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ISSN: 1984 -3615 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO NÚCLEO DE ESTUDOS DA ANTIGUIDADE I CONRESSO INTERNACIONAL DE RELIGIÃO MITO E MAGIA NO MUNDO ANTIGO & IX FÓRUM DE DEBATES EM HISTÓRIA ANTIGA 2010 257 AS METAMORFOSES DE SATÃ: AS RESSIGNIFICAÇÕES DO MAL Orestes Jayme Mega (a) ; Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva (b) ; Lennon Oliveira Matos (c) . O objetivo deste artigo é rastrear as pegadas de Satã até descobrir de qual inferno ele surgiu, utilizando-se para isso de uma abordagem da arqueologia que a considera como "conhecimento do poder", abordagem esta apresentada no artigo de Pedro Paulo Abreu Funari: Teoria e Métodos na Arqueologia Contemporânea: O Contexto da Arqueologia Histórica. [...] Shanks e Tilley constataram que o próprio nome da disciplina pode ser interpretado como o "conhecimento do poder", retomando um dos sentidos da palavra arque em grego. (FUNARI, 2005: 2). Em outras palavras, este artigo visa interpretar o mito de Satã através de sua dimensão ideológica intimamente ligada à ideia de poder e sua contestação. Numa abordagem transdisciplinar com a Psicologia Analítica, Satã foi considerado neste trabalho como um arquétipo, um símbolo universal presente no espírito humano e que ora foi interpretado de maneira benéfica e ora de maneira maléfica. Marcos Callia, no artigo Terra Brasilis: pré-história e arqueologia da psiquedá uma interessante definição de arquétipo: Os arquétipos são estruturas ou matrizes inatas que habitam o inconsciente coletivo, presente em cada ser humano como depositário das experiências humanas através da sua existência e do seu desenvolvimento na terra. Esses conhecimentos herdados e transmitidos durante longa jornada têm como base as necessidades (a) Licenciado em História / Bacharelando em Arqueologia e Preservação Patrimonial, Universidade Federal do Vale do São Francisco. (b) Bacharel em Medicina Veterinária / Bacharelando em Arqueologia e Preservação Patrimonial, Universidade Federal do Vale do São Francisco (c) Bacharelando em Arqueologia e Preservação Patrimonial, Universidade Federal do Vale do São Francisco.

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AS METAMORFOSES DE SATÃ: AS RESSIGNIFICAÇÕES DO MAL

Orestes Jayme Mega (a)

;

Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva (b)

;

Lennon Oliveira Matos (c)

.

O objetivo deste artigo é rastrear as pegadas de Satã até descobrir de qual inferno ele

surgiu, utilizando-se para isso de uma abordagem da arqueologia que a considera como

"conhecimento do poder", abordagem esta apresentada no artigo de Pedro Paulo Abreu

Funari: Teoria e Métodos na Arqueologia Contemporânea: O Contexto da Arqueologia

Histórica.

[...] Shanks e Tilley constataram que o próprio nome da disciplina

pode ser interpretado como o "conhecimento do poder", retomando

um dos sentidos da palavra arque em grego. (FUNARI, 2005: 2).

Em outras palavras, este artigo visa interpretar o mito de Satã através de sua

dimensão ideológica intimamente ligada à ideia de poder e sua contestação. Numa

abordagem transdisciplinar com a Psicologia Analítica, Satã foi considerado neste trabalho

como um arquétipo, um símbolo universal presente no espírito humano e que ora foi

interpretado de maneira benéfica e ora de maneira maléfica. Marcos Callia, no artigo

“Terra Brasilis: pré-história e arqueologia da psique” dá uma interessante definição de

arquétipo:

Os arquétipos são estruturas ou matrizes inatas que habitam o

inconsciente coletivo, presente em cada ser humano como

depositário das experiências humanas através da sua existência e

do seu desenvolvimento na terra. Esses conhecimentos herdados e

transmitidos durante longa jornada têm como base as necessidades

(a) Licenciado em História / Bacharelando em Arqueologia e Preservação Patrimonial, Universidade Federal

do Vale do São Francisco.

(b) Bacharel em Medicina Veterinária / Bacharelando em Arqueologia e Preservação Patrimonial,

Universidade Federal do Vale do São Francisco

(c)Bacharelando em Arqueologia e Preservação Patrimonial, Universidade Federal do Vale do São Francisco.

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do soma e as necessidades instintivas que impulsionam para a

vida. Os arquétipos são estruturas poderosas que influenciam a

experiência pessoal para determinados padrões, comuns à nossa

espécie [...] Os arquétipos estão presentes nos sonhos, nas fantasias

interiores, nos mitos, nas lendas e na cultura popular. Carregam

grande carga emocional, atualizando-se e estruturando as

diferentes culturas. (CALLIA, 2006: 9).

Além disso, este artigo também relata (mas sem se aprofundar no assunto) as

supostas ligações filológicas entre o nome Satã e o nome de uma antiga divindade egípcia

(ligação esta defendida por um dos grupos satanistas da atualidade conhecido como

Templo de Set). E retomando o sentido ideológico de Satã, o materialismo histórico serviu

como um excelente instrumento da explicação do porquê das mudanças pendulares que o

"príncipe das trevas" sofreu através das eras. Contudo, este artigo visa somente arranhar a

superfície do tema, atendendo aos conselhos daqueles que nos alertaram sobre os perigos

de nos aprofundarmos nestes "assuntos obscuros".

Um ponto de partida deve ser estabelecido antes de iniciarmos nossa jornada em

busca das origens de Satã (e não faltarão pessoas para dizer que esta é uma jornada

sombria!) e o ponto de partida que escolhemos é o presente. O que faremos é retroceder no

tempo. Partiremos de uma análise dos grupos satânicos de nossos dias, desvendando, com

a brevidade necessária para este artigo, suas premissas filosóficas. Depois, iremos em

busca dos fundamentos sobre os quais os grupos satânicos atuais erigiram suas doutrinas, e

nessa busca pretendemos retroceder muitos milênios no passado. Traçando uma grosseira

analogia com uma escavação arqueológica, podemos dizer que da mesma forma que

sedimentos formam diversas camadas estratigráficas umas sobrepostas às outras, também

os símbolos universais da humanidade, os arquétipos, se sobrepõem uns aos outros,

formando extensas camadas de significados. A proposta deste artigo é fazer uma "grosseira

estratigrafia dos significados", uma "escavação arqueológica" na mente humana em busca

daquilo que é hoje conhecido pela maioria das pessoas como o "arquétipo do mal”.

BREVE PANORAMA DO SATANISMO ATUAL

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Os filmes de Hollywood retratam Satã como um mal absoluto, uma entidade

espiritual incapaz de realizar qualquer ato que não tenha a maldade como fundamento.

Estes filmes ajudaram a moldar a imagem caricatural com que hoje as massas entendem

Satã. Além dos filmes há a milenar pregação cristã ensinando que Satã é o adversário de

Deus e que quer tomar seu lugar, estabelecendo seu próprio reino de maldade. Sendo

assim, tudo que é mau e adverso é considerado como obra de Satã.

Esta visão de Satã como o "mal absoluto" levou à criação de uma “religião”

chamada satanismo gótico, também chamada de satanismo tradicional. Os praticantes desta

vertente do satanismo absorveram todo o estereótipo transmitido pelos filmes de terror,

pregando a existência concreta de Satã como uma divindade que um dia estabelecerá seu

domínio sobre a Terra e recompensará seus seguidores. Contudo, apesar da pretensa

antiguidade, estes cultos só começaram a surgir na década de 1970, inspirados na

publicação, em 1969, da bíblia satânica (livro que não tem o satanismo gótico como

fundamento). Ainda na década de 1970 começam a surgir fragmentos do que seria o "livro

negro de Satã", que também pretensamente tem uma idade secular.

Deixando de lado a pretensa antiguidade, o que se percebe é que o satanismo gótico

nada mais é que o reuso de uma "anti-religião" criada pela igreja católica em fins da idade

média. O satanismo gótico é, em essência, um cristianismo ao contrário, fruto de um

pensamento maniqueísta que busca equilíbrio psíquico através da criação de extremos

opostos (e quem sabe complementares). Esta visão dualista de um cosmos dividido entre

divindades que representam antíteses bem definidas é exemplificada pelo masdeísmo

através do conflito existente entre Ahura Mazda, divindade benévola, e Ahriman, divindade

malévola. O masdeísmo, também conhecido como zoroastrismo, representa a primeira

religião a celebrar esta extrema dicotomia entre o bem e o mal. Surgido no século VII a.C.,

através das pregações do profeta Zarathustra (ou Zoroastro) na antiga Pérsia, o masdeísmo

forneceu o modelo tanto do cristianismo e outras religiões monoteístas como o judaísmo e

o islamismo como do satanismo gótico, que simplesmente inverteu a orientação da

adoração. Se no cristianismo (assim como nas demais religiões monoteístas) o bem deve

ser adorado e o mal evitado, no satanismo gótico é o mal que deve ser adorado.

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A "linha" satânica mais praticada em nossos dias é a que foi difundida pela igreja de

Satã que segue o que se convencionou chamar de satanismo moderno. Aqui, Satã não é

mais visto como uma entidade que tem sede de adoração, mas sim como um símbolo de

liberdade. Estes satanistas riem da ideia de Satã como um espírito ou entidade que almeja

estabelecer seu domínio sobre a Terra. Oficialmente, a igreja de Satã surgiu em 1966. Seu

fundador, Anton Szandor La Vey, era um tocador de órgão em um parque de diversões e

também numa igreja evangélica. O que ele presenciou nesta profissão o convenceu a

estabelecer as bases filosóficas do satanismo moderno. Em suma, ele viu os mesmos

homens praticando tanto a abstinência cristã quanto a libertação satânica dos instintos

animalescos humanos. Tal fato foi a prova para ele de que o cristianismo era uma fé falsa

pois negava a natureza carnal do homem (LA VEY, 1969: 2).

Desta observação do "triunfo" da natureza carnal do homem surgiu o núcleo da

filosofia da igreja de Satã que é a veneração da vida em seus aspectos materiais. O homem

é visto como um animal cheio de desejos e a maioria das religiões, até então, apresentava

esta natureza carnal do homem como algo a ser superado. Em outros termos, as religiões

sempre se esforçaram para espiritualizar o homem, relegando os desejos carnais à sujeira

do pecado ou à fraqueza do espírito. Caberia a este novo satanismo a tarefa de revalorizar a

carne. O satanismo moderno é a religião da carne e vê o homem somente como um animal

que deve ter seus instintos e desejos libertados de toda repressão (LA VEY, 1969: 9).

Em 1969, três anos após a fundação da igreja de Satã, Anton Szandor La Vey publica

a bíblia satânica, onde expressa toda a filosofia de sua igreja. A partir de então o satanismo

alcança uma enorme popularidade e começa a ser expresso de maneira mais explícita no

cinema e na literatura.

Uma terceira vertente do satanismo (e que ocupa uma posição central neste artigo) é

conhecido como setianismo1 (www.xeper.org). Surgido em 1975 através de um cisma

dentro da igreja de Satã, o setianismo tem por fundamento uma reinterpretação de Satã

através da figura do deus egípcio Set. Muitas vezes conhecido como o "deus do vento seco

do deserto", tanto suas características comportamentais quanto seu nome ajudaram a

1 Todas as informações sobre o setianismo foram pesquisadas no site do templo de Set.

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formular o que viria a ser chamado de Satã. Set é também chamado de Set Hen, e este

nome foi logo identificado com a palavra Satã, que em hebraico significa "adversário". Tal

identificação foi feita pela comunidade cristã egípcia dos primeiros séculos da era cristã.

Além da semelhança do nome, Set também possui, como Satã, uma história marcada por

inconformismo e revolta. Mais para frente discutiremos o mito Set.

Entretanto, inconformismo e revolta não eram atributos exclusivos de Satã e de Set.

Outros personagens mitológicos também carregavam esta característica. Vários mitos de

diversas culturas mediterrâneas apresentam uma figura rebelde que luta para livrar o

homem das garras dos "deuses tiranos", o que constitui um primeiro passo na libertação do

indivíduo da prisão da sociedade, pois, se os deuses podem ser confrontados, então seus

representantes na Terra também podem. Veremos alguns desses mitos a seguir.

OS MITOS DE REBELIÃO CONTRA A ORDEM DIVINA

Prometeu, Satã e Set são três símbolos que expressam um mesmo sentimento e uma

mesma vontade de liberdade. Prometeu roubou o "fogo" dos deuses para dar aos homens e,

em consequência de seu crime, foi punido severamente. Satã rebelou-se contra Jeová e

acabou sendo lançado no inferno. Set matou Osíris e foi banido para o deserto. Em todos

esses mitos há a presença de dois fatores essenciais para o entendimento do funcionamento

das sociedades estratificadas: a hierarquia vigente e a rebelião a esta hierarquia.

Inconformismo, transgressão e punição são os três capítulos básicos destes três

mitos. Apresentaremos a seguir breves resumos dos mitos de Prometeu, Set e Satã a fim de

melhor explanar esta questão:

PROMETEU

Existem diversas versões do mito de Prometeu. Hesíodo aborda o mito em suas

obras Os Trabalhos e os Dias e na Teogonia; Platão, no diálogo Protágoras e Ésquilo, na

peça Prometeu Acorrentado. Estes três autores nos oferecem diferentes narrativas que, por

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sua vez, nos oferecem diferentes interpretações sobre o mito como um todo e a questão do

“fogo” em particular. Cito abaixo o resumo de uma parte do mito de Prometeu tal segundo

Santos (2010: 2):

Segundo diversas versões, Prometeu foi aquele que criou o homem

do barro da terra, mas semelhante versão não é confirmada em

Hesíodo. Prometeu, o filho de Jápeto, antes da vitória de Zeus, já

era considerado um benfeitor da humanidade, o que lhe causou um

enorme mal, por ter enganado por duas vezes a Zeus, o pai dos

deuses. Segundo a Teogonia (v.535-536), como os deuses

desconfiassem dos homens, protegidos por Prometeu, houve uma

querela entre os divinos e os homens. Para acabar com essa

querela entre imortais e mortais, era necessário que se fizesse uma

oferenda de um sacrifício a Zeus. Prometeu, querendo enganar a

Zeus para beneficiar os mortais, dividiu um boi enorme em duas

porções: a primeira continha as carnes e as entranhas, cobertas

pelo couro do animal; a segunda, apenas os ossos, cobertos com

intensa gordura do mesmo. Zeus escolheu exatamente a porção

que continha ossos e gordura, a qual era destinada aos mortais.

Sentindo-se ultrajado, com o coração pleno de ódio, investiu

contra os homens a privação do fogo, ou seja, simbolicamente, a

privação da inteligência de tal forma que os homens se

imbecilizaram. (SANTOS: 47-50).

O que, afinal de contas, era o “fogo” dado à humanidade por Prometeu? Existem

vários significados possíveis. Podia ser o fogo propriamente dito; poderia ser a inteligência

(tal como na citação acima), as artes e as técnicas, ou mesmo uma “fagulha divina” que nos

deu a faculdade de cometermos crimes contra a lei cósmica promulgada pelos deuses

olímpicos (hybris). As múltiplas interpretações sobre o “fogo”, ao nosso ver, constituem

umas das mais vívidas características do mito de Prometeu. Contudo, apesar das possíveis

diferenças de interpretação, o mito deixa claro que o “fogo” era algo que pertencia aos

deuses e que Prometeu, por amor à humanidade, roubou deles para entregá-lo aos homens

da idade do ferro, isto é, a nós. De qualquer forma, o “fogo” não nos deu apenas luz física.

Com ele, a humanidade adquiriu conhecimentos capazes de ampliar seus horizontes.

Entretanto, os deuses não deixariam este crime impune. Ardilosamente prepararam

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uma armadilha para Epimeteu, irmão de Prometeu e, por fim, à própria humanidade.

Reunindo dons e presentes, os deuses forjam Pandora, a primeira mulher, e a enviam, junto

com uma caixa (ou jarro) para o imprevidente Epimeteu. Este aceita o presente dos deuses,

mesmo tendo sido avisado por Prometeu para que não aceitasse nenhum presente deles.

Por sua vez, Pandora, mesmo tendo recebido avisos para nunca abrir a caixa (ou jarro), a

abre e com isso liberta todos os males que afligem os seres humanos: doença, trabalho,

dores, velhice e muitos outros males se encontravam dentro da caixa de Pandora. Somente

a esperança fica retida na caixa. Prometeu também não escapa impune. Acorrentado numa

montanha , o titã sofre continuadamente o ataque de uma águia que devora seu fígado, que

se reconstrói continuadamente também, para novamente ser devorado.

SATÃ

As origens de Satã são obscuras e tão paradoxais como seu primeiro aparecimento

na Bíblia. Em Gênesis (capítulo 3) Satã aparece sob a forma de serpente, habitando o

paraíso ao lado de Adão e Eva. Sua presença junto à árvore do conhecimento do bem e do

mal é simbolicamente importante e, até certo ponto, esclarecedora. Sua oferta à

humanidade então nascente de fazê-la despertar e tornar-se, por assim dizer, divina,

mostrou-se irresistível. Como diz o versículo 5 do capítulo 3 de Gênesis a respeito do

fruto da árvore do conhecimento: “Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se

abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal” (Tradução do Novo

Mundo das Escrituras Sagradas, 1961). Até este ponto não há na Bíblia uma inimizade

entre a Serpente (símbolo de Satanás) e a humanidade. A inimizade surge depois e é

ordenada pelo próprio Criador, como vemos em Gênesis, capítulo 3, versículo 15, que

assim se expressa à serpente: “E porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua semente e

a sua semente; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.” (Tradução do Novo

Mundo das Escrituras Sagradas, 1961). A partir deste ponto começa uma história de

acusações, oposições e inimizade entre a figura de Satã e a humanidade. Existem várias

outras aparições da figura de Satã na Bíblia. Entretanto, por motivo de espaço, focaremos

nossa análise deste arquétipo em sua primeira aparição descrita acima a fim de salientar

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seu “pecado original”, isto é, sua afronta “política” contra a ordem divina.

Satã como noção cosmológica que personifica a dualidade maniqueísta, como a

força antípoda a Deus, “o anjo caído” que promove a queda do homem e sua condenação, é

sem dúvida um conceito, uma interpretação social reduzida de uma ideia construída ao

longo de várias associações entre suas aparições literárias nos relatos que estão contidos

nos textos bíblicos, fragmentos muitas vezes pertencentes a épocas e contextos diferentes,

e a própria expressão da psique humana.

Para que seja possível estudar uma origem arquetípica ou quem sabe “ideológico-

histórica” desse personagem mítico, é preciso compreender as sutilezas contidas em todas

as suas aparições e múltiplos contextos2. Como uma construção discursiva que é, o mito

precisa ser entendido não só em seus contextos históricos, mas como uma manifestação da

sociedade em todas as suas dimensões, aqui, enfatizaremos a questão do inconsciente

coletivo, que por diversas vezes revela a condição essencial para a interpretação moderna

das cosmologias humanas. A história como contexto3, assim, não é razão suficiente para

uma proposta de mitologia comparada.

Um exemplo edificante é expresso na própria identidade múltipla que um

personagem adquire e que se justifica na esfera do inconsciente, promovendo a construção

de novos discursos diametralmente opostos aos “originais”. Assim, por exemplo, Satã

muitas vezes é associado a “Lúcifer”, e tal alegoria surge e se consolida apenas em

períodos pós-bíblicos; Jesus no novo testamento se autodenomina a estrela radiosa da

manhã (KELLY, 2006: 67), “aquele que traz a luz” ou do latim “Lucifer”, ou o planeta

Vênus quando surge do leste: “Tempo presente, eu Jesus sou o Lucifer” (Apocalipse

22:16).

Para entender tais metamorfoses é necessário um entendimento que não é só

material; insuficiente é, em nossa opinião apenas as análises cronológico-históricas ou as

literárias, pois a carência de uma justificativa material contextual clama por uma proposta

de entendimento psicológico-social, ou imaterial.

2 Assim como Jack Miles o faz em sua obra “Deus, uma biografia” de 1995. (KELLY, 2006: 10).

3 Dentro de uma concepção do Materialismo histórico.

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Não se trata, porém, de se pretender o entendimento por conceitos psicológicos

“universalistas”, mas uma das possíveis abordagens que podem contribuir para uma

interpretação aprofundada dos fenômenos mitológicos. Tentaremos não reduzir os

contextos, mas somar. Apenas pelas teorias psicológicas, tal tentativa seria sem dúvida

“proplética” e “anacrônica”; portanto, temos aqui a proposta de apresentar uma

interpretação rica de contextos e de suas interações. Hoje, a fusão dessa diversidade de

discursos interpretativos é a imago mundi da ciência na pós-modernidade.

Neste artigo, trabalharemos com duas dimensões do mito de Satã. Na primeira delas,

abordaremos o mito através de um viés psicológico pautado na Psicologia Analítica de Carl

Gustav Jung, onde Satã é a expressão de parte importante e vital da psique humana (um

arquétipo), que se liga a própria estruturação da individualidade. Na segunda,

trabalharemos o mito através de um viés marxista, onde a figura de Satã constitui uma

força ideológica de contestação dos poderes estabelecidos e das estruturas sociais impostas

por estes poderes. Assim, mais que uma fusão interpretativa, propomos uma interação

complexa de fenômenos sócio-históricos e psicológicos onde Satã é uma imagem alegórica

do próprio drama existencial tanto de indivíduos quanto de sociedades.

SET

Já a figura de Set ficou conhecida através do mito que narra a traição feita por ele ao

seu irmão Osíris, e de sua batalha contra Hórus, filho de Osíris e divindade ligada ao poder

faraônico. O mito de Set é rico em diferentes interpretações acerca de sua simbologia

“política”. Nesse artigo exploraremos uma destas diversas interpretações.

Set, por inveja, matou seu irmão Osíris e o desmembrou e espalhou os pedaços de

seu corpo por diversas partes do Egito. Osíris era uma divindade ligada às cheias do Nilo e

ao poder de previsão destas cheias e também à obra civilizadora. Uma interpretação que

podemos levantar é que os sacerdotes egípcios se aproveitaram do conhecimento da

previsão das cheias do Nilo através da implantação do calendário solar para impor seu

poder ao povo iletrado. Além disso, agiam como elemento "civilizador" ao atuarem como

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elo entre os deuses e os homens. Portanto, os sacerdotes exerciam seu poder através da

manutenção de uma superestrutura que exaltava a previsibilidade tanto da natureza quanto

das massas humanas por eles dominadas. A previsibilidade permitia seu controle. Já Set

não era ligado às cheias do Nilo e seu ritmo constante. Como "deus do vento seco do

deserto", Set era uma energia imprevisível e indomável e contrária à obra civilizadora.

Hórus, filho de Osíris e Ísis, vinga o pai, vencendo Set numa luta em que lhe corta o

pênis. Com esta vitória, torna-se regente do Egito em substituição a Set. Entretanto, apesar

dessa dualidade e dessa oposição, Set e Hórus aparecem por muitas vezes com papéis

semelhantes nas representações de ritos simbólicos relacionados à cerimônia da “União das

Duas Terras”, o que nos faz interpretar o mito de Set como divindade principal do baixo

Egito que, com a consequente derrota deste diante do Alto Egito, resultando na unificação

do país, Set, por representar a parte derrotada, teve sua simbologia alterada para

representar os aspectos “negativos” para a vida egípcia, como a aridez e a seca.

Outras interpretações apontam que Néftis, esposa de Set, concebeu um filho de

Osíris. Tal filho seria o deus Anúbis. Esta traição de Néftis talvez tenha sido o fator

determinante para a oposição de Set contra Osíris ou até o de seu assassinato

(CAMPBELL, 1990: 185).

Aridez e umidade constituíam elementos não só naturais mas também cosmológicos

para os antigos egípcios. Neste sentido, entender esta dicotomia em seu aspecto

cosmológico e religioso pode nos ajudar a entender esta mesma dicotomia em seu aspecto

político:

“Osíris a deidade do Sol, fonte de calor, da vida e da fecundidade, além do que era

também considerado como deus do Nilo, que anualmente visitava sua esposa, Ísis” (a terra,

mas não toda sua totalidade, somente a parte inundada), “por meio de uma inundação.”

(BULFINCH, 2006: 281), e ainda “aquele que construiu os instrumentos de lavoura e

ensinou os homens a usá-los, e deu-lhes as leis, a instituição do matrimônio e uma

organização civil, e também os instruiu no culto dos deuses.” (BULFINCH, 2006: 281).

Nestas passagens é possível verificar que a dicotomia natural umidade/aridez

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também podia ser interpretada como dicotomia política ordem/caos, sendo Osíris e Hórus

representantes da ordem e Set representante do Caos.

Entretanto, sabemos que os arquétipos tendem a estar inseridos em esquemas de

compensações. O medo pode gerar fascínio. Desta forma, a figura arquetípica de Set, assim

como Satã, pode ter exercido algum fascínio oculto nas mentes de muitos egípcios. Será

que os egípcios adorariam a Set, seu deserto e todas as suas dores e doenças, em vez de

adorarem a Osíris e sua dádiva ao Egito, o rio Nilo? Teria Set um “presente para a

humanidade assim como Prometeu e Satã?

Em nossa interpretação, Set podia ao mesmo tempo representar a morte através da

seca como representar a liberdade do sistema de coletivismo servil que então reinava no

Egito. “O vento seco do deserto” incorpora o poder da transformação e da mudança

inerente ao imprevisível. Mas que imprevisível seria esse a que se opunha o deserto? Ora,

não seria a própria existência da civilização egípcia, baseada na agricultura, um

contraponto à vida tribal mais antiga, baseada na caça e coleta? Temos que uma das

grandes preocupações no antigo Egito recaía sobre o tema da agricultura, e é esta a chave

que liga Set a nossa interpretação de sua função mitológica de oposição a estrutura de

dominação social. Sem a agricultura, a civilização egípcia seria impossível. Ora, qual é a

principal ameaça à agricultura senão a seca prolongada? E qual a principal ameaça ao

coletivismo servil senão o “caos” de uma sociedade igualitária onde não haveria um faraó

divino para reinar?

Quem trouxe a agricultura para o Egito fora o próprio Osíris (BULFINCH, 2006:

281). Temos esta força personificada no próprio Osíris, que mesmo após sua morte por Set

continua a “exalar” uma força vital relacionada à fertilidade vegetal.

A civilização egípcia fora construída inexoravelmente sobre a estabilidade e a

previsibilidade das cheias do Nilo, da fertilidade dos solos e do trabalho coletivo

organizado por estamentos sociais. A agricultura egípcia demandou uma organização social

marcada por uma forte hierarquia, e dessa hierarquia se deu toda a mudança ocorrida no

Egito para se impulsionar tribos de caçadores-coletores à uma civilização cujos alicerces

estavam na estratificação do trabalho, nos regimentos e no poder teocrático. Muito além

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das cosmologias, a agricultura como uma tecnologia, propiciou o próprio aparecimento da

“estabilidade” da estrutura política, status este não só fundador e mantenedor, mas

necessário às próprias manifestações das estruturas sociais construídas sobre ela. Quando

nos referimos ao Egito, pensamos em como suas estruturas sociais são estáveis ao longo de

muitos séculos.

Assim, Set e sua “instabilidade” das forças do deserto imprevisíveis agia contra a

“estabilidade” da agricultura, da fertilidade e sua previsibilidade. Desse modo, desafiava

Osíris, não apenas pelo comando político, mas também em sua própria perspectiva de

como se manifestaria a estrutura social. Neste sentido, este desafio à “ordem” propõe uma

revolução a tudo que advinha da civilização que fora ensinada por Osíris:

Aquele que construiu os instrumentos de lavoura e ensinou os

homens a usá-los, e deu-lhes as leis, a instituição do matrimonio e

uma organização civil, e também os instruiu no culto dos deuses.”

(BULFINCH, 2006: 281)

Set, assim, representa o vento “da imprevisibilidade” que atua como elemento

contrário à obra civilizadora de Osíris e Hórus. Set era o inimigo não da “vida” ou do

“homem”, mas do modelo de civilização; poderia representar o modelo tribal antigo,

arcaico, de caça e coleta contra a agricultura e o sedentarismo que permitiram a ascensão

de um regime faraônico, de uma sociedade construída em cima da dominação. Temos

novamente o elemento arquetípico da liberdade individual e da contestação do poder se

manifestando. Nesta perspectiva, Set representa não o “mal” como entendido pelo

dualismo cristão, mas o contrário à ordem estabelecida por Osíris e Hórus. Entretanto, os

arquétipos não permanecem os mesmos por milênios. Os significados são transitórios,

ressignificáveis em sua essência. A interpretação cristã encarou os mesmos arquétipos

simbolizados por Set como o “mal” absoluto. Neste sentido, o deus egípcio Set também

ajudou a moldar a figura maligna de Satã.

Nos três mitos acima, a transgressão aparece com um crime político. A ordem

cósmica foi perturbada e, de alguma forma, tinha que voltar ao seu princípio, em outras

palavras, tinha que ser restabelecida.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos, enfim, ao final de nossa jornada sombria, e, afinal de contas, o que

encontramos? O que hoje chamamos Satã e o significado que há por trás deste nome tem

uma história que ainda precisa ser melhor esclarecida. Como foi mostrado de maneira

extremamente superficial neste artigo, dar a Satã unicamente o significado de arquétipo do

mal tornou-se insuficiente. Por trás do ódio a Satã há coisas obscuras escondidas. O que,

para muitos, significa nada mais que destruição e morte pode se revelar com um

significado mais nobre e edificante. Já foi dito aqui que Satã significa “adversário”, mas de

quem? As sociedades hierarquizadas odeiam a individualidade e fazem de tudo para

suprimi-la através da mentalidade de rebanho. Set, Prometeu e Satã foram divindades que

ousaram desafiar os antigos deuses reinantes, ou seja, desafiaram as ordens estabelecidas.

E hoje, quem as desafia? O que significa realmente o “mal”? Gostaríamos de terminar este

artigo dizendo que, para aqueles que detêm o poder, o “mal”, muitas vezes, é a liberdade, a

individualidade, a não-hierarquia sempre entendida pejorativamente como caos. Satã, Set e

Prometeu representam este “arquétipo da individualidade subversiva”, este anseio de

liberdade que afronta as ordens sociais. Mas, como identificar isso no registro

arqueológico? E principalmente: tem essa reflexão importância para a Arqueologia?

De modo geral, vincula-se a Arqueologia somente ao estudo da cultura material de

sociedades pretéritas, a Arqueologia, por assim dizer, focaria suas energias

preferencialmente na análise dos objetos que compõem as infra-estruturas das sociedades

que estuda. Porém, existem outras leituras para os conceitos limitantes desta abordagem

dos artefatos como tendo apenas a dimensão material formal e funcional que convenciona-

se considerar. Nesta perspectiva, os artefatos, algumas vezes, são “supervalorizados” em

alguns aspectos e “sub-valorizados” em outros aspectos. Em alguns casos acabam tendo

suas materialidades “infladas” sendo assim considerados apenas “objetos instrumentais” e

suas ligações com a superestrutura a que estavam ligados “minorizadas”, gerando uma

“artefatologia” que tende ao fetichismo. Tal epistemologia, nascida sob a égide da

modernidade, tem suas raízes num positivismo materialista que surge durante a revolução

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industrial, conceitos que se desenvolvem como fundadores da arqueologia do sec. XIX,

onde a cultura “material” é apenas o “objeto” estudado sob o foco do estrutural-

funcionalismo. Essa instrumentalização da cultura material, onde o artefato é destituído de

suas esferas transcendentes constitui-se em um fenômeno originário da cosmologia

moderna, tornando-se assim impróprio ao entendimento das culturas antigas onde a

separação cosmogônica entre o profano e o sagrado na cultura material não possuía uma

fronteira sensível (SUBIRATS, 1989: 101-102). Assim, muitas vezes, interessantes

reflexões sobre as sociedades pretéritas são perdidas devido à ênfase na análise da

materialidade dos objetos encontrados nas intervenções arqueológicas. A cultura material é

“significativamente constituída” e não podemos negligenciar tal esfera de ações e

pensamentos segundo Hodder (apud RENFREW; BAHN, 1996: 461).

Nosso ponto de vista se baseia numa posição contrária ao estado de coisas que

negligencia os aspectos simbólicos da cultura material. Entendemos que a cultura material

de uma dada sociedade é produto (e igualmente produtora) de uma concepção social sobre

a vida que é expressa, principalmente, através da mitologia. Os artefatos aqui são mais que

“objetos”, pois possuem significados que transcendem a matéria e o próprio tempo, podem

assim ser estudados de maneira transdisciplinar como propomos neste artigo sobre as

superestruturas inerentes as sociedades abordadas aqui. Em outros termos, tanto a

mitologia quanto a cultura material de uma sociedade refletem uma concepção de vida que

pode ser entendida como “imago mundi” desta sociedade. Seguindo esta linha de

pensamento, a cultura material torna-se parte constitutiva do próprio mito, ou, em outros

termos se “mitologiza” ao mesmo tempo que a mitologia se “materializa” através dos

artefatos, na vida cotidiana das sociedades, formando um todo coeso.

A proposta que desenvolvemos aqui vai além do estudo da própria cultura como

artefato em si. Nem mesmo foca-se no estudo da dimensão do material na cosmologia.

Queremos ir além destas tentativas. Nosso estudo é um estudo do discurso do poder.

Discurso este que se materializa em artefatos assim como se mitologiza, tornando-se

elemento da superestrutura. Enfim, desenvolvemos uma arqueologia que pretende alcançar

as mentalidades por trás dos artefatos.

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Embora não classifiquemos este nosso trabalho como sendo um trabalho de

Arqueologia Cognitiva, compartilhamos com esta uma visão de que os indivíduos

pertencentes a uma mesma cultura compartilham um “mapa cognitivo” que orienta suas

ações. Nesta perspectiva, nós entendemos a mitologia como a mais alta expressão deste

“mapa cognitivo”:

As a first concrete step it is useful to assume that there exists in

each human mind a perspective of the world, an interpretive

framework, a cognitive map […]. For human beings do not act in

relation to their sense impressions alone, but to their existing

knowledge of the world, through wich those impressions are

interpreted and given meaning. (RENFREW & BAHN, 1996:

370).

A vida, tal como entendida por uma sociedade, é o pano de fundo sobre o qual são

produzidas tanto a mitologia quanto a cultura material. Essas duas esferas da cultura

humana estão interligadas e nós acreditamos que o melhor que temos a fazer é uni-las a fim

de entendermos as culturas pretéritas de uma forma mais abrangente e viva.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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de Janeiro: Ediouro, 2006.

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Paulus, 2006.

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FUNARI, Pedro Paulo Abreu. Teoria e Métodos na Arqueologia Contemporânea: O

Contexto da Arqueologia Histórica. Disponível na Internet via:

http://www.cerescaico.ufrn.br/mneme/pdf/mneme13/124.pdf

JUNG, Carl. Gustav (et al.). O Homem e Seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

2008.

_____, Carl. Gustav. Escritos Diversos (volumes X e XI). Petrópolis: Vozes, 2003.

KELLY, Henry A. Satan, a Biography. Cambridge University Press, 2006.

LA VEY, Anton Szandor. A Bíblia Satânica. Morbitus Books Brasil, 1999.

RENFREW, Collin. BAHN, Paul. Archaeology: Theories, Methods and Practice.

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Mulher. Disponível na Internet via:

http://www.mackenzie.br/fileadmin/Graduacao/EST/Revistas_EST/III_Congresso_Et_Cid/

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SUBIRATS, Eduardo. A Cultura Como Espetáculo. São Paulo: Nobel, 1989.

Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas, Tradução da Versão Inglesa de

1961-Edição Brasileira. Nova Iorque: Watchtower Bible And Tract Society Of New York,

Inc, 1967.

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REFERÊNCIAS DIGITAIS

www.xeper.org