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C ap itu lo 3
.Judlclario: entre a .Justlca e a PoHtica
ROGERIO BASTOS ARANTES
Apresentar uma instituicao ou dimen-
s6es relativamente aut6nomas do sistema
politico nao e tare fa facil, especialmente
diante das diversas alternativas que se abrem
a propostas desse tipo. Na maioria das ve-zes, a rendencia mais comum e recorrer ahist6ria, na expectativa de que a descricao
de uma sucessao de fatos ou etapas torne
inteligiveis a natureza e as especificidades
do objeto que esta sendo analisado. Embo-
ra a hist6ria seja uma maneira util e segura
de apresentar determinadas instiruicoes po-
liticas, nao podemos esquecer a importante
contribuicao que outros pontos de vista
podem oferecer a essa descricao, tais comoaqueles preocupados com os padroes de
organizacao interna dessas instituicoes (ana-
lise organizacional), ou aqueles que recor-
rem a cornparacao de diferentes paises e
contextos socioculturais e econ6micos (me-
todo comparativo), ou ainda aqueles que se
concentram na descricao formal das leis e
estatutos juridicos que definem 0 funciona-
mento da insrituicao e suas relacoes com as
demais (rnetodo institucional),
Ao tentar descrever a natureza e as
especificidades do judiciario como institui-
~ao judicial e politica, tentaremos uma com-
binacao dessas diferentes abordagens, pro-
porcionando uma visao abrangente sobre a
organizacao. Lancando mao da historia, do
metodo comparativo e da descricao juridi-
co-formal do judiciario, esperamos construir
uma apresentacao que demonstre a impor-tan cia dessa instituicao no ambito do siste-
ma politico e que incentive 0 leitor a buscar
outras e novas respostas a quest6es aqui men-
cionadas e nao completamente resolvidas.
Este capitulo esta estruturado em tres se-
~6es: na primeira, tratamos da construcao
institucional do judiciario moderno a par-
tir de duas grandes tradicoes (a norte-ame-
ricana e a francesa); na segunda secao, ana-
lisamos a expansao das funcoes judiciais epolfticas do judiciario no seculo xx (e as
variacoes em Torno daquelas duas grandes
tradicoes), dedicando ao judiciario brasi-
leiro atencao especial; a terce ira e ultima
secao levanta hip6teses sobre 0 futuro do
judiciario como orgao de justica e como
poder politico.
1. Judiciario moderno:6rg8oode Justi~aou poder politico?
As gran des transforrnacoes pelas quais
passou 0mundo ocidental nos seculos
XVIII e XIX tiveram forte impacto sobre
1. Autor de [u dic ia rio e P olitic a n o B ra sil. Sao Paulo: Idesp/Sumare, Educ, 1997, e Ministerio Publico e Politica
n o B ra sil . Sao Paulo: Idesp/Surnare, Educ, 2002.
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as funcoes da justica e sobre a organizacao
do judiciario, Ainda durante 0 Antigo Re-
gime (seculos XV-XVIII), as monarquias ab-
solutistas europeias ja haviam promovido
uma significativa centralizacao e racionali-
za~ao da adrninistracao estatal, incluindo ai
os cargos e funcoes da magistratura antes
dispersos e privatizados pela aristocracia.
Do ponto de vista economico, 0 desenvolvi-
mento das relacoes comerciais e de produ-
~ao e a gradual implantacao do capitalismo
tambern levaram a valorizacao da justica
como meio de garantia das relacoes entre
agentes econornicos, conduzindo a magis-tratura a uma profissionalizacao crescente
e 0 Direito a condicao de principal instru-
mento de racionalizacao da vida social e eco-
nornica.
A derrubada dos regimes absolutistas e
a fundacao dos cham ados Estados liberais
na Europa enos Estados Unidos rnarcaram
uma profunda transforrnacao no papel da
justica, a cornecar pelo reconhecimento de
sua autonomia como fun~ao estatal e, em
alguns paises, ate mesmo como poder de
Estado. Essa distincao entre funcao estatal
e poder politico remonta a duas experien-
cias paradigmaticas de (reifundacao do Ju-
diciario no processo de criacao dos Estados
liberais: a norte-americana de 1787 e a fran-
cesa de 1789.
Embora os processos que levaram a ela-
boracao do texto constitucional america-no de 1787 e a Revolucao Francesa inicia-
da em 1789 tenham sido influenciados pelo
pensamento politico liberal que corria 0
mundo a epoca, 0 fato e que eles deram
origem a dois modelos constitucionais bas-
tante distintos e, par decorrencia, 0 Judi-
ciario emergiu dessas duas experiencias com
papeis significativamente diferentes. Como
as revolucoes americana e francesa influen-
ciaram 0 curso historico de outros tantos
pafses, e possivel tomar Franca e Estados
Unidos como dois modelos principais de
definicao do judiciario moderno, que ins-
piraram a formacao dos demais Estados li-
beral-democraticos nos seculos XIX e XX:
a experiencia francesa, rnais republicana do
que liberal, rnodernizou a funcao de justica
comum do judiciario mas nao the conferiu
poder politico; a americana, rnais liberal do
que republicana, nao 56 atribuiu a magis-
tratura a importante funcao de prestacao dejustica nos conflitos entre particulares, como
elevou 0judiciario a condicao de poder po-
litico.
Sob a influencia de gran des auto res
como Locke (1632-1704) e Montesquieu
(1689-1755), a f6rmula da separacao de
poderes difundiu-se no final do seculo XVIII
como necessaria a limitacao do poder poli-
tico do Estado e a defesa das liberdades in-
dividuais. Consagrada par Montesquieu
com base em suas observacoes sobre 0siste-
ma politico ingles, a disrincao de funcoes e
poderes entre Executivo, Legislative e Judi-
ciario passou a ser considerada indispensa-
vel a constituicao de uma ordem politica li-
beral e ao ideal de urn Estado limitado, aten-
dendo a maxima de que, "pela disposicao
das coisas, 0 pod er freie 0 poder",' Embora
com pesos diferentes, Fran~a e Estados Uni-< i o S orientaram-se por esse principio e pro-
moveram, cada urn a seu modo, a separa-
~o de poderes.
, " Segundo 0 artigo 16 da Declaracdo dos
bire;tos do Homem e do Cidaddo da Assem-
b I 4 i a Nadonal Francesa (1789), "toda socie-
dade na qual a garantia dos direitos nao far
2. Montesquieu. Do Espirito das Leis. Sao Paulo: AbriLCuitural, 1973, p.156.
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assegurada, nem a separacao de poderes
dererrninada, nao tern Constituicao". Antes
da Franca, em 1787, os Estados Unidos ja
haviam utilizado 0mesmo principio para
formatar aquele que seria 0texto constitu-cional mais importante da tradicao liberal,
contando inicialmente com apenas sete ar-
tigos estruturados exatarnente em torno da
formula da triparticao dos poderes.'
A primeira e mais importante diferenca
entre Franca e Estados Unidos e que, no pri-meiro caso, a plataforma liberal foi utilizada
no combate a monarquia absolutista vigente
no pais havia tempos, resultando daf a pro-posta de esvaziamento do Poder Executive e
de fortalecimento do corpo legislativo, prin-
cipal representante da soberania popular.
No caso americano, a experiencia da pri-
meira decada de independencia revelou que
govern os populares nao estavam imunes ao
arbitrio, e outras possibilidades de tirania -
nao so aquela promovida por urn monarca
absoluto - deveriam ser prevenidas. James
Madison, em urn dos famosos "artigos
federalistas" (escritos para tentar convencer
os cidadaos de Nova York a votar favora-
vel mente a prornulgacao do novo texto
constitucional), deixou bern claro 0motivo
da rigorosa adocao do princfpio da separa-
~ao de poderes: "0acumulo de todos os
poderes legislative, executivo e judiciario
nas mesmas maos, seja de uma pessoa, de
algumas ou de muitas, seja hereditario,autodesignado ou eletivo, pode ser justa-
mente considerado a propria definicao de
tir an ia "." Note-se, portanto, que os
formuladores da Constituicao americana
divisaram a possibilidade da tirania para
alern do governo autoritario de urn so, che-
gando a temer sua ocorrencia tarnbem sob
o governo eletivo de muitos, ou seja, sob 0
governo democrarico da maioria. Por essarazao, e contrariamente ao que fizeram os
franceses, os americanos nao afirmaram a
supremacia do parlamento e, reconhecen-
do que 0 corpo legislativo nao poderia fi-
car imune a controles, trataram de imagi-
nar formas de limitar 0 seu poder politico."
As diferentes aplicacoes praticas da tese
de Montesquieu resultaram em definicoes
bastante distintas para 0 judiciario, no qua-
dro geral da separacao de poderes. Na Fran-
<;:a,a ideia de supremacia do Legislativo, bern
como a profunda desconfianca dos revolu-
cionarios em relacao a magistratura do An-
tigo Regime, nao poderiam ter levado a uma
3. A Constiruicao elaborada pela Convcncao da Filadelfia em 1787 (ii qual dez novos arrigos foram acresci-
dos na primeira sessao do Congresso em 1791) continha apenas sere artigos: 0 primeiro dispunha sobre 0
Legislativo, 0 segundo sabre 0Executivo e 0 terceiro sobre 0judiciario; 0quarto tratava de assunros
federarivos e do relacionamcnto entre os estados; 0 quinto tratava de procedimcnros para votacao deernendas a Constituicao e os dois ultirnos estabeleciam regras de rransicao para 0 novo modelo constitu-
cional e sua ratificacao pelos estados.
4. Madison, James, Hamilton, Alexander e Jay, John. Os artigos federalistas, 1787-1788. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1993. p.331-2.
5. Esse receio teve base real na experiencia de caos econornico e social que atingiu os estados americanos
independentes, apos 1776. 0 ponto maximo ocorreu precisarnente quando os Legislativos locais passa-
ram a decretar perdao de dividas de agricultores falidos, muitas vezes anulando decisoes judiciais favora-
veis aos credores. A gcneralizacao de praticas arbirnirias por parte dos legisladores levou os constituintes
de 1787 ao reconhecimento de que submeter 0 poder politico ao povo nao era suficiente, e que medidas
adicionais de contcncao do organ representativo dessa soberania popular seriam necessarias. Para uma
analise do contexto hist6rico e dos motivos principals que levaram a [ormulacao do texto constitucional
arnericano, ver a apresentacao de Isaac Kramnick a Os artigos [ederalistas, op. cit., p.1-86.
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valorizacao do J udiciario como poder de
Estado. Nos Estados Unidos, a preocupa-
~ao com 0 direito a propriedade frente a
voracidade legislativa de governos popula-
res acabou elevando 0 judiciario a condi-
~ao de poder politico, capaz de se colocar
entre 0 governo e 0 cidadao, na defesa dos
direitos individuais deste ultimo (principal-
mente 0 direito a propriedade).
A condicao de poder politico do Judicia-
rio nos tempos modernos decorre de sua
capacidade de controlar os aros norrnativos
dos demais poderes, especialmente as leis
produzidas pelo parlamento. Essa funcao,
conhecida como judicial review ou controle
de constitucionalidade das leis, coloca 0ju-
diciario em pe de igualdade com os demais
poderes, exatarnente naquela dimensao mais
importanre do sistema politico: 0 processo
decisorio de estabelecimento de normas (leis
e atos executivos) capazes de impor compor-
tarnentos. Nos paises em que 0 judiciario ou
urn tribunal especial pode ser acionado para
verificar 0 respeito das leis e dos atos
normativos a Constituicao, pode-se dizer que
existe urn terceiro poder politico de Estado,
ao lado do Executivo e do Legislativo. Nos
paises em que essa funcao inexiste, 0 Judi-
ciario assemelha-se a urn orgao publico or-
dinaric, responsavel pela importante tarefa
de prestar justica nos confliros particulares,
mas incapaz de desempenhar papel politico
no processo decisorio normativo. E nesse
sentido que Estados Unidos e Franca cons-
tituem exemplos paradigmaticos de delega-
~ao e de nolo delegacao, respectivamente,
desse papel politico a magistratura.
Na Franca, 0processo revolucionario ini-
ciado em 1789 desdobrou-se em tres textos
constitucionais, promulgados em 1791,
1793 e 1795. A despeiro de refletirem 0
maior ou menor grau de radicalizacao das
diversas fases da revolucao, em nenhum de-
les 0udiciario recebeu a missao de contro-
lar os aros dos dernais poderes e apenas teve
valorizado seu papel de prestador da justica
comum, civil e criminal. A primeira Consti-
ruicao, de 1791, fez mencao as tres funcoes
de governo - executivo, legislativo e judicia-
rio - mas manreve 0 regime monarquico,
No Capitulo V , do judiciario, 0 artigo 10
afirmava que a funcao judiciaria nao pode-
ria ser exercida nem pelo legislativo nem pelo
executivo, mas no artigo Y deixava absolu-
tamente claro que os tribunais ndo tinham 0
direito de suspender a execucdo das leis. Esses
dois dispositivos foram recolocados no tex-
to de 1795 (artigos 202 e 203, respectiva-
mente), que marcou a retomada burguesa do
curso revolucionario, Enrretanto, das tres
constiruicoes, a que mais se afastou da ideia
liberal de separacao e equilfbrio de poderes
foi aquela elaborada pelos radicais jacobinos
(1793), considerada pelo historiador Ingles
Hobsbawm "a primeira constiruicao genui-
namente democratica proclamada por urn
Estado moderno"." Pois a primeira consti-
tuicdo democrdtica moderna ndo reservou
papel politico ao [udicidrio, Ao lado do su-
fragio universal e de outras medidas igua-
litarias, 0 texto de 1793 estabeleceu a su-
premacia do pari amen to como orgao da
soberania popular e, com base na ideia
rousseauniana da vontade geral, fixou a
supremacia da lei: segundo 0artigo 4 da de-
claracao de direitos que precedia 0 texto
constitucional, "a lei e expressao livre e sole-
ne da vontade geral" e so ela poderia punir,
6. Hobsbawm, Eric J . A Era das Reuolucoes. 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 9.ed., 1996. p.87.
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proteger e estabelecer 0que era justo e uti I
a sociedade. Ou seja, nenhuma outra insti-
tuicao social ou politica poderia colocar-se
entre 0 estado e a nacao, entre 0 corpo
legislativo e a soberania popular, entre a
vontade geral e 0 individuo, Nao havia es-
paco, portanto, para que 0 judiciario fun-
cionasse como poder politico interrnediario
e orgao controlador dos demais poderes. E
verdade que varies artigos da constituicao
de 1793 foram dedicados as funcoes da jus-
rica civil e criminal (artigos 85 a 100), mas
nenhum deles autorizava 0 judiciario fran-
ces a desempenhar outro papel que nao 0de
prestacao da justica nos conflitos entre par-
ticulares. Cabe registrar ainda que mesmo os
textos mais liberais e menos dernocraticos de
1791 e 1795, hem como 0de 1793, estabe-
leceram 0 principio eletivo para cargos da
magistratura (ate mesmo com mandato, no
caso de 1793), 0 que respondia ao ideal re-
publicano e antiaristocratico de preenchimen-
to das funcoes publicas nessa fase deredefinicao revolucionaria do estado frances.
A contraposicao entre Estados Unidos e
Franca lembra 0 classico antagonismo en-
tre Liberdade e Igualdade, que tern no di-
reito a propriedade sua pedra de toque.
Embora os movimentos revolucionarios
frances e americano ten ham levantado es-
sas duas bandeiras, nos Estados Unidos a
liberdade ditou mais regras do que a igual-dade; na Franca, as tentativas mais radicais
foram no sentido inverso e, ernbora nao te-
nham se consolidado, deixaram marcas du-
radouras nas instituicoes politicas francesas.
Se a pedra de toque desse antagonismo foi
o direito a propriedade, as constiruicoes
americana e francesas refletirarn justamen-
te a preocupacao maior ou menor com a
sua conservacao, e e exatamente nesse pon-
to que 0 judiciario passou a fazer diferenca.
Nos Estados Unidos, os formuladores da
Constituicao de 1787 fizeram do judiciario
urn guardian postado no limiar entre a li-
berdade e a igualdade, atribuindo-lhe a ta-
refa de zelar pela propriedade contra as
investidas da maioria govern ante. Na Fran-
<;:a,a ideologia igualitaria impediu que a
magistratura pudesse ter qualquer poder
politico, muito menos 0 de interpor-se en-
tre 0 corpo legislativo e a soberania popu-
lar. Nessa perspectiva, a propriedade ficaria
menos guarnecida, em que pese tenhamos
que considerar os riscos impostos a propria
liberdade, num cenario em que a soberania
popular se ve ilimitada. Robespierre (1758-
1794), lider radical e dirigenre na fase do
governo jacobino, destacou-se entre outras
coisas por sugerir a superioridade do valor
da igualdade sobre 0 direito de propriedade.
Em discurso na Convencao Nacional, em
abril de 1793, quando esta se preparava para
elaborar uma nova constituicao, Robespierre
criticou as nocoes de liberdade e igualdadeda primeira declaracao de direitos de 1789 e
sugeriu uma nova redacao para 0 futuro tex-
to constitucional:
Ao definir a liberdade, 0primei-
ro dos bens do hornem, () mais sagra-
do dos direitos que ele recebe da na-
tureza, dissestes com razdo que os li-
mites dela cram os direitos de outrem;por que nao aplicastes esse princi-
pio a propriedade, que e uma insti-
tuicao social? ... Multiplicastes os
artigos para assegurar a tnaior liber-
dade ao exercicio da propriedade, e
ndo dissestes lima untca palaura para
determinar 0 cardter legitime desse
exercicio; de maneira que vossa de-
claracdo parece [eita ruio para os ho-
mens, mas para os rices, para os
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monopolizadores, para os agiotas e
p ara os ttranos.
Na sequencia, Robespierre propoe uma
nova definicao do direito de propriedade,
limitado pela "obrigacao de respeitar os di-
reitos de outrem", chegando a propor, nes-
se mesmo discurso, a introducao do impos-
to progressivo na Franca, por meio do qual
os mais ricos pagariam proporcionalmente
mais do que os mais pobres. S
Robespierre, para quem 0 principio da
separacao de poderes ja significava urn rno-
dismo irrelevante, uma quimera que sern-pre terminava em flagelo do proprio povo
(pela corrupcao e conluio dos polfticos de
ramos aparentemente separados do gover-
no), defendia a supremacia da vontade geral
contra 0"teatro burlesco" em que se conver-
tia a relacao entre os poderes constitucionais.?
A vontade igualitaria de Robespierre, que
chegou a amea~ar a propriedade e que de-
fendia a soberania popular como fonte ega-
rantia unica de direitos, so nao foi rnaior do
que a sua deterrninacao em orientar-se pelas
razoes de Estado, isto e, aquelas acoes indis-
pensaveis a manutencao do poder politico,
agravadas na epoca pelo contexto interno,
de revolucao, e externo, de guerra. No
marcante processo de julgamento politico
de Luis XVI, que culminou com a decapita-
c;:aodo rei em janeiro de 1793, Robespierre
defendeu a distincao entre Direito e Politi-
ca, argumentando que 0 rei nao poderia ser
julgado pelas vias do prirneiro mas pelas
razoes de Estado impostas pela segunda: "Os
povos nao julgam como as cortes judiciarias;
nao pronunciam sentencas; fulminam; nao
condenam os reis, rnergulham-nos de novo
no nada; e essa jusrica bern vale ados tribu-
nais". E, concluindo, asseverou: "Luis deve
morrer porque e preciso que a patria viva" .10
A experiencia francesa da fase do Ter-
ror ultrapassou a antitese igualdade versus
propriedade e deixou licoes sabre outra an-
these ainda mais profunda: liberdade versus
poder. Se, por urn lado, a Revolucao afasta-
ra-se dos principios liberais em nome de urn
republicanismo radical, par outro 0 exerci-
cio ilimitado do poder polftico em nome das
razoes de Estado arranhou mais do que 0
direito de propriedade, atingindo gravemente
a propria liberdade, numa forma inedira de
ditadura em nome do povo. Nao por acaso,
dos tres textos constitucionais da Revolucao,
odessa fase foi 0que men os emprestou ao
7. Robespierre, Maximilien. Discursos e Relatorios na Conuencdo, Rio de Janeiro: Eduerj/Contraponto,
1999. p.88-9 (grifo n(550).
8. A proposta de Robespierre era a seguinte: "Os cidadaos cujos provenros nao exccdam aquilo que e necessa-rio a sua subsistencia devem seTd ispensados de contribuir para os gastos puhlicos; os outros devem sustenta-
los progressivamente, segundo a dirnensao de suas fortunas". 0 cxcmplo do imposto progressive como
resultado de urna decisao politica rnajoritaria que, orientada pelo principio da igualdade, arranha 0 direito
de propriedadc, perrnanece atual se considerarmos as sucessivas tentativas de insriruicao desse tipo de
cobranca no Brasil e as derroras impostas por decisoes judiciais conservadoras do direito de propriedade,
que impedem sua irnplernenracao, COmo no caso do Imposto Predial e Territorial Urbano - IPTU em diver-
sos municfpios brasileiros, Rohespierre, Maximilien. Discursos e Relatorios ... , op. cit., p.89.
9. Em discurso a Convencao, em lOde maio de 1793, Robespierre criticou a formula da separacao de
poderes e 0 tipo de dinamica politica perniciosa que ela introduzia: "Que nos importam as cornbinacoes
que equilibram a autoridade dos tirancsl f: a tirania que se deve extirpar: nao e nas querelas de seus
senhores que os povos devern buscar a vantagem de respirar pOT alguns instantes; e em sua propria forca
que se dcve colocar a garantia de seus direitos", Ibidem, p.1 00-1.10. Ibidem, p.S8 e 64.
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judiciario 0 papel de defesa das liberdades
frente aos poderes politicos. Ao final, a Re-
volucao retomaria seu curso mais liberal, mas
o espfrito republicano nao deixaria de influ-enciar a politica francesa, a despeito dos ex-
cessos cometidos naquela fase radical.
Ninguem percebeu melhor do que Alexis
de Tocqueville (1805-1859) as diferentes
origens dos regimes politicos americano e
frances. Oriundo da pequena nobreza fran-
cesa, Tocqueville tivera seus av6s maternos
e uma de suas tias guilhotinados na Revolu-
~ao, seu pai permanecera preso por urn bam
tempo e consta que sua mae mergulhou em
desequilibrio mental com esses acontecimen-
tos. Frente ao que ele chamava de a "grande
revolucao dernocratica", uma onda de "cres-
cente igualdade de condicoes" que nao s6
assolava a Franca mas tendia a escala mun-
dial, Tocqueville observava 0 surgimento
desse novo mundo com um misto de temor
e admiracao, Sem compromisso de classe com
o projeto burgues, seu olhar liberal-aristo-
cratico lhe permitiu divisar a sociedade bur-
guesa como uma sociedade em que a cres-
cente igualdade de condicoes anulava anti-
gas distincoes socia is, mas tambern levava a
massificacao, ao individualismo e a apatia
politica, constituindo assim ambiente pro-
picio a emergencia do despotismo.
No seu classico livro A democracia na
America,! I Tocqueville procura as razoes do
sucesso americano em conciliar essa crescen-
te igualdade de condicoes e a manutencao
da liberdade individual e polftica. Dentre elas,
Tocqueville ressaltara a descentralizacao do
sistema politico que, par meio da separacao
de poderes, do federalismo e do autogoverno
local, propiciava ao mesmo tempo incenti-
vos a participacao politica da comunidade e
protecao a liberdade individual dos cidadaos,contra tendencias arbitrarias da maioria po-
litica. Mas 0 contraste com 0 fracasso fran-
ces em obrer 0 mesmo equilibrio entre go-
verno popular e liberdade individual fica es-
pecialmente evidente quando Tocqueville
destaca 0 papeJ politico do judiciario arneri-
cano. No quadro da separacao de poderes,
tao valorizado nos Estados Unidos e menos
considerado na Franca, 0 judiciario ameri-
cano constitui para Tocqueville "0 mais po-
deroso e unico contrapeso da dernocracia",
justamente por sua capacidade de conrrolar
a constitucionalidade das leis promulgadas
pela maioria polirica,
o papel do judiciario de guardiao da
Constituicao nos Estados Unidos contras-
tava com a sua nulidade politica na Franca,
levando Tocqueville a perceber a engenho-
sa saida americana para 0 problema da li-
mitacao do poder politico da maioria em
governos populares: reservar a decisao fi-
nal em casos de conflitos constitucionais a
um corpo especial de rnagistrados, que dis-
pun ham de razoavel dose de independen-
cia funcional em pie no regime republicano.
Observando mais de perto a magistratura
americana, Tocqueville foi 0 primeiro a per-
ceber a incongruencia entre uma sociedadecrescentemente igualiraria e a perrnanencia,
no ambito do Estado, de um corpo insula-
do de funcionarios public os acumulando
garantias e privilegios incornpativeis com 0
regime republicano.F Mas era justamente
11. Tocqueville, Alexis de. A Democracia na America. (H35-40) Sao Paulo: Edusp, 1977.
12. A tare fa de julgar com independencia levou 0 judiciario a gozar de garantias especiais como a vitalicieda-de (perrnanencia no cargo por tempo indeterminado ou ate alguma idade limite para aposentadoria
compulsoria), a irredutibilidade de vencimentos e, em alguns lugares, a impossibilidade de sofrer transfe-
rencia de local de atuacao sem te-la solicitado (inamovibilidade),
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nessa incongruencia que residia a originali-
dade do sistema politico americano, segun-
do Tocqueville: a magistratura independente
era a ultima barre ira as paixoes democrati-
cas desenfreadas, e sua autonomia poderia
ser considerada condicao de sobrevivencia,
no longo prazo, do proprio regime republi-
cano, sujeito a investidas constantes da maio-
ria politica contra os direitos de liberdade.
Idealizando a antiga liberdade sob a so-
ciedade aristocratica - nao a liberdade bur-
guesa, individualista, mas a defendida pela
nobreza, vinculada mais a valores como a
honra e a gloria - Tocqueville nao teve du-vidas em apresentar a magistratura ameri-
cana, juntamente com os advogados, como
uma especie de nova aristocracia. Como
estivesse se reencontrando com a c1asse so-
cial de seus antepassados, destruida na Fran-
'Sa pela Revolucao, Tocqueville realiza urn
daqueles "achados" analiticos decisivos para
a interpretacao da formacao historico-poli-
tica das modern as democracias liberais: "se
me perguntassem onde situo a aristocracia
americana, responderia sem he sitar que nao
o faco entre os ricos, que nao possuem ne-
nhum laco comum que os asseme1he. A aris-
tocracia americana esta no banco dos advo-
gados e na cadeira dos juizes"."
A analogia de Tocqueville nao se detinha
na funcao antidemocratica da magistratura
ou no faro de os juizes gozarem de garanti-
as e privilegios quase aristocraticos, maschegava ate os habitos e costumes dessa clas-
se especial. Referindo-se aos juristas como
urn "corpo" (que para ele atuava como urn
anti-corpo das paix6es doentias da demo-
cracia) diz 0pensador frances:
Por isso, encontramos, oculta
no [undo da alma dos juristas, uma
parte dos gostos e dos bdb itos da
aristocracia. Como ela, tem um ins-
tintiuo pender para a ordem, urn
amor natural pelas [ormas; assim
como a aristocracia, concebem um
grande desgosto pelas acoes da mul-
tiddo e, secretamente, desprezam 0
governo do povo. 14
Tocqueville enunciaria ainda outros tra-
cos peculiares da magistratura, pelos quais
ela passaria a ser conhecida e criticada d a rpor diante, como 0 conservadorismo:
N a A merica, nao existem nob res
nem literatura, e () p ouo desconfia dos
ric os. P or isso , as [uristas constituem
a classe politico superior e a porcdo
mais intelectual da sociedade. Assim,
ndo poderiam SeHaOperder, ao inovar ;
isso acrescenta um interesse censer-
vador ao gosto natural que tem p e l a
ordem."
Ou ainda a morosidade e outros aspec-
tos que caracterizam 0funcionamento da
justica, em comparacao com as tendencias
do povo, expostos por Tocqueville na for-
ma de dicotomias:
Aos seus [do pouo] instintos de-mocrdticos, lo s iuizes] opoem se-
cretamente os se us p en sado re s aris-
tocrdticos; ao seu amor it nouidade,
o seu supersticioso respeito a tudo 0
que e antigo; .1 imensidade de seus
13. Ibidem, p.206.
14. Ibidem, p.20l.
15. Ibidem, p.206.
8 6
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propositos, as suas vistas estreitas, ao
seu desprezo as regras, 0 seu gosto
pelas [ormas; e ao seu ardor, 0 seu
habito de proceder com lentiddo."
Por fim, Tocqueville menciona as difi-
culdades enfrentadas pelo J udiciario ame-
ricano, sobretudo nos estados, para susten-
tar sua condicao de poder independente de
controles politicos nos marcos de urn go-
verno popular, particularmente as tentati-
vas de rernocao de juizes de seus cargos ou
sua escolha pela via eleitoral. "Ouso pre-ver", completa 0 autor, "que tais inovacoes
terao, mais cedo ou mais tarde, resultados
funestos, e que urn dia se percebera que,
diminuindo assim a independencia dos ma-
gistrados, nao somente se ataca 0poder ju-
diciario, mas a propria republica democra-
tica"Y Em outras palavras, urn corpo anti-
republicano ou aristocratico cumprindo a
funcao de anti-corpo da democracia, com-
batendo prontamente a tirania da maioria.
Retirar-lhe a independencia seria - segue a
metafora organica - enfraquecer 0 sistema
imunol6gico, abrindo espa~o as viroses de-
rnocraticas.
Em resumo, as experiencias americana
e francesa nos legaram do is modelos distin-
tos de judiciario, ambos passiveis de aplica-
~ao na democracia, apesar de imperfeitos.
No primeiro caso - e em todos os paises
que tomaram os Estados Unidos como
exemplo - 0 judiciario cumprira a impor-
tante funcao liberal de conter a vontade
politica majoritaria, mas a condicao nao
republicana da magistratura enfrentara de
tempos em tempos tentativas de reducao de
sua independencia quase arisrocratica, espe-
cialmente nas situacoes em que 0 judiciario
assumir posicao mais agressiva no controle
dos atos normativos das maiorias politicasrepresentativas. No segundo caso - enos
demais paises em que 0 judiciario restrin-
ge-se a prestar justica nos conflitos particu-
lares - nao encontramos essa nova aristo-
cracia no seio da republica mas ouvimos em
contrapartida queixas recorrentes sobre a
ausencia de urn guardiao independente da
Constituicao e sobre a sujeicao completa da
sociedade a vontade politica da maioriagovernante.
2. A expansao do .Judlclarlo
no seculo XX: justi~a comum
e papel politico
Ao longo do seculo XX, 0judiciario pas-
sara por urn significativo processo de ex-
pansao em suas duas funcoes principais, tan-to a de prestacao da justica comum quanta
a de controle de constitucionalidade das leis
e dos atos normativos. Evidentemente, essa
dupla expansao nao sera linear nem homo-
genea, considerando a diversidade de regi-
mes democraticos existentes e as gran des
fases polfticas e econ6micas que marcaram
o seculo XX.
2.1 A expansao do controle
constitucional das leis
Na dimensao polftica, os estudos sobre 0
tema do controle constitucional demonstram
como 0 principio da revisao judicial das leis
foi sendo crescentemente adotado por varies
16. Ibidem, p.206-7.
17. Ibidem, p.207.
------:. . . .
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co
paises," especialmente com a promulgacao
de novos textos constitucionais no seculo
XX, muito mais substantivos e rfgidos do que
os produzidos no seculo XIX.
Nesse processo, a experiencia do Esta-
dos Unidos seguiu dando 0exemplo, levan-
do alguns paises a copiar 0 seu modelo e
outros a buscar alternativas de controle
constitucional ainda mais inovadoras, capa-
zes de corrigir alguns inconvenientes do sis-
tema americano.
No inicio do seculo XX, a Suprema Cor-
te dos Estados Unidos ja era bastante co-
nhecida por suas decisoes declarando ainconstitucionalidade de leis, especialmen-
te aquelas relacionadas a intervencao do go-
verno na economia. Segundo Baum, "nos
anos 20, a Corte Suprema declarou incons-
titucionais mais de 130 leis regulamentadoras
[econornicas]"." 0ponto maximo dessa tra-
jetoria de auto-afirrnacao da Suprema Corte
no ambito do sistema politico americano se
deu, nao sem grave desgaste para 0 proprio
tribunal, no processo de implementacao do
chamado New Deal, projeto de recupera-
s;ao econornica planejado pelo presidente
Franklin Roosevelt apos a grande crise do
capitalismo em 1929.
Colocando-se contra 0programa econo-
mico New Deal, a Suprema Corte tomou
varias decisoes entre 1935 e 1936, anulando
dispositivos legais propostos pelo presiden-
te e aprovados pelo Congresso. Reeleito pormaioria esmagadora em 1936, Roosevelt in-
vestiu contra 0 tribunal, propondo ao Con-
gresso que ampliasse 0mimero de seus mi-
nistros de 9 para 15, pois assim ele poderia
indicar urn ruimero suficiente de juizes que
dessem apoio ao programa economico.
Numa mudanca que fieou conhecida como
"the switch in time that saved nine",20 dois
juizes - incluindo 0 entao presidente do tri-
bunal, Hughes - alreraram seus votos e pas-
saram a confirmar a validade constitucio-
nal da legislacao introduzida pelo governo.
Diante desse fato, e associ ado aos pedidos
de aposentadoria de alguns juizes conserva-
dores, Roosevelt pode, segundo Baum, no-
mear novos ministros sem a necessidade de
alterar 0mirnero de eadeiras do tribunal.
A partir da decada de 1950, espeeial-
mente sob a presidencia de Earl Warren(1953-1969), a Suprema Corte americana
iniciaria uma nova fase, destacando-se des-
sa vez por sucessivas decisoes com forte
irnpacto na arnpliacao dos direitos civis. Urn
dos principais marcos dessa fase foi 0 julga-
mento Brown versus Junta deEducacdo, pelo
qual a Corte condenou a politica de segre-
gacao racial das escolas, sobretudo do sui
do pais, e obrigou 0 sistema escolar a inte-
grar negros e brancos nas rnesmas instala-
coes. A partir dessa decisao, segundo Baum,
varias outras viriam garantir 0direito dos
negros a acesso igualitario a services publi-
cos nos Estados Unidos. Essa grande fase
da Suprema Corte nao ficaria restrita a ques-tao racial, mas ampliaria tambem os direi-
tos civis em varias outras frentes: na area
da justica criminal e na protecao individual
em relacao a atuacao policial, no exerclcioda liberdade de expressao e em outros te-
mas controversos como 0 aborto, marcan-
do urn ativismo judicial liberalizante por
parte do tribunal. Os Graficos 1 e 2 demons-
tram nao s6 0 vertiginoso crescimento do
18. Ver, nesse sentido, Cappelletti, Mauro. a controle judicial de constitucionalidade das leis no direito com-
parade. Porto Alegre: Fabris, 1984.
19. Baum, Lawrence. A Suprema Corte Americana. Rio de Janeiro: Forense Universitaria, 1987. pAl.20. Ver Baum, L., op. cit., pA3.
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GRAFICO 1. Nurnero de processos iniciados na Corte Suprema americana, a
intervalos de cinco anos (1943-1983)
-------- -·----·'----1
4 5 0 0 2 1 ,
4 0 0 0 H ' - ' - - - - - : ~ _ _ : _ - - . . , . . . . . , ~- ~ , _ , : : J ! l l ! : t : : ~ O : - " " _ _ i
3 5 0 0
III 3 0 0 00III!IIu 2 5 0 0QI
"C
2 2 0 0 0QI
E,;;,
1 5 0 0
1 0 0 0
5 0 0
Fonte: Baum, L., op. cit., p.161.
GRAFICO 2, Nurnero de leis economicas e referentes as liberdades civis (federais,
estaduais e municipais) revogadas pela Corte, par deoada
1 6 0 + - - - ~ ~ ~ ~ ~ ' - ' - ~ - - ~ ~ ~ - ~ ~
1 4 0 + - ~ ' - ' - ~ ~ _ _ ~ ~ ~ ' - ' - - - ~ ~ ~ ~ ~
' " 1 2 0III!IIU
1 0 0C I>
"C
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E.:J 6 0z
40
2 0
Fonte: Sawn, L., op. cit, p.280.
______ .~
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rnimero de casos apreciados pela Suprema
Corte no seculo xx como, nos processos
de controle de constitucionalidade das leis,
ficam evidentes essas duas grandes fases de
atuacao do tribunal, em que as questoes eco-
nomicas da prime ira metade do seculo de-
ram lugar as questoes relacionadas a direi-
tos civis na segunda.
Desde que a Suprema Corte foi coloca-
da na condicao de poder proferir a ultima
palavra sobre questoes gerais da sociedade
americana, as possibilidades e limites desse
arranjo institucional tern sido objeto de po-
lemica, justamente pela delicada interface
que esse sistema estabelece entre 0 direito
e a politica, entre a perspectiva liberal que
impoe freios a vontade majoritaria e a pers-
pectiva democratica que reivindica a legi-
timidade das decisoes politicas como ex-
clusividade dos orgaos representativos da
soberania popular.
A experiencia da Corte nas decadas de
1920 e 1930 e sua oposicao sistematica
as politicas governamentais do periodo
Roosevelt ensejaram fortes criticas diante da
possibilidade de distorcao dos princfpios do
governo popular que, segundo expressao de
urn analista frances da epoca - cunhada an-
tes mesmo do agravamento da crise entre 0
tribunal e 0 presidente - estaria degeneran-
do em urn "governo dos jufzes"."
Na Europa, no infcio do seculo XX,
eram poucos os paises que tinham escapado
a influencia republicana francesa e intro-
duzido 0mecanismo da revisao judicial das
leis. Embora nao mencionada na secao an-
terior, tambern a Inglaterra constiruia urn
importante exemplo de que era posslvel
sustentar 0 regime dernocratico sem esse
tipo de controle, uma vez que la predomi-
nara, na passagem do absolutismo ao esta-
do liberal, a tese da "suprernacia do parla-
mento", isto e, da impossibilidade de que
decisoes legislativas pudessem ser revistas
por outros orgaos a luz de alguma norma
superior que, a rigor, nem existia na Ingla-
terra onde, ate hoje, nao encontramos urn
documento escrito que se possa chamar de
Constituicao.
Essa situacao seria significativamente al-
terada apos a Segunda Guerra Mundial,
quando a retomada do regime democratico
em varies paises passou a admitir 0 princi-
pio liberal de controle de constitucio-
nalidade das leis. Na verdade, 0primeiro
passo nesse sentido ja havia ocorrido em
1920, quando na Austria uma nova consti-
tuicao introduziu 0controle constitucional,
sob a influencia do eminente jurista Hans
Kelsen.
o modelo austrfaco, que seria estendi-
do a outros paises europeus apos a Segunda
Guerra, era bern diferente do sistema arne-
ricano.P Nos Estados Unidos, todos os juizes
que integram 0 Poder judiciario tern capa-
cidade para dedarar a inconstitucionalidade
das leis e dos atos normativos, no julgamen-
to de casos judiciais concretos. Nesse mode-
1 0 , classificado como difuso pela bibliografia
especializada, eventuais conflitos entre a lei
e a Constituicao nao sao levados diretamen-
te a Suprema Corte mas la apenas ingressam
21. Lambert, Edouard. Le gouuernement des ;uges et fa lutte contre la legislation sociale aux Etats-Unis:
l'experience americaine du controle [udiciaire de fa constitutionnalite des lois. Paris: M . Giard & Cie,
1921.22. As consideracoes que se seguem, a respeito desses diferentes sistemas, estao baseadas em trabalho anterior:
Arantes, Rogerio Bastos. [udiciario e Politica no Brasil. Sao Paulo: Idesp/Surnare/Educ, 1997.
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pela via dos recursos oriundos das instancias
inferiores do judiciario. A Suprema Corte s6
se destaca como guardia da Consriruicao gra-
cas a forca vinculante de sua jurisprudenciae ao carater terrninativo prarico de suas de-
cisoes, mas e irnportante destacar que ela nao
detem 0monop6lio da interpretacao cons-
titucional das leis e divide essa cornpetencia
com as diversas instancias do judiciario,
num sistema que tambern e chamado de des-
centralizado. Alem disso, a funcao de revi-
sao judicial se ve reforcada pelas garantias
de independencia do judiciario, tais como
a vitaliciedade, da qual gozam ate mesmo
os ministros da Suprema Corte.P
Na Austria, 0controle constitucional
foi introduzido como monop6lio de urn tri-
bunal especial, mais conhecido como Cor-
te Constitucional. Ao contrario do modelo
difuso, esse tribunal tern comperencia para
julgar a pr6pria lei, provocado por acao di-
reta que question a a sua constitucionalidade,
nao havendo possibilidade de outros orgaos
judiciais realizarem 0 controle constitucio-
nal de maneira descentralizada."
o sistema austriaco, tambern chamado
de concentrado, serviu de modelo para os
paises europeus que, no p6s-guerra, decidi-
ram incorporar 0 principio do controle
constitucional das leis a democracia polltica.
Assim foram os casos de Italia e Alemanha,
onde as experiencias do nazismo e do fas-
cismo levaram os formuladores das consti-
tuicoes de 1947 e 1949, respectivarnente, aintroduzirem mecanismos de controle do
poder politico, entre eles urn tribunal espe-
cial para julgar a constitucionalidade das leis.
Apesar dessa intencao marcadamente li -
beral, 0modelo das cortes constitucionais
concentradas procurou evitar os males do
sistema americano, cuja descentralizacao da
revisao judicial e 0 alto grau de insulamento
da magistratura por vezes ameacavam levar
a indesejavel situacao de "governo dos
juizes", Contra essa possibilidade, causada
pela f6rmula judiciaria de revisao consti-
tucional, 0sistema concentrado procurou es-
tabelecer urn melhor equilfbrio entre a fun-
~ao liberal de controle das leis e a vontade
politica majoriraria, justamente por meio de
uma maior polirizacao da composicao das
cortes constitucionais, e de restricao do rni-
mero de agentes legitirnados a prom over acao
perante 0 tribunal. Assim, alem do monop6-
lio da declaracao de inconstitucionalidade,
afastando os orgaos judiciais e suas diversas
instancias da possibilidade de intervir em ques-
toes rnacropolfticas, a composicao das cortes
e sua posicao no arranjo institucional de Po-
deres contribuem para 0 reconhecimento da
23. No casu da Suprema Corte, a vitaliciedade compensa 0 fato de os ministros serem indicados pelo presi-
dente da Republica e aprovados pelo Senado. Se essa forma de indicacao permite algum grau de polirizacao
no processo de escolha, no lunge prazo, a inexistencia de mandato fixo e as garantias de exercicio do
cargo tendem a neutralizar aquela influencia politica inicial. Isso nao significa que ministros escolhidos
por serem mais conservadores ou mais liberais - refletindo a maioria polfrica da epoca - deixem de se-lo
com 0 passar do tempo, mas, se a hip6tese mais rasteira de que 0 seu comportamento refletira uma
especie de "divida pessoal de gratidao pela indicacao" tern alguma importancia, ela nao parece resistir no
longo prazo it independencia adquirida pelo juiz ap6s a posse.
24. Ern pafses que adotam esse modelo, processos na justica comum podem ate suscitar uma questao consti-
tuciona!. Entretanto, os jufzes sao obrigados a suspender esses casos e requerer da Corte Constirucional
(que detern 0 monopolio) uma decisao sobre a questao levantada. Os orgaos judiciais comuns nesses
paises nao podem decidir sobre a (in)constitucionalidade das leis que se aplicam aos casos concretos queestao examinando.
_ _ _ _ _ . ~ .
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dimensao politica de suas funcoes. As cor-
tes constitucionais sao orgaos separados do
poder judiciario, nao coincidindo com seus
tribunais superiores. As formas de investidura
no cargo Sao mais politizadas, em geral com-
binando a participacao do presidente da
Republica e do Poder Legislative na esco-
Iha dos integrantes da corte. Tambern a fi-
xacao dos man datos dos ministros, embora
muitas vezes longos, baseia-se na ideia de
que 0 exercicio da funcao deve ser submeti-
do a avaliacao peri6dica do corpo politico,
alem de indicar que a interpretacao da Cons-
tituicao pode mudar com 0tempo. Por fim,
a dirnensao polirica e ainda reforcada pela
restricao do ruimero de agentes que podem
acionar 0tribunal constitucional, geralmen-
te restrito ao presidente, aos governos esta-
duais (se houver), e a uma fracao - em geral
urn terco - dos membros do Parlamento.
Note-se, portanto, que a conversao de
paises europeus a urn modelo mais liberal
de democracia nao chegou a ponto de en-
tregar difusamente ao judiciario a capaci-
dade de controlar a constitucionalidade das
leis, como nos Estados Unidos, rnuito me-
nos significou urn mergulho na ilusao de que
tal funcao pode ser considerada meramente
juridica: as cortes constitucionais do modelo
concentrado sao orgaos reconhecidamente
politicos e, estando apenas urn pouco mais
insulados por garantias e privilegios, operam
como uma especie de legislador as avessas,
negando validade as leis que consideram
incornpatfveis com a Constituicao.
Uma segunda onda de liberalizacao de
regimes politicos nas decadas de 1970 e 1980
daria novo irnpulso a expansao da funcao
polftica de controle de constitucionalidade
das leis, tanto na forma difusa norte-ameri-
cana como na forma concentrada europeia,Foi assim em pafses como Portugal e Espanha
que, ao dissolverern regimes ditatoriais no
o
92
final dos anos 70, recorreram a criacao de
sistemas de controle constitucional por meio
de novas consrituicoes em 1976 e 1978,
respectivamente. Poucos an os depois, quan-
do essa onda liberalizante atingiu a Ameri-
ca Latina, varios regimes milirares autorita-
rios deram lugar a democracias liberais, que
restabeleceram 0 funcionamento normal do
judiciario e, com isso, permitiram a retoma-
da do sistema difuso de revisao judicial que
aqui havia sido adotado por alguns pafses,
sob influencia do modelo norte-americana.
Entre os extremos das formulas difusa e
concentrada de controle consritucional,
houve paises que buscaram estabelecer com-
binacoes entre elas, dando origem a siste-
mas mistos ou, como parece singularizar a
casu brasileiro, urn sistema hibrido.
No Brasil, embora a primeira Constitui-
~ao republicana de 1891 tenha copiado a
modele difuso americano, varias mudancas
inspiradas no sistema concentrado europeu
foram feitas pelas constituicoes posteriores,
a ponto de transformar nosso sistema de
controle constitucional em urn sistema h i-
brido, bastante singular no quadro do di-
reito comparado. Com a redernocratizacao
do pais nos anos 80, tanto a dimensao
difusa do controle constitucional quanta a
mecanisrno de acao direta perante 0 Su-
premo Tribunal Federal foram retomadas
e ampliados sem, contudo, estabelecer-se
uma clara predominancia das declaracoes
de inconstitucionalidade do STF sobre as
instancias inferiores do judiciario,
Hoje, gracas a Constituicao de 1988,
nosso sistema nao e apenas difusa porque
contamos com a mecanismo da acao direta
de inconstitucionalidade, patrocinada jun-
to ao Supremo Tribunal Federal - STF, que
pode anular ou rarificar a lei em si. Desse
ponto de vista, 0 STF e quase uma corte
constitucional. 0 sistema tambern nao e
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apenas concentrado porque 0 STF nao de-
tern 0monopolio da declaracao de (in)consti-
tucionalidade, dividindo essa competencia
com os juizes e tribunais inferiores de todo
o pais que, se nao chegam a anular a lei,
podem afastar sua aplicacao em casos con-
cretas. Desse ponto de vista, quando 0STF
recebe recurso das instancias inferiores em
questoes constitucionais ele esrara se mani-
festando apenas como orgao de cupula do
judiciario e suas decisoes valerao apenas para
aqueles casos particulares. Essa disjuntiva
entre 0lado difuso e 0lado concentrado do
sistema brasileiro tern levado ate mesmo atentativas de reformas que introduzam, por
exemplo, a forca vinculante das decisoes do
STF sobre as insrancias inferiores do Judici-
ario, bern como de mecanismos de abrevia-
~ao dos conflitos constitucionais relevantes,
para que sejam remetidos rapidamente ao
STF, para apreciacao definitiva e valida para
todo 0 pais (avocatoria ou incidente de
inconstitucionalidade).:"
AU~mda descentralizacao tipica do mo-
delo difuso, 0sistema hfbrido brasileiro tor-
nou-se extremamente acessivel tambern pela
via direta, na medida em que a Constituicao
de 1988 ampliou de urn para nove os agen-
tes legitimados a fazer uso da A~ao Direta
de Inconstitucionalidade perante 0 Supre-
mo Tribunal Federal. Antes restrita ao Pro-
curador-Geral da Republica, a lista de agen-
tes legitimados a propor acao direta tarnou-
se uma das mais generosas do mundo, ultra-
passando ate mesmo os paises de modelo
puramente concentrado: 0 artigo 103 da
Constituicao menciona:
1- 0 Prcsideute dol Repub lic»; 11
- a M esa do Senado Federal; III - a
M esa cia Cdntara dos Deputados; IV
- a Mesa de Assembleia Legislatiua
[portanto, de 27 estados]; V - 0 Co-
uernador de Estado [idem l; V I - () P ro-
curador-Geral da Repub lica; VII - ()
Conselbo Federal da Ordem dos Ad-
uogados do Brasil; Vll! - partido po-
litico com representacdo no Congres-
so Nacional icercu de 20, hoie]; IX -
confedcrac.io sindical ()If entidade declasse de ambito naciottal [numero
desconhecido] .
Os efeitos dessa descentralizacao podem
ser vistos nos Graficos 3 e 4, que mostram
o crescimento do rnirnero de Recursos Ex-
traordinarios e de A~6es Diretas de Incons-
titucionalidade, respectivamente. Por meio
dos primeiros, chegam ao STF os casos con-cretas envolvendo questoes constitucionais
decididas em insrancias inferiores do Judi-
ciario (recurso proveniente do lado difuso
do sistema). Por meio das Adins, faz-se 0
controle constitucional direto.
Como se ve pelo Crafico 3, os conflitos
constitucionais, que pela via difusa chegaram
ao STF, triplicaram de volume entre 1990 e
2002, crescendo especial e paradoxalmente
apos 1997, quando 0 pais parecia ter atingi-
do razoavel grau de estabilidade polfrica e
econornica com 0 governo Fernando
Henrique Cardoso." Se, pelo lado difuso do
25. Analiso essas propostas de reforrna, que hi mais de dez anos tramitam no Congresso Nacional, no capitu-
10 1, "[urisdicao Pol itica Consrirucional", de Sadek, Maria Tereza (Org.). Reiorma do [udiciario, Sao
Paulo: Fundacao Konrad Adenauer, 2001.
26. E preciso considerar que 0 Recurso Exrraordiruiri« marca a chegada do processo na ultima insrancia do
judiciario, sendo ainda dificil, pelos dados disponivei», saber hi quantos anos essas acoes estavam tramitan-do na justica, Seja como for, e a partir de 1997 que 0volume de REx pula de cerca de 15 mil para 35 mil.
-----_,
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(tI
: . e GRAFICO 3. Recursos Extreorclinarios distribufdos para julgamento no STF
~ (1990-2002)
(tI
Q)
(tI
(..)1. ' ; : : : : ;
en:::l
"""'J
4 0 0 0 0
3S000
3 0 0 0 0
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1S000
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o
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 20 0 0 20 0 1 20 0 2
Fonte: Banco Nacional de Dados do Poder .Judiciario. Supremo Tribunal Federal. (www.stf.gov.br)
GRAFICO 4. Acoes Diretas de Inconstitucionalidade (1988-2001)
30 0
2S0
20 0
150
10 0
so
o
198 8 198 9 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 20 0 0 20 0 1
Fonte: Banco Nacional de Dados do Poder .ludlclar!o. Supremo Tribunal Federal. (www.stf.gov.br)
94
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sistema de controle constitucional, essa su-
posta estabilidade nao conteve a elevacao do
mimero de recursos, pelo lado concentrado
houve uma certa estabilizacao do mimero de
As;6esDiretas de Inconstitucionalidade, numamedia de aproximadamente duzentas acoes
propostas por ano, durante a decada de
1990. Num total de cerca de 2.590 acoes
entre 1988 e 2001, destacaram-se como au-
tores os governadores de estado e as confe-
deracoes sindicais de ambito nacional (am-
bos com 26,3%), seguidos pelos partidos
politicos (21,2%) e pelo Procurador-Geral
de justica (19,5%). Esse resultado mantern atendencia revelada por Vianna et al., em es-
tudo que analisou as Adins ate 1998, indi-
cando que 0STF atua em duas dimens6es
principais: ele representa espaco importante
de oposicao das confederacoes sindicais e par-
tidos politicos insatisfeitos com a producao
legislativa e tambern funciona como tribunal
da federacao, pela quantidade significativa
de acoes prornovidas por governadores con-
tra, principalrnente, leis produzidas no pro-
prio estado, pelas Assembleias Legislativas."
Ernbora legitimados a prop or Adins, essa
serie historia revela que presidente(s) e me-
sas do Senado Federal e da Camara dos De-
putados nunca fizeram uso desse mecanis-
mo de controle constitucional, nurn claro
indicio de que as leis promulgadas nesse pe-riodo, como expressao da vontade majori-
taria, atenderam aos interesses das duas ca-
maras legislativas e do Poder Executivo. Em
contrapartida, por 2.590 vezes 0 STP foi
acionado diretamente pelos descontentes
com as legislacoes federal e estaduais, en-
quanto milhares de processos envolvendo
tambern questoes constitucionais chegavarn
ao tribunal pela via difusa, colocando-oindubitavelmente na condicao de poder poli-
tico de Estado, responsavel pela funcao libe-
ral de resguardar a Constituicao contra os atos
normativos do Executivo e do Legislative."
Em resurno, diante dos dois grandes
modelos constitucionais discutidos na pri-
meira secao deste capitulo, 0caso brasilei-
ro distancia-se do republicanismo dernocra-
tico e adota forte mente 0 principio liberal
de contencao da maioria polftica, por meio
de urn sistema ultradescentralizado de con-
trole constitucional, que perrnite as minorias
27. Vianna, Luiz Werneck, Carvalho, Maria Alice R., Melo, Manoel P . c., Burgos, Marcelo B. A tudicializacdo
c ia politica e das relacoes soda is no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. Os autores revelam que quase
90% das 507 Adins propostas por governadores de estado visavam 0bter a declar acao de
inconstitucionalidade de leis promulgadas pelas respectivas Assernbleias Legislarivas estaduais.
28. Analisarnos aqui a dirnensao politica da atuacao do judiciario brasileiro, por meio do mecanismo especi-
fico do controle de constitucionalidade das leis. Isso nao significa que urn conceito mais amplo de fun~aopolitica nao fosse capaz de abranger outros tipos de acoes judiciais, especialmente no ambito do STF. Urn
excelente exemplo nesse sentido provern do exame que Koerner realizou sobre a importancia polftica dos
processos de habeas-corpus envolvendo politicos durante a Republica Velha (1889-1930), especial mente
no ambito do STF, e suas conex6es com a pol1tica oligarquica da epoca, Koerner, Andrei. [udiadrio e
Cidadania na Constituicdo da Republica. Sao Paulo: Hucitec/Departamento de Ciencia Politica da USp,
1998. Outro trabalho sobre processos de habeas-corpus no STF, que ressalta seu pape! politico no perio-
do de instalacao do regime autorirario p6s-1964, e 0 de Vale, Osvaldo Trigueiro do. 0 Supremo Tribunal
Federal e a instabilidade politico-institucional. Rio de Janeiro: Civilizacao Brasileira, 1976. Recentemen-
te, cobrindo uma grave lacuna da historiografia brasileira - a falta de estudos sobre 0 Poder judiciario -
Emilia Viotti da Costa elaborou uma arnpla hist6ria do STF, da sua criacao em 1890 ate a Constituicao de
1988, explorando suas relacoes com a sociedade e a politica ao longo das diversas Eases da historia
republicana brasileira. Costa, Emilia Viotti da. 0 Supremo Tribunal Federal e a construcdo c ia cidadania.
Sao Paulo: 1EJE, 2001.
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I..~..,_.,.-
polfricas exercer poder de veto, invocando a
Constituicao contra leis e atos norrnarivos
dos Poderes Legislativo e Executivo. Se
considerarmos - adotando a terminologia de
Luphart - que 0processo politico-decisoriono Brasil contempla a participacao de uma
grande variedade de atores e arenas
institucionais (separacao de poderes entre
Executivo e Legislative, duas carnaras
legislativas com poderes simetricos no Con-
gresso Nacional, multipartidarismo exacer-
bado e federalismo razoavelmente descentra-
lizado), devemos acrescentar a essas varia-
veis 0sistema de controle constitucional
como uma das principais formas de recurso
das minorias politicas representativas, con-
tra decis6es politicas majoritarias, reforcan-
do ainda mais 0 perfil consociativo do nosso
sistema politico." Questao de dificil resposta,
mas que mereceria a atencao dos analistas, e
saber por que 0 republicanismo dernocrari-
co nao deu 0tom da organizacao politica
no Brasil e quais as raz6es que levaram a ado-
' faO de urn sistema politico tao consociativo eliberal como 0nosso, incluido ai0modelo de
judiciario e sua funcao politica.
o
2.2 Estado social,
arnptlacao do acesso a Justiga
e expansao do Judiciario
Se pela via da protecao da liberdade os
judiciaries de diferentes paises tenderam a se
expandir com a instalacao de novos regimes
liberal-dernocraticos no seculo XX, tambem
pela via da promocao da igualdade alguns
deles van conhecer urn tipo inesperado de
expansao, que escapa a perspectiva liberale nao diz respeito a protecao judicial das mi-
norias polfticas: refiro-rne a transforrnacao do
judiciario ern instancia de irnplementacao
de direitos sociais e coletivos, especialmen-
te na segunda rnetade do seculo XX.
Ha pelo menos dois enfoques principais
acerca desse tipo de expansao do judiciario,
nao excludentes e ate rnesrno complernenta-
res. 0 primeiro, mais sociologico, associa a
expansao do judiciario e suas dificuldades
atuais, respectivamente, ao desenvolvimento
e crise do chamado Estado de Bem-Estar So-
cial no seculo xx. 0 segundo, mais juridico,
associa a expansao do J udiciario a arnpliacaodo acesso a justica para direitos coletivos, es-
pecialmente a partir da decada de 1970.
Urn dos principais representantes da pri-
meira rese, Boaventura de Sousa Santos ar-
gumenta em varios de seus trabalhos'" que0
desenvolvimento do Estado Social- tambern
chamado de Estado Providencia - apos a
Segunda Guerra Mundial levou a mudancas
significativas no rnundo do Direito e da Jus-
tica. Marcado pelos principios do inter-
vencionismo econ6mico e da prornocao de
bem-estar social, essa nova forma de Estado
desencadeou a producao de leis constitucio-
nais e ordinarias muito mais substantivas do
29. 0 modelo consociatiuo opoe-sc ao modelo majoritario, no qual as maiorias polfticas sao formadas com
mais facilidade e onde elas governam sem tanra resistencia. Segundo Lijphart, seriam caracterfsricas desse
segundo modelo 0 parlarnentarismo, 0 Legislativo unicameral, 0 bipartidarismo, 0 estado unitari o e a
ausencia de controle constitucional das leis. No Brasil, analises recentes tern procurado mostrar como 0
instrumento da Medida Provisoria e 0 relativo controle da agenda legislativa por parte do Puder Execu-
tivo compensam 0 alto grau de fragmentacao consociativa do sistema politico, 0 que essas analises ainda
nao contabilizaram e 0 custo de governabilidade dernocrarica de urn modelo como esse e, do ponto de
vista dos resultados substantivos, a quem ele beneficia. Lijphart, Arend. As democracias contempordneas.
Lisboa: Gradiva, 1989.
30. Uma boa sintese desse argumento pode ser encontrada em Santos, Boaventura de Sousa ret al.], "Os tribu-nais nas sociedades contemporfmcas", Revista Brasileira de Ciencias Sociais, n.30, fey. 1996, p.29-62.
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que as produzidas sob 0modelo liberal chis-
sico, carregadas de direitos sociais e econo-
micas como educacao, saude, trabalho, se-
guranca social e outros. Nessa perspectiva, 0
Estado deixa de ser apenas 0 responsavel pelamanutencao da ordem e garantia das liber-
clades e passa a instrumento de reducao das
desigualdades sociais, por meio da interven-
c,;aoeconornica e da prestacao de services
publicos cada vez mais abrangentes.
Segundo Santos, essas transforrnacoes
levaram 0judiciario a assumir urn novo
papel: antes restrito a funcao de aplicacao
das leis nos conflitos particulares,0
Judicia-rio passa a ser acionado para dar efetividade
pratica a essa nova legislacao social, muito
mais substantiva do ponto de vista dos dire i-
tos de cidadania. Embora nao se trate de urn
processo linear nem livre de contradicoes
(basta lembrar 0problema da escassez de re-
cursos que impede a implernentacao total
desses direitos, os conflitos entre a visao ju-
ridica e a visao politico-administrativa so-
bre a eficacia dessas novas leis, as dificulda-des de urn judiciario tipicamente liberal de
se adaptar a prornocao de direitos de igual-
dade, entre outras), Santos destaca que
a JlIridi/i(Ll~'J() do bcin-estar so-
c ial abriu caininbo para llOVOS campos
de litigafdo IIOS doininios trabalbista.
ciuil, administratiuo C da segurattca
social,0
que, nuns paises mats do quenoutros, ueio .1 se traduzir 110 aumento
exponcncial da procure ju dic uiria e n a
conseqiiente explosJo dali! igiosidade.' I
Da mesma forma, segundo essa perspecti-
va sociologica, a crise que se abateu sobre 0
Estado-Providencia no fim dos an os 70 e
inicio dos 80 afetaria tambem 0 judiciario,
agravando 0 sentido de suas novas atribui-
coes na area dos direitos sociais, 0 proble-
ma central e que os Estados perderam boa
parte de sua capacidade de prornocao do
bem-estar social, cedendo a processos de re-
forma orientados pela ideologia neoliberal
(privatizacoes, desregularnentacao da eco-
nomia, diminuicao dos gastos sociais e re-
ducao do deficit publico, para garantir 0equi-
librio fiscal e combater a inflacao), Quanto
ao judiciario, que se havia expandido na
fase anterior justamente para participar da
implementacao da legislacao social, em vez
de retroagir na mesma proporcao que0
Es-tado social em crise, viu-se ainda mais exigi-
do nesse contexto dubio de escassez de re-
cursos publicos e de direitos legislados abun-
dantemente. Se na fase anterior ja era dificil
garantir a efetividade desses direitos pela via
judicial, agora a situacao de crise do Estado
torna 0 quadro mais dramatico, combinan-
do elevacao das demandas e baixa capacida-
de de resposta do judiciario.
Embora nao caiba aqui uma discussao
detalhada de outras mudancas recentes que
afetaram a funcao judiciaria, vale destacar
que a perspectiva sociologies enfatiza no-
vos fenomenos que influenciam de uma
maneira ou de outra a atividade judicial,
tornando-a bern mais complexa: a crise dos
meios tradicionais de representacao politi-
ca e a revalorizacao da sociedade civil, ate
mesmo como espaco de producao de benscoletivos nao mais realizados pelo Estado;
a globalizacao e seus efeitos sobre a produ-
~ao e implernentacao do Direito em suas
diversas areas; 0agravamento de proble-
mas que colocam em risco as instiruicoes e
a esfera publica de urn modo geral, tais como
a corrupcao e 0crime organizado. Alern dis-
so, 0 judiciario se ve desafiado tambern por
31. Ibidem, p.34-5.
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demandas de novos movimentos SOCialS,
muitas vezes articulados em defesa de direi-
tos de minorias ou de causas novas como as
arnbienrais e dos consumidores, ou ainda
pela revalorizacao dos mercados e das rela-c,;6esautonornas entre agentes econornicos,
que tern no judiciario 0sustentaculo da se-
guranca jurfdica dos contratos.
A segunda perspectiva de analise que des-
creve a expansao do judiciario na segunda
metade do seculo XX, quase sempre apoia-
da nos diagnosticos sociologicos produzidos
pela primeira, enfatiza os aspectos propria-
mente juridicos do surgimento de novos ti-
pos de direitos e de novas formas de acesso ajustica. Segundo essa vertente de analise, alern
das mudancas sociais, politicas e economi-
cas enfatizadas pela perspectiva sociol6gica,
o judiciario teria conhecido importante ex-
pansao ao longo do seculo XX tam bern por-
que 0direito e as regras processuais muda-
ram muito, colocando a justica ao alcance
formal dos atores coletivos da sociedade.
Urn dos principais estudiosos dessa pers-pectiva, Mauro Cappelletti produziu junta-
mente com Bryant Garth 0 primeiro balance
sistematico sobre as limites e novas possibi-
lidades de acesso a jusrica, por meio de tra-
balho publicado originalmente em 1978.32
Nesse livro, ao lado de quesroes como cus-
tos economicos e problemas de informacao,
os autores discutern as mudancas sofridas
pelo modelo individualista de direito liberal
(que reconhecia a titularidade de direitos
apenas a sujeitos individuais, aos quais cabia
a exdusividade de decidir sobre como e quan-
do recorrer a jusrica para sustenta-los), e a
ampliacao do acesso a justica aos chamados .
direitos difusos e coletivos.
Embora haja sutilezas importantes nas
definicoes de direitos difusos e coletivos,
uma formulacao geral poderia ser a seguin-
te: sao direitos transindividuais de natureza
indivisfvel, dos quais sejam titulares pessoasindeterminadas (direitos difusos) ou grupa
de pessoas ligadas entre si par alguma rela-
c,;aojuridica (direitos coletivos). Outra carac-
teristica importante e que esses novos direi-
tos poderao ser representados judicialmente
por atores sociais e coletivos, legitimados ex-
traordinariamente a ingressar em jufzo em
defesa de direitos que nao sao particular-
mente seus, mas que pertencem a urn con-
junto de individuos dispersos e nem sempre
identificaveis, Exemplos de direitos difusos sao
aqueles relacionados ao meio ambiente (pro-
tecao da qualidade do ar, rios, fauna e vegeta-
c,;ao,quando definidos por lei), dos quais ta-
dos os cidadaos se beneficiarn, porern indi-
visivelmente. Exemplos de direitos coletivos
podem ser encontrados em algumas relacoes
de consumo, quando consumidores indivi-
duais encontram-se ligados entre si ou com aparte conrraria por uma relacao juridica que,
quando desrespeitada, atinge-os coletiva-
mente; da mesma forma, a reparacao do dano
pode beneficiar a todos indistintarnente.
Segundo Cappelletti e Garth, 0reconhe-
cimento da dimensao difusa e coletiva de
certos interesses pelo Direito levou varies
paises a promover novas formas processuais
de acesso a jusrica, transcendendo 0 mode-
1 0 liberal de acoes judiciais individuais e
abrindo espac,;o as acoes coletivas. Desse
importante processo de mudanca, os auto-
res destacam a fragilidade dos individuos
frente a crescente complexidade do mundo
conternporaneo e a dimensao coletiva de
32. A edicao brasileira saiu dez anos depois. Cappelletti, Mauro e Garth, Bryant. Acesso a [ustica. PortoAlegre: Fabris, 1988.
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varies tipos de conflitos, ao mesmo tempo
em que apontam a incapacidade das insti-
tuicoes esratais de oferecer protecao geral
a direitas transindividuais como meio am-
biente, consumidor, patrimonio publico,
historico e cultural, entre outros. Entre a
fragilidade de individuos isolados e a inca-
pacidade estatal, os autores valorizaram as
solucoes adotadas por diversos paises no
sentido de abrir a justica a associacoes ci-
vis, legal mente constituidas para defesa ju-
dicial de interesses difusos e coletivos, de-
safiando consequenternenre 0 judiciario a
assumir urn papel totalmente novo.Urn segundo aspecta ressaltado pelos
autares, quanta a ampliacao do acesso a Jus-
rica, diz respeito a inovacoes na propria es-
trutura judiciaria, que passaram a proliferar
a partir da decada de 1970, tais como os "tri-
bunais de pequenas causas", voltados para a
solucao mais rapida e efetiva de casos de
menor complexidade, menor valor e/ou me-
nor potencial ofensivo. Essa onda de reforma
judiciaria, que atingiria diversos paises, mar-
caria a tentativa do judiciario de se aproxi-
mar da populacao mais pobre e de enfrentar
a chamada "Iitigiosidade contida", isto e ,demandas que nem chegavam aos tribunais
em funcao das dificuldades de acesso.
Seja pela via da explicacao sociologica,
seja pela via da explicacao juridico-proces-
sual, 0 fato e que 0 judiciario conheceu forte
expansao na segunda metade do seculo XX,
transformando-se em instancia de solucao de
conflitos coletivos e sociais e de imp lemen-
tacao de direitos muito mais orientados pelo
valor da igualdade do que pelo valor da li-
berdade. Isso obrigou os judiciaries de va-
rias democracias a reverem suas finalidades
institucionais, pautadas no paradigma libe-
ral, ease reencontrarem com a dimensao
politica nao pela via da justica constitucio-nal, mas pela porta da jusrica com urn.
No Brasil, ja contamos com urn conjun-
to significativo de pesquisas e analises que
nos permitem demonstrar como 0Judicia-
rio brasileiro tambern conheceu uma forte
expan sao nessa dimensao da jusrica comum
e da protecao de direitos coletivos e sociais.
Os trabalhos coordenados por Maria Tere-
za Sadek e Luiz Werneck Vianna, sediados
respectivamente em Sao Paulo e no Rio de
Janeiro, fornecem urn volume extraordina-
rio de inforrnacoes que confirmam essa ten-
dencia, em que pesem tambern apontarem
limites e contradicoes desse processo.P
33. Segue adiante uma lista dos titulos mais importantes, em ordem cronologica e ternatica: quanto ao perfil da
magistratura e as opinioes de jufzes sobre determinados temas e val ores relacionados a justi;;:a, ver Sadek,
Maria Tereza e Arantes, Rogerio B. "A crise do [udiciario e a visao dos jufzes", Revista da USp, n. 21, mar.-maio/1994, p.34-45. Sadek, Maria Tereza (Org.),0 Judicidrio em Debate. Sao Paulo: Sumare, 1995. Vianna,
Luiz Werneck, Carvalho, Maria Alice R., Melo, Manoel P . c., Burgos, Marcelo B. Corpo e Alma da Magistra-
lura Brasileira. Rio de Janeiro: Revan, 1997. Quanto a dupla expansao do judiciario brasileiro, na dimensao
polftico-constitucional e na dimensao social, ver os trabalhos de Sadek, Maria Tereza. "0 Poder judiciario na
Reforma do Estado" in Pereira, Luiz Carlos Bresser, Wilheim, Jorge e Sola, Lourdes (Org.), Sociedade e Estado
em Transforma¢o. Sao Paulo: Editora Unesp; Brasilia: Enap, 1999 (cap. 12) e Vianna, Luiz Werneck et al. A
iudicializacao da politico ... , op. cit. Para urn balance das novas experiencias de acesso a [ustica, sobretudo
quanto ao judiciario, ver Sadek, Maria Tereza (Org.). Acesso a [ustica. Sao Paulo: Fundacao Konrad
Adenauer, 2001. Para alguns topicos especiais como 0 conceito de judicializacfio da politica e uma avaliacao
ernpfrica do sistema de protecao dos interesses coletivos no Rio de Janeiro, entre outros temas relacionados
a justica, ver Vianna, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os Tres Poderes no Brasil. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, Rio de Janeiro: Iuperj/Faperj, 2002. Para urn exame das relacoes entre justica e economia, verCastelar, Armando (Org.). [udiciario e Economia no Brasil. Sao Paulo: Surnare, 2000. Para urn exame dos
projetos de reforma do judiciario, ver Sadek, Maria T. (Org.). Re(orma do [udicidrio, op. cit.
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A expansao do judiciario no Brasil se
deu, em grande parte, pelos mesmos moti-
vos apontados tanto pela perspectiva socio-
Iogica quanto pela vertente juridico-proces-
sual descritas acima.
Embora nao tenhamos construido no
Brasil urn Estado social sernelhante ao dos
paises europeus, tambern aqui 0 novo mo-
delo ecoriomico implantado a partir de
1930 - sob a Iideranca de Cetulio Vargas -
levou 0 Estado a assurnir papel central na
conducao da economia, combinado a urn alto
grau de intervencao nas relacoes sociais. 0
modelo varguista, muito mais corporativo doque 0sistema europeu de bem-estar social,
tambern levari a ao desenvolvimento de uma
nova legislacao social, especialmente rela-
cionada ao mundo do trabalho.
Foi nessa epoca que 0 judiciario brasilei-
ro conheceu seu primeiro salto expansionista,
quando areas importantes de conflitos foram
deslocadas para ramos especiais da justica,
Refiro-rne a questao eleitoral e a questao tra-
balhista, que ensejaram a criacao, respecti-
vamente, da jusrica Eleitoral e da justica do
Trabalho." Nao se trata aqui de remontar
esse periodo da historia brasileira, mas 0 fato
C que as eleicoes na Republica Velha eram
marcadas pela fraude e por outras mazelas
polfticas, a ponto de a "verdade eleitoral"
constiruir uma das bandeiras da Revolucao
de 30 e a criacao da justica Eleitoral ser uma
das suas conseqiiencias praticas. Na area so-
cial e trabalhista, a necessidade de expandir
os direitos sociais e ao mesmo tempo man-
ter sob controle a classe trabalhadora levou
o governo Vargas a construir urn extraordi-
nario conjunro de leis e instiruicoes, inclui-
da ai a justica do Trabalho, num arranjo que
Santos denominou de "cidadania regula-
da"." Entretanto, como demonstra Sadek
para 0 casu da justica Eleitoral" e Pastore
para 0 caso da justica do Trabalho," a solu-
~ao judicial das questoes eleitorais e traba-
lhistas nao era a (mica nem tampouco a for-
ma mais com urn de enquadramento desses
conflitos no mundo conternporaneo, pelo
menos nos termos abrangentes e forte men-te intervencionistas que caracterizaram 0
modeIo brasileiro. No nosso caso, indepen-
dentemente das vantagens e desvantagens
da solucao judicial, 0 fato e que a expansao
do judiciario nessas areas foi a formula ada-
tada para tentar institucionalizar dois tipos
de conflitos de grande irnportancia para a
rnanutencao da ordem social e politica,
Os Craficos 5 e 6 apresentam 0 volume
de acoes na Justica Eleitoral e na justica Tra-
balhista nos anos recentes. No primeiro
caso, apesar da rotinizacao das eleicoes, da
consolidacao das regras basicas de disputa
e do aperfeicoarnento crescente do proces-
so eleitoral (desde 0registro de eleitores ate
a usa de urnas eletr6nicas em todo 0 pais),
o volume de acoes nos Tribunais Regionais
Eleitorais manteve-se na faixa das 35 mil
ao longo dos an os 90, chegando a atingir
40 mil em 1992.
34. A [ustica Eleitoral foi criada em 1932 e ja na Consriruicao de 1934 figurou como ramo especifico do Poder
[udiciario, Os prirneiros orgaos da justica Trabalhista rambem surgiram no inicio dos an os 30 e foram
incluidos nas consriruicocs de 1934 e 1937, porern como jusrica administrativa. Foi a Constituicao de 1946
que cornpletou a formacao da justica do Trabalho, transformando-a em ramo do Poder judiciario,
35. Santos, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e [ustica. Rio de Janeiro: Campus, 1979.
36. Sadek, Maria Tereza, A [ustica Eleitoral e a consolidacao da democracia no Brasil. Sao Paulo: Fundacao
Konrad Adenauer, 1995.37. Pastore, Jose. Flexibilizacdo dos mercados de traba/ho e contratacao co/etiva. Sao Paulo: LTR, 1995.
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GRAFICO 5. Processos dttt itiurdc s para julgamento nos Tribunais Regionais
Eleitorais (arios selecionados)
40000
35000
30000
25000
20000
15000
10000
5000
.. '--
Ir>«:L - - - - _ - - - - -// I
-: !
-: I
I
!1989 elei"ao
presidencial
(solteira)
1990eleic;:6es
governos
estaduals,
asserrolsias
legislalivas e
congresso
nacional
1992elei"oes 1994eleicoes 1996 idem1992 1998idem 1994 2000 idem1996
preteltos e presidencial,
vereadores congresso
nacional,
governadores e
asserrnlelas
legislalivas
Fonte: Banco Nacional de Dados do Poder Judicia rio. Supremo Tribunal Federal. (www.stf.qov.br)
GRAFICO 6. Numero de processos iniciados na primeira instancia da .Justica do
Trabalho (1990-2001)
, 2500000 ,.-------~--------~--------~--------__,
L._0 __ 1_99_0_ 1991 1993 1999 2000996 1997 1998992 1994 1995
Fonte: Banco Nacional de Dados do Poder .Iudiciario. Supremo Tribunal Federal. (www.stf.gov.br)
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No ramo da justica do Trabalho, 0 vo-
lume de acoes impressiona. Ao longo dos
anos 90, bern que houve urn decrescirno do
numero de processos em 1994 (muito pro-
vavelmente relacionado ao controle do pro-
cesso inflacionario realizado pelo Plano
Real), mas insuficiente para afirmar-se como
tendencia para os an os posteriores, que vol-
tar am a conhecer urn crescimento extraor-
dinaric do mirnero de acoes, que pratica-
mente atingiram a casa de dois milhoes na
primeira instancia da justica Trabalhisra, Se-
gundo estudos realizados por Pastore, a Jus-
rica Trabalhista brasileira seria carnpea mun-dial em volume de processos, nem tanto por
uma suposta propensao a litigancia nessa area
mas justamenre pela rigidez da legislacao que
regula as relacoes de trabalho e pelo alto grau
de poder normativo da justica Trabalhista,
isto e , pela sua capacidade de intervir nessas
relacoes nos seus minimos detalhes."
A primeira onda de expansao do Judici-
ario brasileiro nas decadas de 1930 e 1940foi impulsionada por uma tendencia mais
profunda e duradoura da politica brasilei-
ra: a desconfianca em relacao as instituicoes
politico-representativas e a capacidade do
regime dernocratico de atender as necessi-
dades da sociedade, inspirando solucoes al-
ternativas do problema da ordem social e
dos conflitos coletivos, Essa matriz ideologi-
ca voltaria a operar na segunda onda de ex-
pansao da Justica brasileira, a partir dos anos
70, quando se atribuiu a urn orgao do pro-
prio Estado a responsabilidade principal de
defesa dos interesses difusos e coletivos pe-
rante 0 judiciario: 0Ministerio Publico.
Como demonstrei em trabalho anterior,"
o Brasil passou por uma profunda transfor-
macao no ordenamento jurldico a partir dos
anos 80, quando iniciou 0 reconhecimento
legal da existencia de direitos difusos e co-
letivos e a abertura do processo judicial a
representacao desses direitos. 0marco fun-
damental foi a criacao da As;ao Civil Publi-
ca - ACP em 1985, por meio da qual direi-
tos do consumidor, meio ambiente e
patrim6nio historico-cultural passariam a
ser defendidos coletivamente em juizo.
o debate em torno da criacao da ACP
mobilizou juristas, juizes e membros doMinisrerio Publico. Este ultimo, a epoca,
reivindicava a condicao de orgao de defesa
da sociedade, a despeito de ser uma insti-
tuicao do Estado responsavel por acionar a
judiciario em areas bern delimitadas como
a da acao penal, sua precipua atribuicao.
Entretanto, como vim os, a discussao sobre
o acesso coletivo a justica, conduzida por
autores renomados como Cappelletti, nao s6propunha a valorizacao das associacoes da
sociedade civil como avaliava negativamen-
te 0 papel desempenhado por instituicoes
estatais nessa area. Independentemente des-
sa avaliacao, 0 fato e que 0Ministerio Publi-
co conseguiu - por forca de sua participacao
direta na forrnulacao do anteprojeto que deu
origem a Lei da ACP - chamar para si boa
parcela da responsabilidade e dos instru-
mentos de atuacao nessa nova area de di-
reitos difusos e coletivos.
A Constituicao de 1988 consolidou essa
expansao da justica rumo a protecao dos
direitos coletivos, reafirmando-os como
38. Os van os artigos de Jose Pastore sobrc essas que sto es podem ser encontrados no site:
www.josepastores.corn.b r.39. Arantes, Rogerio Bastos, Ministerio Publico e Politica no Brasil. Sao Paulo: Surnare/Educ, 2002.
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categoria juridica constitucional- 0que per-
mitiria 0 reconhecimento legal de varies ou-
tros direitos especificos a partir dessa matriz
- e confirmou 0papel tutelar do Ministerio
Publico nessa area, atribuindo-lhe ao mes-
mo tempo independencia institucional em
relacao aos demais poderes de Esrado;"
Desde 1988 temos assistido ao desen-
volvimento de urn verdadeiro subsistema
jurfdico no pais, em que novas leis promul-
gadas orientam-se pela ideia da protecao
coletiva de determinados direitos e pelo re-
force do papel do Ministerio Publico, dan-
do continuidade a expansao iniciada pelaLei da ACP de 1985: sao exemplos a Lei
7853/89, que trata da protecao das pessoas
p ortadoras de deficiencia; aLei 7913/89, que
institui a prorecao coletiva dos investidores
do mercado de valores mobilidrios; a Lei
8069/90, que criou 0Estatuto da Crianca e
do Adolescente; a Lei 8078/90, que criou 0
C6digo de Defesa do Consumidor, certa-
mente 0diploma legal mais importante des-
se novo subsistema juridico; a Lei 8429/
92, que trata da improbidade administrati-
va, delegando funcoes importantes ao Mi-
nisterio Publico; a Lei 8884/94, que trata
das infracoes contra a ordem economica e,
finalmente, a Lei 8974/95, que estabelece
norm as sobre biosseguranca e da legiti-
rnacao ao Minisrerio Publico para atuar
nessa area.
o resultado geral dessa evolucao
legislativa e processual e que hoje a justica
brasileira se converteu em palco importan-
te de conflitos coletivos, nas mais diversas
areas, e 0protagonismo do Ministerio Pu-
blico tern chamado a atencao dos analistas
para os limites e potencialidades desse mo-
delo instirucional."
E importante destacar que a arnpliacao
do acesso a jusrica no Brasil nao se deu ape-
nas por rneio dessa revolucao processual,
mas tambern por inovacoes importantes na
estrutura judiciaria, em sintonia com as ten-
dencias apontadas por Cappelletti sobrevaries paises, a partir dos an os 70. Refiro-
me a criacao dos J uizados Especiais de Pe-
quenas Causas, instiruidos por lei em 1984
e depois constitucionalizados pela Carta de
1988. Regulamentados novamente por lei
em 1995, os Juizados Especiais representa-
ram uma importante experiencia de ampli-
acao do acesso a justica para causas civeis
envolvendo valores ate quarenta salaries
minirnos e para causas criminais cuja pena
maxima nao ultrapasse urn ano de prisao.
Segundo Cunha, 1.702 juizados especiais
estavarn em funcionamento no Brasil em
2001, destacando-se os estados do Rio
Grande do SuI (220), Parana (218) e Rio de
Janeiro (170). Tais juizados ja seriam respon-
saveis por urn grande volume de processos,
as vezes superior ao da jusrica comurn, como
40. Sobre a singularidade do modele de independencia instirucional do Ministerio Publico brasileiro ver
Kerche, Fabio. 0Ministerio Publico no Brasil. Autonomia, organizacdo e atribuicoes. Tese (Dourorado) -
Departamento de Ciencia Politica. USp, 2002.
41. Vianna e Burgos, com base em ampla pesquisa sobre acoes civis publicas no Rio de Janeiro, contestarn a
tese da predominancia excessiva do Ministerio Publico em relacao a sociedade civil, na proposicao das
a~oes coletivas e, adotando uma perspectiva mais otimista sobre essa relacao, concluem que "entre a
sociedade e 0Ministerio Publico, a reiacao nao e tanto de assimetria e dependencia da prirneira vis-a-vis
D segundo, e sim de interdependencia, que, quanto mais se consolida, rnais legitima os novos papeis do
Ministerio Publico e destitui de sentido a perspectiva que os tom a como polaridades, como instancias
contrapostas", Vianna, Luiz Werneck (Org.). A democracia e os Tr is Pode re s . .. , op. cit., p.445.
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no casu do estado do Arnapa, descrito pela
aurora."
Paralelamente aos juizados especiais e
orientando-se pelo mesmo princfpio da oferta
de services judiciaries mais rapidos e acessi-veis, varias outras iniciativas foram tomadas
pelas justicas estaduais e federal na decada
de 1990, tais como juizados informais de
conciliacao, juizados itinerantes (que ope-
ram em onibus que circulam pela cidade),
juizados especiais abrigados em faculdades
de direito, alern dos recentemente criados
juizados especiais federais. Em muitos esta-
dos, governos estaduais tern buscado reunirdiversos services publicos relacionados aarea de justica e cidadania, oferecendo-os
de maneira integrada, e num mesmo local,
a populacao.:"
Independentemente das dificuldades e
conrradicoes que ainda marc am esse pro-
cesso de expansao da justica brasileira, pa-
rece inquestionavel que, tambem nessa di-
mensae comum e nao especificamente poli-
tico-constitucional, 0 judiciario assumiu
tarefas de grandes proporcoes, 0 que mui-
tas vezes contrasta com sua capacidade de
dar respostas com a efetividade esperada.
o
3. Qual 0futuro do .Judtctarlo?
Segundo Tate e Vallinder, em trabalho
recente sobre a expansao do judiciario em
varies paises do mundo, a judicializaaio dapolitica se ve facilitada quando determina-
das condicoes estao presentes:
Ihe presence o] democracy, a
separation o] powers system, a
potitics o] rights, a system o{ interest
groups and a political opposition
cognizant of iu dicial means {or
attaining their interests, toeal: parties
or f ragile gO l'l'Tnmen t coalitions in
nuiioritarian institutions leading to
policy deadlock, inadequate publ«:
support, at least relatiue to judiciaries,
and delegation to courts o] decision-
making authoritv ill certain polic»
areas < I f ! contribute to th e
judicialization o{ politics . .j~
Quando observamos 0casu brasileiro,
parece-nos que todas essas condicoes esti-
veram presentes nos ultimos anos, em maior
ou menor medida, 0 que nos torn aria urn
importanre exemplo de judicializaaio da
politica: a democracia restabelecida nos anos
80, seguida de uma Constituicao prodiga
em direitos em 1988, com urn numero cada
vez maior de grupos de interesses organiza-
dos demandando solucao de conflitos cole-
tivos, contrastando com urn sistema politico
pouco majoritario, de coaliz6es e partidos
frageis para sustentar 0governo, enquanto
os de oposicao utilizam 0 judiciario para
conre-lo, alem de urn modelo constitucional
que delegou a J ustica a protecao de interes-
ses em diversas areas, refletindo ate mesmo
o alto grau de legitimidade do Judiciario edo Ministerio Publico como instituicoes ca-
pazes de receber essa delegacao.
42. Cunha, Luciana Gross Siqueira, "[uizado Especial: ampliacao do acesso a justica?", in Sadek, Maria T.
Acesso a [ustica, op. cit.
43. Urn balance dessas diversas experiencias pode ser enconrrado em Sadek, Maria T. Acesso a [ustica, op, cit.
Vianna et al. exarninaram 0 trabalho dos juizados especiais no Rio de Janeiro e demonstraram sua irnpor-
tancia para 0 processo de judicializacao das relacoes sociais, nao sem identificar problemas e limitacoes
desse modelo de acesso ii [ustica. Vianna et al. A ju dicia lizacd o d a p olitica ... , op. cit.
44. Tate, C. Neal e Vallinder, Torbjorn (Ed.), The Global Expansion of Judicial Power. Nova York: Nova York
University Press, 1997. p.33.
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Tate e Vallinder argumentam que a
[udicializacdo da polfrica, com base nessa
constelacao de fatores, dependeria ainda da
disposicao dos integrantes dessas instituicoes
de agir, de tomar iniciativas e de chamar para
si a responsabilidade pela implernentacao de
direitos e pela solucao dos grandes conflitos
da sociedade, configurando 0 que a literatu-
ra nessa area chama de ativismo judicial.
Embora nao seja possivel simplificar a ideo-
logia politica que permeia 0 meio forense
brasileiro, pesquisas recentes tern aponta-
do a presenca de val ores de transforrnacao
social, de igualdade e de cidadania, entrejuizes e membros do Ministerio Publico -
nestes mais do que nos primeiros." Tais
valores ideologicos podem nao ser suficien-
tes para levar a magistratura e 0Ministerio
Publico a mergulharem num ativismo judi-
cial desenfreado, mas certamente tern incli-
nado varios estratos dessas instituicoes a
assumir com firmeza suas novas atribuicoes
sociais e politicas.
A juncdo desses varies elementos expli-
ca a expansao da justica nos ultimos anos,
mas nao foi apenas esse 0 signo que marcou
a vida de insrituicoes como J udiciario e
Ministerio Publico nesse periodo. Ao lado
de expansao, "crise" e "reforma" sao expres-
soes que dominaram 0debate publico so-
bre a justica, na mesma proporcao em que
suas novas atividades foram valorizadas.
Na linha dos dois modelos constitucio-nais de judiciario discutidos na primeira se-
~ao, pode-se afirmar que a "crise" da justica
no Brasil tern uma dupla dimensao: no que
diz respeito as suas funcoes de controle cons-
titucional das leis, a crise judiciaria e uma
crise political no que diz respeito as suas
atribuicoes de [ustica comum, a crise e fun-cional e de desempenho.
Ha mais de dez anos trarnitando no
Congresso Nacional, 0 projeto de reforma
do judiciario procura lidar com essas duas
dimensoes, mas os diversos atores envol-
vidos no processo (governo, partidos poli-
ticos, orgaos de cupula do judiciario, as-
sociacoes de classe da magistratura e do
Minisrerio Publico e Ordem dos Advoga-dos do Brasil) acabaram produzindo uma
situacao de vetos cruzados, na qual dais au
mais deles estao aliados em torno de uma
proposta e em oposicao entre si no que diz
respeito a outras tantas.
Na dimensao politica, mais saliente do
que a funcional, 0 grande embate vern se
dando em torno de propostas que levem a
uma concentracao da cornpetencia do con-
trole constitucional das leis no Supremo
Tribunal Federal, diminuindo a importan-
cia politica do lado difuso do sistema. Du-
rante dez an os ou mais, presidentes da Re-
publica e partidos governistas no Congres-
so (a maiaria politica) tentaram aprovar
mudancas constitucionais de concentracao,
mas a oposicao, em que pese minoritaria,
conseguiu impedi-las, sob a lideranca prin-
cipal do Partido dos Trabalhadores, e coma apoio das instancias inferiores do Judicia-
rio e de associacoes do Ministerio Publico.
45. Boa parte dessas pesquisas encontra-se nos trabalhos mencionados na nota 33. Quanto aos mernbros do
Ministerio Publico, denominei sua ideologia de "voluntarismo politico", algo que combina uma crenca
no papel tutelar da instituicao frente a uma sociedade incapaz de se defender autonomamenre c a urn
poder politico-representativo corrompido ou incapaz de cumprir com suas obrigacoes, Ver Arantes, Ro-
gerio B. Ministeria Publico ..., op. cit. cap. ]1. Entre os juizes, 0 ultimo survey conduzido pelo Idesp (2000)
revelou, por excmplo, que 73,1% dos magistrados brasileiros consideravarn que "0 juiz tern um papel
social a cumprir, e a busca da justica social justifies decisoes que uiolem os contratos"; contra apenas
19,7% afirmaram que "as contratos devem ser respeitados, independente de suas repercussoes sociais".
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ctI Com a chegada do PT a presidencia em 2003, considerado par Tocqueville como a nova.~, " ! : : : :
a oposicao se transforma em governo: resta aristocracia da sociedade moderna. ·Comoa . . .
saber se 0 partido e seus tradicionais aliados prafetizou 0pensador frances, a tendenciatI
Q.l
reafirrnarao 0 seu posicionamento anterior dernocratica poderia colocar em risco osctI(.)'l
ou passarao a pensar e agir como governo, privilegios desse carpo especial de funcio-; . : ;
Cfl
: : : :J
isto e, se adotarao a proposta de concentra- narios do Estado: de tempos em tempos,:l
ctI
~ao do controle constitucional no STF, tornados pelo desejo de igualdade e peloJ re-. . . .. . . .
duzindo as chances de resistencia das mino- ideal da res publica, povo e representantesO J
0 rias politicas pela via difusa do sistema judi- politicos buscariarn nivelar garantias e au-.;::
cial de revisao das leis. mentar 0 contrale sobre toda a adrninisrra-ctl
. ( 3
'5 Na dimensao funcional, as propostas de ~ao, incluindo af a magistratura, que enfren-:::l
-:lampliacao e diferenciacao da estrutura ju- taria grandes dificuldades para sustentar sua
diciaria - para fazer frente ao deficit de pres- independencia institucional e condicoes pri-
tacao da justica - sao menos controversas e vilegiadas de trabalho, nesses momentos
boa parte delas chegou a unificar 0apoio crfticos,
Ida magistratura, da OAB e dos partidos de A proposta de criacao de orgaos exter-
oposicao ate 2002, frente a uma quase in- nos de controle tern levado jufzes e promo-" tores a agonia: os que se dedicam aristocra-,
diferenca do governo a esse respeito. Maisl
iiI problernaticas nessa dimensao foram as pro- ticamente a causa da liberdade, temem aI
postas que pretendiam rever 0 alcance da ingerencia polftica e 0 fim do judiciario
nova area de direitos difusos e coletivos e a como poder politico capaz de contrastar a
expansao do Ministerio Publico como or- maioria governante; os que simplesmente
gao independente e legitimado a defesa des- se beneficiam corporativamente dessas ga-
ses interesses. rantias e privilegios, temem que a igualda-
A essas duas frentes de reforma, deveria- de republicana nivele as coisas por baixo.
mos acrescentar finalmente uma terceira: a A sorte do judiciario esta sendo lancada
tentativa de instituir orgaos de contrale ex- nessas tres frentes de mudanca - a polirica,
terno do judiciario e do Ministerio Publico, a funcional e a republican a - e do equili-
cuja motivacao nos faz lembrar 0 dilema brio entre elas depended 0 futuro da insti-
apontado por Tocqueville ainda no seculo tuicao, Enquanto isso, "crise" e "reforma"
XIX. Nao podemos esquecer que uma das sao signos que acornpanharao a vida do Ju-
dimensoes do processo de dernocratizacao diciario, pois suas funcoes na democraciano Brasil foi e tern sido a da republicanizacdo conternporanea seguem problematicas: fre-
do Estado. 0 destaque recebido pelo tema ar 0 poder das maiorias politicas gover-
da corrupcao politica na agenda nacional nantes em nome das liberdades individuais,
nos ultimos anos e exemplo da importancia pela via do contrale constitucional (funcao
dessa "onda republicana" que afastou urn liberal), e amparar as reivindicacoes iguali-
presidente da Republica e tern levado a cas- tarias de grupos sociais, pela via do acesso
sacao de mandatos executivos e legislativos coletivo a justica (funcao social). E tudo isso
em varies pontos do pais. Nao era de es- em meio ao desafio permanente de susten-
pan tar que essa onda atingisse aquele cor- tar sua peculiar condicao de corpo aristo-po especial de funcionarios que, resguarda- cratico estranho no seio da republica demo-
dos por tantas garantias e privilegios, foi cratica,
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