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APOSTILA DE FILOSOFIA 8º ANO – ENSINO FUNDAMENTAL 3º TRIMESTRE 2020

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APOSTILA DE FILOSOFIA

8º ANO – ENSINO FUNDAMENTAL

3º TRIMESTRE 2020

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2020 – APOSTILA – 8º ANO – 3º TRIMESTRE

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UNIDADE 04 – FILOSOFIA E CONHECIMENTO

CAPÍTULO 1

Conhecimento empírico em Hobbes e Locke

Pode-se conhecer o mundo pelo tato? Helen Keller foi uma importante escritora norte-americana que, com poucos meses de idade, perdeu a visão e

a audição. Imagine as dificuldades enfrentadas pela pequena Keller para conseguir se expressar com palavras.

Anne Sullivan, sua professora, criou um método de ensino que utilizava a linguagem tátil. A história foi retratada

no filme O milagre de Anne Sullivan, de 1962, e em livros e peças teatrais. O texto abaixo, escrito por Anne,

descreve um pouco esse método.

“Tenho que escrever uma linha esta manhã porque uma coisa importantíssima aconteceu. Helen deu o

segundo grande passo em sua educação. Aprendeu que tudo tem um nome e que o alfabeto tem a chave para

tudo que ela quer saber. Hoje de manhã, quando se estava lavando, ela quis saber o nome da água. [...] [Mais

tarde] saímos para ir até a casa de bombas, e fiz Helen segurar a caneca dela debaixo da bica enquanto eu

bombeava. Quando a água fria jorrou, enchendo a caneca, eu soletrei ‘á-g-u-a’ em sua mão livre. A palavra assim

tão perto da sensação da água fria correndo-lhe pela mão pareceu assombrá-la. [...] Uma nova luz espalhou-se

por seu rosto. Soletrou ‘água’ várias vezes”. (Sullivan, Anne. In: CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 61).

Neste capítulo, estudaremos a importância dos sentidos em dois grandes filósofos, John Locke e Thomas Hobbes.

Começando o capítulo: 1. Como Helen Keller recebia as informações de sua professora?

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FILOSOFIA

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2. De que modo a escritora percebia o mundo?

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3. O que Helen aprendeu nesse momento relatado?

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O Empirismo

Filósofos como Descartes, Espinosa e Leibniz criaram uma corrente filosófica na modernidade chamada de racionalismo. Eles defendiam a ideia de que a origem do conhecimento humano estava na razão. Para esses pensadores, algumas ideias já nasciam com o indivíduo, independentemente da experiência sensível que ele tivesse com o mundo, isto é, do aprendizado com o meio externo e contato com os seres da natureza e as coisas criadas pelo ser humano. Dessa forma, eles acreditavam que a razão era a única fonte segura e confiável para a construção do conhecimento verdadeiro, enquanto os sentidos seriam enganosos e falhos ao nos fornecer o conhecimento das coisas. Ideia oposta às dos filósofos empiristas.

Os filósofos empiristas pensavam de maneira bem diferente dos racionalistas. Segundo eles, a origem ou fonte de todo conhecimento estava na experiência sensível. Em outras palavras, a razão, por si só, não poderia conhecer ou proporcionar o conhecimento sozinha. Os empiristas defendiam, então, que todo conhecimento tem como base os órgãos dos sentidos e a percepção. Os indivíduos conhecem as coisas por meio da visão, do tato, do olfato, do paladar e da audição.

Por exemplo, como você conhece um sorvete? Vendo sua forma e cor, sentindo seu cheiro, provando seu sabor, percebendo sua textura. Por meio dessas sensações, você tem ideias a respeito dele. Assim acontece com outras coisas que conhecemos. As ideias que formamos na mente dependem, de alguma maneira, dos sentidos, de nossa percepção.

Dessa maneira, os empiristas não acreditavam na existência de ideias inatas (ou seja, ideias que já nasciam com o ser humano). Para eles, todas as nossas ideias ou noções intelectuais sobre a realidade teriam relação com a experiência sensível.

A tradição do empirismo é longa, sobretudo na Inglaterra. Entre seus principais pensadores estava Francis Bacon, Thomas Hobbes, John Locke, George Berkeley e David Hume. Neste capítulo, veremos as contribuições dos filósofos Hobbes e Locke para o conhecimento. No capítulo seguinte, será a vez de estudarmos Berkeley e Hume.

COMPARAÇÃO ENTRE RACIONALISMO E EMPIRISMO

Racionalismo Empirismo

A origem do conhecimento está na razão.

A origem de todo conhecimento está na experiência sensível (fundamentada nos órgãos

dos sentidos e na percepção).

Algumas ideias já nascem com o indivíduo, independentemente da experiência sensível. São

chamadas ideias inatas.

As ideias possuem relação com a experiência sensível. Tudo o que sabemos é fruto da

aprendizagem pelos sentidos.

Conhecimento “a priori”: O modelo do conhecimento é a matemática.

Conhecimento “a posteriori”: O modelo do conhecimento é a experiência.

Os principais filósofos são Descartes, Leibniz e Espinosa.

Os principais filósofos empiristas são Francis Bacon, Thomas Hobbes, John Locke, George

Berkeley e David Hume.

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O conhecimento em Hobbes

O filósofo, matemático e linguista inglês Thomas Hobbes (1588-1679), se opunha decididamente aos

escolásticos e aos aristotélicos. Ele defendia que a filosofia deveria se basear no raciocínio, e não em ideias

religiosas e princípios metafísicos.

Para Hobbes, a razão seria uma função ou capacidade que estaria presente em outros animais, mas que

teria se desenvolvido com maior intensidade no ser humano. Nesse sentido, um chimpanzé, por exemplo, teria

adquirido certo grau de razão que o tornou capaz de realizar algumas ações inteligentes, como usar uma vara

para apanhar uma fruta no topo de uma árvore e até prever algumas ações para garantir sua sobrevivência.

O ser humano, entretanto, é capaz de aprender com o passado e prever o futuro como nenhum outro animal.

Por exemplo, por meio da experiência, o homem pode aprender qual é a melhor época para o plantio e o cultivo

do milho, do feijão ou de qualquer outro produto agrícola. Com base em sua experiência passada, ele planta no

presente e prevê como será a colheita futura.

Os sentidos são a origem do conhecimento

Hobbes defendia que nossos pensamentos e raciocínios são possíveis por causa das representações

mentais que temos das coisas que estão fora de nós. Essas representações ou ideias são produzidas por nossos

órgãos dos sentidos. Em outras palavras, o filósofo argumentava que não há nada na mente que não tenha sido

gerado, pelo menos em parte, por alguma percepção sensível. Quer dizer, criamos representações das coisas

olhando para elas, tocando-as, escutando-as etc.

Você e eu temos em nossas mentes representações das coisas que sentimos e percebemos por meio dos

sentidos, por exemplo, ideias a respeito de uma pessoa específica, de uma casa ou da comida que gostamos.

Segundo Hobbes, depois que temos a experiência dos sentidos, adquirimos representações ou ideias das

coisas e, por meio delas, podemos raciocinar, calcular, prever; podemos, enfim, desenvolver

operações intelectuais.

Cena do filme Okja (2017), dirigido pelo cineasta sul coreano Bong Joon-Ho. Nesse filme, discutem-se o entendimento e a sensibilidade dos animais. Até que ponto eles podem sentir e entender o que nós entendemos e sentimos?

O controle da natureza

Seguindo os passos de Francis Bacon, outro empirista inglês, o filósofo Hobbes defendia que a capacidade

humana de prever e raciocinar, refletindo sobre ações futuras e antecipando possíveis acontecimentos, permitia

ao ser humano controlar a natureza. Para Hobbes, o objetivo da ciência era ampliar o domínio humano sobre

a natureza.

Para fazer isso, a ciência deveria estudar ou investigar os fenômenos naturais e descobrir a relação entre as

causas e as consequências desses fenômenos. Essa descoberta tornaria possível controlá-los. Por exemplo, se

sei que a água evapora a determinada temperatura, posso provocar a evaporação de certa quantidade de água ao

elevar sua temperatura. Posso controlar esse fenômeno natural porque conheço a relação entre causa e efeito.

Dessa maneira, Hobbes pensava que, quanto mais o ser humano conhecesse as leis da natureza, quanto

mais conhecesse as relações entre causa e efeito dos acontecimentos, mais poderia dominar a natureza e utilizá-

la em seu benefício.

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Imagem das ruínas da Chernobyl, Ucrânia. Após o acidente ocorrido em 1986 na usina nuclear de Tchernóbil, os moradores precisaram evacuar a cidade, abandonando-a para sempre. O controle sobre a natureza pode provocar sérias consequências ambientais.

Teste seus conhecimentos: 1. Leia a definição de racionalismo e compare com o que você aprendeu sobre empirismo:

“[O racionalismo é] Qualquer filosofia que enfatize o papel da razão, que nesta perspectiva garante a aquisição e a justificação do conhecimento sem auxílio. A preferência pela razão em detrimento da experiência sensorial como fonte de conhecimento.”

(BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 333).

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2. Explique por que a citação de Hobbes reproduzida abaixo é uma defesa do empirismo. “A origem de todas elas (aparências) é aquilo que denominamos SENSAÇÃO (pois não há concepção no espírito do homem que primeiro não tenha sido originada, total ou parcialmente, nos órgãos dos sentidos). [...] A causa da sensação é o corpo exterior, ou objeto, que pressiona o órgão próprio de cada sentido [...]”.

(HOBBES, Thomas. Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 15).

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O conhecimento em Locke

Pense em um recém-nascido. Você acredita que ele tenha noção da existência divina, do que seja certo ou

errado, do tempo, da morte? Ele reconhece a si mesmo? Será que possui alguma ideia em sua mente? Se as

verdades necessárias nascessem com o indivíduo, elas estariam presentes já no bebê. Mas isso parece não

ocorrer de fato... Esse foi o argumento utilizado pelo filósofo inglês John Locke (1632-1704) contra as concepções

inatistas, as quais defendem que certas ideias nascem com o sujeito. Em contrapartida, Locke defendia que todo

ser humano adquire ideias, noções ou conceitos durante sua vida por meio dos sentidos. Para esse pensador, a

mente de um recém-nascido é uma espécie de folha de papel em branco. O que será escrito nessa folha ao longo

da vida dependerá das experiências vividas, das percepções, do que será visto, ouvido ou tocado por ele.

Por exemplo, como você adquiriu as noções ou as ideias de árvore, lápis ou carro? E as cores, como você

soube e aprendeu a identificar cada uma delas com o nome correspondente? Olhando, ouvindo e tocando tais

objetos. Isto é, por meio de experiências sensíveis você foi percebendo as características de todos eles.

Ao contrário de filósofos racionalistas como Descartes, Locke defendeu que a origem de nosso conhecimento

estaria na experiência.

Dois tipos de experiência: a sensação e a reflexão

Segundo Locke, existem dois tipos distintos de experiência: a externa e a interna. A externa, também

chamada de sensação, seria relacionada às coisas que percebemos fora de nós. Por exemplo, se vemos um

cavalo branco ou uma flor branca, surge em nossa mente a ideia de branco. Assim acontece com as ideias de

amarelo, quente, frio, duro, doce, amargo, áspero, liso e todas as outras qualidades que atribuímos às coisas. É

assim que eu conheço o mundo exterior na medida em que ele me atinge com as informações que aguçam meus

sentidos e os preenchem.

A experiência interna, também chamada de reflexão, estaria relacionada às operações da própria mente,

como você verá a seguir. Dessas operações surgem as ideias de dúvida, pensamento, vontade, justiça,

raciocínio etc.

Tirinha de Caeto (2005). O unicórnio é um ser mitológico formado por uma ideia composta: a união de um cavalo a um chifre espiral.

O funcionamento da mente

Assim como um tijolo é o material básico para a construção de uma casa, as ideias simples da sensação ou

da reflexão seriam o material básico para o funcionamento da mente. Para Locke, sem as ideias simples, a mente

ou a razão humana não poderia alcançar nenhum conhecimento mais elaborado. Contudo, uma vez que

adquirisse ideias simples por meio da experiência, a mente atuaria para combiná-las e reuni-las ou separá-las,

produzindo ideias cada vez mais complexas.

Por exemplo, com base na ideia de unidade, a mente humana pode criar a ideia de dúzia, pois a dúzia é a

soma de doze unidades.

Ao estabelecer a experiência como fundamento de todo conhecimento, Locke tornou-se um marco na teoria

do conhecimento e do pensamento moderno. Suas reflexões influenciaram diversos outros pensadores como

Berkeley, Hume e Kant.

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ATIVIDADES 1. Observe a pintura de Jan Brueghel, intitulada “Alegoria da visão e do olfato”, e responda às

questões seguintes.

a) Que sensações a pintura de Jan Brueghel provoca em você?

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b) As sensações despertadas nas pessoas pelo mundo exterior são sempre iguais? Explique.

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c) Quais aspectos da pintura acima remetem aos sentidos da visão e do olfato?

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d) Considerando as ideias de Locke e Hobbes, relacione a pintura ao conhecimento humano.

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2. Com base no pensamento de Locke, podemos afirmar que a ideia de “dezena” é simples ou

complexa? Justifique.

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3. Locke afirma que existem dois tipos distintos de experiência: a externa e a interna. Explique e dê um exemplo

de cada uma delas.

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CAPÍTULO 2

O empirismo de Berkeley e Hume

O que somos sem os sentidos?

Olhou e bebeu cada centímetro da vida, tateou os sentimentos com o cuidado de quem sente e tocou entre os dedos a verdade áspera da existência. Assobiou uma nota de alegria, pôs no bolso uma imagem, cheirou o desconforto das pessoas e das poesias e ouviu a promessa de outro mundo. Então, degustou seu passado na memória, inspirou o aroma da cidade e o da sabedoria, e, já sem sentidos, mergulhou no lago frio da história.

O poema acima reúne sensações retidas por todos os órgãos dos sentidos. Neste capítulo, estudaremos os filósofos empiristas Berkeley e David Hume, para os quais a experiência sensível era importante fonte de conhecimento. Veremos o que cada um deles trouxe de original para o pensamento empirista. Antes disso, pense um pouquinho sobre o poema e responda: 1. No poema, quais sentidos o personagem utilizou?

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2. Transcreva uma frase para cada um dos sentidos.

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3. No título e no último verso, a palavra “sentidos” apresenta dois significados. Quais são?

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O empirismo imaterialista de Berkeley

O filósofo e bispo irlandês George Berkeley (1685-1753) tinha um espírito fortemente religioso. Suas

principais formulações e escritos procuravam combater o ateísmo e as filosofias materialistas. Nesse combate, Berkeley discordava tanto dos indivíduos que não acreditavam na existência de Deus quanto dos pensadores que defendiam que o mundo é inteiramente composto de matéria. Movido por sua religiosidade, o filósofo sustentou que “Ser é ser percebido”, o que se diferencia da ideia de que a matéria é o que constitui o ser. Vejamos como ele chegou a essa formulação.

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Casal de leopardo e pantera fotografados na Índia. Para Berkeley, podemos garantir a existência das ideias (como a ideia dos bichos que estamos vendo), embora não seja certo que as coisas materiais existam fora do pensamento.

Não existe matéria que não dependa da mente

Neste instante, uma pedra acaba de cair no Rio Negro, em plana Floresta Amazônica. Ninguém a viu, tampouco ouviu o barulho de sua queda. Esse som realmente existiu? Provavelmente você responda que sim, pois existem coisas que acontecem independentemente de nossa percepção. Por exemplo, quando terminamos a leitura de um livro e o colocamos na prateleira da biblioteca, mesmo que passe anos sem ser lido ou notado, ele permanece existindo, ou seja, o simples fato de não encontrar um leitor não faz o livro desaparecer. Sua existência não depende de ser ou não ser percebido. A escola onde você estuda também não desaparece quando, de madrugada, todos estão dormindo e nenhum aluno a freqüenta.

Portanto, as existências do barulho, da pedra e do rio independem de nossa percepção. Mas Berkeley não pensava assim. Para ele, a existência de substâncias materiais fora da mente era apenas uma suposição.

Ser é ser percebido

De acordo com Berkeley, só podemos afirmar a existência daquilo que percebemos, daquilo que aparece em nossa mente: as ideias, que são o material de nosso conhecimento. Como, então, elas surgem? As ideias surgem dos sentidos – o odor, a temperatura, a cor, o sabor etc. – ou das operações da mente sobre a percepção – o raciocínio. E as sensações não estão fora da consciência. Portanto, para esse filósofo, só podemos afirmar a existência das sensações ou das ideias que são trabalhadas pela mente. Em outras palavras, só conhecemos ideias.

A substância material é uma suposição

Você já deve ter percebido que Berkeley partiu de algumas ideias de John Locke, mas depois se distanciou dele. Como Locke, o filósofo irlandês defendia que as ideias são os únicos elementos do conhecimento e que elas surgem ou têm origem nas sensações ou nas operações mentais.

Apesar desses aspectos em comum, as reflexões de Berkeley sobre o conhecimento tomaram um rumo diferente das de Locke. Locke defendia a existência de objetos materiais externos que afetam o ser humano e provocam as sensações. Por exemplo, o som de uma guitarra, para Locke, atinge nossos ouvidos e, a partir disso, temos a ideia desse som na nossa mente. Nesse caso, a guitarra, um objeto material externo que posso perceber pelos sentidos, produziu um som que afetou meu sentido auditivo, e, como consequência, apareceu na mente a ideia do som transmitido.

Berkeley, contudo, diria que podemos falar do som ou da imagem da guitarra, pois é verdade que temos sensações ou ideias auditivas e visuais. Entretanto, não poderíamos afirmar que existe uma substância material (a guitarra) ou um som material externo, porque somente conhecemos as ideias ou as sensações.

O filósofo irlandês pensava que as coisas sensíveis só existiriam na mente como ideias decorrentes da percepção. Quer dizer, o fato de haver ideias ou sensações na mente não provaria a existência de uma substância material ou corporal exterior. Por isso, a filosofia de Berkeley ficou conhecida como empirismo imaterialista.

Para esse pensador, conhecer algo é percebê-lo por meio dos sentidos, ou seja, não existiria nada além do que os sentidos são capazes de perceber. Por isso, a filosofia de Berkeley é uma filosofia idealista, porque defende que não existe matéria corporal e que a realidade da natureza é mental ou espiritual. A natureza é o conjunto de ideias ou do que se percebe.

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Ao utilizarmos óculos de realidade virtual, as imagens aparecem em nossa mente, apesar de não podermos afirmar a existência externa daquilo que enxergamos.

Deus e as sensações humanas O pensamento de Berkeley foi um modo original de negar o materialismo da filosofia empirista sem abrir mão

da experiência sensível na construção das ideias e do conhecimento. Você talvez esteja se perguntando: mas se não são os objetos externos materiais (como uma flauta, uma mesa ou uma bola de futebol) que provocam nossos sentidos, qual é a causa de nossas sensações ou percepções? O que afeta nossa mente para que ela tenha ideias dos objetos, sons, cores etc.?

Berkeley defendia que Deus seria o responsável por todas as sensações humanas. Para o filósofo, nossos sentidos seriam afetados por Deus, provocando as ideias sensíveis. Seguindo uma ordem divina, as ideias seriam suscitadas em nós e as leis da natureza respeitariam essa ordem.

Montanha e rio localizados em Conceição do Castelo, no estado do Espírito Santo. Se pensarmos como Berkeley, concluiremos que Deus afeta nossa mente para percebermos a beleza exuberante dessa paisagem.

Hume: o filósofo da natureza humana

A principal preocupação do filósofo e historiador David Hume (1711-1776) foi investigar a natureza humana. Ele pretendia deixar claros os princípios ou as leis universais que regem a vida do ser humano.

Hume pensava que o desenvolvimento de uma ciência humana auxiliaria todas as demais ciências, como a matemática e as ciências naturais, pois todas elas dependem do conhecimento e das capacidades do ser humano. Desse modo, como Locke e Berkeley, Hume procurou investigar as possibilidades e os limites do conhecimento. Em outras palavras, esses três pensadores procuraram responder à pergunta: “O que e como o homem pode conhecer?”.

De certo modo, a investigação de Hume foi inspirada na física de Isaac Newton. Assim como a teoria do cientista explicava objetivamente os fenômenos naturais, Hume procurava determinar os princípios que ordenavam os acontecimentos da mente humana.

Por exemplo, da mesma maneira que Newton formulou as leis da gravidade e da inércia, que explicam o movimento da Lua em torno da Terra, Hume pretendia formular leis que explicassem as relações entre ideias e pensamentos, ou seja, leis que explicassem o funcionamento da mente. Para elaborar essas leis, Hume aplicava o método experimental das ciências naturais ao estudo sobre o conhecimento humano.

Experiência e observação

Como Newton, Hume defendia que as investigações a respeito da natureza e do conhecimento humano deveriam se apoiar na observação e na experiência. O filósofo dizia que a ciência humana não deveria partir de ideias que não podiam ser observadas. A ciência não deveria ter como fundamento nenhuma ideia que estivesse além da experiência, como faziam a filosofia escolástica e o pensamento aristotélico.

Para esse pensador, nada que não pudesse ser observado poderia ser conhecido com segurança. Por exemplo, percebemos como a natureza é complexa, como o organismo dos seres vivos é perfeito, como o Universo é harmônico e supomos que exista um ser inteligente que governe tudo, um Deus. Não podemos saber, no entanto, se esse ser realmente existe, pois ele está além da nossa experiência sensível. Não podemos vê-lo nem tocá-lo; podemos apenas supor sua existência. Em poucas palavras, para Hume, nenhuma existência pode ser real se estiver fora da observação e da experiência.

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“Assim como a ciência do homem é o único fundamento sólido para as outras ciências, assim também o único fundamento sólido que devemos dar a ela deve estar na experiência e na observação”

(HUME, David. Tratado na natureza humana. São Paulo: Ed. Unesp, 2001, p. 22).

As percepções da mente

Para Hume, existem dois tipos de percepção mental: as impressões sensíveis e as ideias. As impressões

sensíveis são as sensações ou emoções que vivemos de maneira imediata, como a dor ou o frio, ou a percepção direta de algo (ver uma caneta, tocar um livro, escutar uma música), ou, ainda, um sentimento forte como a paixão. As ideias são imagens ou cópias das impressões e estão presentes no pensamento ou raciocínio.

Assim, por exemplo, a percepção imediata de um sorvete é uma impressão sensível. A lembrança de que saboreamos um sorvete é uma ideia. A emoção de marcar um gol é uma impressão sensível. Relembrar a vitória de nosso time é uma ideia. As impressões sensíveis são mais nítidas e vívidas na mente do que as ideias.

Jogadoras da seleção brasileira de futebol feminino comemoram um gol em jogo realizado em Natal/RN. Na comemoração de uma vitória, expressamos uma forte emoção. Quando recordamos esse evento, nossa sensação já não é tão nítida quanto antes.

Até onde o conhecimento humano pode ir?

Pelo que foi dito até agora, você já deve saber qual é a resposta de Hume para essa pergunta. Para ele, o

limite do conhecimento é a experiência, o que o ser humano pode perceber pelos sentidos.

Assim, Hume foi mais consequente que Locke e Berkeley. Locke supôs que as substâncias materiais eram a

causa das percepções sensíveis ou das ideias. E a existência dessas substâncias iria muito além das qualidades

percebidas pelos sentidos. Por exemplo, além do sabor, da cor, da textura de uma laranja, existiria a essência

dessa laranja, uma substância material à qual todas as qualidades se reportariam.

Berkeley questionava a existência de uma substância material e defendia que Deus era o responsável pelas

sensações humanas.

Para Hume, contudo, tanto a existência de uma substância material, uma essência, como a existência de

Deus estariam além da capacidade da experiência. Não seria possível ver ou tocar a essência da substância

material nem de Deus. Portanto, Hume não aceitava nenhuma dessas explicações.

O que provocaria as impressões sensíveis se não fosse Deus nem as substâncias materiais externas ao ser

humano? Hume defendia não ser possível saber com toda a certeza a causa ou a origem das sensações e

impressões sensíveis. Essa informação estaria além de nosso entendimento, pois não podemos obtê-la por meio

da experiência sensível, que é, para Hume, a única forma segura de conhecer.

ATIVIDADES

1. Marque a alternativa correta a respeito de Berkeley. a) Defendia que não era possível afirmar seguramente a existência de coisas materiais fora da mente. b) Afirmava que as ideias surgiam diretamente das coisas da natureza criadas por Deus. c) Ficou conhecido por ter desenvolvido o empirismo materialista.

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2. Explique a afirmação de Berkeley: “ser é ser percebido”.

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3. Diferencie impressões sensíveis e ideias com base no pensamento de David Hume.

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4. Interprete a tirinha abaixo com base nos conceitos de “impressão sensível” e de “ideia”, propostos por Hume.

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5. “Embora nosso pensamento pareça possuir liberdade ilimitada, verificaremos que ele está realmente

confinado dentro de limites muito reduzidos e que todo poder criador do espírito humano não ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar ou diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e pela experiência. Quando pensamos em uma montanha de ouro, apenas unimos duas ideias compatíveis, ouro e montanha, que outrora conhecêramos”

(HUME, David. Investigação acerca do entendimento humano. São Paulo: Nova cultural, 1999, p. 37).

Se tudo o que conhecemos vem da experiência, como Hume justificaria a compreensão sobre o que é um centauro ou um unicórnio, seres míticos que não existem na realidade?

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6. Na citação a seguir, a filósofa Marilena Chauí descreve dois importantes conceitos lógicos. “Princípio de identidade – (A é A, isto é, uma coisa é sempre e necessariamente idêntica a si mesma)”; “Princípio da não-contradição – (A é A e não pode ser não-A, isto é, é impossível que uma coisa seja idêntica

a si mesma e contrária a si mesma, ao mesmo tempo e na mesma relação)”. (CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia. São Paulo: Companhia das letras, 2002, p. 365).

Agora, identifique se as frases I e II contrariam o princípio da não-contradição e da identidade. Justifique. I. Meu time ganhou o jogo de futebol ontem, mas fez menos gols válidos que o adversário na partida. II. Vi um quadrado com cinco lados.

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7. Uma frase contraditória é necessariamente falsa, mas nem toda frase falsa é contraditória. Sabendo disso,

analise as frases a seguir e marque “S” para a frase apenas falsa sem contradição e “C” para frase falsa com contradição.

( ) O filósofo Platão não existiu. ( ) Ele é solteiro, mas está casado. ( ) Deus existe e não existe ao mesmo tempo. ( ) Todo gato tem sete pernas. ( ) A terra é plana. ( ) Vitória é uma cidade capixaba do estado de São Paulo.

Filosofia e cotidiano: O corpo para além da razão

Nesta unidade, entramos em contato com os empiristas. Vimos como esses pensadores destacaram a

importância dos sentidos e da percepção para o conhecimento. Indiretamente chamaram a atenção para o corpo,

capaz de ver, ouvir, tocar e sentir sabores. Esses filósofos não se opuseram à razão humana, mas, para eles, as

reflexões racionais dependeriam da experiência sensível ou corporal. Sem o corpo não haveria

conhecimento humano.

Se observarmos a trajetória da filosofia ou do pensamento racional, veremos que boa parte de sua história é

de negação do corpo: a percepção corporal é considerada enganosa, conforme Parmênides; o corpo é tido como

prisão da alma e impede a evolução plena, segundo Platão; o corpo é visto como uma porta para o pecado por

boa parte dos filósofos medievais. Tais formulações nos fazem indagar: Será isso verdade?

Nadadora Alia Atkinson fotografada logo depois de uma prova do Mundial de Natação, em Doha, 2015. A ideia de que a educação do corpo é

separada da educação da mente cria uma visão fragmentada do corpo humano.

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Visão fragmentária do corpo

Provavelmente você já participou de uma aula de educação física, fazendo um conjunto de ações possibilitadas pelo seu corpo. Em geral, as pessoas sentem prazer ao realizar essas atividades. Mas, para avançarmos na reflexão proposta, repare no nome da disciplina: “educação física”.

Essa expressão está indicando um tipo de educação, voltada para o físico. Se essa qualificação é necessária, é porque se entende que há uma educação não física, uma educação mental ou intelectual. Então, teríamos uma educação corporal e outra educação mental. Mas é possível ter uma educação para o corpo sem a presença do mental ou uma educação mental sem a presença do corpo?

Essa separação entre corpo e mente não existiu desde sempre. Na filosofia, apesar de bastante antiga, ela se consolidou com a concepção dualista de Descartes. No sistema desse filósofo, entre as coisas criadas por Deus, há duas substâncias distintas: a pensante (mente) e a extensa (corpo). Cada uma delas tem uma propriedade principal. O pensamento constitui a essência da substância pensante; a extensão constitui a essência da substância corpórea.

Esse entendimento originou o problema conhecido como dualismo cartesiano. Se a mente e o corpo são duas substâncias diferentes ou completamente separadas, como uma influenciaria a outra? Como seria a relação entre corpo e mente?

O mundo e o corpo

Maurice Merleau-Ponty, entre outros pensadores contemporâneos, criticou a visão dualista de Descartes. Ele

afirmava que a separação entre corpo e mente era uma abstração, algo que fazíamos mentalmente, mas que não

correspondia à realidade. Na vida concreta, essa separação não existiria pois não há pensamento que não tenha

relação direta ou indireta com nossas experiências sensíveis. Antes de tudo, somos um corpo que está e se

movimenta no mundo entre coisas e pessoas. Em outras palavras, antes da razão, está a vivência ou

a experiência.

“O mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo”, afirmou Merleau-Ponty em uma de suas

principais obras, Fenomenologia da percepção. Isto é, a percepção ou a experiência sensível antecede o

pensamento sobre o mundo. E como vivenciamos essa relação com o mundo? Com o corpo. É ele que mergulha

no mundo e que, movendo-se, o explora. O corpo, que se movimenta, percebe e vive a realidade do mundo, é a

base sobre a qual se erguem nossos conceitos e teorias racionais.

Não é, então, uma coisa ou substância pensante que, sozinha, isolada e anterior a tudo, desenvolve

reflexões, como queria Descartes. O próprio pensamento e o pensar são produtos dessa relação entre o corpo e o

mundo. A razão se desenvolve encarnada em um corpo que explora e sente o mundo.

Corpo e sociedade

Se o corpo humano é uma totalidade aberta às relações sociais, ele não pode ser pensado apenas do ponto

de vista individual, pois o corpo de cada indivíduo se desenvolve na relação com o outro. Assim, a pergunta sobre

a condição do meu corpo deve visar a uma resposta que abarque também as influências da sociedade sobre os

corpos das pessoas. Nossa reflexão, então, amplia-se: como a sociedade utiliza os corpos? O que ela

espera deles?

A “coisificação” do trabalhador

O filósofo alemão Karl Marx, que analisou o sistema capitalista, apontava a degradação do trabalho como um

dos problemas desse sistema. Um dos aspectos que colaboraria para que isso acontecesse seria exatamente a

separação entre pensamento e ação (movimento corporal).

No livro O capital, para esclarecer sua posição, Marx compara uma abelha e um arquiteto. A abelha realiza

movimentos e constrói colmeias sofisticadas. Algumas colmeias causam a admiração humana. Mas o que

distinguiria o pior arquiteto da melhor abelha é que ele pensa ou projeta na sua mente sua construção antes de

torná-la realidade. Assim, a relação entre pensar e fazer é uma característica fundamental do ser humano.

Pois é exatamente essa relação entre o pensar e fazer, projetar e realizar movimentos, que se desfaria nas

ações do trabalhador envolvido diretamente no processo de produção de mercadorias. O trabalhador seria tratado

como uma peça do processo, da engrenagem, pois suas ações seriam simples, repetitivas, mecânicas e

separadas do planejamento – executado pelos patrões e por seus representantes.

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Cena do famoso filme Tempos Modernos (1936), de Charles Chaplin. O filme aborda de maneira cômica os modos de produção

industrial baseados na divisão do trabalho e na especialização da linha de montagem, bem como suas consequências na vida cotidiana do trabalhador daquela época.

Ao trabalhador caberia apenas ajustar suas ações ao ritmo já programado da produção. É nesse sentido que

se poderia falar de “coisificação” do trabalhador, visto que suas ações seriam destituídas de reflexão. Fabricação de corpos dóceis As reflexões de Michel Foucault sobre a utilização do corpo chamaram atenção para algumas características

da sociedade moderna, entre elas o disciplinamento e a fabricação de corpos docilizados. Dócil é todo corpo que pode ser submetido, utilizado, transformado e aperfeiçoado para determinados fins

específicos. Por exemplo, na fábrica, os corpos são distribuídos espacialmente de acordo com as funções do trabalhador, os movimentos são realizados obedecendo ao ritmo das máquinas e da produção, o comportamento é controlado para que o processo produtivo não sofra prejuízos. O corpo na fábrica é disciplinado para ser um dócil instrumento de produção de mercadorias.

Essa mesma lógica de poder disciplinador estaria presente em diversas instituições de nossa sociedade, como a prisão, o hospital, o exército e a escola. Lembre-se, por exemplo, da disposição espacial escolar, da separação em séries e classes, do respeito rígido aos horários e normas, etc. Há um conjunto de saberes e técnicas voltado para o disciplinamento escolar, visando à eficácia do processo educacional.

Estudantes em escola na China. Observe que há uma disciplina do corpo nas escolas, que pode ser relacionada também com uma linha

de produção fabril.

Corpo ideal e consumo

Talvez a separação entre corpo e pensamento na sociedade atual fique mais evidente ao tratarmos do que

pode ser chamado de indústria da beleza – a produção de mercadorias e serviços voltados para o corpo. O principal apelo aos consumidores dessa indústria é a propaganda de um corpo ideal, considerado o objeto de consumo mais buscado e incentivado pela mídia.

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Faz-se tudo para alcançar o corpo ideal representado por modelos, atrizes ou atletas. Mas, como a expressão indica, trata-se de um corpo idealizado, que nunca será plenamente alcançado pelo corpo real e diverso das pessoas. O corpo ideal é uma construção social, uma ideia que muitas vezes se impõe ao corpo real.

A publicidade promete que, adquirindo determinada mercadoria, o corpo real chegará ao corpo ideal ou bem perto dele. Maquiagens, cirurgias plásticas, academias, dietas, tudo é vendido com a promessa do corpo ideal. Mas a satisfação plena nunca é alcançada, pois sempre haverá uma distância entre o real e o ideal. Tal fracasso gera angústia, que, por sua vez, traz mais necessidade de consumo.

Esse mecanismo – criação de desejos, promessa de satisfação, consumo, impossibilidade de satisfação plena, angústia, novo ciclo de consumo – tem também como consequência, além da intensificação do consumismo, um conjunto de transtornos relacionados à imagem corporal que cada um tem de si mesmo.

Outdoor em Londres, Inglaterra, fazendo referência a um corpo feminino “padrão” para curtir o verão. Em 2016, a prefeitura de Londres

proibiu anúncios que estimulem padrões de beleza irreais nos espaços publicitários do transporte público da capital inglesa.

ATIVIDADES 1. Por que Merleau-Ponty afirmou que o mundo não é aquilo que eu penso, mas aquilo que eu vivo? Explique.

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2. Com base no pensamento de Merleau-Ponty exposto última questão, podemos relacionar essa ideia do

filósofo com a noção de “pós-verdade”? Explique.

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3. Explique a ideia de Karl Marx sobre a coisificação do trabalhador.

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4. Baseando-se em suas vivências e ideias, qual a relação atual entre o corpo real e o corpo ideal em uma

sociedade consumista?

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CAPÍTULO 3

Immanuel Kant e a crítica da razão

Filósofos retratados pelo desenho animado norte-americano “Os Simpsons”. Kant é o primeiro da esquerda para a direita.

A mente humana ordena os fenômenos Aprendemos no capítulo anterior que nossos sentidos funcionam como “filtros” que nos capacitam a

compreender a realidade física. Para o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), nossa mente também tem “filtros” intelectuais ou racionais que condicionam, que dão as bases para toda experiência sensível. Quer dizer, tudo o que percebemos aparece em nossa mente de determinada maneira, respeitando certas condições. Kant estudou quais eram essas condições.

Quando percebemos algo, aparecem em nossa mente imagens, representações ou, segundo a expressão do próprio Kant, fenômenos. Por exemplo, quando observamos uma árvore, que é uma coisa externa a nós, ela aparece em nossa mente de determinada maneira. A árvore em si mesma é externa ao ser humano, mas o que aparece (o fenômeno) é algo interno. Não conhecemos as coisas como são, mas as conhecemos como elas aparecem para nós, como elas aparecem em nossa mente. E isso nos leva a pensar: conhecemos a realidade exatamente como ela é ou apenas como nós a percebemos, isto é, como ela é para nós?

A sensibilidade e o entendimento Para Kant, os fenômenos dependem, por um lado, das impressões sensíveis que obtemos por meio dos

sentidos; por outro lado, dependem da nossa capacidade mental ou racional de dar forma ou ordenar essas impressões.

Quer dizer, quando observamos alguma coisa, quando vemos ou tocamos algo, não apenas recebemos impressões de maneira passiva, mas atuamos sobre essas impressões, criando os fenômenos, as imagens mentais de tais coisas em nossa razão. Segundo Kant, nós conseguimos dar forma aos fenômenos por meio de nossa sensibilidade, que é a maneira como recebemos as sensações. E também por meio de nosso intelecto ou entendimento, que é a maneira como pensamos as sensações recebidas.

A sensibilidade: recebendo as impressões sensíveis Pense na representação de uma caneta. Ao fazer isso, esse objeto aparece na sua mente com uma forma

que ocupa um lugar no espaço e em determinado tempo. Faça outro exercício: procure representar mentalmente qualquer objeto que esteja próximo a você, mas não dê a ele nenhum formato espacial. Você perceberá que isso é impossível, pois nenhuma coisa externa a nós é representada em nossa consciência sem que exista espacial e temporalmente.

Para Kant, espaço e tempo são condições prévias da sensibilidade, isto é, são requisitos para que haja representações em nossa consciência. A mente humana, ao receber a matéria da sensação, organiza as impressões sensíveis em um espaço e um tempo determinados. Para o filósofo, o espaço e o tempo são intuições ou modos de receber o que vem da sensibilidade. Ambos são condições a priori (aquilo que não aprendemos pela experiência, mas apenas de maneira racional) para qualquer experiência ou percepção. Assim como não é possível enxergar ou ouvir sem os órgãos dos sentidos responsáveis por essas sensações – olhos e ouvidos –, não é possível que exista uma representação sensível na consciência sem que ela seja espacial e temporalmente delimitada.

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O intelecto atua sobre as impressões da sensibilidade Sem o ordenamento das intuições da sensibilidade no espaço e no tempo, a experiência sensível não seria

possível. Do mesmo modo, não haveria conhecimento apenas com a recepção da sensibilidade. Kant defendeu

que seria necessário pensar o material sensível para conhecê-lo. Em outras palavras, o ser humano (o ser que

conhece) atua sobre as representações ou fenômenos, estabelecendo relações entre eles. Por exemplo, nosso

intelecto pode atuar e estabelecer uma relação de causa e efeito entre duas constatações independentes: “Há

fogo” e “Há fumaça”. Por meio da ação do nosso intelecto ou entendimento, que o usa o conceito de causalidade,

podemos afirmar que “o fogo é a causa da fumaça”.

Assim, no processo de conhecimento, o sujeito recebe as impressões sensíveis dando a elas uma

organização espacial e uma existência no tempo. Com base nos dados sensíveis, pensamos a respeito dos

fenômenos por meio de conceitos, isto é, estabelecendo relações entre eles. Sem a sensibilidade, nada poderia

ser captado sensivelmente. Sem o entendimento e os conceitos, os fenômenos não podem ser pensados. Esses

conceitos ou categorias do entendimento, que tornam possível o pensamento, são a priori. Com isso, Kant faz

uma síntese entre duas concepções conflitantes: o empirismo e o racionalismo.

Aeronave sobrevoando a cidade de Sydney, Austrália. A imagem pode nos dar a impressão de que o avião circula entre os edifícios, na

mesma altura deles, mas o intelecto nos alerta que o ângulo de onde foi tirada a foto favorece essa ilusão. A mesma coisa se passa quando

observamos artes e imagens de ilusão de ótica.

A revolução copernicana de Kant: invertendo a relação entre sujeito e objeto

Você se lembra da revolução copernicana? Ela determinou uma profunda mudança na visão do ser humano

sobre o universo. Depois dela, abandonou-se a ideia de que a Terra estaria imóvel no centro do universo com o

sol girando ao seu redor.

Fazendo uma analogia com a descoberta de Copérnico, Kant afirmou que suas investigações promoveram

uma espécie de revolução copernicana na teoria do conhecimento, mudando radicalmente a forma de entender o

conhecimento humano. Kant inverteu a relação entre sujeito e objeto no processo do conhecimento. Antes dele,

pensava-se que o sujeito, no ato de conhecer, recebesse de maneira passiva as impressões vindas dos objetos

externos. Com Kant, ficou esclarecido que o sujeito que conhece não está passivo, não recebe apenas os dados

da sensibilidade, mas é ativo. O sujeito do conhecimento dá forma e condições as impressões

sensíveis ativamente.

Isso significa que não é o sujeito quem deve se adaptar aos objetos exteriores para conhecê-los, mas, ao

contrário, são as impressões sensíveis que têm que se adaptar as estruturas humanas de conhecimento, ou seja,

às estruturas da sensibilidade e do entendimento.

Dessa forma, Kant defendeu que existem condições a priori para qualquer experiência sensível. Essas

estruturas da sensibilidade e do entendimento estão presentes em todo ser humano e possibilitam a

experiência sensível.

Como fez Copérnico revolucionando a teoria cosmológica, afirmando que o sol é o centro do universo, Kant

trouxe o sujeito para o centro do processo do conhecimento, questionando a tradição, que depositava nos objetos

a centralidade desse processo. Com Kant, o sujeito passou a ser o principal agente do conhecimento.

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ATIVIDADES 1. Com base no trecho abaixo, explique a relação entre sensibilidade e entendimento no processo

do conhecimento. “Sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, nenhum seria pensado. Pensamentos

sem conceitos são vazios; intuições sem conceitos são cegas”. (KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Lisboa: Fundação Calouste, 1994, p. 89).

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2. Por que, para Kant, é um erro pensar que conhecemos as coisas como elas são em si?

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3. Em sua opinião, existem conhecimentos inatos (de nascença) ou tudo o que sabemos aprendemos ao longo

da vida?

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4. Observe a imagem e faça o que se pede:

a) Quais as diferenças entre a árvore da foto e uma árvore real?

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b) Estabeleça uma relação entre a árvore da foto e a árvore de uma representação mental.

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5. O que significa afirmar que Kant fez uma síntese de duas formas distintas de pensar o conhecimento humano, o empirismo e o racionalismo?

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6. Você conhece imagens de ilusão de ótica? Faça uma pesquisa sobre algumas delas na internet e responda:

ao vermos uma imagem dessas, como nossa sensibilidade e nosso entendimento agem conjuntamente para a correta percepção do que estamos vendo?

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