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www.nead.unama.br 1 Universidade da Amazônia As Maluquices do Imperador de Paulo Setúbal NEAD – NÚCLEO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA Av. Alcindo Cacela, 287 – Umarizal CEP: 66060-902 Belém – Pará Fones: (91) 4009-3196 /4009-3197 www.nead.unama.br E-mail: [email protected] nead Núcleo de Educação a Distância

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    Universidade da Amaznia

    As Maluquices do Imperador

    de Paulo Setbal

    NEAD NCLEO DE EDUCAO A DISTNCIA Av. Alcindo Cacela, 287 Umarizal

    CEP: 66060-902 Belm Par

    Fones: (91) 4009-3196 /4009-3197 www.nead.unama.br

    E-mail: [email protected]

    n e a d

    N c l e o d e E d u c a oa D i s t n c i a

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    As Maluquices do Imperador de Paulo Setbal

    APRESENTAO

    Devo gentileza vencedora de Jlio de Mesquita Filho a honra de haver

    ingressado nas colunas do "O Estado de So Paulo". Colaborei durante meses na grande folha. Colaborei, com orgulho, no jornal-padro, legtima vaidade da imprensa brasileira.

    Dessa colaborao, nasceu este livro. Botei-lhe o nome, um tanto beliscante, de Maluquices do Imperador. Dentro dele, diga-se a verdade, nem tudo so maluquices. H muitas pginas inocentes. Mas, isso no estorvou o batismo: as inocentes que paguem pelas pecadoras! Que fazer? a lei da nossa injustia eterna...

    Crticos de trabalhos meus anteriores, notadamente o Sr. Aggripino Griecco, censuram-me o colocar, no fim das pginas, a citao das passagens onde apanhei a anedota ou o fato curioso. Acham que isto afeta o texto. "mostrar os andaimes do edifcio". No fiz desta vez, citao alguma. Mas, bom que o leitor saiba, desde agora, no haver eu inventado a substncia de nenhuma das histrias que a vo. Catei-as em vrios autores. Uns j embolorados, outros de uso corrente. Serviram-me de fontes, entre muitos outros:

    Melo Morais, pai, ("Crnica geral", "Histria das Constituies", "Brasil-Histrico") H. Raffard ("Pessoas e Coisas do Brasil") A. Augusto de Aguiar ("Vida do Marqus de Barbacena") Francisco Gomes da Silva, ("Memrias Oferecidas a Nao Brasileira"), Vasconcellos Drummond ("Memrias"), D. Vieira ("Memrias Histricas"), A. Rangel, ("Textos e Contextos"), Alberto Pimentel ("A Corte de D. Pedro IV"), Loureiro ("Cartas do Brasil"), etc.

    So Paulo, 926 Paulo Setbal

    BRASIL-REINO 7 de maro de 1808. A nau Prncipe Real, com a flmula azul branca

    panejando ao vento, entra galhardamente pela barra a dentro. Todos os tripulantes, sacudidos por spero bombardeio de surpresas, derramam olhos escancarados sobre o panorama embebedante, nico:

    Que lindo! Que lindo! No ar que fasca, debaixo dum cu entontecedor, azul de Svres, o sol

    escachoa avanhandavas de ouro. E sob a luz flgida, dentro da sua virgindade selvagem, recorta-se em coloridos fortes a paisagem maravilha, guas e morros! Tudo prdigo, tropical, cheirando a terra moa, ineditamente belo. Como pssaros verdes, papagaios enormes pousados tona dgua, surge das espumas um bando arrepiado de ilhas. Que pitoresco! E toda gente, na amurada, a apontar com o dedo:

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    a "Rasa"!! A "Comprida!" A "Redonda"! Os "Dois Irmos"! As "Palmas"!! Ao longe, magnfico bugre americano, l est o Gigante de Pedra, estendido

    no cho, tatuado, brnzeo, com a sua empolgante monstruosidade rstica. Alm, encoscorado e bravio, caboclamente brasileiro, o Corcovado pintalga-se de mataria brava, a paulama enroscada no cipoal, os nhacatires gritando pelo carnavalesco das flores. Acol, esbeltssimo, nncio da Terra Nova, o Po de Acar arremessa nas nuvens, arrogantemente, o seu pico de pedra, que fura o cu.

    E o Prncipe Real, enfeitado de bandeirolas e de galhardetes, rasga com bizarria a ondada mole.

    As fortalezas da terra, avistando-o, iam as cores portuguesas. E sob o cascatear do sol, na alegria olmpica da manh, estruge de sbito uma atroada frentica. a salva real que estronda, cento e um tiros pipocando, sinos a carrilhonarem, roqueiras, estrpito de rojes, zabumbas, charangas, fogos de artifcio que riscam o ar.

    De todos os lados, s dezenas, j os escaleres engaivotam as guas crespas da baia. Remam com fria, rumo da nau que entra. Um deles, leve barquito com grandes embandeirados, alcana-o logo. Chega-se ao casco. Tomba-lhe da amurada a escadinha de bordo. Sfrego, os olhos chispando, sobe por ela um passageiro. Jos Caetano de Lima. o primeiro carioca que se embarafusta pela nau. Os tripulantes abrem alas. E o feliz morador do Rio de Janeiro, ao passar, corre uns olhos atordoados pelo bando suntuoso.

    Quanta gente luzida! So todos fidalgos do mais velho sangue. As damas, em grande decote, os cabelos encaracolados, chapus de plumas berrantes, faiscam de sedas e de pedrarias. Os cavalheiros, hirtos, espartilhados, as casacas azuis de rio claro, trazem o peito estrelado de crachs. Apenas, com um destoar chocante, vm dum beliche gritos estranhos, gritos roucos de mulher presa:

    No me matem! No me matem! O embarcadio continua varando a ponte. Em meio da turba, por entre a

    mescla rutilante de fidalgos e fidalgas, destaca-se um casal muito grave, muito protocolar, de que os demais circunstantes se distanciam com respeito. Ele gordo, muito rechonchudo, bochechas estufadas, olhos parados, de suas. Ela spera, feies de homem, bigodes no lbio, plos no rosto, plos na mo, plos por toda parte. Ele, o molengo D. Joo VI; ela, a cabeluda, D. Carlota Joaquina. So os regentes de Portugal.

    Jos Caetano de Lima precipita-se para os dois. Tomba-lhes aos ps. Beija-lhes as mos vitoriosamente: o primeiro fluminense que, tonto de gozo, tem a ventura de prestar vassalagem aos fujes reais!! Do beliche soturno, porm, ecoa subitamente a estranha voz:

    No me matem! D. Maria, a louca. a rainha de Portugal que chega aos berros,

    encarcerada, enfunebrecendo a nau:

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    No me matem! No me matem! Assim, naquele dia gloriosamente radioso, por entre ribombos formidveis,

    com espavento e gala, aportava ao Brasil, escorraada por Napoleo Bonaparte, a famlia Real Portuguesa.

    * * *

    Napoleo Bonaparte e o embaixador de Espanha, trancados no salo nobre de

    Fontainebleau, assinam um tratado secreto. O Imperador est irritadissimo. Ferreteado por aquela idia avassaladora, obcecante, de matar a Inglaterra pelo isolamento, Bonaparte no admite que o misrrimo Portugal, depois de decretado o bloqueio, ainda tenha o atrevimento de conservar as suas amizades com a ilha. Eis porque, debruado sobre o mapa, o lpis em punho, o corso retalha o reino dos Braganas em trs pedaos. Acintoso, com a maior sem-cerimnia, distribuiu-os assim: o norte, que ele denomina a "Lusitnia Setentrional", destina galantemente a Maria Lusa de Bourbon e Parma, despojada agora do trono da Etrria; o centro, o "Principado dos Algarves", oferece ao prncipe da Paz, o famoso espanhol Godoy; o sul, a "Lusitnia Meridional", toma-o singelamente para si. Destarte, juntamente com a Espanha, fica resolvido o destino da naozinha intil. Est riscado Portugal da Europa. E logo, sem grandes motivos, comeam as atitudes agressivas. Rompem-se as relaes diplomticas. O embaixador portugus, D. Loureno de Lima, recebe de Talleyrand os seus passaportes. Essa notcia ecoa aterradoramente em Lisboa. D. Joo, num desnorteio, faz o Marqus de Marialva partir num atropelo para Paris. Leva o ilustrssimo fidalgo os mais rastejantes protestos de amizade. Leva para Bonaparte um ba de presentes opulentssimos, grossos fios de prolas, saquinhos atulhados de diamantes brasileiros. Leva ainda mais oh pavor! ordens de oferecer a mo do prprio D. Pedro, herdeiro do trono, a qualquer pessoa da famlia do Imperador. A filha de Luciano seria recebida com grande gosto. Ou ento, se fosse do agrado de Napoleo, mesmo a filha dum general qualquer... Mas, o coche dourado de Marialva ainda no havia transposto as fronteiras, j as tropas de Junot rompiam uivantes pela pennsula adentro. Vinham como um furaco. Ia tudo raso! O pobre D. Joo, no seu palcio, ouviu o estrpito ameaador. No houve mais que trepidar: embarcou espavorido para o Brasil. Esse embarque, essa fuga dum ridculo espantoso, a mudana de toda uma corte em vinte e quatro horas, foi incrvel pgina de opereta. Foi pgina dolorosamente bufa. Oliveira Martins pintou-a com pinceladas de ouro.

    * * *

    O bergantim real, alcatifado de coxins de veludo, com o seu belo toldo de

    damasco franjado, atracou debaixo do mais quente ribombo de festa. O povo espremia-se no cais. Milhares de espectadores, com avidez mordente, o corao aos saltos, contemplavam, fascinados, a embarcao garrida. Tudo queria "ver o rei". O Conde dos Arcos, que ento governava o Brasil, correu a abrir a portinhola: e do bergantim, muito ataviada de garridices, desceu lustrosamente a famlia real. Era D. Joo VI, em grande gala. Era D. Carlota Joaquina, com o seu fuzilante diadema de pedrarias. D. Pedro, o herdeiro do trono, principezinho de nove anos, muito vivo, os cabelos crespos e negros, saltou acompanhado de Frei Antnio de Arrbida, o preceptor. Seguia-o o irmo mais moo, o infante D. Miguel, todo de veludo, calas compridas, o gorro apresilhado por um flgido broche de pedras. As princesas

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    vinham enfeitadas com primor. Muito lindas. Vestiam sedas dum azul plido, enevoadas de arminhos, com grandes diamantes nas orelhas e altos trepa-moleques nos cabelos. Viera, tambm, galhardo e belo, um moo arrogante, muito simptico, olhos romanticamente verdes: era o Senhor D. Pedro Carlos de Bourbon e Bragana, infante da Espanha, sobrinho dos regentes.

    No cais, fora armado um altar. D. Joo e D. Carlota, seguidos pelo prncipe e pelos infantes; ajoelharam-se diante dele. O chantre da S tomou da gua benta e aspergiu ritualmente os reais hspedes. Tomou do turbulo de prata e incensou-os por trs vezes.

    D. Joo, com fervorosa compungncia, caiu ento por terra: beijou o Santo Lenho. A corte, prosternando-se, acompanhou-o no beijo tradicional. Depois, ao longo do cais, formou-se o squito de honra. L ia a bandeira, l ia a cruz, l iam os nobres, l ia o clero, l ia a gente da terra. No meio das alas, carregado pelo Senado da Cmara, franjado de ouro, rutilando ao sol, um imenso plio de seda: e, debaixo dele, com os seus atavios carnavalescamente vistosos, a deslumbrar a colnia toda a famlia real.

    Nas ruas, recobertas de areia branca, esparzidas de flores e de folhagens profusssimas, as casas enfaceiraram-se garridamente. Colchas de seda, tapearias e veludos, damascos de coloridos fortes, tudo palpitava, ria, baloiava-se s portas e janelas, despencava-se festivamente das varandas. Papagueantes, agitando o leno com entusiasmo, despejando braadas de rosas, as donas enramilhetavam as sacadas, faiscavam de louanias, punham no quadro cores estonteantes, todas com muita pluma, com muita renda, com muita seda, com muita pedraria de preo. E eram foguetes pelo ar, estampidos nas fortalezas, msicas reboantes, vivas, alegrias loucas, ensurdecedoras. O cotejo magnfico penetrou na Catedral. Comeou o "Te-Deum"...

    * * *

    Nessa noite, houve grandes luminrias A casa dos Telles, em frente ao Pao,

    resplandecia, fascinante. Chispava de tanta luz, tinha tantos copinhos de vela, com tantas cores, que a prpria D. Carlota Joaquina mandara felicitar os donos pelo gosto. E enquanto, sob jbilos barulhentos, o povo pasmava-se diante dos rojes de lgrimas que subiam ao cu, D. Joo VI, sentado no trono, com o seu faustoso manto de niza branca, dava no Brasil o seu primeiro beija-mo. O Rio de Janeiro, a cidadezinha colonial, a terra selvagem dos macacos, viu estadear-se nessa noite, com fausto espaventoso, a mais legtima aristocracia de Portugal. Que desfilar empavonado!

    A corte atulhava garridamente os sabes toscos e nus daquele pobre Pao. Era a Senhora D. Mariana Xavier Botelho, Duquesa de S. Miguel, camareira-mor da rainha D. Maria, emproada e grave, com a sua riqussima afogadeira de prolas ao pescoo. Era a Marquesa de Luminares, primeira dama de D. Carlota Joaquina, muito broslada de rendas, toda a refulgir no seu bizarro vestido cor de aafro. Era a Duquesa de Cadaval, com os seus gorgores pesados, os caracis brancos do cabelo tombando-lhe versalhescamente pela nuca. A Marquesa de Belas, olheirosa e plida, ainda atordoada dos cambaleios da nau, desolava-se com a desolada Condessa de Caparica, que deixara em Lisboa, no atropelo do embarque, o seu querido samovar de prata manuelina. Mas, no eram apenas as donas. Perpassavam refulgentes, o peito abrolhado de insgnias, os nomes mais retumbantes do reino. D. Jos Noronha Cames de Albuquerque, Marqus de Anjeja; D. lvaro Antnio de Noronha e Castello Branco, Marqus das Terras Novas; o Marqus de Alegrete, o Conde de Cavaleiros, O Visconde de Anadia, Jos Rufino de Sousa Lobato, o guarda-jias, o amigo ntimo de D. Joo. Toda uma turba de

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    marechais, de desembargadores, de eclesisticos, de moos da Cmara, de guarda-roupas, de damas do pao, de damas de honor...

    * * *

    No outro dia, com protocolos infindveis, houve nova procisso no cais. A

    Corte inteira abalou-se para receber a rainha, que ficara a bordo. D. Maria I desceu da nau, espavorida, o oIhar tonto, muito plida. A doida contemplou estupidamente a turba. Um terror agoniante pintou-se-lhe no rosto. Quis fugir. Mas agarraram-na logo. Meteram-na dentro duma cadeirinha dourada. E quando, na cadeirinha, ouviu o baque da portinhola que se fechava, a louca prorrompeu em berros, que faziam mal:

    No me matem! No me matem! E recolheram-na ao Pao. Durante nove dias, a cidadezinha encheu-se de festa. Durante nove noites a

    cidadezinha encheu-se de luminrias. Foi um estonteamento! D. Joo andava radiante. Uma alegria torrenciosa borbulhava-lhe no peito: livre, enfim, das garras de Napoleo Bonarparte! Uff!

    E ps-se tranqilamente a comer os seus trs franguinhos no almoo e os seus trs franguinhos no jantar.

    No Brasil, durante largo tempo, a vida de D. Joo correu sem arrepios. Tudo aqui lhe era propicio: o clima, a pacatez, a gua da Quinta, as laranjas da Bahia, a solido. Apenas, na fazenda de Santa Cruz, um carrapato ferrou-lhe na perna. D. Joo arrancou-o bruscamente: o ferro do animal ficou-lhe cravado na carne. Mordida feroz! O regente mancou durante vrios meses... A no ser isso, a no ser o dente do bicho, nada viera quebrar a serenidade daquele viver. Tudo mar de rosas.

    E D. Joo, inspirado pelos ministros, comeou a engrandecer o pas. Abriu os portos da Colnia ao mundo. Criou o desembargo do Pao. Organizou o Banco do Brasil. Fundou a Escola de Medicina. Fundou a Academia de Belas-Artes. Fundou a tipografia rgia. Construiu uma fbrica de plvora. Mandou explorar as minas de ferro do Ipanema. Fez o Jardim Botnico. Abriu a Biblioteca Nacional. Um infindar de benefcios!

    A terra, com tais reformas, tomou um surto vertiginoso. Tamanho, to forte, que os ministros levantaram logo a idia de se elevar o Brasil a reino. D. Joo recebeu a medida com bom semblante. Formou-se em torno dela uma forte corrente de simpatias. Cogitou-se afoitamente em realiz-la. Mas D. Carlota Joaquina interveio. A espanhola detestava o Brasil. Aqui, era terra de negros, aqui, era terra de degradados, aqui, era o fim do mundo. Seria ridculo elevar a reino um pas imundo como estes. E D. Carlota combateu rijamente o plano: estabeleceu-se na corte uma luta manhosa, uma luta na sombra, melindrosssima.

    Nesse instante, em Viena, reunia-se um congresso formidvel. em 1815. Enquanto Napoleo Bonaparte, sob o olhar implacvel de Hudson Lowe, escreve as suas memrias em Santa Helena, os embaixadores das grandes potncias discutem a paz da Europa. Talleyrand, a mais alta cabea diplomtica da poca, defende os interesses da Frana. O estadista tremendo, para defend-los, apoia-se habilmente nas pequenas naes que conseguiu seduzir e coligar em torno de sua poltica. Talleyrand nesse momento, tem os olhos do mundo fixados nele. O Conde da Barca, Ministro da Guerra, amigo particular do grande francs, escreve-lhe uma carta reservada, muito Intima, suplicando que intervenha no caso do Brasil. Pede que Talleyrand, no s

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    trabalhe pela elevao do Brasil a Reino, como faa que esse ato seja reconhecido pelo Congresso de Viena. Dentro da carta, muito agradavelmente com uma gentileza irresistvel, ia, ao que dizem, uma ordem de cem mil cruzados. Ia, naqueles belos tempos, a bagatela de quatrocentos contos fortes. Talleyrard recebe a carta, o pedido, o dinheiro. Uma sbita idia irrompe naquele crebro de gnio. Portugal, no Congresso, considerado como nao de terceira ordem. E as naes de terceira ordem no tm voto nas deliberaes. Nem sequer tm assento no recinto do Congresso: so apenas consultadas na antecmara. O reino dos Braganas, por isso mesmo, no pode tutelar como deve os seus direitos. D. Joo pleiteia ardentemente a entrada no Congresso. Talleyrand por seu turno, precisa nas deliberaes do voto da pequena nao amiga. E bate-se ento, de corpo e alma, pelo reconhecimento de Portugal como grande potncia. As naes opem-se. Qual o meio de venc-las? Diante da missiva secreta do Conde da Barca, Talleyrand ilumina-se. Est descoberta a frmula. executar o pedido do seu amigo. elevar o Brasil a reino. dar a estes imensos domnios o privilgio de nao. Portugal, dono de to vasto reino, tornar-se-ia, forosamente, potncia de primeira ordem. Entraria no Congresso e teria voto nele. E o estadista pe-se a campo. Fala com os embaixadores portugueses, manda instrues ao Rio, d ordens ao ministro francs, agita-se, insufla, escreve. D. Joo no vacila mais: rene o conselho e expe a matria. Os ministros, sem discrepar, so todos pela grande medida. Ento, esfregando as pontas dos dedos, rindo aquele risinho amarelo, muito dele, D. Joo resolve:

    Diante do que ouvistes, senhores ministros, vou elevar o Brasil a reino.

    Precisamos ter assento e voto no Congresso de Viena. E esse, como vedes, o nico alvitre para chegarmos at l.

    E elevou o Brasil a reino.

    * * * Talleyrand, ao ter cincia do ato, discutiu-o em Viena: Portugal, por consenso

    unnime, foi reconhecido como grande potncia. Sentou-se no recinto do Congresso e teve voto nas deliberaes. E assim, graas ao famoso francs, o Brasil deixou de ser colnia. Ficou reino: dera um passo formidvel para a sua independncia.

    A BAILARINA DO TEATRO S. JOO 20 de maro de 1816. O Rio de Janeiro amanheceu lgubre. Tudo bruma e

    cinza. Bia no ar uma plangncia estranha. Bandeiras enroladas em fumo. Dorido tanger de sinos. Veludos negros tombando das varandas. Os coches carregados de crepes. No pao, onde h um borborinhante vaivm de gente, os cortesos sobem e descem as escadarias, todos de preto, protocolarmente compungidos, num grande luto. Que houve? Um acontecimento grave: morreu D. Maria I, a louca, me de D. Joo VI.

    Na Sala dos Despachos, transformada em cmara morturia, repousa o cadver da rainha. uma velha de oitenta e dois anos. As mos em cruz, muito longas e maceradas, um sorriso esvoaante gelado na boca, a morte est paramentada de grande gala. Fasca-lhe ao peito a gr-cruz de S. Tiago. Traz a tiracolo a banda da Ordem de Cristo. Traz a banda encarnada de Aviz. Envolve-lhe o

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    busto, com chocante suntuosidade, o manto real de veludo carmezim, forrado de seda branca, todo borrifado de estrelas de ouro.

    O corpo ficara em exposio. Espera-se, apenas, que D. Joo VI venha beijar-lhe as mos para franquear a

    cmara ao pblico. D. Carlota Joaquina, essa, pela manh, j viera com as filhas. A rainha D. Mana, em vida, detestara D. Carlota Joaquina. D. Carlota, por sua vez, detestara a rainha. No se toleraram nunca. Nesse dia, por mera etiqueta, D. Carlota penetrou na cmara-ardente, beijou friamente a mo da morta, virou as costas saiu sem derramar lgrima. Encerrou-se, depois, nos seus apartamentos. E nunca mais tornou a penetrar na cmara. Nem sequer desceu para acompanhar o esquife at ao coche.

    O pobre D. Joo VI, no entanto, desolara-se fundamente. Chorou como um menino, aos borbotes. Filho incomparvel, afetuosssimo, a perda da rainha lanhara-lhe o corao como uma espadeirada. E agora, naquele instante, Sua Majestade deve descer para a despedida.

    So trs horas da tarde. Os corredores esto coalhados de palacianos. Todos esperam o rei. Nisto, de luto fechado, os olhos muito vermelhos, cabelos em desordem, D. Joo aparece no salo morturIo. Vem acompanhado de D. Pedro e D. Miguel. O Conde de Parati e o Visconde de Mag, os seus validos, os dois amigos do corao, circundam-no funereamente. Ambos choram. Na cmara-ardente, de p, os vestidos lantejoulados de vidrilhos negros, a Senhora Viscondessa do Real Agrado, que camareira-mor, e D. Margarida Sofia de Castello Branco, que dona da cmara, velam com fundos respeitos o corpo real. D. Joo entra. O Marqus de Anjeja, reposteiro-mor, retira o manto que cobre a defunta. E ento, sinceramente ferido, as lgrimas a saltarem-lhe dos olhos aquele homem gordo, bochechudo, abraa desvairadamente o cadver da me. Beija-o. Beija-o longas vezes. Beija-o repetidamente, aos soluos, acabrunhado, num grande desespero comovido. O prncipe e o infante debruam-se tambm sobre o caixo: e ambos, com um sculo demorado, despedem-se da av. tocante. Mas, o Senhor Marqus de Aguiar, D. Fernando Jos de Portugal e Castro, ministro das trs pastas, suplica ao rei que se recolha. Os validos tambm suplicam-lhe que se poupe a tanta dor. D. Joo, que chora sempre, deixa a cmara morturia. Retira-se para os seus aposentos. Uma angstia cruciante rasga-lhe a alma: a nica dor sincera, a nica chaga viva que abriu a morte da louca.

    * * *

    Oito horas da noite. Trancado no seu quarto, muito inquieto, o prncipe D.

    Pedro passeia agitadamente. Tudo aquilo, aqueles lutos, aqueles corteses fnebres, aqueles coches recobertos de crepe, revira-lhe azedamente os nervos. De vez em quando, enfiando o olhar pela janela, Sua Alteza v os altos dignitrios chegarem para o beija-mo. o Cardeal Capelli, nncio apostlico, com as suas sedas escarlates; Lorde Strangford, o ministro ingls, de casaca negra, luvas, cartola felpuda de palmo e meio; o Conde de Cavaleiros, mordomo-mor, com o seu largo fito a tiracolo e a Ordem de Cristo vermelhejando na lapela; o...

    E D. Pedro, aquele belo prncipe de dezessete anos, moreno, olhos muito negros e muito romnticos, aquele moo garboso, aquele moo doidivanas e estrdio, que enche a corte com os seus estouvamentos, D. Pedro talvez o nico, na hora fnebre, que no se interessa por aquelas pompas, por aqueles crepes, aqueles lutos. O seu esprito est longe dali. A sua nsia outra. Punge-lhe um desejo estranho. Ferreteia-lhe uma vontade louca de voar, de deixar o Pao, de fugir

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    quelas tristezas, de correr para um ninho amado... Para um ninho que o espera com carcias entontecedoras. E D. Pedro, dentro dos seus aposentos, numa irascibilidade mrbida, anda, fuma, agita-se. Goteja-lhe no crebro um pensamento s. uma idia fixa, enrodilhante. No desvario duma paixo furiosa, paixo de adolescente, D. Pedro no pensa noutra coisa seno no seu amor. No aspira outra coisa a no ser o saciar aquela tortura faminta de amar e ser amado. E sozinho, naquela noite lgubre, o prncipe sonha com ela... E arde por ela... Ela por toda parte! De repente, num assomo, D. Pedro bate palmas. O criado ergue o reposteiro. Plcido Pereira de Abreu: o antigo barbeiro do Pao. a pessoa que o prncipe mais estima na corte. E D. Pedro, ao v-lo, ordena-lhe em voz baixa:

    A minha capa negra e o meu sombreiro de abas largas. Plcido sorri. E o prncipe: Voc j sabe aonde vou, no sabe? Sei! Vossa Alteza vai para o largo do Rocio. Vou! No posso mais. Aquela mulher a minha paixo... Mas, bom que Vossa Alteza se acautele, tornou o criado; bom no sair

    pela frente do Pao. H muito coche, muito escudeiro, muita gente grada que vem chegando. Vossa Alteza pode topar com muito mexeriqueiro. mais prudente que Vossa Alteza saia pelo alapo.

    Voc tem razo, Plcido. Traga-me a capa e abra o alapo. Plcido

    trouxe a capa. D. Pedro enrodilhou-se profundamente nela. Enfiou o chapu de abas largas, enterrou-o na cabea, quebrou-o nos olhos. O criado, depois de vestir o amo, recuou uma pequena mesa que havia no meio do aposento. Ergueu o tapete. Depois, com jeito, levantou um alapo disfarado no soalho. D. Pedro meteu-se por ele. Pulou no andar trreo. Era exatamente a "Sala dos Pssaros". Dai, abrindo as portas do fundo, D. Pedro precipitou-se na rua. (1)

    De preto, enrodilhado na capa negra, o vasto chapu mergulhado at s

    orelhas, o vulto misterioso esgueirou-se pelos becos escuros do velho Rio. Um ou outro lampio de azeite. Escurido espessa na cidadezinha suja. De vez em quando, passava um capoeira assobiando. Tudo mais silncio. O prncipe alcanou o largo do Rocio. Estacou diante dum sobrado. Bateu porta. Uma luz sbita jorrou l dentro. E logo, na sacada, uma voz sonora, muito orvalhada, gritou do alto:

    "Qui est-l?" E o prncipe, c em baixo, com um sussurro: Sou eu! Abra... Instantes depois, no sobrado do Rocio, D. Pedro, arremessando a capa,

    atirava-se perdidamente nos braos duma linda moa. A rapariga, fina e leve, ria-se daquela maluquice em noite to fnebre...

    Era a Noemi. Era a famosa bailarina do Teatro S. Joo.

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    Foi numa noite de gala, aniversrio do prncipe regente, que D. Pedro viu no palco, pela primeira vez, a bailarina entontecedora. Era uma francesinha de matar. Uma boneca de luxo, toda pluma frgil como um bibel. E to loira! E to fresca E dona duns olhos to grandes, to liricamente azuis! D. Pedro era um prncipe impetuoso. Tinha dezessete anos, o corao sfrego. A bailarina, a criatura pequenina e doce, fascinou-o doidamente. D. Pedro atirou-se s tontas na aventura. Noemi foi o seu primeiro amor. Foi a loucura da sua adolescncia. O moo Bragana desatinou-se. Fez tudo o que podia fazer, aos dezessete anos, um prncipe de sangue, herdeiro do trono, desbragado e estrina. Viveu com a rapariga uma vida de romance, bomia, ensartado de noitadas febrentas, com serenatas de violo e de lundus. Cobriu-a de sedas. Recamou-a de prolas. Lantejolou-a de pedrarias magnficas. Foi um estonteamento! A aventura custou-lhe uma fortuna.

    Um dia, porm, o Plcido veio despert-lo bruscamente daquela embriaguez de amor. O criado falou com severidade:

    preciso liquidar as dividas, prncipe! Vossa Alteza est encalacrado. A

    casa Phillips anda reclamando o pagamento... A coisa j vai longe! D. Pedro, com indiferena: Quanto que eu estou devendo, Plcido? fcil dizer, Alteza. Sacou um caderninho do bolso e comeou a fazer as contas: Casa Phillips... joalheiro do Pao... ourives da Rua do Piolho... modista da

    Rua do Ouvidor... modista da Ajuda... perfumista... florista... luveiro... dinheiro fornecido... Tudo somado, como Vossa Alteza v, faz onze contos novecentos e oitenta. Digamos doze contos.

    Doze contos? E, D. Pedro, estuporado, deu um salto da cadeira: Doze contos? Doze contos! E preciso pagar. Os fornecedores vivem atrs de mim. Eu

    sempre a adiar... Diabo, exclamou o moo num esbraseamento, pondo s mos na cabea;

    diabo! Onde vou eu achar tanto dinheiro? D. Pedro recebia um conto de ris por ms. Aquela bagatela mal dava para a

    tena dos seus moos da cmara, para pagar os seus criados, fazer as suas esmolas, comprar os seus cavalos. Mas, D. Joo era sovina. Um unhas-de-fome. No havia meio de sair do conto de ris. Por isso, diante da divida, diante daqueles doze contos de ris, o prncipe desnorteou-se. No sabia como desentalar-se. O Plcido comeou a sugerir planos:

    Vossa Alteza procure o Targini, tesoureiro de el-Rei, conte o que sucedeu,

    pea o dinheiro. Est maluco, Plcido? O Targini faz um barulho de cair o cu! Arrebenta o

    escndalo por a. Meu pai enlouquece...

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    Neste caso, antes de falar ao Targini, Vossa Alteza fale com um valido do Senhor D. Joo. O Visconde de Mag ou o Conde de Parati. Vossa Alteza expe o que h, pinta claramente o aperto, pede aos validos que convenam D. Joo a fornecer o dinheiro.

    D. Pedro detestava os validos do pai. Nunca lhes dirigia a palavra. Achava-os

    muito tolos e muito carolas. Dava-lhes a mo a beijar secamente. Nunca teve um sorriso para eles. Eis porque, sem vacilar, exclamou com vivacidade:

    Deus que me guarde! Eu prefiro morrer a pedir um favor queles beates.

    Aquilo gente ruim. Uns pestes! Vamos bater noutra porta... E comearam ambos, o amo e o criado, a engendrar um meio de pagar as

    dividas. O Plcido lembrou timidamente: O Pilotinho, se Vossa Alteza quisesse, emprestaria o dinheiro... O Pilotinho? Sim, o Pilotinho. Eu vou sempre molhar a goela, na bodega do homem; e o

    homem, cada vez, no se esquece de me dizer: "oh! Plcido, v se arranjas um jeitinho de eu me encaixar nas boas graas do Pao. Tu s to amigo l do Prncipe..." Ora, como Vossa Alteza sabe, o Pilotinho rico. Uma palavra de Vossa Alteza zs esto aqui os doze contos de ris...

    D. Pedro era um estrina. Um doidivanas completo. No refletiu um instante no

    disparate daquele alvitre. Pedir emprestado dinheiro ao Pilotinho era para D. Pedro to natural como pedir emprestado a D. Joo VI. E o prncipe agarrou-se idia:

    Bravos! No h que discutir. Corra a casa do Pilotinho e traga-me aqui o

    homem com os doze contos. O Plcido saiu. Joaquim Antnio Alves, o Pilotinho, era um p-de-chumbo rico, bodegueiro na

    rua dos Barbonos. O dinheiro dera-lhe prestgio. E o homem andava faminto por doirar aquele prestgio com amizades vistosas, que o honrassem. O Plcido contou-lhe o que havia. Transmitiu-lhe o pedido do prncipe. O bodegueiro abriu dois olhos fuzilantes! Correu para dentro, vasculhou uma empoeiradssima arca, empacotou um monte de notas, veio num aturdimento para o Pao. O Prncipe, ao v-lo entrar, recebeu-o com bulhento alvoroo. Pegou no dinheiro, fechou-o no contador, virou-se esfuziante para o p-de-chumbo:

    Voc amigo, Pilotinho! Voc um grande amigo! Tome l... E abraou-o. Abraou-o com uma larga ternura comovida. O Pilotinho, o tosco

    bodegueiro, para receber do herdeiro do trono um abrao assim to quente, to apertado, no emprestaria apenas aqueles misrrimos doze contos: daria ao prncipe toda a sua fortuna...

    A aclamao de D. Joo VI foi um deslumbramento. A mais soberba festa que a Colnia vira at ento. Aquele rei burgus, aquele homem bonacheiro e gordo, empenhara-se com alma, rasgadamente, para que seu grande dia tivesse um brilho nico, estonteante, No houve poupana. Targini. o tesoureiro de el-Rei, abriu os

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    cofres atulhados de barras de ouro E foi um gastar profuso, um enfeitar, um cobrir de luxos desmedidos aquele pobre Rio de 1816.

    So trs horas da tarde. A Varanda Real cintila. um pavilho imenso, suntuosssimo, que Joo da Silva Muniz, arquiteto do Pao, sob o olhar vigilante do Baro do Rio Seco, construra exclusivamente para o ato supremo. Faiscam dentro dele atavios rgios. Toda a aristocracia da corte, a mais alta, a de sangue mais limpo, borborinha por entre os capitis dourados. Nas tribunas, de onde jorra uma crua faiscao de jias, papagueiam risonhamente as damas, os decotes branquejando entre rendas e gazes, os altos trepa-moleques de ouro cravados nos cabelos em coque. L est na tribuna de honra, que de seda rosa, toda broslada de arminhos, a Senhora D. Carlota Joaquina, muito empoada, plos ruivos na cara spera, sentada triunfalmente entre as quatro princesinhas.

    De repente, pelo ar festivo, rompem as charamelas. A corte inteira, ao toque eletrizante, ergue-se com nsia. Os olhares todos cravam-se vidos na entrada. O Porteiro Real escancara as portas. E o cortejo magnfico surge. Que belo! frente, com as grossas maas de prata ao ombro, vm os Porteiros da Cana. Depois, o Rei-d'Armas, com o seu vistoso capacete empenachado. Seguem-se os dois Arautos, com as longas trompas de ouro. Finalmente os Passavantes cobertos de ferro, as couraas de escamas refulgindo. O Alferes-Mor empunha a Bandeira Real enrolada na haste. E o squito passa. So os Moos da Cmara, so os Moos Fidalgos, so os Grandes do Reino, so os Bispos, Toms Antnio Vila nova Portugal, Ministro e Secretrio de Estado.

    Enfim, o Rei. Sua Majestade tem direita o Prncipe D. Pedro, herdeiro do trono,

    descoberto, um largo fito a tira-colo. esquerda, servindo de condestvel, o Infante D. Miguel trazendo na mo um estoque desembainhado. E D. Joo VI entra. A Varanda Real freme, sacudida. L fora, uivando, O povo delira. E uma atroada louca, ribombos de canho, morteiros, sinos bimbalhantes, charangas enchendo os ares de marchas estrepitosas. O Rei est soberbo. a primeira vez que os vassalos o vem com todas as galas da realeza. Faiscam-lhe ao peito as insgnias de suas ordens. Pende-lhe do pescoo o colar do Toso de Ouro. Tomba-lhe dos ombros, com a mais grandiosa magnificncia, o manto real. riqussimo, de veludo carmezim, bordado a fios de ouro, semeado de castelos e quilhas, apresilhado por dois imensos broches de diamantes que fuzilam, fulgurantissimos. O Conde de Parati, no oficio de camareiro-mor, carrega a cauda do manto. Sua Majestade avana rutilando at a um alto estrado. Ai, sob largo dossel de damasco, est armado o trono real.

    O Marqus de Castelo Melhor, reposteiro-mor, retira o damasco que o cobre. O Conde de Parati entrega a Sua Majestade o cetro. D. Joo senta-se. Os cortesos, de acordo com seus cargos, espraiam-se pela Varanda. Ao lado do trono, atendendo o Rei, ficam o Marqus de Torres Novas e D. Nuno Jos de Sousa Manuel, gentis-homens honorrios. Em frente, hirto e solene, o Ministro do Reino. Depois, o Marqus de Anjeja, que serve de mordomo-mor. Vm aps os seis Bispos. Depois, os Grandes do Reino. Depois, os Titulares. Depois, o Senado da Cmara. Depois, a Mesa do Desembargo do Pao. Depois, a Casa da Suplicao. Depois...

    H um instante de silncio. O Ministro de Estado faz um sinal ao Rei-d'Armas. O Rei~d'Armas avana at ao meio do Salo. Curva-se diante de Lus Jos de Carvalho e Melo, ilustrssimo Desembargador do Pao. O Desembargador levanta-se, atravessa a Varanda, posta-se em frente ao Monarca. O Rei-d'Armas brada com retumbncia:

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    Ouvide! Ouvide! Ouvide! Estai atentos... E Carvalho de Meio, diante do trono, sob um silncio grave, declama a fala do

    protocolo. rpida. Meia dzia de frases rituais. E logo, terminada a arenga, o Marqus de Castelo Melhor coloca diante de Sua Majestade uma pequena mesa recoberta de veludo verde. a hora do "Juramento Real". Momento supremo. D. Jos Caetano, o Bispo-Capelo, recebe do mestre de cerimnias o missal e o crucifixo. Deposita-os sobre a mesa. Ajoelha-se. O Bispo de Azoto, Prelado de Gois, e o Bispo de Leontpolis, Prelado de Moambique, testemunhas do grande ato, ajoelham-se tambm. O ministro do Reino, nesse momento, curva-se diante do trono: Sua Excelncia suplica a el-Rei que jure. D. Joo levanta-se. Passa o cetro para a mo esquerda. Ajoelha-se numa vasta almofada acairelada de ouro. Estende a mo direita sobre o missal e o crucifixo. E solene, com uma lentido majestosa, debaixo do olhar sfrego da corte, el-Rei presta o juramento sagrado:

    Eu, Joo, Rei de Portugal, do Brasil, dos Algarves, juro... E repete, palavra por palavra, a frmula sacramental que o Ministro do Reino

    vai lendo em alta voz. Est acabado o juramento. D. Joo torna a sentar-se no trono: est definitivamente Rei.

    Principia, ento, com as mais severas etiquetas, uma outra cerimnia. Cerimnia das mais srias e significativas: o juramento de "Preito e Vassalagem a el-Rei". O primeiro que jura o Prncipe Herdeiro. Em seguida, o Infante D. Miguel. Depois, segundo as suas hierarquias, o Ministro do Reino, os Bispos, os Desembargadores, os Grandes, os Titulares, a Nobreza. D. Joo, do alto do trono, recebe com um sorriso o juramento dos cortesos. Quando o desfile finda, cessado aquele burburinhar de gente, o Alferes-Mor desenrola a bandeira real. E festivamente, em altas vozes:

    Real, Real, Real, pelo muito Alto e muito Poderoso Senhor D. Joo VI,

    Nosso Senhor! Toda a corte prorrompe num brado s, entusiasticamente: Real, Real, Real! E estrugem as msicas, largo vozerio, H uma alegria desordenada pela

    Varanda. O Alferes-Mor, com a bandeira desenrolada, grIta em meio do tumulto: Alas! Alas! Todos abrem alas. O Alferes-Mor embarafusta-se por entre as alas abertas.

    Vo-lhe frente os Porteiros da Cana, o Rei-d'Armas, os Arautos, os Passavantes. E o prstito a passo lento, aproxima-se do balco que d para o Terreiro do Pao. Ali, na sacada, diante de todo o povo, o Rei-d'Armas brada retumbante:

    Ouvide! Ouvide! Ouvide! Estai atentos.,. H um relmpago de silncio. O

    Alferes-Mor lana a bandeira real ao vento. E com ufania, a pulmes plenos, berra para a massa:

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    Real, Real, Real, pelo muito Alto e muito Poderoso Rei D. Joo VI, Nosso Senhor!

    Que delrio! O povo desanda em gritos. Atroa o Terreiro do Pao uma

    algazarra bravia, Repiques de sinos sacodem o ar As fortalezas estrondam. Fogos de artifcio japonizam o cu.

    Debaixo da baruheira, rindo-se, o ar de glria e festa, D. J0o ergue-se E todo aquele bando suntuoso ondeia. L vai a caminho da Real Capela. A, sobre um troneto, rutilando de luzes, h. uma relquia do Santo-Lenho. El-Rei ajoelha-se. A corte inteira ajoelha-se. Sua Majestade beija a relquia. Levanta-se. E enfim, majestosamente, senta-se no trono real, armado ao lado do altar. Rompe, no coro, a msica de Marcos Portugal. Comea o 'Te-Deum"...

    * * *

    A Capela Real abriu-se para o povo. Grossas ondadas de gente inundaram

    subitamente a nave. A igreja fervilhou. No cabia dentro dela um alfinete. Todo o mundo queria ver o Rei!

    L de cima, do alto duma tribuna, o Conde de Parati contemplava risonhamente aquele burburinho. De repente, com espanto, o corteso deu de chofre com uma rapariga loira, muito linda, que cravava olhos sfregos no trono. Era a Noemi, a bailarina do Teatro So Joo. A moa sorria. O Conde de Parati virou-se rpido: ao lado do trono, desempenado e belo, D. Pedro fitava impavidamente a moa. E, por seu turno, diante da Corte, acintoso e chocante, mandava-lhe um sorriso escandaloso. O Conde de Parati, acotovelando o Visconde de Mag, murmurou baixinho:

    Veja aquilo, Visconde! a paixo, meu amigo! a paixo que faz daquelas coisas... E o Mag, apagando a voz, num cicio: Vossa Excelncia j sabe o resultado desses amores, no sabe? O resultado desses amores? No sei... Que diz? E misterioso, bem ao ouvido do amigo: Saiba, meu Caro Parati, que a francesinha vai ser me... O Conde de Parati olhou pasmado para o Visconde de Mag. Os seus olhos

    fuzilaram: Vossa Excelncia est certo disso? Absolutamente certo! Contou-me o Plcido. E o Plcido, como Vossa

    Excelncia bem sabe, o amigo mais ntimo do prncipe... O Conde de Parati calou-se. Aquilo era muito srio. O escndalo mais

    atordoante que poderia estourar aos ouvidos de D. Joo. que agora, exatamente naquele momento, el-Rei tratava do casamento do filho. O Marqus de Marialva j andava pela Europa a sondar as casas reinantes. Parece que a da ustria...

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    Imagine-se um pouco se D. Pedro, aquele estrdio, aquele prncipe estourado, perdido de paixo como andava, cometesse a loucura de casar-se s escondidas com a bailarina. Que complicao! E o Conde de Parati, muito apreensivo:

    Essa aventura do prncipe, meu caro Visconde, pode ter conseqncias

    brutais. preciso que D. Joo saiba de tudo, no acha? preciso! Vossa Excelncia presta a el-Rei um altssimo servio, contando

    o que se passa. um caso grave. Tem razo, Visconde! um caso grave. Amanh, el-Rei saber de tudo... No outro dia, ainda nos seus aposentos, D. Joo ouviu do Conde de Parati os

    pormenores das maluquices do prncipe. O Monarca arregalava os olhos, estuporado: Doze contos? Pois o prncipe j gastou doze contos nisso? Doze contos, Majestade. Dinheiro esse que pediu emprestado ao Pilotinho. Ao Pilotinho? O bodegueiro da Rua dos Barbonos? Mas, incrvel. Esse

    rapaz um louco! Esse rapaz me mata de vergonha! Veja que papel, meu amigo! Pedir dinheiro ao Pilotinho! Um prncipe!

    E assim, trancados nos aposentos, el-Rei e o valido conversaram

    longamente. Que que decidiram? Ningum o soube. Apenas, ao sair, o Conde de Parati afirmou:

    Vou providenciar os papis para hoje mesmo. Amanh, quando a corveta

    partir, levar os dois... E saiu. Decerto, o Conde de Parati preparou os papis. Pois, no dia seguinte,

    seriam onze horas, o ntimo de D. Joo apareceu no Largo do Rocio. A bailarina espantou-se imensamente:

    Vossa Excelncia, Senhor Conde? Eu mesmo, Senhora Noemi. El-Rei mandou-me aqui para pedir que Vossa-

    Merc v comigo at ao Pao. El-Rei? El-Rei... A ordem era estranha. Havia nela qualquer coisa de mistrio. Mas, que fazer?

    A francesinha no pde recusar. Vestiu s pressas o seu vestido rodado, cor de pinho, enfiou as luvas, ps o chapeuzinho de pluma branca. E saiu saltitante, pequenina, pisando leve como um passarinho. D. Joo recebeu-a com afabilidade. Fez-lhe um agradinho paternal no queixo. E logo, sem mais rodeios, esfregando os dedos, com o seu riso amarelo:

    Mandei cham-la, minha filha, para dar-lhe uma ordem. Uma ordem que necessrio ser cumprida risca: a menina tem de retirar-se hoje mesmo da Corte...

    Eu? Sim, minha filha; Vossa-Merc! Mas, eu no quero que a menina, depois

    dessa aventurazinha que teve com o prncipe, se v embora ao desamparo, sem dinheiro, sem ter pessoa alguma que a ajude. Longe de mim tal coisa! Eu resolvi, por isso, que Vossa-Merc se case. Dou-lhe para marido o tenente da minha guarda.

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    um rapago bonito, um belo moo da ilha Terceira. Nomeei-o para um ofcio de Pernambuco. Um oficio de primeira ordem, que rende oitocentos mil ris...

    A moa ouvia aparvalhada. Aquilo esmagava-a. No sabia o que dizer. E D.

    Joo continuava, esfregando os dedos, rindo aquele risinho amarelo, muito dele: J dei ordem para que o meu Tesoureiro leve a bordo a quantia de seis

    contos de ris. uma ajudazinha para o enxoval do beb que vai nascer. Ordenei mais que entregue a Vossa-Merc cinco contos. Isso uma lembrana minha: um dote para Vossa-Merc. A Rainha, ao saber do caso, tambm mostrou muita simpatia pela menina. Mandou, por sua vez, que lhe desse um conto de ris. E ordenou ao guarda-jias que lhe entregue a Vossa-Merc um anel de ouro, com uma bonita pedra. para Vossa Merc depositar esse mimo no bero do seu filhinho, no dia em que for batizado...

    Noemi compreendeu tudo. Sentiu bem a inutilidade de qualquer oposio. Era

    baldado resistir. El-Rei podia fazer tudo o que quisesse. A bailarina viu ntida a sua catstrofe. Fincou soturnamente os olhos no cho; e as lgrimas, em fios, comearam a despencar-lhe pelas faces...

    Os papis do casamento j esto prontos, continuou el-Rei. Vamos realiz-

    lo, menina. E virando-se para o Conde de Parati: Chame o padre, Conde. E traga tambm o noivo. Esto ambos no Salo dos

    Despachos... Nessa tarde, quando a corveta largou ferro, a bailarina do Teatro S. Joo

    precipitou-se como louca no seu beliche. Atirou-se entre os almofades do leito. E ai, durante toda a noite, abafando os soluos, a rapariga chorou num desespero.

    Que lua de mel!

    * * * D. Joo acabara de jantar. Comera os seus trs franguinhos. Comera-os com

    os dedos, enlambuzando-se, atirando os ossos ao cho. O infante D. Miguel correu ao aparador e trouxe a bacia com o jarro de prata. O prncipe D. Pedro ergueu o jarro, despejou a gua, ofereceu a toalha ao Rei. D. Joo lavou-se, enxugou as mos, fez o sinal da cruz. Depois, feliz e bonacheiro, enlaou o brao no brao do Conde Parati:

    Vamos dar graas a Deus, Conde. E partiram para o oratrio. D. Pedro, livre do protocolo, correu ansioso ao seu apartamento. Que

    alvoroo! O corao batia-lhe descompassado. Era o momento de partir para o Largo do Rcio...

    Naquela tarde, porm, mal o prncipe entrou, o Plcido, assustadssimo, surgiu como um fantasma diante dele. D. Pedro estranhou aquela fria:

    Que isso? Vossa Alteza ainda no sabe?

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    Voc est louco, homem! No sabe o qu? Vossa Alteza no sabe o que aconteceu a Noemi? D. Pedro agarrou forte nos ombros do criado. Sacudiu-o violentamente: Noemi? Pois Vossa Alteza no sabe? A menina partiu hoje para Pernambuco... Para Pernambuco? Sim, Alteza. Na corveta que acaba de sair do porto. Imagine Vossa Alteza

    o que aconteceu: D. Joo obrigou a pobre rapariga a casar-se com o tenente da Guarda. Deu-lhe cinco contos de dote...

    E desembuchou tudo. D. Pedro fremia. Os seus nervos estalavam. Os olhos

    ardiam-lhe, febrentos. Aquilo desordenara-o. Era doloroso como um punhal que lhe entrasse pelas carnes. Eis que o prncipe, no seu atordoamento, comea a tremer. De repente, sem saber como, uma nuvem passa-lhe pelos olhos. As rbitas dilatam-se-lhe. Uma sbita rigidez penetra-lhe os msculos. A boca espumeja-lhe, sangrenta. E D. Pedro desaba pesadamente no cho.

    Era o ataque.

    * * * Seis meses depois, em Pernambuco, morria a filha da bailarina. O General

    Lus do Rego, que governava a Provncia, ordenou para a bastardinha funerais de princesa. Houve grande luto oficial. No se pejou o general em lanar mo de to acintosa sabujice para ganhar o corao do herdeiro do trono. A criana foi embalsamada. Veio para o Rio. E dizem que D. Pedro, durante anos, guardou na Cmara dos Pssaros, debaixo do alapo, o cadaverzinho adorado, relquia fnebre da sua grande paixo da mocidade.

    O CASAMENTO DE D. LEOPOLDINA

    As negociaes diplomticas terminaram com xito: assentou-se,

    definitivamente, que o Prncipe D Pedro de Bourbon e Bragana, herdeiro do trono de Portugal, do Brasil, e dos Algarves, casar-se-ia com D. Maria Leopoldina Josefa Carolina, filha de Francisco I, grande Arquiduquesa da ustria. Faltava, apenas, solenizar o ajuste secreto dos gabinetes. Saram do Rio, nesse sentido, ordens srias para o Embaixador em Paris. As ordens eram de partir sem tardana para Viena: e a, diante da corte austraca, em nome de el-Rei pedir publicamente a mo da arquiduquesa. D. Joo ordenou, pelo mesmo correio, que as etiquetas dos esponsais tivessem um brilho nababesco.

    A aliana com a ustria embebedara-o de gosto. E o rei desterrado, aquele rei gordo e burgus, timbrara vaidosamente em estadear, ante a aristocracia faustosa de Viena, a grandeza da sua casa e a opulncia dos seus reinos.

    O Embaixador em Paris era Pedro Joaquim Vito de Menezes Coutinho, o fidalgussimo Marqus de Marialva, um dos sangues mais nobres e mais limpos da Pennsula. Marialva recebeu as ordens como honra suprema. Aquela misso de galantaria, envaidecedoramente elegante, vinha dourar com refulgncia os seus velhos brases, j to famosos na histria da graa e da cortesanice. O fidalgo

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    magnfico aprestou-se com pompas rgias. Circundou-se dum aparato Buckingham. Gastou desordenadamente, como um raj. E um dia, enfim, cercado de equipagens brilhantssimas, sonhando aureolar o seu nome com a mais retumbante glria mundana, o Embaixador Extraordinrio enfiou as suas berlindas douradas pela estrada real. E partiu estrondosamente para Viena.

    EM VIENA

    A entrada do Marqus de Marialva fez poca. Ainda no se vira, na ustria,

    embaixada mais luzida e mais ribombante. Nem a de Napoleo Bonaparte, quando mandara buscar Maria Lusa, tivera riquezas to fericas. A Corte Imperial, para corresponder aos atroantes deslumbramentos de Marialva, ataviou-se com luxos desmedidos. Foi um rebolio, uma loucura, formidveis requintes de elegncia.

    o dia 17 de fevereiro de 1817. Um sol de ouro, estilhaante. Alegrias derramadas em tudo. Viena esplende de louanias. O povo coalha as ruas profusamente embandeiradas. Vai pela multido um fremir ansioso. Todo o mundo quer ver o cortejo. De repente, no ar sonoro, retumbam clarins. Rufar de caixas. Estronda no lajedo um patear spero de cavalos. Rompem, de todos os lados, gritos vidos:

    o embaixador! o Embaixador! o Embaixador Extraordinrio de Portugal. Sua Excelncia, o Senhor

    Marqus de Marialva, que entra espaventosamente em Viena. E o squito surge. Que galas! frente, rompendo a marcha, vm dezessete carruagens. Vm tiradas a seis, escudeiro de lado a lado, librs acaireladas de ouro. So as carruagens dos prncipes e magnatas da Corte Imperial, comissionados de receber, alm das portas, a embaixada do rei portugus. Logo aps, com uma opulncia de embasbacar, passa o squito do esplendidssimo fidalgo.

    Era de v-lo! Setenta e sete homens rutilantemente agaloados. Todos criados e pajens. Montam ginetes rabes, muito negros, que trazem arreios de prata e telizes de veludo com largas bordaduras de ouro. Rebrilham por tudo, em relevos fortes, as armas dos Marialvas. fascinante!

    Seguem-se, depois, numa clareira, dois coches dourados. Faiscam nas portinholas as armas imperiais da ustria. Num deles, no coche de gala, senta-se gloriosamente, olimpicamente, alvo de todos os olhares, o Embaixador Extraordinrio de D. Joo VI. Ao lado de sua excelncia, em nome de Francisco I, o estribeiro-mor da Casa Imperial. No outro coche, que mais singelo, vai o Secretrio da Embaixada, aprumado e refulgente. Ao lado do Secretrio, s ordens dele, um camarista do Imperador austraco. Ao depois, vazias e graves, rodam as berlindas em que jornadeara o Marqus. Que berlindas! Que riquezas atordoantes! Vm numa seis cavalos castanhos com arreios de prata. Vm noutra seis cavalos brancos com arreios de ouro. Ambas levam um cocheiro, um sota, um moo de estribeira, catorze criados a p. Tudo soberbamente equipado!

    O povo freme, eletrizado. Reboam palmas. Estrondam vivas. uma apoteose! Enfim, fechando o squito incomparvel, desfilam as carruagens do embaixador da Espanha, do embaixador da Inglaterra, do embaixador da Frana.

    Assim, com essa pompa de prncipe oriental, deslumbrando, sob o delrio da turba, Marialva seguiu at sede da embaixada portuguesa, onde se alojou.

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    No outro dia, com protocolos severssimos, o Palcio Imperial abriu-se para receber o enviado de D. Joo VI. Francisco Leopoldo, na sala do trono, revestido do manto real, recebeu diante de toda a Corte o gentil-homem magnfico.

    O Embaixador entra. Seguem-no equipagens rutilantes. A corte abre alas. Alto e moreno, desse belo moreno peninsular, olhos romnticos e negros, Marialva, com o peito chispando de insgnias, rompe orgulhosamente por entre os palacianos. Curva-se diante do trono. Beija a mo augusta do Imperador. Depois, solene e teatral, suplica a Francisco I, o mui alto e poderoso senhor dos Reinos da ustria e da Hungria, em nome de D. Joo VI, o muito alto e poderoso senhor de Portugal, do Brasil e dos Algarves, a graa de conceder a mo da Serenssima Arquiduquesa, Maria Leopoldina Josefa Carolina, ao Serenssimo Prncipe D. Pedro de Bourbon e Bragana, herdeiro do trono.

    Francisco I ouve. Depois, com singeleza, responde, do alto trono, que tem glria e honra em conceder a mo de sua filha ao filho do Primo e Rei.

    Marialva curva-se de novo. Beija a mo do Imperador. E retira-se incontinenti do Palcio Imperial: est ajustado o casamento de D. Pedro e D. Leopoldina.

    O CASAMENTO Francisco I designara gentilmente o dia 13 de maio, aniversrio de D. Joo VI,

    para a realizao do casamento da filha. E enquanto, em Viena, ia uma lufa-lufa de preparativos, a notcia do ajuste, no Brasil, tinha uma repercursso ruidosa. D. Joo comemorou-a com festas. Decretou gala na Corte. Deu beija-mo ao corpo diplomtico. As fortalezas embandeiraram-se Salvas reais, repiques de sino, foguetrio. noite, no Teatro S. Joo, houve espetculo de honra. El-Rei compareceu em pessoa. A multido ovacionou com delrio a futura Princesa. Foi uma noite alegrssima.

    Certo dia, por um paquete ingls chegado de Falmouth, desembarcou no Rio o Conde de Wrbna. Era o Mordomo-Mor do Imperador austraco. Vinha especialmente de Viena, como mensageiro de Francisco I, trazer a D. Joo VI a notcia oficial de que se realizara, com grandes pompas, o casamento do Prncipe e da Arquiduquesa. E o Conde Wrbna contou, com mincias, o que foram essas pompas. Que maravilha!

    o dia 13 de maio. Oito horas da noite. A capela do Palcio Imperial rebrilha. A corte austraca, alvoroada e sfrega, acorreu garridamente cerimnia retumbante. H um forte dardejar de pedrarias. Branquejam decotes estonteantes. Ruge-ruge de sedas. Fuzilam insgnias nas casacas verdes. Muitas casacas verdes. O Senhor Marqus de Marialva, rodeado pelos nobres do seu squito, atrai, como um foco, os olhares de toda a Corte. A suntuosidade do Embaixador estonteia. Ultrapassa tudo o que j se viu em Viena.

    De repente, na Capela Imperial, soa uma trompa de ouro. O Reposteiro-Mor levanta a tapearia de veludo. Os cortesos abrem alas respeitosas. O Imperador e a Imperatriz da ustria entram. Trazem a noiva. D. Leopoldina vem toda de branco. Est deslumbradora! O seu vestido um poema de rendas de Bruxelas. Fasca nele, orvalhando-o de luzes, uma pedraria imensa. Tomba-lhe da fronte, como uma cascata de espumas, a grinalda finssima, apresilhada nos cabelos por fuzilante diadema de pedras brasileiras, mimo do noivo. A cauda tem cinco metros. Sustm-na oito damas de honor. Todas em grande gala, fulgurantes, com enormes "bales" de seda rosa broslados de arminhos. encantador!

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    Ao lado da noiva, magnfico na sua casaca preta, luvas brancas, brilhantes chispando no peitilho rendado, vem o Arquiduque Carlos. Sua Alteza representa o noivo. E ambos, sob a msica aristocrtica de Haydn, debaixo de ptalas de rosas, que tombam num chuveiro, encaminham-se at ao altar. Ento, no vasto silncio que se fez, Sua Eminncia, o Cardeal Camerlengo, assistido por quatro Bispos, realiza o casamento. A grandiosidade do ato eletriza a todos. O Imperador est comovidssimo. A Imperatriz chora.

    Nessa noite, por entre jbilos fragorosos, Viena inteira iluminou-se. A cidade estrugiu debaixo da mais frentica atoarda de festa. E enquanto, nas ruas, o povo bramia de entusiasmo, l dentro, no Palcio Imperial, festejando o acontecimento altssimo, Francisco I, oferecia Corte, na Sala dos Espelhos, o grande jantar de gala.

    O BAILE DE MARIALVA O Marqus de Marialva deu um baile em honra de sua Princesa. Foi um dos

    bailes mais culminantes da Europa. Acontecimento imorredouro nos fastos da diplomacia galante. Marialva arruinou-se com ele. No se contentou em gastar as grossas ordens que vieram de D. Joo: dissipou nessa festa toda a herana que herdara do pai.

    O grande fidalgo, desde a sua chegada triunfal, aturde a Corte da ustria, ento a corte mais faustosa do mundo, com as suas esbanjadas magnificncias de nababo. E com uma prodigalidade torrenciosa, novo Buckingham, o embaixador derrama s mos cheias por todo o Pao, desde Metternich at o ltimo dos camareiros, presentes de opulentissima suntuosidade, punhados de diamantes, soberbos fios de prolas, pedras de toda cor, pilhas de barras de ouro.

    Para o baile, esse baile nobre, gentilssimo, em que empenhara com alma a sua reputao de homem mundano, Marialva cometeu loucuras incrveis. Verdadeiras fantasias de rei oriental! Mandou construir pavilhes riqussimos nos jardins de Rugarten. Recheou-os de mveis italianos da Renascena. Decorou-os com tapearias velhssimas, "gobelins" raros, assinados Lebrun. Cobriu-os de sedas e de damascos. Estrelejou-os de lustres de cristal. Inundou-os de quadros e de mrmores. E, enfim, com aquelas grandezas de espantar, o gentil-homem abriu os seus sales para a. festa nica. E recebeu, na noite memorvel, a corte inteira de Viena. A Duquesa de So Carlos, embaixatriz de Espanha, mulher do clebre Duque de So Carlos, amigo ntimo do rei, fez as honras da casa.

    s nove horas, ao som do hino, entraram os Imperadores. Vieram com Suas Majestades todos os Arquiduques e todas as Arquiduquesas. Vieram tambm o Prncipe Real da Baviera e o Duque de Saxe. Metternich, com o fardo recamado de crachs, compareceu em grande gala. Os pavilhes borborinhavam. Tranavam por eles os nomes mais altos da ustria. Rompeu o baile a Senhora D. Leopoldina. Sua Alteza danou uma polonaise com o Senhor Marqus de Marialva. Os monarcas no danaram. Mas, Suas Majestades felicitaram rasgadamente o Embaixador pelo deslumbramento da festa. Aquilo era um conto de fadas! Metternich dizia a todo momento, alto, derramando olhos tontos por aquele faiscar:

    Mas uma festa das mil e uma noites! uma festa das mil e uma noites!

    * * *

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    As onze horas, serviu-se a ceia. Marialva sentou-se com os Imperadores mesa da famlia real. Havia quarenta talheres. E toda a baixela desse servio, gravada com as armas dos Marialvas, era de ouro macio. Os demais convivas espalharam-se em pequenas mesas. Foram todos e eram mais de mil! servidos em baixelas de prata. Os Imperadores retiraram-se s duas. O baile continuou at ao amanhecer. Custou, nesses velhos tempos, mais de um milho de florins! E Marialva, num gesto muito seu, ofereceu no dia seguinte, aos pobres de Viena, os pavilhes com todas as maravilhas que l havia. No retirou deles uma nica alfaia.

    A PARTIDA

    Dias aps, dentro dum coche dourado, partia D. Leopoldina para Liorne, onde

    a aguardavam as naus de D. Joo VI. Em Florena, espera de Sua Alteza, chegara o Marqus de Castelo-Melhor, vindo especialmente do Brasil para receber a noiva. Tambm j l estavam o Prncipe de Metternich e o Marqus de Marialva. O Gro-Duque de Toscana, cunhado de D. Leopoldina, recebeu-a com grandes brilhos. Hospedou-a no Palcio Pitti. E nessa mesma noite, no salo nobre do velho Palcio, o Gro-Duque reuniu a Corte numa solenidade de gala. E a, com muitos ritos, entregou protocolarmente a Arquiduquesa, em nome de Francisco I, ao Marqus de Castelo -Melhor, o enviado de Joo VI.

    A comitiva, luzida e bela, partiu na manh seguinte para Liorne. No porto, muito airosa, ancorava nau "D. Joo VI" que devia conduzir Sua Alteza ao Brasil. D. Leopoldina embarcou. Acompanhavam-na o Marqus de Castelo Melhor, o Conde de Louz e o Conde Penafiel. A princesa escolheu como camareiras, para servirem-na, a Condessa de Huembourg, a Condessa de Berentheim, a Condessa de Londron, todas damas da Corte austraca. Comboiava a nau "D. Joo VI" uma corveta de guerra. Era a "So Sebastio". Vinha nela o Conde de Eitzi, como Embaixador Extraordinrio de Francisco I, escudando a Princesa at a Amrica.

    * * *

    Assim, na Astri, realizou-se um dos mais estrondosos casamentos que j viu

    o mundo. Mas, o brilho espaventoso das festas no se apagou em Viena. Repercutiu tambm no Brasil. Que que fez a Corte do Rio para receber a mulher do Prncipe herdeiro?

    A CHEGADA Do Arsenal de Marinha, vistosamente embandeirado, parte a galeota do rei.

    Vai nela a Famlia Real. D. Joo VI viera com o fato novo de pano ingls e a grossa bengala de casto de ouro. D. Carlota pusera o vestido rodado, cor de prola, e o seu famoso trepa-moleque de safiras. D. Pedro embarcara, fremindo. Os seus olhos fuzilavam. O corao batia-lhe aos saltos.

    E a galeota, com seus bigodes de espuma, fura a ondada mole, rumo dos barcos que entram. Estaca. Na nau "D. Joo VI", com os seus uniformes de veludo e prata, os marinheiros estendem-se em continncia. Tomba a escadinha de bordo. Rompe o hino. E D. Leopoldina, varando a ponte, surge ante os olhos da Famlia Real. Sua Alteza vem acompanhada pelo Marqus de Castelo-Melhor. Desce com

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    majestade do tombadilho. Salta airosamente para dentro da galeota E ali, na baia azul, sob o cu brasileiro, D. Leopoldina precipita-se aos ps dos soberanos. D. Joo ergue-a carinhosamente. Beija-a na testa:

    Minha filha! D. Carlota toma-a nos braos. Aperta-a. Beija-a longamente. Depois... Depois

    o momento curioso. Nada mais galante. D. Joo, com um gesto, apresenta D. Leopoldina a D. Pedro:

    Minha princesa, eis ai o teu prncipe! Os dois fitam-se. Sorriem. E na galeota, sob a curiosidade brejeira dos

    tripulantes, o prncipe e a princesa beijam-se na face. D. Pedro moo formoso. Com os seus dezoito anos, sadio e desempenado, com o seu moreno tropical, os seus olhos negros e enormes, o prncipe um galhardo tipo de homem, um mancebo varo nu e sedutor. D. Leopoldina devora-o com os olhos. Toda ela ri! E afagando a mo do noivo, com ternura:

    Mein liebling! E D. Pedro, radiante, num enlevo: Minha princesa! Na galeota, com grandes ansiedades, esvoaam logo as perguntas. E a

    travessia? E a sade? E a nau? D. Leopoldina responde. E sorri. E papagueia. Sua Alteza fala em francs. s vezes por mera caoada, tenta um portugus cmico;

    "Prrazil mui linda! Mui linda"! E aponta as montanhas, a baa crespa, o cu, todas as embebedantes

    maravilhas do Rio. Durante meia hora, foi um grulhar amistoso. A galeota encheu-se dum alvoroo quente. Uma alegria! E assim, dadas as boas-vindas, combinou-se o desembarque para o dia seguinte. D. Joo marcou a hora. E D. Leopoldina ergueu-se. Beijou a el-Rei. Tornou para a nau. D. Carlota e D. Pedro acompanharam-na at ao tombadilho.

    OS ENFEITES E OS ARCOS D. Joo alindou a sua cidadezinha com atavios de gala. Enfeitou tudo com

    garridices vistosas. O pobre Rei timbrou em receber a nora com luzimentos nicos. No cais, em frente ao Arsenal de Marinha fez construir uma vasta ponte de madeira que avanava pelo mar. A princesa poderia desembarcar ali com mais comodidade. Alcatifou-se a ponte com tapetes carssimos. Cobriram-se os corrimos de panos de Arrs. Ergueu-se, logo entrada, um pavilho soberbo, muito berrante, onde se viam, em cores fortes, as armas de Portugal e da ustria. Quatro guias enormes seguravam nos bicos festes de folhagem que tombavam baloiantes. Por toda parte, onde devia passar o squito, houve um esbanjar de aprestos. Areia branca,

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    folhas esparzidas, ptalas de rosa por todo o cho. Os monges de S. Bento alegraram de sedas ruidosas as fachadas do seu mosteiro. No houve casa, no itinerrio, que no se enfaceirasse. Eram colchas da ndia, tapearias nas varandas, cortinas, veludos colgados parede. Um esplendor! Na Rua Direita, deslumbrando, ergueram-se trs arcos. Foram a grande maravilha decorativa. A maior suntuosidade dos festejos. Os jornais falaram deles com louvores rasgados. Um, o "Arco Romano", era oferecido pelo Comrcio. Fora concebido e realizado por Grandjean de Montigny e por Debret, os dois grandes artistas que o Conde da Barca mandara vir da Frana. Era um arco magnfico, com cinqenta palmos de altura, sustentado por oito colunas dricas tendo no pedestal os smbolos do Rio de Janeiro e do Danbio. Um trazia as quinas e castelos de Portugal; outro, as guias imperiais. Sobre cada um a legenda: "Januarius" "Danubius". Havia baixos-relevos de grande efeito. Dum lado, a Europa e a Fama: uma tocava a trombeta; outra depositava sobre um altar as iniciais em ouro dos noivos: P. L. Por baixo, tambm em ouro, fulgia a inscrio tpica: " feliz unio, o Comrcio".

    Mais alm, na esquina da Rua do Sabo, o segundo arco. Era to alto como o de Montigny. Fora risco de Lus Xavier Pereira, maquinista do Real Teatro. Destacava-se nele, l acima, a figura do Himeneu, circundada pelas figuras da Glria e da Fama. No meio, um medalho; e no medalho, em relevo, os retratos de D. Pedro e D. Leopoldina. No pedestal, em alegorias coloridssimas, a Europa, a sia, a frica, e a Amrica.

    Enfim, em frente Igreja da Cruz, o ltimo arco. Era um "Triunfo romano". Oito estandartes fincados em terra recobertos de grinaldas e flores. Palmas por toda parte. Em vez da guia romana, a guia austraca de duas cabeas. Em vez do busto dum general conquistador, o busto em bronze da princesa. Em vez do nome de batalhas ganhas, o rol das virtudes e graas de D. Leopoldina: "Bondade" "Amabilidade" "Doura" "Sensibilidade" "Beneficncia" "Constncia" "Esprito" "Talento" "Cincia" "Encantos" "Graa" "Modstia".

    O DESEMBARQUE Onze horas. Dia glorioso. Um sol de ouro redourando tudo. Do Pao da Cidade,

    aos sons de caixas e de clarins, D. Carlota Joaquina toca para o cais em grande estado. No cais, j na galeota real, D. Joo VI espera a Rainha e as Princesas. Sua Majestade viera por mar da Quinta da Boa Vista. E a galeota, sem mais tardana, zarpa rumo da nau "D. Joo VI". Centenas de escaleres engaivotam o mar. Toda a corte parte na espumarada de el-Rei. um belo torvelinho de damas e de titulares. Bales de seda rosa e casacas de rio em verde. E tudo alegre, fascinante! O cais embandeirado, as naus embandeiradas, os escaleres embandeirados. E salvas nas fortalezas, e repiques de sino, e estrondo de morteiros, e rojes, e msicas atroando os ares. Lindo! A galeota fundeia. Os marinheiros, no tombadilho, fazem continncia em honra do Rei. E logo, conduzida pelo brao corteso do Marqus de Castelo-Melhor, D. Leopoldina desce a escadinha de bordo. E desce encantadora, garridssima. O mesmo vestido branco de rendas de Bruxelas. O mesmo diadema de pedras. A mesma grinalda tombando-lhe, como uma cascata de espumas. Acompanham-na o Conde de Penafiel e o Conde de Louz, veadores de Sua Alteza. Depois, em vastos decotes, as Damas austracas que acompanharam a Sua Alteza. E D. Leopoldina entra na galeota. Os reis recebem-na com efuso. Beijam-na na testa. O Prncipe beija-a na face. As Princesas beijam-na.

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    D. Joo, nesse instante, abre uma caixa de xaro que o guarda-jias trouxera. Toma dum colar de prolas. magnfico. Tem quatrocentas prolas. E cavalheiresco, todo num sorriso, enrodilha-o no pescoo da nora. D. Carlota, por sua vez, enroda-lhe nos braos duas pulseiras de safiras imensas. So safiras incomparveis, as maiores do Brasil. D. Miguel oferece-lhe uma afogadeira de rubis. D. Maria Teresa um trepa-moleque de brilhantes. D. Maria Francisca uma colossal borboleta cravejada. Todas as infantas trazem o seu mimo. uma profuso de riquezas. D. Leopoldina a cada jia, sorri encantada:

    Oh! Oh! D. Pedro enfia-lhe no dedo um anel opulentissimo. H nele uma pedra de dez

    quilates, azul-querosene. Depois, galantemente, adorna-lhe os cabelos com um diadema de pedrarias. E entrega-lhe, enfim, uma caixa de ouro muito lavrada. D. Joo, vendo a Princesa abrir a caixa explica modestamente:

    Esto ai dentro, minha filha, os frutos da terra. Este o pas dos diamantes. A caixa estava atulhada de diamantes brasileiros. O veador de el-Rei, nesse instante, faz um sinal ao mestre da galeota. Os

    marinheiros, a um s tempo, batem os remos na gua. A embarcao voa. E uns instantes depois, debaixo dum sol de ouro, sob a alegria frentica dos campanrios, D. Leopoldina pisa a terra do Brasil.

    Um squito nico, brilhantssimo, como nunca mais se viu no Brasil, acompanhou os noivos at Capela Real. No o descreva eu, para no me acoimarem de imaginativo. Descreva-o esse to saboroso cronista, o Padre Lus Gonalves dos Santos, testemunha presencial da festa. L diz o padre nas suas "Memrias":

    O SQUITO "Vinha adiante uma partida de Batedores. Seguiam-se quatro Moos a cavalo,

    e os Azemeis cobertos de veludos carmezim. Logo depois os Timbaleiros com atabales. Todos a cavalo, agaloados de ouro, coletes azuis agaloados de prata. Seguiam-se imediatamente oito Porteiros da Cana. Os dois dianteiros com canas, os mais com maas de prata ao ombro. Vinham vestidos de casacas pretas com capas da mesma cor. E tudo era de seda. Atrs deles, vinham os Reis d'Armas, Arautos, e Passavantes, vestidos com armaduras de seda ricamente bordadas. Marchava em um soberbo cavalo o Corregedor do Crime da Crte. Trazia a beca, a vara alada, o chapu de plumas na mo. Acompanhavam-no dous Criados da Casa Real a p. Aps do Corregedor seguindo-se noventa e trs carruagens, todas de quatro rodas, puxadas a dous e a quatro. As primeiras conduziam os do Conselho d'Estado, as ltimas os Bispos e Grandes do Reino. Levava cada uma dous Criados portinhola, muito bem fardados, segundo a variedade das librs dos seus Amos, trazendo todos plumas brancas nos chapus, que levavam nas mos. Esta extensa fila de carruagens, todas mui asseadas, e ricas, puxadas por soberbos machos enfeitados com plumas e fitas, por longo espao de tempo entreteve com prazer os espectadores pela sua brilhante vista. Mas o que era Estado da Casa Real, isto sim, surpreendia pela sua grandeza e magnificncia. Estadeou-se nesta Crte pela primeira vez, com

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    todo o esplendor. Vinham trs coches da Casa Real. O primeiro levava os Guarda-Roupas; e os outros os Estribeiros Mres, os Mordomos Mres, o Camarista, os Viadores. Cada hum destes coches era puxado a seis, acompanhados de quatro Criados a p. O que ocupava o ultimo lugar tinha mais dous Moos da Estribeira ao lado das portinholas. Seguia-se o Tenente da Guarda Real e o Estribeiro Menor, ambos a cavalo, cada hum assistido de dous criados a p.

    Via-se ento o coche de el-Rei. Era forrado de veludo carmezim. Este a todos sobrepujava em riqueza e magnificncia. Era tirado por oito formosssimos cavalos com areios de veludo e ouro. De cada lado tinha huma ala de Moos da Cmara a p, e descobertos. Pela parte de fora destes, iam os Archeiros com as suas alabardas; e mais por fora ainda, quatro Moos de Estribeira ricamente fardados. Ao p do Real coche, de cada lado, iam a cavalo dous Ferradores com pastas. Junto de cada cavalo hum Criado a p.

    Neste riqussimo coche conduziam Suas Majestades a Serenssima Senhora Princesa Real, que vinha assentada frente ao lado do Augusto Esposo. Sua Alteza Real vinha riquissimamente vestida de seda branca, bordada de prata e ouro, e riquissimamente ornada de brilhantes; hum finssimo vu de seda branca, que da cabea pendia sobre o rosto realava a beleza do seu Real semblante. Em seguida, noutro soberbo coche, forrado de veludo verde, vinham o Serenssimo Senhor Infante D. Miguel e as Serenssimas Senhoras Princesas. Em outro, igualmente soberbo, o qual era forrado de seda ouro, vinham a Serenssima Princesa, e as Infantas. lmediato ao coche de Suas Majestades trotava o Capito da Guarda Real, o Excelentssimo Marquez de Bellas, seguido de vrios Criados a p. Seguia-se atrs o magnfico coche do Estado, puxado a oito, com oito Criados a p. E fechavam este pompossissimo acompanhamento os coches das Camareiras Mres, das Donas de Honor, das Damas Aafatas. Ia ao lado do coche das Damas hum Moo de Cmara, a cavalo, servindo de Guarda-Damas, acompanhado de hum Criado a p com telis encarnado no brao.

    Ao passar Suas Majestades e Altezas Reais por baixo do primeiro arco, fronteiro ao Arsenal, dous lindos Meninos, ricamente vestidos, que estavam em p sobre os pedestais das colunas, hum com os emblemas do Amor, outro do Himeneo, apresentaram a Suas Altezas Reais huma grande coroa de flores artificiais, delicadamente dobradas. Esta cora, no momento da passagem, desceu da abobada do arco, donde estava suspensa: ao mesmo tempo, sobre o Real Coche, esparziram-se nuvens de flores naturais. Parou depois o coche por baixo do segundo arco. Nesse instante voaram grandes volutas de aromas, que se queimavam em dois vasos, ao mesmo tempo que caiam chuveiros de flores da abobada, das varandas, e das janelas das casas vizinhas. Penetrou depois o Real Coche, por entre as verdes palmas do terceiro monumento, sob vivas e aplausos que nunca mais cessaram at a Real Capella, onde chegou o coche. Seriam trs horas da tarde.

    Por entre mil vivas e aplausos, descero do coche Suas Majestades e o Serenssimo Senhor Prncipe Real, que imediatamente deu o brao para descer sua Augusta Esposa. Apearam-se dos seus respectivos coches o Serenssimo Senhor Infante D. Miguel e as Serenssimas Senhoras Princesas e Infantas. Assim entrou El Rei Nosso Senhor, com toda Real Famlia, para dentro da Igreja. Seguiram-n'o a Crte, os Bispos, a Nobreza, o Senado da Cmara. Rompeu imediatamente a grande orchestra da Real Capella Mr, onde havia hum riqussimo Solio de lustrina de ouro encarnado. Debaixo do docel estavam dez cadeiras, nas quais El-Rei, e as mais Pessoas Reais se sentaro. Entretanto o Bispo, Chapelo Mr, subiu ao seu Solio, e o Cabido tomou lugar na quadratura. Feito hum breve repouso, o Mestre de

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    Cerimnias deu o sinal. Levantaram-se todos. O Serenssimo Senhor Infante toma pela mo o Serenssimo Senhor Prncipe Real. A Rainha Nossa Senhora pegou na mo da Serenssima Senhora Princesa Real. E foram apresentar os Augustos Desposados ao Bispo para lhes lanar as Bnos Nupiciais. Puseram-se ento Suas Altezas Reais de joelhos sobre almofadas, diante do Altar. E Sua Excelncia deu as Benos em canto festivo".

    * * *

    Assim, com essas pompas incrveis, casou-se aquela que foi a nossa primeira

    imperatriz. Assim, casou-se aquela que foi a mais humilhada das mulheres e, talvez, a mais desgraada de quantas j se sentaram em trono.

    OS CIMES DA PRINCESA Na chcara do Cauper, Rua Conde da Cunha, o Prncipe D. Pedro acabara

    de almoar. Eram todos os dias a mesma coisa. D. Pedro vinha sentar-se mesa, pedia o almoo O Cauper, de P, servia a sua Alteza. As filhas do Cauper, tambm de p, assistiam honradssimas ao comer do herdeiro do trono. E D. Pedro, moo democrtico, inteiramente sem protocolos, jovializava a mesa com a irrequieta folgazanice dos seus dezoito anos. O almoo corria sempre alegre. Ferviam as futilidades. D. Pedro bisbilhotava tudo. Indagava dos mexericos. Punha-se ao corrente dos escndalos sociais, das festas, dos namoros que houve na serenata em casa do Marqus de Santo Amaro. E tudo entre meado de muito mimo e de muita galantaria sem nenhuma inteno. Tudo ingnuo. Tudo sem malcia.

    O Cauper Pedro Jos Cauper era o guarda-roupa do prncipe. Foi o

    ltimo guarda-roupa da solteirice de D. Pedro. No havia nesses tempos problema mais difcil do que descobrir um palaciano que calhasse para tal cargo. Se o homem era sisudo e grave, pessoa de bons conselhos, D. Pedro embirrava-se logo, metia-se a descomp-lo, armava ao pobre diabo toda a casta de diabruras e de perversidades. Se o homem era peralta e folio, D. Pedro, de parceria com ele, botava-se a fazer estroinices, patuscadas incrveis, ceatas no Botequim da Corneta, mil proezas que, ao reboarem em S. Cristvo, arrepiavam o pacato e burguesissimo D. Joo VI. Ao sair de Lisboa D. Pedro tinha apenas seis anos veio como guarda-roupa de sua Alteza aquele pachorrento Marco Antnio Montaury, "homem probo, mas incapaz de uma advertncia ao prncipe". Este Montaury morreu no Brasil. Sucedeu-lhe no alto e honrosssimo posto o seu irmo, Joo Martinho Montaury. Este tambm, logo depois falecia no Rio de Janeiro. Entrou ento para o servio do prncipe Manuel Francisco de Barros, o filho do Visconde de Santarm. "Este guarda-roupa era mui srio e grave (l diz o cronista) e por isso D. Pedro no gostava dele e nem Manuel Francisco gostava do comportamento do prncipe". O herdeiro do trono teve horror ao seu camarista. Foram to incompatveis, to encontrados em tudo, que D. Joo tirou o oficio a Manuel Francisco e mandou-o para a Europa. Galardoou, porm, os seus prstimos, nomeando-o embaixador. Manuel Francisco brilhou ento na diplomacia e brilhou nas letras.

    Seguiu-se no emprego Joaquim Valentim de Sousa Lobato. Este j ocupava o cargo de guarda-roupa do prprio Rei. Era irmo dos Lobatos. Dos homens mais

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    afortunados no tempo de D. Joo VI. Daqueles que abiscoitaram os empregos mais lucrativos da poca. Tanto, e de tal forma, que no Rio se tornou expresso corrente:

    "Fulano um sujeito muito feliz. feliz como os Lobatos!" Este Joaquim Valentim era um corteso desbragado de modos, costumes

    soltos, escandaloso. Fez com D. Pedro todas as peraltices imaginveis. Tinha tais condescendncias com o prncipe, to despudoradas, que, no dizer horrorizado e pitoresco do cronista, "chegava a ponto de lev-lo casa das moas!" D. Joo, ao saber das inconvenincias de Sousa Lobato, tambm lhe tirou o oficio. Foi ento que chamou Pedro Jos Cauper e nomeou-o guarda-roupa.

    O Cauper era homem excelente, casado, mas pouco cioso da reputao da sua casa. O povo murmurava dele. E murmurava com razo. Cauper tinha filhas solteiras e bonitas. Deixaram fama, no Rio, de raparigas lindssimas. Era natural que Cauper, nesses tempos de impiedosa maledicncia, zelasse ferozmente pela reputao delas. Mas qual! O guarda-roupa recebia o prncipe todos os dias em sua casa. E obrigava, todos os dias, as filhas a fazerem companhia ao moo Bragana. E era certo, depois do almoo, D. Pedro virar-se com singeleza para o Cauper:

    Oh, Cauper! Fica-te por ai: eu vou me divertir um bocado com as tuas filhas... E l se ia. s vezes, metia-se no bilhar. Outras vezes, punha-se a jogar

    gamo. E no mais das vezes, quase sempre, saia a passear com as moas pela chcara. No passava disso. Tudo ingnuo. Tudo sem malcia. Mas era chocante! A nomeada do prncipe fora sempre tenebrosa. Todo o mundo sabia que D. Pedro era um atrevido. Um grandssimo maroto que no respeitava sequer as famlias. Nada mais lgico, portanto, que a freqncia do rapaz conquistador em casa onde havia moas belas e solteiras desse muito que falar s ms lnguas. E o povo falava sem d. Diziam-se coisas crespas...

    Por esse tempo, na Corte, andava uma lufa-lufa. Fervia um rodopio de preparativos. Esperava-se a todo o instante a chegada de D. Leopoldina, arquiduquesa da ustria, noiva de D. Pedro. A nau "D. Joo VI", que se redourara nos estaleiros, j havia partido para Liorne com o fim nico de trazer a escolhida do herdeiro do trono. E como partira linda a nau! Novinha, toda alcatifada, muita seda, os marinheiros agaloados de veludo e prata.

    Foi num daqueles dias, terminado o almoo, que D. Pedro falou comovido: Hoje o dia das despedidas, Cauper; amanh, fundeia no porto a "D. Joo

    VI", que vem ai com a minha noiva. E eu, ao depois, no poderei c vir todos os dias como agora venho.

    Pena , Senhor D. Pedro, tornou o Cauper, consternado; e pena grande! Vossa Alteza honra tanto a nossa casa...

    Caiu um silncio embaraante. Mas, o prncipe, que no suportava mgoas,

    quebrou logo o silncio dorido: No falemos mais nisso... Tristezas no pagam dividas. Oh, Cauper, fica-te

    um instante por ai; eu vou me divertir um bocado com as tuas filhas... E saiu a passear com as moas pela chcara.

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    D. Leopoldina chegou. O Brasil inteiro desentorpeceu-se com o ribombo das festas. Que alvoroo! Revolucionou tudo. Saram das velhas arcas mil tafularias de gala. A corte cobriu-se de louanias. Ferreteava toda a gente uma grande nsia por conhecer a futura imperatriz. Mas... que decepo! D. Leopoldina era feia. Ruiva e gorda, lbios grossos, olhos esverdeados, a princesa encarnava em si o tipo clssico dos Habsburgos. No tinha elegncia e no tinha graa. D. Pedro, como ningum, sentiu o desfulgor da mulher. Aquilo gelou-o.

    Nada mais explicvel, nada mais humano, do que esse desapontamento do prncipe. D. Pedro havia deixado os braos da Noemi, a bailarina do Teatro So Joo, essa francesinha endoidecedora que enchera os seus dezessete anos com o mais picaresco romance de amor. O corao ainda sangrava-lhe. O moo bomio ainda sofria perdidamente de paixo. E eis que nesse momento, ainda na dor que curtia, surge-lhe a mulher. Surge-lhe uma criatura sem encantos e sem feitios, D. Leopoldina era feia! E por isso, s por isso, a filha de Francisco I no teve nunca a boa fortuna de seduzir o corao do prncipe. No pde nunca cicatrizar a ferida rasgada impiedosamente naquela alma de namorado.

    D. Pedro, desde o momento em que viu a esposa, compreendeu ntido o abismo que foi intransponvel. Dia a dia, quanto mais ntima se tornava a vida conjugal, mais fundamente se acentuava a incompatibilidade daqueles dois gnios.

    O prncipe foi sempre, em toda a sua existncia, um louco por mulheres. Foi o seu fraco. O trao culminante do seu carter. D. Pedro amou furiosamente na vida. Amou quando prncipe. Amou quando imperador. Amou quando rei no exlio. E amou com todos os desbragamentos da sua ndole de fogo. Mas, por ironia, D. Pedro s no amou a esposa. Por qu? que D. Leopoldina no foi hbil. No teve a astcia de se fazer amar: preocupou-se muito pouco em ser mulher. Desleixou sempre a arte de seduzir pela graa. No cuidou nunca desses pequeninos nadas de toucador, essas frioleiras encantadoras com que as "coquetes" tecem a rede dourada de caar os homens. D. Leopoldina nunca se enfeitou. Nunca teve paixo por vestidos. Nunca mostrou capricho por um perfume. Nunca ps uma flor na trana. Nunca se carminou. Nunca se frisou. Aparecia sempre com umas roupas muito amplas, o corpo muito largado, os cabelos muito corridos, sem colete, os seios balouando. Todos os contemporneos, afora Carlos Seidler, pintam-na assim. Jacques Arago, que a viu muitas vezes, descreve-a num flagrante: "point de collier, point de pierres aux oreilles, pas une bague aux doigts. La camisole attestait un grand usage; la jupe tait fripe..." E a baronesa de Fisson de Montet, dama da corte austraca: "I'archiduchesse Leopoldine n'tait pas jolie; elle n' avait ni grace, ni tournure, ayant toujours eu l'aversion des corsets et des ceintures, etc.".

    Alm desse feitio negligente, tinha ainda a princesa uma paixo que mais a distanciava do marido; gostava loucamente de livros. Foi uma estudiosa tremenda. Adorava as cincias naturais e positivas. Ficou clebre o seu entranhamento por matemtica e por botnica. Encerrava-se dias e dias nos seus aposentos devorando Keppler. Passava dias e dias empalhando sagis ou catalogando flores exticas. Foi ela quem trouxe da ustria os dois famosos sbios Spix e Martius, que to altos servios prestaram fauna e flora tropicais. Ora, contrastando com a mulher, D. Pedro era um ignoranto. O que deixou nosso primeiro imperador como amostra das suas humanidades envergonha a gente. As suas cartas arrepiam. Um ginasial, hoje, ri-se da pasmosa incultura do Bragana. Nunca se preocupou com livros, e, muito menos, com Kepplers e sagis empalhados. Ele mesmo, ao mandar educar o filho, o nosso grande Pedro II, dizia com chiste e bom humor:

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    Este h de aprender, garanto! No h de ficar como o pai. Porque eu, e o mano Miguel, se Deus quiser, havemos de ser os ltimos ignorantes da famlia...

    D. Pedro, portanto, no tolerava livros. Preferia descer s cavalarias e ir

    ferrar, ele prprio, os seus cavalos. Ai, estava sua vontade. Apertava a mo dos picadores, igualava-se a eles, discutia, montava em potros bravos. Uma verdadeira paixo! Ora, dada essa diversidade de gostos, era evidente que o prncipe no achasse na mulher a mulher sonhada. E foi um infeliz. A vida de ambos, portas a dentro, tornou-se um pungente desfiar de rusgas. D. Pedro esfriou logo.

    E essa frieza veio tona sem tardar. Mal findaram os festejos, quinze dias aps a chegada, j D. Pedro se enfarava da lua de mel. E para desenfastiar-se, reprimindo a custo os bocejos, D. Pedro pensou logo no Cauper. Certo dia, com espanto de toda corte, o prncipe levou a princesa almoar em casa do seu guarda-roupa. O palaciano e as filhas receberam suas altezas com jbilos irreprimveis. Foi uma festa! Um renascimento! D. Pedro tinha a mesma jovialidade de solteiro. A mesma alegria, a mesma folgazanice, a mesma simplesa. Ao terminar o almoo, com a sem-cerimnia dos velhos tempos, D. Pedro l foi bradando:

    Oh, Cauper, fica-te por ai com a princesa; eu vou me divertir um bocado

    com as tuas filhas. E saiu com as meninas pela chcara. Evidentemente, no passava disso.

    Tudo ingnuo. Tudo sem malcia. D. Leopoldina, porm, no gostou. Mordeu o lbio; achou estranho. Mas, no deixou escapar palavra.

    E comeou, na chcara do Cauper, a mesma freqncia de antes. Eram todos os dias a velha coisa. D. Pedro vinha, trazia a princesa, almoava. E depois do almoo:

    Oh, Cauper... E saia com as moas. Mas, no passava disso. Tudo ingnuo. Tudo sem

    malcia.

    * * * Aquela assiduidade ao Cauper, aqueles passeios pela chcara, aqueles

    mimos e galantarias para com as moas, foram um espinho na alma da princesa. D. Leopoldina comeou a sofrer. O cime, o tal "green ey'd monster" de Shakespeare, cravou-lhe a primeira mordida no corao. Tornou-se-lhe um suplcio acompanhar o marido ao almoo dos Caupers. Aquilo doa -lhe. Aquilo infernizava-lhe a lua de mel. E D. Leopoldina no se conteve. Certa manh, ainda nos seus aposentos, D. Joo recebeu a visita da nora. A princesa vinha nervosa, estranhamente inquieta. Entrou. Atirou-se aos ps do monarca, soluando. El-Rei ergueu-a carinhosamente. E condodo, muito solicito:

    Que h, minha filha? Que h? D. Leopoldina contou-lhe tudo. Os almoos, as intimidades, os passeios pela

    chcara, o estribilho de todos os dias:

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    Oh, Cauper, fica-te por a com a princesa: eu vou me divertir um bocado com as tuas filhas.

    D. Joo ouviu. Consolou ternamente a desesperada austraca. Fez-lhe um

    agradozinho no queixo: Eu sei de tudo, minha filha! De tudo! O Sousa Lobato j me ps a par

    dessas leviandades do Pedro. Aquele rapaz assim mesmo, minha filha: um desmiolado! Mas deixa o caso por minha conta. Eu serei por ti.

    Beijou a nora, fez-lhe outro agradozinho, mandou chamar ali mesmo o

    Visconde de Parati, o valido, a fim de resolverem aquele caso de famlia.

    * * * Dias depois, na corte, arrebentou uma notcia palpitante. Uma notcia

    inesperada, ruidosssima: o Cauper fora agraciado com um ofcio em Lisboa! Um ofcio timo, dos melhores do Reino, que rendia a bagatela de dezoito mil cruzados! Alm do oficio, como alta prova da confiana real, levava o guarda-roupa a misso de transmitir ao governo portugus ordens e instrues secretas do rei.

    Tornar a Portugal! Por esse tempo, no Rio, o mais acarinhante desejo da corte era voltar para o Reino. Ningum se acostumava no Brasil. Os fidalgos detestavam aluda vida sensaborona, colonial, numa cidadezinha suja, tristssima, cheia de negros e de mosquitos. Ficar com el-Rei era sacrifcio. Era um morrer de tdio. Um suicidar-se. Eis porque, na corte, ao arrebentar a notcia do embarque do Cauper, no houve corteso que no suspirasse, invejoso:

    Ora, vede o Cauper! No h como ser valido do prncipe... Que felizardo!

    feliz como os Lobatos... Enfim, numa corveta inglesa, embarcou para o Reino o guarda-roupa do

    prncipe. D. Pedro e D. Leopoldina foram a bordo levar aos amigos o abrao de despedida. O Cauper estava chocadissimo. Ao dizer adeus, ento, desenrolou-se uma cena tocante. O guarda-roupa chorava. As moas choravam. D. Pedro chorava. D. Leopoldina chorava... Foi um mar de lgrimas.

    * * *

    Nessa noite, depois do tero, no oratrio, D. Joo perguntou baixinho nora: Est contente, minha filha? E a princesa, com um sbito claro nos olhos: Contentssima! E beijou, agradecida, a mo do rei.

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    PLCIDO PEREIRA DE ABREU Plcido! O favorito, que lia na antecmara, acudiu imediatamente ao chamado do amo: Majestade! hoje o aniversrio da filha do Inhambupe? , Majestade. A moa completa hoje vinte anos... E a que horas a festa? As duas, Majestade. O Marqus de Inhambupe no d saraus noite. O

    pobre homem anda muito atacado da gota. A filha, vista disso, oferece uma simples merenda aos amigos.

    D. Pedro, ouvindo, abriu o seu velho contador de jacarand negro. Agarrou

    numa caixa de veludo, milto donairosa, enfeitada gentilmente por um laarote de fita. E virando-se para o favorito:

    Toma l este mimo, Plcido. um bracelete cravejado. Leva-o de minha

    parte filha do Inhambupe. O Plcido sorriu. E D. Pedro, com o seu bom humor inextinguvel, batendo

    maliciosamente nos ombros do criado: bonita aquela rapariga, hein, Plcido? E o Plcido, um tanto embaraado: linda... Aquilo que mulher, oh! Plcido: tu no achas? E o criado confuso, com um sorriso amarelo: uma rapariga e tanto! Mas... Mas o qu? Tornava D. Pedro irrequieto; vamos l: mas o qu? Mas um perigo essa aventura de Vossa Majestade, afoitava o valido com

    ares de prudncia; a moa solteira. A moa filha do Inhambupe. O Marqus, alm de homem probo, ministro de Vossa Majestade. Tudo isso so coisas graves. Coisas de se ponderar. Vossa Majestade, portanto, precisa ter cautela. Muita cautela! Seno vem por a um escndalo dos diabos...

    E D. Pedro, sempre estourado: Qual escndalo, qual nada! No arrebenta coisa alguma. Depois, meu caro, o

    Marqus como os outros. Um adulador! o ministro mais adulador que eu j tive. O Marqus no me assusta. deix-lo... Trata, pois, de tecer a coisa, oh! Plcido, e larga o resto por minha conta. Leva hoje, de minha parte, este presente moa...

    D. Pedro, ultimamente, encapric