as metamorfoses do olhar

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AS METAMORFOSES DO OLHAR*

AS METAMORFOSES DO OLHAR*

Gerd Bornheim

Entre as peculiaridades mais notveis da lngua grega encontra-se a vinculao que si oferecer o verbo ver com o ato do conhecimento. Uma das razes, em nada secundria, do prprio uso da filosofia na Grcia prende-se justamente a tal vinculao. Mais ainda, esse surto da episteme insere-se num processo evolutivo que mostra uma verdadeira educao do ato de ver. Realmente, a viso humana no se deixa elucidar apenas em nvel fisiolgico, e sequer no psicolgico j so muitos os autores que analisam o seu exerccio enquanto indissocivel de um sentido instaurador da prpria gnese da percepo. De resto, tudo aqui se faz histrico: h uma histria do ver que acompanha os marcos mais decisivos do evolver da cultura ocidental. O que pretendo aqui traar um breve itinerrio que indique to-somente os momentos essenciais dessa histria.

Apio-me inicialmente nas bem fundadas pesquisas de Bruno Snell. A lngua grega singularmente prdiga em modalidades do verbo ver. Snell enumera, somente no contexto homrico, nove dessas modalidades: todo esse acervo prende-se sempre a formas bem determinadas de ver, como, por exemplo, o olhar furioso da deusa ou o olhar nostlgico de Ulisses, distante de sua ptria. Com o tempo, alguns desses verbos desapareceram, mas, em compensao, surgem outras formas de ver, como, notadamente, blepein e theorein (de oran, que significa ver). Um trao caracterstico apontado por Snell nessa riqueza toda est no fato de que esses modos do verbo ver ligam-se habitualmente a modos de conhecer. E se, originalmente, os verbos ver prendem-se diversidade de formas particulares de conhecimento, arrastados sempre por uma situao objetiva, mais tarde, com o incio do teatro e da filosofia, e como atestam os dois ltimos verbos referidos, a ao de ver concentra-se em si prpria, na ao de olhar em si mesma; assim, de meramente exterior, ela passa a educar-se nas dimenses de seu prprio exerccio. Alis, o verbo theorein deriva de um nome, theoros, ser espectador. Sem dvida, a teoria apenas isso: um ver concentrado e repetido, um ver que sabe ver, que inventa meios para ver cada vez melhor. E nessa educao do olhar, a partir dela, que se institui toda a filosofia e as cincias do Ocidente, e at mesmo o saber voltado para o prtico, como atesta a escola mdica de Cs, que calou a boca do feiticeiro e ensinou a estabelecer um diagnstico a partir do olhar atento.::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::::* (fragmento do texto, contido na obra: NOVAES, Adauto (org). O olhar. So Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 89)