antropofagia - caetano veloso

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  • Antropofagiacaetano veloso nasceu em Santo Amaro da Purificao, na Bahia, em 1942. Cantor e compositor, tambm dirigiu o filme Ocinema falado (1986). autor de Verdade tropical (1997, Companhia das Letras).

    1a edio

  • Copyright 1997 by Caetano VelosoPenguin and the associated logo and trade dress are registered

    and/or unregistered trademarks of Penguin Books Limited and/orPenguin Group (usa) Inc. Used with permission.

    Published by Companhia das Letras in association withPenguin Group (usa) Inc.

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da LnguaPortuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    capa e projeto grfico penguin-companhiaRaul Loureiro, Claudia Warrak

    preparaoMrcia Copola

    revisoValquria Della Pozza

    Jane PessoaISBN 978-85-8086-247-8

    Todos os direitos desta edio reservados editora schwarcz s.a.

    Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 3204532-002 So Paulo sp

    Telefone: (11) 3707-3500 Fax: (11) 3707-3501www.penguincompanhia.com.brwww.blogdacompanhia.com.br

  • SumrioA poesia concretaChicoVanguardaAntropofagia

  • A poesia concretaEnquanto a reao da estudantada de esquerda era francamente desfavorvel e muitos colegas

    compositores torciam o nariz , a imprensa, embora criticamente dominada por posiosemelhante, tinha no espalhafato das apresentaes (e nas prprias discusses que elas geravam)um prato cheio para sua produo diria de reflexo, sensacionalismo e intrigas. Nesse caso, comoem outros mais frequentes do que se imagina, era exatamente sua venalidade que a salvava. Pelomenos do moralismo estreito e do tradicionalismo tacanho. Ns aparecamos nas revistasespecializadas em televiso, nas de amenidades, no noticirio cotidiano dos jornais e nas crnicase artigos de novos e velhos jornalistas, alm, claro, de sermos citados frequentemente nasperguntas feitas pelos reprteres a outros artistas. Episdios grotescos no faltaram, como o doprodutor e apresentador de tv Flvio Cavalcanti, uma figura folclrica do conservadorismosensacionalista que comandava um programa em que um corpo de jurados julgava canes sobre as quais o prprio apresentador fazia inflamados discursos de reprovao moral ou louvaosentimental , que, forando bastante, encontrou nas iniciais das palavras (sem) leno, semdocumento da letra de Alegria, alegria uma referncia ao cido lisrgico (S) L, SD?! e,portanto, uma instigao ao uso de drogas, o que o levou a repetir o gesto que executava emocasies semelhantes e que lhe garantia a manuteno da fama algo cmica, algo sinistra: quebrouum exemplar do disco que continha tal infmia.

    Muitas manifestaes de repdio s novidades que trazamos se seguiriam a essa. Sempre,felizmente, em nvel mais alto. E tinham como alvo nosso suposto comercialismo e, sobretudo,nosso desrespeito aos princpios do projeto esttico das esquerdas, dito nacional-popular. Mas eupude ver publicada na revista Manchete, entre fotografias coloridas, algumas de pgina inteira,uma entrevista minha em que eu declarava que quando ouvi Joo Gilberto pela primeira vez, tivevontade de fazer msica. Depois industrializou-se (mas no muito) um samba classe A comaparatos jazzsticos e clichs polticos, o qual, medida que ia perdendo terreno, deixava de serum bom produto para tornar-se apenas uma ideia de defesa da pureza de nossas tradies contratodo esse lixo vendvel: boleros, verses e, por fim, o chamado rock nacional. Sentia-me perdido:jamais pensara em msica como produto, e no considerava o Fino da Bossa como a salvao denossas tradies. E: Nego-me a folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar asdificuldades tcnicas.

    O fato de essas mostras de lucidez poderem destacar-se da banalidade predominante na revista demaior circulao no pas s agravava minha sensao de frustrao ante o resultado das gravaesj prontas para compor o esperado disco. Eu desejara criar um objeto conceitualmente forte e dearte-final irretocvel e no fim das contas tinha de me animar a defender o que restara, apesar detudo, de instigante num mondrongo esqulido. As dificuldades tcnicas exibiam umsubdesenvolvimento no folclorizado, certo, mas eu tinha imaginado um nvel de feitura queresolvesse provisria mas satisfatoriamente esse feixe de problemas. Tinha de contentar-mecom a ousadia das ideias como nica mantenedora do nvel aceitvel da empreitada. No querodizer com isso que desprezo o empenho ou a capacidade do produtor Manuel Barembein, e muitomenos dos arranjadores (Medaglia, sobretudo, fez um trabalho notvel). Apenas, consciente de quea unidade final dependia de minha liderana, reconheo no ter possibilitado ou exigido (o que,num caso desses, vem a dar exatamente no mesmo) que esses colaboradores chegassem a um

  • desempenho que transcendesse todo provincianismo: mas como eu poderia, se, de todos, eu erajustamente o que mais tmido e desarmado me achava dentro do estdio? De qualquer modo, oresultado, por menos que me satisfizesse, revelava-se eficaz no ataque aos alvos cruciais miradospela primeira inspirao tropicalista. As reaes iradas, ou meramente assustadas, que surgiam naimprensa, nos auditrios e nas universidades eram prova disso.

    Mas no eram somente as reaes negativas que reafirmavam a pertinncia de nossa posio. Oconjunto dos aspectos instigantes na msica ela mesma e da considervel articulao dos esboosde ideias que se encontravam em minhas entrevistas chamou, desde muito cedo, a ateno do poetaAugusto de Campos. Antes de o tropicalismo ganhar corpo e nome, Augusto, tendo ouvido MariaOdete cantar Boa palavra no festival da tv Excelsior, e, por outro lado, tendo lido minhainterveno num debate sobre msica popular na Revista Civilizao Brasileira, no qual eu insistiana nfase sobre Joo Gilberto e preconizava a retomada da linha evolutiva que este representava,escreveu um artigo chamado Boa palavra sobre a msica popular, saudando minha chegada nocenrio da mpb como um fato auspicioso. Alex Chacon, cheio de entusiasmo, me mostrara esseartigo no Rio. Isso foi antes de que eu assistisse a Terra em transe , antes mesmo de que Rogriome apresentasse a Z Agrippino. O que mais importante: antes dos comentrios de Bethnia sobreRoberto Carlos e a Jovem Guarda. Certamente por essa razo mas tambm por eu no conhecero nome do articulista nem encontrar nenhuma outra reao ao artigo alm da de Alex o texto mepareceu vindo de outro planeta. Eu estava preparado para a crtica ali apresentada por Augusto aoestilo enftico ento ressurgente em decorrncia da entrada em cena dos temas poltico-sociais como advento da cano de protesto; e quanto volta ao samba tradicional e ao folclore nordestino,minha declarao citada por ele (S a retomada da linha evolutiva pode nos dar uma organicidadepara selecionar e ter um julgamento de criao) era eco de um longo artigo que eu escrevera em65 para a revista ngulos, publicao universitria de Salvador, em que ataco os nacionalistaspassadistas que liderados teoricamente pelo socilogo Jos Ramos Tinhoro tentavamdesmerecer e mesmo anular as conquistas da bossa nova. Mas a reviso crtica que Augustoesboava fazer de Roberto e Erasmo Carlos ainda me era inaceitvel: eu fechava o meu artigo dangulos opondo uma faco responsvel da juventude brasileira a mesma que eu queriareconquistar das garras dos nacionalistas retrgrados para a linha evolutiva da bossa nova quela outra faco que tem algumas mocinhas to suburbanas quanto Emilinha Borba e rapazes ameio caminho entre beatle e Francisco Carlos como dolos, identificando assim a turma da JovemGuarda com as figuras artisticamente menos prestigiadas entre os grandes sucessos de massa dordio brasileiro dos anos 50. Mais: de antemo eu defendia essa posio ideolgica contra aspossveis recuperaes crticas que tais fenmenos publicitrios encontrassem em frases (maisou menos inteligentes) ditas na Europa a respeito de juventude e ritmos alucinantes. Almdisso, o artigo de Augusto me soou um tanto acadmico, justificando seu interesse por Roberto eErasmo em observaes tecnoestilsticas que eu no estava disponvel para analisar.

    O que me parece incrvel, hoje, relendo esse artigo de Augusto, que, na poca do tropicalismo,eu, j tendo superado o preconceito contra a Jovem Guarda e, afinal, fazendo, como ele fizera,uma aproximao entre Joo Gilberto e Roberto Carlos , no tenha me reportado, nem mesmontima ou interiormente, ao aspecto proftico das consideraes ali expostas. A rigor, se eu tivesselido com propriedade as consequncias que Augusto tirou de minha fala, seu artigo teria sido o

  • verdadeiro estopim de minha virada. De fato, nem Terra em transe nem Edgar Morin nem asinsinuaes de Guilherme, nem mesmo as conversas com Rogrio e Agrippino, vieram a apresentaruma viso to completa das questes que enfrentaramos no tropicalismo. Ningum depois deAugusto, at que o tropicalismo estivesse nas ruas, tocou com tanta preciso os pontos-chave dosproblemas especficos da msica popular de ento. Seu artigo dizia, por exemplo, que osnacionaloides preconizavam um retorno ao sambo quadrado e ao hino discursivo folclrico-sinfnico; que eles queriam voltar quela falsa concepo verde-amarela que Oswald deAndrade estigmatizou em literatura como triste xenofobia que acabou numa macumba para turistas[...] Foi nesse estado de coisas que chegaram a Jovem Guarda e seus lderes Roberto e ErasmoCarlos para, embora sem o saber, evidenciar a realidade e o equvoco. Para demonstrar que,enquanto a msica popular brasileira, como que envergonhada do avano que dera, voltava arecorrer a superados padres e inspiraes folclorsticos, a msica estrangeira tambm popular,mas de um outro folclore no artificial nem rebuscado, o folclore urbano, de todas as cidades,trabalhado por todas as tecnologias modernas, e no envergonhado delas, conseguia atingirfacilmente a popularidade que a msica popular brasileira buscava, com tanto esforo e tamanhaafetao populstica. Cmulo do paradoxo, j h notcia de que surgiram no Recife romances decordel narrando o encontro do rei do i-i-i nacional com Satans, glosando o tema da msica [deRoberto Carlos] Quero que v tudo pro inferno. [....] A maior parte no entendeu que o i-i-isofreu uma transformao na sua traduo brasileira, que no , nos seus melhores momentos, meracpia do estrangeiro. J tive oportunidade de observar [....] que, quanto ao estilo interpretativo, osdois Carlos estavam mais prximos de Joo Gilberto do que muitos outros cantores atuais damsica popular tipicamente brasileira (e Joo Gilberto, por sua vez, tem muito mais a ver com oscantadores nordestinos do que muitos ulradores do protesto nacional).

    A clareza com que Augusto via o panorama da mpb de ento se mostra mais surpreendentequando penso que a impresso de distncia que o tom do seu artigo me dava correspondia a umacondio real: ele no apenas era um poeta de formao erudita, como tambm em parte porcausa da natureza e amplitude dessa erudio, mas sobretudo pela radicalidade do experimentopotico a que se dedicava desde os anos 50 estava margem tanto das correntes dominantes daintelectualidade brasileira quanto do mundanismo dos ambientes artstico-jornalsticos onde sediscutia ou fazia msica popular. Ele parecia saber se colocar com firmeza diante das questescruciais, mas evidentemente lhe faltava a vivncia da faixa em que a esquerda festiva se movia eem que circulavam as fofocas, vivncia que talvez lhe tivesse dado a malandragem de linguagemque me teria conquistado primeira leitura.

    Mas h uma razo mais convincente para eu ter esquecido o artigo. que, justamente por ser tobem amarrado, quase esquemtico, ele chegou com um roteiro pronto, um roteiro que eu nopoderia enxergar se no o refizesse por minha prpria conta. No que eu tenha esquecido o artigono sentido de neg-lo inconscientemente, como numa espcie rasteira de angstia da influncia.Na verdade eu no o absorvi propriamente e como no conseguia discordar de seus avanosmais ousados, nem tinha noo da importncia de seu autor, nem encontrei um s entre meusconhecidos que o tivesse lido simplesmente o considerei inexistente. Assim como odistanciamento munia Augusto daquele olhar seletivo que s via o que era relevante no quadrodado, meu envolvimento dificultava uma mirada geral suficientemente objetiva e me impedia de

  • compartilhar com ele o seu ponto de vista. A defesa de Roberto Carlos no me chocou nem meexcitou: era um tema levemente incmodo que tinha sido tocado por um desconhecido um tanto semhumor e que no parecia pesar na balana das opinies. Tampouco me entusiasmava a simpatia aliexposta pelas minhas ideias (que eram, no essencial para o artigo, identificadas com as de EduLobo, que eu tanto admirava mas de quem discordava tanto quando se tratava de opinies e teoria),j que eu cria que ningum ia ler aquilo. No guardei nem por um dia a pgina do jornal. Quando,algum tempo depois, Capinan me mostrou o livro sobre Sousndrade e pronunciou o nome dosirmos poetas que o haviam organizado, Augusto de Campos e Haroldo de Campos, eu no s noreconheci o nome como, ainda dessa vez, no o fixei.Augusto e seu irmo Haroldo, juntamente com Dcio Pignatari, formavam o ncleo do grupo depoetas que, no meio dos anos 50, lanaram o movimento de poesia concreta, uma retomada radicaldo esprito modernista dos anos 20 e das ideias de vanguarda do incio do sculo , contra ospudores antimodernistas e antivanguardistas que tomaram conta da poesia e da literaturabrasileiras, primeiro com os romancistas regionalistas dos anos 30 e, depois, com os poetas dachamada gerao de 45.

    Os poetas concretos sentiam-se em sintonia com msicos europeus como Boulez e Stockhausen,que, nos anos 50, retomavam a radicalidade da escola de Viena (sobretudo Webern), e com ospintores que seguiam os caminhos de Mondrian e Malvitch, e, levando s ltimas consequncias ofato de que poesia no propriamente literatura, valorizaram os aspectos fsicos da palavra,criando um tipo de poema que foi qualificado inicialmente como visual j que, sobre o papel, anfase caa na tipografia, no uso da cor e dos espaos em branco mas que eles sempre quiseram,na expresso de Joyce, verbi-voco-visual. Conhecedores apaixonados dos movimentos pioneirosda primeira dcada do sculo futurismo italiano, suprematismo e cubo-futurismo russos, dadinternacional etc. (com uma certa antipatia pelo surrealismo) , eles tomaram posio bemdefinida em face dos modernismos dos anos 20, em face de uma histria abrangente da poesia e,finalmente, em face dos roteiros que se deviam estabelecer para ela no futuro. Nesse sentido,criaram o que eles chamavam de seu paideuma, uma seleo de autores obrigatrios na formaode uma sensibilidade nova e relevante: Mallarm (o primeiro, com seu Lance de dados, a pensaro poema sobre a pgina como uma constelao, e a usar o branco do papel como elementoestruturador); Ezra Pound (que foi quem lhes deu o conceito de paideuma, alm da aproximaocom a escrita chinesa, sua monumental srie de Cantos vista como composta maneira dosideogramas); Joyce (com suas palavras-montagens, a imploso da forma romance em Ulisses, e ainveno de uma translngua em Finnegans Wake ); Maiakvski (no h arte revolucionria semforma revolucionria); Joo Cabral de Melo Neto (o maior poeta brasileiro surgido depois domodernismo, pertencente, pela idade, gerao de 45, mas em tudo oposto a ela: um poeta dascoisas vistas com olho lcido e expressas em linguagem seca e rigorosssima); e. e. cummings(realizando gestos tipogrficos isomrficos, fazendo at os sinais de pontuao protagonizaremlances fundamentais do poema), e Oswald de Andrade (o mais radical dos modernistas paulistassurgidos na famosa Semana de 1922), a poesia barroca (e os metafsicos ingleses), a poesiaprovenal.

    O surgimento dos concretistas tinha sido escandaloso (a revista O Cruzeiro, de grandecirculao, falou em rocknroll da poesia...). Embora contassem com a simpatia de uma figura

  • gigantesca da poesia brasileira como foi Manuel Bandeira (mais velho que os modernistas,precursor destes e um mestre para sempre), eles encontraram forte resistncia entre poetas, literatose acadmicos. Mas o nvel de argumentao que eles sustentavam em suas respostas e defesascrticas era to alto, sua cultura to vasta, e sua determinao to inabalvel, que se tornaram umosso duro de roer na cena intelectual brasileira, impondo respeito mesmo onde no haviareceptividade. O resultado disso foi que seus inimigos cercaram-nos com uma cortina de silncioque era rompida de vez em quando por uma ou outra agresso desproporcional, e seus amigostendiam a apoi-los de modo sectrio.

    Quando Augusto de Campos entrou em contato comigo acho que foi Jlio Medaglia quem, jconhecendo seu interesse por meu trabalho, lhe disse que poderia arranjar um encontro atravs deGuilherme Arajo , ele me deu de presente alguns nmeros da revista Inveno, publicaodirigida por ele, Haroldo e Dcio (o Grupo Noigandres, como eles se autodenominavam:noigandres uma palavra encontrada num poema provenal cujo sentido ainda se discute e queaparece num dos Cantos de Pound como indecifrvel por um conhecedor a quem o poeta vairecorrer para desvendar-lhe a significao), mencionou as afinidades que via entre o que elesfaziam e o que ns estvamos fazendo, e sobretudo falou de Lupicnio Rodrigues. Lupicnio foi umgrande compositor, um negro do extremo Sul do Brasil isto , de uma rea onde se pensa que apopulao toda branca , que ficara famoso por seus sambas-canes sobre mulheres infiis ecimes monstruosos (no seu maior sucesso, Vingana, ele ameaa a traidora com uma praga que,dcadas depois, faria a glria de Bob Dylan: voc h de rolar como as pedras que rolam naestrada/ sem ter nunca um cantinho de seu...), e cujas melodias tinham um carter algo errtico quelhes dava eficcia dramtica e originalidade. Antes do artigo em que Augusto se referia a mim, eleescrevera um outro comparando favoravelmente a Jovem Guarda ao Fino da Bossa e, antes deste,um outro ainda sobre a poesia extremada de Lupicnio, seu realismo s vezes demasiadamente cru,o inusitado de suas composies meldicas e, principalmente, o extraordinrio efeito que tudo issoalcanava quando apresentado pela voz surpreendentemente delicada do autor. Se acaso, nodecorrer dessa nossa primeira conversa, algum silncio parecia querer durar um pouco demais,Augusto recomeava a falar em Lupicnio. Eu compartilhava do entusiasmo dele por essecompositor de quem eu sabia de cor um bom nmero de canes. Mas, como eu tinha admiraesainda mais intensas por alguns outros nomes da velha guarda e sabia um vastssimo repertrio deum Olimpo de autores em cujo trono central sentava-se Dorival Caymmi, essa insistncia emLupicnio me soou um pouco como uma monomania. Ao voltar para casa, comentei com Guilherme,rindo: Ele mesmo louco por Lupicnio Rodrigues!.

    O mais curioso que Augusto, durante nossa conversa, mencionou o artigo que eu esquecera, eeu, que logo recuperei dele uma obscura memria, fiquei um pouco envergonhado de no podercomentar detalhes. Mas creio que uma cpia dele veio junto com os artigos sobre Lupicnio e osnmeros de Inveno que Augusto passou s minhas mos. No se pode dizer que tenha havido umaverdadeira empatia entre ns. Ele parecia mais distante do meu mundo do que o tom do artigo deleme tinha feito imaginar. Quase todas as caractersticas daquilo que, no meu ambiente, nschamaramos de um careta se encontravam naquele homem metdico, muito branco, de bigode ecom um sotaque paulista imaculado. Por outro lado, nenhum trao do brilhantismo queimpressionava num Glauber, num Rogrio, mesmo num Ferreira Gullar, trazia um excedente deexcitao sua conversa medida e clarificadora. Sua mulher, Lygia, uma pessoa muito doce e

  • educada alm de sintonizada intelectualmente com os interesses do marido , sentava-se ao seulado demonstrando uma natural devoo a ele. Tudo o que ele dizia e com que ela concordavainvariavelmente me soava certeiro e justo, e seu apoio ao movimento em que eu me achavaengajado era nitidamente sincero e notavelmente fundamentado. Mas tudo parecia vir de longe eestar destinado a permanecer despercebido num canto obscuro.

    De fato, repetia-se no encontro pessoal o estranhamento j experimentado na leitura do artigo. Noentanto, havia nos olhos muito mopes de Augusto, e atravessando os crculos concntricos daslentes esverdeadas dos culos, um raio permanentemente vindo de um ponto muito preciso de suapessoa, um raio de doura intacta, e de louca tenacidade na defesa dessa doura. Isso fazia com queele parecesse ter um direito especial de mostrar-se absorto, como os loucos, e tambm unia ospontos de outro modo dispersos de suas demonstraes de identificao com o que me interessava.Aquilo em seus olhos fazia dele, de repente, o menos careta de todos ns.

    Os outros artigos de Augusto, mas sobretudo alguns poemas e textos introdutrios da revistaInveno, contriburam para que eu entendesse o sentido profundo dessa nossa aproximao. Umdesses textos especialmente um quase-manifesto escrito por Dcio Pignatari pareceuexpressar exatamente minhas preocupaes. E no mesmo tom. Num tom que seria o meu se eupudesse escrever aquilo. Havia algo de simplista nos artigos de Augusto escritos para serentendidos por leitores de jornal que assistiam a festivais de msica popular na televiso, mas essetexto escrito por Pignatari, tendo sido escrito para a bela revista de poesia que eles faziam circulara intervalos irregulares, era ao mesmo tempo complexo, sugestivo e extraordinariamenteconvincente. Era um texto para circular entre eruditos, mas eu, se pudesse, o poria semmodificaes na contracapa do meu disco. Tratava-se de mais uma defesa dos postuladosconcretistas contra as investidas sociologizantes dos nacionalistas. Era uma crtica folclorizaomantenedora do subdesenvolvimento, e uma tomada de responsabilidade pelo que se passa no nvelda linguagem por parte daqueles que trabalham diretamente com ela. Contrapunha imagem dopescador de chapu de palha e rede s costas, que era o smbolo da Editora Civilizao Brasileira,o alerta para o fato de que, em pases desenvolvidos, pescava-se com sonar e barcos bemequipados. E, respondendo ao poeta Cassiano Ricardo, um ex-modernista que chegara a colaborarcom eles mas agora dizia esperar que eles afrouxassem o arco, Dcio encerrava o artigo (todocosturado pela conjuno e na sua forma latina de uso comercial, &) insistindo em que eles, osconcretos, manteriam o arco sempre teso pois na geleia geral brasileira algum tem de fazer opapel de medula & de osso.

    A imagem do arco teso e a expresso geleia geral (um trocadilho com geleia real que soa defato engraado) ficaram em minha mente e delas falamos muito em nossas conversas no 2002 (esteera o nmero do nosso apartamento; pouco tempo depois Dcio Pignatari brincaria com isso,sugerindo que o nmero se referia ao ano seguinte ao 2001 do filme de Kubrick). A expressogeleia geral foi parar numa letra tropicalista de Torquato Neto para uma msica de Gil (e nottulo de uma coluna assinada por Torquato na imprensa carioca na dcada seguinte), e a imagem doarco teso reapareceu explicitamente numa cano minha dos anos 70 e foi uma presena difusapor sob as palavras de muitas das minhas composies e declaraes esses anos todos.

    O 2002, com sua boneca de fibra de vidro e seus mveis de acrlico transparente, tornava-semais e mais animado. Gil estava sempre por l. Assim tambm os Mutantes e, naturalmente,

  • Guilherme, que morava dois andares abaixo. Z Agrippino e Maria Esther apareciam de vez emquando. Waly e Duda vieram do Rio e estavam morando conosco. Eu os ouvia muito. Dudasobretudo continuava a ter enorme ascendncia sobre mim. Eu considerava que o que eu fazia eraalgo til, porm intelectualmente menor, se comparado ao que eles, muito mais cultos e muito maisadestrados mentalmente, viriam a fazer. Ded brincava dizendo que eles eram nossos consultores.Achvamos bom que o dinheiro que eu ganhava desse para manter um apartamento amplo que podiaacolh-los, enquanto eles prprios no faziam os filmes e os livros que poderiam fazer de ns umagerao marcante na histria da cultura brasileira. Conversvamos at altas horas da madrugadabebendo cerveja e eu e Ded nos orgulhvamos de que nossa casa fosse uma permanente promoode saraus inesquecveis. As revistas, os livros e os artigos que Augusto me dava circulavam entreos membros dessa comunidade. E o perfil dos concretistas ia se tornando mais ntido para mim.Eles prprios porque Augusto me apresentara a Haroldo e Dcio passaram a frequentar o2002 com certa assiduidade. Suas visitas, no entanto, eram de natureza diferente das feitas porAgrippino, os Mutantes, Gil ou mesmo Rogrio e Hlio Oiticica (a quem finalmente fuiapresentado, numa ida ao Rio, pela espantosamente antenada jornalista Marisa Alvarez Lima): ospoetas concretos telefonavam antes, marcavam hora, enfim, cumpriam as formalidades ditasburguesas, enquanto os desbundados entravam e saam de nossa casa sem aviso, como sevivssemos em regime comunitrio. Essa uma das marcas distintivas entre os romnticosirracionalistas e os descendentes hiper-racionais dos simbolistas.

    Aos poucos eu ia ligando os pontos das informaes fortuitas que tivera a respeito dos concretosao longo dos anos. Ded lembrava claramente das referncias a eles feitas pelo professor YuloBrando em seu curso de esttica, quando ela estudava dana na Universidade da Bahia. Mas euno lembrava sequer de ter ouvido a expresso poesia concreta. Eu tinha guardado o nome deDcio Pignatari daquela conversa com Boal numa festa do elenco do Zumbi, em 65. Mas os nomesdos irmos Campos foram esquecidos imediatamente aps serem ouvidos quando Capinan memostrou o livro sobre Sousndrade. Lembro de ver, encantado, um poema de e. e. cummingspublicado em Salvador no suplemento cultural do Dirio de Notcias, suplemento que Glauberdirigia no incio dos anos 60. A traduo para o portugus devia ser de Augusto, que s quemtraduziu cummings no Brasil, que eu saiba (com a rigorosa superviso do autor atravs de longatroca de cartas), mas se seu nome estava impresso naquela pgina, no o gravei. J nos anos 70,ouvi Glauber dizer que comeara concretista, numa referncia a seu primeiro filme, um curta-metragem chamado O ptio, cujo formalismo, segundo ele, o desinteressou quando se viu emmeio a gente miservel na aldeia de pescadores onde, pouco tempo depois desse curta, foi filmarBarravento. Mas nem nas pginas do suplemento que ele dirigia, nem em nenhuma de suasdeclaraes pblicas da nossa fase soteropolitana, ouvi ou li dele uma s vez que fosse aexpresso poesia concreta ou os nomes de seus inventores. Eu fora, sem embargo, influenciadoindiretamente por eles, pois, aos vinte anos, em Salvador, eu fazia uma ligao entre Joo Gilberto,o cool jazz, os poemas de Joo Cabral, a arquitetura de Niemeyer em Braslia e o uso de letras tipofutura sobre generosos espaos brancos nas pginas do suplemento cultural do Dirio deNotcias. E os espaos brancos e os tipos futura eram a marca registrada da obra dosconcretistas.

    Agora, eu absorvia com grande presteza o sentido do trabalho deles. Gostava de reconhecer nos

  • poemas a complexidade que, muitas vezes, primeira vista eles no pareciam ter. Pequenos ovosde Colombo, eles poderiam parecer ao mesmo tempo demasiado bvios e demasiado artificiosos,mas em muitos deles tinha-se de fato a experincia, defendida teoricamente pelo grupo (segundoMallarm), de subdiviso prismtica de uma ideia. E em todos a aventura de abandonarradicalmente a sintaxe discursiva. Alm disso, o arsenal crtico de que eles muniam o jovem leitorde suas publicaes, as tradues (que Haroldo prefere chamar de transcriaes) de autores eobras que lhes parecessem essenciais (alguns Cantos de Pound, poemas de Mallarm, osmetafsicos ingleses, os trovadores provenais, trechos escolhidos do Finnegans Wake ,cummings, poesia japonesa etc.), e sobretudo uma alternativa crtica viso da histria daliteratura brasileira que a tem como inevitavelmente perifrica e desimportante tudo isso faziados nmeros da revista Inveno, dos livros que eles nos davam e das conversas com eles algoinstigante e animador.

    Haroldo e Dcio no transmitiam a mesma impresso de distncia que Augusto sempre me deu.Dcio sobretudo com seu sotaque paulistano italianado (isso, em So Paulo, significa popular:mesmo os negros e os judeus e at alguns nisseis de So Paulo tm sotaque italiano), seubrilhantismo agressivo e sua vivncia entre publicitrios e estudantes de comunicao eraalgum naturalmente prximo. Magro e narigudo, bigode e cabelos encrespados, ele tinha um ar destiro. E uma esperteza mundana no falar que me deixava totalmente vontade. O que eu dissesobre seu texto na revista Inveno serve para seu convvio pessoal. Suspeito que as mesmasideias defendidas por Augusto no artigo que Alex ps em minhas mos, se expostas por Dcio e noseu estilo, teriam me conquistado imediatamente, como Bethnia conquistou minha ateno para aJovem Guarda com um simples comentrio.

    Haroldo, gordo e de voz metlica, sem italianismos que manchassem a pureza de seu sotaquepaulistano, animava a sala com seu exuberante misto de rigor e bonomia. Ele no deixava aconversa cair e exibia seu domnio da lngua e sua imensa erudio sem parecer pedante ou deixaros ouvintes por menos cultos que fossem de fora. Augusto, tendo ido mais longe do quequalquer outro sem sair do seu tom isento e comedido, tinha me levado a pensar que o brilhantismode Rogrio, de Glauber, de Waly o meu prprio, que eu tendia eloquncia se o interlocutorno me intimidava talvez se devesse a um narcisismo que antes dificultava do que iluminava oacesso a ideias pertinentes e descobertas substanciais. Eis que seus dois companheiros sofriam domesmo mal. Mas bem cedo vi que as coisas no so simples assim. Augusto sem dvida comoCapinan, como Cac Diegues parecia desprovido desse prazer narcsico no conceber as ideias eno proferir as palavras. (A bem dizer, era como se em nenhum momento de sua formao eletivesse ouvido o canto de sereia contido na palavra romntica gnio; ao contrrio de Glauber, eleno fazia pensar no verso horroroso de Castro Alves: Eu sinto em mim o borbulhar do gnio.) Eh inegvel indulgncia na fruio do prprio ego no elenco em que me inclu. Mas a excelnciados resultados e mesmo a confiabilidade dos propsitos no pode ser aferida dessatipologia, porque no se d na razo direta dessas diferenas. Augusto simplesmente o queafinal mais coerente com o programa concretista no tinha gosto pela retrica. No deixava deser curioso, contudo, que, desse grupo de poetas de vanguarda que nos procurou, o mais prximode mim fosse justamente o mais distante.

    Passei a frequentar tambm a casa de Augusto. Ele, a mulher Lygia e o filho Cid, ento ainda ummenino (Roland, o filho mais velho do casal, era arredio e nunca participava das conversas na sala

  • hoje astrofsico e realiza pesquisas na Universidade de Braslia), quase sempre Haroldo,acompanhado de sua mulher Carmen, e, mais raramente, Dcio, nem sempre com sua mulher Lila,mais Torquato ou Gil ou algum dos msicos de vanguarda (Rogrio Duprat era o mais assduo),alm de mim e de Ded, formvamos um grupo conversador na sala visualmente limpa doapartamento nas Perdizes. Alguns poemas visuais em grandes tipos futura enquadrados nasparedes, uma boa reproduo da Grande Jatte de Seurat e um quadro de Volpi, alm de algumacoisa dos pintores concretos de So Paulo, davam a sensao de uma sensibilidade a um tempoaberta e meticulosa. O gosto pelas formas geomtricas e pelo acabamento definido refletia antesdelicadeza de esprito do que contrao neurtica: sendo uma sala viva e aconchegante, porosa earejada, era uma prova singela de que Mondrian e Bauhaus, formalismo russo e tipografismoamericano no desembocam necessariamente em escritrios de executivos e agncias depublicidade.

    Ali ouvamos Charles Ives, Lupicnio, Webern e Cage, e falvamos da situao da msicabrasileira e dos festivais. Ns, os jovens tropicalistas, ouvamos muitas histrias de personagensdo movimento dad, do modernismo anglo-americano, da Semana de Arte Moderna brasileira e dafase heroica da poesia concreta. Trocvamos opinies com naturalidade, sem que a grandediferena de volume de conhecimentos (e de aptido mental para lidar com eles) fosse motivo paraconstrangimentos. uma experincia brasileira que representa motivo de orgulho, pois a confusoda alta cultura com a cultura de massas, to caracterstica dos anos 60, pde, nesse caso, produzirfrutos substanciais, e, no refluxo da onda quando todo o mundo sentiu necessidade de voltar santigas classificaes , os sujeitos envolvidos conseguiram, apesar de alguns episdiosdolorosos, manter o dilogo, e as amizades essenciais foram poupadas. Meu entendimento comAugusto de Campos, sobretudo, talvez por ser o potencialmente mais difcil, tem mostrado umaresistncia considervel.

    O tom com que escrevo as palavras deste livro deve revelar ao leitor atento um misto de respeito quase reverncia e sem-cerimnia em face dos assuntos srios, dos temas nobres e dosestilos superiores. Essa mesma mescla em dosagens s vezes desequilibradas j era um traomeu quando, adiando estudos e uma carreira de cineasta, eu cumpria (com prazer) o papel de dolode tv, em nome da paixo pela linha evolutiva da nossa msica popular. Minhas opinies sobreautores clebres, expressas de modo s vezes desabusado, eram acolhidas com benevolncia poresses professores: eles estavam excitados por ver em ns a encarnao de tantos dos seusargumentos. Mas eles nunca agiram de forma condescendente, e os erros que eu (mais que todos)cometia por ignorncia afoita eram sempre apontados com delicadeza mas com deciso. De todomodo, eu era sempre mais extrovertido e opinioso se Dcio e Haroldo e toda a turma de baianos etropicalistas estivessem presentes do que se me visse s com Augusto.

    A espantosa concordncia de nossas posies com as ideias deles e a natural unio contra osataques inimigos retardavam o confronto das diferenas e eventuais discordncias. Ou mesmo oesclarecimento de dvidas. Darei um exemplo que poca j se me apresentava como tal: asemelhana apontada por Augusto, em conversas e, depois, num artigo escrito em 69, entre o nossotrabalho e a poesia dos trovadores provenais. A nfase caa sobre a adequao das palavras msica. Ora, eu vinha sendo, continuaria a ser e ainda sou um caymmiano na tica de JooGilberto. Achava que em Caymmi a palavra cantada recebia o tratamento mais alto que se pode

  • conceber: sempre espontnea, revelava, no obstante, ter passado por um crivo severo. As canesde Caymmi parecem existir por conta prpria, mas a perfeio de sua simplicidade, alcanada pelapreciso na escolha das palavras e das notas, indica um autor rigoroso. So o que as canesdevem ser, o que as boas canes sempre foram e sempre sero. Um canto tuva, um Lied deSchumann, uma balada de Gershwin, a Like a sick eagle de Ives, tm que se confrontar comSargao mar, L vem a baiana e Voc j foi Bahia: so todas incurses no essencial darealidade da cano. Foi assim que Joo Gilberto entendeu a Rosa morena de Caymmi, por eleeleita como tema para a construo do estilo que veio a se chamar de bossa nova. Foi assim que ogrande esforo de modernizao de Joo se apoiou na modernizao sem esforo de Caymmi. A umtempo impressionista e primitivo, mas tambm o maior dos inventores do samba urbano-moderno,Caymmi tem pelo menos tanto peso na formao da bossa nova joogilbertiana quanto OrlandoSilva, Ciro Monteiro, a cano americana dos anos 30 e o cool jazz. E, mais do que pesoequivalente, Caymmi tem, acima desses outros componentes, o carter normativo geral, ahegemonia esttica do estilo de Joo. Tudo em Joo presta contas a ele: do senso de estrutura dico.

    Esse cultivo da palavra cantada que encontra excelncia em Caymmi tal como ele foi ouvido porJoo o filtro seletivo da bossa nova: produziu a guinada na msica de Tom e na poesia deVinicius. E era tudo o que de mais exigente eu podia conceber em termos da arte de combinarpalavra & som, como explicava Augusto o motz el som provenal de Pound. Era tambm o queChico Buarque buscava (e frequentemente encontrava) na perseguio da beleza que ele adivinhounas letras de Vinicius: diferentemente do que fazia Edu Lobo ou Marcos Valle e diferentementedo que fariam Milton Nascimento e os mineiros alguns anos depois , Chico se agarrava purezadessa linha, sem mostrar receptividade s exterioridades falsamente modernizantes vindas, fosse doBeco das Garrafas, fosse dos espetculos do Arena. Ele trabalhava exclusivamente com oselementos que eu tentara (quase sempre em vo) preservar intactos em nossa produo, desde o lpde Bethnia. Por trs da rivalidade entre mim e Chico, deve-se procurar ver a grande identificao.O tropicalismo veio para acabar com os resguardos, mas, se havia alguma coisa que eu prpriotinha querido resguardar, era exatamente o que Chico continuaria cultivando e polindo. Assim, era-me difcil aceitar sem perguntas a afirmao de que em nossas ruidosas letras tropicalistas que seproduziam equivalentes do trobar ric do miglior fabro Arnaut Daniel.

    As primeiras leituras dos provenais traduzidos por Augusto, embora revelassem uma beleza euma engenhosidade impressionantes, no esclareciam por que, por um lado, eles eram o pice dahistria da palavra cantada, nem, por outro, por que, entre ns, no era Caymmi (ou Chico) quemmais se aproximava deles, e sim Gil e eu. Ou por outra: os exemplos dados por Augusto eram detodo convincentes do nosso parentesco com esses poetas, mas no de que as nossas canes e asdeles subissem mais alto que as de Caymmi no item motz el som. Relendo a entrevista queAugusto fez comigo em 68, fiquei chocado com a observao feita por ele de que minha canoClara cujo parentesco com os procedimentos dos provenais ntido tinha uma limpeza,uma enxutez, que no h em Caymmi: essas virtudes sempre me pareceram virtudes caymmianaspor excelncia. A limpeza e a enxutez de Joo Gilberto foram aprendidas com Caymmi, vm dele.No posso negar que, com o passar dos anos, a releitura dos provenais mais as muitas outrasleituras e audies de coisas muito outras me levou a perceber melhor o sentido das apreciaes

  • de Augusto. Entendi cada vez mais claramente que ele, dedicado a estar sempre avaliando um vastomundo diversificado de experincias com palavras e sons, desenvolvera um ouvido com exignciaspor vezes de natureza diferente da natureza daquelas que eu mesmo alimentava. Mas minha opiniosobre Caymmi no mudou. E considero significativo que, tal como acontecera com Boal, e emborano caso dos concretos no tenha havido discrdia, Caymmi tenha sido o ponto em que as diferenasde viso no puderam mais deixar de se perceber.

    Um dos meus escrpulos mais resistentes tem sido, desde esses tempos referidos como hericos,o de submeter todas as minhas pretenses pergunta: em que medida a oportunidade que se meofereceu de brilhar como grande figura na histria recente da mpb se deve queda de nvel deexigncia promovida pela mesma onda de ostensiva massificao que eu contribu para criar?Augusto ao contrrio dos meus colegas compositores, que temiam uma regresso ao primarismo via no que fazamos uma supersofisticao. E apontava isso em duas frentes: no aspectopardico-carnavalesco e no aspecto inventivo-construtivista. Eu achava que, mais do que atentadopara os meus conseguimentos, ele tinha lido meus sonhos. E eu no tinha dvida de que os sonhosde Carnaval estavam mais reconhecveis nas realizaes do que os de slida construo formal.Havia um vazio entre o resgate por Augusto e a rejeio pelos colegas que no podia serpreenchido pelo sucesso popular nem pela notoriedade culturalmente escandalosa. Augusto porvezes contava que Erik Satie, sem poder competir com Debussy em inveno harmnica, optarapelo avesso da msica. E conclua que, do mesmo modo, os tropicalistas tinham optado peloavesso da bossa nova.

    O elo perdido se apresentou como que miraculosamente. Augusto, tendo ido a Nova York paraalgum evento ligado sua produo potica, falou pessoalmente com Joo Gilberto e este no sdemonstrou total ausncia de preconceito contra os tropicalistas como carinho e interesse pelogrupo e seus planos. A narrao desse encontro, alis, resultou numa reportagem que a nicaaventura de Augusto na prosa narrativa. Uma verdadeira pequena obra-prima de conciso em queJoo aparece retratado como nunca antes ou depois. Esse belo texto veio a integrar o livro Balanoda bossa, cuja capa uma montagem de fotografias em que Joo parece estar me olhando do alto,enquanto estou sentado no cho do palco ecoa o recado que Augusto traria dele para mim: Digaa Caetano que eu vou ficar olhando para ele.

    Na defesa ostensiva dos tropicalistas, Augusto deixava ver no apenas como se desenvolvera suacombatividade mas tambm como esta mesma combatividade criara-lhe limitaes. Muitas dessaslimitaes eram assumidas como uma escolha lcida. Assim, ele dizia com frequncia que no era,no podia e no queria ser imparcial. Ao contrrio, aprendera desde a fase heroica doconcretismo que tinha de ser parcialssimo. A impermeabilidade a nuances que o iderioconcretista exibia, sua deciso de bater na mesma tecla de valorizao das atitudes de vanguarda,em detrimento de uma exibio mais autocomplacente da abrangncia e do refinamento dainteligncia de seus lderes, rendeu-lhes a censura de monolgicos por parte de seus detratores.Li de algum destes ltimos a observao de que o pensamento dos concretos levava a conclusesesdrxulas como, por exemplo, a de que Lewis Carroll melhor do que Dostoivski. Augusto,Haroldo ou Dcio nunca se deixaram impressionar por argumentos desse tipo, sempre mantendo anfase no experimentalismo como um contrapeso do conformismo mediocrizante. Havia, no entanto,alguma coisa nas argumentaes de Augusto que eu cria apontarem para um problema para mim no

  • resolvido talvez insolvel em toda vanguarda. Esse problema diz respeito ao progresso nasartes. No que os concretistas parecessem no atentar para ele. Haroldo de Campos sempreprocurou deixar bem claro, em seus textos tericos, que a poesia concreta se lana a umasuperao crtica relacionada a um vetor que tem tudo a ver com as exigncias do tempo enada a ver com juzo de valor. Mas nem por isso estava para mim dada a questo por encerrada.

    O que me parecia uma fraqueza nas observaes tanto de Augusto quanto de seus amigos msicosde vanguarda era a insero de Joo Gilberto na linhagem de Mrio Reis, cantor de sucesso nosanos 30, cuja voz pequena ficou de moda com o advento dos microfones modernos. Mrio cantavaquase falando, em staccato, s vezes separando as slabas das palavras, numa relao regular comas barras rtmicas, sem usar adornos de espcie alguma. claro que eu reconhecia a identificaoexterior com Joo, na desdramatizao e no pouco volume. Mas Joo um cantor de grandes legati,de fraseado flutuante e de incrveis jogos rtmicos. Seu estilo vem de Orlando Silva, o grandemodernizador do canto brasileiro. A voz potente (mas sempre usada com natural suavidade) e osornamentos de Orlando levam muitos ouvintes a andar em erro julgando que Joo est afastadodele. Sem dvida, Joo revaloriza tambm Mrio Reis, e h (como me lembrou o cineasta JlioBressane), nos dois casos, a obsessiva fidelidade a um mesmo repertrio sempre revisitado e quecresce a conta-gotas. H um minimalismo que os aproxima. Mas num certo sentido Joo o anti-Mrio: fazendo de sua voz um instrumento entre outros, ele , como Orlando, um supercantor,enquanto Mrio, com sua recusa de entregar-se s melodias, tira seu charme de ser um subcantor ouanticantor. Dava-me a impresso de que algo do modo como esses vanguardistas de So Pauloouviam a bossa nova era superficial. A seleo mesma que Augusto fazia dos exemplos norepertrio da bossa nova indicava uma discrepncia entre nossos gostos. Sempre mais apaixonadopela religao feita por Joo Gilberto entre a ponta da modernidade e a melhor tradio brasileira que foi o que fez a grande diferena da bossa nova em comparao americanizao algo tolados seus predecessores dos anos 40 e 50 (e de alguns de seus supostos seguidores dos 60 emdiante) , eu via em Chega de saudade a cano-manifesto e a obra mestra do movimento: anave-me. Um samba com algumas caractersticas de choro, riqussimo em motivos meldicos, deaparncia to brasileira quanto uma gravao de Slvio Caldas dos anos 30 (e com uma introduode flauta inspirada numa gravao de Orlando Silva), Chega de saudade era ao mesmo tempouma cano moderna com ousadias harmnicas e rtmicas que atrairiam qualquer jazzista bop oucool (como de fato vieram a fazer). Por outro lado, o ttulo e a letra sugeriam umarejeio/reinveno da saudade, essa palavra que um lugar-comum na lrica luso-brasileira e umemblema da lngua portuguesa, pois, alm de ser um acidente etimolgico inexplicado, cobre umcampo semntico revelador de algo peculiar em nosso modo de ser. Uma luxuriante composiocheia de lugares-comuns incomuns (para usar uma expresso do prprio Augusto ou talvez sejade Dcio , extrada de outro contexto) e de novidades que soavam como atavismos ouexperimentaes que pareciam lembranas , essa cano era o exemplo generoso daquilo queTom, Joo, Vinicius e Cia. queriam oferecer, e continha todos os elementos que estariam dispersosnas outras. Ela era o regime geral da bossa nova, o mapa, o roteiro, a constituio. Pois Augusto,ao coment-la brevemente, destaca apenas a paronomsia colado assim, calado assim, comosendo o que havia de interessante numa cano de outro modo convencional. Na verdade, essemomento em que a melodia de Jobim se lana mais a intervalos inusitados, e a letra de Vinicius

  • tambm se mostra formalmente inventiva (conscientemente inventiva), contm em si oDesafinado e o Samba de uma nota s. Mas, tanto para Augusto como para os msicos devanguarda paulistas, estas duas ltimas que eram as canes-manifestos do movimento, as quemais abrangentemente o representavam. preciso notar, no entanto, que Augusto no se dedicou aescrever sobre a bossa nova: o breve comentrio de Chega de saudade est relatado num artigode Brasil Rocha Brito como trecho de uma entrevista. Ele escreveu sobre ps-bossa nova: JovemGuarda, Fino da Bossa, tropicalismo. E o fez de modo to lcido e oportuno que de se crer quese ele tivesse parado para escrever sobre bossa nova nenhum dos seus aspectos essenciais lheteriam escapado. Mesmo porque, at o engano em relao questo Mrio Reis ou Orlando Silvatinha sido superado por Jos Lino Grunewald, o brao carioca da poesia concreta, poeta, tradutordos Cantos (completos) de Pound e amante da msica popular dos anos 30. Augusto certamente oouviria e reouviria Orlando, Mrio, Slvio Caldas e muitos mais, antes de sentar-se para escrever.O velado de Joo Gilberto, escreveu Grunewald, vem de Orlando Silva, no de Mrio Reis.

    Augusto formulou, anos depois, no prefcio a um livro de tradues de Ovdio a Rimbaud, a ideiada poesia como uma famlia dispersa de nufragos bracejando no tempo e no espao. Apesar de,nesse mesmo texto, Augusto dizer que o antigo que foi novo to novo quanto o mais novo novo,como que a indicar apenas que ele se filia a uma milenar linhagem de vanguardistas, sempre sentique, subjacente ao critrio do avano, est a viso sincrnica. Isto no nenhuma descoberta: emtextos to claros e to entusiasmados quanto os que apontam para uma esttica do novo, osconcretistas (sobretudo Haroldo) defenderam uma crtica de mirada sincrnica, trans-histrica. Oque eu quero dizer que esse aspecto do aparato terico deles me atraiu mais e me pareceu maisprofundo neles mesmos do que a paixo da novidade. como se a campanha do novo no fosseseno uma estratgia de manuteno da altura do nvel de exigncia. As rupturas modernistaspodem ser explicadas de diversos ngulos, mas inegvel o carter de revitalizao do acervoamado embutido em muitas atitudes aparentemente destrutivas. Stravinsky e Schnberg parecemempenhados em que ouamos Bach com melhores ouvidos e no em que deixemos de ouvir Bachpara passar a ouvi-los apenas a eles. Se arriscarmos olhar bem fundo, talvez cheguemos concluso de que os modernismos representaram antes uma luta contra a iminente obsolescncia deum passado belo em via de banalizar-se; de que nunca, como no modernismo, a arte foi toprofundamente conservadora. A luta era, foi, sobretudo contra o academicismo. O artista,aristocrata supremo, no poderia submeter-se vulgarizao burguesa que queria distribuirfrmulas prontas, usveis por qualquer um, para se consumir e produzir arte. Era preciso mostrarque a arte terrvel e que difcil: voc no pode passar inclume por Velsquez, por Mozart oupor Dante. Mas a tenso entre esse aristocratismo (que no limite terminaria por negar o prpriotrabalho do grande artista moderno) e a necessidade de afirmar-se o modernista como um produtornovo de objetos artsticos de primeira linha (o que, em ltima instncia, levaria defesa do futuroburgus e popular e da disparada tecnolgica) que produziu toda a gama de movimentos do finaldo sculo xix ao incio do sculo xx, dos impressionistas aos expressionistas, dos construtivistasaos surrealistas, de Marinetti a dad, de Duchamp a Mondrian. Como quer que seja, eu, um merocantor de rdio, mimado (mas no muito, que eles so realmente responsveis e consequentes) poresse bando de eruditos, via-me metido numa guerra que exigia definio quanto a essas questesto abrangentes, e isso me excitava. Parecia-me que eu estava realizando aquele programa de ser

  • poeta por outras vias que no as do poema impresso. Alis, no estava longe de confirmar essailuso Augusto ao dizer que o que havia de interessante em poesia brasileira a informaonova tinha migrado das pginas dos livros para as vozes da cano popular. E, maisprovocadoramente ainda, que Villa-Lobos era um diluidor em sua seara, enquanto Gil e euramos inventores na nossa.

  • ChicoAugusto escreveu alguns artigos sobre nosso trabalho e os foi publicando em jornais de So Paulo,no calor da hora. Depois ele os reuniu no livro Balano da bossa, ao lado de ensaios dos seusamigos msicos eruditos sobre a bossa nova. Eu me orgulhava da ateno que tnhamos despertadoneles. Mas, se por um lado eu entendia e admirava a parcialidade de Augusto, por outro, as sutisdiferenas que havia entre ns no me permitiam aderir sem reservas a todas as suas posies. Oumelhor: me resguardaram de tomar suas discriminaes como dogmas. Sua verso da oposioinevitvel entre o que fazamos e o que Chico vinha fazendo, por exemplo, embora me parecessebasicamente correta e fosse exposta sempre em termos conscienciosos e equilibrados, nunca abaloumeu amor especial pelo estilo, pela pessoa ou pela importncia histrica de Chico Buarque. EAugusto sempre respeitou essa obstinao que muitas vezes chegou a ser explicitada em conversas.De todos os tropicalistas, Gil era o que mais firmemente mantinha a clareza exigida em relao aisso. E muitas vezes conversvamos os dois a respeito. Ns sabamos que grande parte da mpbreagira mal ao que estvamos fazendo: Edu Lobo, Francis Hime, Wanda S, Dori, Srgio Ricardoe, mais que todos, Geraldo Vandr, mostravam-se meio irritados, meio decepcionados conosco.No espervamos que Chico tivesse uma posio substancialmente diferente. Mas ele era diferentepara ns. Por um lado, as opinies dos outros no tinham tanto peso para ns quanto as de Chico;por outro, eles no estavam sendo confrontados conosco sobretudo comigo como Chicoestava. Este, portanto, se encontrava mais perto de ns. Minha primeira lio sobre as armadilhasda imprensa se deu exatamente por causa disso. Uma moa simptica, entrevistando-me para arevista InTerValo (o T e o V maisculos indicavam ser uma publicao especializada emteleviso), perguntou-me como eu via a diferena entre mim e Chico. Eu, estimulado pelaoportunidade e crendo que minha aula ia ser publicada , expliquei-lhe que o que eu faziaera expor o aspecto de mercadoria do cantor de tv. Que tanto eu quanto Chico estvamos dizendomuitas coisas com nossas canes, mas que, do ponto de vista da televiso, eu era um cara decabelo grande e Chico um rapaz bonito de olhos verdes; e que quanto mais desmascarado estivesseesse jogo, mais nossas canes e nossas pessoas estariam livres. Poucos dias depois saiu areportagem com minha declarao sumria de que Chico Buarque no passa de um belo rapaz deolhos verdes.

    Tom Z, que nunca fora um bossa-novista (eu o convidara a vir de Salvador exatamente porperceber que seu talento satrico e seu adestramento terico-musical lhe assegurariam um lugar noprograma tropicalista), no tinha esses cuidados com Chico Buarque. Perguntado num programa deteleviso sobre o confronto tropicalistas versus Chico, respondeu que, de sua parte, respeitavamuito Chico Buarque pois ele nosso av. Lembro de, ao ser informado dessa histria (pois euno tinha tv em casa), rir s gargalhadas com Guilherme, comentando o fato de eu ser dois anosmais velho do que Chico e Tom Z seis anos mais velho do que eu. Eu no achava que deviaprocurar Chico para explicar a matria da InTerValo (antes do tropicalismo j no nos estvamosvendo quase nunca), por outro lado, no queria policiar as falas pblicas dos meus colegas. Tivealgumas discusses com Torquato por causa disso (ele estava se tornando um tropicalista sectrio),mas, na verdade, eu no me preocupava demasiadamente: minha confiana em que nossainterveno resultaria bem para todos era total; mais cedo ou mais tarde, Chico (e todos os outros)saberiam que no havia nem hostilidade contra eles nem ambies comercialescas no nosso

  • projeto. Eu estava mais certo disso ento do que estou hoje. Alm do mais, Chico fora, como jcontei, convidado por Gil para reunies esclarecedoras dos nossos novos propsitos, e no lhedera ouvidos.

    Um episdio, no entanto, me pareceu inaceitvel. J no final de 68, Gil estava com Sandra, airm de Ded com quem ele comeava um namoro, numa frisa do Teatro Paramount, onde serealizava uma eliminatria do festival da Record daquele ano. Um grupo de pessoas na plateiarecebeu a entrada de Chico no palco aos gritos de superado!, superado!. Gil comentou comSandra que aquilo era inadmissvel. Levantou-se e investiu contra os manifestantes. Um jornalistaquis ver e assim publicou depois no seu jornal que Gil havia liderado uma vaia ao Chico.No li essa notcia e creio que Gil tampouco a leu. Ouvimos falar no assunto com um certo atraso.Hoje todo o mundo que escreve sobre os acontecimentos de ento se compraz em dizer que haviadois lados que se confrontavam nesses festivais: um a nosso favor, outro a favor de Chico. Ascoisas no eram assim. Ns ramos sistematicamente vaiados pelos apoiadores de Chico, mas ele com exceo desse esboo de agresso verbal que Gil, para seu infortnio, tentou conter nunca foi vaiado pelos nossos, que no chegavam a ser um nmero perceptvel numa plateia. Chicofez publicar um protesto contra a possvel atitude de Gil. Desde o primeiro momento eu meindignei. Gil achou tudo de um absurdo imenso, mas no quis procurar Chico para desfazer o mal-entendido. Ele achava, entre outras coisas, impossvel que Chico acreditasse na verso que chegouat ele. E depois disso os acontecimentos se desencadearam de forma to dramtica, em to poucotempo, que no me foi possvel convencer Gil de agir com firmeza nesse caso. Nunca me conformeicom isso, e ainda hoje me indigno com os historiadores do perodo, que contabilizam as vaias doFestival Internacional da Cano uma tentativa da tv Globo do Rio de seguir a tv Record deSo Paulo, de que ns nunca chegamos propriamente a participar, e que, de resto, nos pareciaabsolutamente desinteressante , vaias que atingiram Chico (junto com Tom) por razes de outraordem, para dar a impresso de que naquele tempo era assim mesmo, que ns nos agredamosmutuamente atravs de nossos imensos pblicos antagnicos. At que fssemos presos e exilados, opblico predominantemente estudantil desses programas esteve coeso contra ns. Deixei de falarcom o jornalista Zuenir Ventura por ele ter pedido meu depoimento sobre o perodo mormentesobre o episdio da suposta vaia de Gil a Chico e depois ter publicado um livro em que no smeu veemente desmentido no parece ter sido levado em conta como tambm esse quadro de duasforas rivais de mesmo peso se enfrentando se reitera. Um quadro no qual os artigos de Augustoaparecem injustos e desproporcionais. Exatamente o contrrio do que eles foram.

    Claro que havia uma agressividade necessria contra o culto unnime a Chico em nossas atitudes.Quando gravei, em 69, a Carolina num tom estranhvel, eu claramente queria, entre outrascoisas, relativizar a obra de Chico (embora no fosse essa, ali, a principal motivao). Gil, numaentrevista dada a Marisa Alvarez Lima pouco antes de irmos para Londres (cujo contedo s vim aconhecer recentemente), fez questo de frisar a inteno crtica da minha escolha. Seriadesnecessrio faz-lo, se se pensa na referncia a A banda na letra de Tropiclia, no esboode pardia dessa mesma cano embutido em Alegria, alegria, e na meno prpria Carolinana letra de Geleia geral. A mera valorizao que fazamos do trabalho de Paulinho da Violaimplicava um grito de independncia em relao hegemonia do estilo buarquiano: tal comoChico, Paulinho voltava-se para o samba tradicional, mas, diferentemente dele, fazia-o sem o filtro

  • da bossa nova. Com efeito, embora menos profcuo e muito menos dotado, como poeta, do queChico, Paulinho era um caso milagroso em nossa gerao: ele no parecia sequer ter ouvido Joo,Tom ou Lyra. Como era jovem, mostrava-se tambm disposto a partir para experimentaes einovaes, mas estas no nasceriam como tudo meu, de Edu, de Chico, Gil ou Jorge Ben douniverso esttico ps-bossa nova. Isso dava um encanto especial a suas criaes. E nossainsistncia em ressaltar sua importncia (eu o fazia desde o artigo da ngulos, de 65) punhatambm a questo da volta tradio em perspectiva diferente da consensual, que tinha Chico comoa sntese final da dialtica da composio de msica popular no Brasil. No , portanto,despropositada nem surpreendente a reao magoada que Chico externou numa entrevista aoPasquim em sua volta da Itlia, depois de anos de autoexlio. Entrevista que, alis, ele quis excluirda seleo feita pelo Pasquim para publicao em livro. preciso ter em mente que a glriaindiscutvel de Chico nos anos 60 era um empecilho afirmao do nosso projeto. Porque, emprincpio, todos os seus apoiadores (que eram virtualmente todos os brasileiros) deveriam nosrejeitar. O mximo que podamos fazer o que Gil tentou fazer naquele episdio desastrado era mostrar a quem ia se tornando partidrio de nossa viso que no era preciso agredir Chico paraafirm-la. Porque estvamos seguros de que a criao de Chico, ela mesma, ganharia com arelativizao alm de ser estimulada por novos desafios. A imprensa naturalmente preferiaacompanhar as manifestaes mais infelizes, que dessem uma impresso de disputa mesquinha no que no estava necessariamente errada, pois o jornalista no deve mesmo estar disposto a crerna complexidade das boas intenes das celebridades que ele ajuda a criar. Muito do absurdo quese l nos jornais a voz inconsciente dos agentes dos fatos relatados e no apenas a maquiavlicamaquinao dos donos de jornal e a mediocridade de um ou outro miservel que precisa segurarseu emprego nas redaes. Mas isso no quer dizer que eu deva, de minha parte, me submeter sverses sinistras que resultam de sua atividade. Apenas que preciso saber ler os jornais de modopsicanaltico. Ainda hoje parece aos jornalistas mais voluptuosos extrair uma farpa de uma falaminha contra Chico (ou vice-versa) do que examinar o sentido de toda essa dificuldade terresultado num crescimento da produtividade dele como da nossa alm de um amadurecimento eaprofundamento da nossa amizade. No de forma nenhuma o caso de termos estado brigando nopassado e estarmos posando de sempre amiguinhos agora. Chico foi, em todas as oportunidades, omais elegante, discreto e generoso de todos os nossos colegas. Conheo-o bem e sempre soube que isso que ele , alm de um virtuoso das rimas e dos ritmos verbais: um sujeito excepcionalmenteelegante, discreto e generoso. poca mesma em que o enfrentamento de nossos projetos se deu,eu no tinha dele outra imagem. A imprensa e a opinio pblica, porm, preferiam crer numadisputa caricatural. A briga real com Vandr, por exemplo, tem sido, no entanto, perfeitamenteignorada pela imprensa, agora como ento. Simplesmente no era excitante o suficiente e erareal, ou seja, muito complexa para ser acompanhada. Toda energia precisava (precisa) estardedicada a empobrecer as relaes entre os grandes. Com isso, fora-se o esquecimento de umaconquista esttica, profissional e humana de que o Brasil no poderia abrir mo. Esta a razo demeu tom revoltado quando abordo a questo.

  • VanguardaNos anos 70, um amigo meu de Salvador, Breno, filho do meu antigo professor de histria da

    filosofia, Auto de Castro, supondo que ia me ofender em minha possvel ortodoxia concretista, medisse que no dava valor a inovaes ou invenes no campo da arte. E me citou no sei quem queteria dito que Bartk era o menos inovador e o mais original dos grandes msicos modernos.Breno era ainda um menino ento. E isso s reforava a inteligncia da citao que ele escolherapara destruir meus provveis argumentos. Eu, como no pertencia a nenhuma ortodoxia, em vez decontrapor o que quer que fosse ao que ele me disse, fiquei comentando a beleza sagaz da tirada, etivemos assim uma conversa prazerosa. A natureza quantitativa dos critrios de julgamento dosconcretos a classificao poundiana de inventores, mestres e diluidores, a teoria dainformao de Abraham Moles, as anlises jakobsonianas, o pensamento de Max Bense etc. deixa sempre a impresso de que se est negligenciando o que de fato interessa em arte, ou seja,impor qualidades de percepo do mundo. Com efeito, desde os primeiros textos tericos domovimento, eles ridicularizaram o inefvel e o sublime. No entanto, ao ler, muitos anos depois,a afirmao de Augusto de Campos de que, ao contrrio do filsofo que aconselha calar-se o queno pode ser dito (Wittgenstein), o poeta deve continuar dizendo o indizvel, encontrei antescoerncia do que contradio entre esta eleio do indizvel e aquela rejeio do inefvel. Poucoimporta que as duas palavras sejam, tudo apurado, sinnimas: por trs dos close readings e daestatstica de vogais e consoantes, o fenmeno sensvel e qualitativo que tem a ltima palavra.Como disse Dcio Pignatari em Comunicao potica, seu lindssimo manual para jovensinteressados em poesia, aqui pode-se ensinar como se faz um poema, mas no como se faz umpoeta. Se eles defendem uma objetividade que protege a apreciao potica contra os caprichos ea irracionalidade porque sabem que aqueles e esta servem frequentemente manuteno dehbitos arraigados que resultam em servido para o poeta. Quando Augusto, defendendo o alegadocerebralismo dos metafsicos ingleses, diz que a verdadeira funo tica do poeta implica umarecusa a se deixar transformar em objeto, a permitir que faam dele uma juke box de titilaessentimentais, est dando uma pista para que qualquer bom entendedor possa discernir entre poesiae guerrilha esttica no concretismo.

    Assim, na famlia dispersa de poetas bracejando no espao-tempo sincrnico, os concretossalientam os nomes daqueles que representam essa defesa da lucidez da linguagem poetas docdigo antes que da mensagem , aqueles que, nas palavras de Augusto, lutaram sob umabandeira e um lema radicais a inveno e o rigor. Aqui ressurge enriquecida a afirmaoesquemtica de que o antigo que foi novo to novo quanto o mais novo novo. Hoje h muitagente se perguntando o que que afinal significou o modernismo, em que medida Webern podeobsoletar Brahms, ou que sentido devemos dar ao fato de que John Cage jogando moedinhas do IChing e lendo Finnegans Wake ao acaso seja considerado o mais criativo msico do fim dosculo. Lembro de uma conversa que tive com Augusto em Amaralina no incio dos anos 70, emque eu lhe expunha os para mim impressionantes arrazoados de Lvi-Strauss contra a msicaatonal, concreta ou dodecafnica, na ouverture de Le cru et le cuit. Augusto, emboraacompanhando com admirao e interesse a inteligncia dos argumentos, respondeu impassvel:Todas essas coisas so muito bem pensadas, mas quem decide o que melhor para a msica soos melhores msicos. H sempre algo que s perceptvel para quem est com a mo na massa.

  • Pode-se ver nas Demoiselles dAvignon um protesto contra a vulgarizao da vida (saudades doAncien Rgime?), uma premonio dos horrores das guerras modernas, uma adaptao psicolgica disparada da tecnologia e mudana dos valores morais (novo sistema nervoso), ou um gestode libertar o olho do academicismo esterilizante: a intuio de Picasso aquilo que s est porinteiro na prpria obra necessariamente vai alm dessas conjecturas, sejam elas tomadas emseparado ou todas em conjunto. Augusto, naquele dia em Amaralina, estava me dando uma chavepara lidar com os problemas deste nosso mundo ps-utpico (como Haroldo preferiu cham-lo numartigo dos anos 80).

    Em 68, Augusto mostrou-se impressionado com as declaraes arrancadas por um reprter a PaulMcCartney de entusiasmo por Stockhausen. Ouvindo, nos anos subsequentes, o pop doce edesossado que Paul produziu e a enxurrada de canes programadamente digestivas ouprogramadamente transgressivas que se seguiram ao espetacular crescimento do mercado demsica pop depois dos Beatles , pode-se imaginar o fastio e o dessabor de um homem comoAugusto diante da cano popular. E os tropicalistas no estiveram fora da roda. Eles mesmos ns... teriam cedo ou tarde que exibir, de forma mais ou menos nobre em cada caso, as marcasde origem da atividade que escolheram: produo de canes banais para competir no mercado.(Sendo que, no Brasil, o crescimento desse mercado significa, em si mesmo, uma conquistanacional.) Augusto segue combatendo pela msica impopular: Boulez, Stockhausen, Berio, Varsee Cage mais Giacinto Scelsi, Luigi Nono, Ustvlskaia etc. A resistente impopularidade damsica culta mais inventiva realmente uma esfinge. (Otto Maria Carpeaux escreveu que a msicasempre esteve na retaguarda.) E o lampejo de euforia de Augusto em face do possvel (mas noulteriormente desenvolvido) interesse do jovem McCartney por Stockhausen em 68 era a fugazesperana de decifrao do enigma. Produssumo, como j disse, foi a palavra inventada pelo outroconcretista Dcio Pignatari para definir uma era em que procedimentos de vanguarda se davam emtop-hits de pop-rock. Um dos problemas mais instigantes da vanguarda e o que faz muitosartistas instigantes fugirem dela como o diabo da cruz sua dbia disposio em face daambio, que lhe intrnseca, de tornar-se a norma. Recentemente ouvi de Arto Lindsay que osmsicos e produtores dessas formas mais em voga de dance music (techno) so consumidoresvorazes justamente desse repertrio heroicamente defendido por Augusto. Assim, muito mais doque Paul pode ter ouvido Stockhausen, esses garotos ouvem Varse e Cage, Boulez e Berio. E, mediz Arto, s falam nisso. O que pensar? Nos anos 70, vozes conservadoras (e muito teis) j selevantavam para protestar contra o modernismo nas ruas. Mas onde e como se formar o ouvidocoletivo naturalmente familiarizado com a msica dos ps-serialistas ou ps-dodecafnicos? E quemundo ser esse em que uma msica assim soe como msica ao ouvido de todos? Ao verquadros de Monet, meu filho de cinco anos comentou que eles eram muito malfeitos se vistos deperto, embora parecessem bem-feitos se olhados distncia. Eu prprio no sei dizerexatamente por que a msica de Webern (sobretudo a mais radical) me pareceu indiscutivelmentebela desde a primeira audio. Sero os garotos da techno-dance um embrio de minoria de massa?O que acontecer ao ouvido tonal tal como o conhecemos se o fracasso de pblico da msica maisimpopular for superado? Quando eu vi mtv pela primeira vez, em Nova York, escrevi um artigointitulado Vendo canes (intencionalmente usando os dois sentidos da palavra vendo) em quefao perguntas um pouco mais superficiais mas que apontam na mesma direo: os procedimentos

  • de filmes de vanguarda, jogados no lixo pelo cinema srio e pelo comercial, tinham finalmente serefugiado ali naqueles filmecos de rocknroll, que eram a um tempo ilustraes errticas dascanes e anncios dos discos correspondentes. Hoje no aguento assistir a vdeos de rock pormuito tempo: o excesso de imagens esforando-se por parecerem bizarras me entedia, sobretudo navelocidade em que so editadas. Mas a questo permanece: as referncias ao Chien andalou ou aMetropolis e todo o permanente parentesco com Le sang dun pote, de Cocteau esto numvdeo de rock exatamente e apenas como formas de Mondrian na minissaia de uma puta ou s agorao modernismo ou as vanguardas comeam a perder direito a esses nomes de ruptura?

    Diante do realismo desencantado (na verdade ardendo de excitao retrgrada e pr-humanista)dos comentaristas aparentemente corajosos, prefiro continuar amando o que foi conquistado pelosmodernismos e todos os seus desdobramentos. Diante da capitulao s leis narrativas deHollywood, continuo festejando Godard. Diante dos jornalistas que atacam os filsofos franceses ealemes porque eles no escrevem de modo anglofilamente claro (jornalstico), louvo Heideggerescrevendo sobre Nietzsche, e Deleuze sobre Proust. Sado a chegada de Arnaldo Antunes eCarlinhos Brown e Chico Science contra a crtica que se submete (explicitamente!) ao nmero decpias vendidas de um cd ou intensidade e durao dos aplausos em salas de espetculo. E essafora, que para mim significa vida, eu a devo em grande parte aos poetas concretos. Sem falar nofato de que eles, em seu resgate do barroco e sua redescoberta de figuras mais ambiciosas einventivas do que muitas das que ocupam tradicionalmente a corrente central da histria daliteratura brasileira, enfatizaram, como disse o historiador norte-americano Richard M. Morse,uma nova leitura da cultura americana no mais calcada em termos de uma imagstica genealgicade troncos, galhos e rebentos que apontam para uma formao gradual de identidadestransatlnticas. a fora da viso sincrnica. E a superao da oposio centro/periferia.

  • AntropofagiaEssa viso a grande herana deixada pelo modernista Oswald de Andrade.

    Oswald foi, juntamente com Mrio de Andrade, a liderana intelectual do movimento modernistabrasileiro, lanado escandalosamente em So Paulo em 22, com uma semana de recitais eexposies que suscitaram admirao, susto e horror e lanaram as bases de uma culturanacional. As pintoras Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, o msico Villa-Lobos, e outros poetas eescritores como Menotti del Picchia, Plnio Salgado e Cassiano Ricardo tambm foram figurascentrais do movimento. Enquanto Mrio de Andrade cujo nome eu ouvia constantementepronunciado pelos meus colegas nacionalistas tinha sido a figura responsvel, normativa eorganizadora do modernismo, Oswald cujo nome eu s ouvira ser pronunciado duas vezes: pormeu colega de classe Wanderlino Nogueira Neto no curso secundrio, e naquela conversa entreRogrio e Agrippino sobre Panamrica representara a fragmentao radical, a fora intuitiva eviolentamente iconoclstica.

    Meu encontro efetivo com esse autor se deu atravs da montagem de uma pea sua, indita desdeos anos 30, pelo grupo de teatro Oficina. Eu vira um espetculo do Oficina Os pequenosburgueses de Grki em 65, na poca em que Bethnia estava com o Opinio em So Paulo. Amontagem me encantara. O estilo do diretor Jos Celso Martinez Corra era ao mesmo tempo maistradicional e mais sutil do que o de Boal. Lembro que, ao sair do teatro, pensei em como eraproblemtico que eu gostasse talvez mais daquilo do que do meu querido Arena conta Zumbi. OZumbi era um passo, uma conquista, no havia dvida, mas em Os pequenos burgueses do Oficinahavia uma sensibilidade que me reportava aos espetculos da Escola de Teatro da Bahia de ErosMartim Gonalves e do Teatro dos Novos de Joo Augusto Azevedo. Uma sensibilidade que oZumbi, muito mais esquemtico, no mostrava. E foi a viso de Os pequenos burgueses de ZCelso muito cheio de nuances, muito europeu que me deu a percepo de que o Zumbi deBoal era americano, broadwayesco. Fui ver O rei da vela a pea de Oswald de Andrade que oOficina tirava de um ostracismo de trinta anos cheio de grande expectativa. Mas no imaginavaque iria encontrar algo que era ao mesmo tempo um desenvolvimento dessa sensibilidade e uma suatotal negao.

    Z Celso se tornou, aos meus olhos, um artista grande como Glauber. Se a prpria funo dediretor de teatro indica um status menos autoral do que a de cineasta e, de fato, aquela noitesignificou para mim mais um encontro com Oswald do que com Z Celso , era inegvel que,possuidor, como Glauber, de uma intensa chama prpria, Z Celso tinha uma firmeza de mo noacabamento com que Glauber nem poderia sonhar. Seu desembarao artesanal lhe permitia fazer oespectador sentir o espao de acordo com a inteno potica profunda que lhe inspirara esta ouaquela disposio cnica, esta ou aquela movimentao de corpos, vozes e luz. O canhestro emGlauber muitas vezes intensifica a mensagem esttica Z Celso produzia tais intensificaes emacordo ntimo com seu gosto e sua capacidade de controle dos meios. A pea continha os elementosde deboche e a mirada antropolgica de Terra em transe . O primeiro ato recebera um tratamentode gosto expressionista, com o anti-heri central, Abelardo i, atendendo em seu escritrio, um aum, os devedores de seus emprstimos, que eram mantidos numa jaula e tratados s chicotadas peloseu assistente, Abelardo ii; as roupas eram escuras, as maquiagens marrons, exceo dos doisAbelardos, que tinham os rostos pintados de branco, como palhaos. O segundo ato era uma

  • chanchada: um painel berrantemente colorido representava em traos meio cubistas, meio infantis,a baa de Guanabara, no Rio, onde Abelardo i confraternizava com a famlia de sua mulher Helosade Lesbos: a gorda me que ouve galanteios do genro; o irmo integralista (nazifascista); airmzinha menor com suas luvas de boxe; o irmo veado que deplora a famlia (e grita a toda horaque seu destino pescar nos penhascos); a av a quem Abelardo dedica versos de Lamartine(...Babo, o compositor de sensacionais marchinhas carnavalescas dos mesmos anos 30 em que apea foi escrita); o visitante americano (numa primeira e mais eficaz verso do personagemcaricato do agente imperialista que seria uma constante das peas do cpc da une nos anos 60);todos num palco giratrio em que as boutades e as indicaes das transaes econmicas pessoais,familiares, de classes, nacionais e internacionais se sucediam numa agilidade e numa vivacidade deentontecer. O terceiro ato era em tom de pera. Helosa de Lesbos que no primeiro atoaparecera de terno branco e fumando por uma longa piteira, e no segundo num mai futuristaprateado que fazia a atriz (Itala Nandi) parecer um rob do filme Metropolis, uma Barbarella, umaModesty Blase agora estava no centro do palco com um longo vestido negro cuja cauda ocupavao grande crculo que fora giratrio no ato anterior, chorando a misria em que caiu Abelardo (umarrivista com quem ela, aristocrata do caf, se casara por convenincia econmica), vtima dasagacidade de seu assistente homnimo e do imperialista americano.

    Muito da fora visual do espetculo se devia a Hlio Eichbauer que, por isso mesmo, umafigura de grande importncia na histria do tropicalismo , o jovem cengrafo carioca queestudara na Tchecoslovquia com Sooboda. A unidade cnica de cada um desses atos s se tornoupossvel pela segurana tcnica e imaginao inventiva desse grande artista brasileiro (cujostrabalhos enriquecem nosso teatro at hoje, e com quem tenho colaborado na criao de meusshows de msica tendo inclusive usado como ilustrao de capa do meu disco Estrangeiro suamaquete para o cenrio do segundo ato de O rei da vela). Mas havia uma tenso inevitvel emuito salutar para esse espetculo inaugural da nova fase do Oficina entre o temperamentoapolneo de Eichbauer e as ambies de Z Celso de tornar-se mais e mais dionisaco. Menos deum ano depois, j em 68, o diretor aceitaria a empreitada de montar Roda viva, pea juvenil deChico Buarque sobre a engrenagem que cerca a criao de uma estrela de msica popular, e fariadisso uma experincia radical no sentido de um teatro de exploso do irracional. Muito do que seviu ento foi de grande impacto e importncia esttica, mas, a no ser pela extraordinria montagemde Hamlet em 94, o nvel de O rei da vela no foi atingido por nenhum outro espetculo do Oficinaque eu tenha visto (ele montou Na selva das cidades, de Brecht, e As trs irms, de Tchkhov,durante meu exlio londrino) ou do teatro brasileiro em geral.

    Eu tinha escrito Tropiclia havia pouco tempo quando O rei da vela estreou. Assistir a essapea representou para mim a revelao de que havia de fato um movimento acontecendo no Brasil.Um movimento que transcendia o mbito da msica popular.

    No texto de apresentao que fez imprimir no programa, Z Celso dedicava o novo espetculo aGlauber e capacidade de responder realidade da poca que o Cinema Novo exibia e de queo teatro estava carente. E se referia a Chacrinha como teatralmente criativo e inspirador. Issoconfirmava minha percepo de que o que eu vira tinha tudo a ver com o que eu estava tentandofazer em msica. Depois de ver a pea, conversei com Z Celso, a quem fui apresentado j nolembro por quem. Estvamos num restaurante frequentado por gente de teatro e de msica, e por

  • artistas em geral. Contei-lhe sobre minha cano Tropiclia e de como eu a achava semelhanteao que ele estava fazendo. Acho que ele pediu que eu cantasse um trecho (ou recitasse a letra) dacano, pois ntida a memria de seu comentrio em tom de pergunta (uma sua marca): O quevoc acha parecido esse modo cubista de fragmentar as imagens?. Comentei a concordncia nointeresse por Terra em transe e Chacrinha. E nossa conversa animou-se com facilidade. Disse-lheda profunda impresso que me causou o texto escolhido, e ele falou horas sobre Oswald deAndrade, ressaltando o fato de que aquela pea, mais moderna do que tudo o que se escreveu noteatro brasileiro depois dela com sua viso erotizada da poltica, sua linguagem no linear, seuenfoque bruto de signos que falam por si na revelao de contedos-tabus da realidade brasileira, parecia ter ficado reprimida pelas foras opressivas da sociedade brasileira e de suaintelligentsia , espera de nossa gerao.

    Nos anos 70, li, porque o autor tinha sido meu colega na Faculdade de Filosofia, um livro doensasta baiano Carlos Nelson Coutinho intitulado O estruturalismo e a misria da razo, em que,seguindo o pensamento de Georg Lukcs, ele aponta uma ameaa linhagem racional da filosofiaocidental e prpria racionalidade da burguesia revolucionria ascendente , ameaa essavinda simultaneamente do irracionalismo e do super-racionalismo ambos representativos deuma fase decadente da mesma burguesia. Carlos Nelson um pensador marxista respeitado e, adespeito de nos vermos com grande raridade e sempre com brevidade, meu amigo. Ou, de qualquermodo, algum de quem gosto. Seu livro me interessou primeiro porque eu queria ver comofuncionava a cabea de um intelectual conhecido se posta a trabalhar profissionalmente. Logo, noentanto, e medida mesma que eu ia achando o livro mais e mais esquemtico, impressionou-me oquanto me servia a carapua. De fato, se eu fora rejeitado pelos socilogos nacionalistas daesquerda e pelos burgueses moralistas da direita (ou seja, pelo caminho mediano da razo), tiverao apoio de atrara ou fora atrado por irracionalistas (como Z Agrippino, Z Celso, JorgeMautner) e super-racionalistas (como os poetas concretos e os msicos seguidores dosdodecafnicos). Uma figura, contudo eu estava agora descobrindo em So Paulo entre 67 e 68, era visvel por trs desses dois grupos que nem sempre se aceitaram mutuamente: Oswald deAndrade.

    Uma prova de que Oswald os (nos) unia aqum ou alm da razo que o racionalista Boal, aquem encontrei sada do Oficina na noite da estreia de O rei da vela, tendo me perguntado se euhavia gostado, e tendo me ouvido dizer que sim, fez o seguinte comentrio: No adianta, Oswaldde Andrade est morto e enterrado. Prefiro Vianninha, referindo-se a Oduvaldo Vianna Filho, omais importante autor teatral sado do cpc da une. Boal queria dizer com isso que aquelas figurascaricatas o burgus decadente, o agente do imperialismo etc. pelo menos faziam sentidonas peas panfletrias do cpc, onde, ainda que de forma simplista, elas eram postas numaperspectiva poltica, enquanto em Oswald elas serviam a uma viso anrquica de que s sedepreendiam, no mximo, julgamentos morais (o burgus corno, o jovem aristocratahomossexual, o arrivista filisteu etc.). Ora, para mim Oswald estava apenas nascendo, e suasfiguras pareciam disparatadas justamente porque, em vez de servir como ilustrao para ideiassupostamente indiscutveis, instigavam a imaginao a uma crtica da nacionalidade, da histria eda linguagem. Em breve eu descobriria que o teatro de Oswald de Andrade era a parte mais fracade sua obra e O rei da vela, talvez a parte mais fraca do seu teatro. Tudo o que eu vira ali,

  • estava melhor posto em sua poesia, seus romances e seus manifestos.Antes de Z Celso, os poetas concretos vinham se encarregando de ressuscitar Oswald. Uma

    antologia de poemas introduzida por longo ensaio de Haroldo de Campos e um artigo de DcioPignatari, Marco Zero de Andrade, foravam a reintroduo entre os protagonistas da literaturabrasileira da figura de Oswald, at ento envolta em silncio ou lembrada apenas como a de umpiadista inconsequente e um vanguardista datado. Quando eu disse a Augusto o efeito que ocontato com Oswald tinha produzido em mim, ele logo animou-se a me passar os textos de Dcio eHaroldo, e considerou o meu entusiasmo uma confirmao a mais das afinidades entre eles,concretos, e ns, tropicalistas. Atravs de Augusto e seus companheiros tomei conhecimento dapoesia a um tempo solta e densa, extraordinariamente concentrada de Oswald. Tambm, poucodepois, da sua revolucionria prosa de fico. Sobretudo recebi o tratamento de choque dosmanifestos oswaldianos: Manifesto da poesia pau-brasil, de 24, e, principalmente, Manifestoantropfago, de 28. Esses dois textos de extraordinria beleza so ao mesmo tempo umaggiornamento e uma libertao das vanguardas europeias. Filhos, como os manifestos europeus,do futurismo de Marinetti, sendo o primeiro deles anterior aos surrealistas, eles eram tambm umaredescoberta e uma nova fundao do Brasil. Mais violentamente ainda do que Antonio Candidodcadas depois, Oswald se referia literatura brasileira como a literatura mais atrasada domundo. No era por deixar de observar isso que ele se sentia livre para dizer, no primeiro dosmanifestos: Apenas brasileiros de nossa poca. O necessrio de qumica, de mecnica, deeconomia e de balstica. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Prticos. Experimentais. Poetas.

    O segundo manifesto, o Antropfago, desenvolve e explicita a metfora da devorao. Ns,brasileiros, no deveramos imitar e sim devorar a informao nova, viesse de onde viesse, ou, naspalavras de Haroldo de Campos, assimilar sob espcie brasileira a experincia estrangeira ereinvent-la em termos nossos, com qualidades locais ineludveis que dariam ao produto resultanteum carter autnomo e lhe confeririam, em princpio, a possibilidade de passar a funcionar por suavez, num confronto internacional, como produto de exportao. Oswald subvertia a ordem deimportao perene de formas e frmulas gastas (que afinal se manifestava mais como mseleo das referncias do passado e das orientaes para o futuro do que como medida da foracriativa dos autores) e lanava o mito da antropofagia, trazendo para as relaes culturaisinternacionais o ritual canibal. A cena da deglutio do padre d. Pero Fernandes Sardinha pelosndios passa a ser a cena inaugural da cultura brasileira, o prprio fundamento da nacionalidade.

    A ideia do canibalismo cultural servia-nos, aos tropicalistas, como uma luva. Estvamoscomendo os Beatles e Jimi Hendrix. Nossas argumentaes contra a atitude defensiva dosnacionalistas encontravam aqui uma formulao sucinta e exaustiva. Claro que passamos a aplic-la com largueza e intensidade, mas no sem cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar ostermos em que a adotamos. Procurei tambm e procuro agora rel-la nos textos originais,tendo em mente as obras que ela foi concebida para defender, no contexto em que tal poesia e talpotica surgiram. Nunca perdemos de vista, nem eu nem Gil, as diferenas entre a experinciamodernista dos anos 20 e nossos embates televisivos e fonomecnicos dos anos 60. E, se Gil, como passar dos anos, se retraiu na constatao de que as implicaes maiores do movimento ecom isso Gil quer dizer suas correlaes com o que se deu em teatro, cinema, literatura e artesplsticas foram talvez fruto de uma superintelectualizao, eu prprio desconfiei sempre do

  • simplismo com que a ideia de antropofagia, por ns popularizada, tendeu a ser invocada.O psicanalista italiano Contardo Calligaris escreveu, no incio dos anos 90, um livro sobre o

    Brasil em que coloca a ideia de antropofagia cultural, que ele encontrou disseminada nos meiospsicanalticos brasileiros, como um mito que, alm de nocivo, sintoma da nossa doena congnitade no filiao, de ausncia de um nome do pai, de falta de um significante nacional brasileiro.Mas sua argumentao s me parece aceitvel se considerarmos que ele est ali agredindo um usoque se fez de tal mito e que lhe pareceu contribuir para a manuteno de um estado de coisaslastimvel, no a intuio mesma de Oswald em sua perspectiva prpria. Trazer de volta comoele fez ao meramente orgnico o ato antropofgico ritual que Oswald emprestava dos ndios(comer partes do corpo do inimigo admirado para adquirir-lhe a bravura, a destreza e as virtudesmorais) como receita de um comportamento criativo em tudo diferente do que frequentemente se fazno Brasil nos congressos psicanalticos ou fora deles era forar a mo para, numa sanhadiagnosticadora, meter num mesmo saco a mediocridade dos misturadores de informaes malassimiladas e o gesto audaz de um grande poeta.

    Era tambm agir como se a antropofagia fosse um programa prescrito por Oswald nos anos 20 eposto em prtica at nossos dias com resultados desastrosos. Na verdade, so poucos os momentosna nossa histria cultural que esto altura da viso oswaldiana. Tal como eu a vejo, ela antesuma deciso de rigor do que uma panaceia para resolver o problema de identidade do Brasil. Apoesia lmpida e cortante de Oswald , ela mesma, o oposto de um complacente escolher oprprio coquetel de referncias. A antropofagia, vista em seus termos precisos, um modo deradicalizar a exigncia de identidade (e de excelncia na fatura), no um drible na questo. Nstnhamos certeza de que Joo Gilberto (que, ao contrrio das fuses tipo maionese, para usar apalavra escolhida por Calligaris, criou um estilo novo, definido, fresco, inaugural por seusprprios mritos) era um exemplo claro de atitude antropofgica. E queramos agir altura.

    Detenho-me no comentrio desse livrinho despretensioso, porque nele se formulou a maisdecidida rejeio moda antropofgica de que, como j disse, ns, tropicalistas, fomos os maiseficazes divulgadores. Calligaris diz que seu livro nasceu de uma paixo pelo Brasil (e por umamulher brasileira...), pas ausente de suas cogitaes at que um convite profissional o trouxe aqui.E, psicanalista, observa que a melhor maneira de ajudar esse pas amado a superar sua falnciacomo projeto jogar-lhe na cara sua desesperana fatal. Brazil is hopeless, escrevia, semdemonstrar o mesmo desejo de ajudar de Calligaris (embora ela tambm estivesse aqui porque seapaixonara por uma mulher brasileira), a poetisa americana Elizabeth Bishop. No livro deCalligaris, de resto, h um tom agradvel e observaes teis revelando uma intelignciaresponsvel e generosa. A prpria tese central do livro, se ele considerado na condioprovisria de um livro de viagem, como pede o autor, ilumina o pensamento dos que tm tomadoo Brasil como questo. O colonizador (que deixou a terra-me para exercer a potncia do pai seminterdito na nova terra) e o colono (o imigrante que veio esperando do colonizador uma interdiopaterna que fundasse uma nova nacionalidade, e s encontra um uso escravo do seu corpo,confundido pelo colonizador, como o corpo dos negros, com a terra que deve ser exaurida semlimites) so duas instncias da mente brasileira que produzem a frase (ouvida por Calligaris numperodo em que ela parecia uma aberrao aos prprios brasileiros, pois era ento uma novidade o que no quer dizer que no se possa tom-la, como ele o fez, por um sintoma): Este pas no

  • presta.O nome mesmo do pas, Brasil, lhe parece destitudo de valor: que eu saiba, o nico que no

    designa nem uma longnqua origem tnica, nem lugar, mas um produto de explorao, o primeiro ecompletamente esgotado. Assim, tudo no Brasil do rapaz que passa a mo na sua bunda noCarnaval da Bahia (sem que fique claro se ele est em busca de sexo ou de dinheiro) dvidaexterna; das crianas que so tratadas como majestades ou assassinadas nas ruas, aos blocos afrosque buscam no Egito absurdo de suas canes uma origem que lhes d sentido existncia seexplica pela falta do nome do pai, de um significante nacional. O antropofagismo, comoCalligaris prefere, teria surgido como soluo para esse problema. E por ele criticado duramentepor substituir pelo tubo digestivo (que todos sabem onde vai dar...) o um que o Brasil nuncaconseguiu se fazer. E essa substituio, afinal, seria uma sugesto do colonizador ao colono nosentido de tomar como um nacional o corpo escravo que se oferece: o Brasil seria assim exticono s para os turistas como tambm para os brasileiros.

    Ora, tudo isso tem a ver com o tropicalismo. Mas se a psicanlise brasileira tivesse um JooGilberto a conversa seria outra. O livro de Calligaris presta como provocao. E, acima de tudo,revela uma vontade corajosa de conhecer o corpo e a alma desse pas encontrado no caminho. Ainterpretao que ele d do cinismo com que os livros didticos brasileiros tratam as figurashistricas (sobretudo o episdio da vinda de d. Joo vi, que foi forado a deixa