antropologia da saúde e doença

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1 CONCEPÇÕES E REPRESENTAÇÕES DA SAÚDE E DA DOENÇA: CONTRIBUIÇÕES DA ANTROPOLOGIA DA SAÚDE PARA A SAÚDE COLETIVA CONCEPTIONS AND REPRESENTATIONS OF HEALTH AND ILLNESS: CONTRIBUTIONS OF ANTHROPOLOGY OF HEALTH TO COLLECTIVE HEALTH Autor: Iriart, Jorge Alberto Bernstein. Professor Adjunto do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia - ISC/ UFBA. E-mail: [email protected] Referência: Iriart, J.A.B., 2003. Concepções e representações da saúde e da doença. Texto didático. Salvador: ISC-UFBA. Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar didaticamente para estudantes e profissionais da área da saúde alguns conceitos básicos e contribuições da Antropologia da Saúde para a Saúde Coletiva, a partir da revisão de alguns trabalhos importantes na área que permitem aprofundar nossa compreensão da complexa inter-relação entre sociedade, cultura e o processo saúde-doença na realidade brasileira. O autor defende a importância de se levar em conta, no processo de construção do SUS, das diferentes concepções e representações da saúde e da doença em distintos grupos socioculturais, sustentando a idéia de que dados sócio-antropológicos deveriam ser mais utilizados para subsidiar tanto a reflexão sobre as práticas em saúde, quanto o planejamento de ações de prevenção e promoção nos sistemas locais de saúde. Palavras-chave: Antropologia da Saúde, representações sobre saúde e doença, Saúde Coletiva.

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CONCEPÇÕES E REPRESENTAÇÕES DA SAÚDE E DA DOENÇA: CONTRIBUIÇÕES DA ANTROPOLOGIA DA SAÚDE PARA A SAÚDE COLETIVA CONCEPTIONS AND REPRESENTATIONS OF HEALTH AND ILLNESS: CONTRIBUTIONS OF ANTHROPOLOGY OF HEALTH TO COLLECTIVE HEALTH Autor: Iriart, Jorge Alberto Bernstein. Professor Adjunto do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia - ISC/ UFBA. E-mail: [email protected] Referência: Iriart, J.A.B., 2003. Concepções e representações da saúde e da doença. Texto didático. Salvador: ISC-UFBA. Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar didaticamente para estudantes e profissionais da área da saúde alguns conceitos básicos e contribuições da Antropologia da Saúde para a Saúde Coletiva, a partir da revisão de alguns trabalhos importantes na área que permitem aprofundar nossa compreensão da complexa inter-relação entre sociedade, cultura e o processo saúde-doença na realidade brasileira. O autor defende a importância de se levar em conta, no processo de construção do SUS, das diferentes concepções e representações da saúde e da doença em distintos grupos socioculturais, sustentando a idéia de que dados sócio-antropológicos deveriam ser mais utilizados para subsidiar tanto a reflexão sobre as práticas em saúde, quanto o planejamento de ações de prevenção e promoção nos sistemas locais de saúde. Palavras-chave: Antropologia da Saúde, representações sobre saúde e doença, Saúde Coletiva.

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1. Introdução No decorrer dos últimos anos vem se consolidando no Brasil, com uma produção

científica crescente, uma disciplina da área de Ciências Sociais e Saúde denominada Antropologia da Saúde. A Antropologia da Saúde tem como objeto de estudo a forma como, em diferentes contextos socioculturais, as pessoas interpretam, atribuem significados e lidam com o processo saúde-doença. Em outras palavras, ela estuda as concepções populares e profissionais sobre a saúde e a doença (o que inclui representações e concepções sobre etiologia, diagnóstico e terapias, assim como os significados atribuídos à saúde e a doença); a comparação de diferentes sistemas ou racionalidades médicas (medicina moderna, medicinas populares, tradicionais e alternativas) e a forma como a população utiliza e avalia as diferentes agências de cura. A Antropologia da Saúde se preocupa também com o estudo das condições de vida e trabalho da população em sua relação com a saúde e a doença; a forma como as pessoas em diferentes contextos culturais concebem o corpo, a sexualidade e as relações de gênero em sua interface com a saúde.

Uma vez explicitado o objeto de estudo da Antropologia da Saúde, estudantes e profissionais da área da saúde poderiam colocar as seguintes questões: que contribuições pode trazer a abordagem antropológica para a compreensão do processo saúde-doença? Em que medida o conhecimento produzido pela Antropologia da Saúde pode contribuir para o processo de construção do SUS e para subsidiar as práticas que visam resolver os graves problemas de saúde brasileiros?

Nós acreditamos que a Antropologia da Saúde tem um papel importante a desempenhar em sua interface com a Saúde Coletiva e este artigo tem por objetivo apresentar de forma didática para estudantes e profissionais da área da saúde algumas contribuições teórico-práticas dos estudos antropológicos que permitem aprofundar nossa compreensão sobre a complexa inter-relação entre sociedade, cultura e o processo saúde-doença. Ao longo do texto, será discutido o impacto da realidade sócio-cultural na produção da saúde e da doença e enfatizada a necessidade de se levar em conta, no processo de construção do SUS, das diferentes concepções e representações da saúde e da doença em distintos grupos socioculturais. Dados sócio-antropológicos deveriam ser mais utilizados para subsidiar tanto a reflexão sobre as práticas em saúde, quanto sobre o planejamento de ações de prevenção e promoção nos sistemas locais de saúde. 2. O contexto sócio-cultural e as representações de saúde e doença

A antropologia define cultura como um sistema simbólico; formas de pensar que conformam uma visão de mundo; valores e motivações conscientes e inconscientes; uma espécie de lente através da qual as pessoas interpretam e dão sentido ao seu mundo. (Geertz, 1978). Como membros de uma sociedade particular, os indivíduos herdam um conjunto de princípios, conceitos, regras e significados que modelam e se expressam nas formas como eles vivem. Cada sociedade constrói códigos culturais que articulam representações sobre diversas esferas sociais, entre as quais se incluem representações sobre corpo, saúde e doença, formando uma matriz cultural ou um sistema simbólico. A cultura não deve ser apreendida, porém, como um conjunto homogêneo e completamente coerente de significações pois, assim como a sociedade, ela é complexa e multifacetada, comportando contradições e a coexistência, no mesmo contexto social, de diferentes visões de mundo e quadros de referência. Como mostra Bourdieu (1989), a produção cultural também ocorre em meio a uma disputa pelo poder simbólico, ou seja, o poder de produção e legitimação de significados culturais dominantes. Muitas vezes, estes significados

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representam a legitimação da hierarquia social e de privilégios de determinados grupos dominantes na sociedade.

As representações e concepções da saúde e da doença predominantes em distintos grupos sociais estão assim intimamente ligadas ao contexto social, político, econômico e aos valores vigentes nestes grupos. A forma como a sociedade atribui significados às doenças reflete largamente a forma como ela se pensa, expondo seus medos e limites. A análise de Sontag (1984) sobre as representações sociais de doenças como o câncer e a Aids, que não respeitam fronteiras de classe social e frente às quais a capacidade de enfrentamento da sociedade é limitada, mostra como elas se tornaram metáforas, que passaram a encarnar o mal e a representar as anomalias sociais. Essas doenças são utilizadas então pela sociedade como recurso simbólico para exorcizar o medo, associando o flagelo aos desvios e transgressões morais, que são projetados na forma de preconceitos contra as vítimas das enfermidades.

Os valores individualistas dominantes na cultura ocidental contemporânea influenciam significativamente a forma como o corpo, a estética e a saúde passam a ser percebidos pelas pessoas. Madel Luz (2000), analisando as transformações nas representações de corpo e saúde na sociedade brasileira atual, discute a disseminação, entre determinadas camadas sociais, da concepção segundo a qual manter a saúde em forma seria em última instância manter o corpo em forma do ponto de vista estético. A competição como forma estratégica de relação social; a busca de sucesso e dinheiro como finalidade básica da vida; o consumismo como forma de afirmação e diferenciação social e o uso narcísico do corpo encontram-se, segundo a autora, na base das representações que igualam saúde a força, a juventude e a beleza. Associados a estes valores, criam-se “necessidades médicas” e desenvolve-se todo um arsenal de intervenções que incluem cirurgias plásticas, uso de medicamentos, alimentos e cosméticos cuja finalidade é auxiliar na modelagem de um idealizado corpo perfeito (Luz, 2000). 3. O impacto da cultura na construção da doença e dos idiomas de aflição

A ação da cultura na construção das doenças não se restringe apenas aos valores ou significados atribuídos aos sinais e sintomas corporais. Ela pode se dar também através da ação direta sobre os processos fisiológicos e psicológicos contribuindo para a criação e a formatação dos sintomas. Littlewood (1990) utiliza-se de uma metáfora interessante para referir-se à ação da cultura na constituição da doença mental. Este autor questiona a visão reducionista, ainda muito disseminada entre os psiquiatras, segundo a qual a cultura seria uma espécie de invólucro ou adereço; algo equivalente à cobertura superficial que reveste a massa de um bolo; esta sim correspondente à “real” patologia. Littlewood critica a universalidade das categorias psiquiátricas sustentando que a cultura cria e dá forma aos sintomas, não podendo ser dissociada do que constitui a doença em um dado contexto sociocultural. Estudos antropológicos (Kleinman, 1980; Duarte, 1986) têm mostrado, por exemplo, como sociedades marcadas por uma concepção de pessoa individualista tendem a manifestar o sofrimento emocional através de sintomas e conceitos psicológicos (sendo muito comum o diagnóstico psiquiátrico da depressão), enquanto em contextos culturais nos quais a percepção da pessoa é mais holista e relacional (como nas classes trabalhadoras dos grandes centros urbanos brasileiros), o sofrimento emocional se manifesta e se legitima, sobretudo, através de manifestações somáticas ou distúrbios físico-morais (Duarte, 1986). Os estudos socioantropológicos realizados sobre a dor em diferentes grupos socioculturais mostram como o limiar da dor e sua percepção são distintos (Helman, 1994).

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Certas culturas atribuem significados positivos à dor, valorizando o sofrimento do paciente e fornecendo instrumentos simbólicos às pessoas para lidar com ela. Não é o caso de nossa cultura ocidental, cada vez mais despreparada para enfrentar o sofrimento e a dor e atribuir-lhes significados. A ação da cultura se dá também através da criação de recursos simbólicos e formas socialmente aceitas para exprimir e lidar com o sofrimento e a aflição. O que os antropólogos denominam de idiomas culturais da aflição assemelham-se a uma linguagem, composta por representações, sintomas e comportamentos incorporados de forma inconsciente, que permite comunicar uma ampla gama de preocupações pessoais e sociais de forma compreensível para as outras pessoas (Kirmayer et al., 1995). Os idiomas de aflição possibilitam manifestar o sofrimento, mobilizar a comunidade no amparo à pessoa que sofre, legitimando sua queixa. Apesar de a palavra idioma remeter a um sistema codificado, estruturado e convencional, é importante observar que as formas culturais de manifestar a aflição são, no entanto, fragmentadas, tentativas e contraditórias (Kirmayer et al., 1995). Os sintomas somáticos não são racionalmente pensados como comunicação, pois atuam a um nível inconsciente, constituindo-se como um habitus corporal (Bourdieu, 1980). Como conseqüência, é comum que as pessoas busquem ajuda terapêutica em diversas agências de cura, consultando médicos, mas também terapeutas religiosos até que seja compreendida a natureza de seu problema e construído seu significado. O idioma do nervoso (“problema dos nervos”), descrito por Duarte (1986) e largamente utilizado nas classes populares no Brasil, é um exemplo de idioma utilizado pelas pessoas para manifestar somaticamente e discursivamente um conjunto de experiências de ordem física e moral. Quando as pessoas referem que sofrem dos nervos, estão exprimindo, também, através de sintomas, como por exemplo: “dor, zoada ou zumbido na cabeça; tremores; aflição; tonteiras; insônia; irritação, tristeza”, seu sofrimento com problemas em outras dimensões de suas vidas como o desemprego, a falta de dinheiro, as péssimas condições de vida, os problemas familiares ou outros conflitos interpessoais. A possessão espiritual no candomblé e na umbanda pode também ser compreendida como um idioma para lidar com a aflição (Montero, 1985; Iriart, 1998). Iriart (1998) mostra, através da análise de histórias de vida de filhas-de-santo do candomblé, como os sintomas que levam muitas mulheres a procurar ajuda terapêutica no culto se desencadeiam em momentos de crise na vida destas mulheres. De alguma forma, um idioma cultural apreendido de forma inconsciente se manifesta somaticamente através de sintomas diversos (entre os quais se encontram: cefaléias, perda de sentidos, dores difusas) que estão associados a um momento difícil na vida dessas pessoas. A iniciação no candomblé e o domínio do idioma da possessão mediúnica, aprendido durante os rituais iniciáticos, levam à remissão dos sintomas e à reconstrução da identidade da nova filha-de-santo. O encosto, categoria diagnóstica popular bastante comum na realidade brasileira, pode ser compreendido como um idioma de aflição cujos significados dependerão da história pessoal da pessoa afetada e do contexto de aparição do problema em sua vida. O candomblé, a umbanda e o espiritismo kardecista explicam os sintomas como decorrência da ação de um espírito desencarnado que atua voluntária ou involuntariamente de forma nefasta junto à pessoa doente. Muitas vezes, o encosto, cujos sintomas podem incluir, por exemplo, peso nos ombros, desânimo e dores nos braços e pernas, representa uma forma socialmente aceita de expressar o luto pela morte de um ente querido. Os rituais prescritos pelas agências religiosas atuam, então, realizando simbolicamente a ruptura entre a pessoa e o espírito do falecido e preparando-a para lidar com a perda. Como mostram os estudos

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antropológicos sobre a eficácia simbólica (Lévi-Strauss, 1975; Bibeau, 1983), fenômeno largamente desconsiderado e subestimado pela medicina moderna, a realidade simbólica pode possuir implicações relevantes sobre o substrato biológico da doença, tanto promovendo a aparição de sinais e sintomas quanto a sua remissão. 4. O conflito entre as visões dos profissionais e de pacientes sobre a saúde e a doença

O termo biomedicina tem sido freqüentemente utilizado nos trabalhos antropológicos para designar a medicina moderna, remetendo à estrutura institucional da medicina no Ocidente e enfatizando a primazia de sua base epistemológica e ontológica centrada na fisiopatologia (Kleinman, 1995). Para o modelo biomédico dominante na nossa sociedade, saúde e doença constituem sobretudo fenômenos de ordem biológica que devem ser tratados através de uma ação de natureza técnica.

As premissas básicas da perspectiva biomédica incluem a racionalidade científica; a ênfase na mensuração objetiva e numérica de dados bioquímicos; o mecanicismo (que tem como metáfora dominante o corpo como máquina bioquímica); o dualismo corpo-mente; a visão da enfermidade como entidade ontológica (atribuindo-lhe uma identidade mórbida que é independente do sujeito e do contexto sociocultural em que este está inserido) e a ênfase do diagnóstico e tratamento sobre o indivíduo doente em detrimento da família ou da comunidade (Helman, 1994).

Estas premissas se refletem de várias formas na prática médica como, por exemplo, no momento em que a desordem orgânica é percebida como o verdadeiro objeto da medicina; quando a racionalidade científica despreza as dimensões emocionais e morais da aflição; quando o médico se coloca na posição de conhecedor ativo, deixando o paciente na posição de conhecedor passivo; e na despersonalização dos pacientes. Em especial, a dificuldade dos médicos na escuta das queixas dos pacientes repercute de forma negativa na qualidade da relação terapêutica. Como afirmam Kirmayer et al. (1995), epistemologicamente, a biomedicina separa evidências objetivas de doença, através de sinais físicos e testes laboratoriais, do discurso subjetivo do paciente sobre sua doença, atribuindo credibilidade distintas as duas fontes de informação e, muitas vezes, deslegitimando a queixa do paciente.

Os conceitos de disease, illness e sickness, desenvolvidos pela antropologia médica anglo-saxã (Kleinman, 1980; Young 1982), ajudam a compreender didaticamente essas dimensões objetiva e subjetiva da doença. Disease, que nós poderíamos associar a patologia, refere-se à doença tal como concebida pela biomedicina, designando anormalidades na estrutura ou função dos órgãos ou sistemas orgânicos, e a estados patológicos independentemente de serem ou não culturalmente reconhecidos (Kleinman, 1980).

Já a illness ou enfermidade refere-se à percepção e à experiência do paciente da patologia ou de outros estados “socialmente desvalorizados”, independentemente de serem ou não reconhecidos pela biomedicina como doença (Kleinman, 1980). O conceito de illness remete aos significados que a pessoa atribui aos sinais e sintomas corporais, que podem ou não ser interpretados por ela e por seu meio cultural como doença. Uma pessoa que refira sentir peso nos ombros, desânimo, dores difusas e acredite estar com “encosto de morto”, estado “socialmente desvalorizado” cujos sintomas são explicados pelo candomblé, umbanda e espiritismo kardecista como causados pela ação nefasta de um espírito, estaria com illness (enfermidade) sem disease (patologia). A disease também pode ocorrer na ausência da illness como no caso de uma hipertensão não diagnosticada e assintomática. O

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conceito de illness remete assim ao modo como a doença é trazida à experiência individual e se torna significativa para o paciente, pois para que a pessoa se reconheça doente, é necessário que ela interprete os sintomas experienciados como sinais de uma doença. Esta interpretação é fortemente influenciada pelo contexto cultural em que o indivíduo está inserido. É a cultura que fornece as lentes através das quais será realizada a leitura dos sinais corporais. Influenciando a apreensão cognitiva dos sintomas, a cultura contribui para determinar se eles serão avaliados como irrelevantes, naturais e não indicadores de doença ou se, ao contrário, serão percebidos como algo que demande ajuda terapêutica imediata (Kleinmnan, 1980).

Parte da dificuldade encontrada pelos médicos na relação terapêutica deve-se ao fato de que o objetivo terapêutico do modelo biomédico é intervir no processo da doença, visando à cura da patologia (disease), sem considerar a sua dimensão subjetiva (illness). Neste sentido, a biomedicina está voltada para a remissão dos sintomas, o que Kleinman (1980) denomina de curing (cura da patologia) em oposição a healing (cura da enfermidade), conceito que remete à percepção do paciente sobre seu problema e se ele se considera curado. Healing designa então o objetivo terapêutico dos modelos terapêuticos culturais que, diferentemente da biomedicina, não estão necessariamente voltados para os sinais e sintomas, e visam, sobretudo, a trazer ao entendimento do paciente aspectos escondidos da realidade da enfermidade, transformando-a e reformulando a maneira como são compreendidos (Kleinman, 1980). As práticas terapêuticas populares e religiosas geralmente centram seus esforços na busca do sentido da doença para o paciente, atuando sobre a illness (enfermidade).

Como mostra Montero (1985) em seu estudo sobre as práticas terapêuticas na umbanda, a concepção religiosa da doença transcende a finalidade puramente técnica da cura. A mãe-de-santo, através da interpretação religiosa do infortúnio, busca articular a multiplicidade de sensações e acontecimentos percebidos de maneira caótica e atomizada pelo indivíduo doente, permitindo-lhe construir um discurso que dê sentido à doença. A ordenação da experiência de sofrimento transforma a relação do Eu com o mundo, favorecendo um certo rearranjo das relações pessoais e o enfrentamento das situações-problema que se encontram associadas à enfermidade (Montero, 1985).

A dimensão cultural e intersubjetiva da enfermidade é extremamente importante para a relação terapêutica, pois todas as doenças estão envoltas em representações culturais que são apropriadas e reelaboradas pelos indivíduos quando vivenciam situações de doença. Sobretudo nas doenças graves, existe a necessidade do paciente de buscar uma explicação existencial para a enfermidade.

Por fim, o conceito de sickness (doença), tal como proposto por Young (1982), enfatiza a dimensão social da enfermidade incorporando ao esquema de Kleinman a compreensão dos fatores sociais, políticos e econômicos que se encontram na base da determinação social das doenças. 5. A concepção de saúde-doença nas classes populares urbanas

Na sociedade brasileira, extremamente hierarquizada e desigual, o pertencimento a diferentes classes sociais está associado a diferenças importantes nas condições de vida e trabalho, e nos perfis de morbimortalidade e acesso aos serviços de saúde (Barreto e Carmo, 1994), implicando, também, diferenças culturais importantes na percepção dos fatos médicos e nas expectativas da relação terapêutica (Minayo, 1997).

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É importante enfatizar que a cultura também tem participação na determinação das desigualdades em saúde. As relações de gênero e cor são social e culturalmente determinadas, produzindo desigualdades nos níveis de vida e de saúde, que se acentuam quando combinadas com as relações de classe social (Vaitsman, 1992). A hierarquia de gênero, que se traduz em diferenças de status e poder entre homens e mulheres na sociedade brasileira, tem impacto importante sobre as condições de saúde das mulheres. A crescente disseminação da Aids entre elas, por exemplo, não pode ser dissociada da construção social dos papéis de gênero nas classes populares, na qual a mulher não tem poder para negociar o uso do preservativo com seus companheiros (Barbosa e Villela, 1996). Estudos com mulheres que contraíram o vírus da Aids de seus maridos mostram como para elas o papel social de esposa, que poderia ser prejudicado pelo conflito familiar acerca do uso do preservativo, era mais importante do que a preocupação com sua saúde individual (Guimarães, 1996). O advento da epidemia da Aids e a pouca efetividade de sucessivas campanhas de prevenção colocaram em xeque as práticas de educação e saúde que desconsideravam a forma como a população percebe e lida com os problemas de saúde. A Aids evidenciou a necessidade de se conhecer a lógica que ordena as representações da população sobre sexualidade, papéis de gênero, e uso do preservativo, de forma a se poder atuar mais efetivamente na promoção de comportamentos preventivos.

Para Duarte (1986), o ponto de partida fundamental para se compreender a percepção de corpo, saúde e doença dos pacientes das classes trabalhadoras encontra-se na forma distinta como a noção de pessoa é por eles construída e representada. Duarte sustenta que os indivíduos das classes populares concebem a pessoa de forma holista, inserida em relações sociais mais amplas que são indissociáveis de sua percepção do Eu. Esta visão contrasta com a representação individualista da pessoa moderna predominante nas classes médias em que o indivíduo é concebido como um ente psicológico autônomo constituindo-se enquanto categoria com valor e sentido moral. Esta diferença traz implicações importantes para a prática médica, pois permite compreender a forma como o discurso e a experiência da doença nas classes populares freqüentemente questiona a dicotomia corpo-mente tão presente na biomedicina; relacionando em um episódio de doença elementos de dimensões biológicas, sociais, espirituais e morais.

Boltansky (1979), em estudo realizado com trabalhadores franceses, discute como a inserção de classe social dos indivíduos determina usos sociais diferenciados do corpo e condiciona a percepção dos sintomas mórbidos e das necessidades médicas. Para Boltansky, a forma como o corpo é utilizado na atividade produtiva, como por exemplo, o grau em que um indivíduo das classes trabalhadoras utiliza a força física em suas atividades profissionais, repercute na forma como ele percebe seu corpo. Quanto mais intensa é a utilização instrumental do corpo, menos reflexiva é a relação com os sinais e sintomas corporais, sendo a doença percebida, sobretudo, como um entrave à atividade física e associada a uma sensação de fraqueza. No Brasil, estudos como os de Loyola (1984), Duarte (1986), Queiroz (1993) e Minayo (1997) mostram, de forma similar, a importância das categorias força/fraqueza na organização das concepções sobre o corpo entre os indivíduos das classes populares, que representam a doença como incapacidade para o trabalho, tendendo a desconsiderar os primeiros sinais e sintomas de incômodo corporal e buscar assistência médica somente quando estes lhes impedem de continuar realizando suas atividades laborais. Estas representações, construídas em interação com a experiência concreta das condições objetivas que exercem coerção no sentido do retorno ao trabalho o mais breve possível, refletem-se na expectativa em relação ao médico, para a utilização de

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remédios potentes capazes de erradicar o mal de forma quase instantânea. Queiroz (1993), em estudo realizado em Paulínea, discute a dificuldade para médicos do SUS, que defendem uma ação terapêutica menos medicalizada, de lidar com a demanda da população pelo uso de medicamentos fortes.

Minayo (1997) observa com propriedade, porém, que a concepção de saúde-doença nas classes populares não pode ser homogeneizada, pois ela é multifacetada e contraditória. Se, por um lado, ela reproduz a ideologia dominante segundo a qual o nosso corpo é feito para produzir; por outro, ela demonstra uma percepção ampliada da doença quando a situa dentro de um quadro mais geral que engloba a desorganização da pessoa, da ordem cósmica e da ordem social. Como mostram os estudos de Loyola (1984) e Montero (1985) entre outros, a população combina diferentes alternativas terapêuticas buscando dar conta das distintas dimensões da doença. Estas autoras mostram também como o recurso às terapias populares representa uma forma de relativização do saber médico e de resistência das camadas populares à expropriação de seu saber sobre a saúde e a doença. Em seu estudo sobre as práticas terapêuticas na umbanda, Montero discute como o saber religioso sobre a cura não se opõe diretamente à biomedicina, mas constrói sua legitimidade nos espaços onde a biomedicina encontra os seus limites.

Seria importante que os profissionais de saúde conhecessem mais profundamente o contexto sociocultural em que estão inseridos seus pacientes e estivessem mais atentos a como diferenças na linguagem, representações e códigos de leitura do corpo se refletem no encontro terapêutico. Estudos antropológicos têm discutido como, no diálogo com os profissionais de saúde, a população incorpora termos e conceitos médicos, realizando, no entanto, uma releitura dos mesmos segundo sua matriz cultural. Em estudo realizado com mulheres das classes populares no Sul do Brasil, Leal (1995) mostra como o discurso médico sobre a reprodução e a anticoncepção, apesar de bastante disseminado, é ressignificado pela população que não o identifica como a única possibilidade de explicação de processos orgânicos como a reprodução humana. A autora parte da evidência etnográfica, recorrente entre as mulheres das classes populares, segundo a qual o período fértil se sobrepõe ou está imediatamente vinculado ao período menstrual. O trabalho constante de orientação sobre planejamento familiar ou grupos pré-natal oferecidos pelos postos de saúde locais a uma população que, apesar da precária situação socioeconômica, tem acesso a serviços médicos efetivos e a diferentes métodos contraceptivos de forma gratuita, não necessariamente transforma essas representações e as práticas contraceptivas que lhe estão associadas. Leal mostra, então, a necessidade de se compreender a lógica que ordena as representações de mulheres das classes populares sobre seus corpos, fluidos e concepção, matriz cultural através da qual as mulheres realizam uma releitura do discurso médico. O modelo cultural de corpo inclui noções de uma dinâmica de abertura e fechamento, estados de umidade e calor e circulação de substâncias condutoras, entre as quais o sangue possui grande importância simbólica. Para as mulheres, a fecundação é uma forma de contágio na qual ocorre o encontro de fluidos corporais: o sangue (substância percebida como feminina) e o sêmem (substância fértil masculina). O sangue seria então um fluido vital construtor do próprio feto e associado à fertilidade. 6. Conclusão

Retomando as questões levantadas na introdução deste artigo, nós poderíamos empreender uma tentativa de sistematização, apontando as principais formas de

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contribuição da pesquisa antropológica para a Saúde Coletiva e, mais especificamente, para a prática concreta de profissionais de saúde e gestores do SUS.

Em primeiro lugar, o estudo das diversas formas de racionalidade médica, concepções e representações sobre saúde e doença permite relativizar o nosso ponto de vista e a nossa prática, enriquecendo-os a partir de outras perspectivas. O conhecimento da forma como as pessoas vivenciam, atribuem significados e lidam com o mal-estar, o sofrimento e a dor em distintos contextos socioculturais permite expandir e aprofundar a nossa compreensão sobre o ser humano. Hoje, mais do que nunca, é necessário humanizar a prática biomédica que, como observa Kleinman (1995), apesar de ter alcançado um desenvolvimento tecnológico sem paralelo quando comparada a outras formas de medicina, teria o que ganhar, aprendendo com as medicinas tradicionais, populares ou alternativas, em termos de humanização de sua prática. O crescimento nas sociedades ocidentais do recurso às medicinas alternativas reflete a busca pela população de outras racionalidades terapêuticas, fenômeno que Madel Luz (1997) situa no interior de uma crise sanitária e médica na sociedade atual. Segundo Boscán (2000), a medicina alternativa converteu-se em um fenômeno de alta prevalência na maioria dos países industrializados, a exemplo dos Estados Unidos, onde 40 % da população recorre a essas práticas.

Para a humanização da prática médica e, particularmente, para a melhoria da qualidade do atendimento à população pelo SUS, seria também importante que os profissionais de saúde adquirissem um maior conhecimento do contexto cultural no qual estão inseridos seus pacientes, o que lhes permitiria desenvolver maior sensibilidade na sua atuação junto à população e assim melhorar a qualidade do encontro terapêutico e das ações de educação em saúde. É importante observar, no entanto, que a postura dos profissionais da saúde com relação ao conhecimento do contexto sociocultural de seus pacientes deve ser guiada pela recusa ao etnocentrismo que caracteriza a perspectiva antropológica. Assim, não se trata de conhecer para melhor dominar, mas de se deixar transformar no diálogo com o saber do Outro. É necessário procurar compreender a alteridade em sua própria lógica, evitando projetar sobre ela nossos conceitos e preconceitos. Como afirma Minayo (1997), seria importante para o profissional da saúde perceber o grau de bom senso contido nas queixas do paciente, procurando compreender este discurso diferenciado à luz das condições de vida e trabalho destas pessoas e dos significados culturais que formatam a percepção e expressão da doença.

No atual contexto de construção do SUS, no qual a participação dos usuários, como sujeitos da saúde, é um princípio fundamental, torna-se importante conhecer com mais profundidade as experiências e concepções da população com relação ao processo saúde-doença e suas expectativas sobre os serviços de saúde. A produção e a disponibilização, nos sistemas locais de saúde, de dados qualitativos sobre temas importantes em saúde para a população local e que incorporem a visão dos grupos mais vulneráveis poderia representar um passo em direção a um diálogo mais efetivo com a população. Na prevenção da Aids, muitos projetos de intervenção estão sendo subsidiados por dados qualitativos que se têm mostrado fundamentais no planejamento de ações culturalmente apropriadas e mais efetivas. Como afirma Vaitsman (1992), uma concepção ampliada de saúde deveria recuperar o significado do indivíduo em sua singularidade e subjetividade na relação com os outros e com o mundo, o que não se expressa apenas através do trabalho (o corpo produtivo), mas também do lazer, do afeto, da sexualidade e das relações com o meio ambiente.

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O desafio que nos coloca Ricardo Ayres (2001), como profissionais de saúde, é extremamente atual e consiste em repensarmos continuamente a nossa prática, colocando-nos a questão de como criar as condições para que se torne possível a fusão de horizontes entre o ponto de vista dos profissionais de saúde e os “projetos de felicidade” da população.

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