáriasanteriores, que dizem respeito aespécies não humanas, e teriam sidoum fator importante noestabelecimento de estratégiascognitivas de cooperação. A minhaposição com relação à neurobiologia eao comportamento ético pode serdescrita nos seguintes termos.

Os comportamentos éticosconstituem uma subcoleção doscomportamentos sociais. Oscomportamentos éticos podem serinvestigados através de um grandenúmero de abordagens científicas,desde as da antropologia até as daneurobiologia. As técnicas deneurobiologia necessárias para abordaros comportamentos éticos incluem asda neuropsicologia experimental (nonível dos sistemas) e da genética (nonível molecular). Como indicamos

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acima, é de esperar que os melhoresresultados desses estudos venham deuma abordagem que inclua técnicasdiversas.17

A essência do comportamento éticonão parece ter começado com os sereshumanos. Há dados notáveis emestudos feitos em aves (como oscorvos) e em mamíferos (como osmorcegos, os lobos e os chimpanzés)que indicam claramente que espéciesnão humanas parecem comportar-se,aos nossos olhos sofisticados, de umaforma ética. Exibem simpatia, apegos,embaraço e vergonha, orgulhodominante e humilde submissão. Sãocapazes de censurar e recompensar asações de animais congêneres. Umaespécie de morcegos conhecida pelonome de morcego-vampiro conseguedetectar aqueles que trapaceiam etrata também de castigá-los. Os corvosfazem o mesmo. Exemplos decomportamento ético são, como seriade esperar, ainda mais convincentesentre os primatas e não se restringemde modo algum aos chimpanzés, osnossos parentes mais chegados. Osmacacos Rhesus comportam-se comoutros macacos de maneira altruísta.Numa experiência notável executadapor Robert Miller e discutida por Marc

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Hauser, os macacos deixavam de puxaruma cadeia que lhes traria comida casopuxar essa cadeia fizesse com que umoutro macaco recebesse um dolorosochoque elétrico. Em tais circunstâncias,alguns macacos passaram horas e atédias sem comer. De forma bemsugestiva, os animais mais suscetíveisde se comportarem de forma altruístaeram aqueles que tinham umconhecimento social prévio do animalque receberia o choque. Os macacosque noutras fases da experiênciatinham eles mesmos recebido choquestinham também maior probabilidade dese comportarem de forma altruísta. Nãohá nenhuma dúvida de que o altruísmonão é exclusivo dos seres humanos.18

Esse fato pode talvez desagradaràqueles que acreditam que a justiça éum traço exclusivamente humano.Como se não bastasse que Copérniconos tivesse dito que não estamos nocentro do universo, que Charles Darwinnos tivesse informado de que temosorigens bem humildes, e que SigmundFreud nos tivesse mostrado que nãosomos donos da nossa própria casa noque diz respeito à consciência quetemos dos nossos comportamentos,temos agora também que admitir que,mesmo no domínio da ética, temos

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predecessores e somos descendentes.É evidente, contudo, que o

comportamento ético humano tem umgrau de elaboração e complexidadeque o torna distintamente humano enão apenas uma cópia daquilo queoutras espécies têm ao seu dispor. Asregras da ética criam obrigaçõesespecificamente humanas paraqualquer indivíduo normal que asconheça, e, é claro, a codificação dasregras é exclusivamente humana.Quanto às narrativas que seconstruíram em torno das situações edas regras, são tambémexclusivamente humanas. No fundonão é assim tão difícil conciliar apercepção de que uma parte da nossaestrutura biológica e psicológica temraízes não humanas com a noção deque a nossa compreensão profunda dacondição humana confere a essasestruturas uma dignidade única.

Além do mais, o fato de que as maisnobres criações culturais têm umantecedente animal não implica que osseres humanos tenham uma naturezasocial fixa. Há vários tipos de naturezasocial, bons e maus, que resultam devariantes evolucionárias, diferençassexuais e desenvolvimentos pessoaisdiferentes. Como Frans de Waal tem

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demonstrado, há primatas mal-intencionados, por exemplo ochimpanzé comum, com a suaagressividade territorial, e primatasbem-intencionados como oschimpanzés bonobos, cujasimpaticíssima personalidade me fazpensar num casamento de Bill Clintoncom Madre Teresa.

A construção a que chamamos éticadeve ter começado como parte de umprograma geral de regulação biológica.O embrião dos comportamentos éticosdeve ter sido mais uma etapa naprogressão que inclui os mecanismosnão conscientes e automatizados quenos permitem regular o metabolismo,ter pulsões e motivações e ter emoçõese sentimentos dos mais diversos tipos.Não é difícil imaginar a emergência dajustiça e da honra a partir de práticasde cooperação. Um aspecto particulardas emoções sociais, aquele que seexprime sob a forma decomportamentos dominantes ousubmissos no interior de um certogrupo, teria tido também um papelimportante nos processos denegociação que definem acooperatividade.

Parece-me razoável pensar que osseres humanos equipados com esse

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repertório de emoções e cujos traçosde personalidade incluiriam estratégiasde cooperatividade teriam sobrevividomais facilmente e teriam por issodeixado mais descendentes. Essa seriaa maneira mais simples de estabeleceruma base genômica para oaparecimento de cérebros capazes decomportamento cooperativo. Não estoude forma alguma sugerindo que hajaum gene para o comportamentocooperativo ou para oscomportamentos éticos gerais. Serianecessário apenas uma presençaconstante dos diversos genesnecessários para dotar o cérebro decertos circuitos - por exemplo, oscircuitos de regiões como a do lobofrontal ventromedial. Em outraspalavras, alguns genes, trabalhandoem conjunto, seriam capazes depromover a construção de certoscomponentes cerebrais, e a operaçãoregular desses componentes levaria aoaparecimento de certas estratégiascognitivas em relação a certascircunstâncias ambientais. Em suma, aevolução teria dotado os nossoscérebros dos dispositivos necessáriospara reconhecer certas configuraçõescognitivas e desencadear certasemoções que levariam à solução dos

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problemas e das oportunidades postospelas configurações. A sintoniaminuciosa desses notáveis dispositivosdependeria, é claro, da história e dohábitat do organismo.19

Para que não se pense que aevolução e a sua bagagem de genestem tido sempre um papel maravilhosoe nos trouxe todos esses magníficosdispositivos, é hora de salientar quetodas as emoções positivas de quevenho falando, e que o altruísmo a queme referi, dizem respeito ao grupo. Emtermos humanos, exemplos de grupoincluem a família, a tribo, a cidade e anação. Para aqueles que estão fora dogrupo, a história evolucionária dasreações emocionais é bem menosamável. As emoções simpáticas podemfacilmente tornar-se desagradáveis ebrutais quando são dirigidas para forado círculo a que naturalmente sedestinam. O resultado é bem sabido:raiva, ressentimento, violência, todasas reações que facilmentereconhecemos como o embrião possíveldos ódios tribais, do racismo e daguerra.

Esta é também a hora de recordarque os mais recomendáveiscomportamentos humanos não sãonecessariamente impressos nos

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circuitos neurais sob o controle dogenoma. A história da nossa civilizaçãoé, de certo modo, a história de umatentativa persuasiva de oferecer osmelhores dentre os nossos sentimentosmorais a círculos cada vez mais amplosda humanidade, para além dasrestrições do grupo, de forma aabranger, eventualmente, ahumanidade inteira. É claro queestamos muito longe de atingir esseideal.

E há ainda mais a dizer sobre o ladonegativo das nossas emoções sociais.Os comportamentos de dominância, e oseu complemento, os comportamentosde submissão, são componentesimportantes das emoções sociais. Adominância tem um lado positivo, dadoque indivíduos dominantes podemmuitas vezes proporcionar soluçõespara os problemas de umacomunidade. Indivíduos dominantesnegociam e lideram. Por vezes,encontram o caminho da salvaçãoatravés de caminhos que levam aoalimento e ao abrigo, ou de caminhosque levam à profecia e à sabedoria.Mas esses indivíduos dominantespodem também tornar-se déspotas,especialmente quando a dominância sefaz acompanhar do seu irmão gêmeo, o

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carisma. É fácil para tais indivíduosnegociar mal e conduzir à guerraerrada; é fácil também para essesindivíduos reservar as emoçõesagradáveis para um grupo cada vezmenor, o grupo daqueles que osapóiam mais diretamente. Da mesmaforma, os comportamentos submissostêm um lado positivo - podemdesempenhar um papel importante naelaboração de contratos sociais e naconstrução do consenso necessáriopara resolver conflitos -, mas têmtambém aspectos negativos - aobediência e a submissão à tiraniapodem levar rapidamente ao declíniode todo um grupo.

A elucidação dos mecanismosbiológicos em que se assentam oscomportamentos éticos não significaque esses mecanismos ou a suadisfunção sejam a causa singular de umdeterminado comportamento. O fato deque contribuem para o comportamentonão significa que sejam,necessariamente, determinantes dessecomportamento.

Creio, evidentemente, que oscomportamentos éticos dependem daatividade de certos sistemas cerebrais.Mas esses sistemas não são centros.Não dispomos de um centro ou centros

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da moral. Nem mesmo a regiãoventromedial do córtex pré-frontal, cujaimportância para os comportamentoséticos é óbvia, deve ser consideradaum centro. Além disso, os sistemas queapóiam os comportamentos éticos nãocomeçaram a sua existência neuralcom uma dedicação exclusiva à ética.No fundo, são sistemas dedicados àregulação biológica, à memória, àdecisão e à criatividade. Oscomportamentos éticos são, elesmesmos, o resultado de certassinergias entre essas atividades.

Talvez o papel mais fundamental dossentimentos no tocante à ética tenhasempre sido, desde o seuaparecimento, o de mantermentalmente presente a condição davida de forma que essa condiçãopudesse desempenhar um papelprincipal na organização docomportamento. E é precisamenteporque os sentimentos continuamainda a ter esse papel que julgo queeles devem ser ouvidos quando acoletividade social discute a avaliação,desenvolvimento e aplicação deinstrumentos culturais tais como asleis, a justiça e a organizaçãosociopolítica.20

Se os sentimentos podem refletir o

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estado da vida dentro de cada serhumano, podem também refletir oestado da vida de um grupo de sereshumanos, pequeno ou grande. Oexame das relações entre fenômenossociais e a experiência da alegria e damágoa parece-me indispensável para adiscussão de sistemas de justiça e deorganização política. Os sentimentos,especialmente a alegria e a mágoa,podem também inspirar a criação deum ambiente físico e cultural quepromova a redução da dor e defenda oaumento do bem-estar. Nessa mesmadireção, vários avanços da biologia e oprogresso das tecnologias médicas têmmelhorado a condição humana deforma consistente ao longo do últimoséculo. O mesmo se pode dizer dasciências e das tecnologias ligadas aocontrole do ambiente físico. E o mesmose deve dizer, em certa medida, da arteem geral e do desenvolvimento dariqueza nas nações democráticas.21

A HOMEOSTASIA E O GOVERNO DAVIDA SOCIAL

A vida humana começa sendoregulada por dispositivos naturais eautomáticos da homeostasia, como ometabolismo, os apetites e asemoções. Esses dispositivos magníficos

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garantem qualquer coisa de espantoso:que todos os seres humanos tenhamigual acesso a soluções automáticaspara o manejo dos problemas básicosda vida. A regulação da nossa vidaadulta, no entanto, requer muito maisdo que esses dispositivos automáticos,dado que o nosso ambiente é tãocomplexo, física e socialmente, quetoda uma nova espécie de conflitos nosconfronta e requer solução. Osprocessos relativamente simples deobter alimento ou procriar tornam-seatividades extremamente complicadasno meio ambiente em que sedesenvolve a nossa vida. Os instintos,as pulsões e as motivações, os apetitese as emoções não chegam pararesolver os problemas de umasociedade em que o ambiente culturalinclui a agricultura, diversas indústrias,os bancos, as organizações de saúde,as organizações de educação e deseguro e toda uma gama dasestruturas e de atividades cujoconjunto constitui uma sociedadehumana com a sua economia. Em taiscircunstâncias, a nossa vida deve serregulada não só pelos nossos desejos esentimentos, mas também pela nossapreocupação com os desejos esentimentos de outros. Essa

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preocupação exprime-se sob a formade convenções sociais e regras de éticae, por sua vez, essas convenções eregras são administradas porinstituições religiosas, de justiça e deorganização sociopolítica. Essasconvenções, regras e instituiçõesfuncionam no grupo social comoinstrumentos homeostáticos. A arte, aciência e a tecnologia assistem essesmecanismos de homeostasia social.

Nenhuma das instituições envolvidasno governo do comportamento socialcostuma ser olhada como umdispositivo de regulação da vida, talvezporque essas instituições funcionemtão frequentemente de forma eficaz outalvez porque seu alvo imediatoencubra a ligação menos aparente quetêm com o processo da vida.Indubitavelmente, no entanto, o alvode todas essas instituições éprecisamente a regulação da vida numambiente particular. Com pequenasvariações de ênfase, direta ouindiretamente, no indivíduo ou nacolectividade, a meta final dessasinstituições é promover a vida e evitara morte, é robustecer o bem-estar ereduzir o sofrimento. Odesenvolvimento de mecanismos dehomeostasia social foi importante para

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os seres humanos porque a regulaçãoautomática da vida tem limitesdrásticos quando os ambientes físicos esociais se tornam particularmentecomplexos. Sem qualquer apoio dadeliberação, da pedagogia ou dosinstrumentos formais da cultura, asespécies não humanas possuemcomportamentos úteis cuja gama corredo banal - encontrar comida e procriar -até o sublime - a compaixão para comum congênere. Mas a situação humanaé bem diferente. É claro que nãopodemos dispensar nenhuma parte dosdispositivos inatos de comportamentoque o genoma nos oferece. No entanto,à medida que as sociedades humanasse tornam mais complexas e, por certo,durante os 10 mil anos que sepassaram desde que a agricultura sedesenvolveu, a sobrevida e o bem-estarhumanos vêm dependendo de umaforma adicional de regulação nãoautomática que ocorre num espaçosocial e cultural. Estou me referindo, éclaro, às formas de comportamentohumano que habitualmente associamosao raciocínio e à liberdade de decisão.22

Os seres humanos não só demonstramcompaixão pelo sofrimento de um outroser, coisa que variadas espécies nãohumanas podem também demonstrar,

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como sabem que sentem essacompaixão. Talvez por isso mesmo, osseres humanos têm sido levados amodificar as circunstâncias em que osacontecimentos que provocam taisemoções costumam ocorrer.

A natureza tem disposto de milhõesde anos para aperfeiçoar osdispositivos automáticos dahomeostasia, enquanto os dispositivosnão automáticos dispõem de unsescassos milhares de anos. Mas não éessa apenas a diferença entre osdispositivos automáticos e nãoautomáticos da regulação da vida. Umaoutra diferença importante tem a vercom os “objetivos” e os “meios” dessesdiversos dispositivos. Os objetivos e osmeios dos dispositivos automáticosestão bem estabelecidos e sãoextremamente eficazes. Contudo,quando nos viramos para osdispositivos não automáticos,deparamos com uma situaçãodiferente. Alguns dos objetivos estãoclaramente definidos - por exemplo,não matar um outro ser humano - , masvários outros estão ainda abertos anegociação - a erradicação da pobrezae da doença. Além disso, os meiospelos quais será possível atingir certosobjetivos variam notavelmente com o

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grupo humano e com o períodohistórico e nada têm de rigidamenteestabelecidos. Os sentimentos têm porcerto contribuído para articular os alvosque definem a humanidade no sentidomais refinado do termo, como porexemplo não causar dano a outros epromover o bem-estar dos outros. Masa história da humanidade é a históriade uma luta na tentativa de encontrarmeios aceitáveis para chegar a essesobjetivos. Pode-se dizer, por exemplo,que os objetivos do marxismo eramlouváveis sob vários pontos de vista,visto que a intenção do marxismo eracriar um mundo justo, um paraíso naTerra. E, no entanto, os meios utilizadospelas sociedades marxistas tiveramresultados desastrosos talvez porque,entre outras razões, esses meios secolocaram em confrontaçãopermanente com mecanismos bemestabelecidos da regulação automáticada vida. Aquilo que se consideravadesejável para uma grandecoletividade requeria a dor e osofrimento de numerosos indivíduos. Oresultado tem sido uma tragédiahumana cujos custos são altíssimos.

Na maior parte dos casos, osdispositivos não automáticos deregulação são um trabalho em curso,

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dificultado pela negociação deobjetivos e meios que não perturbemaspectos automáticos da regulação davida. Nessa perspectiva, creio que ossentimentos continuam a ser essenciaispara se manter em mente os alvos queuma determinada cultura considerainvioláveis e merecedores deaperfeiçoamento. Os sentimentoscontinuam também a ser um guianecessário para a invenção enegociação de meios que permitamatingir um determinado objetivo semperturbar os mecanismos de regulaçãoautomática e sem corromper asintenções desse objetivo. Ossentimentos são tão importantes hojecomo no dia em que os seres humanosdescobriram, pela primeira vez, quematar outro ser humano era uma açãoreprovável.

As convenções sociais e as regraséticas podem ser vistas em parte comoextensões da homeostasia no âmbitoda sociedade e da cultura. O resultadoda aplicação de convenções e regraseficazes é precisamente o mesmo dofuncionamento de dispositivos como ometabolismo ou os apetites: umequilíbrio do processo da vida quepermita a sobrevida e o bem-estar. Asconstituições que governam um Estado

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democrático, as leis propostas deacordo com essas constituições e aaplicação dessas leis num sistemajudicial são dispositivos homeostáticos.Todos eles estão ligados por um longocordão umbilical a outros níveis daregulação homeostática básica. Certasorganizações mundiais que tiveram oseu começo no século xx, como porexemplo a Organização Mundial deSaúde, a UNESCO e as Nações Unidas,fazem parte dessa tendência humanade estender a homeostasia a umaescala cada ver maior da humanidade.É bem sabido que tais organizaçõestêm conseguido alguns bons resultadosmas que também sofrem deimperfeições que apenas revelam a suamenoridade. Apesar disso, vejo a suapresença como sinal de progresso. Vejotambém com alguma esperança o fatode que o estudo das emoções sociaisestá na sua infância. Quando o estudocognitivo e neurobiológico das emoçõese sentimentos puder se juntar ao daantropologia e da psicologiaevolucionária, antevejo a possibilidadede testar cientificamente algumas dassugestões contidas neste capítulo.Talvez possamos um dia compreenderum pouco melhor como a biologiahumana e a cultura interagem e até

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como o ambiente social e físicointeragiram com o genoma ao longo dahistória da evolução.

Noto de novo que as ideiasexpressas neste capítulo nãoconstituem uma proposta formal sobrea neurobiologia dos comportamentoséticos e que não é possível tratar aqui,em detalhes, da perspectiva históricapertinente.23

OS FUNDAMENTOS DA VIRTUDE

Escrevi no princípio deste livro que omeu regresso a Espinosa aconteceuquase por acaso quando tentei verificaruma certa citação que tinha bemguardada, num papel amarelecido pelotempo. Nunca tinha me demorado aanalisar as razões por que um diaguardei a citação. Hoje penso que devoter intuído qualquer coisa de específicoe radioso, qualquer coisa que agora meparece transparente.

A citação faz parte da proposição 18da Parte iv da Ética e diz o seguinte: “Oprimeiro fundamento da virtude é oesforço (conatum) de preservar o selfindividual, e a felicidade consiste nacapacidade humana de preservar oself”. Em latim, o texto é o seguinte...“virtutis fundamentum esse ip sum

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conatum proprium esse conservandi, etfelicitatem in eo consistere, quod homosuum esse conservare potest”. Énecessário dizer qualquer coisa sobreos termos que Espinosa utilizou nessetexto antes de continuar o comentário.Em primeiro lugar, tal como noteianteriormente, a palavra conatum podeser traduzida como esforço ou tentativaou tendência, e é possível que Espinosativesse em mente qualquer dessessignificados ou talvez uma misturadeles. Em segundo lugar, a palavravirtutis tem não apenas uma conotaçãomoral, mas também se pode referir aopoder, à capacidade de agir (voltareimais tarde a esse ponto).Curiosamente, nessa passagem,Espinosa usa a palavra felicitatem, quefica bem traduzida por felicidade, emvez do termo laetitia, cujos váriossignificados incluem alegria, exultação,deleite e felicidade.

À primeira vista, as palavras deEspinosa soam como uma prescriçãopara a cultura egoísta do nosso tempo,mas nada podia estar mais longe doseu verdadeiro significado. Essaproposição é a pedra fundamental deum sistema ético extremamentegeneroso. É uma afirmação de que nabase de toda e qualquer regra do

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comportamento que possamos pedir aum ser humano para seguir, háqualquer coisa de inalienável: umorganismo vivo, um organismo que seconhece a si mesmo porque a mentedesse organismo pôde construir umself, um organismo que tem umatendência natural a preservar a suaprópria vida. O estado defuncionamento ótimo desse mesmoorganismo, que se confunde com oestado de alegria, resulta da aplicaçãoeficaz do esforço de preservar eprevalecer. Parafraseando a proposição18 em termos profundamenteamericanos, soaria assim: consideroessas verdades como auto-evidentes,que todos os seres humanos sãocriados de tal forma que tendem apreservar a sua vida e a procurar obem-estar, que a sua felicidade provémdo esforço bem-sucedido de sepreservar, e que o fundamento davirtude se apóia nesses fatos. Talvezessa ressonância de Espinosa não sejauma mera coincidência.

As palavras de Espinosa sãotransparentemente claras masrequerem uma certa elaboração paraque o seu enorme impacto possa serapreciado. Por que razão umapreocupação consigo mesmo pode ser

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vista como a base da virtude, sem queessa virtude diga respeito estritamenteao seu possuidor? Ou seja, de formamais direta, como é que Espinosa faz atransferência de um self pessoal paratodos os outros selves aos quais avirtude se deve também aplicar?

Espinosa faz essa transiçãoapoiando-se em fatos biológicos. Arealidade biológica da autopreservaçãoleva à virtude porque, na nossanecessidade irreprimível de nosmantermos a nós mesmos,necessitamos ajudar os outros a semanterem a si mesmos. Se nãotivermos essa preocupação perecemose, ao perecer, violamos ao mesmotempo o princípio fundamental daautopreservação e a virtude que lheestá ligada. O fundamento secundárioda virtude é, assim, a realidade de umaestrutura social e a presença de outrosseres vivos num sistema complexo deinterdependência com o nosso próprioorganismo. Não é possível escapar aessa interdependência. A essênciadessa transição pode se encontrartambém em Aristóteles, mas Espinosaliga-a claramente a um princípiobiológico, ao imperativo daautopreservação. Eis aqui, portanto, abeleza da citação envelhecida, vista na

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minha perspectiva de hoje: a citaçãocontém os fundamentos de um sistemade comportamento ético, e essesfundamentos são neurobiológicos. Sãofundamentos que resultam de umadescoberta baseada em observaçõesda natureza humana, e não nasrevelações de um profeta.

Os seres humanos são aquilo quesão: vivos e equipados com apetites,emoções e outros dispositivos deautopreservação, incluindo acapacidade de conhecer e raciocinar. Aconsciência, a despeito das suaslimitações, abre o caminho para oconhecimento e para a razão, os quais,por sua vez, permitem aos indivíduos adescoberta daquilo que é bom ou mau.De novo, o bem e o mal não sãorevelados, são descobertos,individualmente ou através dasinterações em sociedade.

A definição do bem e do mal ésimples e sensata. Os bons objetos sãoaqueles que levam, de forma previsívele sustentável, aos estados de alegriaque reforçam o poder e a liberdade deação. Os objetos maus são aqueles queprovocam o resultado oposto: oencontro desses objetos com umorganismo é desagradável para essemesmo organismo.

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E que dizer acerca de boas ou másações? Boas ações e más ações nãosão meramente aquelas queconcordam ou não com os apetitesindividuais e com as emoções. As boasações são aquelas que não sóproduzem bons resultados para oindivíduo através dos apetites e dasemoções, mas que também nãocausam nenhum dano a outrosindivíduos. Essa barreira éintransponível. Uma ação que possa serpessoalmente benéfica mas que causedanos a outros não é uma boa açãoporque o dano causado a outros vempor seu turno causar dano ao indivíduoque o causa. Tais ações são más: “... onosso bem resulta especialmente daamizade que nos liga a outros sereshumanos e às vantagens que assimresultam para a sociedade” (Ética,Parte V, proposição 10). Julgo queEspinosa quer dizer que o sistemaconstrói em cada pessoa imperativoséticos com base na presença demecanismos de autopreservação desdeque essa pessoa tenha em mente arealidade social e cultural. Para além decada self individual há os outros, comoindivíduos ou como entidades sociais, ea autopreservação desses outros,através dos seus próprios apetites e

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emoções, deve ser tomada emconsideração. Nem a essência doconatus nem a noção de que os danoscausados a outros causam danos a sipróprio são invenções de Espinosa. Masa poderosa ligação dessas ideias éespinosiana.

O esforço e a tentativa de vivernuma concordância pacífica com outrossão uma extensão do esforço etentativa de preservar o próprio self. Oscontratos sociais e políticos sãoextensões do mandato biológicopessoal. Somos estruturadosbiologicamente de uma certa forma,inclinados a sobreviver agradavelmenteem vez de sobreviver com dor, e dessanecessidade provém uma certa formade contrato social, e é curioso pensarque a tendência natural da procura deconcordância social foi incorporada nasnossas características biológicas, pelomenos em parte, devido ao sucessoevolucionário das populações cujoscérebros aperfeiçoaram oscomportamentos cooperativos.

Além da biologia básica há umdecreto humano que tem raízesbiológicas mas que apenas emerge nomeio de estruturas sociais e culturais,sendo um produto do conhecimento eda razão. Diz Espinosa: “A lei de que

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um homem ao lembrar-se de uma certacoisa imediatamente se lembra deoutra que é parecida ou que foipercebida simultaneamente com ela éuma lei que provém necessariamenteda natureza do homem. Mas a lei deque os homens devem ceder, ou serobrigados a ceder, alguns dos seusdireitos naturais, e de que devem seligar entre si de forma a viver de umcerto modo, depende de um decretohumano. Embora eu admita sem dúvidaque todas as coisas sãopredeterminadas por leis naturaisuniversais, de forma que existam efuncionem numa certa maneira fixa edefinitiva, mantenho ainda que as leisque acabo de mencionar dependem deum decreto humano”.24

Espinosa ficaria contente de saberque uma das razões por que o decretohumano pode tão facilmente criarraízes culturais resulta de o desenho docérebro humano tender a facilitar a suaprática. É bem provável que as formasmais simples dos comportamentosnecessários para realizar esse decretohumano, como o altruísmo recíproco oua censura moral, estejam calmamenteà espera, no nosso cérebro, de seracordadas pela experiência social. Épreciso realizar um intenso trabalho

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social para formular e aperfeiçoar o taldecreto humano, mas o nosso cérebroestá preparado para cooperar comoutros na tentativa de tornar essedecreto possível. É agradável pensarque dispomos desses bons começoscerebrais, mas não devemos terilusões: certas emoções sociaisnegativas, bem como a forma como acultura moderna as explora, tornam odecreto humano difícil de se pôr emprática e ainda mais difícil de melhorar.

A importância dos fatos biológicosno sistema espinosiano é imensa. Vistoà luz da biologia moderna, o sistema écondicionado pela presença da vida,pela presença de uma tendêncianatural para preservar essa vida, pelofato de que a preservação da vidadepende do equilíbrio de funções vitaise, consequentemente, da regulação davida, pelo fato de que o estado daregulação da vida é expresso sob aforma de afetos modulados por apetitese pelo fato ainda de que esses apetites,emoções e a condição precária da vidapodem ser conhecidos e apreciadospelo indivíduo humano dada aconstrução interna do self, aconsciência, o conhecimento e a razão.Os indivíduos humanos conscientesconhecem os seus apetites e emoções

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sob a forma de sentimentos, e essessentimentos aprofundam oconhecimento que esses sereshumanos têm da fragilidade da vida deforma a tornarem esse conhecimentouma preocupação. Dadas as razões quediscutimos acima, essa preocupaçãotransborda do self para o outro.

Não quero sugerir que Espinosaalguma vez tenha dito que a ética, asleis e a organização política eramdispositivos homeostáticos. Mas a ideiade que o são é compatível com osistema espinosiano dada a formacomo ele encarava a ética, a estruturado Estado e as leis como meios paraque os indivíduos atingissem oequilíbrio natural que se exprime naalegria.

Diz-se, por vezes, que Espinosa nãoacreditava no livre-arbítrio, uma noçãoque aparece à primeira vista comoestando em conflito com um sistemaético em que os seres humanosdecidem comportar-se de umadeterminada forma de acordo comimperativos claros. Mas Espinosa nuncanegou que temos consciência dasescolhas que fazemos e de quepodemos escolher e controlar o nossocomportamento pela vontade. Espinosarecomendava constantemente que não

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devemos tomar uma decisão queconsideramos errada e que devemos,sim, escolher aquela que consideramosmais correta. A sua estratégia para asalvação humana depende exatamenteda possibilidade de fazer escolhasdeliberadas. Não é portanto nessesentido que nos falta liberdade de ação.O problema é outro. Espinosa faz notarque, no fundo, todas as nossasescolhas acabam sendo explicáveisdevido a condições prévias da nossaconstituição biológica e que, ao fim eao cabo, tudo quanto pensamos efazemos resulta de certas condiçõesantecedentes. Mas o fato de que asações são explicáveis não nos impedede dizer um não categórico, tão firme eimperativamente como Immanuel Kantgostaria, muito embora a nossaliberdade completa seja ilusória.

A proposição 18 tem um significadoadicional. Espinosa chama a nossaatenção para o fato de que a felicidadeé a capacidade de nos libertarmos datirania e das emoções negativas. Afelicidade não é uma recompensa davirtude: a felicidade é a virtude em simesma.

PARA QUE SERVEM OSSENTIMENTOS?

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Para que servem os sentimentos?Eis uma questão que geralmente não érespondida, mas que julgo ser possívelresponder neste momento. Dado quetemos uma hipótese sobre aquilo queos sentimentos são, demos já oprimeiro passo para descobrir por querazão temos sentimentos e qual o valorque esses sentimentos podem ter.

Acabamos de ver que a emoção e osentimento desempenham papelprincipal no comportamento social e,por extensão, no comportamento ético.Aqueles leitores recalcitrantes a quemme dirigi no capítulo anterior têm todoo direito, no entanto, de resistir ao meuentusiasmo e sugerir que, utilizando aminha própria lógica, emoções nãoconscientes, mesmo sem qualquersentimento que as acompanhe, seriamcapazes de conduzir o comportamentosocial a um bom porto. Equivale a dizerque os mapas neurais dos estados deemoção seriam suficientes para guiar ocomportamento sem que fossenecessário que eles dessem lugar aimagens mentais, ou seja, asentimentos. Por trás desse argumentoestá a ideia de que a mentepropriamente dita não seria necessária,e ainda menos uma mente consciente.

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Vou tentar convencer esses leitoresrecalcitrantes.

A explicação do porquê dossentimentos é a seguinte. Para que océrebro possa coordenar as numerosasfunções do corpo das quais a vidadepende, ele precisa ter mapas nosquais os estados dos mais diversossistemas do corpo estão representadosa todo instante. O sucesso da regulaçãoda vida depende desse mapeamentoem massa. É necessário saber aquiloque está acontecendo em diversossetores do corpo para que certasfunções possam ser controladas e paraque certas correções possam serefetuadas.

Como vimos, os mapas neurais quesão indispensáveis para a regulação davida são também a base necessáriapara os estados mentais a quechamamos sentimentos. Esse fatopermite-nos avançar mais uma etapana procura do porquê dos sentimentos.Os sentimentos emergiram, com toda aprobabilidade, como um subproduto dofato de que o cérebro está empenhadono governo da vida. Se essa regulaçãoda vida não tivesse utilizadoeficazmente a presença de mapasneurais do estado do corpo, ou seja, seesses mapas neurais não tivessem

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prevalecido na evolução, é possível queos seres humanos nunca tivessem tidosentimentos.

Sim, isso é tudo verdade, diz um dosleitores recalcitrantes, mas queroregistrar uma outra objeção. Porexemplo, visto que os processosbásicos de regulação da vida sãoautomáticos e não conscientes, ossentimentos, que no sentido habitualdo termo são conscientes, seriamsupérfluos. O cérebro poderiacoordenar os processos da vida eexecutar correções fisiológicas combase em meros mapas neurais, semqualquer espécie de ajuda dessessentimentos conscientes. A mente nãoprecisaria saber o conteúdo dessesmapas. Essa objeção tem um certopeso, sem dúvida, mas desconsiderapor completo um ponto muitoimportante que apresenteianteriormente. Sem a presença desentimentos, os mapas do corpo podemapenas prestar uma assistêncialimitada ao processo de regulação davida. Os mapas funcionam bem paraproblemas de uma certa complexidade,mas quando os problemas se tornamdemasiado complicados, quandorequerem uma combinação derespostas automáticas e raciocínio

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sobre conhecimentos acumulados, osmapas inconscientes não bastam. É apartir desse momento que ossentimentos se tornam valiosos.

Valiosos por quê? Em primeiro lugarporque os problemas que envolvem osmais refinados juízos, os problemas queconfrontamos em qualquer atividadecriadora ou na atividade de julgar opróximo, requerem a exibiçãosimultânea e a manipulação denumerosos dados do conhecimento.Quer dizer, é apenas o nível mental dasoperações biológicas que nos permiteintegrar todos esses dados de umaforma rápida e nos permite avaliá-losde modo a resolver um problema comeficiência. Voltarei a este ponto no fimdo capítulo 5.

A outra explicação da mais-valia dossentimentos é bem mais óbvia. Ossentimentos são acontecimentosmentais proeminentes, têm o poder dechamar a atenção para as emoções deonde provêm e para os objetos quedesencadearam essas emoções. Nosseres humanos, que dispõem de umsentido do passado pessoal e do futuroantevisto - que constituem aconsciência ampliada e o selfautobiográfico -, a presença dossentimentos leva o cérebro a manejar

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de forma extremamente saliente asrepresentações dos objetos e situaçõesque causaram a emoção. Os processosde avaliação que ocorrem no início dacadeia emotiva podem ser revisitados eanalisados em detalhes. Além disso, ossentimentos chamam também aatenção para as consequências dasituação emotiva: por exemplo, o queestá acontecendo com o objeto quedesencadeou a emoção? Qual a razãopor que o objeto emocionalmentecompetente provocou uma talresposta? Quais os pensamentos quesurgem na sequência da emoção? Noquadro autobiográfico em que ocorremnos seres humanos, os sentimentospermitem e por vezes garantem que osacontecimentos importantes da nossavida não passem despercebidos. Opassado, o agora e o futuro antevistotornam-se salientes sob a ação dossentimentos e têm assim uma maiorprobabilidade de influenciar o raciocínioe a tomada de decisões.

Quando os sentimentos se tornamconhecidos para o self do organismoque os possui, melhoram e amplificamo processo de governar a vida. Aestrutura por trás dos sentimentosoferece informações explícitas esublinhadas sobre o estado do

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organismo e permite assim correçõesbiológicas mais perfeitas. Ossentimentos colocam um carimbo nosmapas neurais, um carimbo em que sepode ler “Preste atenção!”.

A aprendizagem e a recordação dosobjetos e situações emocionalmentecompetentes são também apoiadaspela presença dos sentimentos. De ummodo geral, a memória de umasituação sentida faz com que,conscientemente ou não, evitemosacontecimentos associados comsentimentos negativos e procuremossituações que possam causarsentimentos positivos.25

No fundo nada há de surpreendenteno fato de a estrutura neural quepermite os sentimentos ter prevalecidotão robustamente na evolução. Ossentimentos não são supérfluos. Acomplicada escuta que executam nasprofundezas de cada um de nós éextremamente útil. Não se tratasimplesmente de confiar nossentimentos e de lhes dar apossibilidade de ser árbitros do bem edo mal. Trata-se, sim, de descobrir ascircunstâncias nas quais ossentimentos podem de fato ser umárbitro, e de combinar inteligentementecircunstâncias e sentimentos de forma

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que possam guiar o comportamentohumano.

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5. Corpo, cérebro e mente

CORPO E MENTE

Será que a mente e o corpo sãoduas coisas diferentes ou apenas uma?Se não são a mesma coisa, será que amente e o corpo são feitos de duassubstâncias diferentes ou apenas deuma? Se há duas substâncias, será quea substância da mente aconteceprimeiro e causa a existência do corpoe do cérebro, ou será que é asubstância do corpo que vem primeiroe que o cérebro que dela faz partecausa a mente? Como é que essassubstâncias, se é que há duas,interagem? E dado que começamos acompreender melhor a forma como oscircuitos neurais funcionam, será quepodemos também compreender como éque a atividade desses circuitos se

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relaciona com os processos mentaispresentes na nossa introspecção? Essassão algumas das questões principaisque dizem respeito ao chamadoproblema mente-corpo, um problemacuja solução é essencial paracompreendermos aquilo que somos.Aos olhos de muitos cientistas efilósofos esse problema ou é falso ou jáestá resolvido. Mas a verdade é que,em relação às perguntas apresentadasacima, poucas respostas há quesatisfaçam a maioria daqueles quesobre elas refletem. A verdade é que asolução para o problema mente-corpoou não é satisfatória, ou não tem sidoapresentada satisfatoriamente.

Até há relativamente pouco tempo oproblema mente-corpo era um temapara a filosofia, fora do campo daciência empírica. Até mesmo no séculoxx, quando tudo indicava que asciências cognitivas e a neurociênciatratariam finalmente do problema, asbarreiras que se levantaram foramtantas, em termos de método e deabordagem, que a solução foi adiadauma vez mais. Foi preciso esperar até aúltima década do século xx para que oproblema fosse finalmente colocado na

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agenda científica, ligado em grandeparte à investigação da consciência. Éimportante notar, contudo, queconsciência e mente não sãosinônimos. A consciência é o processoque enriquece a mente com apossibilidade de saber da sua própriaexistência-a referência a quechamamos self e saber da existênciados objetos que a rodeiam. Em Omistério da consciência, expliquei queem certas condições neurológicas épossível verificar que a mente continuamas a consciência desaparece. Apenasos termos consciência e menteconsciente devem ser consideradossinônimos.1

Os estudos neurobiológicos ecognitivos têm elucidado alguns dosaspectos da questão mente-corpo, masas interpretações que daí resultam sãotão contestadas que pouco incentivo hápara refletir nos dados que se vãoacumulando ou para procurar novosdados. Tudo isso é de lamentar porque,a despeito das muitas barreiras, há queregistrar um verdadeiro progresso, eestamos já de posse de bem maisconhecimentos do que pode parecer àprimeira vista.2

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Há duas razões para considerar oproblema mente-corpo neste ponto dolivro. Primeiro, uma boa parte dasideias que propus relativamente àemoção e ao sentimento sãoespecialmente pertinentes para odebate sobre o problema mente-corpo.Em segundo lugar, o problema mente-corpo é parte central do pensamentoespinosiano. Com efeito, Espinosaparece ter entrevisto parte de umasolução, uma possibilidade quefortaleceu as minhas própriasconvicções sobre essa questão. É talvezpor isso que me recordo de quandoconsolidei a minha perspectiva atualsobre o problema. Um lugar que fazparte dessa recordação é Haia, no anoem que fui convidado a apresentar aHuygens Lecture.

HAIA, 2 DE DEZEMBRO DE 1999

O patrono da Huygens Lecture éChristiaan Huygens. Huygens pouco

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tinha a ver com o cérebro, a mente oua filosofia, e tinha tudo a ver com aastronomia e a física. Uma das suaspreocupações era o espaço. Descobriuos anéis de Saturno e calculou adistância entre a Terra e as estrelas.Também se preocupava com o tempo:inventou o relógio de pêndulo. Epreocupava-se com a luz: o princípio deHuygens refere-se à sua teoria da luz.Mas a razão por que Huygens é opadrinho dessa conferência anual, quedeve versar sobre todo e qualqueraspecto da ciência, é aparente:Huygens é o mais famoso dos cientistasholandeses. Ao seu tempo, o pai deHuygens, Constantijn, era tão famosocomo o filho e não menos notável. Asua sabedoria incluía o latim, a música,a matemática, a literatura, a história,as leis e a arte. Era poeta. E era umhomem de Estado, o secretário dostadtholder da Holanda, como o seupróprio pai tinha sido. O fato de que aHolanda precisava encher os paláciosdo Estado com pinturas de qualidadetambém fez de Constantijn Huygensum patrono das artes. A sua grandedescoberta, nesse domínio, foiRembrandt.

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O tópico da minha conferência é abase neural da mente consciente e,dado o caminho que os meuspensamentos têm seguido neste últimoano, a ligação com Huygens éinteiramente apropriada. Huygens eEspinosa foram contemporâneos, tendonascido com uma diferença de apenastrês anos e, durante algum tempo,foram até vizinhos. É claro queHuygens sempre viveu em grandeesplendor, e não num andar alugado -afamília Huygens tinha um palácio emHaia e uma propriedade entre Haia eVoorburg -, mas Huygens e Espinosapuderam respirar o mesmo ar eencontraram-se em diversas ocasiões.Huygens comprava lentes de Espinosa,e Espinosa conhecia bem o trabalho deHuygens e possuía os seus livros. Omundo do judeu holandês recluso e omundo do admirado aristocrataholandês talvez pudessem ter seaproximado dado que eram dominados,em ambos os casos, pela curiosidadeintelectual. Mas as personalidadeseram diferentes demais para que aamizade pudesse florescer, sem queisso impedisse que cada um tivesseuma ideia bem clara do valor do outro.

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Huygens sabia que Espinosa poucapaciência tinha com René DescartesDescartes tinha iniciado o jovemChristiaan nos mistérios da álgebra eessa impaciência não era problema,porque Huygens também não tinhagrande entusiasmo por Descartes.Huygens parece ter-se referido aEspinosa como o “judeu de Voorburg” e“o nosso israelita”, mas isso não oimpedia de achar que as lentes deEspinosa não podiam ser melhores e derespeitar o intelecto de Espinosa aponto de o considerar um rival.Escrevendo de Paris, onde gostava deviver sempre que os holandesesestavam em guerra, Huygensaconselharia o seu irmão a nãopartilhar ideias novas com Espinosa.

A Huygens Lecture é proferida naIgreja Nova, um marco do século XVII,bem próximo da casa de Espinosa.3

Começo a conferência como a planejei,mas Espinosa não me sai do espírito,mais ou menos vivo ou mais ou menosenterrado, tão perto de mim que meseria possível apontá-lo. Continuo alição de acordo com o plano quepreparei, mas não me sai dopensamento que Espinosa pode bem

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ter prefigurado algumas das conclusõesque vou apresentar.

O CORPO INVISÍVEL

É fácil compreender por que é que amente parece ser um mistérioinabordável. A mente, como entidade,parece ser diferente, como espécie, dasoutras coisas que conhecemos, dosobjetos que nos rodeiam e das partesdo nosso próprio corpo que podemosver e tocar. Há uma perspectiva sobre oproblema mente-corpo, conhecidacomo dualismo de substância, quecapta bem essa primeira impressão: ocorpo e as suas partes são matériafísica enquanto a mente não é. Quandodeixamos que uma parte da nossamente observe o resto dela, de formainocente e natural, sem a influência dosconhecimentos científicos que hojetemos, as observações parecemrevelar, por um lado, a matéria físicaque constitui células, tecidos e órgãos

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do nosso corpo e, por outro lado, o tipode coisas em que não podemos tocar,os sentimentos e as impressões visuaise auditivas que constituem ospensamentos da nossa mente e quenós presumimos, sem qualquerevidência que apóie tal presunção, quesão feitos de uma outra espécie desubstância, uma substância não física.

A perspectiva sobre o problemamente-corpo que resulta dessasreflexões inocentes separa a mentepara um lado e o corpo e o seu cérebropara outro. Tal perspectiva, conhecidaem filosofia como dualismo desubstância, deixou há muito de ser aperspectiva corrente, tanto em ciênciacomo em filosofia, mas é, apesar disso,a perspectiva que a maior parte dosseres humanos continua a identificarcomo a sua preferida.

Em essência, o dualismo desubstância é a perspectiva queDescartes dignificou e que é tão difícilde conciliar com o resto da sua obracientífica. Com efeito, Descartes foicapaz de conceber mecanismos muitocomplexos para as operações do corpo,

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e foi capaz de romper com a tradiçãoescolástica e entretecer dois domíniosque, até então, tinham se mantidoseparados: o domínio físico inorgânicoe o domínio orgânico vivo. Descartes foitambém capaz de concebermecanismos sofisticados para a mentee asseverar que mente e corpo seinfluenciavam mutuamente. Oproblema é que Descartes nunca logroupropor um mecanismo plausível paraessas influências mútuas. Descartespropôs que mente e corpo interagiammas nunca explicou como a interaçãopoderia ter lugar além de dizer que aglândula pineal era a região quepermitia tais interações. A glândulapineal é uma pequena estruturacerebral, localizada na base do cérebroe na sua linha média e, como hoje sesabe, nada há na sua estrutura ou nassuas ligações que lhe permitam realizara extraordinária tarefa que Descarteslhe atribuiu. A princesa Elizabeth daBoêmia, estudante e amiga deDescartes, viu claramente que arelação entre mente e corpo queDescartes propunha requeria que amente e o corpo fizessem contato umcom o outro. Claro que, no momentoem que Descartes retirou da mentequalquer propriedade física, essa

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possibilidade de contato desapareceu.4

Para Descartes, a mente humananão tinha extensão espacial esubstância material, duascaracterísticas negativas que lhepermitiriam sobreviver à morte docorpo. A mente era uma substância,mas não uma substância física. Não épossível saber com certeza seDescartes realmente acreditava nessaformulação. Pode ser que sim e podeser que não, talvez não e sim emépocas diferentes da sua vida. E nadahá que criticar a Descartes nestecapítulo. A incerteza e ambivalência deDescartes, se de incerteza eambivalência se tratava, nada têm dediferente da ambivalência que muitosoutros seres humanos, sábios ouignorantes, inteligentes ou estúpidos,têm tido através da história. Trata-se deuma incerteza e ambivalência muitohumanas e muito compreensíveis. Mas,seja como for, a formulação deDescartes permitia reafirmar aimortalidade da mente pessoal, umacoisa bem importante, dado quepermitiu a Descartes escapar aoanátema que vitimou Espinosa unsescassos anos mais tarde. Ao contrário

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de Espinosa, Descartes tem sido umpensador de referência, continuamente,conhecido de filósofos, cientistas e dopúblico em geral, hoje, ontem e noséculo XVII, embora nem sempre deforma favorável.

Apesar das suas limitaçõescientíficas, a perspectiva identificadacom Descartes corresponde bem àadmiração e ao espanto que,justificadamente, temos pela nossamente. Não há dúvida de que a mentehumana é especial, especial na suacapacidade imensa de sentir prazer edor e de conhecer a dor e o prazer deoutros; especial na sua capacidade deamar e perdoar. Especial na suamemória prodigiosa e na suacapacidade de simbolizar e narrar;especial no seu dom de linguagem comsintaxe; especial na capacidade decompreender o universo e criar novosuniversos; especial na velocidade efacilidade com que manipula e integraos conhecimentos que permitem asolução de um problema. Mas oespanto e a admiração para com amente humana são compatíveis comoutras perspectivas da relação entrecorpo e mente e não corrigem de forma

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alguma os defeitos da perspectiva deDescartes.

À medida que os dados daintrospecção vieram a serprogressivamente confrontados com osfatos da neurobiologia moderna, aperspectiva do dualismo de substânciaperdeu adeptos. Os fenômenos mentaisforam revelados como estreitamentedependentes do funcionamento de umaenorme variedade de circuitoscerebrais. Por exemplo: ver depende dofuncionamento de várias regiõesneurais específicas situadas ao longode projeções neurais que começam naretina e acabam nos hemisférioscerebrais.

Quando uma dessas regiões neuraisé comprometida, a visão écorrespondentemente perturbada.Quando todas as regiões neuraisrelacionadas com a visão sãocomprometidas, a visão écomprometida de forma completa. Omesmo acontece no que diz respeito àaudição ou ao olfato, ao movimento ouà fala, e a várias outras capacidadesmentais. Até mesmo pequenas

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perturbações de sistemas neuraisespecíficos acarretam enormesmodificações da mente. Lesõescircunscritas a certas regiões, comoacontecem num acidente vascularcerebral, alteram profundamente oconteúdo e a forma de sentimentos epensamentos. Como vimos, o mesmoacontece como resultado daadministração de drogas que alteram afunção química das células nervosas ealteram, correspondentemente,sentimentos e pensamentos mesmoquando essas células não ficampermanentemente lesadas. Para amaior parte dos cientistas quetrabalham nas ciências da mente e docérebro, o fato de que a mentedepende estreitamente da atividadecerebral já não está de forma algumaem disputa. Podemos todos celebrar aperspicácia de Hipócrates, quedefendeu essa mesma posição, há maisde dois milênios.

A descoberta de um nexo causalentre cérebro e mente e a descobertade uma dependência da mente emrelação ao cérebro constituem umprogresso, é claro, mas devemosreconhecer que, por si só, não elucidam

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o problema mente-corpo de formacompleta, e que, para que talelucidação ocorra, precisam sertranspostos diversos obstáculos. Umdesses obstáculos poderá sertransposto com uma simples mudançade ponto de vista. O obstáculo dizrespeito a uma situação curiosa: se éverdade que o acoplamento científicodo cérebro e da mente é um sinal deprogresso, também é verdade que, porsi só, não faz desaparecer a divisãodualista entre mente e corpo. Aquiloque faz, muito simplesmente, é alteraro ponto exato onde o dualismo divisivoincide. Na perspectiva mais moderna epopular, a mente e o cérebro vão paraum lado, e o corpo (ou seja, oorganismo inteiro mas sem o cérebro)vai para o outro. Nessa versãomoderna, a divisão separa cérebro e“corpo propriamente dito”. Mas explicarcomo mente e cérebro seinterrelacionam torna-se ainda maisdifícil quando se separa a partecerebral do corpo do resto do corpopropriamente dito. Infelizmente, essaforma revista de dualismo continua anão deixar ver com clareza aquilo queestá claramente em frente dos nossosolhos, ou seja, o corpo no sentido maisamplo do termo e a sua relevância para

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a construção da mente.

Esse corpo invisível me faz pensarno Homem invisível de Chesterton.5

Talvez o leitor conheça a história. Umfamoso assassinato foi cometido dentrode uma casa ao mesmo tempo quequatro pessoas vigiavam essa mesmacasa e observavam quem dela ia evinha. E eis o grande mistério: a vítimaestava sozinha, e os quatroobservadores afirmavam positivamenteque ninguém tinha entrado na casa ousaído de lá. Claro que a observação erafalsa: o carteiro tinha entrado na casa,cometido o assassinato e saído à vistade toda a gente, deixando até pegadasna neve. Todos os observadores tinhamolhado para o carteiro e todos elesgarantiam não o ter visto. A explicaçãopara o mistério é simples: o carteironão se encaixava bem na teoria que osobservadores tinham formulado sobre aidentidade do criminoso. Osobservadores olharam mas não viram.

Algo semelhante tem ocorrido com ogrande mistério por trás do problemamente-corpo. Para chegar a umasolução, mesmo a uma solução parcial,

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é necessário mudar a perspectiva. Epara mudar a perspectiva é necessáriocompreender que a mente emerge numcérebro situado dentro de um corpo-propriamente-dito, com o qual interage;que a mente tem os seus alicerces nocorpopropriamente-dito; que a menteprevaleceu na evolução porque temajudado a manter o corpo-propriamente-dito; e que a menteemerge em tecido biológico em célulasnervosas que partilham das mesmascaracterísticas que definem outrostecidos vivos no corpo-propriamente-dito. Mudar a perspectiva, por si só,não vai resolver o problema, masduvido que se encontre a solução senão mudarmos de perspectiva.

PERDER O CORPO E PERDER AMENTE

É curioso como certas observaçõespodem mudar a forma como pensamos.É curioso também que, por vezes, a

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reavaliação de uma certa observaçãonos ajuda a reorientar o pensamento.Foi isso que me aconteceu em relaçãocom um certo doente que um dia vi noinício da minha carreira neurológica. Odoente apontava para o seu corpo comgrande precisão e descrevia umasensação estranha que tinha começadono estômago e subido para o peito,altura em que o doente tinha notado aperda de sensação do corpo abaixo donível do peito, como se estivesse sobanestesia local. Essa sensação deanestesia tinha continuado a subir equando atingiu o nível da garganta odoente desmaiou.

Aquilo que ele estava descrevendoera a marcha vertical de umaperturbação da sensação do corpo,seguida por uma perda completa daconsciência a partir do momento emque a sensação do corpo tinha passadode estranha a ausente. Momentos maistarde, sem que disso tivesse tidoconhecimento o doente, ele seriaabalado por convulsões que faziamparte de uma crise epiléptica. Passadosalguns minutos, uma vez acabada acrise epiléptica, o doente tinharegressado à sua vida normal.

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É bem comum para os doentes comepilepsia descreverem sensaçõesestranhas antes do começo das crisesepilépticas. Esses fenômenos chamam-se auras. Auras como as desse doente,que começam na região do estômagoou do peito, são chamadas de“epigástricas”, e constituem avariedade mais comum dessefenômeno. Os doentes descrevem asubida dessas estranhíssimassensações, seguidas da perda deconsciência.6

Dado que essa história nada tem deexcepcional, é razoável perguntar porque razão lhe dou tanto apreço. A razãoé fácil de descobrir. Anos após terouvido essa descrição pela primeiravez, o caso sugeria a possibilidade deque a suspensão do mapeamento docorpo acarreta a suspensão da mente.De certo modo, retirar a presença docorpo é como retirar o chão em que amente caminha. A interrupção radicaldo fluxo das representações do corpoque suportam os nossos sentimentosacarreta uma interrupção radical dospensamentos que formamos sobreobjetos e situações e, inevitavelmentetambém, a interrupção radical da

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continuidade daquilo que percebemoscomo nossa existência.7

Muitos anos mais tarde, quandoestudei o meu primeiro doente comuma condição neurológica conhecidacomo assomatognosia, essa sugestãotornou-se não só plausível masnecessária. Nessa doente comassomatognosia, uma grande parte dasua sensação corporal desapareciagradualmente durante um períodobreve e assim se mantinha durantealguns minutos sem que, no entanto, amente ou o self desaparecessemtambém. A estrutura muscular docorpo, no tronco e nos membros,desaparecia por completo, mas asensação das vísceras, principalmentea sensação de um coração que bate,mantinha-se sem alteração. A doentepermanecia acordada e alerta durantea ocorrência desses episódiosinquietantes, embora não fosse capazde se mexer e não pudesse pensar emnada mais do que nesse episódioestranhíssimo. A mente dela nãoestava inteiramente normal, como éevidente, contudo a doente tinhaatividade mental suficiente paraobservar aquilo que estava

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acontecendo. A sua descrição nãopodia ser mais correta “Não perdi osentido do meu ser, perdi apenas omeu corpo”-, embora a sua descriçãopudesse ter sido ainda mais precisa setivesse dito que tinha perdido umaparte do seu corpo.

A situação de assomatognosiasugeria que, desde que haja algumarepresentação corporal, a mente nãoperde todos os seus alicerces e podepor isso continuar. A assomatognosiasugeria também que certasrepresentações corporais podem ter umvalor especial no alicerçar da mente,principalmente as representações quedizem respeito ao interior doorganismo, ou seja, às vísceras e aomeio interno. A propósito, aassomatognosia dessa doente foicausada por um acidente vascularcerebral que tinha ocorrido alguns anosantes e que tinha comprometido umaparte das regiões somatossensitivas doseu hemisfério direito. O acidentevascular tinha criado uma pequenacicatriz cerebral e era a partir dessacicatriz que se produzia uma criseepiléptica local. Durante a criseepiléptica, uma onda elétrica suspendia

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temporariamente a atividade de algunsdos circuitos que mapeiam o corpo.Suspeito que os mapas da região sn, si,e talvez alguns mapas da circunvoluçãoangular direita, deixavam de funcionardurante a crise epiléptica, enquanto aínsula mantinha as suas funções.

Ao longo dos anos venho meinteressando pelas situações muitoraras em que a percepção de partes docorpo é modificada pela doença. Porexemplo, um doente em que os nervosde um braço ou perna tenham sidocortados em consequência de umtraumatismo pode ter uma sensaçãoalterada desse membro, ou sentir que omembro não existe ou existe numaposição incorreta. Também é sabidoque, pelo contrário, um membroamputado pode ser sentido como seestivesse de fato presente, umasituação denominada “membrofantasma”. Nada disso é especialmenteagradável, mas os doentes adaptam-sea essas sensações.8 Contudo, quando apercepção de zonas mais extensas docorpo é perturbada, mesmo quetemporariamente, o resultadofrequente é uma considerávelperturbação mental. Em todos esses

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casos a perturbação tem a ver com asregiões somatossensitivas ou com asprojeções que conduzem sinais docorpo (discutidas no capítulo 3). Sãocasos raros, dada a variedade de viasde sinalização possível do corpo para océrebro e a improbabilidade deperturbar todas essas viassimultaneamente.9

A minha perspectiva atual sobre oproblema mente-corpo não tem comobase exclusiva esses fatos estranhos.No entanto, esses fatos, bem comoaqueles que dizem respeito à emoção eao sentimento (que discuti noscapítulos 2 e 3), levaram-me a conciliaruma formulação teórica com arealidade humana. A formulaçãoteórica especifica o seguinte:

• Que o corpo (o corpo-propriamente-dito) e o cérebro formamum organismo integrado e interagemmutuamente através de projeçõesquímicas e neurais.

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• Que a atividade cerebral sedestina primariamente a ajudar aregulação dos processos de vida doorganismo, tanto através dacoordenação interna das operações docorpo como pela coordenação dasinterações entre o organismo no seutodo e os aspectos físicos e sociais doambiente.

• Que o resultado primário daatividade cerebral é a sobrevida combem-estar; e que um cérebro capaz deproduzir um tal resultado primário podetambém produzir outros resultadosdesde escrever poesia até desenharnaves espaciais.

• Que em organismos complexoscomo o nosso, as operaçõesregulatórias do cérebro dependem dacriação e da manipulação de imagensmentais (ideias ou pensamentos) numprocesso a que chamamos mente.

• Que a percepção de objetos esituações, quer ocorram no interior doorganismo ou no seu exterior, requerimagens. Exemplos de imagens

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relacionadas com o exterior incluem asimagens visuais, auditivas, táteis,olfativas e gustativas. A dor e a náuseasão exemplos de imagens do interior.Para ser capaz de responder a umestímulo, de forma automática oudeliberada, o organismo necessita deimagens. A capacidade de antever eplanejar o futuro também requerimagens.

• Que a interface entre as atividadesdo corpo propriamente ditas e ospadrões mentais a que chamamosimagens consiste em regiões cerebraisespecíficas que utilizam vários circuitosnervosos para construir padrõesneurais dinâmicos e contínuos quecorrespondem às atividades do corpo,ou seja, que mapeiam essas atividadesà medida que ocorrem.

• Que o mapeamento não é umprocesso passivo. As estruturas em queos mapas são formados têm influênciano processo de mapeamento,contribuem para ele, resistem-no porvezes. Essas estruturas sãoinfluenciadas pelos sinais do corpo,como é evidente, mas também

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recebem influências de outrasestruturas cerebrais.

Dado que a mente emerge numcérebro que é parte integrante de umorganismo, a mente faz parte tambémdesse organismo. Em outras palavras,corpo, cérebro e mente sãomanifestações de um organismo vivo.Embora seja possível dissecar essestrês aspectos de um organismo sob omicroscópio da biologia, a verdade éque eles são inseparáveis durante ofuncionamento normal do organismo.

A CONSTRUÇÃO DAS IMAGENS DOCORPO

O cérebro produz duas espécies deimagens do corpo. À primeira espéciechamo imagens da carne. É uma

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espécie constituída por imagens dointerior do corpo baseada narepresentação da estrutura e do estadodas vísceras e do meio interior.

A segunda espécie diz respeito acomponentes particulares do corpo,como a retina, situada no fundo doglobo ocular, ou a cóclea, situada noouvido interno. Essa segunda espéciede imagens provém, portanto, desondas sensitivas especiais. Sãoimagens que têm base no estado deatividade das partes do corpo a quechamamos órgãos sensitivosperiféricos. As imagens ocorremquando essas partes especializadas docorpo são modificadas por objetosexteriores a ele. Resultam do contatofísico desses objetos com o corpo. Nocaso da retina e da cóclea,respectivamente, os objetos perturbampadrões de luz e de som e aperturbação é captada pelas sondassensitivas. No caso do tato, há umcontato mecânico direto de um objetocom a pele que modifica a atividadedas terminações nervosas situadasdentro da pele. As imagens queformamos da forma ou da textura deum objeto são consequência desse

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processo.

A gama de alterações corporais quepode ser mapeada no cérebro é muitovasta. Inclui alterações microscópicasque ocorrem no nível de fenômenosquímicos e elétricos (por exemplo, nascélulas especializadas da retina querespondem aos fótons que constituemos raios luminosos). Inclui tambémalterações macroscópicas que podemser apreciadas a olho nu (um membroque se move).

Em qualquer das duas espécies deimagens do corpo, vindas da carne oudas sondas sensitivas, o mecanismo deprodução é o mesmo. Em primeirolugar, a atividade numa região do corpoproduz uma alteração estruturaltransitória do corpo. Em segundo lugar,o cérebro constrói mapas dessasalterações do corpo numa série deregiões apropriadas para essemapeamento. A construção é feita coma ajuda de sinais químicos trazidos pelacorrente sanguínea e sinaiseletroquímicos trazidos por feixesnervosos. Em terceiro lugar, os mapasneurais que assim se formam são

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transformados em imagens mentais.

Na segunda espécie de imagens docorpo, as imagens que provêm desondas sensitivas especializadas, ossinais que representam astransformações do corpo sãotransmitidos através de feixes nervosospara regiões do sistema nervosocentral dedicadas ao mapeamento deuma determinada sonda, por exemplo,da retina ou da cóclea. Essas regiõessão constituídas por conjuntos deneurônios cujo estado de atividade ouinatividade forma um padrão. Essepadrão pode ser concebido como umarepresentação ou mapa. No caso daretina, por exemplo, as regiões ligadasà visão incluem o núcleo geniculado(que faz parte do tálamo), o calículosuperior (que faz parte do troncocerebral) e os diversos córtices visuais(que fazem parte dos hemisférioscerebrais). A lista das sondas sensitivasespecializadas do nosso corpo inclui: acóclea no ouvido interno (relacionadacom o som); os canais semicircularesdo vestíbulo, situados também noouvido interno, onde o nervo vestibularcomeça (o vestíbulo está relacionadocom o mapeamento da posição do

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corpo no espaço e dele depende onosso sentido do equilíbrio); asterminações do nervo olfatório namucosa nasal (para o sentido doolfato); as papilas gustativas situadasna parte posterior da língua (para opaladar); e as terminações nervosasque se distribuem nas camadassuperficiais da nossa pele (ligadas aotato).

Na minha perspectiva, as imagensque constituem a base da “correntemental” são imagens deacontecimentos corporais, seja deacontecimentos que têm lugar naprofundidade do corpo ou numa sondaespecializada, próxima da superfície docorpo. O fundamento dessas imagens éuma série de mapas cerebrais, ou seja,uma coleção de padrões de atividadeou inatividade neural em certas regiõessensitivas. Esses mapas neuraisrepresentam, da forma maisabrangente possível, a estrutura e oestado do nosso corpo em todo equalquer momento. Pouco importa quealguns dos mapas descrevam o mundono interior do nosso organismo e queoutros descrevam o mundo que nosrodeia, o mundo dos objetos físicos que

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interagem com o organismo em regiõesespecíficas da nossa fronteira com ouniverso. Em qualquer dos casos, partedaquilo que acaba sendo mapeado nasregiões sensitivas do nosso cérebro eque emerge na nossa mente sob aforma de uma ideia tem a sua origemem estruturas do corpo que seencontram num determinado estado eem determinadas circunstâncias.10

UMA PALAVRA DE CAUTELA

É necessário introduzir uma palavrade cautela no que diz respeito a essasafirmações, especialmente em relaçãoà última. É importante salientar que aforma como os padrões neurais setransformam em imagens mentais nãoestá ainda esclarecida. A presença nocérebro de padrões neurais dinâmicos,ou seja, de mapas relacionados comum objeto ou um acontecimento, é umacondição necessária mas não suficientepara explicar a emergência de imagens

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mentais de um dito objeto ouacontecimento. Com o auxílio dosinstrumentos da neuroanatomia, daneurofisiologia e da neuroquímica,somos hoje capazes de descreverpadrões neurais. Com o auxílio daintrospecção somos também capazesde descrever imagens mentais.Contudo, os passos intermediários quenos levam dos padrões neurais àsimagens mentais não são aindaconhecidos. É também importanteressaltar que essa ignorância nãocontradiz de forma alguma a noção deque as imagens mentais são processosbiológicos e ainda menos nega deforma alguma a sua fisicalidade.

De certo modo, a investigação daneurobiologia da consciência tem comoobjetivo reduzir esse estado deignorância. No entanto, a maior partedos estudos recentes sobre aconsciência tem como finalidadeesclarecer a forma como o cérebrosincroniza e edita os padrões neuraisde forma a produzir aquilo a que euchamo “o-filme-no-cérebro”. Essesestudos, no entanto, não trazemresposta para a parte do mistériorelacionado à transformação de

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padrões neurais em imagens mentais.Finalmente, é também importante frisarque as ideias que aqui apresento nãoresolvem esse mistério. Por exemplo, aminha tentativa de elucidar aneurobiologia do sentimento, nocapítulo 3, diz respeito à forma como ossentimentos são construídos num corpocom um cérebro e à razão por que aconstrução dos sentimentos édiferente, do ponto de vistaneurobiológico, da construção deoutras imagens mentais. Quanto aossistemas, posso explicar aquilo que sepassa até o ponto em que os padrõesneurais se organizam. Mas não tenhomaneira de explicar os últimos passosda construção das imagens mentaisque têm origem nos referidos padrõesneurais.11

A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE

A perspectiva que aqui apresentotem implicações importantes para o

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modo como concebemos o mundo quenos rodeia. Os padrões neurais e asimagens mentais dos objetos eacontecimentos exteriores ao cérebrosão criações do cérebro estreitamenterelacionadas com a realidade que levaa essa criação. Essas imagens não são,no meu entender, as imagens de umsimples espelho onde se reflete arealidade. Por exemplo, quando o leitore eu olhamos para um objeto exteriorao nosso corpo, formamos imagenscomparáveis no nosso cérebro e somoscapazes de descrever um objeto deforma semelhante. Isso não significa,no entanto, que a imagem que o nossocérebro nos dá seja uma réplica exatado objeto. A imagem que vemos temcomo base alterações que ocorreramno nosso organismo, no corpo e nocérebro, conseqüentes à interação daestrutura física desse objeto particularcom a estrutura física do nosso corpo.O conjunto de detectores sensitivosdistribuídos por todo o nosso corpoajuda a construir os padrões neuraisque mapeiam a interaçãomultidimensional do organismo com oobjeto. Se o leitor estiver observando eouvindo uma pianista que toca umasonata de Schubert, essa interaçãomultidimensional inclui padrões visuais,

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auditivos, motores e emocionais.

Os padrões neurais quecorrespondem a essa cena sãoconstruídos de acordo com as regras docérebro, durante um breve período detempo, em diversas regiões sensitivase motoras. A construção dos padrõesneurais tem como base uma seleçãomomentânea de neurônios e circuitospromovida pela interação com umobjeto. Em outras palavras, as peçasnecessárias para essa construçãoexistem dentro do cérebro, prontas aser escolhidas selecionadas ecolocadas numa certa configuração. Oleitor pode bem imaginar essas regiõessensitivas como uma sala dedicada ajogos de Lego, repleta de todas aspeças de Lego que seja possívelimaginar. Com base nessas peças serápossível construir todo e qualquerobjeto imaginável.12

As imagens que temos na nossamente, portanto, são resultado deinterações entre cada um de nós e osobjetos que rodeiam o nossoorganismo, interações essas que sãomapeadas em padrões neurais e

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construídas de acordo com ascapacidades do organismo.

É claro que essa perspectiva deforma alguma nega a realidade dosobjetos. Os objetos são reais. Aperspectiva também não nega arealidade das interações entre o objetoe o organismo. E, evidentemente, asimagens também são reais. Contudo,as imagens de que temos experiênciasão construções provocadas por umobjeto, e não imagens em espelhodesse objeto. Não há, que eu saiba,nenhuma imagem do objeto transferidaopticamente da retina para o córtexvisual. A óptica para na retina. Daretina para diante ocorremtransformações físicas em diversasestruturas nervosas a caminho doscórtices visuais, mas já não se trata detransformações ópticas. Da mesmaforma, os sons que ouvimos não sãotransmitidos por um alto-falante dacóclea para o córtex auditivo, emborahaja de fato uma série detransformações físicas que viajam dacóclea a caminho do córtex auditivo, nosentido metafórico do termo. O que há,no fundo, é uma série decorrespondências que vem sendo

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produzida através de uma longahistória da evolução, uma série decorrespondências entre ascaracterísticas físicas dos objetos quesão independentes de nós e o menu depossíveis respostas que o organismopode dar a essas características. Opadrão neural atribuído a um certoobjeto é construído de acordo com omenu de correspondências através deum processo de seleção decomponentes e colocação espacial etemporal desses componentes. O quetambém acontece é que somos todostão parecidos uns com os outros, noque concerne à nossa essênciabiológica, que acabamos por construirem relação ao mesmo objeto padrõesneurais extremamente semelhantes.Nada há de surpreendente, portanto,que o mesmo objeto provoque padrõesneurais semelhantes e,consequentemente, imagens mentaissemelhantes. E é por isso que podemosaceitar sem qualquer protesto que aideia que temos em menterelativamente a um certo objeto écomo uma imagem em espelho dessemesmo objeto. Mas a realidade é bemdiferente.

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A VISÃO DAS COISAS

A relação entre padrões neurais eimagens mentais começou a serdesvendada com os estudos de DavidHubel e Torsten Wiesel. Hubel e Wieseldemonstraram que, quando um animalde experiência (por exemplo, ummacaco) olha para uma linha reta, umalinha curva, ou linhas posicionadas emdiversos ângulos, o resultado é aformação de padrões distintos deatividade nervosa no córtex visual.13

Hubel e Wiesel também estabeleceramuma relação entre o aparecimentodesses padrões distintos e a anatomiamicroscópica do córtex visual,descobrindo assim os componentesmodulares com os quais podemosconstruir uma certa forma na nossavisão. Outros dados importantes vieramde uma experiência de Roger Tootell naqual um animal de experiência (denovo, um macaco) confrontava umestímulo visual, por exemplo, uma cruz,

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e como resultado aparecia um padrãocorrespondente numa camadaespecífica do córtex visual desseanimal a camada 4B do córtex visualprimário: o cortex visual primário étambém conhecido como área 17 deBrodmann ou área VI.14 Essademonstração permitiu estabelecer oselementos principais desse processo:um estímulo exterior, que nós, comoobservadores, podemos ver sob aforma de uma imagem mental, e opadrão neural que lhe serve de base.Esses trabalhos fundadoresdemonstraram a existência de umencadeamento de correspondências: oestímulo visual, a imagem queformamos relacionada com esseestímulo visual e o padrão neuralidentificável no cérebro. Nesse padrãoneural, nós, como observadores,podemos ver uma correspondência como padrão das nossas próprias imagense, por extensão, o padrão de imagensdo animal de experiência.

É possível ter uma ideia de comoesses mecanismos corporais evoluíramquando consideramos os dispositivosvisuais de um animal extremamentesimples, uma variedade de

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invertebrado marinho conhecido comoOphiocoma wendtii. O Ophiocomawendtii é uma estrela friável, capaz defugir rapidamente de um predador quese aproxima e de se refugiar emcavernas rochosas das redondezas.Dado que o esqueleto exterior desseanimal é feito de cálcio, dado que oanimal não tem olhos e que o seusistema nervoso é muito primitivo,esses comportamentos tão eficazestêm permanecido um mistério. Afinal, asolução do mistério tem a ver com ofato de que o corpo do animal incluinumerosas lentes de cálcio que secomportam de uma forma semelhanteà dos olhos. As lentes concentram osraios luminosos numa pequena áreaque lhes é subjacente, e é a partirdessa pequena área que um feixe defibras nervosas vem a ser ativado. Édessa forma que o animal podedetectar a aproximação de umpredador e pode também detectar apresença de uma caverna próxima quevai poder lhe servir de esconderijo. Opadrão de atividade produzido pelapresença súbita de um predador leva àativação do feixe nervoso e daí aodesencadeamento de respostasmotoras que dirigem o animal para acaverna protetora.15 Não quero, de

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forma alguma, sugerir que essacriatura possa pensar, embora nãotenha nenhuma dúvida de que podeagir, e de que a sua ação depende depadrões neurais estabelecidos pelascircunstâncias do momento. Não é nemsequer necessário que, num sistemanervoso tão simples como o dessacriatura, esses padrões neurais setransformem em imagens mentais.Estou apenas utilizando esses fatospara ilustrar a história, afinal bemantiga, da transmissão de sinais docorpo para o sistema nervoso, umahistória de acordo com a qual épossível compreender a iniciação decomportamentos ou o estabelecimentode padrões mentais. Os olhos humanose as suas retinas fazem algo bemparecido com as lentes do O. wendtii.Claro que os olhos humanos são muitomais complexos na variedade deestímulos físicos que podem mapear,bem como na riqueza dosmapeamentos subseqüentes quepromovem e na enorme variedade deações que o organismo pode realizar nasua base. Mas a essência,evidentemente, é a mesma: uma parteespecializada do corpo sofre umamodificação, e o resultado dessamodificação é transferido para o

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sistema nervoso central.

Um fato que se relaciona com esseveio a ser esclarecido recentemente etem a ver com a presença de umaclasse especial de células de retina querespondem à luz e influenciam aoperação de um núcleo do hipotálamoo núcleo supraquiasmático. Esse núcleoestá envolvido na regulação dos ciclosde dia e noite e nos padrões de sonoque com ele se relacionam. Há muitotempo se sabe que os cones ebastonetes que formam a primeiracamada da retina respondem à luz, eque tais respostas são essenciais paraa visão. O que é novo e fascinante éque a influência da luz sobre ohipotálamo não é mediada pelos conese bastonetes. Depois da destruiçãoexperimental dos cones e bastonetes, aluz continua a reger a orquestra dosciclos dia-e-noite. Essa direção deorquestra depende, como agora sesabe, de um conjunto de célulassituado na camada seguinte da retina acamada ganglionar. Curiosamente, ogrupo de células ganglionares da retinaque está ligado ao processamento daluz é diferente daquele que recebesinais dos cones e bastonetes. Ao que

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parece, é um subgrupo dedicado aoprocessamento da luz, e pouca ounenhuma ajuda dá à visãopropriamente dita.16 Direta ouindiretamente, a atividade dessascélulas exerce uma influênciasubseqüente sobre a mente. Porexemplo, a ativação do sono diminui aatenção e, por fim, suspende aconsciência; as emoções de fundo e osmooás que com elas se relacionam sãotambém largamente influenciados pelaexposição à luz, tanto no que dizrespeito à intensidade como àquantidade. Uma vez mais, umamudança no estado do corpo numaparte especializada do corpo traduzseem alterações mentais. De grandeinteresse é também o fato de que ascélulas ligadas ao processamento daluz, ao contrário daquelas que estãomais diretamente ligadas à visão, nãose preocupam em nada com o localonde a luz incide. Vagarosa ecalmamente respondem como sefossem os fotômetros que usamos emfotografia, detectando a luminosidadegeral a partir da luz radiante difundidadentro do globo ocular. É bem tentadorver essas células como uma parte deum sistema mais antigo e menossofisticado, empenhado na detecção de

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condições ambientais gerais, e não nospormenores ligados à forma equantidade de objetos específicos.Nesse sentido, essas células têmqualquer coisa de parecido com aslentes do O. wendtii e com asensibilidade corporal generalizada quese pode encontrar em organismosmuito simples, cujos corpos não estãoequipados com sondas sensitivasespecializadas.17

Nos últimos vinte anos, aneurociência tem revelado em detalhescomo o cérebro processa diversosaspectos da visão, não apenas a formae a cor, mas o movimento também.18

Deve-se igualmente registrar umgrande progresso no que diz respeito àaudição, ao tato, ao olfato e ao paladar,e também, o que já não é sem tempo,um novo interesse pela elucidação dossentidos internosa dor, a temperatura.Mas a verdade é que estamos longe defazer o levantamento pormenorizadode todos esses sentidos.

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AS ORIGENS DA MENTE

As duas espécies de imagens docorpo que vimos considerando,imagens da carne e imagens dassondas sensitivas especializadas,podem ser manipuladas na nossamente e utilizadas para representarrelações espaciais e temporais entreobjetos. É assim que representamos osacontecimentos que dizem respeito aesses objetos, e é assim que, graças ànossa imaginação criadora, podemosinventar novas imagens para simbolizarobjetos e acontecimentos ourepresentar abstrações, novas imagensque vão além das imagens baseadasdiretamente no corpo. Podemostambém fragmentar as imagens debase que vêm do corpo e recombinaros fragmentos, ou simbolizar cadaobjeto e acontecimento com umsímbolo inventado, como um númeroou uma palavra, e tais símbolos podemser combinados em equações oufrases. E é evidente que esses símbolospodem representar entidades eacontecimentos abstratos assim como

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representam entidades eacontecimentos concretos.

A influência do corpo na organizaçãoda mente também pode ser detectadanas metáforas que os nossos sistemascognitivos têm criado para descrever osacontecimentos e qualidades do mundoque nos rodeia. Muitas dessasmetáforas são baseadas no trabalho danossa própria imaginação no que serefere às atividades e experiênciastípicas do corpo humano, comoposições, atitudes, direção domovimento e sentimentos. Porexemplo, as noções de felicidade,saúde, vida e bondade são geralmenteassociadas com a noção de “paracima”, tanto em palavras como emgestos. A tristeza, a doença, a morte ea maldade estão claramenteassociadas com a direção inversa,“para baixo”. O futuro está associadocom a noção de “para a frente”. MarkJohnson e George Lakoff explicaram deforma persuasiva como a categorizaçãode certas ações e posturas do corpoleva à criação de certos esquemasmentais que são eventualmentedenotados por gestos ou palavras.19

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É hora de introduzir uma outrapalavra de cautela nesta apresentação.Quando digo que a mente é feita deideias que são, de uma maneira ou deoutra, representações cerebrais docorpo, há talvez a tendência deimaginar o cérebro como o quadro-negro de escola que começa o seu diainteiramente limpo, pronto para serinscrito com os sinais que vêm docorpo. Mas nada poderia estar maislonge da verdade. O cérebro nãocomeça o dia como uma tábua rasa. Océrebro está animado desde o início dasua vida com um enorme repertório desabedoria que diz respeito à formacomo o organismo deve ser gerido, istoé, à forma como a vida deve serorganizada e como o organismo deveresponder a certos acontecimentosexteriores. Uma enorme variedade delocais de mapeamento e dasrespectivas ligações neuronais estápresente à hora do nascimento.Sabemos, por exemplo, que macacosrecém-nascidos têm neurônios no seucórtex cerebral prontos para detectarlinhas com uma determinadaorientação.20 Tudo isso quer dizer que océrebro traz consigo sabedoria esavoirfaire inatos que se antecipam aossinais do corpo. A consequência dessa

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sabedoria e savoir faire é que muitosdos sinais do corpo que serãotransformados em ideias são, elespróprios, consequência de estados docérebro. Ou seja, o cérebro leva o corpoa assumir um determinado estado, acomportar-se de uma certa maneira, ecertas ideias serão baseadas nessesestados e comportamentos do corpo.Nesse particular, o exemplo maisnotável diz respeito às motivações eemoções. Como vimos, pouco há delivre ou casual no que se refere àsmotivações e emoções. As motivaçõese as emoções são repertórios decomportamentos cuja execução está acargo do cérebro, em certascircunstâncias, de acordo com asinstruções da evolução. Quando océrebro detecta o declínio da energiano corpo, desencadeia o estadocomportamental a que chamamosfome, e a série de comportamentos queleva à correção da carência de energia.A ideia de fome emerge darepresentação das alterações corporaisinduzidas por esse estado demotivação.

Muitas das ideias que formamos apartir dos estados do corpo são, por

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isso, uma consequência de o cérebroter colocado o corpo num estadoparticular, o que significa que algumasdas ideias do corpo que vêm aconstituir os fundamentos da mentesão altamente determinadas pelodesenho prévio do cérebro e pelasnecessidades gerais do organismo. Sãoideias das ações do corpo, masacontece que essas ações do corpoforam, antes de mais nada, sonhadaspor um cérebro que ordenou ao corpo asua execução.

A mente existe porque há um corpoque lhe fornece os seus conteúdosbásicos. Por outro lado, a mentedesempenha variadas tarefas que sãobem úteis para o corpo o controle daexecução de respostas automáticas emrelação a um determinado fim, aantevisão e o planejamento derespostas novas, a criação das maisvariadas circunstâncias e objetos cujapresença é benéfica para a sobrevidado corpo. As imagens que fluem namente são o reflexo da interação entreo organismo e o ambiente, o reflexo decomo as reações cerebrais ao ambienteafetam o corpo, o reflexo também decomo as correções da fisiologia do

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corpo estão acontecendo.

Dado que o cérebro se encarrega deproduzir os substratos mais imediatosda mente, ou seja, os mapas neurais,poderíamos dizer que o componentemais crítico do problema mente-corpo éo cérebro desse corpo, e não o corpo-propriamente-dito. E é então legítimoperguntar se ganhamos alguma coisaem considerar a mente na perspectivageral do corpo, e não na perspectivamais restrita do cérebro. A verdade éque há um ganho notável. Aperspectiva do corpo em geral fornece-nos uma razão de ser para a mente,uma razão que não seria possíveldescobrir na perspectiva mais restritado cérebro. A mente existe para ocorpo, está empenhada em contar ahistória daquilo que se passa no corpo,e utiliza essa história para melhorar avida do organismo. O cérebro estárepleto dos sinais do corpo, a mente éfeita desses mesmos sinais, e ambossão os servidores do corpo.

Neste momento, devemos retomaruma pergunta a que aludi no capítulo 4.Qual é a razão por que há vantagem

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em ter um nível mental para asoperações do nosso cérebro, e não purae simplesmente mapas neurais? Porque razão seriam os simples mapasneurais, cujas atividades não seriamnem mentais nem conscientes, menoseficientes para a gestão da vida do queo nível mental e consciente deoperações que deles emerge e de que,evidentemente, dispomos? Em termosainda mais claros: por que razãoprecisamos de um nível neurobiológicode operações que inclua aquilo a quechamamos mente e consciência?

É possível dar respostas a algumasdessas perguntas e é possívelespecular sobre as que não têmresposta imediata. Por exemplo, naausência de consciência no sentidomais amplo do termo - um processoque inclui tanto o “filme-no-cérebro”como o sentido do self sabemos semsombra de dúvida que a vida não podeser gerida de forma adequada. Asuspensão da consciência, mesmo quetemporária, acarreta uma gestãoineficiente da vida. Com efeito, atémesmo a mera suspensão da parte daconsciência a que chamamos selfacarreta uma perturbação do manejo

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da vida e rouba a independência aqualquer ser humano. É por issopossível responder, sem receio deerrar, que a mente consciente é umanecessidade para a nossa sobrevida.

Um pouco mais difícil, contudo, éentrever as razões por que o processobiológico a que chamamos menteconsciente é assim tão indispensávelpara o organismo. E aqui as respostassão especulativas. Como sugeri nocapítulo 4, é possível que a enormecomplexidade dos fenômenos de nívelmental permita uma integração maiseficaz de informação sensitiva, porexemplo, visual e auditiva, ou visual,auditiva e tátil. O nível mentalpermitiria também a integração deimagens provenientes da percepçãoatual com imagens provenientes damemória. Tais integrações permitiriama abundante manipulação de imagensque é indispensável para a solução deproblemas novos e para a criatividadeem geral. Em suma, as imagensmentais facilitariam a manipulação deinformação que os mapas neurais maissimples os mapas neurais que hoje emdia somos capazes de descrever nãopermitiriam. É por isso possível que as

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operações biológicas de nível mentaltenham especificações que vão alémdaquelas que já estão descritas para onível dos mapas neurais. Claro que issonão quer dizer que o nível mental dasoperações biológicas seja baseadonuma substância diferente no sentidocartesiano. As imagens mentaiscontinuam a ser concebidas em termosbiológicos e físicos.

Mas a pergunta a que estamosrespondendo diz respeito não apenas àmente mas à “mente consciente”, e éportanto necessário indicar quais asvantagens que a consciênciaacrescenta à mente. Aqui a respostaparece-me menos especulativa. Aconsciência, mais especificamente ocomponente da consciência que tem aver com o self, fornece à mente umaorientação. O self introduz na mente anoção de que todas as atividades aírepresentadas correspondem a umorganismo singular cujas necessidadesde autopreservação são a causaprincipal daquilo que está sendorepresentado. O self orienta o processomental do planejamento de forma asatisfazer essas necessidades. E essaorientação é possível apenas porque os

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sentimentos são parte integrante doconjunto de operações que constituemo self, e porque os sentimentosproduzem continuamente, dentro damente, uma preocupação relativa aoorganismo.

Concluindo, sem imagens mentais oorganismo não seria capaz de executarrapidamente a integração deinformação em larga escala necessáriapara a sobrevida, para não falar nobemestar. Além disso, sem o sentido doself, sem os sentimentos que oconstituem, a integração de informaçãomental em larga escala não poderia serorientada para os problemas da vida,principalmente para os problemas dasobrevida e do bem-estar.

Essa perspectiva sobre a mente nãopreenche as lacunas de conhecimentoa que aludi anteriormente quando disseque não sabemos ainda como umpadrão neural se transforma numaimagem mental. A lacuna persiste, masnão vejo razão para que não venha aser preenchida no futuro.21

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Enquanto não preenchermos alacuna, parece-me razoável conceber amente como um fenômeno que emergeda cooperação de diversas regiõescerebrais. A emergência ocorre quandoa acumulação de pormenores quedizem respeito ao estado do corpoatinge uma certa nota crítica. E podebem ser que o preenchimento dalacuna venha a se fazer com base namera acumulação de pormenores deprocessamento fisiológico que aindanão fomos capazes de descrever.

CORPO, MENTE E ESPINOSA

É hora de regressarmos a Espinosa ede considerarmos o significado possíveldaquilo que ele escreveu sobre o corpoe a mente. Qualquer que seja ainterpretação que dermos aospronunciamentos que ele fez sobre aquestão, podemos ter a certeza de queEspinosa estava mudando aperspectiva que tinha herdado de

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Descartes quando disse, na Ética, Partei, que o pensamento e a extensão,embora distinguíveis, são produtos damesma substância, Deus ou natureza.A referência a uma única substânciaserve ao propósito de apresentar amente como inseparável do corpo,ambos talhados da mesma fazenda. Areferência aos dois atributos, mente ecorpo, assegura a distinção de duasespécies de fenômeno, uma formulaçãosensata que se alinha com o dualismode “aspecto” mas que rejeita odualismo de “substância”. Ao colocarpensamento e extensão no mesmo pée ao ligar pensamento e extensão auma substância única, Espinosa queriaultrapassar um problema queDescartes enfrentou e não conseguiuresolver: a presença de duassubstâncias e a necessidade de fazercom que elas se comunicassem. Àprimeira vista, a solução de Espinosadeixava de requerer que mente e corpose integrassem ou interagissem. Amente e o corpo nasciam em paraleloda mesma substância, em perfeitaequivalência. No sentido estrito, amente não causava o corpo e o corponão causava a mente.

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Se a contribuição de Espinosa noque diz respeito ao problema mente-corpo tivesse se limitado a essaformulação, teríamos de dizer que tinhafeito algum progresso. Teríamostambém de dizer, contudo, que ao ligarmente e corpo a uma substância únicamas de natureza hermética, Espinosaestaria abandonando a tentativa deexplicar de que modo emergiam asmanifestações corporais e mentaisdessa substância. Um crítico ásperopoderia dizer que ao menos Descartestinha tentado oferecer uma explicação,enquanto Espinosa teria simplesmentecontornado o problema. Mas a minhaimpressão é que uma tal crítica aEspinosa não teria cabimento. Naminha interpretação, Espinosa teriatentado de forma bem ousada penetrarno mistério do problema mente-corpo.Quero aqui sugerir, e estou pronto aadmitir que a minha sugestão podeestar errada, que com base nasafirmações que faz na Parte n da Ética,Espinosa teria tido a intuição daorganização anatômica e funcional queo corpo deve assumir para que a mentepossa emergir com ele ou, maisprecisamente, dentro dele. Passo aexplicar as razões por que penso assim.

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Devemos começar por rever asnoções de Espinosa sobre o corpo e amente. A noção de Espinosa sobre ocorpo humano é convencional. A suadescrição do corpo aparece na Ética,Parte I: “Uma quantidade definida, comum certo comprimento, uma certalargura, uma certa profundidade,limitada por uma certa forma”.Utilizando as palavras de Espinosa, aminha própria transcrição seria “umacerta quantidade de substância comuma sebe à volta”. E dado que asubstância de que Espinosa fala é anatureza, eu diria que “um corpo é umpedaço de natureza cuja fronteira é apele”.

Para os pormenores da concepçãodo corpo em Espinosa, é necessário leros seis postulados da Parte n da Ética.Dizem o seguinte:

I. O corpo humano é composto deuma série de partes individuais, denatureza diversa, cada uma das quais éem si mesma extremamente complexa.

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II. Das partes individuais quecompõem o corpo humano algumassão fluidas, outras moles, outras duras.

III. As partes individuais quecompõem o corpo humano e,consequentemente, o corpo humanopropriamente dito, são afetadas deforma diversa pelos corpos exteriores.

IV. O corpo humano temnecessidade para a sua preservação demuitos outros corpos que lhe permitemuma regeneração contínua.

V. Quando as partes fluidas do corpohumano são levadas por um corpoexterior a fazer pressão sobre umaoutra parte mole, a superfície destaúltima é mudada e cria-se assim umaimpressão moldada pelo corpo exterior.

VI. O corpo humano pode movercorpos externos e dispô-los numavariedade de maneiras.

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A imagem que Espinosa apresentanesse texto é extremamentesofisticada, especialmente quando noslembramos de que foi produzida noséculo XVII. O corpo tinha partescomponentes. Essas partescomponentes eram perecíveis,precisavam ser renovadas e podiam serdeformadas pelo contato com outroscorpos.

Mas o verdadeiro avanço, no meuentender, tem a ver com a noção queEspinosa apresentava para a mentehumana e que ele definiutransparentemente como consistindona ideia do corpo humano. Espinosausou o termo “ideia” como sinônimo de“imagem” ou “representação mental”ou “componente do pensamento”.Espinosa define ideia como “umaconcepção mental que é formada pelamente de uma entidade pensante”.(Em outros textos, é de notar queEspinosa utiliza o termo “ideia” parasignificar uma elaboração sobreimagens, um produto do intelecto, enão um produto da mera imaginação.)

Vale a pena considerar as palavras

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exatas de Espinosa, “O objeto da ideiaque constitui a Mente humana é oCorpo”, que aparecem na proposição13, da Parte n da Ética.22 Essa frase éelaborada noutras proposições. Porexemplo, dentro da prova daproposição 19, Espinosa diz “a mentehumana é a ideia ou o conhecimentodo corpo humano”. Na proposição 23,Espinosa diz “a mente não tem acapacidade de perceber [... ] exceto noque diz respeito a perceber as ideiasdas modificações (afecções) do corpo”.

Devemos também considerar asseguintes passagens, todas elas daParte II da Ética:

(a) ... O objeto da ideia que constituia mente humana é o corpo, o corpo talcomo realmente existe... E daí que oobjeto da nossa mente seja o corpo talcomo existe e nada mais... (da provaque se segue à proposição 13)

(b) Compreendemos assim que nãosó a mente humana está unida ao

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corpo mas também a natureza daunião entre corpo e mente...

(c) ... de forma a determinar de quemodo a mente humana difere de outrascoisas e deforma a mostrar como asultrapassa, é necessário conhecermosa natureza do seu objeto, ou seja, ocorpo humano. O que essa naturezaverdadeiramente é, não sou capaz deexplicar aqui, mas não é necessáriofazê-lo para provar aquilo queproponho. Devo apenas dizer deformageral que, na proporção em quequalquer corpo está mais adaptado doque outros para fazer certas ações oureceber certas impressões ao mesmotempo, também a mente, da qual é oobjeto, está mais adaptada do queoutras para formar muitas percepçõessimultâneas... (da nota que se segue àproposição 13).

Este último conceito é reformuladode forma esclarecedora na proposição15: “A mente humana é capaz deperceber um grande número de coisas,

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e fá-lo na proporção em que o seucorpo é capaz de receber um grandenúmero de impressões”.

Talvez mais importante ainda sejaconsiderar a proposição 26: “A mentehumana não pode perceber nenhumobjeto exterior como existindorealmente exceto através das ideias damodificação (afecções) do seu própriocorpo”.

No meu entender, Espinosa não nosdiz apenas que a mente emerge dasubstância única em paridade com ocorpo. Parece-me que Espinosapresume um mecanismo através doqual essa paridade será realizada. Omecanismo tem uma estratégia: osacontecimentos do corpo sãorepresentados como ideias na mente.Existem “correspondências”representacionais, e essascorrespondências caminham numadireção definida - do corpo para amente. Os meios para conseguir essascorrespondências estão contidos nasubstância. Dou especial valor às frasesem que Espinosa descreve as ideiascomo “proporcionais” às “modificações

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do corpo”, em termos tanto dequantidade como de intensidade. Anoção de “proporção” nos faz pensarnas noções de “correspondência” e atéde “mapeamento”. Julgo que Espinosase refere aqui a um método quepermita preservar a isomorfia. Nãomenos importante é a afirmação queEspinosa faz quando nos diz que amente não pode perceber a existênciade um corpo exterior, exceto atravésdas modificações do seu próprio corpo.Nessas afirmações, Espinosa está, comefeito, especificando um conjunto dedependências funcionais. Diz-nos que aideia de um objeto numa certa mentenão pode ocorrer sem a existência deum corpo e sem a ocorrência de certasmodificações nesse corpo,modificações essas que foramcausadas pelo objeto. Sem corpo nãohá mente.

Espinosa não se aventura além doseu conhecimento e por isso não nosdiz que para estabelecer ideias sobre ocorpo é necessária a presença de umcérebro e de vias nervosas e químicasque com ele se comuniquem. Éevidente que Espinosa pouco podiasaber sobre o cérebro e ainda menos

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sobre a forma como corpo e cérebropoderiam comunicar-se. Espinosa foiextremamente cauteloso e evitoucuidadosamente mencionar o cérebroquando discutiu mente e corpo, emboraseja evidente, com base em afirmaçõesfeitas noutros textos, que Espinosaconcebia mente e cérebro comoestreitamente ligados. Por exemplo, nadiscussão com que conclui a Parte I daÉtica, Espinosa diz que “Cada um denós faz os seus julgamentos de acordocom o estado do seu cérebro”. Nessamesma discussão interpreta oprovérbio “Os cérebros diferem tãocompletamente como os paladares”,como significando que “Os homensjulgam as coisas de acordo com a suadisposição mental”. Seja como for,podemos agora preencher as lacunasque Espinosa não podia especificar enos aventurar a dizer aquilo que elenão pôde dizer.

Na minha perspectiva atual, dizerque a mente é feita de ideias do nossopróprio corpo é equivalente a dizer quea nossa mente é feita de imagens,representações ou pensamentos quedizem respeito a partes do nossopróprio corpo em ação espontânea ou

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no processo de responder a objetosexteriores ao corpo. Claro que issopode parecer escandaloso e implausívelà primeira vista. É habitual imaginar anossa mente como povoada porimagens ou pensamentos de objetos,ações e relações abstratas, todas elasrelacionadas, sobretudo, com o mundoque nos rodeia e não com o nossopróprio corpo. Mas a minha afirmação ébem plausível quando se considera aevidência que apresentei sobre osprocessos de emoção e sentimento noscapítulos 2 e 3, e quando se tem emvista a evidência da neurofísiologiadiscutida neste capítulo. A mente estácheia de imagens do interior do corpo edas sondas especializadas do corpo.Com base nos dados da neurobiologiamoderna, podemos dizer não só que asimagens mentais emergem do cérebromas que uma grande proporção dessasimagens é modulada por sinais docorpo propriamente dito.

O Espinosa da Parte i da Ética,aquela que diz respeito à mente e aocorpo em geral, é um filósofoconsumado disposto a tratar douniverso inteiro. Na Parte li, contudo,Espinosa estava preocupado com um

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problema local, e suspeito que ele tevea intuição de uma solução que nãopodia especificar em detalhes. Oresultado dessa perspectiva dupla criauma certa tensão na Ética, uma tensãoque pode mesmo ser lida como umconflito. A paridade da mente e docorpo diz respeito apenas à descriçãogeral. Uma vez que Espinosa penetrano mecanismo que ele intui para arelação do corpo com a mente, passa ahaver direções preferidas para oprocesso, do corpo para a mentequando apreendemos o mundo, e damente para o corpo quando nosdecidimos a falar e o fazemos.

Apesar da paridade entre mente ecorpo, Espinosa não tem nenhumahesitação em privilegiar corpo oumente em certas circunstâncias. Namaior parte das proposições a quealudimos até agora, privilegia o corpo,claro. Mas na proposição 22 da Ética,Parte II, Espinosa privilegia a mente: “Amente humana percebe não só asmodificações do corpo mas também asideias de tais modificações”. O queessa magnífica proposição quer dizer éque, uma vez que formamos a ideia deum certo objeto, podemos formar uma

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ideia dessa ideia, e uma ideia da ideiada ideia, e assim por diante. Essaformação de ideias ocorre, naformulação espinosiana, do lado mentalda substância, mas em realidade, naperspectiva moderna que estamosapresentando, o processo tambémpode ser descrito dentro do setorcerebral do organismo, ou seja, dentrodo setor cerebral do corpo.

A noção de “ideia de ideias” éimportante por diversas razões. Porexemplo, formar ideias de ideias abrecaminho para a representação derelações e para a criação de símbolos.De forma não menos importante, abreum caminho para a criação da ideia doself. Em O mistério da consciência,sugeri que a espécie mais básica doself é uma ideia, uma ideia de segundaordem. Por que de “segunda ordem”?Porque essa ideia tem como base duasideias de “primeira ordem”. Umadessas ideias de primeira ordem é a doobjeto cuja percepção estamosconstruindo; a outra ideia de primeiraordem é a do nosso corpo à medidaque é modificado pela percepção doobjeto. A ideia de segunda ordem é aideia da relação entre essas duas

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outras ideias objeto de que se tempercepção e corpo modificado pelapercepção.

Essa ideia de segunda ordem a quechamei self é inserida no fluxo dasideias da mente, e oferece à mente umfragmento de conhecimentointeiramente novo: o conhecimento deque o nosso corpo está empenhado eminteragir com um certo objeto. Creioque esse mecanismo é indispensávelpara a criação da consciência nosentido ampliado do termo, e em Omistério da consciência descrevi osprocessos que permitiriam aimplementação desse mecanismo nocérebro.23 Temos uma mente conscientequando o fluxo das imagens quedescrevem objetos e acontecimentosem diversas modalidades sensitivas éacompanhado das imagens do self queacabei de descrever. Uma menteconsciente é aquela que acaba de serinformada das suas relaçõessimultâneas com o organismo dentrodo qual se forma, e com os objetos querodeiam esse organismo. É fascinantepensar que Espinosa tenha tambémtido a intuição desse processo, tãosimples e tão necessário, que é o

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processo de criar ideias a partir deoutras ideias.

Espinosa não tinha paciência paraargumentos com base na ignorância.As suas palavras a esse respeito sãoclaras: “... ninguém até agora mostrouquais os limites dos poderes do corpo...e adiante “ninguém obteve até agoraum conhecimento exato dosmecanismos do corpo de tal forma quepossa explicar todas as suas funções...ninguém sabe como e por que meios amente move o corpo”.24 Julgo que, comtais palavras, Espinosa pretendia atacara noção de que o corpo teria origem namente e talvez preparar os seusleitores para descobertas futuras quedariam apoio à noção contrária.25

É evidente que a minhainterpretação pode estar errada. Porexemplo, é possível argumentar que aminha leitura de Espinosa não écompatível com a noção espinosiana deque a mente é eterna. Mas julgo que aobjeção não seria válida. Emnumerosos pontos da Ética,nomeadamente na Parte v, Espinosadefine a eternidade como a existência

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de uma verdade eterna, a essência deuma coisa, e não como umacontinuação no tempo. A essênciaeterna da mente não é sinônimo deimortalidade. No pensamentoespinosiano parece-me que a essênciadas nossas mentes existia antes decada uma das nossas mentes existir, epersiste depois de as nossas mentesperecerem juntamente com os nossoscorpos. Em outras palavras, a menteem Espinosa pode ser ao mesmo tempomortal e eterna. Além disso, noutrostrechos da Ética e do Tratado, Espinosadeclara que a mente morre com ocorpo. Com efeito, a negação daimortalidade da mente, um elementoque aparece bem cedo na evolução dopensamento espinosiano, pode bem tersido a razão principal que levou à suaexpulsão da comunidade religiosa.26

Qual é então a grande contribuiçãode Espinosa na solução do problemamente-corpo? É, em primeiro lugar, aafirmação de que mente e corpo sãoprocessos mutuamente correlacionadosque, em grande parte, representamduas vertentes da mesma coisa. Emsegundo lugar que, por trás da duplaface desses fenômenos paralelos, há

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um mecanismo que permiterepresentar os acontecimentos docorpo na mente; que, apesar daparidade da mente e corpo, há umacerta assimetria nos mecanismos quese ocultam por trás desses fenômenos.Espinosa sugere que o corpo molda osconteúdos da mente mais do que amente molda os conteúdos do corpo,embora os processos da mentetambém influenciem os do corpo. Poroutro lado, as ideias podem criar outrasideias, numa autonomia criativa a queo corpo não tem acesso.

Se a minha interpretação dasafirmações de Espinosa estiver correta,julgo que Espinosa vislumbrou qualquercoisa de revolucionário para o seutempo. Mas se assim foi, o vislumbreespinosiano não teve nenhum impactona ciência. A árvore caiusilenciosamente na floresta, e ninguéma viu nem ouviu. Quer seja vista comovislumbre espinosiano ou como um fatoindependente, a implicação teóricadessas ideias está longe de serdigerida.

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O DR. TULP

Terminei a minha Huygens Lecturecom uma imagem de Rembrandt, umareprodução da sua famosa tela, A liçãode anatomia do Dr. Tulp, que faz parteda coleção da Mauritshuis, a poucosminutos da Igreja Nova. Não foi aprimeira vez que usei o Dr. Tulp numadiscussão do problema mente-corpo,mas dessa vez, pelo menos, o assunto,a imagem e o lugar estavam emperfeita sintonia.

À primeira vista, a famosa tela deRembrandt é uma celebração da famado Dr. Tulp como médico e cientista, naocasião de uma palestra especial porele proferida em janeiro de 1632. AOrdem dos Cirurgiões queria prestarhomenagem ao Dr. Tulp com uma telade mestre e não havia melhor temapara essa tela do que um dosacontecimentos mais teatrais da época:uma dissecação anatômica, o tipo deacontecimento que atrairia acuriosidade do público. Mas a tela de

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Rembrandt celebra também uma novaera no estudo do corpo e das suasfunções, uma era de que os escritos deWilliam Harvey e de Descartes se dãoconta. A propósito, Descartes teriaestado entre o público nesse dia dejaneiro em que os colegas do Dr. Tulplhe renderam homenagem. Asdescobertas de Harvey sobre acirculação do sangue ocorrem nessamesma época, a época que se segue aVesalius, uma época de bisturis, lentese microscópios, os instrumentos com osquais era possível primeiro dissecar edepois amplificar a estrutura mais finado corpo humano. A tela de Rembrandtdá conta também de um aspectoimportante da cultura holandesa dessaépoca o estudo e a representação danatureza, incluindo, é claro, ainvestigação do corpo humano mesmodebaixo da pele. Não há melhoremblema da emergência da novabiologia dessa época do que essa telade Rembrandt.

De forma não menos importante, atela de Rembrandt também nos recordaa perplexidade que as novasdescobertas anatômicas produziam nospróprios descobridores. A mão direita

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do Dr. Tulp segura os tendões com osquais a mão esquerda do cadávercostumava mover os seus dedos,enquanto a mão esquerda do Dr. Tulpdemonstra os movimentos que essestendões levariam a realizar. O mistériopor trás dessa ação é revelado comclareza. Não se trata de uma bombapneumática ou de um dispositivohidráulico, embora seja evidente que,com efeito, o movimento podia ter sidoproduzido por um tal dispositivo. E éaqui que reside para mim o grandesignificado da composição: a tela nosdiz que o movimento da mão é oresultado da contração muscular e daretração de tendões ligados a partesósseas; a tela nos diz que é este omecanismo e que assim se excluemoutros mecanismos hipotéticos. O Dr.Tulp verifica aquilo que é, e separaaquilo que é daquilo que poderia ser.Os fatos substituem as conjecturas.

O espetáculo de um mistériorevelado, contudo, é inquietante paraalguns, e é isso que podemos ler norosto do Dr. Tulp. O Dr. Tulp não olhanem para o observador, nem paraaquilo que está fazendo. Também nãoolha para os seus colegas. O olhar do

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Dr. Tulp fixa-se na distância, em algumponto à esquerda da cena, bem alémdos limites da moldura. O historiadorSimon Schama sugeriu que o Dr. Tulpestá olhando para o próprio Criador.Essa interpretação está de acordo como fato de que Tulp era um calvinistadevoto e está de acordo também comos versos que Caspar Barleus escreveualguns anos mais tarde quando a telaganhou renome: “Ouvinte, queiraaprender e acredite que à medida queprocede através das partes, Deus estáescondido entre elas, mesmo entre asmenores”.27 Interpreto as palavras deBarleus como uma resposta aoembaraço dessa descoberta, umembaraço que seria produzido pelopensamento que inevitavelmente seseguiria à descoberta: se somoscapazes de explicar esse aspecto danossa natureza, haverá alguma coisaque não seremos capazes de explicarnessa natureza? Por que não seremoscapazes de explicar tudo o mais queacontece no corpo incluindo, talvez, aprópria mente? Seremos capazes dedescobrir como é que os pensamentoscomandam o movimento das mãos?Receoso dos seus própriospensamentos, Barleus parece quereracalmar o público ou a divindade, ou

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ambos, e diz-nos que, emboraestejamos entrando nos bastidores sempedir licença e descobrindo os truquesmágicos que lá se escondem, nãoperdemos ainda o respeito pelotrabalho do Criador. É evidente que osignificado da expressão facial do Dr.Tulp é impossível de decifrar e, porvezes, quando olho para essa telapenso que o Dr. Tulp está simplesmentedizendo ao observador: “Veja só do quesou capaz!”. Qualquer que seja ainterpretação correta, Rembrandt ouTulp, talvez ambos, queriam marcar aimportância do acontecimento dessedia de inverno no TheatrumAnatomicum de Amsterdam.28

As palavras tranquilizadoras edevotas de Barleus eram de fato umantídoto necessário contra aquilo queDescartes andava pensando, por essesmesmos dias, no que diz respeito àmente e ao corpo, e especialmentecontra aquilo que Espinosa viria apensar e escrever sobre essa questãonas décadas que se seguiram. É comgrande ironia que podemos imaginar,mostrando uma vez mais como aspalavras podem mentir, que, secolocássemos os conselhos de Barleus

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fora de contexto e os atribuíssemos aEspinosa, o seu significado seriainteiramente diferente. Se alguma vezchegou a contemplar a obra-prima deRembrandt, Espinosa poderiaperfeitamente ter dito que o seu Deusfazia parte integrante de cada parcela emovimento do corpo dissecado, mas assuas palavras teriam tido umsignificado completamente diferente.

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6. Uma visita a Espinosa

RIJNSBURG, 6 DE JULHO DE 2000

Estou sentado no pequeno jardim dacasa de Espinosa. Faz sol, calor, e osilêncio é completo. A Spinozalaan nãoé uma rua concorrida. Tudo está quietonesta manhã calma, exceção feita a umgato preto, preocupado com a suahigiene, que se prepara para ummagnífico e filosófico dia de verão.

Estou olhando para o mesmo céuque Espinosa deve ter contemplado sealguma vez se aventurou neste jardime se sentou neste mesmo lugar. Mas senunca o fez, num dia como este o solteria entrado na sua sala de trabalho eteria ido visitar a sua escrivaninha, umacontecimento notável e bem-vindoneste clima. É um lugar simpático etranquilo, menos confinante do que acasa de Haia, mas, mesmo assim,

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modesto demais para quem estavaobservando o universo inteiro.

Como é que uma pessoa setransforma em Espinosa, pergunto-me?Ou, em outras palavras, como épossível explicar a sua estranheza? Eisaqui um homem que discordoufirmemente do filósofo mais conhecidodo seu tempo, que batalhou contra areligião organizada e foi expulso da suaprópria religião, que rejeitou o modo devida dos seus contemporâneos e queestabeleceu critérios para a sua própriavida que mais lembravam os da vida deum santo, para alguns, ou a vida de umtolo, para outros. Será que Espinosaera, de fato, uma aberração social? Oué possível compreender Espinosa emtermos da cultura do seu tempo e dasua terra? Será que é possível explicaro seu comportamento pelosacontecimentos da sua vida privada?Essas perguntas intrigam-me. Tentarexplicar satisfatoriamente a vida dequalquer outra pessoa é uma tolice,mas, apesar disso, é possível darresposta a algumas dessas perguntas.

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A IDADE DE OURO

Apesar da sua originalidade,Espinosa não está sozinho na suaépoca. Espinosa apareceu no meio doséculo do gênio, o XVII, o períododurante o qual se construíram osalicerces do mundo moderno. Semdúvida Espinosa era um radical, mastambém o foi Galileu quando apoiouCopérnico na época em que Espinosanasceu. Trata-se de um século quecomeçou com Giordano Bruno sendoqueimado na fogueira e com asprimeiras representações do HamletdeShakespeare (1601).Em 1605, o séculojá tinha acrescentado ao patrimônio

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humano o Avanço do conhecimento deFrancis Bacon, o Rei Lear deShakespeare e o Dom Quixote deCervantes. É bem possível que Hamletdevesse ser o emblema dessa Idade deOuro porque ele atravessa a mais longapeça de Shakespeare confundido pelocomportamento humano e perplexocom o possível significado da vida e damorte. À primeira vista, o enredo deHamlet parece ter a ver com a vingançafracassada de um pai desaparecido ecom o assassinato de um tio um poucomenos que amável. Mas o verdadeirotema da peça é a perplexidade deHamlet, a inquietude de um homemque sabe mais do que aqueles que orodeiam, mas que não sabe o suficientepara acalmar o seu desconforto com acondição humana. Hamlet é bemversado na ciência da época na física ena biologia que existem então, e queele estuda na Universidade deWittenburg e está a par dosdeslocamentos intelectuais provocadospor Lutero e por Calvino. Apesar detodos esses conhecimentos, nãoconsegue achar um sentido naquilo quevê, e daí as suas interrogações

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constantes. Não é por certo umacoincidência que a palavra “pergunta”apareça mais de uma dúzia de vezes noHamlet ou que a peça comece com umapergunta muito especial: “Quem estáaí?” Espinosa nasceu na idade dasinterrogações, numa era a que sepoderia bem chamar Idade de Hamlet.

Espinosa também nasceu na idadedo fato observável, na idade em que osantecedentes e os consequentes deuma certa ação começaram a serestudados empiricamente em vez deserem debatidos no conforto de umapoltrona. O intelecto humano já tinhaentão um comando notável dos meiosde raciocinar lógica e criativamente deacordo com as demonstrações deEuclides. Contudo, para usar aspalavras de Albert Einstein, “Antes quea humanidade pudesse estar preparadapara uma ciência que abrangesse arealidade inteira, era necessária umasegunda verdade fundamental [...] todoo conhecimento da realidade começana experiência e acaba nela”.1 Einsteinapontava para Galileu como o exemplomáximo dessa atitude Einstein viu emGalileu o pai de toda a ciência moderna-, mas Bacon não foi menos notável aesse respeito. Tanto Galileu como

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Bacon defenderam o valor daexperimentação e recomendaram aeliminação gradual das hipóteses quenão se coadunavam com a realidade. Eé claro que Galileu ainda trouxe algomais de novo. Galileu sugeriu que ouniverso poderia ser descrito nalinguagem da matemática, uma noçãoque constituiria a pedra de toque paraa emergência da ciência moderna. Onascimento de Espinosa coincide assimcom o primeiro florescimento da ciênciano mundo moderno.

A importância do ato de medir equantificar foi estabelecida nessa era, eé durante essa era que a ciência setorna quantitativa. Os cientistascomeçam a usar o método indutivo, e averificação empírica torna-se um meiode pensar o universo. Declara-se guerraaberta às ideias que não estão deacordo com os fatos.

Trata-se de uma épocaintelectualmente fértil. Mais ou menosna época do nascimento de Espinosa,Thomas Hobbes e Descartes cresciamcomo estrelas filosóficas e WilliamHarvey apresentava a sua descrição dacirculação sanguínea. Durante a vidabreve de Espinosa, o mundo conheceriao trabalho de Blaise Pascal, JohannesKepler, Huygens, Gottfried Leibniz e

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Isaac Newton, que nasceu apenas dezanos mais tarde que Espinosa. ComoAlfred North Whitehead diz com grandejusteza, “O século não teve tempo paraseparar convenientemente osacontecimentos notáveis que dizemrespeito aos homens de gênio”.2

A atitude geral de Espinosa emrelação ao mundo fazia parte dessefermento de interrogações que tinha assuas raízes na maneira como asexplicações eram agora formuladas eas instituições julgadas. Contudo, saberque Espinosa se insere num grandeesquema histórico e descobrir que oseu brilho teve boa companhia nãoexplica a razão por que Espinosa foi afigura desse período cujo trabalho foibanido da forma mais feroz, de formatão feroz que as referências à suaexistência desaparecem durantedécadas, excetuando as referênciasnegativas, claro. Espinosa pode não tersido mais radical do que Galileu nassuas observações, mas foi maiscontundente. Espinosa foi o maisintolerável dos iconoclastas. Ameaçou oedifício da religião organizada nos seuspróprios alicerces, de um modo aomesmo tempo modesto e sem medo.Da mesma forma, ameaçou asestruturas políticas que estavam

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intimamente associadas às da religião.Como é de prever, as monarquias dotempo sentiram o perigo e até mesmoas províncias holandesas, o maistolerante Estado dessa época, tambémo sentiram. Que espécie de biografiapode dar conta de uma tal vida?

HAIA, 1670

Quando penso na trajetória da vidade Espinosa e tento explicá-la, voltosempre a Haia e à sua chegada aoPaviljoensgracht durante uma brevecalmaria entre tempestades. Julgo queesse período oferece uma perspectivaúnica para explicar o que vem antes, oque vem depois e as razões de ambos.Espinosa tinha 38 anos quando chegoua Haia, sozinho como era o seu hábito.Trazia consigo uma estante, com a suabiblioteca, uma escrivaninha, umacama e o equipamento com que poliaas suas lentes. Nos dois quartos quealugou no Paviljoensgracht, Espinosacompletaria a Ética, trabalhariadiariamente na manufatura das lentes,receberia centenas de visitantes eraramente se afastaria da cidade. Iria aUtrecht, uma vez, e a Amsterdam,várias vezes, mas ambas as cidadesestão a menos de sessenta quilômetros

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de Haia. Nunca se aventurou maislonge. Espinosa faz pensar emImmanuel Kant, um outro eremitadistinto que, cem anos mais tarde,conseguiu viajar ainda menos: passou avida inteira em Königsberg e ao queparece apenas uma vez se aventuroufora da cidade. Mas é de notar que,além do calibre intelectual e da aversãoao turismo, pouca semelhança há entreesses dois. Kant queria combater osperigos da paixão com uma razãointeiramente desapaixonada; Espinosaqueria combater as paixões perigosascom emoções irresistíveis. Aracionalidade de Espinosa necessitavada emoção como motor. No que dizrespeito às suas maneiras, Kant eEspinosa também não se pareceriam.Kant, pelo menos o Kant terminal, eraum homem tenso e formal, o epítomeda delicadeza circunspecta. Uma canaseca. Espinosa era calmo e amável,apesar dos seus gestos cerimoniosos.Apesar do seu impiedoso humor, oEspinosa terminal era gentil, quasedoce.

Antes de mudar para oPaviljoensgracht, Espinosa tinhaalugado quartos numa rua muitopróxima, a Stilleverkade. Mas o aluguelera alto demais, ou ele assim pensava,

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e por isso se mudou. Antes daStilleverkade, Espinosa tinha vividodurante sete anos em Voorburg, umapequena vila a leste de Haia; e antesde Voorburg tinha passado dois anosem Rijnsburg, uma cidade próxima deLeiden, a meio caminho entreAmsterdam e Haia. Entre a saída dasua casa de família e a ida paraRijnsburg, Espinosa teria vivido emdiversas moradas de Amsterdam, oupróximo de Amsterdam, como visita emcasa de amigos, ou em residênciasalugadas. Espinosa nunca foiproprietário de uma casa e nuncaocupou mais do que um quarto dedormir e uma sala de trabalho.

Não há nenhuma prova de que essafrugalidade fosse necessária, apesardas altas e baixas da empresa do seupai. Espinosa tinha nascido numafamília rica. O tio Abraham era um dosmercadores mais ricos de Amsterdam,e a mãe tinha trazido um enorme dotepara o seu casamento. Mas ainda antesdos trinta anos, Espinosa tinha setornado indiferente à riqueza pessoal eà posição social, embora nada visse deproblemático na noção do lucro.Simplesmente, Espinosa não achavaque o dinheiro ou as posses fossemrecompensas desejáveis, embora

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pudessem ser para outros, e emboraachasse que a determinação do nívelde riqueza que se poderia acumulardeveria ser decidido individualmente.Cabia a cada um ser juiz nessa matéria.

Espinosa chegou a essa atitude emrelação à riqueza e à posição social deforma gradual e não sem conflito. Porcerto apreciava o valor da suaeducação e sabia que ela não teria sidopossível sem a posição social efinanceira da família. Entre a suaadolescência e os 24 anos de idade,Espinosa foi um homem de negócios, edurante algum tempo teve a seu cargoa empresa familiar. Durante esseperíodo não há dúvida de que sepreocupou com o dinheiro ao ponto deter processado clientes judeus por nãopagarem as suas contas (o ato énotável, dado que a comunidadejudaica exigia que todo e qualquerconflito entre judeus fosse resolvidodentro dos limites da comunidade epelos seus líderes). Na mesma linha deação, quando o pai de Espinosa morreue deixou a empresa com um númeroconsiderável de dívidas, Espinosa nãohesitou em invocar a proteção dotribunal holandês e em se instituircredor prioritário da herança. Mastalvez este último episódio tenha

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trazido consigo o ponto de virada noque se refere ao dinheiro e às posses. Éentão que Espinosa renuncia à herançacom exceção feita a um objeto: o leitoconjugal dos pais. Oledikantacompanhá-lo-ia pelo resto davida, e foi nesse mesmo ledikant queEspinosa veio a morrer. A propósito,acho essa fixação no ledikantverdadeiramente fascinante. Claro quehavia razões práticas para ficar com acama, pelo menos durante algumtempo. O ledikant é uma cama dedossel, com cortinas pesadas que sepodem fechar de forma a transformar acama numa ilha isolada e quente. Oledikant era também um símbolo deafluência, dado que as camas comunsnas casas de Amsterdam eram do tipoarmoire, literalmente uma cama dentrode um armário de parede cujas portasse abriam à noite. Mas é um poucoestranho esse desejo de se agarrar àcama em que os pais o conceberam, naqual brincou em criança, na qual ambosos pais morreram, e decidir que aí iriadormir para sempre. Espinosa nuncateve que sonhar com o Rosebud(Rosebud refere-se ao trenó dopersonagem John Foster Kane no filmeCidadão Kane de Orson Welles) perdidoda sua infância porque nunca teve que

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se separar dele.Ao tempo em que Espinosa chegou à

idade adulta, as circunstânciashistóricas tinham reduzido o valor daempresa familiar. Não resta dúvida deque um negociante tão inteligentecomo Espinosa teria sido capaz defazer com que a empresa de novo setornasse lucrativa. Mas parece que aessa altura Espinosa tinha jádescoberto que pensar e escrever eramas suas fontes de satisfação e queprecisava de pouco para sustentaresses bons hábitos. Em várias ocasiões,um dos grandes amigos de Espinosa,Simon deVries, tentou convencerEspinosa a aceitar uma renda, mas elenunca aceitou. E quando De Vries, àsportas da morte, tentou transformarEspinosa no seu herdeiro, Espinosaconseguiu dissuadi-lo e insistir em queaceitaria apenas uma pequenaanuidade para o ajudar nas suasnecessidades básicas. A soma eraridícula, quinhentos florins, mas ahistória não acaba aqui. Quando DeVries morreu e deixou no testamento atal anuidade de quinhentos florins,Espinosa declarou ao irmão do falecidoque a soma devia ser reduzida:trezentos florins era mais quesuficiente. Mais tarde veio também a

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recusar uma generosa oferta para acadeira de filosofia da Universidade deHeidelberg uma posição que lhe foioferecida depois de Leibniz o terrecomendado -, embora a principalrazão da recusa tenha tido a ver com oreceio de perder a sua liberdadeintelectual. Mesmo assim, rejeitar acadeira de filosofia significava queEspinosa dava mais valor ao seupensamento do que à vida confortávelque o Eleitor Palatino lhe proporcionariaem Heidelberg. A subsistência deEspinosa, tanto quanto sabemos, foiexclusivamente assegurada pelo seutrabalho com as lentes, e depois de1667, pela pequena anuidade de DeVries. O dinheiro chegava para pagaraluguel e comida, para comprar papel,tinta, vidro e tabaco, e também parapagar o médico. Espinosa nãoprecisava de mais nada.

AMSTERDAM, 1632

A vida de Espinosa não tinha sidosempre frugal. Seu pai, Miguel deEspinosa, era um próspero mercadorportuguês, tal como seu avô paterno.Quando Espinosa nasceu, em 1632,Miguel comerciava com açúcar,especiarias, frutas secas e madeiras do

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Brasil. Era um membro respeitado dacomunidade judaica que nessa alturacontava com cerca de 1400 famílias,quase todas de origem portuguesasefardita. O pai de Espinosa era um dosgrandes contribuintes da sinagogaportuguesa. Em várias ocasiões foigovernador (parnas) da escola e dasinagoga, e nos últimos anos de vida foimembro do mahamad, o grupo laicoque governava a congregação. Miguelde Espinosa era um amigo pessoal doRabi Saul Levi Mortera, um dos rabismais influentes desse período. O tioAbraham era grande amigo do RabiMenassah ben Israel, outro rabi notávelda época. Como muitos judeussefarditas, a família tinha fugido dePortugal e da Inquisição, primeiro paraNantes, na França, e depois para osPaíses Baixos, estabelecendo-se emAmsterdam pouco tempo antes donascimento de Espinosa. A mãe deEspinosa, Hana Deborah, tambémdescendia de uma próspera famíliajudia sefardita de linhagem portuguesae espanhola.

A Inquisição tinha sido estabelecidamuito mais tarde em Portugal do quena Espanha. Em Portugal começou em1536 e só atingiu força notável depoisde 1580. Esse relativo atraso deu aos

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judeus portugueses a oportunidade deemigrar para Antuérpia e mais tardepara Amsterdam, terras de bem maiorpromessa do que o Norte da África, aItália do Norte e a Turquia, para onde osjudeus espanhóis tinham emigrado cemanos antes.

No princípio do século XVII, aHolanda, e Amsterdam em particular,era uma terra prometida. Ao contráriode praticamente todos os outros paísesna Europa, a estrutura social e políticaera marcada por uma relativatolerância racial, que abrangia osjudeus, especialmente se fossemsefarditas, e por uma relativa tolerânciareligiosa, que abrangia sobretudo osjudeus mas não tanto os católicos. Aaristocracia era razoavelmenteeducada e benévola. A Casa de Orangetinha os seus príncipes, mas ospríncipes detinham a posição destadtholder, uma espécie de presidenteque era responsável perante umconselho das províncias holandesas. AHolanda era portanto uma república, edurante uma grande parte da vida deEspinosa, o stadtholder nem foi sequero príncipe de Orange, mas sim umcomum e inteligente mortal. Uma boaparte daquilo que hoje reconhecemoscomo justiça e capitalismo modernos

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são obras dos holandeses dessa época.O comércio era respeitado. O dinheirotinha um valor supremo. O governocriava leis que permitiam aos cidadãoscomprar e vender, em liberdade e pelomelhor preço. Uma burguesia extensaflorescia e dedicava-se à administraçãodas suas propriedades e à procura deuma vida de conforto. Os líderescalvinistas mais iluminados achavambem vinda a contribuição que osmercadores judeus portuguesestraziam à vida holandesa.

Apesar do seu desenraizamentocultural, a comunidade judaica era rica,cultural e financeiramente. Claro quehavia dificuldades impostas pelo exílio,por tensões religiosas internas e pelanecessidade de obedecer às regras dopaís que a hospedava. No entanto, acomunidade judaica funcionava deforma mais coesa do que em Portugal,onde tinha estado dispersa por umaárea geográfica muito maior, sempreameaçada pela sombra errática daInquisição. Os judeus praticavam a suareligião em liberdade, tanto em casacomo na sinagoga. Os negóciosfloresciam e nem sequer parecem tersofrido gravemente com as depressõeseconômicas que se seguiram às váriasguerras com a Espanha e com a

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Inglaterra. Era até possível aos judeususar a sua língua original, o português,sem estigma, em casa, no trabalho ena sinagoga.

Não havia um bairro judeu emAmsterdam. Os judeus podiam residironde quisessem e pudessem pagar. Amaior parte dos judeus ricos viviapróximo do Burgwaal, e era aí que afamília Espinosa vivia, perto dasinagoga ainda hoje conhecida comoSinagoga Portuguesa, aquela que veioa consolidar as três comunidadesjudaicas originais de Amsterdam. Aprimeira versão dessa sinagoga foiconstruída no Houtgracht em 1639. Aversão da sinagoga portuguesa queainda hoje está de pé foi erigida apequena distância, em 1675. Muitosholandeses que não eram judeushabitavam nessa parte de Amsterdam,e um deles era Rembrandt, que vivia noBreestraat, numa casa que tambémcontinua de pé. Que se saiba,Rembrandt e Espinosa nunca seencontraram, embora, dadas as suasdatas, o encontro tivesse sido possível(Rembrandt viveu de 1606 a 1669;Espinosa del632al677). Rembrandtconhecia vários membros dacongregação judaica, alguns dos quaiseram ávidos colecionadores de arte.

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Rembrandt pintou vários deles emretratos, cenas de rua e de práticareligiosa, e até ilustrou um livro deMenassah ben Israel, o mais famosoestudioso judeu desse tempo, que veioa ser um dos professores de Espinosa.Por seu turno, Rembrandt consultouBen Israel no que diz respeito aospormenores da sua tela O banquete deBaltasar. Teria sido agradável descobrirum retrato de Espinosa pintado porRembrandt, mas não há nenhum sinalde que tal retrato exista. Diz a lendaque Rembrandt utilizou as feições deEspinosa na sua tela Saul e Davi,pintada ao tempo em que Espinosa foiexpulso da sinagoga. A tela retrata Davitocando a harpa para Saul (e éinteiramente diferente de uma outratela de Rembrandt sobre esse mesmotema, intitulada Davi tocando a harpapara Saul). A estatura de Davi e as suasfeições podiam bem ser as de Espinosa.Mas há qualquer coisa de maisimportante do que o aspecto físico:Espinosa podia ser reconcebido comoDavi, um indivíduo pequeno massurpreendentemente forte, capaz dedestruir Golias e desagradar a Saul,capaz ele mesmo de ser rei. DiogoAurélio defendeu essa possibilidade deforma convincente.3

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Os limites impostos pelosprotestantes holandeses eramrelativamente poucos e bem claros. Oinimigo definido pelos holandeses eramos católicos, especialmente os católicosespanhóis com os seus planosexpansionistas, demoníacos ebelicosos. Os judeus tambémconsideravam os católicos inimigos,especialmente os católicos espanhóis,que não só tinham criado umaInquisição feroz como tinhampressionado os portugueses a criar asua própria Inquisição. Nessascircunstâncias, os judeus e osholandeses formavam uma aliançanatural. Além disso, negociar era agrande finalidade da sociedadeholandesa, e os judeus portuguesestraziam belíssimas oportunidades denegócio para as províncias holandesas.Os judeus controlavam uma extensarede bancária e comercial com ligaçõesna península Ibérica, na América, naÁfrica e no Brasil. Não tinham nenhumacompetição. Descartes diria um dia, apropósito de Amsterdam, que os seuscidadãos estavam tão empenhados nosnegócios e tão preocupados com olucro que se podia viver uma vidainteira nessa cidade sem que ninguémdesse por isso. Verdade, ou quase,

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dado que ao contrário do que queria,Descartes não passou despercebido.

Durante a infância de Espinosa, osjudeus representavam cerca de 10%dos banqueiros de Amsterdam e eramindispensáveis para diversas missõesque tinham a ver com a venda dearmas e com as finanças internacionais.Em 1672, a comunidade judaica deAmsterdam contava com 7500membros. Representava apenas 4% dapopulação de Amsterdam, mas 13%dos banqueiros. (Simon Schama sugereque a prosperidade da comunidadejudaica de Amsterdam se deve, emparte, ao fato de que, apesar deconstituir uma parte significativa davida da cidade, de forma alguma adominava, nem no sistema bancárionem nos negócios.4) Não há dúvida deque os holandeses apoiaram os judeus.Desde que os judeus não tentassemconverter os protestantes, ou casar-secom eles, tinham inteira liberdade parapraticar a sua religião e para ensiná-laaos filhos.

Apesar da atmosfera acolhedora deAmsterdam, não é possível imaginar avida do jovem Espinosa sem a sombrado exílio, que era assinalada dia a diapela língua. Espinosa aprendeu a falarholandês e hebreu, e mais tarde a

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escrever latim, mas em casa falavaportuguês e na escola falava portuguêsou castelhano. O pai falava sempreportuguês, tanto em casa como notrabalho. Todos os registros detransações eram feitos em português, eo holandês era usado apenas com osclientes holandeses. A mãe de Espinosanunca aprendeu holandês. Mais tarde,Espinosa lamentaria que os seusconhecimentos de holandês e latim nãofossem tão profundos como os deportuguês e castelhano. Escreveria aum dos seus correspondentes, “Tenhopena de não poder lhe escrever nalíngua em que fui educado”.

As modas e os costumes tambémlembravam dia após dia que apesar detoda a prosperidade a Holanda era oexílio, e não a terra natal. Os sefarditasvestiam-se e comportavam-se de modoaristocrático, cosmopolita e mundano.As suas maneiras refletiam a vida dosnegociantes aristocráticos da Europa doSul a palavra sephardim refere-seàqueles que vêm das cidades do sul,conhecidas pelo nome Sepharad. A vidanas sepharaâ combinava o trabalhocom a sociedade, talvez porque o climanaturalmente o permitisse. Havia umapreocupação com a elegância e com oluxo, e um ouvido atento para as

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notícias de lugares longínquos quechegavam diariamente na marinhamercante que tocava os portos de

Lisboa e Porto. Em comparação comos sefarditas, os holandeses erammeramente práticos e trabalhadores.

É possível que Espinosa tivesse sidoencaminhado para uma carreira denegócios, mas a verdade é que setornou estudante dos rabis Mortera eBen Israel. Os líderes da comunidadetinham trazido esses dois estudiosos dojudaísmo para Amsterdam naesperança de restaurar as práticasreligiosas que os judeus tinham perdidodurante a sua longa estada napenínsula Ibérica. A época parecia idealpara o retorno a tradições judaicasagora que a comunidade era afluente,geograficamente coerente, e que aspráticas religiosas não precisavam sersecretas. Os judeus formavam umanação, e Amsterdam tinha se tornado,na imaginação dos líderes dacomunidade, uma nova Jerusalém.Nesse clima de renascimento eesperança, a inteligência do jovemEspinosa não deixaria de ser apreciada.Tudo indica que Espinosa foi umestudante trabalhador. Mas a mesmadiligência e inquisitividade que fizeramdele uma autoridade sobre o Talmude

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também o levaram a interrogarse sobreos alicerces dos conhecimentos queestava absorvendo de forma tãocompleta. Assim, Espinosa começou adesenvolver concepções da naturezahumana que viriam a divergir dessespróprios conhecimentos. O desvioparece ter sido gradual, e acomunidade provavelmente não seapercebeu do fato até o momento emque Espinosa, talvez por volta dosdezoito anos, tinha entrado na vida dosnegócios. Apesar disso, não houveconfrontações imediatas com asinagoga, e Espinosa continuou a serum membro em good standing dacomunidade. Mas havia já indícios umpouco preocupantes. Por exemplo, osgrandes amigos de Espinosa não eramjudeus e entre eles contava-se Simonde Vries, um rico mercador cuja famíliapossuía uma esplêndida casa no Singele uma propriedade em Schiedam, pertode Amsterdam. A independência emrelação à comunidade talvez tenhacomeçado por escolhas desse tipo.

Por essa altura, Espinosa decidiumatricular-se na escola de Frans Vanden Enden com o propósito deaprender latim. Van den Enden era umcatólico não praticante, um livre-pensador, um poliglota, diplomado em

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medicina e em leis, cujosconhecimentos incluíam filosofia,política, religião, música e as artes.Como seria de prever, dada essa longalista de aptidões, Van den Enden tinhaum apetite de viver verdadeiramentepantagruélico, e a sua influência sobreEspinosa viria a criar conflitos diretoscom a comunidade judaica.

Em 1656, dois anos depois da mortedo seu pai, Espinosa, então com 24anos de idade, era responsável pelaempresa familiar -“Bento y Gabriel deEspinosa”-e continuava a apoiar asinagoga financeiramente. Maslibertado agora de qualquer receio decausar embaraço ao pai, Espinosa jánão fazia segredo das suas ideiasrelacionadas aos seres humanos, aDeus e às práticas religiosas. Nenhumadessas ideias estava de acordo com osensinamentos judaicos. A sua filosofiaestava tomando forma, e Espinosafalava livremente sobre as suas ideias .Ninguém conseguiu calá-lo apesar demuitos terem tentado. Nem apelos,nem ameaças, nem subornos o fizerammudar. Uma tentativa de assassinato,aparentemente perpetrada por umcorreligionário, quase pôs fim a essasaga, mas ninguém sabe se a sinagogaesteve por trás da tentativa. A capa

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larguíssima que Espinosa vestia nanoite em que foi apunhalado nãodeixou que a lâmina tocasse no seucorpo esguio. Espinosa sobreviveu paracontar a história, mais decidido do quenunca a continuar no caminho quetinha traçado, e guardou a capa para oresto da vida, como recordação.Finalmente, como último recurso, asinagoga decidiu excluí-lo dacomunidade. Em 1656, Espinosa foibanido formalmente. Assim chegou aofim a vida privilegiada daquele quenasceu Bento Espinosa, o nome quesempre assinou como homem denegócios, mas que era conhecido nacomunidade pelo nome de BaruchEspinosa. E assim começou a vida deBenedictus Espinosa, o filósofo que veioa morrer em Haia.

IDEIAS E ACONTECIMENTOS

Se a pequena biblioteca de Espinosapode nos dar alguma indicação, afilosofia e a física do seu tempo foramas influências mais importantes no seudesenvolvimento. Os livros maisfrequentes da estante de Espinosaforam escritos por Descartes ou porfísicos. Hobbes estava tambémrepresentado, bem como Bacon. Mas

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Espinosa deve ter lido prolificamentena sua juventude, e lido, portanto,muitos livros que o seu círculo deamigos intelectuais lhe emprestariasem que qualquer traço exista desseslivros na sua biblioteca. Sem dúvidaEspinosa conhecia bem os novosmétodos com que era possível avaliar aevidência científica. Sem dúvida estavaa par das novidades da física e damedicina e das novas ideiasapresentadas por Descartes e Hobbes,os pensadores modernos mais lidosdurante os anos formativos deEspinosa. Espinosa nunca realizouexperiências sistematicamente, o quenão é coisa rara entre aqueles que“pensavam a ciência” da época. Bacontambém não era um homem delaboratório. Contudo, Espinosaapreendeu a ciência empírica da épocacom suas leituras e também, talvez,com seu trabalho em óptica. Sabiaponderar os fatos de forma precisa esabia fazer uso da sua reflexão lógica ede uma intuição muito rica.

A escola de Frans Van den Enden e opróprio Van den Enden foram oscatalisadores do desenvolvimentointelectual de Espinosa. O círculo deVan den Enden era ideal para queEspinosa pudesse discutir ideias que

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havia muito fermentavam no seuespírito e que precisavam da luz dodebate para poderem fluir. A escola deVan den Enden estava na moda. Ficavano Singel, um dos canais principais deAmsterdam, e era frequentada pelosfilhos dos mercadores ricos da cidadeque queriam que a sua prole fosse omais cosmopolita possível. Antes de teraberto a sua escola, Van den Endentinha sido dono de uma livraria egaleria de arte, In de Kunst-Winkel, umoutro local ideal para o encontro dejovens inteligentes e para a discussãode ideias não convencionais. Animadode energia e erudição, Van den Endenera uma figura carismática, e é fácilimaginá-lo no papel do líder subversivode jovens dissidentes políticos ereligiosos. (Van den Enden tinha cercade cinquenta anos quando Espinosa oencontrou e setenta quando foienforcado como resultado do seuenvolvimento numa conspiração paradestronar Luís XIV.)

Apesar de Espinosa ter entrado paraa escola de Van den Enden paraaprender a língua franca da filosofia eda ciência, o latim, Espinosa nãoaprendeu só latim. Aprendeu filosofia,medicina, física, história e política,incluindo a política do amor livre que o

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libertino Van den Enden recomendava.Espinosa deve ter entrado nessa loja deprazeres proibidos com abandono edelícia. Ao que parece, a escola de Vanden Enden deu também a Espinosa oprimeiro gosto daquilo que era o amor,na pessoa de uma jovem professora delatim, nada mais nada menos do queClara Maria Van den Enden.

A proximidade com Van den Endenproduziu uma inflexão notável na vidade Espinosa numa altura em que outrasmodificações pessoais estavamocorrendo. Nos anos queimediatamente precederam a entradade Espinosa na escola de Van denEnden, Espinosa tinha entrado nomundo dos negócios e interrompido osseus estudos formais, emboracontinuasse ligado à vida de estudo dasinagoga através de um grupo dediscussão guiado pelo rabi Ben Israel,um grupo a que só tinham acessoestudantes avançados do judaísmo. Aentrada no mundo do comércio pôsEspinosa em contato com outros jovensnegociantes que não eram judeus.Entre eles contava-se Jarig Jelles, ummenonita de cerca de trinta anos,

Pieter Balling, um católico de idadeincerta, e Simon de Vries, de quem jáfalamos, um quaker três anos mais

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novo que Espinosa. Nenhum dessestrês homens tinha o calibre intelectualde Espinosa, mas partilhavam umapersonalidade dissidente, religiosa epoliticamente, uma avidez para odebate de ideias novas e um grandeapetite pela vida. Juan de Prado, oúnico judeu da sua idade de quemEspinosa se tornou amigo, era outrodissidente, repetidamente censuradopela sinagoga pelos seus comentáriosheréticos e, por fim, também expulsoda sinagoga.

Grande parte da vida de Espinosaaté então tinha sido passada na leiturado Talmude, da Torá e dos textos daCabala, que faziam parte da tradiçãosefardita e eram especialmentepopulares entre os judeus portuguesesde Amsterdam. O conflito com as novasideias de Espinosa não podia ser maior.Os textos antigos falavam de milagresmas era possível, com o auxílio dosnovos fatos, apresentar explicaçõescientíficas para esses milagres. Ostextos antigos mostravam umaconfiança cega nos mistérios esignificados ocultos, mas os novosdados abriam a porta a uma explicaçãopossível desses mistérios. O fato deque as superstições nada mais eram doque superstições tinha de ser

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confrontado.É possível que o conflito tivesse sido

inevitável, mas certos fatores dahistória pessoal de Espinosa tornaram oconflito ainda mais provável. A mãe deEspinosa morrera quando ele tinha seisanos e ela nem sequer trinta. Pouco sesabe sobre essa mãe, mas a suainfluência sobre o desenvolvimento dojovem Espinosa parece ter sidoconsiderável, e a sua morte uma perdadifícil de reparar.5 Não creio queEspinosa tenha tido muita infânciadepois da perda da mãe. As descriçõesda sua vida aos dez anos de idadeajudava o pai nos negócios, em certashoras do dia, mas continuava afrequentar a escola dão a ideia de que,para Espinosa, a idade adulta chegouprecocemente. Sem ninguém paraopor-se, o jovem Espinosa pôdeobservar a realidade do comércio e asglórias e fraquezas dos seres humanosque lutavam pela vida no microcosmosfervilhante de Amsterdam. Miguel deEspinosa casou-se de novo três anosdepois da morte da mãe de Espinosa, ea sua proximidade em relação ao paiaumentou. Diz a história que, apesar dasua participação ativa na vida religiosada comunidade, Miguel tinha poucapaciência com a hipocrisia, religiosa ou

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não. Miguel fazia pouco das piedadescerimoniais e ensinou ao seu filho comodistinguir o que era verdadeiro daquiloque era falso no que diz respeito àsrelações humanas. Não ésurpreendente, portanto, que o jovemEspinosa desprezasse a superstição e aartificialidade. Nem surpreendetambém que fosse arrogante e irônico,fazendo muitas vezes uso de um humorque embaraçava os seus própriosprofessores. Miguel nunca fez segredodo seu ceticismo quanto à imortalidadeda alma. O nosso Espinosa estavadecerto bem preparado para ver alémda fachada da piedade, e tinha se dadoconta da enorme distância entre asrecomendações dos textos religiosos eas práticas diárias dos comuns mortais.Quando Espinosa começa a interrogar-se publicamente sobre o valor dosrituais, é claro que as dúvidas queentão articula tinham começado muitosanos antes graças à realidade a que osseus familiares o expuseram.

O CASO DE URIEL DA COSTA

Talvez o começo da rebelião deEspinosa tenha coincidido com osacontecimentos do último ano da vidade Uriel da Costa, um parente afastado

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de Espinosa, pelo lado da mãe, e umafigura central da comunidade judia deAmsterdam durante a infância deEspinosa.

Os acontecimentos a que me refirotiveram lugar em 1640, de acordo comalgumas fontes, ou em 1647, de acordocom outras, o que quer dizer queEspinosa teria, a essa altura, pelomenos oito anos e não mais de quinze.Eis o que se passou.

Uriel da Costa tinha nascido no Portocom o nome de Gabriel da Costa. Assimcomo a família da mãe de Espinosa,que também era oriunda do Porto, afamília de Da Costa incluíacomerciantes sefarditas abastados quetinham se convertido ao catolicismo.Gabriel foi educado na fé católica ecresceu numa vida de privilégio. Era

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um jovem aristocrata com duas paixõesdominantes, os cavalos e as ideias , eas suas inclinações intelectuaislevaram-no a uma carreira naUniversidade de Coimbra, ondeestudou religião e foi feito, por fim,professor. Mas quando o cismático emelancólico Da Costa aprofundou osseus conhecimentos de religião,começou a achar problemáticos osprincípios do catolicismo e acabou porconcluir que a fé ancestral da suafamília era mais verdadeira e preferível.Teria sido aconselhável discrição no quetoca a essas conclusões, mas discriçãonão era o ponto forte de Da Costa. Quese saiba, tanto ele como sua mãe, etalvez outros parentes, decidiramcomportar-se de acordo com o quepensavam e passaram portanto deconversos judeus convertidos aocristianismo a marranos-cristãos quepraticavam o judaísmo de formasecreta. Com ou sem justificação, apartir daí, Da Costa começou adesconfiar que a sombra da Inquisiçãoestava se aproximando dele, econvenceu-se de que tanto ele como afamília estavam em perigo. Daí apersuadi-los a mudarem-se para aHolanda foi um passo breve. Os trêsirmãos, a mãe e a sua jovem esposa,

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acompanhados da criadagem, pássarosengaiolados, mobília de madeiralavrada, porcelana delicada e linhos damais fina tecelagem, lá se meteramnum barco, no Douro, ao abrigo danoite, como tantas outras famíliassemelhantes, a caminho de um portoholandês ou alemão e de uma vidanova.6

Precisei contar toda essa longahistória para que faça sentido o quevou dizer a seguir. Da Costa seestabeleceu em Amsterdam, despiusedo nome português Gabriel e adotou avariante hebraica Uriel, e aí se devotoucom afinco a uma reanálise dojudaísmo e uma nova fase de cisma emelancolia. Dessa feita, Da Costaencontrou fortes defeitos nosensinamentos e práticas judaicas e nãoteve papas na língua ao formular suasconclusões: as práticas religiosasjudaicas eram supersticiosas; Deusnada poderia ter de humano; asalvação não devia ser baseada nomedo, e assim por diante. Da Costa nãosó falou sobre tudo isso, mas tambémescreveu. A sinagoga procedeu comoera de esperar: fez críticas,admoestações, avisos, recomendações.Mas como Da Costa a nada respondeude forma satisfatória, foi formalmente

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expulso, depois reintegrado, e depoisexpulso de novo, tendo acabado por serefugiar na comunidade judaica deHamburgo, de onde também veio a serexpulso. Esse caso tinha se tornado umassunto sério para a nação judaica. Oslíderes temiam que heresias manifestassemelhantes trouxessem descréditopara a comunidade ou coisa pior. Asautoridades holandesas podiam, porexemplo, exercer represálias contra acomunidade inteira dado o seu receiode que sentimentos anti-religiosos nacomunidade judaica pudessem sepropagar entre a populaçãoprotestante.

Em 1640 (ou 1647), o folhetim DaCosta chegou ao capítulo final. Asinagoga exigia uma solução para ahistória embaraçosa, e uma solução eratambém o que Da Costa queria, tendoentre cinquenta e sessenta anos deidade e estando com a saúde abalada,física e mentalmente, por essa batalhainfindável. Por fim, chegaram a umacordo. Da Costa viria à sinagoga parase retratar publicamente da sua heresiade forma que todos pudessemtestemunhar o seu arrependimento. Namesma sessão seria castigadofisicamente para que a natureza gravedo seu crime não passasse

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despercebida. Só então poderiaretomar o seu lugar na nação judaica.

No seu livro Exemplar vitaehumanae, Da Costa revolta-se contraessa prepotência, o que não deixadúvidas de que a sua aceitação doacordo não significa que as suas ideiastenham mudado. Explica, por outrolado, que a humilhação contínua a queestava sujeito e a exaustão física emque se encontrava o obrigavam aaceitar.

O dia do castigo foi largamenteanunciado e esperado com grandeexpectativa, teatro e circo em grandeescala. A sinagoga estava repleta dehomens, mulheres e crianças, sentadose de pé, quase sem espaço pararespirar, todos à espera de quecomeçasse esse magníficoentretenimento. O ar estava saturadocom toda aquela respiração excitada, eo silêncio era apenas quebrado por umruído característico do local: aoentrarem, os sapatos dos espectadoresesmagavam os grãos de areiadispersos pelas tábuas de madeira nochão da sinagoga.

Chegado o momento, pediram a DaCosta que subisse ao palco principal econvidaram-no a ler a declaração quetinha sido preparada pelos líderes da

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sinagoga. Usando as palavras deles, DaCosta confessou as suas numerosastransgressões, a falta de observânciado sabá, a falta de observância à Lei, asua tentativa de evitar que outrosadotassem a fé judaica, crimes quejustificariam um milhar de mortes masque iam agora ser perdoados dado queele prometia, com convicção, não maisse empenhar em tão odiosasperversidades e iniquidades.

Acabada a leitura, pediram-lhe quedescesse do palco e um rabi segredou-lhe ao ouvido que era a altura de oacompanhar a um certo canto dasinagoga, e ele assim fez. Nesse canto,o chamach pediu-lhe que se despisseda cintura para cima, tirasse os sapatose atasse um lenço à volta da cabeça.Pediu-lhe ainda que se encostasse auma coluna, e ataram-lhe as mãosatrás das costas, com uma corda. Osilêncio era agora sepulcral. Foi entãoque o hazan se aproximou, de chicotede couro na mão, e começou a aplicar39 chibatadas às costas nuas de DaCosta. À medida que o castigocontinuava, e talvez para ajudar nacontagem, a congregação começou acantar um salmo. Da Costa, por seulado, contou as chibatadas comprecisão e reconheceu nos seus

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torturadores uma observânciaescrupulosa da Lei: a Lei especificavaque o número de chibatadas nuncadeveria exceder quarenta.

Uma vez acabado o castigo,pediram-lhe que se sentasse no chão eque voltasse a vestir a camisa. Aomesmo tempo, o rabi anunciou areintegração. A excomunhão estavaagora suspensa e a porta da sinagogade novo aberta para Da Costa. Nãosabemos se a proclamação foi recebidacom silêncio ou aplausos.

Por estranho que pareça, o ritualainda não estava completo. Faltavapedir a Da Costa que fosse para a portaprincipal e que se deitasse no chão, nolimiar da porta. O chamach ajudou-o adeitar-se e segurou-lhe a cabeça comas suas próprias mãos, mostrandosolicitude e gentileza. E é nesse pontoda história que homens, mulheres ecrianças, um por um, começam a sairdo templo e cada um tendo que dar umpasso por cima de Da Costa, nomomento em que sai. No seu livro, DaCosta assegura-nos que ninguém lhepôs os pés em cima, mas que todos lhepassaram por cima.

Agora, a sinagoga está vazia. Ochamach e vários outros membros dacongregação congratulam Da Costa:

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um sucesso enorme, o desta noite, umcastigo bem recebido, a chegada de umnovo dia na sua vida. Ajudam-no alevantar-se, escovam-no da areia quecaiu de tantos sapatos. Uriel da Costa éde novo um membro respeitável danova Jerusalém.

Não se sabe com certeza quantosdias durou essa nova vida. Da Costa foilevado a sua casa e ocupou-se com aconclusão do manuscrito, Exemplarvitae humanae. As últimas dez páginasdo livro descrevem esse episódio e arebelião impotente que dele seapoderou. Depois de acabar omanuscrito, Da Costa deu um tiro nacabeça. A primeira bala falhou o alvo,mas a segunda matou-o de vez. DaCosta tinha dito a última palavra.

Nem nos livros de Espinosa nem nacorrespondência que sobreviveu a elese encontra nenhuma menção a Urielda Costa. E, no entanto, é claro queEspinosa conhecia a sua história emdetalhes. É verdade que houve outrasexcomunhões, retratações e castigospúblicos durante esse período. Em1639, um homem chamado AbraãoMendes foi sujeito a um castigosemelhante, o que sugere que asinagoga não tinha nenhuma hesitaçãoem impor disciplina entre os seus

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membros.7 Mas o caso Da Costa pareceter sido o mais saliente do seu tipo. DaCosta não era um simples herege, masantes um herege muito bem publicadoque persistiu na heresia durantedécadas. Espinosa, quer tivesse oitoanos ou quinze, devia estar entre opúblico dessa noite com o seu pai eirmãos. Além disso, durante anos a fio,o caso continuou a ser olhado comoreferência necessária, e é fácilreconhecer os seus contornos emalguns dos escritos de Espinosa sobre areligião organizada. A posição de DaCosta em relação à religião organizadatornou-se, como é sabido, a posição deEspinosa.8 Claro que Da Costa não eraum pensador profundo como Espinosa,era um homem perturbado que sofriaamargamente sempre que se sentiatratado injustamente, e que respondiade forma indignada e sem hesitação.Da Costa reconheceu a hipocrisia edeu-lhe um nome, mas a suaoriginalidade consiste em ter setornado um mártir.

É possível que o silêncio de Espinosasobre esse caso reflita a sua decisão denegar qualquer influência de Da Costanas suas próprias ideias, dado talvezque tais ideias estavam no ar, por essaépoca, e que Da Costa nunca as tratou

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com a mesma profundidade de análisede Espinosa. Ou talvez Espinosasofresse pura e simplesmente dachamada “angústia da influência” etenha se recusado, consciente ouinconscientemente, a reconhecer adívida que tinha para com Da Costa.Essa mesma angústia da influência, sedisso se trata, ocorre em relação a Vanden Enden. Espinosa nunca lhe dá ocrédito que parece ter merecido. Sejacomo for, é razoável pensar que o casoDa Costa tenha tido um enormeimpacto em Espinosa, talvez mais porcausa da sua teatralidade do que porcausa das análises expressas noExemplar vitae humanae. Talvez asmemórias desse episódio tenhamfortalecido Espinosa em relação àbatalha que viria a travar com acomunidade, e é bem possível que otenha levado à decisão de não estarpresente em sua própria excomunhão.A excomunhão de Espinosa foi lida nomesmo palco em que Da Costa seretratou, mas in absentia.

A PERSEGUIÇÃO JUDAICA E ATRADIÇÃO MARRANA

Apesar da sua prosperidade, a naçãojudaica de Amsterdam vivia com um

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receio persistente: o de que qualquerdesvio de um dos seus membrospudesse ser mal recebido pelasautoridades calvinistas e provocarrepresálias contra a comunidade. Osjudeus estavam habituados aperseguições, e o acordo que lhespermitia viver em Amsterdam requeriauma enorme vigilância. Era necessáriomostrar fé em Deus de uma formapública, mas essa profissão pública nãopodia ser acompanhada de uma defesado judaísmo.

Os judeus eram convidadosconvenientes, mas não compatriotas. Oseu bom comportamento podia serrecompensado com liberdades civis,mas estavam sempre em risco deperder essas liberdades. O castigopúblico de Uriel da Costa teve comoobjetivo principal lembrar àcomunidade que a situação erapericlitante. É possível que a geraçãode judeus de que Espinosa fez parte seconsiderasse holandesa, e é verdadeque, com a passagem do tempo,Espinosa parece assumir umaidentidade holandesa mais do que a deum exilado. Mas os alicerces dessaidentidade eram recentes e nãoespecialmente sólidos.

A arquitetura da nova sinagoga

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portuguesa de Amsterdam descreve oproblema melhor do que quaisquerpalavras. Essa estrutura notável, queabriu as suas portas em 1675, não éum edifício único, mas sim umapequena cidade com muralhas dentroda qual se encontram um santuário,uma escola, locais de encontro paraadultos e um campo onde as criançaspodiam brincar. As muralhas osprotegem da sociedade que os rodeia.

Mas, além dos problemas queprovinham da sociedade que oscircundava, havia também aqueles quevinham do interior da comunidade.Havia, por exemplo, conflitos entre asdiversas práticas religiosas, o que não ésurpreendente, visto que a maior partedos membros da nação tinha praticadoa sua religião em segredo, em Portugal,independentemente de qualquersinagoga. Os líderes da nação tudofizeram para evitar que esses conflitosfossem visíveis para os holandeses eque a imagem de um povo trabalhadore temente a Deus fosse perturbada. Ehavia outros problemas. Ao que parece,os sefarditas tinham um apetite sexualinsaciável que necessitava sercontrolado, e era também necessáriocontrolar o movimento dos grupos dejudeus muito diferentes que vinham do

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norte e do leste da Europa, e que eram,na sua maior parte, pobres e poucoeducados. Espinosa cresceu comotestemunha atenta de todos essesconflitos humanos, pessoais, sociais,religiosos e políticos. Quando Espinosaescreveu sobre os seres humanos esobre as suas fraquezas, em si mesmosou no contexto de instituições políticase religiosas, sabia do que estavafalando.

Espinosa conhecia bem a históriados sefarditas que precedeu a suachegada aos Países Baixos, e estavabem a par das dimensões religiosas doproblema judeu. É isso que se podeconcluir dos seus comentários noTratado. Não é de esperar que os temasda sua filosofia escapassem ao pesodessa história, especialmente no quetoca aos marranos.

A tradição marrana consistia naprática secreta de rituais judaicos pelosjudeus que tinham sido forçados aconverter-se ao cristianismo. A tradiçãocomeçou no fim do século XV, naEspanha, antes de os judeus daí seremexpulsos, mas tornou-se especialmenteintensa em Portugal, depois de 1500. Atradição estava bem viva cem anosmais tarde, no tempo em que a elite dacomunidade judaica começava já a

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emigrar para os Países Baixos.9

Depois de 1492, os sefarditasespanhóis fugiram para Portugal emgrande número. É possível que mais de100 mil tenham atravessado a fronteiraatraídos pela forma benigna comoPortugal tinha tratado os judeus atéentão. A comunidade judia portuguesa,contudo, era pequena, e o aumentosúbito dos seus números criavadiversos problemas sociais. Não erafácil diluir essa nova população notecido social português. A riqueza e aposição social de um númeroconsiderável dos recém-emigrados,entre os quais se contavam em grandenúmero mercadores, banqueiros,artesãos e profissionais liberais,separavam esse grupo de forma bemconspícua da pequena burguesiaportuguesa desse tempo. Os emigradosnão podiam se confundir com essapequena burguesia, nem com a gentedo povo, nem com os aristocratas.Tanto D. João II como o seu sucessor, D.Manuel, tentaram resolver esseproblema, mas com estratégiasdiversas. D. João n, por exemplo, impôsenormes impostos aos recém-chegados, mesmo para uma estadatransitória, e impostos ainda maiorespara que lhes fosse permitida estada

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permanente. De certo modo, osfugitivos não tinham nem cidadanianem direitos civis e eram uma espéciede propriedade do rei. D. ManuelIutilizou uma estratégia diferente.Portugal estava empenhado numaempresa colonial de largas dimensões,desproporcionais em relação aopequeno tamanho da terra e dapopulação. D. Manuel I reconheceuenorme valor na população judaica eentreviu a forma como os seusmembros podiam contribuir para acampanha colonial nos seus aspectosmais críticos: comércio, bancos eadministração. De acordo com essaideia, D. Manuel Irestituiu os direitoscivis aos judeus, mas não sem que essamedida tivesse um preço exorbitante:os judeus tinham que se converter aocristianismo. Tinham que ser batizadosou sair do país.10

De um momento para outro,batizou-se um número muito grande dejudeus. Uma parte considerável dapopulação sefardita foi assimassimilada ao cristianismo, à maneiraportuguesa, com mais ou menos rigor edificuldade. Esses judeus passam a serconhecidos por conversos ou cristãos-novos. Os seus descendentes podemencontrar-se ainda hoje, passadas

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muitas gerações, e descrevem-se comocatólicos, ou protestantes, ou ateus. Aintegração da população portuguesa foiquase completa, e em muitos casos aorigem judia foi obscurecida pelapassagem dos séculos.

Uma outra parte da populaçãosefardita tornou-se marrana.Publicamente, os marranoscomportavam-se como cristãos, mas aportas fechadas esforçavam-se porcontinuar a ser judeus e manter vivasas suas tradições. É improvável que umnúmero significativo de cristãos-novosfossem praticantes secretos, mas éimpossível saber quantos foram edurante quanto tempo persistiram nocomportamento marrano.

Muitos marranos devem ter acabadonas mãos da Inquisição, que seestabeleceu em Portugal em 1536.11 Aperseguição dos protestantes e heregesnão parecia ser especialmentelucrativa, e valia a pena, por isso,levantar autos aos marranos.12 Umoutro grupo de marranos abandonou asua vida arriscada e juntou-se aos maisobedientes cristãos-novos. E osmarranos cuja fortuna e contatosinternacionais permitiam a emigraçãosaíram de Portugal.

Os marranos mudavam de nome

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com frequência, não apenas por razõessimbólicas como no caso de Gabriel daCosta, que passa a chamar-se Uriel -,mas também por razões de segurança.A mudança de nomes confundia osespiões da Inquisição e evitava aperseguição dos membros das famíliasde emigrados que tinham permanecidoem Portugal. Mas não bastava escondera identidade ou as práticas religiosas;era também necessário esconder asideias. A necessidade de encobrir, atodo custo, deve ter estado bempresente na mente e nocomportamento dos adultos à volta dosquais Espinosa cresceu.

Um outro legado da vida marrana éo estoicismo. A vida, em geral, e a fé,em particular, tinham sido mantidas emcircunstâncias difíceis, durante décadasa fio, sem qualquer ajuda deinstituições religiosas as sinagogastinham sido fechadas, como é deesperar e com uma enorme abnegaçãopessoal. Quando Espinosa se viuobrigado a ocultar as suas própriasideias , as razões por que teve de fazê-lo não foram completamentediferentes, e é bem provável que aexperiência ancestral o tenha ajudado.Tanto a tradição do disfarce como aatitude estóica são traços definidores

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da vida de Espinosa, cuja explicaçãonão precisa nem de psicanáliseprofunda nem de filosofia grega. Deforma não menos importante, a históriarecente dos sefarditas forçou Espinosaa refletir sobre a combinação dedecisões políticas e religiosas quetinham mantido a coerência do seupovo através dos séculos. Parece-meque essa confrontação levou Espinosa atomar uma posição sobre a história dosjudeus, e que o resultado foi aformulação de uma visão ambiciosa danatureza humana que pudessepotencialmente transcender osproblemas enfrentados pelo povo judeue pudesse, ao mesmo tempo, seraplicável à humanidade inteira.

Será que Espinosa poderia ter sidoEspinosa se não tivesse feito, elepróprio, parte da libertação vertiginosade que os marranos tiveramexperiência em Amsterdam? Julgo quenão. Será que Espinosa poderia ter sidoEspinosa se os seus pais tivessempermanecido em Portugal? Julgo quenão. É possível imaginar Bento acrescer calmamente no Porto, naVidigueira, ou em Belmonte? Uma vezmais, não. É bem verdade que oconflito que é parte integrante damente marrana atrai os marranos para

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aquilo que é natural e secular, sempremais longe das forças religiosas comque não podem se reconciliar.13 Emboraa intensidade do conflito marrano fossenotável, era necessária uma centelhapara desencadear o incêndio dacriatividade, e essa centelha foi aliberdade. Tudo isso pode parecer umpouco paradoxal, dada a maneira comoa Holanda tratou o trabalho deEspinosa depois da sua morte, mas nofundo não é. A liberdade holandesa nãofoi suficientemente ampla paraacarinhar o trabalho de Espinosa depoisde publicado. Mas foi suficientementeampla para lhe permitir o acesso a tudoquanto havia de novo na cultura do seutempo; suficientemente ampla para lhepermitir debater ideias novas comindivíduos de diversos grupos religiosose sociais; e suficientemente ampla, ouquase, para lhe permitir dedicar-se porinteiro à atividade de repensar anatureza humana e manter, ao mesmotempo, a sua independência. Nadadisso teria sido provavelmente possívelem Portugal ou em qualquer outro paísdo século XVII. Foi necessário oambiente único da Idade de Ouro daHolanda para transformar os conflitoseternamente reprimidos de um povocastigado na exuberância criadora de

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um ser humano bem-dotado.

A EXCOMUNHÃO

Espinosa nasceu numa comunidadede exilados, mas aos 24 anos de idadetinha se exilado dessa mesmacomunidade. Os acontecimentos querodeiam o capítulo final da sua relaçãocom a sinagoga são quase tão teatraiscomo aqueles que descrevi para Urielda Costa. Os rabis sabiam das ideias deEspinosa e estavam a par dosargumentos que ele apresentava contramuitos dos aspectos da Lei. Até amorte de seu pai, com exceção dediscussões com um ou outro rabi,Espinosa usou de certa discrição noque diz respeito à divulgação dessasideias e nunca escreveu sobre elas.Mas, depois da morte do pai, Espinosacomeçou a preocupar-se menos com osproblemas que as suas opiniões podiamcausar. Como eu disse anteriormente,Espinosa nem sequer hesitou em fazeruso da justiça holandesa, assimdesrespeitando a convenção de acordocom a qual assuntos que diziamrespeito à comunidade deviam sertratados pelo braço secular da nação, enão pelos tribunais holandeses.

Os líderes da sinagoga utilizaram

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todos os meios à sua disposição paralevá-lo a pensar e a portar-se de formadiferente. Por exemplo, propuseram aEspinosa uma anuidade de cerca de milflorins, e é fácil imaginar o mal contidodesprezo com que Espinosa deve terrecusado a oferta. Mais tarde, os líderesanunciaram uma primeira excomunhãoem resultado da qual Espinosa ficavaseparado da comunidade durante trintadias.

Em 27 de julho de 1656, a sinagogaproclamou finalmente a verdadeiraexcomunhão (a palavra hebraicacherem). Embora a palavra cheremseja geralmente traduzida comoexcomunhão, “expulsão” ou “exclusão”são talvez traduções mais precisas.Castigos dessa ordem não eramdecididos pelas autoridadeseclesiásticas, mas sim pela comunidadedos líderes, os senhores ouconselheiros, embora os rabis fossemconsultados. As consequências daexcomunhão não eram apenasreligiosas. O excomungado passava aser excluído da comunidade em termosfísicos e sociais. Por outro lado, é denotar que a excomunhão judaica é umaversão bem pálida do equivalentecatólico: o auto-da-fé. Até mesmo as 39chibatadas do nosso pobre Uriel da

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Costa parecem coisa benignacomparadas com a fogueira ou câmarade torturas, que era o destino doshereges nas mãos da Inquisição.

No entanto, dada a tradição dacomunidade judia de Amsterdam, aexcomunhão de Espinosa foiconsiderada cruel e inabitual, violenta edestrutiva. E não há dúvida de que acomunidade registrou um certoembaraço com a enormidade docastigo. Quando Johannes Colerus, oprincipal biógrafo contemporâneo deEspinosa, tentou obter o texto daexcomunhão, líderes da comunidadelevantaram obstáculos.

Os arquivos da comunidade - O livrodos acordos da nação mostram quehouve quinze excomunhõesimportantes no período entre onascimento de Espinosa e a data dasua própria excomunhão. Nenhuma dasoutras excomunhões faz uso delinguagem tão violenta ou é tãodefinitiva na sua condenação.Curiosamente, o anátema que faz parteda excomunhão de Espinosa parece tersido escrito várias décadas antes peloslíderes da comunidade sefardita deVeneza. Esse anátema teria sidoimportado pelos líderes de Amsterdammuito antes de 1656 e incluído num

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livro que bem podemos descrever comoum catálogo de receitas de castigos,para usar em caso de necessidade. Foio rabi Mortera, antigo mentor deEspinosa e amigo chegado do seu pai,que escolheu a receita para o caso deEspinosa. No seu original português otexto é espantoso. Dizem os senhoresde Mahamad que tiveram notícia “dasmás opiniões e obras” de Espinosa, eque tentaram por “diferentes caminhose promessas retirá-lo dos seus mauscaminhos”. Mas sem sucesso. “Tendocada dia maiores notícias dashorrendas heresias que praticava eensinava”, não têm outro remédiosenão expulsálo. E assim escreveram.

Com sentença dos Anjos, com dittodos Santos, nós emharmamos[anatemizamos], apartamos emaldisoamos e praguejamos a Baruchde Espinoza, com consentimento deiDio Bendito, o consentimento de todoeste Kabal Kadoe [Santa congregação],diante dos santos Sepharim, com osseis centos o treze preceitos que estãoescrittos nelles, com o herem queenheremou Joshua e Jericó, com amaldissão que maldixe Elisha aosmossos [crianças], e com todas asmaldissões que estão escrittas na Ley.Malditto seja de dia e malditto seja de

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noute, malditto seja em seu deytar emalditto seja em seu leventar, maldittoelle em seu sair e malditto elle em seuentrar; não quererá Adonai [o Senhor]perdoar a elle, que entonces fumeara ofuror de o Senhor e seu zelo nestehomem, e yazerá nelle todas asmaldissões escrittas no libro desta Ley,e arrematará o Senhor o seu nomedebaixo dos céos, e aparta-lo-à oSenhor para mal de todas as tribos deYsrael, com todas as maldissões dofirmamento escritas no libro da Ley.

Advirtindo que ninguém lhe podefallar boçalmente nem por escritto,nem dar-lhe nenhum favor, nemdebaixo de tecto estar com elle, nemjunto de quatro covados, nem leerpapel algum feito ou escritto por elle.14

E assim se passou a separação de Espinosa em relação ao mundo da sua família, amigos e lugares. A partir de agora, Espinosa chamar-se-ia Benedictus.

Deve-se notar que mesmo nessafase de escândalo aberto, não hánenhum indício de que Espinosa tenhatentado explorar o embaraço quecausou aos seus juízes. Não há dúvidade que poderia ter exposto, sequisesse, a prepotência da sinagoga, e

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que poderia ter respondido àexcomunhão com uma barragem deargumentos retoricamentedevastadores. Mas nunca o fez.15

Talvez o silêncio de Espinosa tenhasido um primeiro sinal da sagacidadeque o levou, anos mais tarde, a insistirem que os seus textos fossempublicados apenas em latim, de formaa reduzir a probabilidade de quefossem mal interpretados. Estouconvencido de que Espinosa sepreocupava genuinamente com oimpacto que as suas ideias podiam ternaqueles para quem a fé era essencial.Em pleno verão de 1656,provavelmente instalado na casa de umamigo holandês e nem sequer muitolonge da sinagoga, diz-se que Espinosarecebeu as notícias da sua excomunhãocom a maior serenidade.

O LEGADO DE ESPINOSA

O legado de Espinosa é uma históriacomplicada e triste. Dado o contextohistórico e as posições radicais queEspinosa tomou, a veemência dosataques que sofreu e a eficácia daproibição dos seus trabalhos eram bemprevisíveis. As precauções queEspinosa tomou indicam que ele tinha

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previsto esses ataques. No entanto, areação não deixa de ser surpreendente.

Espinosa não deixou testamento,mas tinha entregado a Rieuwertz, seuamigo e editor, instruçõespormenorizadas para a disposição dosseus manuscritos. Rieuwerzt revelou-seextremamente leal, corajoso einteligente. Espinosa morreu em fins defevereiro de 1677, mas, antes do fimdesse mesmo ano, um livro em latimintitulado Opera posthuma estavapronto para distribuição. A Éticaformava o cerne desse livro. Astraduções holandesas e francesascomeçaram a aparecer pouco depois.Rieuwertz e o grupo de amigos deEspinosa que o ajudaram tiveram deconfrontar-se com uma revolta violentacontra as ideias de Espinosa. Acondenação dos judeus, do Vaticano edos calvinistas era já esperada, mas asautoridades holandesas reagiramtambém e foram as primeiras, dentreoutros países europeus, a banir o livro.A proibição não se limitava meramentea palavras. As autoridadesinspecionavam livrarias e confiscavamos volumes de Espinosa queencontravam. Publicar ou vender o livroera crime, e continuou a ser crimeenquanto a curiosidade sobre Espinosa

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se manteve. Rieuwertz conseguiu iludiras autoridades com grande mestria,negando firmemente ter qualquerconhecimento dos originais e qualquerresponsabilidade pela impressão.Conseguiu distribuir um grande númerode livros ilegalmente, tanto na Elolandacomo no estrangeiro, quantosexatamente não se sabe.

As palavras de Espinosa estavamassim seguras em numerosasbibliotecas privadas da Europa, emdesafio firme às igrejas e àsautoridades. Na França, em particular,Espinosa foi lido com atenção. Não hádúvida de que os aspectos maisacessíveis do seu trabalho as partesque têm a ver com a religiãoorganizada e com a sua relação com oEstado foram rapidamente absorvidos eaté admirados. Contudo, as igrejas e asautoridades quase ganharam a batalhaporque as ideias de Espinosa nãopodiam ser citadas na imprensa demodo favorável. Poucos filósofos oucientistas ousaram defender Espinosaporque isso teria sido, sem dúvida, umsuicídio intelectual. Apoiar umargumento com base nas ideias deEspinosa significava a derrota doargumento. Durante os cem anos quese seguiram à morte de Espinosa, esse

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foi o seu verdadeiro castigo. Pelocontrário, as referências negativas aoseu trabalho eram bem-vindas eabundantes. Em certas paragens, comono caso de Portugal, falar de Espinosaobrigava ao uso de uma qualificaçãopejorativa tal como “desavergonhado”,“pestilento”, “ímpio”, ou “estúpido”!16

Em certos casos curiosos, no entanto,as aparências críticas disfarçavam ointento de disseminar as ideias deEspinosa de forma sub-reptícia. Oexemplo mais notável dessaduplicidade foi o artigo de Pierre Baylesobre Espinosa no Dicionário filosóficoe crítico. Maria Luísa Ribeiro Ferreiraargumenta que a ambivalência e aambiguidade do artigo de Bayle nãoforam coincidências, e que Bayleconseguiu chamar a atenção para asposições de Espinosa ao mesmo tempoque dava a impressão de o criticar.17

Nesse dicionário, o artigo sobreEspinosa tem mais palavras do que ode qualquer outro pensador.

Por vezes, no entanto, até mesmo aduplicidade inteligente e aambivalência podiam ser atacadas, eos admiradores secretos obrigados aretratar-se e a depurar os seus escritosdo seu espinosismo ímpio. Um exemplonotável diz respeito a O espírito das

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leis, a grande contribuição deMontesquieu para o Iluminismo, em1748. As perspectivas de Montesquieuem relação à ética, Deus, religiãoorganizada e política são perfeitamenteespinosianas e foram, previsivelmente,criticadas como tal. Mas Montesquieuparece não ter previsto a violência dosataques. Pouco depois da publicação,Montesquieu foi obrigado a negar ainfluência do espinosismo nas suasideias e a fazer uma declaração públicada sua fé num criador divino e cristão.Johathan Israel documenta esseepisódio em pormenor e nota queMontesquieu mal se recompôs doataque. Os seus protestos de fé nuncaconvenceram o Vaticano.

À medida que as referências aEspinosa desapareciam, as suas ideiastornavam-se gradualmente maisanônimas para as gerações futuras. Aenorme influência de Espinosa não foireconhecida. Espinosa não foi sóatacado, mas também roubado.Durante a sua vida, a sua identidadeera bem conhecida mas as suas ideiaseram sub rosa, confidenciais. Depois damorte, as suas ideias comunicavam-seem liberdade, mas a identidade do seuautor foi cuidadosamente escondidadas gerações futuras.

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Recentemente tem sido possíveldemonstrar que o trabalho de Espinosafoi um motor decisivo por trás dodesenvolvimento do Iluminismo, e queas suas ideias ajudaram a moldar osmais importantes debates intelectuaisda Europa do século XVIIl, embora ahistória desse período poucos indíciosdê desse estado de coisas. JonathanIsrael mostra que esse é o caso, deforma convincente, e revela as razõespor que ainda hoje é comum pensarque a influência de Espinosa morreucom ele.18 Israel apresenta provascontra a ideia de que o trabalho de JohnLocke dominou o debate desde as fasesiniciais do Iluminismo. Por exemplo,uma das publicações centrais doIluminismo, a Encyclopedic de Diderot eD’Alembert, dedicou a Espinosa umespaço cinco vezes maior do queaquele que dedicou a Locke, embora oelogio de Locke seja mais pronunciado,o que Israel interpreta como uma“manobra diversionista”. Israel mostratambém que no Grosses UniversalLexicon, que Johann Eleinrich Zedlerpublicou em 1750 a maior enciclopédiado século XVIII -, os artigos sobre“Espinosa” e “espinosismo” eram bemmaiores do que o modesto artigo sobreLocke. A fama de Locke aparece mais

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tarde.19

É triste notar que poucos filósofos dequalidade, velhos ou novos, prestaramhomenagem pública a Espinosa noséculo que se seguiu à sua morte, eque nenhum assumiu o papel dediscípulo ou continuador. Nem sequerLeibniz, que leu e parece ter apreciadoos escritos de Espinosa antes da suapublicação e que teria sido a mentemais qualificada da época para explicaro significado de Espinosa. Mas não ofez. Escondeu-se como todos os outrose adotou uma posição de críticacircunspecta. Os grandes cérebros doIluminismo fizeram o mesmo. Emparticular, diziam-se iluminados porEspinosa; publicamente, atacavam-no.Um pequeno poema de Voltaire sobreEspinosa exemplifica essa críticaobrigatória e a ambivalência pessoalem relação ao filósofo.20 Na minhatradução, eis o poema:

E então, um pequeno judeu comnariz grande e pele pálida,

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Pobre mas satisfeito, ensimesmadoe reservado,

Um espírito sutil mas vazio, menoslido do que celebrado,

Escondido sob o manto de

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Descartes, o seu professor,

Andando com passos cuidadososaproxima-se do grande Ser:

Desculpe-me, diz ele, falando numsussurro,

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Mas eu julgo, aqui entre nós, que osenhor não existe de todo.

Voltaire

ALÉM DO ILUMINISMO

Depois do Iluminismo, a influênciade Espinosa torna-se mais aberta. CitarEspinosa deixa de ser crime. Espinosatornase mesmo um profeta do mundosecular apesar de ser “pouco lido, mallido, ou não lido de todo”, como GabrielAlbiac diz tão corretamente.21 Filósofoscomo Friedrich Heinrich Jacobi, Friedrichvon Hardenberg Novalis e GottholdLessing apresentam Espinosa a umpúblico diferente, num século diferente.Goethe adota e recomenda Espinosa,não deixando nenhuma dúvida sobre ainfluência que Espinosa teve na suapessoa e no seu trabalho.

Esse homem, que me modificou tãomaravilhosamente e que estavadestinado a afetar de forma tãoprofunda o meu modo inteiro depensar, era Espinosa. Depois deprocurar em vão por todo o mundo ummeio para desenvolver a minhanatureza, deparei-me com a Éticadesse filósofo. Aquilo que li nessetrabalho, e daquilo que li para essetrabalho, não posso dar conta; mas

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verifiquei que era um sedativo para asminhas paixões, e que revelava umavisão clara e ampla do mundo materiale moral. Mas aquilo queessencialmente me fascinou foi aabnegação sem fim que brilhava emcada frase. Aquela expressãomagnificamente sentida, “aquele queama a Deus não deve esperar que Deuso ame como recompensa”.22

Os poetas ingleses também setornam defensores abertos. SamuelTaylor Coleridge absorveu Espinosa,assim como William Wordsworth,inebriado com a natureza e com aprópria inebriação de Espinosa no querespeita ao divino e à natureza. E omesmo aconteceu com Percy Shelley,Alfred Lord Tennyson e George Eliot(que traduziu Espinosa para o inglês). Ese Kant não tivesse se recusado a lê-lo,e se David Elume tivesse sido maispaciente, Espinosa teria sidoreintegrado na história da filosofiaainda mais cedo. Eventualmente, GeorgHegel proclamou que “para se serfilósofo é preciso ser antes do maisespinosista: se não se tem espinosismonão se tem filosofia”.23

Espinosa não parece ter nenhumainfluência nas áreas da ciênciacontemporânea que mais naturalmente

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estão ligadas às suas ideias : a biologiae as ciências cognitivas. Mas a suarecepção nessas mesmas áreasdurante o século xix foi bem diferente,dado que Wilhelm Wundt e Herman vonHelmholtz, dois dos fundadores dasciências da mente e do cérebro, eramávidos seguidores de Espinosa. Aoexaminar a lista dos cientistasinternacionais que se juntaram, em1876, para erigir a estátua de Espinosaque hoje está colocada em Haia,encontrei não só os nomes de Wundt ede Helmholtz, mas também o deClaude Bernard.24 Será que Espinosainspirou em Bernard a preocupaçãocom os estados de equilíbrio da vida?

Em 1880, o fisiologista JohannesMtiller dizia que “há uma semelhançanotável entre os resultados científicosobtidos por Espinosa há dois séculos eos resultados a que hoje chegamcientistas como Wundt e Haeckel naAlemanha, Taine na França, e Wallace eDarwin na Inglaterra, cientistas quetratam de questões psicológicasatravés da fisiologia”.25 A ideia de queEspinosa tinha antecipado opensamento biológico moderno eraperfeitamente óbvia para Müller e paraFrederick Pollock, que escreveu, nessamesma época: “Espinosa é cada vez

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mais o filósofo dos homens deciência”.26

Mas nem tudo são rosas nesse marde reconhecimento. Por exemplo,Espinosa parece ter tido uma influênciaimportante sobre Freud. O sistema deFreud necessita do mecanismo deautopreservação que Espinosa propôsno conatus e utiliza abundantemente aideia de que as açõesautopreservativas são desencadeadasde modo não consciente. No entanto,Freud nunca cita o filósofo. Quando aquestão lhe foi posta diretamente,Freud explicou a sua omissão de umaforma curiosa. Numa carta escrita aFothar Bickel em 1931, Freud explica:“Confesso sem hesitação a minhadependência no que diz respeito aosensinamentos de Espinosa. Mas senunca me dei ao trabalho de citar o seunome diretamente é porque nuncaderivei os princípios do meupensamento do estudo desse autor,mas sim da atmosfera que ele criou”.27

Em 1932, Freud fechou as portas, deuma vez para sempre, a qualquerreconhecimento. Eis o que disse numaoutra carta, dessa feita escrita aSiegfried Hessing: “Tenho tido, naminha vida inteira, uma extraordináriaestima pela pessoa e pelo pensamento

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desse grande filósofo. Mas não creioque essa atitude me dê o direito dedizer publicamente qualquer coisasobre ele, quanto mais não seja pelaboa razão de que não poderia dizernada que já não tivesse sido dito poroutros”.28 Para sermos inteiramentejustos para com Freud, vale a penalembrar que Espinosa não reconheceunem Van den Enden, nem Da Costa. Etalvez se alguém tivesse posto aEspinosa a mesma pergunta que foiposta a Freud, a sua resposta fossesemelhante à de Freud.

Três décadas mais tarde, o notávelpsicanalista francês Jacques Lacan teveuma atitude diferente em relação àinfluência de Espinosa. Na suaconferência inaugural na École NormalSupérieure, em 1964, a que deu osugestivo título de “A Excomunhão”,Lacan contou a história de como aAssociação Internacional de Psicanálisetinha tentado impedi-lo de treinarpsicanalistas e o expulsara do seugrupo. E não perdeu a ocasião decomparar essa expulsão à excomunhãode Espinosa, e de tecer comentáriossobre os acontecimentos de 27 de julhode 1656.29

Há que referir uma notável exceçãoa toda essa negação do pai. Albert

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Einstein, o cientista emblemático doséculo XX, não teve nenhuma hesitaçãoem dizer que Espinosa teve sobre eleuma influência profunda. Einsteinsentia-se em sintonia perfeita com avisão que Espinosa lhe dava douniverso, em geral, e de Deus, emparticular.30

HAIA, 1677

Espinosa morreu com 44 anos. Tinhasofrido de problemas respiratóriosdurante anos. A sua tosse crônica estábem documentada, e é sabido que erafumante. O cachimbo era a suaconcessão mais notável ao mundo dosprazeres sensuais, embora sejapossível que o seu hábito de fumantefosse medicinal. Pensava-se, naqueletempo, que o tabaco tinha um efeitoprotetor contra as epidemias da época,e é verdade que Espinosa sobreviveu avárias dessas epidemias. Nos mesesque precederam a sua morte, oproblema agravou-se, embora Espinosanunca tenha parado de trabalhar ou dereceber visitantes. A morte foiinesperada. Aconteceu durante a tardede domingo, 21 de fevereiro. Na manhãdesse último dia, Espinosa tinhadescido para almoçar com a família Van

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der Spijk, como era seu hábito. QuandoEspinosa morreu, a família estava naigreja, mas estava presente LudowickMeyer, um médico de Amsterdam quetratava de Espinosa.

A morte de Espinosa é geralmenteatribuída à tuberculose, mas é possívelque esse diagnóstico esteja errado.Com toda a probabilidade, a doença erabem mais rara. É possível que setratasse de uma doença profissional, asilicose, tal como Margaret GullanWhursugere.31 A silicose não tinha ainda sidodescrita, e sabe-se hoje que é causadapela inalação da poeira que resulta deamolar o vidro. Ora, amolar vidro foiexatamente a atividade em queEspinosa passou grande parte dos diasda sua vida adulta, uma atividadenecessária para o fabrico das suaslentes. Nem a tísica nem as pestes sãonecessárias para dar conta dessamorte. Espinosa tinha forrado o interiordos seus pulmões com o mais brilhantedos pós, até o último suspiro.

Nesse último ano da sua vida, aconfiança com que tinha chegado aHaia tinha se reforçado. As suasconvicções eram inabaláveis. Mas osonho do reconhecimento e dainfluência, se é que alguma vez o tevede forma persistente, tinha

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desaparecido por completo. Em seulugar, apareceram a tranquilidade e aaceitação.

A BIBLIOTECA

Entro de novo na casa de Rijnsburg eolho mais uma vez para os livros deEspinosa. Aqui está Maquiavel, DeGrotius e os Thomas-More e Hobbes -, ocasamento da arte da política com aarte da jurisprudência. Aqui estáCalvino, várias Bíblias, um livro sobre aCabala e muitos dicionários egramáticas, as referências básicas. Hálivros sobre anatomia o livro do Dr. Tulp,o tal que deve a sua fama a Rembrandt,e os do Dr. Kerckring. Theodor Kerckringfoi contemporâneo de Espinosa etambém seu colega e rival. Tinha sidoestudante na escola de Van den Enden

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e tinha se apaixonado também porClara Van den Enden. Mas foi Kerckringque ganhou Clara e que a levou aoaltar. É simpático ver que Espinosatinha guardado os dois livros queKerckring escreveu. É possível imaginarque Espinosa os perdoou e queesqueceu, por completo, o colar queKerckring tinha oferecido a Clara numdia em que o nosso príncipe de mãosvazias nada mais tinha pararecomendá-lo do que os seus olhostristes.

A literatura contemporânea está malrepresentada Cervantes e Gôngora

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estão presentes, mas Camões não está.Será possível que Espinosa não tenhalido Os Lusíadas? Ou talvez alguémtenha roubado o livro. Ou talvezEspinosa preferisse não se recordar dePortugal. Ou talvez não fosse sensível àpoesia moderna. Não há muitasreferências à poesia, à música, ou àpintura nos textos de Espinosa, emboraele reconheça que a música, o teatro,as artes e até o esporte sãoimportantes para a felicidade doindivíduo. Shakespeare e ChristopherMarlowe também não estão presentes,mas penso que Espinosa não lia inglês,e na época havia poucas traduções.Nessa biblioteca até mesmo a filosofiaestá mal representada ao lado damatemática, da física e da astronomia,exceção feita a Descartes.

É arriscado julgar os hábitos deleitura de um homem pelo tamanho econteúdo da sua biblioteca, mas decerto modo parece-me que essaestante reflete a verdade. Pode bemser que esses fossem os livros de queEspinosa precisava nos últimos anos dasua vida. É uma biblioteca que fazsentido com o resto das suas outrasposses. Defronte dessa estante, até ominimalismo me parece excessivo. E daestante vou de novo para o livro dos

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visitantes, à procura do registro que dizrespeito a Einstein, e tento imaginar acena da sua visita a essa mesma salano dia 2 de novembro de 1920.

O ESPINOSA QUE FINALMENTEENCONTREI

Encontrar Espinosa na minhaimaginação foi uma das razões por queescrevi este livro, mas levei muitotempo para encontrá-lo. Sempre quetentava imaginar as feições deEspinosa ou os seus movimentos, ovazio era quase completo, o que nãosurpreende, porque as descrições davida de Espinosa são tão descontínuascomo a sua morada, e as biografiascontemporâneas não sãoparticularmente ricas em pormenores.Além disso, o estilo de Espinosa éhermético. Alguns parágrafos da Ética edo Tratado têm um certo humor, o queé uma pista, sem dúvida. Também éverdade que Espinosa tem um enormerespeito pelos outros seres humanos,até mesmo por aqueles cujas ideiasdespreza, e que essa é uma outra pistavaliosa. No entanto, nem uma nemoutra são suficientes para construir oretrato imediato de uma pessoa inteira.De certo modo, Espinosa esconde-se do

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leitor talvez em parte pelas limitaçõesdo latim, talvez em parte porqueEspinosa não quis deixar nos seustextos nenhum traço de sentimentopessoal ou de retórica. StuartHampshire está convencido de que aausência notável de sentimentospessoais foi intencional.32

Pouco a pouco, contudo, com asedimentação de indícios e reflexões,um retrato com cabeça, tronco emembros começou a emergir na minhaimaginação. Hoje não tenho nenhumadificuldade em ver Espinosa, em idadesdiferentes, em diversos locais, nascircunstâncias mais variadas.

Na minha história, Espinosa começacomo uma criança impossível,inquisidora, cheia de opiniões, com umespírito mais velho do que a sua idade.O Espinosa adolescente éintoleravelmente ladino e arrogante. Napior das suas épocas, aos vinte anos,quando é ao mesmo tempo homem denegócios e aprendiz de filósofo,apresenta-se com as maneiras de umaristocrata ibérico, mas está, aomesmo tempo, construindo a suaidentidade holandesa. Esse período deconflito acaba no meio dos seus anosvinte. De repente, não é nem judeunem homem de negócios, não tem

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família nem casa, mas ainda nãoperdeu a partida. Espinosa dominaqualquer interlocutor com a agudeza doseu intelecto e o seu entusiasmo. Alenda do sábio carismático começaentão, e é então também que encontranovas ocupações: a manufatura daslentes, com que vai subsistir eaprofundar os conhecimentos deóptica, e o desenho, um passatempocalmo para o qual parece ter tido umtalento notável mas do qual nada ficoupara a história.

Aos trinta anos registra-se uma novatransformação. Espinosa mede os seuspassos, mostra-se mais cuidadoso como uso do humor, mais gentil para comaqueles que o rodeiam e mais pacientepara com aqueles que não consideraespecialmente inteligentes. EsseEspinosa da maturidade está segurodas suas crenças mas é menosdogmático e mais tolerante para comos outros. O Espinosa da minhaimaginação comunica calma eestabilidade aos que o rodeiam. É umEspinosa que causa admiração.

É hora de perguntar se gosto doEspinosa que finalmente encontrei, masa resposta não é fácil. Admiro esseEspinosa, por certo, e em diversasocasiões até gosto dele. Mas há

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qualquer coisa na personalidade deEspinosa que nunca consigo ver cominteira clareza, uma sensação deestranheza que nunca desaparece. Masnada disso interfere no respeito quetenho pela valentia com que formulouas suas ideias, na época em que o fez,e pela forma inteligente como adaptoua sua vida às consequências inevitáveisdessas ideias .33

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7. Quem está aí?

UMA VIDA FELIZ

Antes do meu encontro imagináriocom Espinosa coloqueime, mais de umavez, a seguinte questão: será queEspinosa atingiu a felicidade durante osseus anos de Voorburg e de Haia outeria estado simplesmente posandopara a posteridade? Estaria eleconstruindo uma figura de bondade enegação terrestres para tornar a tarefados críticos mais difícil e dar maiorautoridade às suas palavras? OEspinosa da minha imaginaçãoresponde a essa pergunta semhesitação. Espinosa era feliz. A suafrugalidade não era fingida. Não estavaacumulando sacrifícios para abeatificação. A sua vida e a sua filosofiatinham se fundido uma na outra na

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idade avançada de 33 anos.

Mas quando penso que a vida deEspinosa não teve as característicasque normalmente associamos àfelicidade dadas a sua má saúde,pobreza e falta de relações íntimas,Aristóteles não teria classificado a vidade Espinosa de feliz -, é legítimoperguntar como é que Espinosa chegouao contentamento. Qual foi o seusegredo? Não é apenas a curiosidadeque me move, nesse particular, mastambém a oportunidade de pôr outraquestão: até que ponto osconhecimentos sobre emoções,sentimentos e biologia da mente ecorpo que temos discutido neste livrosão pertinentes para atingir uma vidade contentamento? Não há dúvida deque as emoções e sentimentos sãopertinentes, porque fazem partedaquilo que somos, pessoalmente esocialmente. O alcance da pergunta édiferente: será que traz qualquervantagem para a forma como vivemosconhecer de que modo funcionam asemoções e os sentimentos? No capítulo4 afirmei que tais conhecimentos sãoimportantes para o governo da vidasocial, mas pergunto-me agora se são

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também pertinentes para o governo davida pessoal.

Faz sentido ligar essa questão aEspinosa, dado que a concepção danatureza humana que está emergindosob a influência da biologia moderna éparecida, em diversos aspectos, com aconcepção de Espinosa. Comecemosentão por considerar como Espinosaencarava o contentamento e asatisfação.

A mais conhecida dasrecomendações de Espinosa acerca deviver uma vida bem vivida consistianuma prescrição dupla: um sistema decomportamento ético e um Estadodemocrático. Mas é evidente queEspinosa não pensava que obedecer aregras éticas e obedecer às leis de umEstado democrático fossem suficientespara atingir as formas mais elevadas decontentamento, a alegria constanteque, para Espinosa, se confunde com aliberdade e com a salvação humana. Aminha impressão é que a maior partedos seres humanos de hoje tambémnão acha suficiente essa duplaprescrição. Pretendemos que a vida nos

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dê qualquer coisa que vá além de umaconduta moral e legal, além dassatisfações do amor, da família, dasamizades e da boa saúde, além dasrecompensas que resultam do trabalho(satisfação pessoal, aprovação dosoutros, honra, dinheiro), além daentrega aos prazeres privados e daacumulação de posses e além daidentificação com um país ou com ahumanidade. Muitos seres humanosrequerem também algo que envolvauma certa clareza sobre o significadoda vida. Essa necessidade, articuladacom nitidez ou de forma confusa, poucoimporta, consiste num anseio deconhecer uma origem e um destino, deonde viemos e para onde vamos, e deesclarecer a finalidade que a nossa vidapode ter para além da existênciaimediata.

Nem todos os seres humanos têmtais necessidades. Aquilo de que umser humano precisa para viver felizvaria consideravelmente com apersonalidade, inquisitividade ecircunstâncias socioculturais, para nãofalar nas diferenças que têm a ver coma idade e com o tamanho da contabancária. A juventude dá-nos pouco

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tempo para apreciar as limitações dacondição humana, e a riqueza encobremuitas dessas limitações. E para quepedir mais do que juventude, saúde, eboa fortuna, dirão alguns? Mas paraaqueles que reconhecem um tal anseiovale a pena perguntar por que razãoquerem atingir qualquer coisa que nãoparece particularmente fácil e pode aténunca ser atingida. Por que razão é quea tal clareza e conhecimento extras sãoassim tão desejáveis?

Podíamos começar a respostadizendo que o tal anseio é um traçoprofundo da mente humana. Esse traçoestá tão enraizado no desenho docérebro humano e no genoma quepermite o desenvolvimento dessecérebro como os traços profundos quenos levam, com grande curiosidade, aexplorar sistematicamente o nossopróprio ser e o universo que nos rodeia,os mesmos traços que nos impelem aconstruir explicações para os objetos esituações desse universo. A origemevolucionária do anseio é inteiramenteplausível, mas é necessário evocar umoutro fator para perceber a razão porque a natureza humana incorporouesse traço. Creio que esse outro fator

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estava já presente nos primeiros sereshumanos, tal como está presente hojeem dia. A sua consistência tem a vercom o poderoso mecanismo biológicoque lhe está por trás: o mesmo esforçonatural de autopreservação queEspinosa articula tãotransparentemente como uma essênciados nossos seres, o conatus, é postoem ação quando somos confrontadoscom a realidade do sofrimento e,especialmente, com a realidade damorte, real ou antevista, nossa oudaqueles a quem amamos. Aperspectiva de sofrimento e mortecompromete o processo homeostáticode quem os confronta. A procura daautopreservação e do bem-estarresponde a esse compromisso comouma tentativa de evitar o inevitável eregressar assim ao equilíbrio. Ê umatentativa árdua que nos leva a procurarestratégias compensatórias para ahomeostasia perdida. A partir domomento em que reconhecemos essasituação desenvolve-se em nós umprofundo pesar.

Uma vez mais, nem todos os sereshumanos reagirão desse modo, poruma razão ou por outra, numa altura da

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vida ou noutra. Mas os seres humanosque reagem da maneira que descrevi,quer consigam ou não resolver oimpasse e retomar o equilíbrio,reconhecem a dimensão trágica dessasituação bem como o fato de que éexclusivamente humana.

Tanto quanto consigo entendê-la,essa situação resulta, em primeirolugar, do fato de que temossentimentos não apenas emoções massentimentos -, em particular ossentimentos de empatia, através dosquais tomamos conhecimento da nossasimpatia emotiva natural para com osoutros. Nas circunstâncias apropriadas,a empatia abre as portas ao pesar. Emsegundo lugar, a situação resulta dedois dons biológicos, a consciência e amemória. Partilhamos a consciência ememória com outras espécies, mas nãohá dúvida de que a consciência e amemória atingem um grau e umasofisticação extraordinariamentegrandes nos seres humanos. No sentidoestrito da palavra, consciência significaa presença de uma mente com um self,mas, em termos práticos, a palavrasignifica alguma coisa mais. Com aajuda da memória autobiográfica, a

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consciência nos permite ter um selfenriquecido pelas recordações da nossaprópria experiência individual. Quandoenfrentamos cada novo momento danossa vida, como seres conscientes,influenciamos esse momento com ascircunstâncias das alegrias e tristezaspassadas, bem como com ascircunstâncias imaginárias do nossofuturo antevisto, essas circunstânciasfuturas que, presumivelmente, nostrarão mais alegrias e mais tristezas.

Se não fosse esse nível tão alto deconsciência humana, nunca haveriaangústia notável, agora ou noamanhecer da humanidade. Aquilo quenão sabemos não pode nos ferir. Setivéssemos o dom da consciência masnão nos tivesse sido dada a memória,também não teríamos nenhumaangústia. Aquilo que sabemos, nopresente, mas somos incapazes decolocar no contexto da nossa históriapessoal, apenas pode nos ferir nopresente. É a combinação dessas duasbenesses, a consciência e a memória,bem como a sua abundância, quecausam o drama humano e queconferem a esse drama a sua condiçãotrágica. Felizmente para nós, esses

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mesmos dons são também a fonte daalegria sem limites e da glória humanaque lhe corresponde. Felizmente, viveruma vida bem examinada é tambémum privilégio, e não apenas umamaldição.

Dentro dessa perspectiva, qualquerprojeto de salvação humana qualquerprojeto capaz de transformar uma vidaexaminada numa vida feliz deve incluirmeios para resistir à angústia causadapelo sofrimento e pela morte, meiospara suprimir a tristeza e para fazercom que ela seja substituída pelaalegria. A neurobiologia da emoção edo sentimento diz-nos, em termos bemsugestivos, que a alegria e as suasvariantes são preferíveis à tristeza e àssuas variantes, que a alegria leva maisfacilmente à saúde e ao florescercriador. Não parece haver aqui nenhumequívoco: devemos procurar a alegria,por decreto assente na razão, mesmoque a procura pareça tola e poucorealista. Para aqueles que não têmfome e que não vivem sob um regimeopressivo, é necessário compreenderque estar vivo é um privilégio.

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O confronto com a morte e osofrimento compromete a homeostasia.Os primeiros seres humanos devem tertido experiência desse compromissodepois de adquirirem sentimentos deempatia, alegria e pesar, consciênciaampliada e a capacidade de imaginarobjetos e ações que pudessem alterar oestado afetivo e restaurar o balançohomeostático perdido. (As duasprimeiras condições, emoções esentimentos, sociais e não, já tinhamdespontado em espécies não humanas,como vimos anteriormente; as duasúltimas condições, a consciênciaampliada e a imaginação prodigiosa,são sobretudo dons humanos.) Comosugeri, o anseio por uma correçãohomeostática teria começado comouma resposta à angústia. Os sereshumanos cujos cérebros foram capazesde imaginar tais correções econseguiram restaurar o equilíbrioperdido teriam sido compensados comuma vida mais longa e uma progéniemaior. O seu padrão genômico teriatido maior probabilidade dedisseminação e teria sido feita, atravésdele, a disseminação das respostasreequilibrantes. O anseio e as suasconsequências benéficas teriamreaparecido ao longo das gerações e,

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dessa forma, uma parte considerávelda humanidade teria incorporado essestraços tão notáveis.

Nessa perspectiva, as tentativas desalvação humana começam com aacomodação a uma morte anunciada.(Durante algum tempo, depois de anoção de imortalidade ter sidoinventada, tais tentativas tambémdisseram respeito a evitar o inferno.)Há uma longa história de taistentativas. Indivíduos inteligentes têmsido levados a criar narrativasfascinantes que respondemdiretamente ao espetáculo da tragédiae que tentam resolver a angústiaatravés do seguimento de preceitos epráticas religiosas. (Não quero sugeriraqui que a confrontação com a morte eo sofrimento tenham sido os únicosfatores por trás do desenvolvimento denarrativas religiosas. A vantagem decompelir à observância doscomportamentos éticos terá sido outrofator importante e pode ter contribuído,tanto ou mais, para a sobrevida deindivíduos cujo grupo conseguisse aobservância eficaz das convençõesmorais.) Algumas das narrativas maisbem conhecidas prometem

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recompensas depois da morte, e outrasprometem conforto para quem estávivo, mas o intuito compensatório é omesmo. De certo modo, Espinosa fazparte dessa resposta histórica. Tendosido educado numa comunidadereligiosa, e tendo rejeitado a soluçãoque a comunidade tinha proposto paraa salvação humana, foi obrigado aencontrar a sua própria solução. Tantoo Tratado como a Ética, depois das suasanálises refinadas daquilo que é, sãotrabalhos sobre aquilo que deve seresobre o modo de conseguir o que deveser. Por outro lado, a solução deEspinosa não é tradicional e representamesmo uma ruptura histórica.

A SOLUÇÃO ESPINOSA

O sistema de Espinosa inclui Deus,mas não um Deus providenteconcebido à imagem dos homens. Deusé a origem de tudo o que está peranteos nossos sentidos, uma substância

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sem causa, eterna, e com atributosinfinitos. Mas Deus é também tudoquanto há. Deus é a natureza, e a suamanifestação mais evidente são assuas criaturas vivas. Essas ideias sãoexpressas num espinosismo bemconhecido, a expressão Deus siveNatura Deus ou Natureza.1 Deus não serevelou aos seres humanos da maneiraapresentada na Bíblia. Não é possívelrezar ou suplicar ao Deus de Espinosa.Não há que ter medo desse Deusporque ele não distribui castigos. Nemhá que fazer nenhum esforço para deleobter recompensas porque tambémnão distribui recompensas. A únicacoisa a temer é o nosso própriocomportamento. Quando somos menosdo que amáveis para os outros,punimo-nos a nós próprios, nesse exatomomento, e negamo-nos aoportunidade de atingir a paz interior ea felicidade, nesse exato momento.Quando amamos os outros temos umaboa probabilidade de atingir a pazinterior e a felicidade, nesse exatomomento. Nesse sistema, as nossasações não devem visar o agrado deDeus, mas sim conformar-se com anatureza de Deus. Quando agimos deacordo com a natureza de Deus,produzimos felicidade e produzimos

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uma espécie de salvação. Agora. ParaEspinosa, a salvação salus resulta deocasiões repetidas dessa espécie defelicidade, ocasiões que se acumulam edesse modo produzem uma condiçãomental saudável.2

Espinosa rejeitou a noção de que aexpectativa de recompensas oucastigos depois da morte fosse umincentivo adequado para ocomportamento ético. Numa carta bemsignificativa, lamentava o homem cujocomportamento é guiado por taisexpectativas: “É um desses homensque não hesitaria em seguir todos osseus desejos se o medo do inferno nãoo restringisse. Abstém-se de más açõese cumpre as ordens de Deus, como sefosse um escravo, contra a suavontade, e em troca da sua escravaturaespera ser recompensado por Deuscom dons que prefere ao amor Divino.3

Espinosa prevê duas vias diferentespara a salvação: uma, que é acessível atodos; a outra, que é mais árdua eacessível apenas àqueles comintelectos disciplinados e educados. Avia acessível requer uma vida virtuosa,

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numa cidade virtuosa, obediente àsregras de um Estado democrático ealerta para a natureza de Deus. Deforma indireta, a caminhada nessa viapode ser ajudada pela sabedoria daBíblia. A segunda via requer tudo dequanto a primeira necessita e, alémdisso, um acesso intuitivo aoentendimento, uma capacidade queEspinosa colocava acima de todos osoutros instrumentos intelectuais, ecujas bases são o conhecimentoabundante e a reflexão perseverante.(Para Espinosa, a intuição é o meiomais sofisticado de chegar aoconhecimento a intuição é aquilo a queEspinosa chama o conhecimento daterceira espécie. Mas a intuição só podeocorrer depois de acumularmosconhecimentos e de termos utilizado arazão para os analisar.) Como seria deesperar, Espinosa pouco se preocupavacom o enorme esforço necessário paraatingir qualquer resultado por essa via:“Tudo quanto é excelente é difícil deobter e é raro”. [Ética, Parte V, notaspara a proposição 42.]

Para a primeira espécie de salvação,Espinosa rejeita a ideia de que asnarrativas bíblicas sejam uma

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revelação de Deus, mas aprecia asabedoria apresentada pelas figurashistóricas de Moisés e Cristo. ParaEspinosa, a Bíblia era um repositório deconhecimentos valiosos sobre aconduta humana e a organização civil.4

Na segunda via, Espinosa requeruma aceitação da necessidade dosacontecimentos naturais, de acordocom o conhecimento científico. Porexemplo, a morte e a perda que daíresulta não se pode evitar e, por isso,devemos aquiescer. A solução Espinosatambém requer que o indivíduoproduza uma ruptura entre osestímulos-emocionalmente-competentes que podem desencadearemoções negativas as paixõescausadas pelo medo, pela raiva, pelociúme ou pela tristeza e os mecanismosda execução da emoção. O indivíduodeve remover esses estímulos-emocionalmente-competentes esubstituí-los por outros, porestímulosemocionalmente-competentescapazes de desencadear emoçõespositivas. Para facilitar esse resultado,Espinosa recomenda o ensaio mentaldos estímulos negativos de forma aconstruir uma tolerância para as

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emoções negativas e criar,gradualmente, uma maiordisponibilidade para as emoçõespositivas. Há aqui algo que se podedescrever como uma imunologiamental, o desenvolvimento de umavacina capaz de criar anticorpos contraa paixão. A coloração de todo esseexercício é estóica, embora se devanotar que Espinosa criticou os filósofosestóicos, bem como Descartes, porquepensavam que o controle das emoçõespodia ser completo, ou seja, porqueeram exageradamente estóicos.

A solução Espinosa gira em torno dopoder mental com que podemos tentarcontrolar as emoções, um poder quedepende, por sua vez, da descobertadas causas das emoções negativas edo conhecimento dos mecanismos deação das emoções. O indivíduonecessita separar os estímulos-emocionalmente-competentes e odesencadeamento de uma emoção, deforma a poder escolher estímulos queproduzam estados de sentimentopositivo. Curiosamente, o projetopsicanalítico de Freud tem objetivossemelhantes. O novo entendimento deque dispomos sobre a estrutura da

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emoção e do sentimento torna osobjetivos de Espinosa mais acessíveis.

A solução Espinosa pede aoindivíduo que reflita sobre a sua vida,com o auxílio do conhecimento e darazão, na perspectiva da eternidade, enão na perspectiva da imortalidade decada um. E a liberdade é um dosresultados da solução Espinosa, não aespécie de liberdade quehabitualmente contemplamos emdiscussões sobre o livre-arbítrio, massim uma liberdade radical, umaredução da dependência em relaçãoaos objetos de que somos escravos.Um outro resultado é a possibilidade deintuir as essências da condiçãohumana. Essa intuição junta-se a umsentimento de serenidade cujosingredientes incluem o prazer, aalegria, o deleite mesmo, mas para oqual a palavra beatitude me parece amais apropriada (ver a Ética, Parte v,proposições 32 e 36 e as suas notas).Esse sentimento “intelectual” ésinônimo de uma forma de amar aDeus de modo intelectual é o amorintellectualis Dei.5

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Goethe fez notar que esse processooferece o amor sem pedir que se sejaamado, e que nada há de maisgeneroso e desinteressado do que essaatitude. Mas isso não é inteiramenteverdade. O indivíduo recebe algo emtroca: a mais desejável das formas deliberdade humana, a liberdade de umser que existe e age de acordo com asua própria determinação. É umaliberdade que se traduz por umaalegria especial, um sentimento quasepuro, quase libertado da sua raizcorporal.

Nem todos os pensadores têm sidotão simpáticos como Goethe quandoconsideram a solução Espinosa, quepara alguns é bem confusa.6 Mas nem asinceridade de Espinosa, nem a dor quelhe serviu de incentivo estão emquestão. O personagem de Malamudque invoquei no capítulo 1 captounuma simples frase o menos que sepode dizer sobre essas passagens daÉtica: “... [Espinosa] queriatransformar-se num homem livre”. Etambém ninguém duvida que Espinosaconseguiu colocar a razão e o afeto nomesmo plano, de uma forma moderna.A estratégia que Espinosa utiliza para

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chegar à intuição da liberdade e dabeatitude requer conhecimento erazão.

Pode-se dizer que Espinosa abraçoua descoberta da natureza e oconhecimento como parte da dieta dohomem pensante. E é curioso pensarque Espinosa, para quem asdemonstrações científicas eram osolhos da mente, tenha passado a maiorparte da sua vida fabricando asmelhores lentes possíveis,instrumentos que permitiam à mentever tantos novos fatos. É igualmentecurioso pensar que as lentes que poliatão cuidadosamente e os microscópiosa que se destinavam eram meios paraver mais claramente, e eram, por issomesmo, instrumentos de salvação. Mastudo isso faz parte integrante de umaépoca: a época em que numerososdispositivos ópticos e mecânicos foramcriados, tanto para permitir adescoberta científica como paratransformar o processo da descobertanuma fonte de prazer.7

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A QUALIDADE DE UMA SOLUÇÃO

A finalidade da solução Espinosa érestituir aos seres humanos a relativaindependência que perderam a partirdo momento em que a memóriaautobiográfica e a consciênciaampliada se desenvolveram. Nessasolução, a razão deixa-nos entrever ocaminho, enquanto o sentimentoassegura a nossa vontade de ver essecaminho. Aquilo que me parece maisatrativo na solução Espinosa é oreconhecimento das vantagens daalegria e a rejeição da tristeza e domedo. Espinosa afirma a vida etransforma a emoção e o sentimentonum meio para que a vida floresça. Acaminho do horizonte dessa vida, oindivíduo deve procurar viver de talmaneira que a perfeição da alegria sejaatingida com freqüência e faça, porisso, com que a vida valha a pena servivida. E dado que todo esse processocomeça e acaba na natureza, a soluçãoEspinosa é imediatamente compatívelcom a imagem do universo que aciência vem construindo nos últimos

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quatrocentos anos.

Mas a solução Espinosa também temos seus problemas. Por exemplo, nãome sinto à vontade com a implicaçãode que funciona especialmente bem noisolamento, longe da intimidade comoutros seres humanos. Parece-me que oascetismo de Espinosa nada tem deprático no mundo de hoje. Espinosa nãovai tão longe como os estóicos gregos eromanos na sua rejeição dos confortosdesta vida, mas está perto. Talvez asabedoria de Aristóteles sejaperfeitamente aplicável nesse ponto.Aristóteles asseverava que uma vidasatisfeita era uma vida virtuosa e feliz,mas que a saúde, a riqueza, o amor e aamizade eram parte importante dessasatisfação. Outro problema que tenhocom a solução Espinosa tem a ver coma sua aparente passividade, embora sepossa dizer que a beatitudeespinosiana resulta de uma intensaatividade dirigida para o interior. Outrosse preocuparão com a ideia de que aochegar ao horizonte da vida, a soluçãoEspinosa oferece, muito simplesmente,a morte e nada mais. Os sereshumanos não se libertam, de formaativa, do sofrimento e iniquidade que a

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biologia e a sociedade regularmentelhes impõem, para não falar do fato deque não recebem nenhumacompensação para as perdas queentretanto ocorreram. O Deus deEspinosa é uma ideia e nada tem a vercom a entidade viva que a narrativacristã criou. É bem possível queEspinosa estivesse inebriado com Deus,tal como Novalis disse, mas era umDeus especialmente seco.

Em troca de toda a coragem,sacrifícios e disciplina necessários paraatingir a alegria espinosiana, os sereshumanos recebem alguns momentosde perfeição, visões furtivas do divino,breves confortos que deixam essesseres humanos à espera do próximomomento de perfeição e da próximavisão furtiva. Dependendo dapersonalidade de cada um, essarecompensa pode ser consideradaprodigiosa ou insuficiente. Mas o fatode que pode ser consideradainsatisfatória ou insuficiente nãosignifica que não seja realista.

Se fizermos à perspectivaespinosiâna aquela pergunta

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inquietante com que começa o Hamlet,“Quem está aí?” querendo dizer, quemestá aí para nos ajudar a persistir,como a nossa tendência deautopreservação nos pede que façamos-, a resposta é inequívoca. Ninguém.Estar sozinho é a realidade crua, deCristo na cruz e de Espinosa nasalmofadas amassadas do seu leito demorte. Mas Espinosa arranja-nos umamaneira de iludir essa realidade, umailusão nobre que nos permite continuar.

No princípio deste livro descreviEspinosa como sendo ao mesmo tempobrilhante e exasperante. As razões porque o considero brilhante são óbvias.Mas uma razão por que acho Espinosaexasperante tem a ver com a certezatranquila com que encara um conflitoque a maior parte da humanidadeainda não resolveu: o conflito entre aideia de que o sofrimento e a morte sãofenômenos biológicos naturais, quedevemos aceitar com equanimidadepoucos seres humanos bem-educadosrejeitarão a sabedoria de tal ideia -, e ainclinação, não menos natural, damente humana de se sentir insatisfeitacom essa sabedoria. Há uma ferida quepersiste, e bem que eu gostaria que

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assim não fosse, porque prefiro ashistórias que acabam bem.

Embora tenha sido intolerável noseu próprio tempo, a religiosidadesecular de Espinosa tem sidoredescoberta ou reinventada no séculoXX. Einstein, por exemplo, tinha umconceito de Deus e de religião bemsemelhante. Einstein descreveu o Deusdo homem ingênuo como “um ser decujos cuidados vamos nos beneficiar ede cujos castigos temos medo; umasublimação de um sentimento parecidocom o de uma criança em relação aopai, um ser com o qual se tem umarelação pessoal, embora na suaprofundidade essa relação estejacarregada de espanto e admiração”.8

Ao descrever os seus própriossentimentos religiosos os sentimentosreligiosos “das mentes científicas maisprofundas”-, Einstein disse que taissentimentos “.. .tomam a forma de umespanto extasiante face à harmonia dalei natural, que revela uma inteligênciade tal superioridade que, comparadocom ela, todo pensamento sistemáticoe todas as ações dos seres humanos setransformam numa reflexãoperfeitamente insignificativa”.9Em

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palavras de grande beleza, Einsteindescreveu esse sentimento como“...uma espécie de alegria inebriada ede espanto face à beleza egrandiosidade deste mundo, um mundosobre o qual o homem pode apenasconstruir uma noção superficial. Essaalegria é o sentimento a partir do quala verdadeira investigação científica semantém espiritualmente, mas quetambém encontra a expressão no cantodos pássaros”. Creio que essesentimento, que Einstein chamou decósmico, é um parente próximo doamor intellectualis Dei de Espinosa,embora seja possível distinguir um dooutro. O sentimento cósmico deEinstein é exuberante, uma mistura deexaltação espantada com umapreparação igualmente exaltada para acomunhão do corpo com o mundo. Oamor de Espinosa não é tão expansivo,é mais interior. No entanto, Einsteinpretendia juntar esses doissentimentos. Einstein pensava que osentimento cósmico é uma marca dosgênios religiosos de todas as eras, masque tal sentimento nunca formou oalicerce de nenhuma igreja. . Éprecisamente entre os hereges de cadaera que encontramos homens cheios daespécie mais elevada de sentimento

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religioso mas que eram olhados pelosseus contemporâneos como ateus, e àsvezes também como santos. Nessaperspectiva, homens como Demócrito,Francisco de Assis e Espinosa sãoparentes próximos uns dos outros.”10

O pensamento de William Jamessobre esse assunto também revela umparentesco com o de Espinosa. Essaafirmação pode surpreender, dado oabismo de tempo, lugar e contextohistórico que separa os doispensadores. Como é de prever, Jamesnão aceita Espinosa por completo. Nabiografia de William James que R. W. B.Lewis escreveu, ficamos sabendo queWilliam James leu Espinosa, pelaprimeira vez, em 1888, quando sepreparava para ensinar um novo cursode filosofia da religião na UniversidadeHarvard. Por fim, esse curso formou abase para as Variedades da experiênciareligiosa, uma das obras notáveis deWilliam James.11

James resistiu a Espinosa emdiversas questões. James não podiaaprovar certas afirmaçõesprovocadoras de Espinosa como, por

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exemplo, “irei analisar as ações e osapetites dos homens como se setratasse de um problema de linhas, deplanos e de sólidos”. Tais “assimilaçõesa sangue-frio” não são de todoaceitáveis para o adorável gênio deCambridge.12 James também resistiuàquilo que diagnosticou como oentusiasmo ensolarado que Espinosamanifestava para com a vida, a sua“mentalidade saudável”.13 A razão paraessa resistência é fascinante. Jamesdividia os seres humanos em duasespécies: aqueles cujos espíritosestavam cheios de entusiasmo eaqueles cujos espíritos estavamdoentes. Os entusiasmados tinhamuma propensão natural para não ver atragédia da morte, o horror da naturezanos seus excessos predatórios ou aescuridão dos recessos da mentehumana. Espinosa parecia ser umdesses espíritos entusiasmados, umasdessas pessoas nascidas com “umaincapacidade constitucional para osofrimento prolongado”, e com “umatendência para ver as coisas de modootimista”. E tudo isso eraespecialmente irritante para WilliamJames. Para os Espinosas deste mundo,dizia James, “o mal é uma doença, e apreocupação com essa doença é, em si

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mesma, uma forma adicional dedoença que simplesmente se junta aosintoma original”.14

Dentro desse sistema declassificação, William James era um“espírito doente”. Os espíritos doentesnão conseguiam contemplar a naturezae gostar do espetáculo, porque oespectáculo é frequentemente horrívele injusto. Claro que não é preciso sofrerde depressão para poder olhar o mundodessa perspectiva, embora WilliamJames sofresse, de fato, de depressão.O magnífico livro que nos deixou emVariedades foi escrito durante arecuperação de um dos pioresepisódios de depressão da sua vida.Curiosamente, contudo, Jamesconsidera essa doença do espírito algopositivo. Embora a doença deva serevitada quando atinge um graupatológico, é vantajoso que estejapresente, em certa medida, para forçaros seres humanos a confrontar arealidade sem o véu protetor com queos espíritos ensolaradossistematicamente a encobrem. Ou seja,um certo grau de pessimismo é bomconselheiro.

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A colocação do problema dasalvação humana, em termoscognitivos e afetivos, revela a habitualperspicácia de William James, mas devodizer que James exagerouenormemente os tais entusiasmosensolarados de Espinosa. Não creio queEspinosa tivesse alguma dificuldade emver o lado trágico da natureza, dadoque dele teve experiência direta. MasEspinosa recusou-se a aceitar que o tallado trágico o dominasse como paixãonefasta. Espinosa aceitou a tragédiacomo parte necessária da existência eprescreveu uma série de mecanismospara minimizar as suas consequênciasafetivas. Espinosa era corajoso epersistente, mais do que otimista.Esforçavase por ser otimista. Aplicava-se com afinco na tentativa de cancelaros sentimentos de medo e tristeza quea natureza inspira e substituílos porsentimentos de alegria baseados nadescoberta da natureza. Um poucoperversamente, era essa mesmadescoberta que revelava a crueldade ea indiferença da natureza.

Uma vez ultrapassadas asresistências de William James, noentanto, nota-se que o seu caminho

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para a salvação humana tinha muito deparecido com o de Espinosa. Em ambosos casos, a experiência de Deus eraprivada. Ambos rejeitaram anecessidade de rituais públicos econgregações. Os argumentos com queWilliam James afasta e despede areligião organizada são muitoespinosianos. E tanto James comoEspinosa descrevem a experiência dodivino como sentimento puro, umsentimento de prazer que é fonte designificado e entusiasmo para a vida,uma forma de completar o ciclo davida. Ao fim e ao cabo, a diferençaimportante entre James e Espinosa tema ver com a base de onde partem epodem ser medidos os seussentimentos de salvação. Em Espinosa,o sentimento do divino emergia combase numa aceitação calma danatureza; em James, o sentimento dodivino só emergia depois de neutralizaruma visão deprimente da natureza.Mas tanto James como Espinosaencontraram Deus dentro de simesmos, e James, fazendo uso dosnovos conhecimentos de psicologia queele próprio vinha acumulando, colocoua fonte do divino não apenas dentro denós mas dentro do inconsciente quehabita dentro de nós. James descreveu

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a experiência religiosa como uma“mais-valia” (no original,“more”). Mas Jamestambém nos disse que essa mais-valiaexiste no interior de nós mesmos.

Espinosa e James enviam-nos parauma adaptação fecunda sob a forma deuma vida natural do espírito. O seuDeus é terapêutico, dado que restaurao equilíbrio homeostático perdido emresultado da angústia. Mas nemEspinosa nem James esperam que Deusnos ouça. Ambos acreditavam que arestauração do equilíbrio perdido é umatarefa individual e privada, umresultado que pode ser obtido quando opensamento refinado e o raciocíniolevam ao estabelecimento da emoção esentimento apropriados. Ambosracionalizaram esse processo,admitindo que os seres humanos erammeras ocasiões de individualidadesubjetiva num universo quepermanecia largamente misterioso.Nem um nem outro se sentia capaz dedecifrar as mais profundas razõesdesse universo.

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SERÁ POSSÍVEL ACABAR BEM?

Como será possível que o filme danossa vida acabe bem num universoem que até os espíritos entusiásticospodem se dar conta facilmente dosofrimento humano, desde aquele queé inevitável àquele que é possívelprevenir? Muitos de nós já têm respostapronta para essa pergunta, ou sob aforma de uma fé religiosa inabalável,ou de um isolamento protetor contratoda espécie de pesar. Mas o quepropor aos outros, àqueles que nãodispõem nem de um recurso nem deoutro? Claro que nada tenho dedefinitivo para dizer, e que seriapresunçoso sugerir o modo como cadaum pode fazer com que a sua vidaacabe bem. Mas posso, apesar disso,dizer uma palavra sob a minhaperspectiva pessoal.

Um dos cenários para o acabar bemque considero desejável resulta decombinar alguns traços dacontemplação espinosiana com uma

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atitude mais ativa em relação aomundo que nos rodeia. Desse cenáriofaz parte uma vida do espírito queprocura no entendimento derivado doconhecimento científico, da experiênciaestética, ou de ambos uma fonte dealegria. Esse cenário inclui tambémuma atitude de combate, baseada naconvicção de que uma parte datragédia da humanidade pode serdiminuída, e de que contribuir paraessa diminuição é umaresponsabilidade que devemos assumir.Um dos benefícios do progressocientífico consiste em permitir-nosplanejar ações inteligentes que podemaliviar o sofrimento. A ciência pode sercombinada com o melhor de umatradição humanista para permitir umanova abordagem dos problemashumanos e levar ao florescimento dahumanidade.

Para clarificar essa perspectiva,começarei por explicar o que entendopor uma vida do espírito. Uma amigaminha, que segue com assiduidade osavanços da biologia e que procuratambém com afinco o lado espiritual davida, várias vezes tem me perguntadose o espírito pode ser definido e

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localizado em termos neurobiológicos.“O que é o espírito?” “Onde está oespírito?” Como responder? Devoconfessar que não me agrada atentativa de neurologizar asexperiências religiosas, especialmentequando as tentativas tomam a formade identificar Deus com um centrocerebral, e justificar Deus e a religiãocom base nos dados da neuroimagemfuncional.15 Mas apesar dessa críticareconheço que, evidentemente, asexperiências espirituais, religiosas ounão, são processos mentais, e são, porisso mesmo, processos biológicos domais alto nível de complexidade.Ocorrem no cérebro de umdeterminado organismo, em certascircunstâncias, e nada nos impede dedescrever esses processos em termosneurobiológicos, desde que estejamosatentos para as limitações do exercício.Tendo em vista essas limitações, aquivão as respostas para as perguntas daminha amiga.

Em primeiro lugar, associo a noçãode espiritual a uma experiência intensade harmonia, à ideia de que oorganismo está funcionando com amaior perfeição possível. Tal

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experiência ocorre em associação como desejo de agir, em relação aos outros,com generosidade e amabilidade.Assim, ter uma experiência espiritualconsiste em ter a experiência desentimentos de alegria, geralmenteserena. O centro de gravidade dossentimentos a que chamamosespirituais situa-se numa encruzilhadade experiências. A beleza pura é umadelas, enquanto a outra é a antevisãode ações conduzidas numa “atitude depaz” e com “uma preponderância deamor” (as palavras são de James, masos conceitos são espinosianos). Essasexperiências reverberam e se auto-sustentam durante curtos períodos detempo. Concebido dessa maneira, oespiritual é um índice do esquemaorganizador por trás de uma vida bemequilibrada e bem-intencionada. É atépossível dizer que o espiritual sejatalvez uma revelação parcial doimpulso por trás de uma vida vivida emperfeição. Se os sentimentos, comosugeri, podem ser testemunhas doestado da vida no nosso organismo, ossentimentos espirituais penetram maisfundo nesse processo do viver etestemunham mais. Formam a base deuma intuição daquilo que é o viver.16

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Em segundo lugar, as experiênciasespirituais nutrem o ser humano.Espinosa tinha razão quando dizia quea alegria e as suas variantes levam auma maior perfeição funcional.Conhecimentos científicos correntes noque diz respeito à alegria apóiam anoção de que ela deve ser procuradaativamente, porque contribui para asaúde, enquanto o pesar e os afetosque com ele se relacionam devem serevitados por serem insalubres. Aobservância de regras decomportamento ético é perfeitamentecompatível com essa perspectiva.Recordo os dados recentes, a que aludino capítulo 4, de acordo com os quaisos comportamentos de cooperaçãohumana ativam os sistemas cerebraisdo prazer e da recompensa. A violaçãode comportamentos éticos causasentimentos de culpa, vergonha oupesar, que são, todos eles, variantes dainsalubre tristeza.

Em terceiro lugar, a capacidade deevocar experiências espirituais está ànossa disposição. É claro que rituaisdiversos, no contexto de uma narrativareligiosa, têm como intenção produzirexperiências espirituais. Mas as

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experiências espirituais podem serproduzidas em outros contextos e poroutras causas. Diz-se com frequênciaque a secularidade e o comercialismocrasso dos tempos que corremdificultam que se atinja o espiritual,como se os meios para atingir oespiritual faltassem ou tivessem setornado raros. Creio que não é verdade,creio que vivemos rodeados deestímulos capazes de evocar aespiritualidade, embora a sua saliênciae eficácia sejam diminuídas peladesorganização dos nossos ambientese pela falta de enquadramentospropícios à ação desses estímulos. Acontemplação da natureza, a reflexãosobre a descoberta científica e aexperiência das artes podem ser, nocontexto apropriado, estímuloscompetentes para evocar o espiritual.Pensemos apenas na facilidade comque escutar Bach ou Mozart, Schubertou Mahler nos conduz a umaexperiência espiritual. Temos à nossadisposição a oportunidade de criaremoções positivas, como Espinosarecomendou, embora seja tambémverdade que o tipo de experiênciasespirituais a que estou aludindo não éequivalente a nenhuma religião, dadoque lhes faltam a amplitude e a

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grandeza que atraem tantos sereshumanos à religião organizada. E éhora de tocar na questão delicada quediz respeito a “localizar” o espiritualdentro do organismo humano. Nãocreio que haja um centro cerebral paraa espiritualidade, no sentido frenológicodo termo. Mas creio que podemoscompreender como um estadoespiritual ocorre, em termosneurobiológicos. Visto que o espiritual éuma espécie de sentimento, imaginoque depende das estruturas eoperações descritas no capítulo 3, emespecial da rede de regiõessomatossensitivas do cérebro. Oespiritual é um estado particular doorganismo, uma combinação delicadade certas configurações corporais e decertas configurações mentais. Mantertais estados depende da riqueza donosso pensamento, com relação àcondição do self e à condição do selfdos outros, no que respeita ao passadoe ao futuro, no que respeita às ideiasconcretas e abstratas da nossa próprianatureza.

Ao ligar as experiências espirituais àneurobiologia dos sentimentos, nãotenho por objetivo reduzir aquilo que é

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sublime à mecânica pura e, ao fazê-lo,reduzir a sua dignidade. O objetivo ésimplesmente sugerir que asublimidade do espiritual estáincorporada na sublimidade da biologia,e que é hora de começar acompreender o processo em termosbiológicos. Dar conta dos processosfisiológicos por trás do espiritual nãoexplica o mistério da vida a que essesentimento de espiritualidade estáligado. Apenas revela a ligação com omistério, mas não o mistériopropriamente dito. Espinosa, bem comooutros pensadores cujas ideias contêmelementos espinosianos, fazem comque os sentimentos completem umcírculo que começa na vida ativa, ondetêm origem, e acaba nas fontes davida, para os quais apontam.

Disse acima que a vida do espíritorequer como complemento uma atitudede combate. O que quero dizer comessas palavras? Olhada em termosobjetivos, a natureza não é nem cruelnem benevolente, embora sejaperfeitamente legítimo olhar para anatureza de uma forma prática,subjetiva e pessoal; nessa perspectiva,a biologia moderna revela que a

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natureza é ainda mais cruel eindiferente do que se costumavapensar. Apesar de os seres humanosserem vítimas da maldade casual e nãopremeditada da natureza, não sãoobrigados a aceitar esse estado decoisas sem resposta. Podem tentarencontrar os meios para combater aaparente crueldade e indiferença. Anatureza não tem nenhum plano para oflorescimento humano, mas os sereshumanos dessa natureza têm o direitode formular um tal plano. Uma atitudede combate, talvez mais do que anobre ilusão espinosiana, pode bem sera garantia de que nunca nossentiremos sozinhos desde que a nossapreocupação principal seja o bem-estardos outros.

E é aqui que me permito responderà pergunta que formulei no princípiodeste capítulo: os conhecimentos queagora temos sobre emoção esentimento têm algo a dizer sobre amaneira como vivemos. Nas duaspróximas décadas, talvez mesmoantes, a neurobiologia da emoção e dosentimento permitirá às ciênciasbiomédicas a descoberta detratamentos eficazes para a dor e para

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a depressão, apoiados numa largacompreensão de como os genes sãoexpressos em certas regiões cerebraise como essas regiões cooperam paranos emocionar e fazer sentir. Os novostratamentos terão como finalidadecorrigir perturbações específicas de umprocesso normal em vez desimplesmente atacarem sintomas deum modo geral. Em combinaçãointeligente com intervençõespsicológicas e culturais, de que fazemparte hábitos dietéticos e de exercício,físico e mental, os novos tratamentosirão revolucionar o mundo da saúdemental. Os tratamentos de quedispomos hoje serão então olhadoscomo grosseiros e arcaicos, tal comogrosseira e arcaica seria a prática dacirurgia sem dispor de anestésicos.

Os novos conhecimentos sobre aemoção e o sentimento também sãopertinentes para a sociedade. A relaçãoentre a homeostasia e o governo davida social é a chave dessa pertinência.Como disse, alguns dos dispositivos daregulação da homeostasia do nossoorganismo vêm sendo aperfeiçoados aolongo de milhões de anos de evoluçãobiológica, como é o caso dos apetites e

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das emoções. Mas outros dispositivos,sobretudo os sistemas de justiça e deorganização sociopolítica, existem háuns escassos milhares de anos. Osdispositivos mais antigos nãonecessitam de nenhumaperfeiçoamento: não sãopropriamente imutáveis, mas estãogravados na pedra genômica e são tãofirmes quanto é firme a biologia. Mas osmais recentes nada mais são do queum trabalho incompleto, uma série detentativas apostadas no melhoramentoda condição humana, que nem sempreobtêm o resultado desejável. E é essamesma circunstância que nos ofereceuma oportunidade de intervenção, aoportunidade de contribuir para amelhoria do destino humano.

Não estou sugerindo que tentemosresolver problemas sociais com amesma eficiência com que o nossocérebro gere os processos básicos danossa vida. Pode bem ser que um graude eficiência comparável nem sejapossível. As ambições a que temosdireito são mais modestas. Vejotambém que, nessa matéria, osfracassos repetidos do passado e dopresente justificam um certo ceticismo;

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a tentação de não participar emnenhum esforço organizado para gerira humanidade é uma atitude bemcompreensível. Mas a desistência e oisolamento apenas garantem a derrota.Embora possa parecer ingênuo eutópico, especialmente depois de se lero jornal da manhã ou se ouvirem asnotícias da tarde, não há nenhumaalternativa: é necessário acreditar quepodemos contribuir para a solução doproblema.

Há algumas razões para manteruma tal crença. Por exemplo, otratamento de problemas específicos,como os da toxicomania ou daviolência, será mais bem-sucedidograças à nova ciência da regulação davida que resulta do estudo da emoçãoe do sentimento. Essa ciência modernatambém tem aplicação em diversosproblemas sociais. Sem dúvida que ofracasso de certas experiências deengenharia social se deve, em parte, àpura tolice de alguns dos planos ou àcorrupção da sua execução. Mas étambém possível que o fracasso tenhasido devido à concepção errada danatureza humana usada na formulaçãodesses planos. Essa concepção errada

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da natureza humana tem tido váriasconsequências negativas, a saber: umaexigência de sacrifícios que a maiorparte dos seres humanos não é capazde pôr em prática, um desrespeitoignorante pelos aspectos da regulaçãobiológica que agora estão se tornandocientificamente transparentes e queEspinosa intuiu no seu conatus; e umaincapacidade de reconhecer o ladonegativo das emoções sociais que seexprime no tribalismo, no racismo, natirania e no fanatismo religioso. Masclaro que tudo isso é o passado. Agora,que estamos prevenidos, temos direitoa começar de novo.

Creio que os novos conhecimentoscientíficos vão permitir alterar asituação. E é por isso que, no meio demuito pesar e de alguma alegria,podemos ter esperança, um afeto peloqual Espinosa, com toda a sua valentia,não tinha tanto apreço como nós,comuns mortais, precisamos ter.Espinosa definia a esperança daseguinte maneira: “A esperança nadamais é do que uma alegria inconstanteque emerge da imagem de qualquercoisa futura ou passada, sobre cujoresultado temos alguma dúvida”.17

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Apêndice I

ANTES, DURANTE E DEPOIS DEESPINOSA

1543 Morte de Copérnico (nascidoem 1473), que propôs que a Terra giraao redor do Sol, e não o contrário.

1546 Morte de Martinho Lutero(nascido em 1483), que foiexcomungado pela Igreja Católica em1521.

1564 Nascimento de Galileu, WilliamShakespeare, Christopher Marlowe.

Morte de João Calvino, fundador docalvinismo em 1536.

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1572 Luís de Camões publica OsLusíadas.

1588 Nascimento de ThomasHobbes, filósofo inglês que adotou umaperspectiva claramente materialistasobre o espírito. Hobbes teve umainfluência notável sobre Espinosa.

1592 Morte de Michel de Montaigne(nascido em 1533), cujos ensaiospublicados em 1588 tiveram um grandeimpacto intelectual na época.

1593 Christopher Marlowe morrenum acidente.

1596 Nascimento de RenéDescartes.

1600 Giordano Bruno é queimado nafogueira por ter concordado comCopérnico, e também por crençaspanteístas.

1601 A versão madura do Hamlet deWilliam Shakespeare é posta em cena.

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Começo da “idade da pergunta”.

1604 O Rei Lear.

Publicação de Avanço doconhecimento de Francis Bacon.Publicação do Dom Quixote deCervantes.

1606 Nascimento de Rembrandt.

1610 Galileu constrói um telescópio.O seu estudo das estrelas leva-o aadotar as ideias de Copérnico sobre osmovimentos do Sol e da Terra.

1616 Shakespeare morre aos 52anos, no meio de mais uma revisão doHamlet.

Cervantes morre no mesmo dia, aos69 anos.

1629 Nascimento de ChristiaanHuygens (que morrerá em 1695),astrônomo e físico. Em relação a

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Espinosa, Pluygens foi um parintelectual, um correspondente, umvizinho de ocasião e um cliente para assuas lentes.

1632 Nascimento de John Locke.

Nascimento de Espinosa.

Rembrandt pinta A lição deanatomia do Dr. Tulp.

1633 Galileu é condenado e detidoem casa.

Descartes hesita antes de publicaras suas ideias sobre a naturezahumana, baseadas nas suasinvestigações anatômicas e fisiológicas.

William Harvey descreve acirculação do sangue.

1638 Nascimento de Luís XIV, quereinará até 1715.

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1640 Uriel da Costa, um filósofoportuguês de origem judaica, primeirocatólico e depois convertido aojudaísmo, é castigado fisicamente pelasinagoga portuguesa de Amsterdam.Suicida-se pouco depois, mas não antesde ter acabado o seu livro Exemplarvitae humanae.

1642 Morte de Galileu.

Nascimento de Isaac Newton, quemorrerá em 1727.

1650 Morte de Descartes.

1652 Morte de Miguel de Espinosa,pai de Espinosa.

1656 Espinosa é excomungado pelasinagoga portuguesa e proibido de tercontato com qualquer judeu, incluídosos parentes e amigos. A partir daí, vivesozinho, em diversas cidadesholandesas, até 1670.

1670 Espinosa muda-se para Haia.

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Publicação anônima do Tractatuspoliticus religiosus em latim.

1677 Morte de Espinosa.

Publicação quase anônima e emlatim das Opera posthuma, umacoleção que inclui a Ética. Publicaçãodos trabalhos em holandês e francês.

1678 As autoridades eclesiásticas elaicas proíbem os livros de Espinosa portoda a Europa. O trabalho de Espinosacircula ilegalmente.

1684 John Locke exila-se na Holandaaté 1689.

1687 Publicação do tratado deNewton sobre a gravidade.

1690 Locke publica os Essaysconcerning Human Understanding e osTwo Treatises on Government. Temsessenta anos.

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1704 Locke morre aos 72 anos deidade.

1743 Nascimento de ThomasJefferson.

1748 Montesquieu publica O espíritodas leis.

1764 O Dicionário filosófico deVoltaire é publicado cinco anos depoisdo seu Cândido.

1772 Conclusão da publicação daEncyclopédie, obra principal doIluminismo, sob a direção de DenisDiderot e de Jeanle-Rond d’Alembert.

1776 Jefferson escreve a Declaraçãoda Independência dos Estados Unidosda América.

1789 A Revolução Francesa.

1791 A Primeira Emenda daConstituição dos Estados Unidos da

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América.

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Apêndice II

ANATOMIA CEREBRAL

Figura 1. As imagens na parte A dafigura mostram as divisões externas dosistema nervoso central: o cérebro, osseus quatros lobos (occipital, parietal,temporal, frontal) e o córtex do cíngulo;

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o cerebelo; o tronco cerebral; e amedula espinhal. A imagem esquerdado painel A mostra uma perspectivalateral (exterior) do hemisfério cerebraldireito. O painel da direita mostra umaperspectiva mediana (interna) domesmo hemisfério cerebral direito. S =sensitivo; M = motor. As imagens dopainel B mostram as mesmasperspectivas lateral e mediana dohemisfério direito, mas agora o córtexcerebral está dividido de acordo com asregiões citoarquitetônicas deBrodmann: cada número corresponde auma parte do córtex cerebral que éreconhecível pela sua arquiteturacelular. Essa arquitetura distinta édevida ao fato de que a distribuição dosneurônios de acordo com as camadasdo córtex cerebral difere de uma áreapara outra, e devida também àsprojeções de outros neurônios que cadaárea recebe de outras partes docérebro, ou envia para outras partes docérebro. Essa arquitetura tão diversa eas notáveis diferenças de input eoutput das várias áreas explica por quecada uma delas funciona de modo tãodiferente e contribui deforma tão

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particular para as funções do conjunto.

Figura 2. No painel A mostram-se oscórtices motores e os córtices primáriosligados à visão, à audição, e àssensações corporais(somatossensitivos). O córtex da ínsula,que também está ligado às sensaçõesdo corpo, não é visível porque estáencoberto pelos córtices parietais efrontais laterais (ver Figura 3). Nopainel B as regiões em sombreadocorrespondem aos córtices deassociação dos vários lobos e à regiãodo cíngulo. Esses córtices também sãoconhecidos pelos termos de “córticesde integração” ou “córtices de altaordem”.

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Figura 3. O córtex da ínsula não évisível no painel A, dado que estáencoberto pelo opérculo frontoparietalepelo lobo temporal. No painel B, essasregiões foram afastadas com doisretratores mecânicos e é então possívelapreciar a localização profunda docórtex da ínsula.

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Notas

1. ENTRAM EM CENA OSSENTIMENTOS [PP. IX-33]

1. A estrutura e a função do sistemanervoso de um ser vivo podem serestu-dadas em diferentes níveis deorganização, desde o nível simples dasmoléculas que constituem uma enzimaou um neurotransmissor, até o nívelcomplexo dos sistemas de regiõescerebrais com base nos quaispensamos e agimos. A maior parte dostrabalhos mencionados neste livro dizrespeito a esse último nível, embora osdados que apresento possamrelacionar-se com os de outros níveis,situados abaixo (por exemplo, circuitos,células nervosas, transmissão químicade sinais de célula para célula) e acima(fenômenos mentais e sociais).

Apesar da importância notável quecertas regiões podem ter na ocorrênciade certos fenômenos mentais oucomportamentais, os processos damente e do comportamento resultamda função coordenada de muitasregiões, que constituem diversossistemas, alguns grandes, outrospequenos. Nenhuma das funções

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importantes da mente humanapercepção, aprendizagem e memória,emoção e sentimento, atenção,raciocínio, linguagem, movimento temcomo base um mero centro cerebral. Afrenologia, a idéia de que um centrocerebral poderia produzir uma dessasgrandes funções mentais, é uma idéiado passado. Deve-se reconhecer,contudo, que as regiões cerebraispodem ser altamente especializadas econtribuir de forma única para umadeterminada função complexa de umsistema. Essas contribuições sãonormalmente flexíveis e adaptáveis,sujeitas a influências locais e globaisque têm a ver tanto com o organismocomo com o contexto em que oorganismo está vivendo emdeterminado momento. Há aquiqualquer coisa de parecido com o quese passa com o músico de umaorquestra sinfônica: tocará bem oumenos bem dependendo do dia, doscolegas, do maestro, do seu humor eda sua saúde.

Além dos scanners da neuroimagemcerebral, que nos permitem investigar aanatomia e as funções cerebrais, hádiversos outros meios de sondar océrebro, desde aqueles que utilizamfenômenos elétricos e magnéticos que

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resultam da atividade cerebral atéàqueles que se concentram sobre oestudo da expressão de genes empequenas regiões cerebrais.

2. Yakov explica ao magistrado o queEspinosa significa para ele. BernardMalamud, The Fixer (Nova York: Farrar,Straus and Giroux, 1966/VikingPenguin, 1993).

3. Benedictus Espinosa, Parte HI.The Ethics (Nova York: Dover Press,1955). Outras edições da Ética usadasno texto incluem a de Edwin Curley, emThe Collected Works of Spinoza(Princeton University Press, 1985), e ade Joaquim de Carvalho, Ética (Relógiod’Agua, Lisboa, 1992).

4. Espinosa, The Ethics, Parte IV,Proposição 7, ibid.

5. Espinosa, The Ethics, Parte I, ibid.6. Espinosa, The Ethics, Parte n, ibid.7. Jean-Pierre Changeux é uma

notável exceção. Termina o seu livro de1983, L 'Homme Neuronal, com umacitação a Espinosa. Jean-PierreChangeux, Neuronal Man: The Biologyof Mind (Nova York: Pantheon, 1985).Também discute a relevância deEspinosa para a neurociência em LaNature etla Règle (Paris: Odile Jacob,1998) com Paul Ricoeur. Outrospensadores que têm estabelecido a

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ligação entre Espinosa e a psicologia oubiologia modernas incluem StuartHampshire, Spinoza (Nova York:Penguin Books, 1951); Errol Harris, TheFoundations of Metaphysical Science(Nova York, Humanities Press, 1965);Edwin Curley, Behind the GeometricalMethod: A Reading of Spinoza’s Ethics(Princeton, Nj: Princeton UniversityPress, c. 1988).

8. Jonathan Israel demonstra oimportante papel que Espinosadesempenhou no Iluminismo no seulivro Radical Enlightenment: Philosophyand the Making of Modernity (NovaYork: Oxford University Press, 2001).Ver também o capítulo 6 deste volumeno que diz respeito a Espinosa e ao seupapel no Iluminismo.

9. Gilles Deleuze, Spinoza: APractical Philosophy (San Francisco:City Lights Books, 1988); Michael Hardt,A. Negri, Empire (Cambridge, MA:Harvard University Press, 2000); HenriAtlan, La Science est-elle inhumaine?(Paris: Bayard, 2002).

10. Benedictus Spinoza, ATheologico-political Treatise and APolitical Treatise (R. H. M. Elwes,Benedictde Spinoza:A theologico-political treatise andAPolitical Treatise,Nova York: Dover Publications, 1951).

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11. Simon Schama, AnEmbarrassment ofRiches (Nova York:Random House, 1987).

12. “Bene qui latuit, bene vixit”. Sãopalavras de Ovídio, em Tristra, queDescartes usou durante a sua vida.

2. OS APETITES E AS EMOÇÕES [PP.34-88]

1. Shakespeare, Ricardo II, Ato 4,Cena 1.

2. uso dos termos “mente” e “corpo”não constitui um deslize descuidado nodualismo de substância, de tipocartesiano. Como explico no capítulo 5,embora eu veja os fenômenos a quehabitualmente chamamos “mente” e“corpo” como emergindo de uma sósubstância biológica, trato mente ecorpo como objetos distintos deinvestigação exatamente pelasmesmas razões que me levam aseparar emoções e sentimentos, ouseja, uma estratégia de pesquisa quepermita avançar a nossa compreensãodo conjunto integrado que mente ecorpo, emoção e sentimento vêm aconstituir.

3. Nos seus escritos sobre essetema, Espinosa não usa nem apalavra“emoção” nem a palavra

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“sentimento”, mas antes a palavra“afeto” em latim, affectus uma palavraque é apropriada para ambos osconceitos. Espinosa diz o seguinte:“Com a palavra affectus quero referir-me às modificações do corpo atravésdas quais o poder ativo do corpo éaumentado ou diminuído, ajudado ouconstrangido, e também às idéias detais modificações”. (Espinosa, Ética,Parte III). Quando Espinosa desejaclarificar o sentido exato da palavra“afeto”, dá-nos a saber se se refere àparte externa ou exclusivamenteinterna do processo, ou seja, à emoçãoou ao sentimento. Julgo que Espinosaacharia bem-vinda a distinção queproponho neste capítulo, dado que essadistinção tem como fundamento aidentificação de acontecimentosdiferentes no processo de “serafetado”. A distinção é precisamente domesmo tipo da que Espinosa nosoferece com os termos “apetite” e“desejo”.

É de notar que uma das maisfreqüentemente usadas traduçõesinglesas de Espinosaa tradução de R. H.M. Elwes, publicada na Inglaterra em1883 traduz a palavra latina affectuspor emoção e perpetua assim o usoincorreto desses termos. A tradução

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moderna americana de Edwin Curleytraduz corretamente affectuspox afeto.Para aumentar a confusão, a traduçãode Elwes apresenta os termosespinosianos laetitia e tristitia comoprazer e dor, respectivamente, quandoa tradução mais correta é,respectivamente, felicidade/alegria etristeza/pesar.

4. É o que diz Buck Mulligan, falandode Stephen Dedalus. Parte II. JamesJoyce, Ulysses (Nova York: RandomHouse, 1986).

5. A palavra “homeodinâmica” éainda mais apropriada do que“homeostasia” porque sugere oprocesso de procura de umajustamento, e não um ponto fixo deequilíbrio. Essa é a razão por queSteven Rose introduziu o termo (StevenRose, Lifelines: Biology beyondDeterminism. Nova York: OxfordUniversity Press, 1998).

6. Ross Buck, “Prime theory: Anintegrated view of motivation andemotion”, Psychological Review 92(1985): 389-413; Ross Buck,“Thebiological affects: A typology”,Psychological Review 106 (1999): 301-36.

7. Paul Griffiths, What EmotionsReally Are (Chicago: University of

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Chicago Press, 1997) discute oproblema da classificação dasemoções. A distinção entre emoçõespropriamente ditas e outras reaçõesbiorregulatórias não é fácil. Em geral,as emoções propriamente ditas sãodesencadeadas por diversos objetos eacontecimentos que partilham certascaracterísticas, e não por um objeto ouacontecimento específico. No caso dasemoções propriamente ditas, oestímulo desencadeador é quasesempre externo, ao contrário do queacontece na maior parte das outrasreações biorregulatórias.

8. Monica S. Moore, Jim DeZazzo,Alvin Y. Luk, Tim Tully, Carol M. Singh,Ulrike Heberlein,“Ethanol intoxication inDrosophila: genetic andpharmacological evidence forregulation by the CAMP signalingpathway”, Cell93 (1998):9971007.

9. Ralph J. Greenspan, Giulio Tononi,Chiara Cirelli, Paul J. Shaw, “Sleep andthe fruit fly”, Trends in Neurosciences24 (2201): 142-5.

10.1. Kupfermann, V. Castellucci, H.Pinsker, E. Kandel, “Neuronal correlatesof habituation and dishabituation of thegill-withdrawal reflex in Aplysia”,Science 167 (1970): 1743-5.

11. António Damásio, Descartes’

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Error: Emotion, Reason, and the HumanBrain (Nova York: Grosset/Putnam,1994; Harper Collins, 1995; versãoportuguesa, O erro de Descartes:emoção, razão e cérebro humano,Publicações EuropaAmérica, 1995, MemMartins; versão brasileira, O erro deDescartes: emoção, razão e cérebrohumano, Companhia das Letras, 1996,São Paulo). De certo modo, a noção de“afetos vitais”, de Daniel Stern, temsemelhanças com o conceito de“emoções de fundo”. Daniel N. Stern,The Interpersonal World of the Infant(Nova York, Basic Books, 1985).

12. Paul Ekman, “An argument forbasic emotions”, Cognition and Emotion6 (1992): 169-200. Charles Darwin, TheExpression of the Emotion in Man andAmmaZs(NovaYork:NewYorkPhilosophicalLibrary, 1872).

13. Jaak Panksepp, AffectiveNeuroscience: The Foundations ofHuman and Emotions (OxfordUniversity Press, Nova York, 1998);Richard Davidson, “Prole-gomenon toemotion: Gleanings fromneuropsychology”, Cognition andEmotion 6 (1992): 245-68; RichardDavidson e W. Irwin, “The functionalneuroanatomy of emotion and affectivestyle”, Trends in Cognitive Sciences 3

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(1999): 211-21; Ray-mond Dolan, P.Fletcher, J. Morris, N. Kapur, J. F. Deakin,C. D. Frith CD, “Neural activation duringcovert processing of positive emotionalfacial expressions”, Neuroimage4(1996): 194-200; Joseph LeDoux, TheEmotional Brain: The MysteriousUnderpinnings of Emotional Life (NovaYork: Simon and Schuster, 1996);Michael Davis e Y. Lee, “Fear andanxiety: possible roles of the amygdalaand bed nucleus of the striaterminalis”, Cognition and Emotion 12(1998): 277-305; Edmund Rolls, TheBrain and Emotion (Nova York: OxfordUniversity Press, 1999); Ralph Adolphs,Daniel Tranel, António Damásio,“Impaired Recognition of Emotion inFacial Expressions Following BilateralDamage to the Human Amygdala”,Nature372 (1994): 669-72; RalphAdolphs, Daniel Tranel, António R.Damásio, “The Human Amygdala inSocial Judgment”, Nature 393 (1998):470-4; Ralph Adolphs, “Social Cognitionand the Human Brain”, Trends inCognitive Science 3 (1999): 469-79;Ralph Adolphs, Hanna Damásio, DanielTranel, Gregory Cooper, AntónioDamásio, “A Role for SomatosensoryCortices in the Visual Recognition ofEmotion as Revealed by 3-D Mapping”,

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The Journal ofNeuroscience 20 (2000):2683-90; Ralph Adolphs,“NeuralMechanisms for Recognizing Emotion”,Current Opinion in Neurobiology 12(2002): 169-78; Jean-Didier Vincent,Biologie des Passions (Paris: EditionsOdile Jacob, 1986; trad, portuguesa,Biologia das paixões, PublicaçõesEuropa-América, Mem Martins); NicoFridja, The Emotions (Cambridge, U.K.,Nova York: Cambridge University Press,1986); Karl Pribram, Languages of theBrain: Experimental Paradoxes andPrinciples in Neuropsychology(Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall,1971).

14. Paul Rozin, L. Lower, R. Ebert,“Varieties of disgust faces and thestructure of disgust”, Journal ofPersonality & Social Psychology66(1994): 870-81.

15. Richard Davidson e W. Irwin (op.cit.); Raymond Dolan etal. (op. cit.);Helen Mayberg, M. Liotti, S. K. Brannan,S. McGinnis, R. K. Mahurin, P. A.Jerabek, J. A. Silva, J. L. Tekell, C. C.Martin, J. L. Lancaster, P. T. Fox,“Reciprocal limbic-cortical function andnegative mood: Converging PETfindings in depression and normalsadness ”, American Journal ofPsychiatry 156 (1999): 675-82; Richard

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Lane, E. M. Reiman, G. L. Ahern, G. E.Schwartz, R. J. Davidson,“Neuroanatomical correlates ofhappiness, sadness, and disgust”,American Journal of Psychiatry 154(1997): 926-33; Wayne Drevets, J. L.Price, J. R. Simpson Jr., R. D. Todd, T.Reich, M. Vannier, M. E. Raichle,“Subgenual prefrontal cortexabnormalities in mood disorders”,Nature 386 (1997): 824-7.

16. Frans de Waal, Good Natured(Cambridge: Harvard University Press,1997); Hans Kummer, The Quest of theSacred Baboon (Princeton, Nj: PrincetonUniversity Press, 1995); Berud Heinrich,The Mind of the Raven (NovaYork:Harper Collins, 1999);MarcD.Hauser,WildMinds(NovaYork: HenryHolt,2000).

17. Robert Hinde, “Relationsbetween levels of complexity in thebehavioral sciences”, Journal ofNervous & Mental Disease 177 (1989):655-67.

18. Cornelia Bargmann,“From thenose to the brain”, Nature 384 (1996):512-3.

19. Jaak Panlsepp, AffectiveNeuroscience: The Foundations ofHuman and Emotions (op. cit.); e MarkSolms, The Brain and the Inner World:An Introduction to the Neuroscience of

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Subjective Experience (Nova York:Other Press, 2001).

20. Ross Buck (op. cit.).21. António Damásio, “Fundamental

Feelings”, Nature 413 (2001): 781. Afinalidade desta definição temporária éser tão específico e inclusivo quantopossível no que concerne à separaçãoestratégica entre emoção e sentimento.Essa definição contém elementosmentais, elementos neurais ecorporais, uma perspectivaevolucionária e um comentário sobre afinalidade do processo. A definiçãoevita restrições exageradas, comoconceber as emoções como estadoscausados por recompensas ou castigos,à maneira proposta por E. T. Rolls emBehavioral and Brain SciencesH (2000):177-234.

22. A minha discussão incide sobreetapas do processo que ocorrem depoisda fase de avaliação, e a razão por queo faço é porque essa fase do processodas emoções é a menos bemconhecida. Felizmente, a fase deavaliação é acessível à introspecção,pelo menos em parte, e tem sidoinvestigada em grande pormenor combase na experiência humana que fazparte não só das páginas da filosofia eda ciência mas também da literatura,

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tal como Martha Nussbaum temmostrado. (Martha Nussbaum,Upheavals of Thought, Nova York:Cambridge University Press, 2001.)

23. Os estudos que incidem sobre aamígdala revelam que um dosreceptores do glutamato, o receptorNMDA, é essencial para esse processo,em especial a sua subunidade NR2B.Por exemplo, o compromisso dessasubunidade bloqueia ocondicionamento ao medo; por outrolado, essa mesma subunidade pode sermanipulada geneticamente e levar aum aumento da aprendizagememocional. O receptor NMDA estátambém envolvido na ativação de umaenzima, uma quinase protéicadependente do CAMP, que por sua vezé necessária para a síntese de novasproteínas e, por isso, necessária para aaprendizagem. Ver Eric Kandel, JamesSchwartz, Thomas Jessell, Principles ofNeural Science, capítulos sobre“Learning and Memory”, McGraw-Hill, 4.ed. (2002); J. LeDoux, The SynapticSelf, Simon and Schuster (2002).

24. Joseph LeDoux (op. cit.); RalphAdolphs (op. cit.); Richard Dolan (op.cit.); David Amaral, “The primateamygdala and the neurobiology ofsocial behavior: implications for

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understanding social anxiety”,Biological Psychiatry 51 (2002): 11-7;Lawrence Weiskrantz, “Behavioralchanges associated with ablations ofthe amygdaloid complex in monkeys”,Journal of Comparative andPhysiological Psychology49 (1956):381-91.

25. Hiroyuki Oya, Hiroto Kawasaki,Matthew Howard, Ralph Adolphs,“Electrophysiological responsesrecorded in the human amygdaladiscriminate emotion categories ofvisual stimuli”, The Journal ofNeuroscience 22 (2002): 9502-12.

26. Paul Whalen, S. L. Rauch, N. L.Etcoff, S. C. Mclnerney, M. B. Lee, M. A.Jenike, “Masked presentations ofemotional facial expressions modulateamygdala activity without explicitknowledge”, Journal of Neuroscience 18(1998): 411-8.

27. Arne Ohman, J. J. Soares,“Emotional conditioning to maskedstimuli: expectancies for aversiveoutcomes following nonrecognized fear-relevant stimuli”, Journal ofExperimental Psychology: General 127(1998): 69-82: T. S. Morris, A. Ohman,R. J. Dolan, “Conscious and unconsciousemotional learning in the humanamygdala”, Nature 393 (1998): 467-70.

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28. P. Vuilleumier, S.Schwartz,“Modulation of visualperception by eye gaze direction inpatients with spatial neglect andextinction”, NeuroReport 12 (2001):2101-4; P. Vuilleumier, S. Schwartz,“Beware and be aware: capture ofspatial atten-tion by fear-related stimuliin neglect”, NeuroReport 12 (2001):1119-22; P. Vuilleu-mier, S. Schwartz,“Emotional facial expressions captureattention”, Neurology 56 (2001): 153-8;B. de Gelder, J. Vroomen, G. Pourtois, L.Weiskrantz, “Non-conscious recognitionof affect in the absence of striatecortex”, NeuroReport 10(1999): 3759-63.

29. Antonio Damâsio, Daniel Tranel,Hanna Damásio, “Somatic markers andthe guidance of behavior: Theory andpreliminary testing”, in H. S. Levin, H.M. Eisenberg, and A. L. Benton, eds.,Frontal Lobe Function and Dysfunction(Nova York: Oxford University Press,1991 ), pp. 217-29; Antonio Damâsio,“The somatic marker hypothesis andthe possible functions of the prefrontalcortex” Transactions of the RoyalSociety (Londres) 351 (1996): 1413-20;Antoine Bechara,Antonio Damâsio,Hanna Damâsio, Steven Anderson,“Insensitivity to future consequences

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following damage to human prefrontalcortex”, Cognition 50 ( 1994): 7-15;Antoine Bechara, Daniel Tranel, HannaDamâsio, Antonio Damâsio, “Failure toprefrontal cortex”, Cerebral Cortex 6(1996): 215-25; Antoine Bechara,Hanna Damâsio, Daniel Tranel, AntonioDamâsio, “Deciding advantageouslybefore knowing the advantageousstrategy”, Science 275 (1997): 1293-4.

30. Hiroto Kawasaki, Ralph Adolphs,Olaf Kaufman, Hanna Damâsio, AntonioDamâsio, Mark Granner, Hans Bakken,Tomokatsu Hori, Matthew A. Howard,(2001). “Single-unit responses toemotional visual stimuli recorded inhuman ventral prefrontal cortex”,Nature Neuroscience 4 (2001 ) : 15-6.

31. Jaak Panksepp, AffectiveNeuroscience: The Foundations ofHuman and Emotions (op. cit.).

32. Paul Ekman, “Facial expressionsof emotion: New findings, newquestions”, Psychological Science 3(1992): 34-8.

33. B. P. Bejjani, P. Damier, I. Arnulf,L. Thivard, A. M. Bonnet, D. Dormont, P.Cornu, B. Pidoux, Y. Samson, Y. Agid,“Transent acute depression induced byhigh-frequency deep-brain stimulation”,New England Journal of Medicine 340

(1999): 1476-80.

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34. Itzhak Fried, C. L. Wilson, K. A.MacDonald, E. J. Behnke, “Electriccurrent stimulates laughter”, Nature391 (1998): 650.

35. António Damásio, O erro deDescartes: emoção, razão e o cérebrohumano (op. cit.).

36. Josef Parvizi, S. Anderson, C.Martin, H. Damásio, A. R. Damásio,“Pathological laughter and crying: a linkto the cerebellum”, Brain 124 (2001):1708-19.

37. Cerebelo contribui para aadaptação do riso e do choro acontextos espe-cíficos, por exemplo, asituações sociais em que taiscomportamentos devem ser ini-bidos. Ocerebelo define, provavelmente, olimiar a partir do qual o dispositivo parao desencadeamento das emoções deveresponder a um estímulo e levar ao risoou ao choro. Essas ações modulatóriasdo cerebelo ocorrem automaticamenteem con-seqüência da aprendizagemque emparceira certos contextossociais com certos perfis e níveis deresposta emocional. O cerebelo podeexecutar essas ações modulatórias, porduas razões. Em primeiro lugar, porquerecebe sinais das estruturastelencefálicas que se referem aocontexto social e cognitivo de um

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estímulo, permitindo assim ao cerebelolevar em conta tais contextos. Emsegundo lugar, porque as projeções docerebelo para o tronco cerebral e paraas regiões telencefálicas, onde sedesencadeiam as emoções, permitemao cerebelo coordenar o conjunto derespostas a que chamamos choro ouriso. Essas respostas requerem, por suavez, a coordenação de movimentosfaciais, laringo-faríngeos ediafragmáticos. Ver Schmahmann, parauma discussão dos circuitoscerebelares pertinente a essa questão.Jeremy D. Schmahmann, Deepak N.Pandya, “Anatomic organization of thebasilar pontine projections frompreffontal cortices in Rhesus monkeys,”Journal of Neuroscience 17 (1997a):438-58; Jeremy D. Schmahmann,Deepak N. Pandya, “Thecerebrocerebellar system,”International Review Neurobiologyil(1997b): 31-60.

3. OS SENTIMENTOS [PP. 89-145]

1. Suzanne Langer, Philosophy in aNew Key (Harvard University Press,1942); Philosophical Sketches (JohnsHopkins Press, 1962). Errol E. Harris,The Foundations of Metaphysical

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Science (Nova York, Humanities Press,1965).

2. meu colega David Rudraufdefende a idéia de que a resistência àvariação é a causa principal da nossaexperiência das emoções, uma idéiaque se coaduna bem com opensamento de Francisco Varela. Partedaquilo que sentimos corresponderia aresistir às perturbações causadas pelaemoção e à tendência de controlaressas perturbações.

3. Quando os sentimentos sãoapresentados nessa perspectiva, equando verificamos que nenhumapercepção ocorre sem umacorrespondente perturbação emocional,parece-me que a noção de “qualia” (ou,pelo menos, uma das noções de“qualia”) se torna transparente.

4. Thomas Insel, “A neurobiologicalbasis of social attachment”, AmericanJournal of Psychiatry 154 (1997): 726-36.

5. No que toca à distinção científicaentre sexo, apego e amor romântico,vale a pena consultar Carol Gilligan,The Birth of Pleasure (Knopf, 2002).JeanDidier Vincent, BiologiedesPassions (Paris: Editions Odile Jacob,1994; trad, portuguesa A biologia daspaixões, Publicações Europa-América,

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Mem Martins). Alain Prochiantz, LaBiologie dans le Boudoir (Editions OdileJacob, 1995; trad, portuguesa Biologiana alcova, Publicações Europa-América,Mem Martins). Para a versão clássica damesma distinção, nada há de melhorque Flaubert, Stendhal, Joyce e Proust.

6. António R. Damásio, Thomas J.Grabowski, Antoine Bechara, HannaDamásio, Laura L. B. Ponto, JosefParvizi, Richard D. Hichwa, “Subcorticaland cortical brain activity during thefeeling of self-generated emotions”,Nature Neuroscienceò (2000): 1049-56.

7. Hugo D. Critchley, Christopher J.Mathias, Raymond J. Dolan,“Neuroanatomical basis for first-and-second-order representations of bodilystates”, Nature NeuroscienceA (2001):207-12. Notar outros estudos deimugmgfuncional deemoção/sentimento. Helen S. Mayberg,Mario Liotti, Steven K. Brannan, ScottMcGinnis, Roderick K. Mahurin, Paul A.Jerabek, Arturo Silva, Janet L. Tekell,Clifford C. Martin, Jack L. Lancaster,Peter T. Fox, “Reciprocal limbic-corticalfunction and negative mood:Converging PET findings in depressionand normal sadness”, 1999, op. cit.:675-82; Richard Lane, etal.,“Neuroanatomical correlates of

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happiness, sadness, and disgust” (op.cit.); Wayne Drevets, et al., “Subgenualprefrontal cortex abnormalities in mooddisorders” (op. cit.); Hugo D. Critchley,Rebecca Elliot, Christopher J. Mathias,Raymond J. Dolan, “Neural activityrelating to generation andrepresentation of galvanic skinconductance responses: A functionalmagnetic resonance imaging study”,Journal ofNeurosciencelO (2000): 3033-40.

8. Dana M. Small, Robert J. Zatorre,Alain Dagher, Alan C. Evans, MarilynJones-Gotman, “Changes in brainactivity related to eating chocolate:from pleasure to aversion”, Brain 124(2001): 1720-33;A. Bartels, SemirZeki,“The neural basis of romantic love”,NeuroReport 11 (2000): 3829-34; LisaM. Shin, Darin D. Dougherty, Scott P.Orr, Roger K. Pitman, Mark Lasko,Michael L. Macklin, Nathaniel M. Alpert,Alan J. Fischman, Scott L. Rauch,“Activation of anterior paralimbicstructures during guilt-related script-driven imagery”, Society of BiologicalPsychiatry48 (2000): 43-50; SherifKarama, André Roch Lecours, Jean-Maxime Leroux, Pierre Bourgouin, GillesBeaudoin, Sven Joubert, MarioBeauregard, “Areas of brain activation

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in males and females during viewing oferotic film excerpts”, Human BrainMapping 16 (2002): 1-13.

9. Jaak Panksepp,“The emotionalsources of chills induced by music”,Music Perception 13 (1995): 171-207.

10. Anne J. Blood, Robert J. Zatorre,“Intensely pleasurable responses tomusic correlate with activity in brainregions implicated in reward andemotion”, Proceedings of the NationalAcademy of Sciences 98 (2001): 11818-23.

11. Abraham Goldstein, “Thrills inresponse to music and other stimuli”,Physiological Psychology 3 (1980): 126-69. A administração de uma substânciaque bloqueia a ação dos opióidessuspende a experiência dos arrepios.

12. Kenneth L. Casey, “Concepts ofpain mechanisms: the contribution offunctional imaging of the human brain”,Progress in Brain Research 129 (2000):277-87.

13. Numa outra experiência, PierreRainville conseguiu separar oscorrelates neurais dos sentimentosrelacionados com a dor o “afeto dador”, definido como o seu aspectodesagradável e o desejo de terminá-lada “sensação de dor” propriamentedita. O “afeto da dor” ativa o córtex

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cingular e a insula, enquanto a“sensação de dor” ativa, sobretudo, aregião si. Pierre Rainville, Gary H.Duncan, Donald D. Price, Benoît Carrier,M. Catherine Bushnell, “Pain affectencoded in human anterior cingulatebut not somatosensory cortex”, Science277 ( 1997): 968-71.

14. Derek Denton, Robert Shade,Frank Zamarippa, Gary Egan, JohnBlairWest, Michael McKinley, JackLancaster, Peter Fox, “Neuroimaging ofgenesis and satiation of thirst and aninteroceptor-driven theory of origins ofprimary cons-ciousness”, Proceedingsof the National Academy of Sciences 96( 1999) : 5304-9.

15. Terrence V. Sewards, Mark A.Sewards, “The awareness of thirst:proposed neural correlates”,Consciousness & Cognition: anInternational Journal 9

(2000): 463-87.16. Balwinder S. Athwal, Karen J.

Berkley, Imran Hussain, AngelaBrennan, Michael Craggs, RyujiSakakibara, Richard S. J. Frackowiak,Clare J. Fowler, “Brain responses tochanges in bladder volume and urge tovoid in healthy men”,

Brain 124 (2001): 369-77; Blok,Bertil, Anton T. M. Willemsen, Gert

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Holstege,“A PET study on brain controlof micturition in humans”, Brain 120(1997): 111-21.

17. Karama, et al., “Areas of brainactivation in males and females duringviewing of erotic film excerpts” (op.cit.).

18. David H. Hubei, Eye, Brain andVision (Nova York: Scientific AmericanLibrary, 1998).

19. John S. Morris fornece umasúmula do atual estado das coisas emTrends in Cognitive Sciences6 (2000):317-9.

20. meu colega A. D. Craig propôsque as projeções que caminham para aínsula usam um núcleo talâmicoespecial, o VMpo. Dentro do córtex daínsula, os sinais que são trazidos poressas projeções são processados emvárias sub-regiões, da parte maisposterior desse setor até à maisanterior. Essa organização faz lembrara estrutura sub-regional das projeçõesvisuais do córtex occipital, uma vezpassado o córtex visual primário (VI).Em outras palavras, os sentimentosdependem, pro-vavelmente, de umsistema de sub-regiões interconectadasparecido com aquele queapóiaavisão.

21. Alain Berthoz, Le Sens duMouvement (Paris: Editions Odile Jacob,

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1997).22. Arthur D. Craig, “How do you

feel? Interoception: the sense of thephysiological condition of the body”,Nature Reviews 3 (2002): 655-66; D.Andrew, Arthur D. Craig,“Spinothalamic lamina I neuronsselectively sensitive to histamine: acentral neural pathway for itch”, NatureNeuroscience 4 (2001): 72-7; Arthur D.Craig, Kewei Chen, Daniel J. Bandy, EricM. Reiman, “Thermosensory activationof insular cortex”, Nature Neuroscience3 (2000): 184-90.

23. Antoine Lutz, Jean-PhilippeLachaux, Jacques Martinerie, FranciscoVarela, “Guiding the study of braindynamics by using first-person data:synchrony patterns correlate withongoing conscious states during asimple visual task”, Proceedings of theNational Academy of Science 99(2002): 1586-91.

24. Richard Bandler, Michael T.Shipley, “Columnar organization in therat midbrain periaqueductal gray:modules for emotional expression?”Trends in Neurosciences 17 (1994):379-89; Michael M. Behbehani,“Functional characteristics of themidbrain periaqueductal gray”,Progress in Neurobiology 46 (1995):

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575-605.25. Giacomo Rizzolatti, Luciano

Fadiga, Leonardo Fogassi, VittorioGallese,“Resonance behaviors andmirror neurons”, Archives Italiennes deBiologie 137

(1999) : 85-100; Giacomo Rizzolatti,Leonardo Fogassi, Vittorio Gallese,“Neurophysiological mechanismsunderlying the understanding andimitation of action”, Nature ReviewsNeuroscience 2 (2001): 661-70;Giacomo Rizzolatti, Luciano Fadiga,Vittorio Gallese, LeonardoFogassi,“Premotor cortex and therecognition of motor actions”, CognitiveBrain Research 3 (1996): 131-41; RittaHaari, Nina Forss, Sari Avikainen, ErikaKirveskari, Stephan Salenius, GiacomoRizzolatti, “Activation of human primarymotor cortex during action observation:a neuromagnetic study”, Proceedings ofthe National Academy of Sciences 95(1998): 15061-5.

26. Ralph Adolphs, et al.(op. cit.).27. Ver António Damásio, O erro de

Descartes: emoção, razão e cérebrohumano (op. cit.); O mistério daconsciência: do corpo e das emoçõesao conhecimento de si (Companhia dasLetras, 2000, São Paulo).

28. Ulf Dimberg, Monika Thunberg,

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Kurt Elmehed, “Unconscious facialreactions to emotional facialexpressions” Psychological Science 11(2000): 86-9.

29. Taco J. DeVries, Toni S.Shippenberg, “Neural systemsunderlying opiate addiction”, Journal ofNeuroscience 22 (2002): 3321-25; Jon-Kar Zubieta, Yolanda R. Smith, Joshua A.Bueller, Yanjun Xu, Michael R. Kilbourn,Douglas M. Jewett, Charles R. Meyer,Robert A. Koeppe, Christian S. Stohler,“Regional mu opioid receptor regulationof sensory and affective dimensions ofpain” Science 293 (2001): 311-5; Jon-Kar Zubieta, Yolanda R. Smith, Joshua A.Bueller, Yanjun Xu, Michael R. Kilbourn,Douglas M. Jewett, Charles R. Meyer,Robert A. Koeppe, Christian S. Stohler,“Mu-opioid receptor-mediatedantinociception differs in men andwomen”, Journal of Neuroscience22(2002): 5100-7.

30. Wolfram Schultz, Léon Tremblay,Jeffrey R. Hollerman, “Reward predic-tion in primate basal ganglia andfrontal cortex”, Neuropharmacology 37(1998): 421 -9; Ann E. Kelley e Kent C.Berridge,“The neuroscience of naturalrewards: Relevance to addictive drugs”,Journal of Neuroscience 22 (2002):3306-11.

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31. Vários websites dedicados àtoxicomania publicam descrições de ex-periências com droga:http://www.erowid.org/index.shtml.

32. DeVries e Shippenburg, ibid.33. A ativação da ínsula é, com

grande probabilidade, o correlatoprincipal do sentimento. A ativação docíngulo está provavelmentecorrelacionada com as respostasreguladoras desencadeadas pelasdrogas. Alex Gamma, Alfred Buck,Thomas Berthold, Daniel Hell, Franz X.Vollenweider,“3,4-methylenedioxymethamphetamine(MDMA) modulates cortical and limbicbrain activity as measured by [H2*50]-pet in healthy humans”,Neuropsychopharmacology 23 (2000):388-95; Louise A. Sell, John S. Morris,Jenny Bearn, Richard J. Frackowiak, KarlJ. Friston, Raymond J. Dolan, “Neuralresponses associated with cue-invokedemotional states and heroin in opiateaddicts”, Drug and Alcohol Dependence60

(2000) : 207-16; Bruce Wexler, C. H.Gottschalk, Robert K. Fulbright, IsakProhovnik, Cheryl M. Lacadie, Bruce J.Rounsaville, John C. Gore, “Functionalmagnetic resonance imaging of cocainecraving”, American Journal of

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Psychiatry 158(2001) : 86-95; Luis C. Maas, Scott E.

Lukas, Marc J. Kaufman, Roger D. Weiss,Sarah L. Daniels, Veronica W. Rogers,Thellea J. Kukes, e Perry F. Renshaw,“Func-tional magnetic resonanceimaging of human brain activationduring cue-induced cocaine craving”,American Journal of Psychiatry 155(1998): 124-6; Anna Rose Childress, P.David Mozley, William McElgin, JoshFitzgerald, Martin Reivich e Charles P.O'Brien, “Limbic activation during cue-induced cocaine craving”, AmericanJournal ofPsychiatry 156 (1999): 11-8;DanielS.O’Leary,Robert I. Block, Julie A.Koeppel, Michael Flaum, Susan K.Schultz, Nancy C. Andreasen, LauraBoles Ponto, G. Leonard Watkins,Richard R. Hurtig, Richard D. Hichwa,“Effects of smoking marijuana on brainperfusion and cognition”,Neuropsychopharmacology 26 (2002):802-16.

34. Gerald Edelman, Bright Air,Brilliant Fire: On the Matter of the Mind(Nova York: Basic Books, 1992); GeraldEdelman, Neural Darwinism: TheTheory of Neuronal Group Selection(Nova York: Basic Books, 1987). RodneyA. Brooks, Flesh and Machines (NovaYork: Pantheon Books, 2002).

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4. DEPOIS DOS SENTIMENTOS [PP.146-92]

1. A palavra laetitia pode sertraduzida como alegria ou exultação.Exultação é o termo que Amélie Rortypropôs em Spinoza on the Pathos ofIdolatrous Love and the Hilarity of TrueLove, Amélie Rorty, ed., ExplainingEmotions (Berkeley: Uni-versity ofCalifornia Press, 1980). Laetitiatambém tem sido traduzido por prazer,o que me parece incorreto. Tristitiapodeser traduzida por tristeza ou pesar,embora possa também designar outrosafetos negativos como o medo ou araiva.

Quando Espinosa se refere a “maior”ou “menor” perfeição, tende a juntar apalavra “transição”. Isso chama aatenção para a natureza dinâmica dosafetos, embora possa também sugerir,erradamente, que as transições são,em si mesmas, a parte importante doprocesso.

2. Vale a pena notar que emtrabalhos modernos que usam “redesneuronais”, certos estados dessas taisredes têm sido descritos como“harmoniosos”, e há até estados de“máxima harmonia”. A essência da

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harmonia, quer seja biológica ouartificial, é a mesma: facilitação,eficiência, rapidez, poder.

3. Ver Bruce G. Charlton, “Themalaise theory of depression: majordepressi-ve disorder is sicknessbehavior and antidepressants areanalgesic”, Medical Hypothe-ses 54(2000): 126-30, para obter uma visãomoderna da depressão como doença docorpo. William Styron, Darkness Visible:A Memoir of Madness (Nova York:Random House, 1990); Kay Jamieson,An Unquiet Mind (Nova York: Knopf,1995); e Andrew

Solomon, The noonday demon: ananatomy of depression (Londres: Chatto& Windus, 2001), têm descrito comenorme precisão a experiência dadepressão.

4. António Damásio, O erro deDescartes: emoção, razão e cérebrohumano, (op. cit.); António Damásio,“The somatic marker hypothesis andthe possible functions of the prefrontalcortex” (op. cit.).

5. Antoine Bechara, et al.,“Insensitivity to future consequencesfollowing damage to human prefrontalcortex” (op. cit.); António Damásio,Steven Anderson, “The frontal lobes”,in K. M. Heilman and E. Valenstein

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(eds.), Clinical Neu-ropsychology,Fourth Edition (Nova York: OxfordUniversity Press, 2002); FacundoManes, Barbara Sahakian, Luke Clark,Robert Rogers, Nagui Antoun, MikeAitken, Trevor Robbins, “Decision-making processes following damage tothe prefrontal cortex”, Brain 125(2002): 624-39; Daniel Tranel, AntoineBechara, Natalie Denburg, “Asymmetricfunctional roles of right and leftventromedial prefrontal cortices insocial conduct, decision-making, andemotional processing”, Cortex38(2002): 589-612.

6. Para detalhes dos aspectos neurale cognitivo da memória de trabalho,ver Patricia Goldman-Ralic, “Regionaland cellular fractionation of workingmemory” Proceedings of the NationalAcademy of Sciences of the UnitedStates of America 93 (1996): 13473-80,e Alan Baddeley “Recent developmentsin working memory”, Current OpinioninNeurobiologyi (1998): 234-8. Parauma abordagem geral das funções docórtex pré-frontal ver Joaquin Fuster,Memory in the Cerebral Cortex(Cambridge, MA; Londres, UK: MITPress, 1995); e Elkhonon Goldberg, TheExecutive Brain: Frontal Lobes and theCivilized Mind (Nova York: Oxford

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University Press, 2001).7. Jeffrey Saver, António Damásio,

“Preserved access and processing ofsocial knowledge in a patient withacquired sociopathy due toventromedial frontaldamage”,Neuropsychologia 29 (1991):1241-9.

8. António Damásio, O erro deDescartes: emoção, razão e cérebrohumano (op. cit.).

9. Quando comecei a apresentaressas idéias, há quase vinte anos,encontrei uma considerável resistência.Com exceção de um artigo doneuroanatomista Walle Nauta sobre opossível papel do lobo frontal naemoção (“The problem of the frontallobe: a reinterpretation”, Journal ofPsychiatric Research 8 (1971): 16787),a literatura não era favorável às minhashipóteses. Com o acúmulo de dados,aumentou a aceitação dessas idéias.Antoine Bechara, et al., “Insensitivity tofuture consequences following damageto human prefrontal cortex” (op. cit.);Antoine Bechara, et al., “Failure torespond autonomically to anticipatedfuture outcomes following damage toprefrontal cortex” (op. cit.); AntoineBechara, et al.,“Decidingadvantageously before knowing the

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advantageous strategy” (op. cit.);Antoine

Bechara, Hanna Damásio, António R.Damásio, Greg R Lee, “Differentcontributions of the human amygdalaand ventromedial prefrontal cortex todecisionmaking” Journal ofNeuroscience 19 (1999): 5473-81;Antoine Bechara, Hanna Damásio,António Damásio, “Emotion, decision-making, and the orbitofrontal cortex”,Cerebral Cortex 10 (2000): 295-307;Shibley Rahman, Barbara J. Sahakian,Rudolph N. Cardinal, Robert D. Rogers,Trevor W. Robbins, “Decision makingand neuropsychiatry”, Trends inCognitive Sciences 5 (2001): 271-7;Geir Overskeid, “The slave of thepassions: experiencing problems andselecting solutions”, Review of GeneralPsychology 4 (2000): 284-309; GeorgeLoewenstein, E. U. Webber, C. K.Hsee,“Risk as feelings”, PsychologicalBulletin 127 (2001): 267-86; Jean-P.Royet, David Zald, Rémy Versace,Nicolas Costes, Frank Lavenne, OlivierKoenig, e Rémi Gervais, “Emotionalresponses to pleasant and unpleasantolfactory, visual, and auditory stimuli: apositron emission tomography study”,Journal of Neuroscience 20 (2000):7752-9.

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10. Stephen P. Heck, ReasonableBehavior: Making the Public Sensible(Uni-versity of California, San Diego,1998). Ronald de Sousa, The Rationalityof Emotion (Cambridge: mit Press,1991). Martha Nussbaum, Upheavals ofThought (op. cit.).

11. Ralph Adolphs, et al., “Impairedrecognition of emotion in facialexpressions following bilateral damageto the human amygdala” (op. cit.).

12. James K. Rilling, David A.Gutman, Thorsten R. Zeh, GiuseppePagnoni, Gregory S. Berns, e Clinton D.Kilts, “A neural basis for socialcooperation”, Neuron 35 (2002): 395-405.

13. Steven Anderson, AntoineBechara, Hanna Damásio, DanielTranel, António Damásio, “Impairmentof social and moral behavior related toearly damage in human prefrontalcortex”, Nature Neuroscience 2 (1999):1032-7.

14. Essa interpretação é reforçadapor dados obtidos em doentes comlesões do setor infrotemporal direito,uma região cuja atividade dá aconhecer aos cortices pré-frontais osparâmetros de uma dada situação. Emcolaboração com os meus colegasSteven Anderson e Hanna Damásio,

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verifiquei que lesões desse setor,durante o período de desenvolvimento,podem vir a comprometer oscomportamentos sociais.

15. Jonathan Haidt, “The moralemotions”, in R. J. Davidson, K. Scherer,e

H. H. Goldsmith (eds.), Handbook ofAffective Sciences (Oxford UniversityPress); R. A. Shweder e J. Haidt, “Thecultural psychology of the emotions:Ancient and new”, in M. Lewis & J.Haviland (eds.), Handbook of emotions,2. ed. (Nova York: Guilford, 2000).

16. E. O. Wilson defende o futuro deum tal projeto em Consilience (NovaYork: Knopf, 1998).

17. Todos os maus comentários sereferem a comportamentos éticos,dentro da rubrica da ética descritiva.Não me refiro aqui a questões de éticanormativa ou metaética.

18. Frans de Waal, Good Natured(op. cit.); B. Heinrich, The Mind of theRaven (op. cit.); Hans Kummer, TheQuest of the Sacred Baboon (op. cit.); aexperiência de altruísmo em macacosRhesus é discutida por Marc Hauser emWild Minds (Nova York: Holt andCompany, 2000), e foi conduzida porRobert Miller (R. E. Miller, J. Banks, H.Kuwhara, “The communication of affect

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in monkeys: Cooperative conditioning”,Journal of Genetic Psychology 108(1966): 121-34; R. E. Miller,“Experimental approaches to thephysiological and behavioralconcomitants of affectivecommunication in Reshus monkeys”, inS. A. Altmann (ed.), SocialCommunication among Primates(Chicago: University of Chicago Press,1967).

19. Os genes não são apenasnecessários para construir um cérebroequipado com os dispositivos quetemos descrito. São tambémnecessários para permitir aaprendizagem, bem como a renovaçãoe a manutenção da estrutura cerebral.É também de notar que a expressãodos genes depende de interações como ambiente durante toda a vida de umorganismo, e não apenas no períodoinicial do desenvolvimento. Não épossível discutir, no âmbito deste livro,questões que têm sido tratadas naliteratura extensa e polêmica doscampos da psicologia da evolução, daneurobiologia e da genética. Para osleitores interessados, apresento aseguir uma lista cronológica de algunsdos livros mais importantes que versamsobre esses problemas: William

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Hamilton, “The Genetical Evolution ofSocial Behavior”, parts 1 and 2, Journalof Theoretical Biology 7 (1964): 1-52;George Williams, Adaptation andNatural Selection: A Critique of SomeCurrent Evolutionary Thought(Princeton, NJ: Princeton UniversityPress, 1966); Edward O. Wilson,Sociobiology: The New Synthesis(Cambridge, MA: Harvard UniversityPress, 1975); Richard Dawkins, TheSelfish Gene (Nova York: OxfordUniversity Press, 1976); Stephen JayGould, The Mismeasure of Man (NovaYork: Norton, 1981); Steven Rose,Richard Lewontin, Leo Kamin, Not inOur Genes (Harmondsworth: Penguin,1984); Leda Cosmides, John Tooby, TheAdapted Mind: Evolutionary Psychologyand the Generation of Culture (NovaYork: Oxford University Press, 1992);Helena Cronin, John Smith, The Ant andthe Peacock: Altruism and SexualSelection from Darwin to Today(Cambridge, U.K.: Cambridge UniversityPress, 1993); Richard C. Lewontin,Biology as Ideology: The DoctrineofDNA (Nova York: Harper Collins,1992); Carol Tavris, The Mismeasure ofWomen (Nova York: Simon andSchuster, 1992); Robert Wright, TheMoral Animal: Why We Are the Way We

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Are: The New Science of EvolutionaryPsychology (Nova York: PantheonBooks, 1994); Mark Ridley, Evolution(Oxford, Inglaterra; Nova York: OxfordUniversity Press, 1997); Steven Rose,Lifelines: Biology, Freedom,Determinism (Harmondsworth: AllenLane, 1997); Edward O. Wilson,Consilience (op. cit.); Steven Pinker,How the Mind Works (Nova York: W. W.Norton & Company, 1998); PatrickBateson e Martin Paul, Designfor a Life:How Behavior Develops (Londres:Jonathan Cape, 1999); Hilary Rose eSteven Rose, (eds.), Alas, Poor Darwin(Nova York: Har-mony Books, 2000);Melvin Konner, The Tangled Wing(NovaYork: Henry Holt and Company,2002); Robert Trivers, Natural Selectionand Social Theory: Selected Papers ofRobert L. Trivers (Nova York: OxfordUniversity Press, 2002).

20. No seu livro Upheavals ofThought (Cambridge University Press,2001), Martha Nussbaum discute opapel das emoções na justiça, de ummodo geral, e na aplicação da justiça,em particular.

21. William Safire começou a usarrecentemente o termo “neuroética”para se referir ao debate sobre asquestões éticas levantadas pelos novos

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tratamentos de doenças neurológicas epsiquiátricas. Esse debate deverá serinformado por algumas das questõesdiscutidas neste capítulo, mas devonotar que a minha discussão não oabrange. Há mais de dez anos, JeanPierre Changeux também utilizou otermo neuroética para se referir àmatéria discutida neste capítulo, noâmbito de um simpósio memorávelsobre a biologia e a ética que serealizou em Paris sob os auspícios doInstituto Pasteur.

22. aparecimento de novos meios degoverno social foi provavelmentedesencadeado por fenômenos tãodiversos como alterações do clima e osdesen-volvimentos da capacidadesimbólica e da agricultura. WilliamCalvin, The Ascent of Mind: Ice AgeClimates and the Evolution ofIntelligence (Nova York: Bantam Books,1991), A Brain for All Seasons: HumanEvolution and Abrupt Climate Change(Chicago; Londres: University ofChicago Press, 2002).

23. Embora a discussão do contextohistórico dessas idéias ultrapasse osmeus conhecimentos, possoestabelecer uma ponte entre os meuscomentários e duas perspectivas sobrea ética e a justiça: a perspectiva do

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Iluminismo, na Escócia, e a perspectivakantiana. De acordo com o Iluminismoescocês, a justiça começa na emoção,especificamente em emoções moraispositivas tais como a simpatia, quefazem parte do comportamentohumano natural. Podem-se cultivaremoções morais mas elas não precisamser ensinadas. São inatas e resultam daevolução natural de tudo quanto é bomna humanidade. Com base em taisemoções, e com o auxílio deconhecimentos e razão, é possívelcodificar regras de ética, leis e sistemasde justiça. Adam Smith e David Humesão os expoentes dessa perspectiva,embora as raízes possam se encontrarem Aristóteles (Adam Smith, A Theoryof Moral Sentiment [Cambridge, U.K.;Nova York: Cambridge University Press,2002]; David Hume, A Treatise ofHuman Nature; Enquiry concerning thePrinciples of Morals [Garden City, N.I.:Doubleday, 1961]; Aristóteles,Nichomachean Ethics).

A outra perspectiva está identificadacom Kant e encontra a sua expressãomoderna no trabalho do filósofo JohnRawls. É uma perspectiva que rejeita asemoções como alicerce possível para ajustiça, escolhendo em vez disso arazão como a base adequada para a

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ética, para as leis e para a justiça. Aperspectiva kantiana não confia ememoções de nenhuma espécie econsidera a emoção caprichosa e atéperigosa. Kant rejeita a sabedoria dasemoções, e dessa feita rejeita tambémo trabalho paciente com que aevolução acumulou sabedoria sobre ogoverno da vida social. Deve-se dizerque Kant também rejeita os aspectoscruéis e não sagazes da natureza quetambém encontram expressão nasemoções. A rejeição kantiana garante-nos que não poderemos colher osbenefícios das emoções, mas tambémnos assegura que não seremos por elasenganados. Kant confia apenas narazão e espera que a criatividadehumana permita inventar soluçõesmelhores do que aquelas que aevolução jamais poderia inventar por sisó. E é este um aspecto problemáticodessa perspectiva, dado que a razãonão temperada pelo sentimento podeser tão má conselheira como certasemoções naturais (RobertWright, TheMoral Animal: WhyWeAretheWayWeAre:The New Science ofEvolutionaryPsychology (Nova York: Random House,1994).

A perspectiva escocesa também temlimitações e pinta um retrato da huma-

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nidade talvez demasiadamente doce.Faz pouco uso da concepção dehumanidade que Thomas Hobbesgostava de ressaltar, uma humanidademaldosa e brutal, e faz uso liberal danobreza e bondade dos seres humanosque geralmente se associa a Jean-Jacques Rousseau. Além das emoçõesmorais positivas, os escoceses tambémreconhecem emoções moraisnegativas, tais como a vingança e aindignação, que também sãopertinentes para a construção dajustiça.

Penso que o papel que as emoções eos sentimentos desempenham najustiça vai além das emoções moraisque herdamos da evolução. Julgo que opesar e a alegria têm desempenhado econtinuam a desempenhar papelprincipal na construção da justiça. Aexperiência do pesar em relação a umaperda pessoal permite-noscompreender melhor o pesar do outro.A simpatia natural sintonizanos com oproblema do outro, mas é a dorpessoalmente sentida que aprofunda anossa apreciação pela dor expressa esentida pelo outro. Em outras palavras,o pesar pessoal nos permitiria passarda simpatia à empatia. O pesar pessoalseria dessa forma um meio eficaz para

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nos levar a raciocinar sobre ascircunstâncias que causam esse pesare sobre a forma de evitá-lo no futuro. Ainformação que resulta das emoções edos sentimentos pode, assim, serutilizada não só para criar melhoresinstrumentos de justiça, mas tambémpara criar condições nas quais a justiçaseja mais facilmente possível.

24. Benedictus Spinoza, ATheologico-Political Treatise, 1670. Datradução de R. H. M. Elwes, Benedict deSpinoza: A Theologico-Political Treatiseand a Political Treatise (op. cit.).

25. James L. McGaugh, Larry Cahill,Benno Roozendaal, “Involvement of theamygdala in memory storage:interaction with other brain systems”(review), Proceedings of the NationalAcademy of Sciences of the UnitedStates of America 93 (1996): 13508-14;Ralph Adolphs, Larry Cahill, Rina Schul,Ralf Babinski, “Impaired memory foremotional stimuli following bilateraldamage to the human amygdala”,Learning and Memory 4 (1997): 291-300; Kevin S. LaBar, Joseph E. LeDoux,Dennis D. Spencer, Elizabeth A. Phelps,“Impaired fear conditioning followingunilateral temporal lobectomy inhumans”, Journal of Neuroscience 15(1995): 6846-55; Antoine Bechara,

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Daniel Tranel, Hanna Damásio, RalphAdolphs, Charles Rockland, AntónioDamásio, “A double dissociation ofconditioning and declarative knowledgerelative to the amygdala andhippocampus in humans”, Science269(1995): 1115-8.

5. CORPO, CÉREBRO E MENTE [PP.193-233]

1. Em O mistério da consciênciaestabeleci a distinção entre consciênciae mente a que me refiro aqui (AntónioDamásio, 2000, op. cit.).

2. problema mente-corpo tem sidodiscutido em detalhes por diversosfilósofos, entre eles David Armstrong,The Mind-Body Problem: AnOpinionated Introduction (Oxford, U.K.:Boulder, Colorado: Westview Press,1999); Paul Churchland, Brain-Wise(Cambridge, MA: MIT Press, 2002);Patricia Churchland, Paul Churchland,“Neural worlds and real worlds” (NatureNeuroscience Reviews, 2002); DanielDennett, Consciousness Explained(Boston: Little Brown, 1991); DavidChalmers, The Conscious Mind (NovaYork: Oxford University Press, 1996);Thomas Metzinger, ConsciousExperience (Paderborn, Alemanha:

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Imprint Academic/Schoeningh, 1995);Galen Strawson, Mental Reality(Cambridge, MA: MIT Press, 1994); NedBlock, Owen Flanagan, GüvenGüzeldere, eds., The Nature ofConsciousness: Philosophical Debates(Cambridge, MA: MIT Press, 1997); eJohn Searle, The Discovery of the Mind(Boston: MIT Press, 1992); por filósofosdo passado recente: Herbert Feigl, The‘Mental’ and the ‘Physical (Minneapolis:University of Minnesota Press, 1958);Edmund Husserl, The phenomenologyof internal time-consciousness(Bloomington, IN: Indiana UniversityPress, 1964); Maurice Merleau-Ponty,Phenomenology of Perception,traduzido por Colin Smith (Londres,Routledge and Kegan Paul, 1962); e porbiólogos modernos, entre os quais, JeanPiaget, Biology and Knowledge: AnEssay on the Relations betweenOrganic Regulations and CognitiveProcesses (Chicago, University ofChicago Press, 1971); Jean-PierreChangeaux, Neuronal Man: The Biologyof Mind (Nova York: Pantheon, 1985);Francis Crick, The AstonishingHypothesis: the Search for the Soul(Nova York: Scribner: MaxwellMacmillan International, 1994); eGerald Edelman, Bright Air, Brilliant

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Fire: On the Matter of the Mind (NovaYork: Basic Books, 1992); FranciscoVarela, “Neurophenomenology: Amethodological remedy to the hardproblem”, Journal of ConsciousnessStudies 3(1996):330-50; FranciscoVarela e Jonathan Shear, “First-personmethodologies: why, when and how”,Journal of Consciousness Studies 6(1999): 1-14.

3. A Igreja Nova foi uma dasprimeiras igrejas protestantesconstruídas na Holanda (1649-56) e foi,de fato, inteiramente nova, planejadacomo uma celebração da Reforma. Nãose tratava apenas de uma igrejacatólica despida de decorações. Hojeem dia, a Igreja Nova é utilizada paraos mais diversos acontecimentosculturais em Haia. O conflito por trás dasua arquitetura é óbvio e típico do seutempo. De acordo com a estética daReforma, o edifício rejeita qualquerostentação. Mas como afirmação daIgreja Reformada que é, o edifício nãopoderia ter sido modesto. Pode-se notarum conflito semelhante na sinagogaportuguesa de Amsterdam, um edifíciocompletado em 1675 e que tambémhesita entre a modéstia e o orgulho.

4. Descartes. Correspondência coma princesa Elisabeth da Boêmia.

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Oeuvres etLettres (Gallimard, 1952) eMeditations (Penguin, 1998).

5. Gilbert Keith Chesterton, TheInnocence of Father Brown (Nova York:Dodd, Mead, 1991; trad, portuguesa, Ainocência do padre Brown, PublicaçõesEuropa-América).

6. Neurocirurgião Wilder Penfieldestudou esse fenômeno em diversosdoentes epilépticos. O fenômeno temprovavelmente início no córtex daínsula e abrange, por fim, outrossetores do complexo somatossensitivo.Essa idéia é com-patível com os novosdados que apresentei no capítulo 3.Wilder Penfield, Herbert jasper,Epilepsy and the Functional Anatomyofthe Human Brain (Boston:LittleBrown, 1954).

7. Em outros tipos de crise epilépticaé possível perder a consciência semqualquer espécie de aura corporal, oque não nega a possibilidade de aperda da sensação do corpo fazer partedo mecanismo da perda de consciêncianesse tipo de epilepsia.

8. Tanto Oliver Sacks, em Com umaperna só (São Paulo: Companhia dasLetras, 2003), como VilayanurRamachandran, em Phantoms in theBrain (Nova York: Harper Collins, 1999),têm descrito alterações da percepção

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dos membros.9. Oliver Sacks, em O homem que

confundiu sua mulher com um chapéu(São Paulo: Companhia das Letras,1997). Ver também Olaf Blanke, etal.,“Leavingyour body behind”, Nature(2002), no prelo.

10. António Damásio, HannaDamásio, “Cortical systems for retrievalof concrete knowledge: theconvergence zone framework”. Large-Scale Neuronal Theories ofthe Brain,ChristofKoch (ed.) (Cambridge: MITPress, 1994),pp.61-74; AntónioDamásio, “Time-locked multiregionalretroactivation: A systems levelproposal for the neural substrates ofrecall and recognition”, Cognition 33(1989): 25-62; António Damásio, “Thebrain binds entities and events bymultiregional activation fromconvergence zones”, NeuralComputation 1 (1989): 123-32.

11. Para uma discussão dosproblemas que a investigação daconsciência hoje enfrenta, consultarFrancis Crick, The AstonishingHypothesis: the Search for the Soul (op.cit.); Giulio Tononi e Gerald Edelman,“Consciousness and complexity”,Science 282 (1998): 1846-51; Jean-Pierre Changeaux, Paul Ricoeur, Ce qui

Page 602: António Damásio - Ao Encontro de Espinosa

nous fait penser, La nature et la règle(Paris: Editions Odile Jacob, 1998); eAntonio Damásio, O mistério daconsciência (op. cit.).

12. A noção de que tanto osprocessos de aprendizagem como os dapercepção dependem da “seleção” deelementos neurais de um repertóriopreexistente foi proposta por Jean-Pierre Changeaux, Neuronal Man: TheBiology of Mind (op. cit.), e GeraidEdelman, Neural Darwinism: TheTheory of Neuronal Group Selection(Nova York: Basic Books, 1987).

13. David Hubei, Eye, Brain andVision (op. cit.).

14. Roger B. Tootell, Eugene Switkes,Michael S. Silverman, Susan L.Hamilton, “Functional anatomy ofmacaque striate cortex, II. Retinotopicorganization”, The Journal ofNeuroscience 8 (1988): 1531-68.

15. Joanna Aizenberg, AlexeiTkachenko, Steve Weiner, Lia Addadi,Gordon Hendler,“Calcitic microlenses aspart of the photoreceptor system inbrittlestars”, Nature A12 (2001): 819-22; Roy Sambles, “Armed for lightsensing”, Nature 412

(2001) : 783.16. Samer Hattar, His-Wen Liao,

Motoharu Takao, David M. Berson,

Page 603: António Damásio - Ao Encontro de Espinosa

KingWai Yau,“Melanopsin-containingretinal ganglion cells: architectureprojections, and intrinsicphotosensitivity”, Science 295 (2002):1065-70; David M. Berson, Felice Dunn,Motoharu Takao, “Phototransduction byretinal ganglion cells that set thecircadian clock”, Science 295 (2002):1070-3.

17. Nicholas Humphrey, A History ofthe Mind (Nova York: Simon andSchuster, 1992).

18. David Hubei, MargaretLivingstone, “Segregation of form,color, and stereopsis in primate area18”, The Journal of Neuroscience 7(1987): 3378-415; Semir Zeki, A Visionof the Brain (Oxford, Boston: BlackwellScientific Publications, 1993).

19. George Lakoff, Maark Johnson,Metaphors We Live By (Chicago: Uni-versity of Chicago Press, 1980), eGeorge Lakoff, Mark Johnson,Philosophy in the

Flesh (Nova York: Basic Books,1999); Mark Johnson, The Body in theMind (Chicago: University of ChicagoPress, 1987).

20. Hubei, ibid.21. É aqui necessário qualificar o

tipo de reducionismo que estou usando.O nível mental dos fenômenos

Page 604: António Damásio - Ao Encontro de Espinosa

biológicos inclui especificações que nãoestão presentes no nível dos mapasneurais. Espero que a investigaçãofutura nos venha permitir explicarcomo é que se caminha do nível demapas neurais para o nível mental,embora o nível mental não sejaredutível ao nível dos mapas neurais,visto que possui propriedadesemergentes criadas a partir do níveldos mapas neurais.

22. Benedictus Spinoza, The Ethics(op. cit.).

23. Para uma discussão dessa idéiae da sua possível implementaçãoneural, ver António Damásio, O mistérioda consciência (op. cit.).

24. Spinoza, Ethics, in (op. cit.).25. Em Behind the Geometric

Method: A Reading of Spinoza’s Ethics(op. cit.), Edwin Curley faz uma leiturado pensamento espinosiano que écompatível com essa perspectiva. Omesmo acontece com Gilles Deleuzeem Spinoza: A Practical Philosophy (op.cit.).

26. A imortalidade da mentedesempenha um papel curioso eirregular na história do pensamentojudaico. Na época de Espinosa, negar aimortalidade da mente era umaheresia. Steven Nadler, Spinoza’s

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Heresy (Nova York: Oxford UniversityPress, 2002).

27. Simon Schama, Rembrandt’sEyes (Nova York: Knopf, 1999).

28. W. G. Sebald, no seu livro Osanéis de Saturno, apresenta umainterpre-tação bem diferente masfascinante daquilo que se passa nessatela. Sebald pensa que Rembrandttentou torpedear o Dr. Tulp e os seuscolegas que estavam dissecando umcorpo e que para isso iluminoudocemente o rosto de Aris Kindt, opobre ladrão que tinha sido enforcadoumas escassas horas antes e a quemninguém tinha pedido licença para umadissecação anatômica. Mas não meparece que Sebald tenha razão quandodiz que Rembrandt cometeu um erro aoretratar a mão esquerda de Kindt, queestá, a meu ver, inteiramente correto.Winfred Georg Sebald, The Rings ofSaturn (Nova York: New DirectionsPublishing Corporation, 1998).

6. UMA VISITA A ESPINOSA [PP. 234-78]

1. Albert Einstein, The World as I SeeIt (Nova York: Covici Friede Publishers,1934).

2. Alfred North Whitehead, Science

Page 606: António Damásio - Ao Encontro de Espinosa

and the Modern World (Nova York:MacMillan, 1967).

3. Diogo Aurélio, Imaginação epoder,Lisboa: Colibri, 2000. Ver também CarlGebhardt, “Rembrandt y Spinoza”,Revista de Occidente.

4. Simon Schama, Embarrassment ofRiches (op. cit.).

5. Hana Debora era a segundamulher de Miguel de Espinosa e tinhametade da sua idade. Descendia demédicos, filósofos e teólogos ilustres, etinha sido educada no Porto pela suamãe, Maria Nunes. Hana Debora foipara Amsterdam para se casar com opai de Espinosa, pouco tempo depoisde ele ficar viúvo.

6. Em Um bicho da terra (GuimarãesEditores, 1984), Agustina Bessa-Luísoferece uma narrativa da vida no Portodo século xvi que me serviu deinspiração para essa frase.

7. Steven Nadler, Spinoza: A Life(Cambridge, U.K.; Nova York:Cambridge University Press, 1999; trad,portuguesa Espinosa, uma vida,Publicações EuropaAmérica, 2003).

8. Marilena Chaui, A nervura do real(São Paulo: Companhia das Letras,1999).

9. A. H. de Oliveira Marques, Historyof Portugal, v. I (Nova York: Columbia

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University Press, 1972); FranciscoBettencourt, História das Inquisiçõesem Portugal, Espanha e Itália,séculosxv-xix (São Paulo: Companhiadas Letras, 1994); Cecil Roth, A Historyof the Marranos (Nova York: MeridianBooks, 1959).

10. Marques, ibid; Bettencourt, ibid;Roth, ibid.

11. Bettencourt, ibid; António JoséSaraiva; Marques, ibid.

12. Léon Poliakov, Histoire deVantisémitisme, 3. ed. (Paris: Calmann-Lévy,

1955).13. C. Gebhardt, citado por Gabriel

Albiac, La Synagogue Vide (Paris:Presses Universitaires de France, 1994).

14. Transcrição de C. Gebhardt quese encontra em I. S. Revah, EtudesJuives I, Spinoza etLeDocteur Juan dePrado, Paris: Mouton et Cie. 1959,57-8.Frederick Pollock fez uma excelentetradução do texto. Frederick Pollock,Spinoza: His Life and Philosophy(Londres: C. Kegan Paul 8t Co., 1880).

15. O menos fidedigno dos biógrafosde Espinosa, Lucas, sugeriu queEspinosa teria preparado uma resposta,mas não há nenhuma evidência de queo tenha feito, e é bem possível que talresposta nunca tenha existido.

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16. Luís Machado de Abreu, “Arecepção de Espinosa em Portugal”. InSob o olhar de Espinosa (Aveiro,Portugal: Universidade de Aveiro,1999).

17. Maria Luisa Ribeiro Ferreira, ADinâmica da Razão na Filosofia deEspinosa (Lisboa: Fundação Gulbenkian,1997).

18. Jonathan I. Israel, RadicalEnlightenment: Philosophy and theMaking of Modernity 1650-1750( Oxford University Press, 2001).

19. Apesar de John Locke ser crentee ter escrito sobre as idéias radicais deEspinosa de um modo não radical, édifícil imaginar que não tenha sidoinfluenciado por Espinosa. Locke viveuo seu exílio em Amsterdam, entre 1683e 1689, pouco depois da morte deEspinosa, num período de intensadiscussão e escândalo no que tocava àsidéias de Espinosa. Esse períodoprecede a publicação dos trabalhos deLocke, que apenas começam a vir à luzem 1690. John Locke, An EssayConsidering Human Understanding(Oxford: Clarendon Press, 1975); TwoTreatises of Government (Londres:Cambridge University Press, 1970).

20. Voltaire. Les Systèmes, Oeuvres(Paris, ed. Moland, 1993) t. x, p. 170.0

Page 609: António Damásio - Ao Encontro de Espinosa

texto original é o seguinte:“Alors un petit juif, au long nez, au

teint blême,Pauvre, mais satisfait, pensif et

retiré,Esprit subtil et creux, moins lu que

célébréCaché sous le manteau de

Descartes, son maître,Marchant à pas comptés, s’approche

du grand être:Pardonnez-moi, dit-il, en lui parlant

tout bas,Mais je pense, entre nous, que vous

n’existez pas”.21. Gabriel Albiac, La Synagogue

Vide (op. cit.).22. Johann von Goethe, The Auto-

Biography of Goethe: Truth and Poetry:From My Life, Parke Godwin, ed.(Londres: H. G. Bohn, 1848).

23. Georg W. F. Hegel, Spinoza,traduzido da 2. ed. alemã por E. S.Haldane e F. H. Simson (Londres: KeganPaul, 1892).

24. Circular of the SpinozaCommittee: A Statue to Spinoza. 1876em Frede-rick Pollock, Spinoza: His Lifeand Philosophy (Londres: C. Kegan Paul8c Co., 1880), Apêndice D.

25. Michael Hagner e BettinaWahrig-Schmidt, eds., Johannes Müller

Page 610: António Damásio - Ao Encontro de Espinosa

und die Philosophie ( Berlim: AkademieVerlag, 1992).

26. Frederick Pollock, ibid.27. Siegfried Hessing,“Freud et

Spinoza”, Revue Philosophique! (1977):168 (tradução do autor).

28. Hessing, ibid., página 169(tradução do autor).

29. Jacques Lacan, Les QuatreConcepts Fondamentaux de laPsychanalyse (Paris: Edition du Seuil,1973).

30. Albert Einstein, Out of My LaterYears (Nova York: Wings Books, 1956).

31. Margaret Gullan-Whur, WithinReason: A Life of Spinoza (Nova York:St. Martin’s Press, 2000). Tanto StuartHampshire (Spinoza, op. cit.) comoNadler (Espinosa: Uma Vida, op. cit.)também sugerem que o vidro tenhasido um fator na doença de Espinosa.

32. Hampshire, ibid.33. Nem na minha idéia nem na

idéia dos seus biógrafos principaisColerus, Pollock, Nadler, Gullan-WhurEspinosa alguma vez aparece como umautista, especificamente um autistacom a síndrome de Asperger, tal comofoi sugerido recentemente pelopsiquiatra Michael Fitzgerald. (MichaelFitzgerald, “Was Spinoza Autistic?”, ThePhilosophers’ Magazine, 14, Primavera

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2001).Os indivíduos autistas têm sérios

problemas sociais, tendem a ter faltade empatia, e vivem freqüentementeuma existência solitária e sem amigos.Se é verdade que Espinosa tevediversos problemas sociais, também éverdade que esses problemas foramlargamente causados pelo choqueentre as suas idéias e o mundo políticoe religioso da época. Nada indica queEspinosa tenha vivido de modo maisisolado do que Descartes, por exemplo,especialmente quando se pensa nosdiversos amigos em quem inspirougrande lealdade ou na sua inclusão nafamília de Van der Spijk, para não falardos numerosos visitantes que recebiadia após dia. Há também razões parapensar que durante a sua juventudeEspinosa tenha sido um jovemgregário, e diversas passagens dosseus textos sugerem que teve umaexperiência sexual considerável,enquanto viveu em Amsterdam. Mastalvez o problema principal para umdiagnóstico de autismo seja o fato deque Espinosa manifesta umconhecimento profundo daquilo queconstitui um ser humano e umasociedade. Não vejo nenhuma falta deempatia em Espinosa. Até mesmo a sua

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arrogância e atitude de superioridadenada têm de surpreendente num jovemintelectual e, como se sabe, diminuíramao longo da sua curta vida.

7. QUEM ESTÁ AÍ? [PP. 279-3O2]

1. Essa expressão sugere que Deuse a natureza são uma e a mesma coisa.No entanto, Espinosa faz por vezesuma distinção sutil entre a parte danatureza que é criadora e maisconforme a noção tradicional de umDeus criador-Natura naturanse a parteda natureza que é o resultado dessacriação Natura Naturata. StephenNadler analisa essa questão no seulivro Spinoza’s Heresy (op. cit.).

2. Para Espinosa, a salvação ocorrepessoalmente e de forma privada, mascom a ajuda da sociedade. O Estadopode facilitar os esforços pessoais esociais no sentido da salvação. OEstado deve ser democrático, as suasleis devem ser justas, e deve permitirque os cidadãos vivam sem medo. EmEspinosa, a política é subsidiária aoproblema da salvação, um aspecto emque difere de Hobbes. (No seu livro, Adinâmica da razão na filosofia deEspinosa, que citei anteriormente,Maria

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Luísa Ribeiro Ferreira comenta essadiferença.) Para Espinosa, um bomsistema político seria aquele queajudasse um cidadão livre a atingir asua salvação.

3. Correspondência de Espinosa.Carta XLIX em Robert Harvey MonroElwes, Improvementoftheunderstanding, Ethics andCorrespondence ofBenedictde Spinoza(Washington: Dunne, 1901).

4. “Antes de ir mais longe, querodeclarar (embora já o tenha dito) quecon-sidero a utilidade e a necessidadeda Bíblia como muito grandes. Comonão somos capazes de perceber, à luznatural da razão, que a simplesobediência é o caminho para asalvação, e como nos é ensinado pelarevelação que isso assim se passa poruma graça especial de Deus, que anossa razão não pode atingir, segue-seque a Bíblia tem trazido uma grandeconsolação à humanidade. Todas aspessoas são capazes de obedecer,enquanto apenas algumas muito raras,comparadas com o agregado dahumanidade, conseguem adquirirhábitos de virtude unicamente guiadaspela razão. Por isso, se não tivéssemostido testemunho das Escrituras, seriade duvidar que a maioria dos homens

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se pudesse salvar.”Essa atitude de Espinosa desmente

a idéia de que ele desrespeitava porinteiro a religião tradicional. Nosúltimos anos da sua vida, Espinosaaconselhava a todos que o rodeavam, eque eram sobretudo cristãos, paracontinuarem dentro da sua igreja, queera sobretudo a Igreja Protestante.Aconselhava às crianças que fossem àmissa, e ele próprio ouviu sermões deCollerus, o pastor luterano, que setornou um amigo e, eventualmente,seu biógrafo. Espinosa não tinha fénum Deus providente ou na vidaeterna, mas nunca fez pouco da fé dosoutros. Com efeito, Espinosa foiextremamente cuidadoso com a fédaqueles que tinham pouca educação.As suas discussões sobre religiãoconfinavam-se aos colegas intelectuais.Como indiquei anteriormente, Espinosanão permitiu traduções holandesas doseu trabalho de forma a evitar adisseminação rápida das suas idéiasentre aqueles que talvez nãoestivessem preparados para lidar comas conseqüências dessas idéias. Narealidade, até mesmo aqueles queleram os originais em latim nãoestavam preparados para absorver oimpacto do seu trabalho. Espinosa

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recusou-se a chefiar um movimentointelectual, coisa que poderia ter feitose quisesse. Duvido que Espinosaalguma vez tivesse querido assumir umtal papel, mesmo que fosse possívelsobreviver a esse cargo público,embora no seu artigo sobre Espinosa,Pierre Bayle sugira o contrário. Apersonalidade de Espinosa não secoadunava com tal papel, e é evidenteque depois da morte dos irmãos DeWitt seria impossível manter taisambições. Pierre Bayle, DictionnaireHistorique et Critique, Roterdam, 1702).

5. Em Modos de evidência (ImprensaNacional, 1986), Fernando Gil analisaessa forma de processo intelectual e assuas conseqüências afetivas.

A solução de Espinosa reveladiversas influências. Uma dessasinfluências é a dos filósofos estóicos,gregos e romanos, como é sugerido porSusan James (Susan James, 1993, emThe Rise of Modern Philosophy, TomSorrell, ed., Oxford, U.K.: ClarendonPress). A influência judaica também éóbvia e notável, sobretudo na ênfasedada à vida na terra e não à vidaeterna, na ênfase da conduta ética e naligação estabelecida entre a virtudeética e a organização sociopolítica, umtraço consistente das narrativas do

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Velho Testamento. É também possívelque Espinosa tenha sido influenciadopela Cabala. Espinosa tinha criticado osaspectos supersticiosos da Cabala, maspode-se dizer, como o faz Maria LuísaRibeiro Ferreira, que Espinosa utiliza areverência cabalística em relação a“um mistério sem rosto”. A influênciacristã não é menos evidente. Nosistema de Espinosa, o amorintellectualis Dei só pode florescer numindivíduo que se comporte de acordocom o exemplo de Cristo,incondicionalmente respeitador eamante do outro, cheio de caridadepara com todos, modesto na suaaparência, consciente da condiçãotransitória do indivíduo relativamente àescala do universo. Espinosa passou aolado da cristandade, mas incorporou aidéia de Cristo no seu sistema. É atépossível que tenha utilizado Cristocomo modelo para a fase final da suavida. Espinosa parece ter combinadoCristo com a tradição estóica dosmarranos e chegado assim a umaderradeira alegria, uma alegria queprovinha de rejeitar, ao longo dacaminhada da vida, muitas pequenasalegrias.

O filósofo C. S. Peirce fez notar estaligação: “As idéias de Espinosa são emi-

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nentemente idéias que afetam aconduta humana. Se, de acordo com arecomendação de Jesus, devemosjulgar as doutrinas éticas e de filosofiapelos seus resultados práticos, temosque considerar Espinosa como umagrande autoridade; provavelmentenenhum escritor dos tempos modernostem feito tanto para levar os homens aseguir um modo de vida elevado.Embora a sua doutrina contenhamuitas coisas que não são cristãs, oseu não-cristianismo é mais intelectualdo que prático. Pelo menos em parte, oespinosismo é um desenvolvimentoespecial da cristandade, e os seusresultados práticos são decididamentemais cristãos que os de qualquer outrosistema corrente de teologia”. CharlesSanders Peirce,“Spinoza’s Ethic”,TheNation,v. LIX [1894]: 344-5.

6. Jonathan Bennett, A Study ofSpinoza’s Ethics (Indianapolis, IN:Hackett Publishing Company, 1984).

7. Barbara Stafford, Devices ofWonder: from the World in a Box toImages on a Screen (Los Angeles: GettyResearch Institute, 2001).

8. Albert Einstein, The World as I SeeIt (op. cit.).

9. Ibid.10. Ibid.

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11. Richard Warrington BaldwinLeewis, The Jameses (Nova York: Farrar,Straus and Giroux, 1991).

12. William James, The Varieties ofReligious Experience (Cambridge, MA:Harvard University Press, 1985),Lecture i: The Varieties of ReligiousExperience.

13. William James, ibid, Lecture VI.14. William James, ibid., Lecture vi.15. Jerome Groopman demonstra os

problemas postos por tais tentativasem “God on the Brain”, The New Yorker,17 de setembro (2001): 165-8.

16. É evidente que há muitas outrasespécies de experiência espiritual.Algumas experiências espirituaispodem ser descritas menos como umsentimento do que como uma forma declaridade mental. De acordo com anossa discussão sobre as relações entremente e corpo é correto dizer, noentanto, que a maior parte das formasde experiência espiritual requerem umaconfiguração particular do corpo, quedepende de colocar o corpo num certomodo de funcionamento.

17. Benedictus Spinoza, The Ethics(op. cit.).

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Glossário

Axônio: A fibra de “output” doneurônio, que é geralmente única.Cada axônio pode fazer contato (fazeruma sinapse) com os dendritos demuitos outros neurônios e pode dessaforma disseminar sinais.

Cerebelo: Uma espécie deminicérebro colocado na parte posteriordo macrocérebro. Como no caso docérebro propriamente dito, o cerebelotem dois hemisférios, esquerdo edireito, e cada hemisfério é coberto porum córtex. O cerebelo tem a ver com oplanejamento e a execução dosmovimentos, e é indispensável para osmovimentos de alta precisão. Pensa-se,contudo, que o cerebelo também estejaenvolvido nos processos cognitivos.Sabemos também que desempenha umpapel na execução e sintonização dasrespostas emocionais.

Corpo caloso: O agregado deaxônios que liga o hemisfério es-querdoao direito, transversalmente, nas duasdireções.

Córtex cerebral: O manto querecobre o cérebro (que resulta dacombinação dos hemisférios esquerdoe direito). O córtex recobre as

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superfícies cerebrais de uma formacompleta, incluindo aquelas que estãolocalizadas na profundidade dos regos,fissuras e sulcos e que dão ao cérebro asua aparência corrugada. O córtexcerebral está organizado em camadascelulares paralelas à superfície docérebro. Cada camada é constituída porneurônios que recebem sinais de outrosneu-rônios (tanto de outras regiões docórtex cerebral como de outros pontosdo sistema nervoso) e que enviamsinais para outros neurônios, dentro efora do córtex cerebral. O córtexcerebral tem componentes antigos (doponto de vista da evolução), tais comoos chamados córtices límbicos (do quala região do cíngulo é um exemplo), ecomponentes modernos (o neocórtex).A arquitetura do córtex cerebral, ouseja, a forma como os neurônios sedistribuem em camadas, varia deregião para região e é tradicionalmenteidentificada pelos números do mapa deBrodmann. (Ver Figura 2, Apêndice II.)

ENZIMAS: Moléculas protéicas queservem de catalisadores para diversasreações bioquímicas.

Lesão: Uma área circunscrita dedestruição do sistema nervoso central,ou de um nervo periférico. As lesõesmais freqüentes são causadas por

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isquemia (uma redução do fluxosanguíneo) ou por um traumatismomecânico. A estrutura neuroanatômicado tecido nervoso é destruída dentro dosetor lesionado.

Massa cinzenta: Os setores maisescuros do sistema nervoso central sãoconhecidos como “massa cinzenta”,enquanto os mais claros sãoconhecidos como “substância branca”.A massa cinzenta corresponde aoscorpos celulares dos neurônios,enquanto a substância brancacorresponde, sobretudo, aos axôniosdesses neurônios. A substânciacinzenta pode estar organizada emcamadas, tal como no cérebro ecerebelo, ou em núcleos, nos quais osneurônios estão organizados como sefossem cerejas dentro de uma taça.

Neurônio: A célula nervosafundamental. Há neurônios de todas asformas e tamanhos, mas todos eles sãoformados por um corpo celular, a partedo neurônio que dá o tom escuro àmassa cinzenta, e por uma fibra desaída (“fibra de output”), que é oaxônio. Os neurônios recebemgeralmente sinais (“inpuf’) dosdendritos, fibras que mais se parecemcom uma pequena árvore e que têmorigem no corpo celular. Mas o sis-tema

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nervoso central é também constituídopor células gliais. As células da gliaconstituem uma estrutura de suportepara os neurônios e apóiam o seumetabolismo.

Neurotransmissores eneuromoduladores: Moléculas liberadaspelos neurônios que excitam ou inibema atividade de outros neurônios (talcomo o glutamato, ou o ácido gamma-amino-butírico), ou modulam aatividade de grupos de neurônios (talcomo a dopamina, a serotonina, anorepinefrina e a acetilcolina).

Nucleos: Ver massa cinzenta. Osnúcleos podem ser grandes oupequenos. Os núcleos grandes incluemo caudado, o putamen e o pálido, cujoconjunto forma os gânglios da base. Osnúcleos cujo conjunto forma ohipotálamo ou o tronco cere-bral são depequeno tamanho. A amígdala étambém um con-junto de pequenosnúcleos, escondido na profundidade dolobo temporal.

Posencéfalo basal: Uma coleção depequenos núcleos colocados em frentee por baixo dos gânglios da base. Essesnúcleos estão empenhados naexecução de comportamentosregulatórios, tais como as emoções, edesempenham também um papel na

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aprendizagem e na memória.Potencial de ação: A corrente

elétrica conduzida no axônio de cadaneurônio, que começa no corpo celulardo neurônio e caminha para os ramosdiversos em que o axônio termina.

Sinapse: A região microscópica ondeo axônio de um neurônio faz contatocom outro neurônio, por exemplo, aregião onde o axônio de um neurôniofaz contato com os dendritos de outroneurônio. Anatomicamente, umasinapse tem mais a ver com um fossodo que com uma ponte. A ligaçãosináptica é estabe-lecida pelaliberação, do lado do axônio, demoléculas de um neurotransmissor. Asmoléculas do neurotransmissor são aconseqüência do impulso elétrico quecaminhou ao longo do axônio e atuamsobre receptores do neurônio seguintelevan-do, dessa forma, à ativaçãodesse neurônio seguinte.

Sistema nervoso central: Oagregado que é constituído peloshemisférios cerebrais, o cerebelo, odiencéfalo, o tronco cerebral e amedula espinhal. Ver o Apêndice II,Figura 1.

Sistema nervoso periférico: Oconjunto de todos os nervos que saeme entram no sistema nervoso central.

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Substância negra (substantia nigra):Um dos pequenos núcleos do troncocerebral que produz dopamina e enviadopamina para os núcleos da base. Adopamina é indispensável para omovimento normal, mas desempenhatambém um papel importante nosmecanismos da recompensa.

Tronco cerebral: Uma coleção depequenos núcleos e feixes de fibrasnervosas situada entre o diencéfalo (oconjunto forma-do pelo tálamo e pelohipotálamo) e a medula espinhal. Osnúcleos do tronco cerebral trabalhampara a regulação da vida, por exemplo,a regulação do metabolismo. Aexecução das emoções depende devários desses núcleos. A lesão dosnúcleos da parte superior e posterior dotronco cerebral leva à perda deconsciência, principalmente ao estadode coma. O tronco cerebral é tambémuma região essencial para o trajeto dosfeixes nervosos que caminham docérebro para o corpo, e vice-versa.

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Agradecimentos

Devo começar por reconhecer oscolegas e amigos que leram ecomentaram este manuscrito JeanPierre Changeux, David Hubel, CharlesRockland, Steven Nadler, StuartHampshire, Patrí-cia Churchland, PaulChurchland, Thomas Metzinger, OliverSacks, Stefan Heck, Fernando Gil, DavidRudrauf, Peter Sacks, Peter Brook, JohnBurnham Schwartz e Jack Fromkin. Nãotenho palavras para agradecer a suagenerosidade.

Os meus colegas na Universidade deIowa e no Salk Institute também mederam grande apoio, em especialAntoine Bechara, Ralph Adolphs, DanielTranel, e Josef Parvizi, e, como sempre,agradeço ao National Institute ofNeurological Diseases and Stroke e àMathers Foundation, sem os quais nãoteria sido possí-vel a atmosfera detrabalho do nosso laboratório.

Devo também agradecer a todos osque me ajudaram com as diversaspesquisas bibliográficas de que esteprojeto necessitou: Maria de Sousa eJosé Horta, que encontraram certosmanuscritos sobre Espinosa embibliotecas portuguesas; MargaretGullanWhur, Maria Luísa Ribeiro

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Ferreira, e Diogo Pires Aurélio, trêsestudiosos de Espinosa queresponderam com grande paciência àsminhas perguntas; MarianaAnagnostopoulus, que me encontrouuma referência importante sobre osfilósofos estóicos; Thomas Casey, queesclareceu as questões que lhecoloquei sobre o Boeing 777; e ArthurBonfield, com quem tive umainteressante conversa sobre ThomasJefferson e John Locke. Tambémagradeço a Theo van der Werf,secretário da Spinoza Society daHolanda, que facilitou as minhas visitasàs casas de Espinosa.

O meu assistente, Neal Purdum,coordenou os diversos aspectos domanuscrito com o seu notávelprofissionalismo, e Betty Redekercontinuou a mostrar grande paciênciacom a minha caligrafia, um verdadeiromilagre ao fim de vinte anos.

Este livro nunca poderia ter sidoescrito sem o entusiasmo e apoio dedois grandes amigos, Jane Isay eMichael Carlisle, e de Hanna Damásio,a fonte permanente da minhainspiração e limi-tada sensatez.

Finalmente, não quero deixar deassinalar o acolhimento que FranciscoPedro Lyon de Castro tem continuado a

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dar ao meu tra-balho na Europa-América.

António Damásio

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Créditos das ilustrações

Todas as figuras, diagramas edesenhos foram feitos por HannaDamásio, exceto o retrato da página276. Os desenhos dos capítulos 1, 5 e 6representam: a casa de Espinosa, na72-74 Paviljoensgracht (p. 18), aestátua de Espinosa (p.25), a IgrejaNova e a sepultura de Espinosa (p.28),a sinagoga portuguesa em Amsterdam(p. 195), a casa em que Espinosa viveuem Rijnsburg (p.233), um busto deEspinosa (p. 235) e a velha sinagogaem Amsterdam (inspirada numagravura do século xvII, de JanVeenhuysen). O retrato da página 276foi feito por Jean Charles François epublicado em Histoire des PhilosophesModernes, de A. Savérien, Paris, 1761.

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