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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros SERRA, OJT. O Encantamento de sua santidade: cancão de fogo [online]. Salvador: EDUFBA, 2006. 114 p. ISBN 85-232-0424-5. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org >. All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. As ilustres peripécias de sua Santidade Cancão de fogo no céu Ordep José Trindade Serra

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SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros

SERRA, OJT. O Encantamento de sua santidade: cancão de fogo [online]. Salvador: EDUFBA, 2006.

114 p. ISBN 85-232-0424-5. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons

Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.

Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative

Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada.

Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de

la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.

As ilustres peripécias de sua Santidade Cancão de fogo no céu

Ordep José Trindade Serra

As ilustres peripécias de sua Santidade

Cancão de fogo no céuCancão de fogo no céuCancão de fogo no céuCancão de fogo no céuCancão de fogo no céu

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(reveladas por ele mesmoa um poeta cachoeiranoa um poeta cachoeiranoa um poeta cachoeiranoa um poeta cachoeiranoa um poeta cachoeiranoatravés de sete garrafas)

Prólogo

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Saúdo o Divino AmorQue no céu é soberano.Por sua graça direiEm verso cachoeiranoComo é que Cancão de FogoPassou para outro plano.

A história bem começadaCompactamente acabo.Já noutro cordel narreiO lance do santo braboQue ao fim do mundo chegouAmontado no diabo.

Seguindo a prosopopéiaTremenda que inicieiDo grande Cancão de FogoJá muito me aproximei.Com suas próprias palavrasSeus feitos descreverei:

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I [Fala Cancão]

No limbo da barra azulPeguei a estrada diretaSubindo rapidamenteNos ares feito uma setaGraças à amável caronaDe um belíssimo cometa

Assim que o bicho passouPor mim, naquela amplidão,Saltei-lhe no lindo corpoCom toda a disposição(Sempre curti montariaDe cabeleira e rabão).

Passando perto da luaVi, num galope ligeiro,Seguido por jacaréCom ventas de fogareiroUm garanhão a levarFortíssimo Cavaleiro

Mais longe, vi uma rês— Aparição estrelada —Pela cintura do mundoTrotando relampejadaGritei:“Bom dia, São Jorge!Tá indo pr’a vaquejada?”

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O santo disse:“Que peçaMe vem do mundo rasteiro!Saiba que guardo poderesEternos de Cavaleiro.Deixei o altar da lua...Mas não para ser vaqueiro!

“A profissão é honrada,Não vejo nisso desdouro...Porém, nos campos agrestes,Não penso em cuidar de touroNem quero mudar a roupaTrocando ferro por couro.

“O Papa de lá da terraNegou minha consagraçãoTirou-me do calendárioDos santos de devoção;Na eternidade, contudoNão muda minha condição.

“Deixei a capela branca— A minha antiga morada —Pois vivo melhor sozinhoDo que em companhia errada.Com americano chegandoA lua tá esculhambada!

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Eu busco um astro no céuOnde em sossego morarCom grutas para o dragãoFazer seu pito e fumarRecuperando suas forçasDepois de a gente brigar.”

Eu respondi: “Ó meu santoEu sempre o venerarei!Não perde sua majestadeQuem claramente foi rei!De coração, um conselhoAceite que lhe darei:

“O seu dragão está velhoJá não agüenta maltrato...Pegue esse ferro compridoQue é perigoso de fatoE atoche no cu do PapaQue lhe cassou seu mandato!”

São Jorge disse:”É precisoDecência e moderação!Falar assim com um santoÉ falta de educação.Mas vá em paz! ReconheçoQue é boa sua sugestão.”

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Acelerou-se o cometaDe um modo fenomenal:Tanto, que logo me viNo lombo desse animalErguido à faixa formosaDa cinta zodiacal.

O que eu vivi no pedaçoDaqui a pouco direiSegundo o rito da pingaQue em vida já pratiqueiCom boca de poesiaContando tudo que sei

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II

Em astro vertiginosoNo céu imenso voandoEu fiz a curva do tempoA mundos claros chegandoDe uma beleza serenaQue sempre estou recordando.

Eu tinha muito desejoDe campear nesse espaçoEm busca do boi estreloQue vi trotar no compassoDa música das esferas— E de o pegar com meu laço.

Mas longe dele saltei,Numa baía estrelada.Foi onde vi criaturaEstranha de misturada:Bode com rabo de peixeE cara desaforada

Tem muito bicho esquisitoQue pelos astros passeia... Na terra nunca vi disso...... E quem quiser que me creia:Lá na maré do infinitoUm bode faz de sereia!

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O bicho me olhou de um jeitoQue abalou minha féE quase me põe em fuga.... Mas antes de dar no péNas suas ventas chegueiA caixa de meu rapé.

Foi tanto espirro cabralQue todo o mundo abalou.Atrás da curva do solNos astros se alevantouA ventania tremendaQue pelo céu me atirou.

Voando, bati nas costasDe formidável giganteQue um pote d’água inclinavaEntre seus braços possantesEu me assustei com a visãoDo brucutu faiscante

O camarada exclamou:“Quem é esse temerárioQue aqui me fez derramarMais água que o necessário?”Eu retruquei: “Vou buscarUns peixes pra seu aquário!”

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E logo saí nadandoNa vastidão sideral.Num instante cheguei à praiaDo mundo zodiacalNas ondas de luz deixandoParelha de bacalhaus.

Não tinha anzol nem caniçoTarrafa nem rede algumaDeixei morrer a promessaNas luminosas espumasQue o aguadeiro giganteSumira-se já na bruma.

Notei que em casal de peixesTambém se encontra caprichoPeguei no rabo da fêmeaO macho deu-me um esguichoVinguei-me chegando á margem:Mijei na boca do bicho.

Ainda bem que eu já tinhaPassado para a campina...O peixe do céu tem mesmoSangue na guelra ferina:De um pulo quase me arrancaA distinção masculina.

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Corri pelo campo astralQue parecia uma ilhaTremendo de apavoradoFechei a minha braguilhaQuase que as moças da terraPerdiam sua maravilha.

Com pouco me apareceuNuvem de lã flutuandoCom chifres em caracolOlhos de estrela brilhandoAdmirei-me de verCarneiro no céu brincando

Imagem de luz maciaCom graça de passarinho...Era tão lindo o animalQue provocou meu carinhoPeguei a faca depressaPara esfolar o bichinho

Minha intenção era essaQue francamente não negoTocou-me grande ambição(Na hora, deixou-me cego)Queria fazer bonitoUsando aquele pelego.

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As aparências enganam...De recordá-lo não canso;Engano meu foi acharQue aquele bicho era mansoMe fez passar da medidaNum rapidíssimo avanço:

Fugindo ao pai-de-chiqueiroCorri até que canseiE então terrível marradaNo meu traseiro leveiPor cima do boi estreloLéguas e léguas voei.

Por um azar esquisitoMeu plano se desmanchouO laço que eu empunhavaEm cima da rês tombouOs chifres dela cercandoA corda lá se ficou

O touro, com aquele tremTomou um susto retadoPendeu-lhe na cara a trançaDeixou o bicho irritadoA sacudir a cabeçaCom bufos de condenado

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Já eu, por um longo tempoCortando o celeste espaçoNa travessia do escuroDo mundo não via traçoPor fim, caí numa redeNa praia dos dois mabaços.

Um deles falou pro outro“Que meteoro esquisito!Tem pouca velocidadeNão faz um fogo bonitoÉ acanhado e miúdoParece mais um mosquito!”

O outro lhe respondeu“Aqui não se guarda lixo!Vamos jogar adianteEssa porqueira de bichoA fim de ver se depoisViaja com mais capricho!”

Sentindo o novo perigoNa minha grande aventuraEu procurei me safarCom sabedoria puraJoguei entre os dois garotosUm taco de rapadura.

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Bateu-lhes a gulodiceQue puxa o assanhamentoCom os dois disputando o doceEu pude tomar alentoSaltei da rede e partiSaboreando o momento.

Deixei os gêmeos pegadosNum grande turundumdumTratei de ganhar depressaA bela estrada incomum.Mais adiante topeiCom um puta de um guaiamum.

O bicho veio pra mimNaquele passo de bandaEu o imitei caminhandoDo jeito como ele andaMas para o lado contrárioEm formação de ciranda

Cantei um samba de rodaFicamos nós a dançarE eu alargando o raioTratava de me afastarSenão as terríveis pinçasPodiam me espedaçar

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Foi boa minha estratégiaE devo-lhe a salvaçãoMas logo um maior perigoMostrou-se a meu coraçãoNaquela dança eu entreiBem no quintal do leão

Desesperado da vidaCorri de volta pro brejoEmbora de modo algumFosse meu grande desejoTornar para a contradançaNo baile do caranguejo.

Na certa, salvou-me a sorteCom a graça do meu destinoPois o leão é valenteDestemeroso e ferinoMas nesse dia mostrouQue não é bom dançarino

Na gana de me pegarCom nada mais se importouNo território do outroRugindo ele penetrouE o guaiamum, arretado,A sua cauda pinçou.

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Urrando de horrendo jeitoO rei da raiva douradaSaltava feito um malucoFazia uma presepadaAtrás de seu próprio raboEm roda desabalada.

Depressa pus-me a correrE muitas léguas trilheiAté que à imagem serenaDe linda moça cheguei.De forma bem educadaA criatura saudei.

Com sua voz luminosaAssim me falou lá ela:“Quem é você? E que fazJunto de minhas estrelas?Varão aqui não penetraSou uma pura donzela!”

Eu respondi: “Deus te dêAmor, ó donzela pura!Que bem merece carinhoQuem goza de formosura.A virgindade é tristonhaPorém este mal tem cura!

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“Escute, porque lhe faloCom meu sentimento à vistaNo mal que há muito lhe afligeEu sou especialistaE a fim de lhe dar remédioTrilhei esta imensa pista!”

A moça desconfiadaFoi logo me replicando:“Você há de ter errado...Caminhos andou trocando.A minha saúde é boaNão sei de que está falando!”

Eu retruquei-lhe: “Não deixeQue a natureza se inflame!Se perde a oportunidade,Mais tarde talvez reclame!Quem quer a boa saúdeCarece fazer exame!

“Ouça o que diz o doutor:Tire sua roupa, mocinha!Encabulada não fiquePois não estará sozinha...Pra que não sinta vergonhaTambém tirarei a minha.”

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Mirando-se em meu exemploA moça tomou coragemEm pouco tempo passamosDo exame para a massagemE desta pra um tratamentoCompleto de sacanagem.

Eu quero usar de franquezaNa história que hoje lhe conto:Gastamos um tempo enormeNo amoroso confronto;Depois de muitos embatesFui eu que entreguei os pontos.

Pedi arreglo pra moçaPorque já não agüentavaQue quanto mais se faziaMais a danada animavaDe tanto amor e foliaPor pouco não me matava

Por fim eu lhe supliquei:“Minha querida senhoraVamos parar o brinquedoQue eu tenho de ir-me embora!Como se sabe, visitaDe médico não demora...”

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Mas ela me respondeu:“Que é isso, caro doutor?Acho-me ainda carenteDa medicina de amor!Pretende deixar-me agoraQue eu esquentei o motor?!”

Gemi: “Um intervalozinhoNão vai lhe matar de tédio...O esforço que tenho feitoPassou dez vezes do médio.Pra dar-lhe mais alegriaPreciso buscar remédio!”

Por fim, ela concordouE me ajudou de verdadePra que eu partisse e voltasseCom boa velocidadeDeu-me barquinha de estrelasE velas de claridade.

Eu naveguei pelo céuCom a máxima confiançaQue a barca era mesmo boaFormosa como a esperançaLevou-me com rapidezAo pé de grande balança

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Com um desacerto pequenoCausei um problema chatoParei de uma forma bruscaErgui-me de imediatoEm movimento importunoDei com a cabeça num prato

O mundo na mesma horaFicou desequilibradoFuturo saltou pra trásCaiu na frente o passadoO vento virou do avessoO fogo soprou molhado

Passei terríveis momentosVi coisas de arrepiarCom a claridade sombriaNo vácuo a se embaraçarAté que o prato de prataCessasse de balançar.

Tonto, saindo daí,Passei a outra regiãoOnde o terror tem moradaAo pé da desolaçãoHabita esta zona iradaHorrível escorpião

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Aproximou-se o lacrauDestruidor de alegria;Com a peçonha no raboGrande ameaça fazia.Confesso, amigo, que quaseMeu ânimo esmorecia

Mas tive uma inspiraçãoDivina que me valeu:Joguei-lhe perto um espelho— E veja o que sucedeu —Com a ferroada do bichoA sua imagem morreu.

Rapidamente fugi.Cheguei sem maior abaloA um pasto onde mora um tipoQue a outro nenhum igualo:Vive montado em si mesmo— É cavaleiro e cavalo.

Temível, ameaçouMudar meu itinerário.E pode crer, amizade,— Só minto se necessário —Senti um certo receioDas setas do Sagitário.

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Deteve-me na fronteiraAquele feroz sujeitoA distender o seu arcoMirando bem no meu peitoE me exigiu que daliDesse o recado direito

Eu lhe falei: “Caro amigo,Boa intenção é a minha!Por caridade aqui venhoMontado nessa barquinhaPedir-lhe que vá prestarSocorro a sua vizinha”.

O tipo me retrucouNum golpe de voz ferina“Qual é o mal que padeceAquela moça divina?Se alguém ofendeu a VirgemTerá tristíssima sina!

“Responda! De que é que sofreEssa donzela inocente?O que lhe deu nas estrelasE a torna assim padecente?”Eu disse: “Não sei ao certo...Parece muito carente.”

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O arqueiro mostrou-se logoCom o caso preocupadoPra visitar a colegaJá não se fez de rogadoPartiu num belo galopeDe passos acelerados.

Falei baixinho: “Vai fundoE tira-me do sufoco!A vossa lua de melHá de ser coisa de louco!Mas cuide-se bem, pai d’ égua...Cavalo, pra ela, é pouco!”

Entrei de novo na barcaVoltei à navegaçãoBuscando novas estrelasPor pura vadiaçãoMas adiante cercou-meUm poderoso esquadrão

A minha aventura extremaGanhava o maior alcance...Mas tenha calma, leitorQue vou lhe contar o lanceChegando à terceira parteDeste celeste romance

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III

Recomeçava no céuA minha navegaçãoQuando cercou-me voandoDe anjos um batalhãoE o sargento lá delesMe fez esta saudação:

“Ó vagabundo viventeEspécie de bagunceiro!Salte da barca e se entregueObedecendo ligeiroPois nós não admitimosNegaças de presepeiro!”

O seu convite aceiteiE a escolta arcangelicalQue bem depressa levou-meAo glorioso portalOnde São Pedro presideA lúcido tribunal.

O arcanjo me apresentou:“Este mané miserentoHá pouco nós detivemosNa volta do firmamento Onde fez muita desordemNum passeio turbulento.

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“O celeste CapricórnioDe espirrar quase matouA vasilha do AguadeiroPor pouco ele não quebrouIrados deixou os PeixesCom um jato que catingou.

“O Carneiro provocouPôs o Touro furiosoE os Gêmeos engalfinhadosNum tendepá horrorosoPôs Caranguejo e LeãoNum círculo vicioso.

“Motivou inusitadoEscândalo nas estrelas.Tremendo cabra da peste!Veneno das coisas belas!Por culpa do descaradoVirgem não é mais donzela!

“Esse malandro piradoNão usa de temperança:Desequilibrou o mundoDo tempo mudou a dançaCom um golpe que provocouA agitação da Balança.

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Fez desatinos sem contaEm cada constelaçãoNo zôo do céu zoouCom grande esculhambaçãoA ponto de envenenarO pobre do Escorpião.

“Causar confusão eternaParece que é sua meta...Fez Sagitário largarO arco, e perder a seta.Apaixonado, o centauroÉ hoje besta completa.”

São Pedro fez: “O que pensoDirei com sinceridadeAcho que o cabra é um malucoDe certa capacidade.Se a sua doideira é grandeNão vejo nele maldade.

“Se pôs a espirrar um bodeE um bacalhau perfumadoQuebrou o pote de um lerdoBotou um leão zangadoIrando touro e carneiroNão vejo grande pecado.

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“Segundo meu pensamentoTudo que fez é bobagemQue mexe com a fantasiaTem jeito de molecagem.Com isso não perco tempoNem cuido de vadiagem.

“Defloramento de moçaPra mim não é maravilha.Se consentiu no brinquedoA bela mulher que brilhaNão tenho nada com o caso:Não sou fiscal de braguilha!”

O anjo lhe retrucou:“Mas temos reclamaçãoDo povo da astrologiaQue quase perde a razãoNão tem horóscopo certoGerou-se uma confusão.

“No pessoal de CarneiroPerdeu-se toda a esperançaVive marrando e berrandoCom medo, nunca descansaAos cabeçudos agoraSó o chifre dá segurança.

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O Capricórnio tambémEstá num caos horrososoCom todos se encabritandoDo modo mais furiosoA espirrar e peidarMonte de corno nervoso.

O povo de Touro atéA sombra que vê atacaSó aquieta tomando ferroE quando não toma, empacaOs homens vivem bufandoAs donas passam de vacas.

Aquário só dá malucoQue vive num triste assanhoRaça de hippie caducoBestas de todo tamanhoQue contraditoriamenteNão querem saber de banho.

A condição piorouDo povo de SagitárioQue nunca acerta no alvoTem o juízo precário;É tudo cavalgaduraImenso bando de otários.

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O pessoal de BalançaFicou desequilibradoNão fala coisa com coisaTá sempre do lado erradoMetade é lelé da cucaMetade é avariado.

O povo de CaranguejoEstá que não se consertaPra trás procurando avançoCom a inteligência desertaSó acham contentamentoDançando de roda aberta.

Tristeza medonha causaO pessoal de LeãoQue agora só dá covardeSó prolifera cagãoPreguiça tem mais coragemAmeba tem mais tesão.

“Hoje, as pessoas de GêmeosNão têm, nem merecem fé:Com a cabeça trocadaCom o pensamento no péBrigando consigo mesmosNão sabe nenhum quem é.

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“Não há miséria que o povoDe Escorpião não mereçaTem suicida, assassinoDesatinados à beçaNos outros, que são tarados,O rabo sobe à cabeça.

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“Os Peixes vivem no nadaCom expressão de afogadosNão gostam de beber águaDe pinga vivem molhadosQuando não tomam cachaçaNo mínimo estão drogados.

“O povo da antiga VirgemEstá como quer o diaboTão grande é a safadezaQue muito me deixa brabo:Seja mulher, seja homemSó pensam em dar o rabo!”

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São Pedro lhe retrucou:“Arre, mas quanta agonia!Eu pouco estou me lixandoPra coisas de astrologia.Horóscopos não consulto.Bobo é quem nisto se fia!

Não quero deitar sentençaNo homem que aqui me trouxe.Não posso julgar um vivoComo se morto ele fosse.É fora de minha alçada.Nossa sessão acabou-se!”

O arcanjo falou então:“Com toda a sinceridadeO santo me escabreou...Mas ele fala a verdade.O jeito é levar o presoAo tribunal da Trindade.”

Escorreguei ao entrarNa grande Casa sagrada.Deus Pai coçou o bigodeO Filho deu uma risada.Eu me voltei pra Deus MãeQue é uma Senhora educada.

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Por fim Ela proclamouEm belos tons soberanos:“Este bichinho da terraCobriu-se de erros e enganosMas puro é ainda neleO espírito que sopramos.”

Com o hálito Seu divinoMeu corpo se incendiouA minha forma terrenaEm fogo se dissipouUma alegria profundaA alma me renovou.

E disse-me Deus:”TerásNova existência vadiaNa condição de encantadoNa forma da poesiaFazendo graças e dandoCombate à hipocrisia.”

Na terra devo buscarCumprindo eterna missãoPoetas em que hospedarMeu gozo e minha paixãoContente trago pra elesO fogo da criação.”

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� O encantamento de sua santidade - Cancão de Fogo �

Assim me falou o beloE extravagante animalCom chamas de bom perfume— Delírio mais que real —No meu juízo luzindoSua aparição musical.

Bendigo a bela visita!Sua acolhida garanto.Sou muito grato a CancãoPois gozo do seu encanto— E sempre que tomo pingaDerramo um pouco pro santo.

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