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Poíesis Pedagógica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69 BAKHTIN E A AVALIAÇÃO ESCOLAR: DIMENSÕES ÉTICAS NO ATO DE AVALIAR A APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS BAKHTIN AND SCHOOL EVALUATION: ETHICAL DIMENSIONS IN THE ACT OF EVALUATING LANGUAGE LEARING Ismael Ferreira-Rosa 1 Viver significa participar do diálogo: interrogar, ouvir, responder, concordar etc. Nesse diálogo o homem participa inteiro e com toda a vida: com os olhos, os lábios, as mãos, a alma, o espírito, todo o corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra no tecido dialógico da vida humana, no simpósio universal [...]. Cada pensamento e cada vida se fundem no diálogo inconclusível. Mikhail Bakhtin RESUMO Este artigo tem por fito, a partir do escrutínio de um simulado avaliativo de Língua Portuguesa (SIMA) aplicado ao sexto ano do Ensino Fundamental de uma escola municipal em Catalão-GO, analisar e problematizar o ato de avaliar no processo de ensino-aprendizagem de línguas, em especial, da língua portuguesa. Tendo por base os estudos bakhtinianos sobre sujeito, língua, ato e ética buscaram-se as noções balizadoras de sujeito e língua que suportaram a arquitetônica de tal SIMA e, em seguida, inquiriram-se essas noções, apontando algumas considerações que nada tiveram de procedimentais ou norteadoras de ações no âmbito da avaliação, apenas como suscitadoras de posicionamentos sobre o ato de avaliar, interpelando professores a empreenderem tomadas de posição em suas práticas avaliativas e proverem aberturas éticas nessas práticas, de modo a deixar um pouco de lado as marcas arraigadas do avaliar como mensurar um dado conhecimento, um dado saber. Palavras-chave: Avaliação. Sujeito. Língua. ABSTRACT This paper aims at analyzing and discussing the evaluating act during the language teaching and learning process, especially the Portuguese language, by means of a scrutiny of a Portuguese evaluation test applied to the sixth grade class of a municipal elementary school in Catalão-GO. Based on Bakhtin’s studies about subject, language, act, and ethic, it analyses the subject and language notions that support the evaluation’s architectonic. Then, it examed closely these notions, pointing out some considerations that had nothing to do with procedural or guiding actions in the context of evaluation. In fact, these notions just pointed out some positioning about the evaluating act, while questioning teachers to help them assume positions in relation to their assessment practice and also to provide ethical openings in those practices, in order to put aside the rooted marks of evaluating as a form of measuring a given knowledge. Keywords: Evaluation. Subject. Language. 1 Doutorando em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Uberlândia (Bolsista CAPES). Mestre em Linguística e Linguística Aplicada pela Universidade Federal de Uberlândia. Graduado em Letras pela Universidade Federal de Goiás Câmpus Catalão. Secretário Executivo da Coordenação de Graduação da Universidade Federal de Goiás Câmpus Catalão. Professor de Língua Inglesa no Centro de Línguas da Universidade Federal de Goiás Câmpus Catalão. Membro integrante do Laboratório de Estudos Polifônicos (LEP) da Universidade Federal de Uberlândia e pesquisador vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisas em História do Português (GEPHPOR) da Universidade Federal de Goiás Câmpus Catalão. E-mail: [email protected] Artigo recebido em 19-08- 2012; aprovado em 01-10- 2012

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  • Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    BAKHTIN E A AVALIAO ESCOLAR: DIMENSES TICAS NO

    ATO DE AVALIAR A APRENDIZAGEM DE LNGUAS

    BAKHTIN AND SCHOOL EVALUATION: ETHICAL DIMENSIONS IN

    THE ACT OF EVALUATING LANGUAGE LEARING

    Ismael Ferreira-Rosa1

    Viver significa participar do dilogo: interrogar, ouvir, responder,

    concordar etc. Nesse dilogo o homem participa inteiro e com toda a

    vida: com os olhos, os lbios, as mos, a alma, o esprito, todo o

    corpo, os atos. Aplica-se totalmente na palavra, e essa palavra entra

    no tecido dialgico da vida humana, no simpsio universal [...].

    Cada pensamento e cada vida se fundem no dilogo inconclusvel.

    Mikhail Bakhtin

    RESUMO

    Este artigo tem por fito, a partir do escrutnio de um simulado avaliativo de Lngua Portuguesa

    (SIMA) aplicado ao sexto ano do Ensino Fundamental de uma escola municipal em Catalo-GO,

    analisar e problematizar o ato de avaliar no processo de ensino-aprendizagem de lnguas, em especial,

    da lngua portuguesa. Tendo por base os estudos bakhtinianos sobre sujeito, lngua, ato e tica

    buscaram-se as noes balizadoras de sujeito e lngua que suportaram a arquitetnica de tal SIMA e,

    em seguida, inquiriram-se essas noes, apontando algumas consideraes que nada tiveram de

    procedimentais ou norteadoras de aes no mbito da avaliao, apenas como suscitadoras de

    posicionamentos sobre o ato de avaliar, interpelando professores a empreenderem tomadas de posio

    em suas prticas avaliativas e proverem aberturas ticas nessas prticas, de modo a deixar um pouco

    de lado as marcas arraigadas do avaliar como mensurar um dado conhecimento, um dado saber.

    Palavras-chave: Avaliao. Sujeito. Lngua.

    ABSTRACT

    This paper aims at analyzing and discussing the evaluating act during the language teaching and

    learning process, especially the Portuguese language, by means of a scrutiny of a Portuguese

    evaluation test applied to the sixth grade class of a municipal elementary school in Catalo-GO. Based

    on Bakhtins studies about subject, language, act, and ethic, it analyses the subject and language notions that support the evaluations architectonic. Then, it examed closely these notions, pointing out some considerations that had nothing to do with procedural or guiding actions in the context of

    evaluation. In fact, these notions just pointed out some positioning about the evaluating act, while

    questioning teachers to help them assume positions in relation to their assessment practice and also to

    provide ethical openings in those practices, in order to put aside the rooted marks of evaluating as a

    form of measuring a given knowledge.

    Keywords: Evaluation. Subject. Language.

    1 Doutorando em Estudos Lingusticos pela Universidade Federal de Uberlndia (Bolsista CAPES). Mestre em

    Lingustica e Lingustica Aplicada pela Universidade Federal de Uberlndia. Graduado em Letras pela

    Universidade Federal de Gois Cmpus Catalo. Secretrio Executivo da Coordenao de Graduao da Universidade Federal de Gois Cmpus Catalo. Professor de Lngua Inglesa no Centro de Lnguas da Universidade Federal de Gois Cmpus Catalo. Membro integrante do Laboratrio de Estudos Polifnicos (LEP) da Universidade Federal de Uberlndia e pesquisador vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisas em

    Histria do Portugus (GEPHPOR) da Universidade Federal de Gois Cmpus Catalo. E-mail: [email protected]

    Artigo recebido em 19-08- 2012; aprovado em 01-10- 2012

  • 48 Ismael Ferreira Rosa

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    Palavras preliminares

    Muito j se discutiu sobre a avaliao no contexto escolar, sobretudo no que se refere

    ao processo de ensino e aprendizagem de lnguas. Inmeros questionamentos, crticas,

    perspectivas, caminhos j foram levantados, delineados, traados e at reafirmados.

    Justamente por ser uma questo de assaz melindre e profunda problemtica na prtica

    educativa, busca-se incessantemente uma verdadeira definio para o significado do que seja

    avaliar na escola, um efetivo paradigma de instrumento avaliativo e/ou um exequvel aparato

    terico-conceptual para a construo de percepes axiolgicas do ato de aprender, capaz de

    deslindar a implexa e complexa constitutividade subjetivo-mensurativo-accional da prtica

    avaliativa no mbito educacional do ensinar e aprender uma lngua.

    No obstante a avaliao ser uma prtica inerente ao homem pois desde os seus

    dilculos etrios que sujeitos em suas relaes sociais se veem comparados, valorados,

    apreciados, avaliados, observados, aferidos; desde seus primeiros contatos com outros que se

    veem refletidos/julgados segundo outricidades j existentes: Parece com o pai! Puxou a me!

    Tem os olhos do av! Chamar-se- fulano porque se parecer com o outro fulano eminente e

    assim por diante as dimenses do que seja avaliar no tm sido claras na escola.

    Ora, por longas extenses temporais, a avaliao tem sido sinnimo de atribuio de

    quantitativos numrico-percentuais e/ou conceituais (A, B, C...) a amostras concretas ou

    provas materiais do que se aprendeu sobre um saber, um conhecimento. Mediante

    questionrios compostos por interrogaes de mltipla escolha, interpretativas, dissertativo-

    argumentativas; arguies; produes escritas; exposies orais; fichas de leitura, dentre

    outras; escopo dessa prtica aferitiva verificar a assimilao de um dado contedo ou uma

    dada habilidade2, tendo por fito a promoo ou reprovao do aluno, e o controle de seus

    avanos e retrocessos na escala durativo-temporal dos anos escolares a cumprir.

    Desse modo, notvel o funcionamento das balizas da lgica da mensurao

    norteando o processo da avaliao na escola. Dissentindo at de suas razes etimolgicas

    (avaliar advm do latim a + valere, que remete a atribuir valor, valorar uma dada realidade), o

    2 Habilidade aqui entendida enquanto um saber-fazer relacionado a uma dada prtica. Remete-se, destarte, a

    aes fsico-cognitivas que indicam uma capacidade adquirida ao longo de uma prtica, um exerccio de um

    saber, de um conhecimento, a exemplo das habilidades de sintetizar, julgar, interpretar, relacionar informaes,

    identificar variveis, entre outras.

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    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    ato de avaliar tem sido, em recorrentes contextos, antes de ser um ato de valorar3, um ato de

    mensurar, medir, quantificar conhecimentos, saberes apreendidos pelos alunos.

    Mesmo que discusses tenham sido instauradas e se tenham apontados outros

    caminhos que no o mensurar, mas, por exemplo, o circunstanciar os resultados ao invs de

    medi-los; ou ento o julgar os resultados como aporte de um planejamento, conferindo se

    objetivos e metas foram alcanados, julgando se o trabalho foi pertinente ou impertinente e

    no somente medir ou descrev-los; ou ainda o agenciar os resultados, participando de forma

    reflexiva, interativa, construtiva de tais resultados, de modo que, mais que medir,

    circunstanciar, julgar, preciso obter informaes sobre o que foi aprendido, mediante

    procedimentos investigativos, instrumentos avaliativos, e assim intervir pedagogicamente

    para uma melhor qualidade do processo de ensino e aprendizagem; a avaliao persiste em ser

    um procedimento mensurador, apesar de vrios eptetos conceituais atribudos a ela, quer

    sejam: formadora, participativa, contnua, emancipatria, mediadora, dialgica, qualitativa,

    democrtica, autntica, libertadora, integradora, responsiva, reflexiva, autonimizadora (cf.

    levantamento qualificativo-conceitual apontado por Cunha, 2006, p. 61-64).

    E ressalto o qualificador mensurador, porque no obstante as vrias percepes que na

    atualidade se pautam no discurso da formatividade, da participatividade, da emancipatividade,

    na prtica, no dia a dia da sala de aula, a avaliao ainda se revela em uma relao totalmente

    incua a essas discusses, constituindo-se uma prtica aferidora e mensuradora quantitativo-

    numrica de amostras materiais e concretas, (com)provando um (no)aprendizado. Com

    efeito, ainda se mostra um instrumento de poder, coero e medidor do nvel de

    aprendizagem, fato que pode ser corroborado por meio de cleres anlises de testes e provas

    de lngua portuguesa, por exemplo, aplicadas nas escolas, bem como de seu processo de

    correo e atribuio de notas pelo professor.

    Mas por que, a despeito das vrias discusses e da instaurao de novos conceitos

    sobre a avaliao, esse ato permanece incuo, reforando um descompasso entre os nortes

    prerrogados pelas vrias acepes de avaliao e a prtica do avaliar?

    inegvel que uma verdadeira significao para o que seja avaliar algo impossvel,

    dada sua complexidade e implexidade. Na verdade, um ato constitutivamente marcado por

    contradies, discrepncias, ambiguidades, dissimetrias, incongruncias, embates. Ora,

    avaliar um processo que acompanha os sujeitos em suas inmeras relaes, desde seu

    3 Valorar e medir so duas balizas conceptuais discrepantes, cujas acepes mais a frente sero melhores

    circunstanciadas e detalhadas.

  • 50 Ismael Ferreira Rosa

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    nascimento at a sua morte, conforme aponta Catani; Gallego (2009), e nunca se revelou ser

    um processo plcido e distenso. Portanto, no seria diferente na escola.

    Destarte, mais do que tentar atenuar ou mesmo delir as tenses que existem no ato de

    avaliar, mediante a elaborao de conceitos ou eptetos tericos, longe de afirmar que essa

    elaborao no seja importante ou pertinente aos estudos do mbito educacional, preciso

    atentar aos baluartes constitutivos do ato de avaliar: o avaliador, o avaliado e o objeto de

    ensino e aprendizagem.

    Sabe-se que a avaliao instaura perspectivas diferentes para quem avalia e para quem

    avaliado e isto constri um intricado de efeitos que precisam ser considerados, analisados.

    Um intricado marcado por construes subjetivas e sentidurais4 que necessitam de um olhar.

    Com efeito, mais do que nortes prerrogados por uma percepo terica, que at

    instaura modismos conceptuais acerca do que avaliar e o que avaliao, preciso levar em

    conta as concepes do que sujeito, lngua, aprendizagem, ensino, produo de sentidos.

    Segundo Cunha (2006, p. 64), um equvoco perpetrado quando se discutem questes voltadas

    ao ato de avaliar

    crer, e principalmente [...] agir, como se as mudanas na rea da avaliao

    em lngua pudessem ocorrer independentemente das concepes existentes a

    respeito do ensino e da aprendizagem da lngua, provocando, por si s,

    mudanas nesse mbito tambm [...]. O modo como se avalia em lngua est

    em consonncia direta com as concepes de ensino, de aprendizagem e de

    lngua predominantes, tanto em nvel dos objetivos quanto em nvel dos

    objetos de ensino e aprendizagem privilegiados. Nenhuma crtica consistente

    das prticas avaliativas no ensino/aprendizagem de lngua pode deixar de

    abranger uma anlise dos pressupostos desse ensino/aprendizagem de lngua

    (o que no feito pelos estudiosos das cincias da Educao, entre os quais,

    no entanto, se encontram habitualmente os especialistas em avaliao).

    Atentando a este fato, talvez aquela inocuidade que marca um descompasso entre

    nortes tericos e a prtica avaliativa em sala de aula de lnguas seja uma decorrncia desse

    equvoco, pois antes de se elaborar mais conceitos e orientaes procedimentais para o

    desenvolvimento da avaliao em lnguas no espao educacional, imprescindvel se faz que se

    perscrute que sujeitos esto envolvidos no processo, que lngua est sendo

    ensinada/aprendida, para, a partir da, refletir sobre o ato de avaliar.

    De nada adianta prerrogar uma postura emancipatria, participativa e (re)formadora,

    se a lngua, enquanto objeto de ensino e aprendizagem, concebida como um sistema

    4 Sentidural configura-se como o designativo que reporta ao contnua e ininterrupta da dinmica dos

    sentidos, que esto perenalmente em processo de (des)construo pelas tomadas de posio dos sujeitos, no

    interior de uma enunciao, funcionando discursivamente.

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    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    autnomo, regido por regras e normas imanentes e inerentes a sua estrutura, cuja apreenso de

    seu funcionamento sistmico-estrutural e descrio por meio de metatermos constituem o

    escopo de seu ensinar e aprender5.

    em vo postular uma avaliao em lnguas pautada na mediao contnua e

    interventora se o processo de ensino-aprendizagem dessa lngua balizado por um vis

    transmissivo-passivo e extremamente metalingustico; se se tem como objetivo pedaggico

    ensinar/aprender uma lngua para o uso correto e exmio do cdigo lingustico pela parte de

    um sujeito aluno que nada sabe desse cdigo e que, portanto, deve aprender a descrever o

    funcionamento dessa lngua para ento us-la conscientemente de forma plena e vernacular.

    Ora, enquanto predominar uma concepo fechada e autnoma de lngua e de sujeito

    passivo e submisso, avaliar no poder ser diferente de mensurar, pois o quanto o aluno

    sabe descrever e usar o cdigo que constituir o escopo da prtica avaliativa.

    Para refletir um pouco mais sobre essa problemtica da avaliao em lnguas no imo

    das balizas conceptuais de sujeito e lngua, alvitro a anlise de um instrumento avaliativo em

    lngua portuguesa (designado de simulado avaliativo, que no escopo deste trabalho ser

    abreviado por SIMA) que foi aplicado ao sexto ano do Ensino Fundamental, como forma de

    preparo e treinamento para concurso e vestibulares a serem enfrentados no porvir, alm,

    obviamente, de valer nota para o fechamento do terceiro bimestre letivo de 2010 em uma das

    escolas da cidade de Catalo, cujo nome ser resguardado por questes ticas6.

    Ulterior a essa questo tica, que tem por desgnio preservar a integridade do

    estabelecimento de ensino, o nome tambm no ser revelado por no interessar a minha

    anlise nominalizaes de quem aplicou, quem elaborou, ou quem se submeteu avaliao.

    Antes, meu interesse e intento analtico perscrutar quais concepes de lngua e sujeito

    subjazem ao referido instrumento avaliativo e, posteriormente, problematizar essas

    concepes, delineando alguns caminhos que poderiam ser percorridos para um ato de avaliar

    5 Pode-se questionar a incisividade assertiva de meu posicionamento, contudo, a despeito de alguns contextos de

    mudana nos espaos educacionais do ensino-aprendizagem de lnguas, a concepo de gramaticalidade e

    metalinguagem ainda permanece de forma muito arraigada e continua a nortear o ensinar e aprender, por

    exemplo, a lngua portuguesa na segunda fase do Ensino Fundamental, nvel em que fui professor por mais de

    dois anos na rede municipal de ensino da cidade de Catalo-GO, e acompanhei de maneira mais prxima tanto

    em minha prtica, quanto na prtica de meus docentes pares, os efeitos desse arraigo conceptual. 6 Cabe destacar que os simulados desta natureza so compostos por questes de mltipla escolha, tanto

    elaboradas pelos prprios professores de lngua portuguesa da escola, quanto retiradas de outros instrumentos

    avaliativos preparados por outras instncias, quer sejam: exames de admisso em escolas da rede privada de

    ensino; concursos para o ingresso em cursos profissionalizantes; provas elaboradas por conselhos superiores da

    Educao (Prova Brasil, por exemplo); vasto material que se encontra disponvel na internet e sites educacionais;

    entre outros. No caso do simulado que constituir o corpus de anlise de minha discusso, as questes foram

    retiradas de um exame de admisso para uma escola militar no perodo letivo de 2010, cujo nome tambm ser

    resguardado.

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    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    mais tico e interpelador, sem desconsiderar as contradies, discrepncias, ambiguidades,

    dissimetrias, incongruncias, embates que so inerentes ao de se construir valores

    axiolgicos a uma dada realidade.

    Para ento analisar e problematizar o ato de avaliar no processo de ensino-

    aprendizagem de lnguas, em especial, da lngua portuguesa na segunda fase do Ensino

    Fundamental, embasar-me-ei nos pressupostos terico-conceptuais dos estudos bakhtinianos

    sobre sujeito, lngua, ato, e tica, tendo por escopo, primeiramente, examinar o referido SIMA

    em busca das noes balizadoras de sujeito e lngua que suportam sua arquitetnica7; e, em

    seguida, a partir de Bakhtin, inquirir essas noes, apontando algumas consideraes que

    nada tero de procedimentais ou norteadoras de aes no mbito da avaliao, apenas como

    suscitadoras de posicionamentos sobre o ato de avaliar, interpelando professores a

    empreenderem tomadas de posio em suas prticas avaliativas, de modo a deixar um pouco

    de lado as marcas arraigadas do avaliar como mensurar um dado conhecimento, um dado

    saber.

    Sujeito e lngua na arquitetnica de um simulado avaliativo de Lngua Portuguesa

    Ao propor uma anlise no pura e simplesmente da construo composicional do

    simulado avaliativo, que ser escrutinado, mas uma anlise de sua arquitetnica, mister

    observar no somente sua materialidade, mas a discursividade e os sentidos que so

    produzidos por e em sua materialidade, pela integrao de sua forma e contedo. No

    tenciono analisar o instrumento em sua completude, examinando todas as questes dispostas,

    antes me deterei em atividades relacionadas a dois textos, a saber: um fragmento da obra

    literria A disciplina do Amor de Lygia Fagundes Telles e uma tirinha de Calvin e Haroldo,

    criada por Bill Watterson; e, na atividade que sugere uma produo textual, apresentada no

    final do referido instrumento de avaliao8. Com efeito, buscarei no intrincado do material, da

    forma e do contedo de tal objeto de anlise qual a concepo de sujeito e lngua suporta sua

    arquitetnica, produzindo efeitos de sentido.

    O SIMA, aplicado aos alunos como forma de prepar-los para enfrentar provas de

    concurso e vestibulares em seu futuro e como forma de avali-los no terceiro bimestre letivo

    7 Entendido a partir de Bakhtin (1998) como uma estruturao/construo de um dado discurso, de forma

    relativamente estvel, que aduna e vincula o material, a forma e o contedo. um todo integrado marcado pela

    ordem, pela disposio, pelo acabamento. 8 Ver os recortes em anexo.

  • BAKHTIN E A AVALIAO ESCOLAR... 53

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    de 2010, encetado pela sua designao de 1 parte: mltipla-escolha e a diretiva (Marque

    com um X a nica alternativa certa), destacando que somente ser encontrada uma nica

    opo certa, aquela que no apresenta erros, o que refora o arraigo do certo/errado no

    processo de ensinar e aprender a lngua portuguesa. Pelo uso do qualificador certo, e no, por

    exemplo, marque com um x a alternativa mais adequada, ratifica-se a hermeticidade, o

    fechamento, o sentido nico e unilateral das realidades, os lugares pr-estabelecidos que so

    apresentados aos alunos, nos quais estes devem se inscrever, tendo em vista que o saber, o

    conhecimento, sempre categrico, cabendo aos alunos memoriz-lo e por a adiante.

    Essa percepo analtica corroborada quando se passa a analisar as questes

    propostas, por exemplo, com relao ao fragmento de mesmo ttulo retirado da obra A

    disciplina do Amor de Lygia Fagundes Telles. Na primeira questo, antes de ser uma

    pergunta de cunho analtico ou mesmo interpretativo, o escopo medir o quanto do saber

    lexical que o aluno possui, conforme se observa:

    QUESTO 1 (xxxx) - A leitura do texto permite traar um perfil acerca do cachorro. A nica palavra inadequada para descrever a postura do animal

    em relao a seu dono

    A ( ) displicncia.

    B ( ) lealdade.

    C ( ) disciplina.

    D ( ) compromisso.

    E ( ) amor.

    Parece ficar evidente que se espera que os alunos saibam os contedos semnticos de

    signos elencados nas lacunas opcionais, mesmo aqueles que no so comuns no discurso

    cotidiano dos discentes, como a palavra displicncia. Alm disso, assinalar tal opo no

    indicar, seguramente, que o aluno conhea o que seja a displicncia, pois, se treinado que j

    foi e aprendeu as manhas das provas objetivas de certames e concorrncias, seguir a

    tcnica da eliminatria (ir eliminando as que (no) so adequadas para ver o que sobeja),

    conseguindo chegar ao resultado esperado.

    E, mais que isso, em que medida uma questo dessa natureza pode explorar a

    criatividade e o conhecimento de lngua dos alunos, j que parece ter por escopo a

    memorizao de significados de palavras? Se se queria explorar o campo lxico-semntico,

    por que no se explorou, por exemplo, a riqueza polissmica do signo disciplina, na

    discursividade do excerto literrio, trabalhando a disciplina indisciplinada do amor, a matria

  • 54 Ismael Ferreira Rosa

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    do amor, a obedincia do amor, a cegueira do amor, a educao do amor, a penitncia do

    amor, e assim por diante?

    bem verdade que questes de natureza objetiva no possibilitam ao avaliado

    empreender percepes interpretativas, mas tambm de nada impediria elaborar uma pergunta

    que enfocasse uma anlise do signo disciplina, atentando ao(s) sentido(s) que adquire na

    enunciatividade literria em tela, configurando-se assim uma questo de cunho mais analtico-

    interpretativo que exigiria uma leitura mais atenta e acurada pela parte do sujeito aluno.

    Percorrendo as demais questes de que composto o SIMA, notvel que quando se

    pretende uma anlise, esta se foca apenas na estrutura e no modo composicional da

    materialidade do fragmento literrio, como se observa nos excertos abaixo.

    QUESTO 02 (xxxx) - Tendo por base a leitura do texto A Disciplina do amor, considere as afirmativas abaixo:

    I O texto narra a relao afetiva entre um co e seu dono. II No segundo pargrafo, no trecho que descreve o momento em que o dono do cachorro apontava ao longe, apresenta-se a ao que desencadear a

    problemtica vivenciada pelo animal.

    III O narrador do texto do tipo observador, que no se aprofunda na anlise psicolgica dos personagens.

    IV No texto, o tempo cronolgico demarcado pela sequncia linear das aes do enredo.

    Acerca das afirmativas, observa-se que

    A ( ) apenas I correta.

    B ( ) I e IV so corretas.

    C ( ) I, II e IV so corretas.

    D ( ) I, II e III so corretas.

    E ( ) todas as afirmativas so corretas.

    QUESTO 03 (xxxx) - No trecho Uma tarde (era inverno) ele l ficou, o focinho sempre voltado para aquela direo, observa-se a inteno de se

    A ( ) enfatizar que o cachorro continuou a dedicar sua existncia para

    esperar seu dono.

    B ( ) apresentar a morte do cachorro por meio de uma linguagem objetiva e

    direta.

    C ( ) demarcar, textualmente, a morte do cachorro, valendo-se de uma

    linguagem conotativa.

    D ( ) demonstrar que a esperana do co continuava e era um aspecto forte

    de seu comportamento.

    E ( ) mostrar ao leitor que o cachorro morrera devido ao fato de perder a

    esperana de que o dono voltaria.

    Os excertos evidenciam aspectos estruturais da narrativa, quer sejam narrador, foco

    narrativo, enredo, tempo, linguagem denotativa/conotativa; como tambm a presena de um

  • BAKHTIN E A AVALIAO ESCOLAR... 55

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    autor/escritor intencional, fato evidenciado na terceira questo mediante o enunciado

    observa-se a inteno de se.

    Novamente, tornam-se ressaltados o desgnio pela estruturalidade e o fito por

    paradigmas de anlise pr-estabelecidos, que devem ser apreendidos e memorizados pelos

    alunos, principalmente no que se refere a metatermos, como tempo cronolgico, narrador

    observador, conotao. Potencializa-se, desse modo, um discurso metalingustico, legtimo e

    categrico, pois postulador de verdades e ticas sobre a lngua(gem) e seus efeitos de

    sentidos, devendo materialidades lingusticas serem descritas, analisadas e at percebidas da

    mesma forma por todo e qualquer sujeito. E isso porque o aluno tambm visto pelo vis da

    unidade, um sujeito que pode deter e produzir os sentidos da lngua, e uma lngua transparente

    e homognea, cuja estruturalidade e sistematicidade palpvel e passvel de compreenses

    unilaterais e universais, no crivo de uma reflexo metalingustica e gramtico-funcional.

    Tal potencializao se torna ainda mais inconteste nas quatro questes que seguem no

    SIMA em anlise, cujos maiores objetivos so testar o conhecimento gramatical dos alunos e

    a memorizao de categorias lingusticas, consoante se nota, por exemplo, na pergunta

    abaixo:

    QUESTO 05 (xxxx) - A nica opo em que a palavra que tem a mesma classificao que em Mas eu avisei que o tempo era de guerra [...]

    A ( ) Um jovem tinha um cachorro que todos os dias, pontualmente, ia esper-lo [...]. B ( ) [...] e as pessoas que passavam faziam-lhe festinhas [...]. C ( ) [...] at o momento em que seu dono apontava l longe.. D ( ) Pensa que o cachorro deixou de esper-lo?. E ( ) [...] atenta ao menor rudo que pudesse indicar a presena [...].

    ressaliente que, mais do que a compreenso/interpretao do fragmento literrio, a

    estrutura composicional, em sua descrio funcional e gramatical, constitui-se o legtimo

    saber a lngua e saber sobre a lngua. Um saber pautado na sistematicidade, hermeticidade,

    estruturalidade, gramaticalidade, que deve ser aprendido por um sujeito lacunar deste saber.

    E essa concepo de lngua e sujeito no altera, mesmo quando se passa a enfocar um

    outro texto, um outro gnero discursivo9, no caso uma tirinha de Bill Wattson, como se

    9 Concebido, no crivo dos pressupostos tericos de Bakhtin (2006), como as formas comunicativas verbo-

    socioideolgicas relativamente estveis produzidas nas diversas esferas da atividade humana que produzem

    significaes, por meio da acentuao valorativa e contedos temticos, e da ressumao de marcas lingusticas,

    evidenciadas pelo estilo e pela forma composicional dos enunciados que compem tais formas comunicativas.

  • 56 Ismael Ferreira Rosa

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    observa nas duas questes a seguir, nas quais no se divisa qualquer pretenso analtico-

    interpretativa dos sentidos que o dilogo entre Harold e Calvin produz:

    QUESTO 08 (xxxx) - No trecho Minha me disse que morrer to natural quanto nascer, e que tudo parte do ciclo da vida quadrinho 01, as palavras destacadas exercem, respectivamente, funo morfolgica de

    A ( ) advrbio, conjuno, pronome.

    B ( ) pronome, conjuno, conjuno.

    C ( ) pronome, conjuno, pronome.

    D ( ) adjetivo, verbo, pronome.

    E ( ) pronome, verbo, advrbio.

    QUESTO 10 (xxxx) - As letras destacadas em Minha me disse que morrer to natural quanto nascer, e que tudo parte do ciclo da vida (quadrinho 01) devem ser utilizadas para completar de modo correto,

    respectivamente, as lacunas dos vocbulos presentes na opo

    A ( ) agre___o / e___esso.

    B ( ) flore___ er / di ____ ernir.

    C ( ) regre____o / e___ eder.

    D ( ) mi___o / su___itar.

    E ( ) eferve___ente / na___er.

    A nica questo que talvez tente um vislumbre analtico a nmero doze, que intenta

    relacionar o fragmento literrio de Lygia tirinha de Wattson:

    QUESTO 12 (xxxx) - Os textos I e II se relacionam a partir da

    A ( ) revolta perante a temtica da morte.

    B ( ) tipologia textual.

    C ( ) caracterizao dos protagonistas.

    D ( ) demonstrao de afeto entre humanos e animais.

    E ( ) utilizao sistemtica da linguagem coloquial.

    Contudo, ainda esto muito arraigadas noes como tipologia textual, personagem

    protagonista, registro lingustico.

    Ora, muitos podem, talvez, querer eximir o SIMA analisado dessas concepes de

    lngua e sujeito, pois se trata de um instrumento avaliativo fechado e objetivo, cuja

    arquitetnica no possibilita aberturas para interpretaes, para a construo de percepes

    analticas pela parte do aluno. Mas, ao analisar tambm a sua segunda parte, em cujo nterim

    se encontra uma proposta de produo textual que faculta tais aberturas, ainda persistem as

    concepes de lngua e sujeito que at ento foram delineadas em minha clere e exgua

    anlise, como se observa abaixo:

  • BAKHTIN E A AVALIAO ESCOLAR... 57

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    2 PARTE: PRODUO TEXTUAL

    QUESTO 21 (xxxx) - O candidato dever elaborar uma pgina de dirio,

    na qual um personagem ir relatar um dia que se tornou marcante por algum

    motivo em especial no relacionamento com seu animal de estimao (a

    chegada do animal a casa, ou a morte do bicho, ou alguma travessura

    realizada pelo animal, entre outros). Nessa pgina de dirio, deve ficar clara

    a relao de afeto entre o bicho e o personagem que escreve a pgina do

    dirio. Atente-se s seguintes orientaes:

    a pgina de dirio deve ser iniciada com uma data. Na linha seguinte, escreva o vocativo que se refira ao dirio (Querido dirio, Meu dirio, Caro dirio, Querida(o) companheira(o), entre outros); por ser uma pgina de dirio, o texto deve manter o foco narrativo de 1 pessoa, com verbos conjugados no pretrito do indicativo, j que os fatos

    ainda esto prximos de quem os narra;

    mantenha o padro culto da linguagem; no escreva dilogos no texto; a pgina de dirio deve ter entre 15 (quinze) e 25 (vinte e cinco) linhas; o candidato que fugir ao tema, ou ao gnero textual solicitado, receber o grau zero (0,0).

    So perceptveis, nas orientaes para o desenvolvimento da pgina de dirio

    proposta, as noes de sujeito passivo, lacunar e de lngua transparente e homognea, visto

    que qual necessidade de se manter o foco narrativo na primeira pessoa? Ser que em meu

    dirio no posso transcrever uma fala, um pensamento, a voz de outrem? Um dirio no

    constitui um espao de registro das minhas vivncias e experincias cotidianas? Qual a

    necessidade de se manter o padro culto da lngua nesses registros?

    A partir dessas orientaes, que despertam tais perguntas, evidencia-se a concepo de

    lngua arraigada nos escopos educacionais do processo de ensinar e aprender lnguas: aquela

    sistemtica, invarivel, homognea, comum a todos e dotada de prestgio; o registro padro

    que constitui a Lngua Portuguesa, no interessando a situao comunicativa, o gnero

    discursivo, os sujeitos envolvidos, as condies de produo do dizer, e assim por diante.

    Prevalece uma acepo de hermeticidade, um padro invarivel regido por normas e regras

    imanentes que no podem nunca ser quebradas, sob a pena de no se saber a lngua ou saber

    se comunicar de forma eficiente.

    A despeito de todas as discusses sobre o conceito de lngua pela Lingustica e pela

    Lingustica Aplicada nos tempos hodiernos, ainda as razes gramtico-estruturais continuam a

    suportar as aes do ensinar e aprender lnguas, e justamente o quanto se sabe das normas e

    regras do cdigo lingustico que constituem o objetivo das avaliaes de lngua portuguesa,

    por exemplo, na segunda fase do Ensino Fundamental, em pleno ano de 2010.

  • 58 Ismael Ferreira Rosa

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    E, com relao ao sujeito aluno, este aquele que deve apreender, memorizar tais

    normas e regras, pois somente assim que saber a lngua ensinada, um cdigo fechado,

    transparente, hermtico que destoa em muito daquela lngua que desde o nascimento desse

    sujeito lhe permitiu interagir com outrem, com o mundo e at consigo mesmo. Uma lngua

    que lhe refletiu e refratou, que o fez construir socioideologicamente sua conscincia no imo

    do meio semitico que constitutivo dessa lngua. Com efeito, uma lngua que o permitiu e

    permite posicionar, constituir-se e desconstituir-se continuamente na dinmica da prtica

    linguageira; que possibilita a esse sujeito se singularizar mediamente as tomadas de posio

    no nterim do oceano de signos que compe tal lngua.

    Destarte, so realidades muito distintas a lngua ensinada e a lngua viva que faz parte

    do cotidiano do sujeito aluno, que no passivo e nem lacunar dos saberes de sua prpria

    lngua. Por isso, avaliar, mensurar o quanto este sujeito sabe de sua lngua, algo at

    inconcebvel, mas talvez valorar os seus posicionamentos, seu atos, suas tomadas de posio

    pela lngua algo que possa a ser pensado. E valorar no sentido de um processo axiolgico

    em que exotopicamente atribui-se um valor a uma dada realidade, a partir do meu excedente

    de viso, que

    contm em germe a forma acabada do outro, cujo desabrochar requer que eu

    lhe complete o horizonte sem lhe tirar a originalidade. Devo identificar-me

    com o outro e ver o mundo atravs de seu sistema de valores, tal como ele o

    v; devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta ao meu lugar,

    completar seu horizonte com tudo o que se descobre do lugar que ocupo,

    fora dele; devo emoldur-lo, criar-lhe um ambiente que o acabe, mediante o

    excedente de minha viso, de meu saber, de meu desejo e de meu sentimento

    (BAKHTIN, 1997, p. 46).

    Mas, para essa valorao, preciso deixar as razes gramtico-estruturais que

    caracterizam a concepo sobre o que lngua e permitir aos sujeitos alunos se posicionarem,

    empreenderem atos10

    , e no simplesmente se acomodarem em espaos pr-estabelecidos do

    saber e, a partir, da enunciarem. Necessrio se faz deixar que eles se tornem sujeitos

    singulares que executam atos pela e na lngua. Atos que refletem e refratam posies

    singulares e os tornam sujeitos marcados pela unicidade, e a partir da valorar suas

    singularidades e no medir seu conhecimento mnemnico de normas, regras, operaes

    metalingusticas. Na verdade, permitir-lhes se posicionarem frente ao saber e s realidades.

    Como proceder a tal deslocamento avaliativo?

    10

    Atos no por um vis pragmtico ou atos da linguagem, mas pelo mirante do constituir, da unicidade; o ato

    enquanto uma participao singular no ser, conforme alvitra Bakhtin (2010).

  • BAKHTIN E A AVALIAO ESCOLAR... 59

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    Talvez abrindo espaos no processo de aprender e ensinar uma lngua, dimensionando

    suas balizas ticas, discusso que doravante nos deteremos de forma mais circunstanciada.

    Por uma abertura tica no espao da lngua e uma avaliao valorativa

    Quando se pensa lngua e sujeito, nos meandros educacionais do processo de ensino e

    aprendizagem de lnguas, por um vis esttico e limitado, no se tem espao para o

    posicionar, para o discutir, para o rever, para o (re)criar, enfim, para o sujeito se

    (des)constituir mediante o saber a, na, com e sobre a lngua(gem). O saber torna-se algo de

    uma dimenso altaneira e egrgia, cujos fundamentos sapientes, por serem to extremados,

    devem ser sorvidos passivamente por sujeitos lacunares; fundamentos que lhes preenchero as

    incompletudes e faltas, tornando-os completos, argutos, detentores do saber. E, uma vez

    detendo os saberes em suas lacunas, esses sujeitos podem viver de forma plena, (trans)formar

    realidades, (re)criar, enfim, agir no mundo, obviamente sempre seguros e suportados nos

    saberes apreendidos. Desse modo, o sujeito visto como passivo; algum que pode ser

    completo, tornar-se uno mediante o sorver saberes de cima abaixo, inercialmente.

    Todavia, o sujeito no estabelece relaes/interaes de forma to inercial e passiva

    perante uma outricidade11

    , quer seja um outro sujeito, quer seja um saber. Conforme aventa

    Bakhtin (2008), sujeitos so sempre constitudos por uma responsividade ativa e somente lhes

    fazem sentido aquilo que responde a alguma coisa e s quilo que dada uma resposta.

    mediante um processo de interao com outrem que sujeitos se constituem, vendo-se no

    outro, constituindo-se um eu entre outros eus, de forma responsiva e responsvel. De acordo

    com Bakhtin (1997, p. 36-37),

    na vida, agimos assim, julgando-nos do ponto de vista dos outros, tentando

    compreender, levar em conta o que transcendente nossa prpria

    conscincia: assim, levamos em conta o valor conferido ao nosso aspecto em

    funo da impresso que ele pode causar em outrem.

    mediante a interao dialgica, em uma atividade dinmica entre um eu e um outro

    que sujeitos se (des)constroem pelas prticas linguageiras. Um dilogo marcado por tenses,

    confrontos de entonaes e sistemas de valores que balizam variadas posies e projees

    axiolgicas sobre o mundo.

    11

    Essa outricidade um exterior constitutivo dos processos discursivos, que remete tanto ao mundo social, ao

    contexto scio-histrico e ideolgico no qual o sujeito est inserido, como tambm a um complexo discursivo

    composto por sujeitos outros, por vozes outras, com os quais aquele sujeito dialoga.

  • 60 Ismael Ferreira Rosa

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    em um dilogo de palavras e contrapalavras que sujeitos interagem e demarcam suas

    singularidades. Um dilogo marcado pela interao de vozes, conscincias, entonaes, cujas

    relaes valoram e ideologizam as realidades pela lngua(gem). Destarte, as palavras e as

    rplicas so vivas e sujeitos esto em constante processo de dialogia, interagindo com o

    mundo, com outricidades e consigo mesmo. E um processo de (inter)compreenso, em que

    sujeitos esto sempre a se posicionar e a se redimensionar perante os outros, pois a

    compreenso uma forma de dilogo, entendendo que compreender opor palavra do

    locutor uma contrapalavra (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009, p. 137).

    Por esse vis, nesse universo dialgico de (des)constituio de sujeitos pela

    lngua(gem), no existe uma palavra sem uma contrapalavra, pois sempre se diz algo a

    outrem, e este outrem sempre ter uma palavra de rplica, porquanto, algo somente ter

    sentido quando for resposta a outro algo, demandando deste outro algo uma contrapalavra.

    Nesse sentido o sujeito dialgico, responsivo, sempre se constitui na relao com o

    outro, esse outro que o valida, que o reflete, que o refrata, que constri a sua imagem, pois

    para dar vida minha imagem externa e para faz-la participar do todo

    visvel, devo reestruturar de alto a baixo a arquitetnica do mundo de meu

    devaneio introduzindo-lhe um fator absolutamente novo, o da validao

    emotivo-volitiva da minha imagem a partir do outro e para o outro; porque,

    dentro de mim mesmo, tenho apenas a minha prpria validao interna, uma

    validao que no posso projetar sobre minha expressividade externa, pois

    esta separada da minha percepo interna, o que faz com que me parea

    ilusria, num vazio absoluto de valores (BAKHTIN, 1997, p. 48).

    Por justamente estar em constante processo de constituio, no crivo da alteridade e

    responsividade, visto que sempre se constri a partir do outro, com o outro e pelo outro, em

    uma postura responsiva, o sujeito marcado pelo inacabamento. Com efeito, nunca

    completo e acabado, precisando sempre do outro para saber de si e sobre si. Dotado do

    excedente viso, conforme j definido na seo anterior, sabe do outro o que este no sabe

    dele mesmo, mas precisa do outro para saber de si. Desse modo, apenas o outro para esse

    sujeito marcado pelo acabamento, porque

    o excedente de minha viso, com relao ao outro, instaura uma esfera

    particular da minha atividade, isto , um conjunto de atos internos ou

    externos que s eu posso pr-formar a respeito desse outro e que o

    completam justamente onde ele no pode completar-se (BAKHTIN, 1997, p.

    44).

  • BAKHTIN E A AVALIAO ESCOLAR... 61

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    Eu mesmo, contemplando-me, no consigo proceder a um acabamento de mim, dado

    que no me possvel alcanar todos os elementos plstico-picturais de meu ser, o horizonte

    que est s minhas costas e nem a minha imagem externa; tampouco as expressividades

    volitivo-emocionais que me conferem um todo. Desse modo, o outro quem me d o

    acabamento, assim como eu tambm lhe confiro um acabamento, pois no crivo de uma

    posio exotpica que possvel a conferncia, por exemplo, pela parte do outro, de valores

    que me completam, os quais, por sua vez, da minha posio, so-me inalcanveis e

    transgredientes. E, como cada sujeito ocupa um lugar nico e singular, os acabamentos so

    sempre intercadentes, provisrios, porque so sempre construdos a partir de uma interao

    dialgica com outrem, cujas posies so sempre nicas.

    Por ser uma posio nica da qual respondo e me interajo com outrem, mediante uma

    lngua viva e dinmica na verdade uma lngua composta por um universo de signos que

    refletem e refratam realidades, constituindo-se verdadeiras arenas de lutas ideolgicas , sou

    um sujeito responsvel por minha posio. Tendo em vista que a lngua inseparvel de seu

    contedo ideolgico ou relativo vida e as palavras que a povoam esto sempre

    carregada[s] de um contedo ou de um sentido ideolgico ou vivencial, fazendo-nos

    compreend-las e reagir quelas que despertam em ns ressonncias ideolgicas ou

    concernentes vida (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2009, p. 99), a partir dela que vivo a

    dialogia, respondo minha existncia e me posiciono frente ao mundo, aos outros e a mim

    mesmo. por meio de seus espaos semitico-discursivos que se promovem interaes entre

    sujeitos e as mltiplas realidades, constituindo-se uma arena de lutas ideolgico-sociais e do

    perene agir prospectivo e retrospectivo de palavras e contrapalavras.

    Dessa forma, minha responsabilidade posicionar, agir nesse dilogo, confrontar

    nessa arena. preciso responder e responsabilizar pela minha existncia; preciso pensar,

    pois

    cada um dos meus pensamentos, como o seu contedo, um ato singular

    responsvel meu; um dos atos de que compe a minha vida singular inteira

    como agir ininterrupto, porque a vida inteira na sua totalidade pode ser

    considerada como uma espcie de ato complexo: eu ajo com toda a minha, e

    a cada ato singular e cada experincia que vivo so um momento do meu

    viver-agir (BAKHTIN, 2010, p. 44).

    Viver, nesse sentido, um agir ininterrupto, ato da participao singular no ser. O

    ato do pensar e criar, tanto terica quanto artisticamente. Pensar o terico, refletir o

    conhecimento, cogitar as verdades e os saberes, enfim, posicionar frente aos outros e ao

  • 62 Ismael Ferreira Rosa

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    mundo. E um ato que responsvel porque assinado, validado por quem o empreendeu, pois

    um sujeito que o age assim pensando, posicionando o age e assume perante o outro,

    respondendo pelo que agiu.

    Sendo assim, o ato sempre tico porque necessrio, imperiosa a minha

    participao no ser, visto que

    sou participante no existir de modo singular e irrepetvel, e eu ocupo no

    existir singular um lugar nico, irrepetvel, insubstituvel e impenetrvel da

    parte de um outro. Neste preciso ponto singular no qual agora me encontro,

    nenhuma outra pessoa jamais esteve no tempo singular e no espao singular

    de um existir nico. E ao redor deste ponto singular que se dispe todo o

    existir singular de modo singular e irrepetvel. Tudo o que pode ser feito por

    mim no poder nunca ser feito por ningum mais, nunca. A singularidade

    do existir presente irrevogavelmente obrigatria (BAKHTIN, 2010, p. 96).

    um dever realizar minha singularidade, pois enquanto singular no posso no deixar

    de participar da minha vida, agir no mundo, uma necessidade que no lgica, mas tica, pois

    minha posio na existncia, a partir de um dado tempo e um dado espao, faculta-me a

    responsabilidade. Sou responsvel por realizar, agir e empreender atos que so prprios do

    lugar que ocupo, da minha condio singular e nica no ser.

    Destarte, existe um no libi no meu existir, que est na base do dever concreto e

    singular do ato, [e que] no algo que eu aprendo e do qual tenho conhecimento, mas algo

    que eu reconheo e afirmo de um modo singular e nico (BAKHTIN, 2010, p. 96).

    Devo ento agir no mundo, ocupar meu lugar singular e nico no mundo, viver

    singularmente, arriscar, ousar, comprometer-me, assinar responsavelmente meus atos. Agir,

    portanto, responsavelmente e responsivamente.

    Mas esse agir possvel quando se trata do processo de ensino e aprendizagem de

    lnguas?

    Ora, no h espaos para o sujeito aluno empreender seus atos perante o que lhe est

    sendo ensinado. Isso porque o saber, conforme j mencionei, tratado e apresentado como

    verdades universais. uma istina, verdade em russo, termo usado por Bakhtin (2010) para

    remeter verdade do contedo de um saber terico, em suas leis universais e universo de

    possibilidades.

    Entretanto, uma istina, em si e por si, apenas uma abstrao e um dado parcial, pois,

    para ser verdadeira em sua completude precisa tornar-se uma pravda, (tambm verdade em

    russo). Isto , precisa se tornar um ato, ser pensada por um sujeito singular e nico, porque

  • BAKHTIN E A AVALIAO ESCOLAR... 63

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    assim tambm que o saber terico se torna tico. Para uma verdade universal ser completada,

    mister se faz o agir de uma verdade singular.

    Desse modo, um conhecimento somente se torna pleno quando pensado, crivado por

    um ato responsivo e responsvel de um sujeito. Imprescinde a esse conhecimento o

    reconhecimento de um ato, a validade de um ato realizado por um sujeito ativo e dinmico,

    singular e nico no ser, responsivo e responsvel que pensa tal conhecimento a partir de uma

    posio, tambm nica e singular, em um dado tempo e espao. Imperativo se faz que um

    pensamento assinado cogite esse conhecimento, incluindo-o em uma singularidade

    responsvel e conferindo, destarte, uma validade, cabendo ressaltar que uma assinatura

    responsvel no remete a expresso de uma subjetividade fortuita, conforme atesta Bakhtin

    (2010), mas de uma posio, a partir da qual se reconhece e valida a istina com os horizontes

    que somente do meu lugar posso dizer ou ver.

    Chego assim a um ponto pertinente de minha problemtica. Na escola, em se tratando

    da avaliao em lnguas, o que se observa, pela clere e exgua anlise que empreendi de um

    instrumento avaliativo, o relevo e a importncia istina do saber sobre a lngua. Procura-se

    mensurar a apreenso pela parte dos alunos das verdades universais sobre a lngua e relegam-

    se as verdades singulares.

    muito mais salutar saber fazer uma anlise sinttica, uma anlise morfolgica,

    memorizar metatermos, seguir os passos de uma anlise pelas balizas estruturais da

    construo composicional de textos literrios, dentre outros, que agir e posicionar-se frente ao

    conhecimento de forma tica, responsiva e responsvel.

    Faz-se ento necessrio repensar que lngua ensinamos, que saber terico

    apresentamos e repensar quais os sujeitos a quem ensinamos. Ser que a istina deve se

    sobrepor pravda12

    ? Ser que devemos transformar a istina em um libi para os sujeitos

    alunos, desobrigando-os do seu dever de validar e assinar atos, de posicionar-se do seu lugar

    nico e singular do ser, mediante o acomodar-se s estruturas sistmicas da gramtica de uma

    lngua e desse espao esses alunos repetirem, memorizarem e provarem que apreenderam as

    normas e as regras que ordenam tais estruturas?

    Acredito que um deslocamento urge nas prticas do ensinar e aprender a lngua. Antes

    de apenas se apresentar a istina do saber terico sobre a lngua, preciso tambm deixar os

    alunos se posicionarem a partir de seus lugares nicos e singulares, valorando-a, de forma

    12

    Vale ressaltar que istina e pravda no devem se opor, pois nenhuma mais importante que outra. So

    verdades que se completam, em que a ltima confere exatamente a realidade, a validade primeira. Verdades

    universais tornam-se de fato verdadeiras quando transformadas em um ato tico e responsivo, quando refletidas e

    refratadas; assinadas e iluminadas por uma posio singular e nica.

  • 64 Ismael Ferreira Rosa

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    responsiva e responsvel, mostrando a pravda como contrapalavra. esse o processo que

    deve ser (a)vali(d)ado. Um processo que jamais permite ser mensurado, antes valorado. Uma

    valorao que exige tanto do avaliador quanto do avaliado, em que aquele, a partir do seu

    excedente de viso, atribui uma construo axiolgica pravda do avaliado, identificando-se

    com o avaliado e vendo o mundo pelos sistemas de valores desse avaliado. Indispensvel se

    faz que o avaliador exotopicamente coloque-se no lugar do avaliado e depois retorne ao seu

    lugar tambm singular e nico, valorando o ato do avaliado.

    E valorar no rotular positivamente ou negativamente, se houve avano ou

    retrocesso, mas axiologizar a responsividade e a responsabilidade do sujeito aluno perante a

    istina.

    guisa de uma clere ilustrao, volto ao SIMA analisado. Quando apresentado o

    fragmento literrio de Lygia, A disciplina do amor, aos alunos do sexto ano do Ensino

    Fundamental, enquanto um texto artstico, mais do que um pretexto para a discusso de

    significados de palavras no que isso no seja importante e at deve fazer parte da aula ,

    descries de estruturas gramaticais, anlise de narrador, tempo, espao, enredo, seria muito

    interpelador se se discutisse os sentidos e discursividade que o texto produz, a comear do

    ttulo. O que seria uma disciplina do amor? Quais as dimenses ideolgicas e vivenciais do

    signo disciplina? Refere-se matria do amor? Ao carter disciplinar desse amor? Mediante

    uma leitura em conjunto e assumindo uma atitude responsiva e responsvel em relao ao

    fragmento, posicionamentos, (des)identificaes vo se delineando, e os alunos podero

    empreender atos de pensar, refletir, interpretar, atribuir sentidos materialidade em estudo.

    Sem a apresentao de sentidos j dados e pr-estabelecidos posies singulares e

    nicas no sero sufocadas, tolhidas. Podero ter voz e apresentar sua entonao e valorao

    com relao ao texto, trazendo tona as ressonncias ideolgicas ou concernentes vida que

    so constitutivas do ser desses alunos.

    E isso pode ser levado a um simulado avaliativo, elaborando-se uma questo de cunho

    lxico-semntico da palavra disciplina, mesmo de carter genrico, que exija uma postura

    responsiva perante o texto. Por exemplo, poder-se-ia enfocar que o uso da referida palavra

    permite uma reflexo sobre o carter contraditrio do amor, que, ao mesmo tempo em que

    maravilhoso, sofrvel e doloroso, uma percepo que no descabida a alunos da srie

    escolar em tela. Assim, qui se poderia sondar a responsividade e a responsabilidade dos

    alunos perante a leitura de um texto de carter literrio, ao invs de lhes exigir a operao

    mnemnica do que significa displicncia.

  • BAKHTIN E A AVALIAO ESCOLAR... 65

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    Palavras finais

    Chego, destarte, aos termos que prenunciam o (no)findar de uma discusso que talvez

    s comeou e que ainda precisa de mais desenvolvimento e aprofundamentos. Uma discusso

    que teve por desiderato problematizar o ato de avaliar no processo de ensino e aprendizagem

    de lnguas. Obviamente que no tive o fito de alvitrar um outro modo de avaliar, uma outra

    forma de se trabalhar a lngua portuguesa em sala de aula, mas somente despertar cogitaes.

    Com efeito, intentei levantar alguns questionamentos, ainda que de forma incipiente,

    sobre o avaliar enquanto mensurar, vinculado s noes de lngua e sujeito que ainda

    prevalecem nos espaos educacionais do ensinar/aprender a lngua portuguesa. Noes muito

    arraigadas na estruturalidade, gramaticalidade, sistematicidade, homogeneidade,

    invariabilidade, que tolhem o sujeito frente a sua singularidade e unicidade de ser.

    Foi por isso que aventei aberturas ticas nos espaos educacionais no que se refere

    avaliao e chamei a ateno quanto concepo de sujeito e lngua que fundam nossa prtica

    enquanto professores de lnguas. Concebendo uma lngua hermtica e um sujeito lacunar de

    conhecimentos dessa, nessa e sobre essa lngua, no se permite ao aluno posicionar, agir

    frente a essa lngua e aos conhecimentos sobre essa lngua.

    Assim, a avaliao se constitui um instrumento mensurador dos saberes universais, do

    quanto de istina do objeto de ensino-aprendizagem foi apreendido pelo aluno, no lhe

    facultando o viver o no libi de sua existncia, pois o desobriga de seu dever de se posicionar

    frente a um conhecimento, mediante o seu ato de pensar a partir de um lugar nico e singular,

    em um dado espao e tempo.

    No nterim de um processo de cima abaixo e inercial, a lngua ensinada e a ao de

    seu ensino-aprendizagem avaliada de forma unilateral e mensurativa. como se existisse a

    istina da lngua, em uma dimenso superior, que deveria ser sorvida pelo aluno, sem que

    houvesse qualquer relao/interao entre esse saber e o sujeito que se (des)constri no

    balano dinmico-movente das ondas do oceano sgnico que compe essa lngua.

    Todavia, o sujeito e a lngua so constitutivamente dialgicos. Essa lngua reflete e

    refrata sujeitos. Mostra-se viva e no uma organizao sistmico-estrutural, que deve ser

    descrita por metatermos e cujos sentidos j so dados, ora por uma instncia autoria, ora pelo

    prprio professor. Com efeito, um universo de signos que permite aos sujeitos interagir,

    significar o mundo, significar o outro e significar-se. Enfim, permite-lhe viver. E viver como

    j anunciava a epgrafe desta discusso participar desse dilogo, participar com toda a vida,

    com os olhos, os lbios, as mos, a alma, o esprito, todo o corpo, os atos (BAKHTIN,

  • 66 Ismael Ferreira Rosa

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    2006, p. 348). Atos responsveis e responsivos. Atos que validam, assinalam uma posio no

    ser: uma posio nica e singular. Na verdade, atos ticos que devem ser valorados e jamais

    mensurados. Atos que revelam pravda sobre os saberes da, na e sobre a lngua.

    Referncias bibliogrficas

    BAKHTIN, M. Esttica da criao verbal. Trad. a partir do francs Maria Ermantina Galvo

    G. Pereira. 2.ed. So Paulo: Martins Fontes, 1997.

    BAKHTIN, M. Questes de Literatura e de Esttica: a teoria do romance. Trad. direta do

    russo Aurora Fornoni Bernardini et al. 4.ed. So Paulo: Editora Hucitec, 1998.

    BAKHTIN, M. Esttica da criao verbal. Trad. direta do russo Paulo Bezerra. 4.ed. So

    Paulo: Martins Fontes, 2006.

    BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsvel. Trad. a partir do italiano Valdemir

    Miotello e Carlos Aberto Faraco. So Carlos: Pedro & Joo Editores, 2010.

    BAKHTIN, M.; VOLOCHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas

    fundamentais do mtodo sociolgico na cincia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara

    Frateschi Vieira. 13.ed. So Paulo: Hucitec, 2009.

    CATANI, D. B.; GALLEGO, R. C. Avaliao. So Paulo: Editora UNESP, 2009.

    CUNHA, M. C. C. Nem s de conceitos vivem as transformaes: equvocos em torno da

    avaliao formativa no ensino/aprendizagem de lnguas. Revista Brasileira de Lingustica

    Aplicada, Belo Horizonte, MG, v. 6, n. 2, p. 59-77. 2006.

  • Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    ANEXO

    ESCOLA MUNICIPAL XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX

    SIMULADO DE LNGUA PORTUGUESA 6 ANO 3 Bimestre

    1 PARTE: MLTIPLA-ESCOLHA

    (Marque com um X a nica alternativa certa)

    xxxxxxx

    xxxxxxx

    xxxxxxx

    xxxxxx

  • Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    TEXTO I

    A DISCIPLINA DO AMOR

    Foi na Frana, durante a segunda grande guerra.

    Um jovem tinha um cachorro que todos os dias,

    pontualmente, ia esper-lo voltar do trabalho. Postava-se

    na esquina, um pouco antes das seis da tarde. Assim que

    via o dono, ia correndo ao seu encontro e, na maior

    alegria, acompanhava-o com seu passinho saltitante de

    volta a casa.

    A vila inteira j conhecia o cachorro e as

    pessoas que passavam faziam-lhe festinhas e ele

    correspondia, chegava a correr todo animado atrs dos

    mais ntimos para logo voltar atento ao seu posto e ali

    ficar sentado at o momento em que seu dono apontava l

    longe.

    Mas eu avisei que o tempo era de guerra, o

    jovem foi convocado. Pensa que o cachorro deixou de

    esper-lo? Continuou a ir diariamente at a esquina, fixo

    o olhar ansioso naquele nico ponto, a orelha em p,

    atenta ao menor rudo que pudesse indicar a presena do

    dono bem-amado. Assim que anoitecia, ele voltava para

    casa e levava a sua vida normal de cachorro at chegar o

    dia seguinte. Ento, disciplinadamente, como se tivesse

    um relgio preso pata, voltava ao seu posto de espera.

    O jovem morreu num bombardeio, mas no

    pequeno corao do cachorro no morreu a esperana.

    Quiseram prend-lo, distra-lo. Tudo em vo. Quando ia

    chegando aquela hora, ele disparava para o compromisso

    assumido, todos os dias. Todos os dias.

    Com o passar dos anos (a memria dos

    homens!) as pessoas foram se esquecendo do jovem

    soldado que no voltou. Casou-se a noiva com um primo.

    Os familiares voltaram-se para outros familiares. Os

    amigos, para outros amigos. S o cachorro j velhssimo

    (era jovem quando o jovem partiu) continuou a esper-lo

    na sua esquina. As pessoas estranhavam, mas quem esse cachorro est esperando?... Uma tarde (era inverno) ele l ficou, o focinho sempre voltado para aquela direo.

    (TELLES, Lygia Fagundes. A disciplina do amor. Rio de

    Janeiro: Nova Fronteira, 1980. p. 99-100)

    QUESTO 01 (xxxx) - A leitura do texto permite

    traar um perfil acerca do cachorro. A nica palavra inadequada para descrever a postura do animal em

    relao a seu dono

    A ( ) displicncia.

    B ( ) lealdade.

    C ( ) disciplina.

    D ( ) compromisso.

    E ( ) amor.

    QUESTO 02 (xxxx) - Tendo por base a leitura do texto

    A Disciplina do amor, considere as afirmativas abaixo:

    I O texto narra a relao afetiva entre um co e seu dono.

    II No segundo pargrafo, no trecho que descreve o momento em que o dono do cachorro apontava ao longe,

    apresenta-se a ao que desencadear a problemtica

    vivenciada pelo animal. III O narrador do texto do tipo observador, que no se aprofunda na anlise

    psicolgica dos personagens.

    IV No texto, o tempo cronolgico demarcado pela sequncia linear das aes do enredo.

    Acerca das afirmativas, observa-se que

    A ( ) apenas I correta.

    B ( ) I e IV so corretas.

    C ( ) I, II e IV so corretas.

    D ( ) I, II e III so corretas.

    E ( ) todas as afirmativas so corretas.

    QUESTO 03 (xxxx) - No trecho Uma tarde (era inverno) ele l ficou, o focinho sempre voltado para

    aquela direo, observa-se a inteno de se

    A ( ) enfatizar que o cachorro continuou a dedicar sua

    existncia para esperar seu dono.

    B ( ) apresentar a morte do cachorro por meio de uma

    linguagem objetiva e direta.

    C ( ) demarcar, textualmente, a morte do cachorro,

    valendo-se de uma linguagem conotativa.

    D ( ) demonstrar que a esperana do co continuava e era

    um aspecto forte de seu comportamento.

    E ( ) mostrar ao leitor que o cachorro morrera devido ao

    fato de perder a esperana de que o dono voltaria.

    QUESTO 04 (xxxx) - Em Foi na Frana, durante a segunda grande guerra, o verbo destacado possui correspondncia semntica e de flexes na palavra

    A ( ) ocorreria.

    B ( ) acontecera.

    C ( ) sucedera.

    D ( ) observou.

    E ( ) ocorreu.

    QUESTO 05 (xxxx) - A nica opo em que a palavra

    que tem a mesma classificao que em Mas eu avisei que o tempo era de guerra [...]

    A ( ) Um jovem tinha um cachorro que todos os dias, pontualmente, ia esper-lo [...]. B ( ) [...] e as pessoas que passavam faziam-lhe festinhas [...]. C ( ) [...] at o momento em que seu dono apontava l longe.. D ( ) Pensa que o cachorro deixou de esper-lo?. E ( ) [...] atenta ao menor rudo que pudesse indicar a presena [...]. QUESTO 06 (xxxx) - No ltimo pargrafo do texto, h

    trs informaes isoladas entre parnteses:

    I (a memria dos homens!). II (era jovem quando o jovem partiu). III (era inverno).

    Levando-se em conta o contexto, diante dos fatos

    apresentados, correto afirmar que

    A ( ) nas trs informaes h uma opinio do narrador.

    B ( ) apenas nas informaes II e III h uma opinio do

    narrador.

    C ( ) apenas na informao I observa-se uma opinio do

    narrador.

    D ( ) apenas na informao II observa-se uma opinio do

    narrador.

    E ( ) no h opinio do narrador em nenhuma das

    informaes destacadas.

  • BAKHTIN E A AVALIAO ESCOLAR... 69

    Poesis Pedaggica - V.10, N.2 ago/dez.2012; pp.47-69

    QUESTO 07 (xxxx) - Em (era jovem quando o jovem partiu) os vocbulos destacados tm, respectivamente, a mesma classificao morfolgica que os destacados em

    A ( ) S o cachorro j velhssimo [...]; Casou-se a noiva [...].. B ( ) Foi na Frana, durante a segunda grande guerra.. C ( ) [...] acompanhava-o com seu passinho saltitante [...]. D ( ) [...] mas no pequeno corao do cachorro no morreu a esperana.. E ( ) [...] um relgio preso pata [...].

    TEXTO II

    CALVIN E HAROLDO

    A tira que se segue a concluso de uma histria vivida

    pelo garoto Calvin e seu tigre de estimao humanizado,

    Haroldo. Na tira em questo, Calvin encontrou um

    pequeno esquilo doente que, apesar dos cuidados que

    recebeu do garoto, acabou morrendo. Na tira que voc

    ler, Calvin e Haroldo conversam sobre a questo da

    morte, motivados pelo triste destino do pobre esquilinho.

    (

    WATTERSON, Bill. Tem uma coisa babando embaixo da cama.

    So Paulo: Conrad Editora, 2008).

    QUESTO 08 (xxxx) - No trecho Minha me disse que morrer to natural quanto nascer, e que tudo parte do

    ciclo da vida quadrinho 01, as palavras destacadas exercem, respectivamente, funo morfolgica de

    A ( ) advrbio, conjuno, pronome.

    B ( ) pronome, conjuno, conjuno.

    C ( ) pronome, conjuno, pronome.

    D ( ) adjetivo, verbo, pronome.

    E ( ) pronome, verbo, advrbio.

    QUESTO 09 (xxxx) - Na tira, o vocbulo ciclo (quadrinho 01) e a expresso faz sentido (quadrinho 03), de acordo com o contexto, tm, respectivamente,

    como sinnimos

    A ( ) perodo sensvel. B ( ) espao causa. C ( ) espao tem coerncia D ( ) perodo tem causa. E ( ) perodo tem lgica.

    QUESTO 10 (xxxx) - As letras destacadas em Minha me disse que morrer to natural quanto nascer, e que

    tudo parte do ciclo da vida (quadrinho 01) devem ser utilizadas para completar de modo correto,

    respectivamente, as lacunas dos vocbulos presentes na

    opo

    A ( ) agre___o / e___esso.

    B ( ) flore___ er / di ____ ernir.

    C ( ) regre____o / e___ eder.

    D ( ) mi___o / su___itar.

    E ( ) eferve___ente / na___er.

    QUESTO 11 (xxxx) - Calvin, no terceiro quadrinho,

    demonstra compreender a explicao que sua me dera

    sobre a relao vida / morte. Ao se comparar essa informao com a fala do personagem no quarto

    quadrinho, se estabelece uma relao de

    A ( ) causa.

    B ( ) concluso.

    C ( ) opinio.

    D ( ) problema.

    E ( ) oposio.

    QUESTO 12 (xxxx) - Os textos I e II se relacionam a

    partir da

    A ( ) revolta perante a temtica da morte.

    B ( ) tipologia textual.

    C ( ) caracterizao dos protagonistas.

    D ( ) demonstrao de afeto entre humanos e animais.

    E ( ) utilizao sistemtica da linguagem coloquial.

    [...]

    2 PARTE: PRODUO TEXTUAL

    QUESTO 21 (xxxx) - O candidato dever elaborar uma

    pgina de dirio, na qual um personagem ir relatar um

    dia que se tornou marcante por algum motivo em especial

    no relacionamento com seu animal de estimao (a

    chegada do animal a casa, ou a morte do bicho, ou

    alguma travessura realizada pelo animal, entre outros).

    Nessa pgina de dirio, deve ficar clara a relao de afeto

    entre o bicho e o personagem que escreve a pgina do

    dirio. Atente-se s seguintes orientaes:

    a pgina de dirio deve ser iniciada com uma data. Na linha seguinte, escreva o vocativo que se refira ao dirio

    (Querido dirio, Meu dirio, Caro dirio, Querida(o) companheira(o), entre outros);

    por ser uma pgina de dirio, o texto deve manter o foco narrativo de1 pessoa, com verbos conjugados no

    pretrito do indicativo, j que os fatos ainda esto

    prximos de quem os narra;

    mantenha o padro culto da linguagem; no escreva dilogos no texto; a pgina de dirio deve ter entre 15 (quinze) e 25 (vinte e cinco) linhas;

    o candidato que fugir ao tema, ou ao gnero textual solicitado, receber o grau zero (0,0).

    FIM DA PROVA