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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Departamento de Filosofia AUTONOMIA E MOVIMENTO OPERÁRIO EM CORNELIUS CASTORIADIS Autor: Alfran Marcos Borges Marques Orientador: Prof. Dr. Sérgio Luís Rizzo Dela-Sávia Natal - RN dezembro- 2015

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Page 1: AUTONOMIA E MOVIMENTO OPERÁRIO EM CORNELIUS … · contradição fundamental do capitalismo a partir da experiência concreta dos operários nas ... capitalista e subdivisão racional

Universidade Federal do Rio Grande do Norte Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Departamento de Filosofia

AUTONOMIA E MOVIMENTO OPERÁRIO EM CORNELIUS CASTORIADIS

Autor: Alfran Marcos Borges Marques Orientador: Prof. Dr. Sérgio Luís Rizzo Dela-Sávia

Natal - RN dezembro- 2015

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ALFRAN MARCOS BORGES MARQUES

AUTONOMIA E MOVIMENTO OPERÁRIO EM CORNELIUS CASTORIADIS

Monografia apresentada ao Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como requisito parcial para obtenção do Título de Bacharel em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Sérgio Luís Rizzo Dela-Sávia.

Natal - RN

dezembro – 2015

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“Um homem se humilha Se castram seu sonho Seu sonho é sua vida

E vida é trabalho E sem o seu trabalho

Um homem não tem honra E sem a sua honra

Se morre, se mata”. (Gonzaguinha, Um Homem Também

Chora).

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RESUMO

MARQUES, Alfran Marcos Borges. Autonomia e movimento operário em Cornelius

Castoriadis. 2015. 45 folhas. Monografia de bacharelado (Departamento de Filosofia) –

UFRN, Natal, 2015.

A pesquisa consiste em apresentar as noções conceituais e argumentos mais

importantes para Cornelius Castoriadis que permitam elucidar o papel da ação política

operária na busca pela autonomia coletiva e individual. A partir da delimitação histórico-

conceitual da reflexão filosófica sobre o desenvolvimento do movimento operário,

demonstram-se as principais críticas de Castoriadis dirigidas ao gerenciamento científico da

produção, às tendências burocráticas da sociedade contemporânea e à alienação promovida

pela ideologia capitalista. Para tanto, é essencial compreender as categorias usadas em todo o

seu percurso filosófico: luta implícita, luta explícita, organização operária e contradição

fundamental do capitalismo. A relação entre movimento operário e projeto de autonomia

torna-se de máxima importância para Castoriadis, o que exige repensar a participação política

a partir de uma perspectiva substancial, ou seja, por meio da radicalização profunda da

própria noção de democracia. Em suma, o presente estudo procura analisar a autonomia

operária em Castoriadis reconstruindo o percurso histórico que o levou do marxismo às

noções de autonomia e imaginário social radical e, em seguida, como essa teoria social

defende a conquista do autogoverno coletivo e popular. Este debate propõe elucidar os

fenômenos que encarnam a heteronomia e a administração burocrática da sociedade: o

marxismo ortodoxo e o capitalismo. Diante das sombras deixadas pelo declínio da teoria

socialista e da alienação cada vez mais brutal do capitalismo, pensar a autonomia de forma

radical é o único modo de viabilizar a ação consciente, lúcida e criativa. Somente assim a

auto-instituição da sociedade apresentar-se-ia explicitamente aos olhos dos indivíduos

tornando-os portadores da responsabilidade de edificar a organização coletiva. Esta

capacidade de julgar as significações e a instituição social em sua totalidade implica um tipo

inédito de ser social e histórico.

Palavras-chave: Autonomia. Movimento Operário. Social-histórico.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 6

1 A LUTA IMPLÍCITA DO MOVIMENTO OPERÁRIO ................................................ 8

2 A LUTA EXPLÍCITA DO MOVIMENTO OPERÁRIO ............................................. 24

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 40

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 43

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INTRODUÇÃO

Durante o período que compreende o início da década de 1950 até o ano de 1980,

Cornelius Castoriadis elabora uma série de textos voltados para o debate acerca das

reivindicações e formas de luta empreendidas por trabalhadores e militantes revolucionários.

A principal tese defendida por Castoriadis consiste na estreita comunicabilidade das

reivindicações imediatas oriundas da contradição fundamental do capitalismo nas fábricas e a

ação política voltada para a derrocada definitiva do sistema de exploração. Isto porque, ao

contrário do que prega a ortodoxia marxista, não há separação entre o econômico e o político,

ou, dito em termos filosóficos, entre o imediato e o universal-histórico. Se estes domínios da

realidade são tomados separadamente e absolutamente, a luta implícita e a luta explícita do

proletariado perdem seu sentido ao inviabilizar qualquer perspectiva de uma teoria e de um

fazer revolucionário que congregue dois vértices do mesmo fenômeno.

Com o intuito de compreender a totalidade da consciência de classe na época atual e

responder às questões “O que é a classe operária?” e “No que consiste a originalidade do seu

projeto de autonomia?”, pretende-se neste trabalho monográfico analisar uma parte da obra de

Castoriadis diretamente relacionada com a organização dos militantes e com o significado da

história do movimento operário para a transformação da sociedade. Para tanto, destaca-se a

interpretação do filósofo grego sobre o conjunto de fatos e eventos que caracterizam os dois

séculos do projeto de autonomia socialista. Tenciona-se elucidar a recente história da

civilização ocidental diante da crise da sociedade de classes que gera a reivindicação pelos

produtores da expansão da autonomia em todos os níveis sociais. Para Castoriadis o

esclarecimento deste projeto de transformação radical decorre, articula-se e formula-se

historicamente no e através do movimento operário em seus diversos momentos, desde a

resistência quase silenciosa à disciplina imposta pelos gerentes, até a construção de

organizações políticas desafiadoras da hegemonia societária capitalista.

Na primeira parte da presente pesquisa abordam-se os principais elementos da

contradição fundamental do capitalismo a partir da experiência concreta dos operários nas

fábricas. Com isto se pretende chegar ao fundo do problema central das sociedades

burocráticas que é a divisão entre dirigentes e executantes. Com base na constatação da luta

implícita na sociedade de classes, o operariado inicia sua rebelião ao exigir melhorias nos

salários e nas condições de trabalho.

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Na segunda parte deste estudo é exposta a maneira como o proletariado amplia suas

reivindicações ao ponto de desafiar frontalmente a instituição social capitalista,

principalmente no momento em que forma organizações políticas de abrangência regional e

global. Neste esforço de disputar abertamente o controle das significações sociais centrais

com os dirigentes, o projeto de autonomia socialista toma forma com a elaboração de

programa contendo as linhas gerais de ação para a conquista das metas provisórias e da queda

definitiva da sociedade de classes. Também se alerta para o perigo do movimento operário

manter os princípios burocráticos ao não compreender com clareza o conteúdo positivo do

socialismo presente na luta cotidiana e nos grandes momentos históricos de consolidação do

projeto de autonomia socialista.

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1 A LUTA IMPLÍCITA DO MOVIMENTO OPERÁRIO

O início da publicação da revista Socialismo ou Barbárie, cujo principal editor foi

Castoriadis, data de março-abril de 1949 e ocorre no momento de ascensão do antagonismo

entre o bloco soviético e o bloco americano-europeu que reconfigurou a luta de classes por

todo o globo. O movimento socialista também se encontrava fortemente dividido. Por um

lado, o stalinismo tentava impor a hegemonia da sua doutrinação oferecendo o poder

econômico e político à camada burocrática, enquanto que, na maioria dos países europeus não

alinhados à Rússia, a degenerescência e a mistificação reformistas devastavam a militância

socialista. Na Europa, alinhada inteiramente aos ditames do capitalismo, o trabalhador “vê os

partidos ditos ‘socialistas’ participarem de governos burgueses, exercerem ativamente a

repressão de greves ou de movimentos dos povos das colônias, serem campeões da defesa da

pátria capitalista, e até esquecerem a referência a um regime socialista.” (CASTORIADIS,

1979). No plano teórico, ocorre o abandono das abordagens históricas e um fechamento na

microanálise de fenômenos interpretados como indicativos do “fim da filosofia” e da crítica

social.

Para confrontar o império da burocracia encarnada na organização capitalista e na

ideia de hierarquização dos quadros do Partido, os operários abandonaram gradativamente as

tradicionais formas de luta na esperança de retomar o projeto de autonomia por outras vias

mais eficientes e democráticas. Neste sentido, para repensar a crise da organização socialista,

emerge a necessidade de um novo esforço intelectual capaz de analisar com profundidade a

experiência do movimento operário, particularmente a partir de 1917. “Era claro que aos

nossos olhos que o objetivo prático mais importante era a reconstrução da teoria

revolucionária; que, antes de nos ‘precipitarmos’ numa ação qualquer, era urgente clarificar

nossas ideias e permitir – por isso mesmo – fazê-lo.” (CASTORIADIS, 1985, p.80). Na

realização desta tarefa, tão relevante quanto elucidar as causas e conseqüências da ação

explícita do proletariado nos sindicatos, partidos, greves gerais e grandes momentos

revolucionários, também constitui matéria intelectual da máxima importância descrever os

vários aspectos da luta entre dirigentes e executantes dentro da organização capitalista. “Essa

ação e essa organização cotidianas, às quais é preciso reconhecer doravante a importância

capital que lhes é própria, serão por nós englobadas no termo ‘luta implícita’. Implícita à

existência do proletariado, à própria condição de proletário.” (CASTORIADIS, 1985, p.138).

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Este conflito é expresso de duas formas fundamentais: como luta dos trabalhadores contra a

alienação e como ausência, isto é, apatia, passividade, fuga e isolamento das pessoas.

Antes mesmo de adentrar nos sindicatos e partidos, os operários carregam os

elementos embrionários de uma nova forma de organização social, de um novo

comportamento e de uma nova mentalidade humana em sua luta cotidiana no interior da

empresa capitalista (CASTORIADIS, 1985, p.139). “Há uma luta informal permanente dos

trabalhadores contra a exploração; e há também uma luta política explícita contra a

organização atual da sociedade, que o proletariado quase sempre travou.” (CASTORIADIS,

1985, p.213). O caráter alienado e não-criativo de sua atividade produtiva mantém o

trabalhador em constante questionamento sobre as perspectivas da sua atividade laborativa. A

classe operária está constantemente assombrada por um sentimento de frustração e medo de

que esteja condenada a permanecer vítima da atração e repulsão do capital. A preocupação

dos intelectuais com programas econômicos de "pleno emprego" e alto padrão de vida parece

insignificante em face da realidade opressiva da vida dos trabalhadores. Trata-se da reação

imediata diante da contradição fundamental do capitalismo experimentada desde o processo

produtivo que, enraizado nos valores liberais oriundos do iluminismo, fingi cumprir o projeto

moderno de libertação, mas submete os homens e mulheres a uma crescente alienação do

fruto do esforço coletivo. “Em vez de liberar as potencialidades humanas de autonomia,

autogestão e criatividade, essa ordem exclui as pessoas da direção de seus próprios negócios,

submete os seres humanos à dominação de racionalidades instrumentais e os mantêm presos

numa ‘gaiola de ferro’.” (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p.76).

Mas o arcabouço teórico da burocracia, principalmente os “intelectuais de esquerda”,

portadores de um conhecimento superficial da exploração e da luta contra a sociedade de

classes, separa radicalmente a experiência coletiva (direta, espontânea e informal do ambiente

de trabalho) da unidade dos militantes para além das fronteiras das fábricas e países. “Assim,

uma classe não pode existir na sociedade sem manifestar em algum grau uma consciência de

si mesma como um grupo com problemas, interesses e expectativas comuns – muito embora

esta manifestação possa por longos períodos ser frágil, confusa e suscetível de manipulação.”

(BRAVERMAN, 1987, p.36).

A concentração da produção enseja necessariamente o aparecimento, dentro das

empresas, de uma classe responsável por gerir a totalidade de conjuntos econômicos imensos,

o que leva à extensão quantitativa e à mudança qualitativa do aparelho burocrático dentro e

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fora do universo da fábrica. O volume de negócios modernos, com a instalação de todo o

aparato técnico e financeiro correspondente, impulsiona o aumento da centralização

capitalista e subdivisão racional em todos os setores da produção, mais especificamente no

microcosmo da fábrica (MILLS, 1957, p.111). A gestão científica do trabalho surge num

período de extrema e rápida acumulação do capital, num momento em que a grande indústria

capitalista se desenvolve com base na produção de valores em escala cada vez maior a partir

da aplicação sistemática da ciência à produção. A implantação do capitalismo monopolista

exigiu o crescimento das empresas e, consequentemente, aumentou seus órgãos

administrativos. Surge daí uma intensificação da burocratização que subdivide também a

direção em dois grupos: os que se ocupam das decisões dos negócios em escala geral e os que

se ocupam do gerenciamento da produção (MILLS, 1957, p.116). “No outro polo da

sociedade, o movimento operário degenera, burocratizando-se; e burocratiza-se ao se integrar

na ordem estabelecida, só podendo integrar-se nela se burocratizando.” (CASTORIADIS,

1985, p.231).

Neste ínterim, a emergência da burocracia corresponde à atual fase da concentração do

capital da mesma forma que a burguesia representava a fase precedente. “Por intermédio do

crescimento da instituição capitalista nuclear: a própria empresa se materializa num novo tipo

de organização burocrata-hierárquica; gradualmente, a burocracia tecnogerencial torna-se o

meio por excelência de empurrar o projeto capitalista.” (CASTORIADIS, p.20, 1992). No

entanto, em nenhum sentido é possível dizer que essa nova classe cresceu no seio da

sociedade anterior, nem que surgiu a partir de um inédito modo de produção. “É verdade

também que, de qualquer modo, o sistema capitalista não teria podido continuar a funcionar –

e, sobretudo, não teria podido assumir sua forma burocrática moderna – se a estrutura

hierárquica não somente fosse aceita, mas também ‘valorizada’ e ‘interiorizada’.”

(CASTORIADIS, 1985, p.257).

Disto resulta o triunfo de uma representação imaginária da sociedade enquanto sistema

de pirâmides hierárquicas no qual resta a única forma de identificação social, já que todas as

demais determinações, todos os outros pontos de enraizamento pessoal vão sendo esvaziados

de conteúdo. “Numa sociedade onde não existem coletividades vivas verdadeiras, onde tudo

se uniformiza através da mídia de massas e da corrida do consumo, o sistema pode oferecer

apenas, para mascarar o vazio da vida, a ridícula futilidade de um lugar na pirâmide

hierárquica” (CASTORIADIS, 1985, p.258). Mesmo assim, “o indivíduo se vê confrontado

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em todas as ocasiões com organizações que parecem muito remotas; sente desamparo diante

dos quadros de direção.” (MILLS, 1957, p.150).

Um dos principais eixos de análise do pensamento de Castoriadis na época em que

contribuía para o Socialismo ou Barbárie refere-se à ascensão da burocracia enquanto nova

classe social hegemônica. O crescimento do fenômeno econômico e político da burocracia

expressa o domínio das tendências mais profundas da produção capitalista moderna que se

resume na concentração das forças produtivas, aparecimento nas grandes empresas de

enormes aparelhos burocráticos de direção, fusão dos monopólios do Estado e conseqüente

regulamentação estatal da economia. Na segunda metade do século XX, o gerenciamento da

produção e da organização social avança cada vez mais rumo à heteronomia com o

recrudescimento da polarização entre dirigentes e executantes. “A divisão das sociedades

contemporâneas – ocidentais ou orientais – em classes já não mais corresponde à divisão entre

proprietários e não-proprietários, mas àquela, muito mais profunda e mais difícil de eliminar,

entre dirigentes e executantes no processo de produção.” (CASTORIADIS, 1985, p.81). Este

diagnóstico permite Castoriadis (1985, p.81) redefinir o sentido da luta de classes na intenção

de enfrentar as novas questões que se descortinavam para o movimento operário a partir de

sua luta cotidiana: “O socialismo é a supressão da divisão da sociedade em dirigentes e

executantes, o que significa ao mesmo tempo gestão operária em todos os níveis – da fábrica,

da economia e da sociedade – e poder dos organismos de massas – sovietes, comitês de

fábrica ou conselhos.”

Quando os partidos ou sindicatos formam organizações separadas dos militantes,

reduzindo estes a um papel passivo e tentando dominá-los, reproduzem a profunda divisão

entre dirigentes e dirigidos em seu próprio seio porque não compreendem com clareza o

verdadeiro conteúdo do socialismo. “Nem é preciso dizer que o socialismo é ‘impossível sem’

a ação autônoma do proletariado; ele é senão essa própria ação autônoma. Autônoma:

dirigindo a si mesma, consciente de si mesma, de seus objetivos e de seus meios.”

(CASTORIADIS, 1985, p.82). A exigência da autonomia impele o proletariado para a

consciência da necessidade de emancipação, erigindo os valores, objetivos e estratégias para

conquistar seus objetivos imediatos e outros mais abrangentes. “Precisamos falar

concretamente da sociedade socialista, mostrar as possibilidades imensas que ela ofereceria ao

florescimento da vida dos homens, discutir em termos precisos sobre sua organização, seus

problemas, suas dificuldades.” (CASTORIADIS, 1985, p.84). Portanto, os principais

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elementos para a reflexão das metas e caminhos a serem traçados são fornecidos pela práxis

dos homens e mulheres engajados diretamente nas suas atividades produtivas que criam um

conflito permanente em todos os estágios e em todos os setores da vida social decorrente da

crise da sociedade de exploração. “Estas contradições demonstram a necessidade de

fundamentar a luta da classe trabalhadora e a reconstrução da sociedade a partir da oposição

fundamental dos trabalhadores ao processo de produção capitalista.” (SINGER; BOGGS,

1972, p.5).

Para Castoriadis não há crítica e nem mesmo análise possível do capitalismo fora de

uma perspectiva socialista. O conteúdo positivo do socialismo deriva da história real vivida

pela classe que tende a realizá-lo, apoiando-se numa deliberação que expressa a atitude

politicamente revolucionária. Os elementos socialistas constantemente produzidos pelo

proletariado devem ser extrapolados e generalizados num projeto total de reconfiguração dos

meios de produção que permita a administração direta dos produtores e resolva a contradição

entre direção e execução. Deste modo, a teoria é obrigada a partir das estruturas lógicas e

epistemológicas da cultura atual, que não são de modo algum formas neutras, independentes

do seu conteúdo, mas que expressam de modo antagônico e contraditório os comportamentos

e atitude gerados pelas relações sociais do capitalismo. “Somente retornando em cada

oportunidade à fonte, confrontando os resultados da teoria com o conteúdo real da vida e da

história do proletariado, é que podemos revolucionar nossos métodos mesmos de pensar e

construir mediante sucessivos abalos a teoria socialista.” (CASTORIADIS, 1985, p.97).

A experiência do proletariado não o leva de modo automático, imediato e direto para

os problemas gerais, mas existe uma ligação orgânica do fazer da classe trabalhadora na

empresa e na sua vida cotidiana com as questões relacionadas à instituição geral da sociedade

(CASTORIADIS, 1985, p.218). “quanto a nós dizemos: a luta do proletariado contra a

exploração leva-o a colocar o problema da transformação das relações sociais. Até mesmo o

fato de colocar esse problema e, ainda mais, o de lhe dar resposta foi o objeto de uma luta

secular.” (CASTORIADIS, 1985, p.220). Esta totalidade da experiência é, ao mesmo tempo,

criada e constantemente destruída pelo funcionamento do capitalismo que a fragmenta e

mistifica ao defender uma separação estagnada entre a realidade imediata e a instituição

global da sociedade. “É aflitivo ter de lembrar a marxistas que a concepção socialista consiste

precisamente em recusar o dilema – tipicamente burguês – entre cooperação espontânea e

aparelhos de direção.” (CASTORIADIS, 1985, p.225). A partir da visão do marxismo

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ortodoxo, a revolução contra o capitalismo foi concebida cada vez mais como uma questão de

eliminar os excessos do mecanismo capitalista, melhorando as condições de trabalho ao

acrescentar à organização fabril uma estrutura formal de controle do trabalhador, o que

substituiria os mecanismos capitalistas de acumulação e distribuição pelo planejamento

socialista sem a contestação necessária da técnica em si. “Os marxistas, impressionados

talvez, e até aterrados pela imensa produtividade do processo de trabalho, adaptaram-se à

maneira de ver a fábrica moderna como uma inevitável, mas aperfeiçoável forma de

organização do trabalho.” (BRAVERMAN, 1987, p.21).

Por isto, a tentativa de racionalização capitalista das relações de produção revela-se,

no final das contas, incompatível com o objetivo fundamental da atividade produtiva ao fazer

do homem mais uma peça subordinada passivamente à lógica da cadeia produtiva. Tal

contradição aparece desde o início no elemento mais simples da relação entre capital e

operariado, a hora de trabalho. “O conteúdo da hora de trabalho tem significações diretamente

contrárias para o capital e para o operário; para aquele, essa significação é o rendimento

máximo, enquanto para esse é o rendimento correspondente ao esforço que ele considera

justo.” (CASTORIADIS, 1985, p.112). Deste modo, o empregador faz um acordo de

remunerar com um preço fixo o assalariado que, em contrapartida, aceita alienar um período

fixo do seu tempo em benefício do empregador. Mas este jamais pode ter certeza de obter o

máximo do que pode ser adquirido nesse tempo que o assalariado lhe deve. Para ganhar a

adesão do operariado com a finalidade de conseguir sua dedicação completa ao crescimento

do ritmo produtivo, apela-se para o uso da ciência com o intuito de redefinir a concepção de

trabalho e assim convencer os operários de que o acordo é justo, sem arbitrariedade ou

despotismo, uma vez que na base da organização científica do trabalho encontra-se a

justificativa da obrigação e do controle na definição do plano de tarefas e de execução.

Na dominação pretendida pelas diretorias existe a ambição de descobrir outras bases

para a mobilização dos assalariados e para a utilização de seu tempo. “Em outras palavras, os

gerentes modernos estariam à procura de um novo acordo, baseado em relações de confiança.

Sendo o objetivo perseguido o de que o assalariado procure, por si só, ser o mais eficaz, o

mais rentável possível.” (LINHART, 2007, p.105). Além disto, as lógicas organizacionais e

tecnológicas têm como objetivo colocar o assalariado em situação de homogeneização de suas

práticas, de suas linguagens e de suas filosofias profissionais, sempre com o intuito de

descobrir o mínimo de gestos com o máximo de eficácia e controle por parte da gerência.

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“Hoje, condições naturais e técnicas estão em constante transformação, a fim de acelerar a

produção. Mas, para o operário, o trabalho perdeu todo o interesse além do simples ganha-

pão. Portanto, ele resiste inelutavelmente a essa aceleração.” (CASTORIADIS, 1985, p.101).

Não existe solução aparente dentro dos referencias do capitalismo para esse conflito, nem

mesmo o apelo à racionalização é eficaz na defesa da planificação da produção. “Na medida

em a produção não é completamente automatizada, tais tempos se ligam sempre, em última

instância, a ‘tempos humanos’, ou seja, aos rendimentos obtidos onde o trabalho vivo

continua a intervir.” (CASTORIADIS, 1985, p.101). Portanto, os capitalistas estão

interessados unicamente na acumulação ininterrupta enquanto os trabalhadores desejam

condições em que exerçam plenamente a autogestão, conseqüentemente, enquanto durar o

sistema de classes, a fábrica torna-se um campo de disputa pela monopolização do

conhecimento tecnológico e controle das decisões.

Uma das armas dos dirigentes para fragilizar a autonomia operária são os métodos de

organização científica que pretendem fornecer base objetiva para a construção do “único bom

método” descoberto mediante a decomposição de cada operação numa sucessão de

movimentos cuja duração seria medida entre os diversos tipos de gestos realizados por

diversos operários. “O fracasso da racionalização ‘científica’ obriga constantemente o

capitalismo a voltar ao empirismo da coerção pura e simples e, por isso mesmo, a agravar o

conflito inerente a seu modo de produção, a aumentar a sua anarquia, a multiplicar seu

desperdício.” (CASTORIADIS, 1985, p.103). Em outro nível de análise, o gerenciamento

capitalista caracteriza-se por sua tendência a identificar as forças produtivas com os meios

materiais de produção, negando, assim, que a principal força produtiva seja constituída pelos

próprios produtores. Conseqüentemente, a gestão da fábrica atribui um papel privilegiado não

à capacidade criativa dos trabalhadores, mas à acumulação de novos meios de produção e aos

conhecimentos técnicos.

Os pressupostos deste tipo de divisão do trabalho não respeitam as capacidades

psíquicas do trabalhador porque viola o que é mais humano no processo, a ideia de que o

trabalho realizado é produto de uma relação que envolve concepção e execução. “Torna-se,

portanto, fundamental para o capitalista que o controle sobre o processo de trabalho passe das

mãos do trabalhador para as suas próprias. Esta transição apresenta-se na história como a

alienação dos processos de produção do trabalhador; para o capitalista, apresenta-se como o

problema da gerência.” (BRAVERMAN, 1987, p.59).

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A concepção teórica dos métodos de organização científica do trabalho pressupõe

condições ideais afastadas da realidade concreta dos operários, em outras palavras, eliminam-

se completamente os fatores particulares que freqüentemente alteram o curso da produção. A

Teoria Geral da Administração é mistificadora na medida em que traz consigo a ambigüidade

básica do processo ideológico que consiste em vincular-se às determinações sociais reais

enquanto técnica de mediação do trabalho ao mesmo tempo em que se afasta dessas

determinações reais. Desta maneira, a gerência científica significa o empenho no sentido de

aplicar os métodos da ciência aos problemas complexos e crescentes do controle do trabalho

nas empresas capitalistas. Ela parte unicamente do ponto de vista do dirigente, portanto, não

procura descobrir e confrontar a causa do conflito de classes, mas a aceita como um dado

inexorável (BRAVERMAN, 1987, p.83).

O melhoramento do rendimento do trabalhador na produção é organizado de acordo

com os princípios tayloristas, enquanto os departamentos de pessoal ocupam-se com

a seleção, manipulação, pacificação e ajustamento da mão-de-obra para adaptá-la ao

processo de trabalho assim organizado. O taylorismo domina o mundo da produção;

os que praticam as ‘relações humanas’ e a ‘psicologia industrial’ são as turmas de

manutenção da maquinaria humana. (BRAVERMAN, 1987, p.84).

Pelo exposto até este momento, concluem-se alguns princípios básicos da gerência

capitalista (BRAVERMAN, 1987): O primeiro princípio da administração científica consiste

na dissociação do processo de trabalho das especialidades dos trabalhadores que preconiza a

subjugação do conhecimento dos operários diante das políticas gerenciais; O segundo

princípio diz que a “ciência do trabalho” nunca deve ser desenvolvida pelo trabalhador, mas

sempre pela gerência, em outras palavras, trata-se do princípio da separação de concepção e

execução. Tanto a fim de assegurar o controle pela gerência como baratear o custo da mão-de-

obra, concepção e execução tornam-se separadas para que os trabalhadores orientem-se por

instruções simplificadas de raciocínios técnicos; O terceiro princípio da administração

científica tem como elemento essencial o pré-planejamento e o pré-cálculo de todos os

detalhes do processo de trabalho que já não existiria na imaginação do trabalhador. Em

síntese, é a utilização do monopólio do conhecimento para controlar cada fase do processo

de trabalho e seu modo de execução. “Era para garantir que, à medida que os ofícios

declinassem, o trabalhador mergulhasse ao nível da força de trabalho geral e indiferenciado,

adaptável a uma vasta gama de tarefas elementares, e à medida que a ciência progredisse,

estivesse concentrada nas mãos da gerência.” (BRAVERMAN, 1987, p.109).

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No entanto, no que pese toda a tentativa de mensurar e condicionar os gestos do

trabalhador, a experiência mostra que cada operário individualmente utiliza alternativamente

várias maneiras de realizar a mesma tarefa, até mesmo para quebrar a monotonia do trabalho

(CASTORIADIS, 1985, p.105). “O que aparece à organização científica do trabalho como um

gesto absurdo implicando desperdício de tempo tem sua lógica na constituição psicossomática

pessoal do operário em questão, constituição que o leva a seguir seu próprio ‘bom método’.”

(CASTORIADIS, 1985, p.104). O fracasso dos métodos de organização científica do trabalho

é o resultado da resistência dos operários ao controle pretensamente racional dos gestos

necessários para o incremento da produção. Para estabelecer as normas da fábrica os

dirigentes criam uma minoria que absorve todas as suas regras de gerenciamento, no entanto,

sem relação com as condições reais de produção. Objetiva-se um duplo resultado: criar no

seio do proletariado uma camada privilegiada, ao mesmo tempo sustentáculo direto dos

exploradores e dissolutores da solidariedade operária, principalmente no terreno da resistência

ao rendimento; e utilizar as normas estabelecidas pela minoria para comprimir os tempos

concedidos à maioria dos operários produtivos (CASTORIADIS, 1985, p.109). A imposição

da norma dos dirigentes não garante a resolução dos conflitos porque o operário, pressionado

por limites de difícil cumprimento, tende a diminuir a qualidade do seu trabalho, ou seja, o

controle da qualidade das peças fabricadas torna-se fonte de novos conflitos. Em geral, o

planejamento realizado pelos dirigentes aumenta forçosamente o rendimento o que provoca

também um desgaste excessivo do equipamento, pois o plano de execução muitas vezes

desconhece a particularidade do funcionamento da maquinaria ao abstrair condições ideais de

operação.

Algumas ações dos operários evidenciam a rede de resistência às medidas de controle

adotadas pela empresa capitalista. Uma delas diz respeito às cronometragens para estabelecer

o tempo padrão dos processos a partir do trabalhador mais rápido. Quando os responsáveis

por essas medições vão realizá-las os operários buscam manter uma cadência mais lenta do

que o solicitado. Tal exemplo demonstra que as pequenas vitórias conseguidas por meio de

táticas cotidianas raramente mudam a essência das dificuldades advindas do modelo de

organização do trabalho, mas, além de propiciar um prazer em alterar as regras impostas, as

táticas de enfrentamento cotidiano têm sido suficientemente eficazes para obrigar a empresa a

modificar determinados aspectos centrais no modelo de produção. “Além do estereótipo do

‘operário fordista’, o que se pode chamar de face oculta da oficina: as modalidades de auxílio

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mútuo nos postos de trabalho e a distância que se toma em relação às instruções do

departamento de métodos, os macetes de trabalho e as técnicas para preservar os ‘segredos’,

em especial para se proteger do olhar dos cronometristas.” (BEAUD; PIALOUX, 2009, p.27).

Também é objetivo dos dirigentes apropriarem-se do aspecto intelectual do trabalho operário,

do saber e da habilidade requeridos pela manipulação da máquina, provocando a expropriação

dos operários em relação ao domínio do processo de trabalho e uma maior dependência à

organização capitalista do trabalho.

O gerenciamento da produção que parte da ideia da existência do operário individual

consiste em outra abstração capitalista que tenta a todo o custo transformar os produtores em

indivíduos atomizados sem nenhum vínculo orgânico. Para se expandir o capitalismo destrói

os agrupamentos sociais preexistentes para dissolver qualquer traço de experiência coletiva

que una os operários, transformando-os numa massa anônima. É um modo de organização da

produção economicamente eficaz, talvez, mas humanamente muito custoso, na medida em

que gera uma tensão permanente: entre quem manda e o subcontratado, entre chefe e operário

e, por fim, entre os próprios operários, sobre os quais recai uma parte das contradições não

resolvidas (BEAUD; PIALOUX, 2009, p.295). Com base na concepção simplista de homo

economicus a administração capitalista desconhece a tensão entre a personalidade do

indivíduo e a estrutura da organização ao defender a tese segundo a qual o trabalhador deve

ficar restrito ao seu papel na estrutura organizacional parcelada. “Constantemente, o

capitalismo na fábrica tenta reduzi-los a moléculas mecânicas e econômicas, isolá-los, fazê-

los gravitar em torno do mecanismo total, postulando que eles obedecem apenas a essa lei de

Newton do universo capitalista, ou seja, a motivação econômica.” (CASTORIADIS, 1985,

p.114). Com isto, individualiza-se a relação entre os assalariados e os dirigentes ao fomenta

uma relação do tipo cooperativo com cada um dos operários. O objetivo é lidar com os

assalariados como pessoas em sua individualidade, e não como membros de coletivos com

contornos e valores incontroláveis, para que assim se integrem sem resistência aos objetivos

da empresa. Mas esta tentativa de individualização entra em franca contradição com a

realidade da produção coletivizada e socializada porque os proletários agrupados numa

empresa só podem viver e coexistir socializando-se novamente a partir das novas condições

criadas pela situação capitalista na qual estão inseridos. “É porque a sua situação na produção

cria entre eles uma comunidade de interesses, de atitudes e de objetivos que se opõem

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irremediavelmente aos da direção que os operários se associam espontaneamente, no nível

mais elementar, para resistir, se defender, lutar.” (CASTORIADIS, 1985, p.117).

Muitas escolas da teoria da administração surgiram para justificar essa tentativa de

subordinação e isolamento dos operários, sempre com o apelo à racionalidade do processo

produtivo. “Para Elton Mayo a cooperação dos operários reside na aceitação das diretrizes da

administração, representando um escamoteamento das situações de conflito industrial. Nesse

sentido, ele continua a linha clássica taylorista, sendo que este acentuava o papel da

concentração direta, enquanto aquele a substitui pela manipulação” (TRAGTENBERT, 1971,

p.19). “A partir de uma vertente mais próxima da psicologia aplicada, a Escola das Relações

Humanas aparece como uma ideologia manipulatória, pois na realidade concreta o operário

deseja a melhora do salário no lugar de símbolos baratos de prestígio” (LINHART, 2007).

Logo, estas transformações que visam modernizar a produção desencadeiam reações de

autodefesa contra a burocracia aplicada no nível mais imediato da produção. “Mais do que

cooperar lealmente e confiar em seus superiores, cada um trata de se tornar indispensável,

insubstituível, tornando seu trabalho ainda mais opaco, ainda mais inacessível.” (LINHART,

2007, p.113).

Portanto, apresenta-se uma dupla estrutura dentro da empresa capitalista, por um lado,

a organização formal representada nos organogramas, cujas linhas são seguidas pelos

dirigentes para distribuir o trabalho, transmitir ordens e imputar responsabilidades. Por outro

lado, em oposição a essa organização formal, existe a organização informal posta em prática

pelos indivíduos e grupos segundo a necessidade da luta contra a exploração. A organização

formal, portanto, coincide com a camada dirigente assim como a organização informal não é

uma excrescência que aparece nos vazios da organização formal. Ela tende a representar um

outro modo de funcionamento da empresa centrado sobre a situação real dos executantes

(CASTORIADIS, 1985, p.120). “Essa recusa de colocar efetivamente os problemas da

empresa numa perspectiva de classes faz com que ela caia na abstração teórica, ao mesmo

tempo em que ‘soluções práticas’ cujo utopismo repousa precisamente na supressão

imaginária da realidade de classes.” (CASTORIADIS, 1985, p.121). Tal postura também foi

reproduzida do outro lado da cortina de ferro: “As normas de gestão das empresas soviéticas

baseiam-se, de forma crescente, na dos países capitalistas ‘avançados’, e numerosos managers

soviéticos vão se graduar em escolas de administração de empresa (as business schools) dos

Estados Unidos e do Japão.” (BETTELHEIM, 1979, p.50).

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Para o aparelho de direção a solidariedade entre os operários não é vista enquanto

coletividade que resulta do processo social no qual cada parte está em interdependência, mas

como uma simples coleção de partes decomponível e reintegrada de acordo unicamente com a

posição ideológica dos dirigentes. “Todos os atos produtivos devem, em teoria, ser duplicados

idealmente e a priori no seio do aparelho burocrático; tudo o que implica uma decisão deve

ser efetuado previamente – ou de imediato –, fora da própria operação produtiva.”

(CASTORIADIS, 1985, p.123). Sempre se mostrou frustrada a tentativa do capitalismo de

programar uma rígida separação entre a direção e a execução ao organizar o trabalho

independentemente dos operários, o que é absurdo do ponto de vista da própria eficácia da

produção. Isto porque a supressão das faculdades e capacidades de autodireção compromete o

êxito da fabricação. Materiais fabricados nas melhores condições possíveis sempre

apresentam especificidades imprevistas durante a produção. Isto é conseqüência do avanço

ininterrupto das capacidades técnicas dos homens que supõe o emprego de faculdades cada

vez mais desenvolvidas do indivíduo, ou seja, absolutamente incompatíveis com o papel de

puro e simples executante. “Para o executante, a atitude ideal é tomar a iniciativa

verdadeiramente eficiente, e fingir que segue em tudo a diretiva oficial, o que nem sempre é

fácil. A fábrica chega assim, em certas ocasiões, a constituir um duplo mundo, onde as

pessoas fingem fazer uma coisa enquanto na verdade fazem outra.” (CASTORIADIS, 1985,

p.128). Por isto, cabe aos operários a penosa tarefa de adaptar os planos da direção para a

realidade concreta através da criatividade que, paradoxalmente, a direção procura suprimir ou

esconder os méritos. “No próprio olhar dirigente, está incorporada, por construção, a negação

da realidade própria do objeto que ele pretende ver. E não pode ser de outro modo. Pois o

reconhecimento dessa realidade própria implicaria que o dirigente nega a si mesmo enquanto

dirigente.” (CASTORIADIS, 1985, p.130).

Ao contrário do prega a doutrina da organização científica do trabalho, segundo a qual

basta os operários se conformarem estritamente às prescrições tecnológicas e às ordens para

que as operações de trabalho se desenvolvam de maneira conveniente, o conhecimento e a

experiência não formalizados provenientes da prática e do aprendizado do operariado são

indispensáveis para atenuar os imprevistos e as disfunções inerentes a qualquer atividade

produtiva. Por isso, o sistema capitalista não pode dar vazão livre e ilimitada a sua tendência

fundamental para a exploração total. Primeiro de tudo, esta tendência rapidamente entra em

conflito com um dos objetivos da própria produção, pois o cumprimento do objetivo

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capitalista (a exploração ilimitada da força de trabalho) se choca com outra de igual

importância (o aumento da produtividade do trabalho). Do ponto de vista estritamente

econômico, o trabalhador é mais do que uma máquina, ele produz para o capitalista mais do

que ele custa. Além disso, no curso de seu trabalho, apresenta a criatividade, a capacidade de

produzir mercadorias em quantidades cada vez maiores e com melhoria de qualidade. Quando

o capitalista trata o trabalhador como mero insumo, logo aprende, custosamente, que nenhum

procedimento técnico de gerenciamento pode substituir o inestimável valor da criatividade

humana. Esta é a contradição fundamental no sistema moderno de exploração. Também é a

razão histórica para o seu fracasso e para a sua incapacidade de estabilização

(CASTORIADIS, 1949b).

Na realidade, os gerentes conhecem a existência dos procedimentos inventados e

utilizados cotidianamente pelos operários e é por essa criatividade que se baseia o bom

funcionamento do sistema. “Em suma, uma parte da eficácia da organização reside nessa

atividade oculta, que contradiz a racionalidade autoproclamada do taylorismo. E também,

graças a essa atividade oculta, foram atingidos índices prodigiosos de produtividade durante

os anos de grande crescimento econômico.” (LINHART, 2007, p.71). Na vida real, o

capitalismo é obrigado a confiar na capacidade de auto-organização das pessoas, reconhecer a

importância da criatividade individual e coletiva dos produtores. Sem fazer uso destas

habilidades o sistema não poderia sobreviver por um dia (CASTORIADIS, 1979). Mas toda a

organização "oficial" da moderna sociedade ignora estes aspectos e pretende suprimir essas

habilidades ao máximo. Ao combater imprevistos os operários contribuem para adaptar as

ordens da direção ao plano concreto, mas também demonstram a irracionalidade e ineficácia

da organização capitalista. “Constroem para si espaços de liberdade (de fazer coisas diferentes

do que decretam as instruções), constituem para si margens de manobra que lhes permitam

encontrar uma identidade distinta do operário intercambiável, previsto nos princípios da

organização científica do trabalho.” (LINHART, 2007, p.74). Por conseguinte, os esquemas

teóricos dos dirigentes não podem considerar uma porção de microfatores invisíveis para os

departamentos de estudos e que só podem ser encarados pela habilidade, competência e

iniciativa dos executantes. Isso demonstra que não somente os operários não gostam de

obedecer às regras impostas pela direção, mas que são impedidos de fazê-lo na medida em

que são interessados no sucesso da fábrica para que esteja em condições de lhes pagar o

salário (GUILLERM; BOURDET, 1976, p.168).

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Portanto, a contradição fundamental do capitalismo encontra-se na esfera da produção

e do trabalho. Esta alienação aponta o esforço do capitalismo em reduzir os trabalhadores ao

papel de meros executantes e da incapacidade deste sistema para funcionar caso alcance este

objetivo. Em suma, o capitalismo afirma simultaneamente a participação e a exclusão dos

trabalhadores no processo de produção, estendendo a mesma relação contraditória aos demais

aspectos da esfera social e política. Neste sentido, o capitalismo é a primeira sociedade na

história que é organizada de tal forma que ele contém uma contradição interna intransponível.

Reflexo deste fenômeno é a estrutura atual da organização científica da produção que

postula a existência de uma previsão perfeita do processo completamente acessível

imediatamente apenas à direção. “Os ‘chefes’ técnicos são tão supérfluos quanto os

contramestres na produção; não são grandes engenheiros insubstituíveis, mas burocratas que

dirigem e ‘organizam’ (ou seja, desorganizam) o trabalho da massa de técnicos assalariados.”

(CASTORIADIS, 1985, p.152) Disto resulta que os produtores são privados, em teoria, da

possibilidade de realizar a readaptação permanente do plano à realidade, uma vez que, tal

adaptação já faz parte a priori da previsão oferecida pela direção. “É preciso que o ponto de

vista ‘universal’ do funcionamento da empresa prevaleça sobre os pontos de vista

‘particulares’ dos operários e de seus grupos. Portanto, finalmente, é preciso que uma camada

particular de dirigentes se encarregue de impor à totalidade dos produtores esse ponto de

vista ‘universal’.” (CASTORIADIS, 1985, p.134). Logo, o conflito é inevitável, pois os

imperativos oriundos da tentativa de universalização dos valores da direção assumem para

cada grupo de operários a forma de uma lei exterior que é imposta arbitrariamente. Por outro

lado, são os operários, mesmo quando estão forçosamente divididos em grupos, que detém o

conhecimento da totalidade efetiva. “A direção se esforça para pensar na realidade efetiva da

produção. Os produtores são essa própria realidade efetiva. Tomados em sua totalidade,

abarcam a totalidade dos aspectos da atividade da empresa: de fato, eles são essa totalidade.”

(CASTORIADIS, 1985, p.135).

Desta maneira, o operário deve, primeiramente, inventar sua maneira de fazer e ter em

conta imprevisíveis variações da matéria-prima e das situações de produção. A prova da

necessidade de aplicação dessa criatividade incessante é demonstrada pela chamada “greve de

zelo”, quando se bloqueia o funcionamento de um serviço sem parar de trabalhar, apenas

aplicando estritamente o regulamento em vigor. Ao mesmo tempo, o operário deve ainda

inventar todas as formas de astúcia para fazer crer à direção que aplica as diretivas impostas.

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“As deformações da sociedade industrial, nos países desenvolvidos, burocraticamente

heterogeridos, em regime de capitalismo privado ou de capitalismo de Estado, se explicam

por uma ‘contradição fundamental: o operário só pode obedecer às diretrizes dos chefes

desobedecendo-lhes.” (GUILLERM; BOURDET, 1976, p.169). Portanto, a crise do

capitalismo resulta do fato de que a classe dominante sobrevive pela criatividade de todos os

homens, a qual, no entanto, tenta negar ou até mesmo impedir. As tendências atuais em

direção ao alargamento das tarefas (job enlargement) e a aceitação de “equipes autônomas de

trabalho” são tentativas da classe dirigente de controlar a espontaneidade criadora do

operariado ao mesmo tempo em que conservam as estruturas hierárquicas e autoritárias não

somente na empresa mas na sociedade como um todo. Conforme aponta Antônio Ozaí da

Silva (2015):

A origem da instituição disciplinar remonta às necessidades de controle da força de

trabalho e, simultaneamente, das exigências técnicas administrativas produzidas pelo

avanço da racionalidade moderna marcadas pela delimitação e enquadramento do

tempo e da forma como o operário deve ser utilizado, assim como, o domínio dos

processos, gestos, atitudes e comportamentos, métodos estes ainda mais

intensificados com a adoção irrestrita do taylorismo.

Revela-se que a organização capitalista é profundamente contraditória ao pretender

lidar apenas com o operário individual quando na verdade a produção é realizada pela

coletividade dos operários. A direção pretende reduzir o operário a tarefas limitadas e

determinadas, mas é obrigada a se apoiar nas capacidades criativas que o operariado

desenvolve ao mesmo tempo em função e em oposição ao modo produtivo. Assim, a

organização capitalista do trabalho apóia-se na definição das normas de trabalho contra as

quais os operários lutam constantemente. Além disto, o trabalhador adquire rapidamente a

consciência de que, sob o capitalismo, é obrigado a produzir cada vez mais e receber cada vez

menos. Na medida em que o trabalhador se dá conta de que o propósito de sua vida não é

simplesmente ser uma fonte de lucro para a sua entidade patronal, torna-se consciente por si

mesmo da exploração e começa a reagir contra as contradições das relações de produção.

Para se defender contra a exploração operário é obrigado a reivindicar o direito de

determinar por si mesmo seu ritmo de trabalho. “Mas, enquanto durar a organização

capitalista, a luta renascerá sempre de suas cinzas; e será conduzida, ao mesmo tempo por sua

própria dinâmica e pela dinâmica objetiva da sociedade capitalista, a se estender e se

aprofundar. E é o sentido dessa luta que se trata de trazer à luz.” (CASTORIADIS, 1985,

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p.139). O operariado tenta contornar os métodos burocráticos e as ordens de cima, toma nota

de todos os defeitos na utilização da força de trabalho que resultam da utilização indevida de

recursos técnicos ou de administração insatisfatória, tenta, em vão, levar adiante uma luta

contra a burocracia (SINGER; BOGGS, 1972).

Embora a luta implícita do operariado permaneça oculta, pois não implica organização

além da fábrica, nem programa formulado, nem ação explícita, seu conteúdo se encontra na

atividade das massas nas ocasiões de crise revolucionária contra o capitalismo

(CASTORIADIS, 1985, p.155). Enquanto faz isso, a luta dos trabalhadores tende a tornar-se

uma luta pela abolição total de todas as formas de hierarquia. Torna-se uma luta contra as

próprias condições de exploração que se encontram na apropriação total e exclusiva dos meios

de produção, do poder do Estado, e da própria cultura pela classe exploradora. Obviamente

esta luta pela abolição da exploração não é peculiar à classe trabalhadora, existe em todas as

classes exploradas anteriores. Dois aspectos dessa luta, no entanto, demonstram a

singularidade presente na luta da classe operária contra a exploração. Em primeiro lugar, esta

luta tem lugar em condições que lhe permitam alcançar os fins a que se propôs para si. Hoje, o

desenvolvimento extremo da riqueza social e das forças produtivas, resultado da civilização

industrial, faz com que seja perfeitamente possível construir uma sociedade na qual os

antagonismos econômicos estariam ausentes. Em segundo lugar, a classe trabalhadora

moderna encontra-se colocada em condições que lhe permitem realizar esta luta e alcançar

uma conclusão bem sucedida (CASTORIADIS, 1949b).

Para que as contradições fundamentais experimentadas no capitalismo sejam

superadas é necessário que o proletariado passe a determinar os rumos da economia, tanto ao

nível da gestão geral da indústria, como também, ao nível da gestão de cada empresa

particular. Estes são apenas dois aspectos do mesmo fenômeno. Para tanto o proletariado deve

abolir imediatamente, juntamente com a propriedade privada dos meios de produção, a gestão

da produção como uma função específica realizada permanentemente por um determinado

estrato social, ou seja, o fim dos gerentes da produção e da máquina burocrática que dominam

a vida política e econômica das sociedades contemporâneas. Cabe dar forma concreta a essa

idéia geral, fornecendo detalhes mais precisos sobre o conteúdo positivo da autonomia e

modificando o programa para a conquista do poder político e econômico do proletariado.

Alterações semelhantes são necessárias em relação aos problemas da classe trabalhadora de

como organizar e lutar sob o sistema capitalista.

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2 A LUTA EXPLÍCITA DO MOVIMENTO OPERÁRIO

O enfraquecimento do sindicalismo e a diminuição do nível de crítica incidente sobre

a empresa capitalista são fortes manifestações das dificuldades enfrentadas pela crítica social

para conter as perdas sentidas pelo proletariado na transição do século XX para o século XXI.

No entanto, as transformações do mundo do trabalho não deixaram de provocar queixas ou

indignação, mesmo que as organizações nas quais recaía tradicionalmente a tarefa de

denunciar as contradições da lógica capitalista fossem amplamente desqualificadas

(CASTORIADIS, 1985). Incapazes de defender as reivindicações dos trabalhadores sobre as

relações de produção, a organização do trabalho e as condições de vida da classe operária,

visto que, estas demandas tomadas em conjunto equivalem a um desafio frontal ao poder

capitalista na fábrica e cujo resultado possível é a autogestão da produção, a burocracia

sindical utiliza os trabalhadores apenas como meio para forçar o seu próprio caminho para a

participação na autoridade administrativa que controla a produção, para tanto, tenta apaziguá-

los na ilusão da satisfação de suas reivindicações salariais (CASTORIADIS, 1956). Seguindo

a tendência das significações sociais centrais da instituição capitalista, a partir de um

determinado estágio de seu desenvolvimento, o movimento sindical também se torna

burocratizado. Sua grande funcionalidade modifica-se para garantir a manutenção das

reivindicações do proletariado dentro dos limites impostos pelo sistema de exploração.

Por outro lado, as dificuldades enfrentadas pelos sindicatos e pelos partidos políticos

em ganhar a confiança de ampla parcela da sociedade também devem ser relacionadas com a

falta de modelos de análise e de esforço intelectual lúcido acerca das contradições inerentes

ao funcionamento do capitalismo, conseqüência direta da decomposição dos esquemas

teóricos tradicionalmente admitidos. Os dispositivos de representação que contribuíam para

dar corpo às classes e para conferir-lhes existência objetivada tendem a desfazer-se em

decorrência da fluidez das significações sociais promovida pela flexibilização do capital. “Isto

tudo para confluir no predomínio da burocracia não só como classe dominante, mas também

como resultado da burocratização contínua e renovada de todas as organizações sindicais,

políticas e culturais” (CASTORIADIS, 1987, p.92).

Porém, de acordo com Castoriadis (1987), a “ausência" do proletariado tem aí um

duplo significado: Por um lado, representa uma vitória momentânea para o capitalismo ao

conseguir que o movimento de burocratização impulsione os trabalhadores para longe da ação

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coletiva. Por outro lado, o proletariado passa atualmente por uma nova fase na história da luta

de classes que conduz a uma crítica muito mais profunda e geral da forma societária

capitalista que jamais foi possível no passado. “E isto leva à renovação, dentro do

proletariado, do projeto socialista em um nível mais audacioso nunca antes experimentado ao

penetrar nas mais diversas esferas da sociedade” (CASTORIADIS,1988, p.229).

É por isso que a principal tarefa do movimento operário atual consiste em se manter

fiel à sua história e, ao mesmo tempo, impulsionar o curso das mudanças sociais,

trata-se de reatar os laços entre as gerações de militantes, estreitar as relações nos

universos sociais próximos do mundo operário e tirar lições das outras formas de

luta que se desenvolvem longe das oficinas (BEAUD; PIALOUX, 2009, p.300).

A intensificação da luta implícita cotidiana dos operários contra a miséria e exploração

do capitalismo necessariamente coloca o advento de uma nova organização da sociedade e

fornece as respostas positivas para o problema da instituição socialista. “A experiência do

capitalismo burocrático permite-nos perceber claramente o que o socialismo não é e o que não

pode ser. Um olhar mais atento para os levantes do proletariado do passado e para as suas

lutas cotidianas nos permite dizer que o socialismo poderia e deveria ser.” (CASTORIADIS,

1979, p.104). Deste modo, a rebelião é a primeira experiência de totalidade que a consciência

proletária tem acesso, exemplificada nas várias erupções revolucionárias que foram possíveis

graças ao surgimento de organismos de luta contra a classe dominante (A Comuna de Paris de

1871, os sovietes de 1905 e 1917, os comitês de fábrica na Rússia em 1917-1918, os

conselhos de fábrica na Alemanha em 1919-1920, as milícias antifascistas na Espanha em

1936, os conselhos operários na Hungria em 1956), revelando novas formas de organização

dos homens e mulheres a partir de princípios radicalmente opostos aos da sociedade burguesa.

Tais momentos históricos demonstram a possibilidade de uma organização social

centralizada que, longe de expropriar politicamente a população em benefício de

seus “representantes”, submete estes ao controle permanente de seus mandantes e

realiza a democracia, pela primeira vez na história moderna, na escala da sociedade

como um todo (CASTORIADIS, 1985, p.155).

Compreende-se que a consciência de classe voltada para a construção do socialismo

não se manifesta apenas na oposição cotidiana à empresa capitalista ou nos momentos

revolucionários, o proletariado também luta contra a sociedade de classes de modo explícito

ao constituir organizações políticas para disputar o comando da sociedade atual. “Pois ela

manifesta, no proletariado, ao mesmo tempo a necessidade e a capacidade de colocar o

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problema da sociedade como tal, não simplesmente quando de uma explosão revolucionária,

mas de modo sistemático e permanente.” (CASTORIADIS, 1985, p.156).

A luta explícita revelada pelas organizações coletivas do movimento operário

propicia pontos de apoio exteriores às particularidades das fábricas, fornece locais

de encontro para a elaboração de convicções diferentes das oferecidas pela classe

dirigente, discute abertamente os métodos de trabalho, socializa os meios de

resistência para exigir reivindicações mais gerais, etc. E nada disso brotou do solo

ou foi dado por Deus – nem muito menos outorgado pelo capitalismo, mas é

resultado de muitos séculos de luta, pago com montanhas de cadáveres e oceanos de

sangue. (CASTORIADIS, 1987, p.95).

No entanto, a degenerescência das organizações operárias permitiu a continuidade da

relação social fundamental do capitalismo moderno, a divisão entre direção e execução

reproduzida dentro do próprio movimento operário sob duas formas (CASTORIADIS, 1985,

p.159): adoção de um modelo burguês de organização para dar conta da multiplicação de

tarefas dentro do movimento; atribuição dos papéis de direção aos representantes da

organização e de execução ao restante da classe operária. “Chegou-se assim a uma completa

negação do que é a própria essência do movimento socialista: a ideia da autonomia do

proletariado. Essa evolução, ao mesmo tempo, encontrava o seu equivalente numa evolução

correspondente da ideologia e da teoria revolucionárias.” (CASTORIADIS, 1985, p.160).

Este fenômeno é subsidiado pela edificação da ideologia que permite a determinação

dos objetivos imediatos e últimos do proletariado pela teoria revelada aos técnicos da

revolução, os únicos capazes de aplicar a teoria às circunstâncias concretas (CASTORIADIS,

1985, p.162). “E essa ‘necessidade’ de uma categoria social específica que gere o trabalho dos

outros na produção, assim como a atividade dos outros na política e na sociedade; de uma

direção separada das empresas e de um Partido que domina o Estado” (CASTORIADIS,

1985, p.246). “Consequentemente, o socialismo aparece privado de todo seu conteúdo

humano, torna-se simples transformação objetiva e externa, modificação de certos

dispositivos econômicos” (CASTORIADIS, 1985, p.163). Tanto para o marxismo tradicional

quanto para o socialismo reformista, os problemas a serem resolvidos pela luta de classes

seriam apenas a distribuição do produto social, o estatuto da propriedade e a organização geral

da economia através da nacionalização. “A política revolucionária tendia, ao mesmo tempo, a

ser transformada numa técnica. O engenheiro aplica a ciência do físico em condições dadas,

tendo em vista certos objetivos; o político revolucionário aplica, em condições dadas, as

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conclusões da teoria científica da revolução.” (CASTORIADIS, 1985, p.162). Permanece

oculto o verdadeiro significado do socialismo que se trata da inversão radical das relações

entre os homens e as mulheres, principalmente nas esferas produtivas e políticas, que corroa a

distinção entre direção e execução.

Através da persistência dos modos de pensamento da sociedade de classes no

movimento operário, que não consegue libertar-se imediatamente das significações sociais da

sociedade contra a qual insurge, a burocracia consolida-se por meio da degenerescência da

teoria revolucionária, do programa, da atividade militante, da função dos representantes e da

estrutura das organizações. “Também é certo que as tendências que favorecem o nascimento e

desenvolvimento da burocracia operária são as tendências dominantes do capitalismo

moderno, que se torna cada vez mais um capitalismo burocrático.” (CASTORIADIS, 1985,

p.169). Desta maneira, a degenerescência significa que a organização tende a se separar da

classe operária porque esta aceita que se instaure uma relação nos moldes do capitalismo entre

os militantes e a grande massa de trabalhadores nos setores produtivos. Portanto, não se trata

de um fenômeno específico das organizações socialistas, mas a expressão da sobrevivência da

burocracia no proletariado enquanto referencial ideológico de estruturação social.

Do mesmo modo, a pretensão do Partido em monopolizar as decisões por se tratar do

único porta-voz da verdade teórica encontra eco na convicção, reforçada cotidianamente no

capitalismo, de que as questões gerais são reservadas aos especialistas e que a experiência

direta da produção não é importante. “O proletariado não é nem uma entidade totalmente

irresponsável, nem o sujeito absoluto da história; e os que não vêem em sua evolução nada

mais do que o problema da degenerescência das organizações querem, paradoxalmente,

transformá-la nas duas coisas ao mesmo tempo” (CASTORIADIS, 1985, p.170). Esta

situação concreta do proletariado obriga-o a empreender e recomeçar sempre uma luta contra

a sociedade capitalista, sempre apresentando objetivos, princípios, normas, modos de

organização que se opõe radicalmente à sociedade estabelecida, questionamentos estes

situados nos limites fornecidos pelo capitalismo até a efetiva imposição dos valores socialistas

nas significações sociais centrais. “Sempre haverá – enquanto durar o capitalismo –

‘condições objetivas’ que tornam essa degenerescência possível; isso não que dizer que ela

seja fatal. Os homens fazem sua própria história.” (CASTORIADIS, 1985, p.171).

Assim, os eventos do final do século XX confirmam que o proletariado percebe as

organizações burocráticas como instituições exteriores, não acredita mais que os partidos ou

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os sindicatos possam mudar fundamentalmente sua situação. “Podem ‘apoiá-los’, votando

neles enquanto mal menor; podem utilizá-los – esse ainda é frequentemente o caso, no que se

refere aos sindicatos – como se utiliza um advogado ou o corpo de bombeiros. Mas raramente

se mobilizam por eles ou sob seu apelo; jamais participam dos mesmos.” (CASTORIADIS,

1985, p.173). Caso emblemático são os partidos reformistas que contam cada vez menos com

uma militância ativa e funcionam através de profissionais remunerados, de pequenos

burgueses e dos intelectuais de esquerda. “Para os trabalhadores, os partidos e sindicatos

pertencem à ordem estabelecida, por isso, as lutas operárias eclodem fora destas organizações

burocráticas e, algumas vezes, contra elas” (CASTORIADIS, 1985, p.173).

De acordo com Castoriadis (1960-1961), tais partidos permanecem como engrenagens

de integração dos trabalhadores na sociedade capitalista para que o proletariado aceite o

sistema de exploração. Portanto, a sociedade de classes comporta, dentro de sua própria

estrutura, um mecanismo que permite, nos limites do sistema, alguma garantia dos interesses

econômicos da classe dominada, eventualmente contrários aos interesses da classe dominante,

mas compatíveis com a manutenção da perpetuação do domínio capitalista. As vitórias

trabalhistas mostram que o sistema realmente pode acomodar-se muito bem a certas reformas

e até mesmo utilizá-las para seu próprio lucro, desde que perpetuem a separação da sociedade

entre dirigentes e executantes.

Também contribui para este afastamento dos mecanismos tradicionais de luta a

concepção teórica revolucionária lastreada na ideia de ciência da sociedade e da revolução,

elaborada por especialistas e introduzida no proletariado pelo Partido, sistema de ideias que

entra em contradição direta com o objetivo de uma revolução socialista enquanto atividade

autônoma das massas. “Não há ‘demonstração’ do colapso inelutável da sociedade de

exploração; e, menos ainda, existe ‘verdade’ sobre o socialismo que possa ser estabelecida

mediante uma elaboração teórica, fora do conteúdo concreto criado pela atividade histórica e

cotidiana do proletariado.” (CASTORIADIS, 1985, p.177).

Este problema da relação entre a ação do proletariado e sua consciência nunca foi

esclarecido suficientemente no marxismo tradicional. Castoriadis (1960-1961) aponta que

Lukács tenta resolver o problema em História e Consciência de Classe, mas apenas obscurece

ainda mais as contradições dentro da concepção clássica. No ensaio principal do livro, a

consciência proletária somente é revelada com a eclosão da ação totalmente voltada para a

revolução. De acordo com esta linha de pensamento, o significado concreto da resistência

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cotidiana operária pouco pode informar acerca do conteúdo do socialismo. Isto porque o

autoconhecimento somente se revela à classe operária no momento da ação revolucionária

conduzida pelos militantes profissionais.

Este é um tipo de idealismo, ou melhor, espiritualismo absoluto, que postula a razão

fora de alcance do seu agente. Como conseqüência, a consciência operária é

totalmente reificada e aperfeiçoa-se seguindo puramente as condições históricas

objetivas e, pelo fato de não conhecer a si mesma, não é um autêntico sujeito

histórico (CASTORIADIS, 1988, p.262).

Castoriadis demonstra (1960-1961), contra esta ideia de determinação absoluta da

criação social-histórica, que a evolução do capitalismo é a história da constituição e

desenvolvimento de duas classes de pessoas em luta. Neste embate, cada classe social age

limitando o campo de domínio da outra. É no decurso desta luta que os adversários são

levados a criar armas, meios, formas de organização, esquemas teóricos, e inventar novas

respostas para a sua situação, bem como, as metas provisórias. Tais respostas e objetivos não

são de forma alguma predeterminadas, as suas conseqüências, sejam intencionais ou não,

modificam o quadro geral desta luta em cada etapa.

Para constituir e desenvolver seus objetivos a classe capitalista deve consolidar o

domínio sobre a produção, o que significa "racionalização" em uma escala cada vez mais

ampla (CASTORIADIS, 1960-1961). Para acumular meios de transformar trabalho em capital

e para adequar a mentalidade das pessoas a esta finalidade, programa-se um brutal sistema de

controle e mistificação nas fábricas e na sociedade como um todo. E racionalizar significa

escravizar trabalho em consonância ao ritmo das máquinas e dos ditames daqueles que

gerenciam a produção. O proletariado, assim, vê-se constituído como uma classe objetiva e

atacada por todos os lados pelo capitalismo. Neste ínterim, o operariado, logo que é

constituído, encontra-se lutando contra o capitalismo, fazendo-se, no curso de sua história,

classe, no sentido pleno do termo, como uma classe para si, negação da atual sociedade e

afirmação do advento de um mundo não alienado.

Desde o momento em que surge na história o proletariado luta contra capitalismo em

todos os níveis que afetam a existência social. Porém, esta luta ocorre mais claramente sobre

os níveis de produção, da economia e da política, quando o proletariado opõe-se contra a

racionalização da produção capitalista, primeiramente contra as próprias máquinas, depois

contra o crescente ritmo de trabalho. Também se rebela contra a falta de planejamento da

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produção da economia capitalista ao exigir aumentos salariais, horas mais curtas de trabalho,

e o pleno emprego. E logo o proletariado questiona a concepção global da instituição social

por meio da constituição de organizações políticas, revoltas, e tentativas de tomada do poder.

No plano político, as primeiras tentativas dos trabalhadores de organização

geralmente foram recebidas com repressão brutal capitalista, seja aberta ou

disfarçada. Rapidamente derrotado neste aspecto, o capitalismo, no final de um

longo período da história, acabou transformando essas organizações políticas,

mesmo de origem operária, em motores essenciais do seu funcionamento contínuo.

Isto trouxe modificações importantes para todo o sistema. Atualmente, a democracia

representativa não pode funcionar sem um grande partido reformista, e este partido

não pode ser um mero fantoche da classe capitalista (pois nesse caso ela perderia seu

apoio eleitoral e não mais cumpriria sua função). Em vez disso, ele deve ter o

potencial de impor suas demandas dentro da estrutura governamental

(CASTORIADIS, 1988, p. 265).

Torna-se evidente que as condições objetivas dadas pela sociedade capitalista definem

os problemas que o proletariado encontra em seu cotidiano, mas não determinam as respostas

para o problema da organização social porque a sociedade socialista constitui uma criação

positiva dos trabalhadores que sempre retoma e modifica o quadro social estabelecido para

construir um campo de ação mutável por meio de possibilidades objetivas desconhecidas

anteriormente. “Mas, se a ideia de autonomia é levada a sério, imediatamente surgirá a

questão de saber como é preciso apoderar-se dela para propagá-la. Será necessário repeti-la

sob a forma abstrata de uma ideia reguladora – ou mostrar em cada caso concreto o que ela

significa?” (CASTORIADIS, 1985, p.203).

Por isto, as conclusões dos intelectuais nunca possuem a verdade de modo que possa

fixá-la em formulações válidas ilimitadamente. “Os militantes não serão mais executantes em

relação a uma ideologia fora deles, com base e segundo métodos que lhes são estranhos. Sem

a participação ativa e dominante dos trabalhadores que a ela aderem, a organização não

poderá definir nem uma teoria e nem um programa.” (CASTORIADIS, 1985, p.198). As

formulações teóricas têm validade limitada até a fase seguinte da ação do proletariado, pois há

o esforço perpétuo de superar o nível de ação anterior e as conclusões da elaboração teórica

precedente. Isto porque o socialismo é a manifestação da atividade autônoma da classe

produtora e se os objetivos desta atividade, assim como suas formas, revelam-se apenas a

partir da experiência dos próprios trabalhadores diante da exploração, não pode a consciência

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socialista ter origem na doutrinação teórica que pretende substituir a autonomia como força

diretiva da elaboração dos objetivos da sociedade autônoma.

Não se trata simplesmente de elaborar “estatutos”, “regras”, ou uma “constituição

ideal” para a sociedade socialista, o melhor dos programas só pode ter significado na

medida em que as pessoas estão permanentemente preparadas para defender o que é

melhor para elas pela alteração daquilo que se tornou insuficiente ou desatualizado

(CASTORIADIS, 1979, p.112).

Para a articulação do movimento operário, Castoriadis (1985, p.181) define três tarefas

da organização mais urgentes, levadas adiante por indivíduos que se tornam conscientes dos

objetivos e os meios da revolução, com a finalidade de desenvolver a capacidade de ação

autônoma. Primeiramente, dar expressão à experiência dos operários ao ajudá-los a tomar

conhecimento da consciência que já possuem. O sucesso desta tarefa depende da superação de

dois imensos obstáculos: a impossibilidade material de expressão dos trabalhadores resultante

do monopólio exercido sobre os meios de comunicação pela burguesia, pelos partidos e pelos

sindicatos. A solução lógica é colocar à disposição dos trabalhadores, organizados ou não, os

recursos de comunicação da organização revolucionária. “Consistirá, ao mesmo tempo, em

levar a expressão da experiência do maior número possível de operários, em dar a palavra aos

trabalhadores, em permitir a difusão e a comunicação dos exemplos de luta, das opiniões, das

ideias no proletariado.” (CASTORIADIS, 1985, p.198).

O segundo obstáculo é ainda mais difícil de enfrentar. A ausência da expressão dos

trabalhadores, mesmo quando tem acesso aos meios materiais, causada pela ideia de que o

que eles têm a dizer não é importante. Cabe à organização mostrar a falência do sistema e a

incapacidade de seus dirigentes de resolver os problemas do mesmo, salientando a

importância positiva da experiência dos trabalhadores. O avanço do autoconhecimento do

movimento operário leva à segunda tarefa da organização que consiste em dispor diante do

proletariado uma concepção de conjunto dos problemas da sociedade atual através do prisma

socialista. “Cabe à organização suscitar de novo no proletariado essa consciência da

possibilidade do socialismo, sem a qual o desenvolvimento revolucionário será infinitamente

mais difícil.” (CASTORIADIS, 1985, p.182).

A terceira tarefa da organização, ainda na perspectiva castoriadiana, é ajudar os

trabalhadores a defenderem seus interesses imediatos. Devido à crescente burocratização dos

sindicatos e às frustradas tentativas de substituí-los por novos sindicatos mais eficientes, fica a

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cargo da organização revolucionária a tarefa de assumir uma série de funções essenciais para

a articulação entre os militantes, inclusive fomentar a articulação dos agrupamentos

minoritários autônomos. “Esses militantes encontrarão na organização um apoio

indispensável à sua ação. Em outras palavras: a constituição de agrupamentos minoritários de

luta nas empresas se efetuará, na maioria das vezes, em função da atividade da organização

revolucionária.” (CASTORIADIS, 1985, p.183).

Inspirando-se nas formas socialistas que o proletariado criou no curso de sua história,

Castoriadis (1985, p.183) define os princípios fundamentais da organização democrática

criados pela história do movimento operário: a) Determinação, pelos organismos de base, da

mais ampla autonomia compatível com a unidade de ação geral da organização; b)

democracia direta, ou seja, decisão coletiva por todos os interessados; c) constituição de

delegados, representantes dos organismos de base, para participar do governo central, eleitos e

revogáveis a qualquer momento. Baseado nestes princípios, antes da degenerescência

burocrática (social-democrata e bolchevique), o movimento operário criou instituições de

caráter profundamente democrático, algumas das quais suplantam as formas implantadas pelo

movimento democrático burguês e ressuscitam princípios como a rotatividade dos

representantes na organização, presente no primeiro período do movimento operário britânico,

e a importância de garantir a soberania das assembleias gerais e a revogabilidade dos

delegados, vistos pela primeira vez na Comuna de Paris (CASTORIADIS, 2004, p.193).

Estas exigências políticas supõem a igualdade na partilha do poder e nas

possibilidades de participação no processo de tomada de decisão política. Dito de outra

maneira, numa organização revolucionária as decisões passam pelo conjunto de participantes

ou, quando as circunstâncias materiais não permitirem, elegem seus delegados com mandatos

revogáveis. Isto também envolve definir os objetivos e meios do programa que resolva na

prática as divergências que podem surgir no desenrolar da ação, ao mesmo tempo, definindo

quem são os efetivos participantes da organização.

Não consiste somente propagar a ideia de autonomia, trata-se de subsidiar os

trabalhadores a realizarem ações autônomas. Se não se aceita essa atividade dirigida

para a autonomia do proletariado é porque se dá à autonomia um sentido absoluto,

metafísico: é preciso que os operários cheguem a certas conclusões fora de qualquer

influência. O grande problema, o grande ponto de interrogação, é que diz respeito à

capacidade e ao desejo das pessoas de organizarem-se coletivamente, participando

de maneira plenamente ativa e responsável da direção de suas atividades, e de

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enfrentar a questão da instituição global da sociedade. (CASTORIADIS, 1987,

p.27).

Deste modo, o movimento operário revela na sua luta implícita e nos momentos

decisivos da luta explícita que as reivindicações da autonomia operária não pertencem a um

futuro distante. “O socialismo visa dar um sentido à vida das pessoas e ao trabalho; permitir a

sua liberdade, a sua criatividade, e florescimento dos aspectos mais positivos da

personalidade; a criação de vínculos orgânicos entre o indivíduo e aqueles ao seu redor, e

entre o grupo e a sociedade; reconciliar as pessoas com elas mesmas e com a natureza.”

(CASTORIADIS, 1979, p.106). Portanto, é essencial que a sociedade autônoma, desde o seu

início, apresente-se como uma rede de instituições e métodos de operação que permitam e

favoreçam a livre atividade criativa das pessoas. “Também se torna essencial que a sociedade

revolucionária crie para si, em cada etapa, formas estáveis de organização que sejam eficazes

para a expressão da vontade popular, tanto em questões mais gerais como na vida cotidiana”

(CASTORIADIS, 1979, p.115).

Para alcançar toda a amplitude da democracia direta é preciso que todas as estruturas

econômicas, políticas e culturais da sociedade tenham como base os grupos locais,

as coletividades concretas, unidades sociais orgânicas que, certamente, exigem a

reunião física dos cidadãos em um determinado lugar. Também exige que estes

cidadãos formem uma comunidade orgânica, que eles vivam no mesmo ambiente,

que estejam familiarizados através da sua experiência diária com o assunto a ser

discutido e com os problemas a serem enfrentados. É somente em tais unidades que

a participação política dos indivíduos torna-se total, onde as pessoas podem

conhecer e sentir que a sua participação terá um efeito e que a vida real da

comunidade pode ser, em grande parte, determinada pelos seus próprios membros e

não pelas autoridades desconhecidas ou externas (CASTORIADIS, 1979, p.118).

Para Castoriadis (1979) a solução para o problema da centralização esta na tomada do

poder por uma federação de conselhos operários e a instituição de uma agremiação central de

conselhos e de um governo regido pelos mesmos. Uma das características essenciais dos

organismos centrais é coletar, transmitir e disseminar informações que lhes são comunicadas

por grupos locais.

Em todos os campos essenciais serão tomadas as decisões a partir das bases e será

enviado de volta para a “cúpula”, cuja responsabilidade será a de garantir a sua

execução por toda a federação das organizações. Assim, um fluxo bidirecional de

informações e decisões será instaurado, e isso não só se aplica somente às relações

entre o governo e os conselhos, mas deve constituir um modelo para as relações

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entre todas as instituições e todos aqueles que participam delas (CASTORIADIS,

1979, p.123).

Este tipo de cooperação “vertical" e "horizontal” dos conselhos operários será

assegurado por meio de conselhos industriais compostos por delegados de diferentes locais de

trabalho (CASTORIADIS, 1979). Da mesma forma, a cooperação regional terá de ser

instaurada com a criação de conselhos que representam todas as unidades de uma região.

Tudo isto para, finalmente, construir uma ampla rede de articulação a nível nacional para

todas as atividades da sociedade, sejam elas econômicas ou não (CASTORIADIS, 1979). Este

órgão central, composto por um conjunto central de delegados, emanará diretamente dos

conselhos de trabalhadores e das próprias assembléias locais (CASTORIADIS, 1979).

Há, portanto, duas situações possíveis na realidade concreta (BRINTON, 1970). Em

uma delas a classe operária toma as decisões fundamentais, diretamente, por meio de

organismos escolhidos por ela mesma com os quais se identifica completamente ou sente que

pode dominar completamente (comitês de fábrica, conselhos, etc.). Estes organismos,

compostos por delegados eleitos e revogáveis, federam-se regionalmente e nacionalmente,

concedendo total autonomia às unidades locais para proporem e debaterem sobre o que

produzir, como produzir e como será a distribuição das tarefas entre as regiões produtoras.

“Aliado ao controle econômico, criação de novas formas de organização política fundadas na

responsabilidade de todos em face dos assuntos comuns, dito de outra maneira, o

renascimento do autêntico pensamento e sentimento político que seriam lúcidos perante os

resultados da história dos dois últimos séculos” (CASTORIADIS, 1987, p.126).

Na outra situação possível, característica das sociedades burocráticas, as decisões são

tomadas a partir de fora, pelo Estado, partido, ou outro órgão sem raízes profundas e diretas

no processo produtivo, mantendo-se a separação entre produtores e os meios de produção com

a manutenção da base da sociedade de classes (BRINTON, 1970). Por exemplo, a burocracia

russa demonstrou muito bem que os meios de produção podem mudar de mãos sem

necessariamente mudar as relações de produção. Neste caso, independente do tipo formal de

propriedade, a sociedade segue dividida em classes, já que a produção continua dirigida por

uma instância separada dos produtores. Em outras palavras, as relações de propriedade não

refletem necessariamente de forma adequada as relações de produção. “O que significa

realmente ‘tomar o poder’ é a compreensão, por parte da maioria da classe operária, de sua

capacidade de dirigir tanto a produção como a sociedade.” (BRINTON, 1970, p.12).

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Em vista disso, nos regimes academicamente reconhecidos como expressão do

socialismo real, as relações de produção ainda permaneceram como relações antagônicas que

dividiam os dirigentes e executantes no mesmo conflito experimentado nas sociedades

francamente capitalistas. De fato, ocorreu a exploração do operariado e sua sujeição a um

processo de trabalho e de produção que foge inteiramente ao seu controle. Conseqüência da

nacionalização dos meios de produção e a planificação burocrática que não implicaram, de

modo algum, a abolição da exploração e que não possuem conexão com os princípios e

objetivos do socialismo. “Sob a cobertura da fórmula jurídica da ‘propriedade nacionalizada’

(estatal), a burocracia dispõe do jus fruendi, utendi et abutendi dos meios de produção. A

estatização e a ‘planificação’ burocrática constituem os instrumentos necessários e adequados

para esta disposição.” (CASTORIADIS, 1987, p.188).

Tal configuração das relações de produção está expressa na materialidade dos meios

de produção por meio da sujeição dos produtores ao processo do trabalho, tanto pela natureza

do trabalho que impõem como pelo tipo de organização da empresa decorrente. “Ao contrário

deste cenário, a revolução socialista precisa enfrentar a base material-técnica da produção e

transformá-la porque não existe uma tecnologia pretensamente neutra que poderia ser posta a

serviço do socialismo sem ampla redefinição da matriz tecnológica, inclusive da técnica

jurídica” (CASTORIADIS, 1987, p.189). Portanto, as relações de produção que determinam a

estrutura de uma sociedade são as relações sociais de câmbio, em suma, as relações cotidianas

de homem com homem e de classe com classe encarnada nas relações de propriedade real ou

de posse. “Ao reduzir o socialismo a uma questão puramente ‘econômica’, e a realidade

econômica às formas jurídicas da propriedade; ao apresentar como socialistas a estatização e a

‘planificação’ burocrática, tais concepções cumprem a função de mascarar a dominação da

burocracia.” (CASTORIADIS, 1987, p.199). Fica evidente que as relações das pessoas com

os objetos materiais que entram na atividade econômica existem pura e simplesmente em

função das relações de produção que determinam a posse material e a finalidade do processo

como um todo.

Quanto à expressão jurídica dessas relações no sistema burocrático (ou seja, o

sistema formal de propriedade em sentido jurídico), o seu papel não é o de perturbar

o funcionamento da economia mascarando da melhor forma possível o seu conteúdo

de classe. Na medida em que as massas entram na vida política diária, mais a

principal função da lei torna-se camuflar a realidade econômica a favor dos

interesses da classe dirigente (CASTORIADIS, 1949, p. 73).

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Se o império da burocracia constitui a base da divisão da sociedade contemporânea,

uma revolução socialista não pode limitar-se a destituir os patrões e alterar a forma jurídica da

propriedade privada dos meios de produção. A nova instituição social também deve ter como

meta a eliminação da burocracia e de sua influência sobre os meios e o processo de produção,

em outras palavras, abolir a divisão entre dirigentes e executantes em todos os níveis. “Mas a

gestão dos trabalhadores não é apenas uma nova técnica administrativa. Ele não pode

permanecer externo à estrutura da própria obra.” (CASTORIADIS, 1979, p.125). Portanto, a

gestão dos trabalhadores não cabe a "supervisão" de um aparelho burocrático de gestão pelos

representantes dos trabalhadores.

“Também não é a mera substituição de um aparelho administrativo por um similar

feito de indivíduos de origem operária. É objetivo do socialismo a supressão de qualquer

aparato gerencial separado e à restituição das funções do poder administrativo à comunidade

de trabalhadores” (CASTORIADIS, 1979, p.125). Expresso numa forma positiva, isso nada

mais é do que a gestão da produção dos trabalhadores, o exercício completo de poder sobre a

produção e sobre a totalidade das atividades sociais por órgãos autônomos compostos por

diversos coletivos operários. “Isto também pode ser chamado de auto-gestão, desde que se

tenha em mente que este termo não implica a renovação, mas sim a destruição da ordem

existente, e mais precisamente, a abolição do aparelho de Estado separado da sociedade e dos

partidos como órgãos de gestão e de direção” (CASTORIADIS, 1973, p.21).

A revolução socialista não é nada mais e nada menos do que a explosão desta

atividade autônoma, instituindo novas formas de vida coletiva, eliminando não apenas a

tendência à heteronomia das relações jurídicas sobre a propriedade, mas também os

fundamentos da ordem anterior e, em particular, todas as categorias e organizações

conduzidas por diretores ou gerentes, criando, em cada uma de suas etapas, novas bases de

apoio para o desenvolvimento da autonomia e ancorando a nova vida social na realidade

nascente da supressão da camada burocrática. Se o operariado em si não assume como sua

missão exclusiva a iniciativa de refazer a instituição social e passa à liderança burocrática a

tarefa de modificar todos os aspectos da vida social, tanto durante quanto após a revolução,

ela só vai ter sucesso em mudar seus mestres. O sistema de exploração vai reaparecer, talvez

sob diferentes formas, mas, fundamentalmente, com o mesmo conteúdo. A expropriação da

propriedade privada capitalista, comumente identificada na nacionalização, é apenas a metade

negativa da revolução proletária. Tais medidas podem ter um conteúdo progressista somente

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se eles estão ligados com a metade positiva do programa: a gestão da economia por parte dos

trabalhadores.

Isto significa que a gestão da economia, seja no centro ou no nível de fábrica, não

pode ser confiada a um estrato de especialistas, técnicos ou burocratas de qualquer tipo. O

desenvolvimento da sociedade contemporânea se torna cada vez mais dominado pela

crescente separação e oposição entre o proletariado e burocracia. Como esta oposição se

aprofunda, as novas formas de organização adquirem a responsabilidade de abolir o poder dos

exploradores para reconstruir a sociedade sobre novas bases (CASTORIADIS, 1956). “É

particularmente importante que o socialismo só possa ser instaurado através de uma

revolução, isto é, como o resultado de uma crise social no decurso da qual a consciência e

atividade das massas chegam a um estado de tensão extrema.” (CASTORIADIS, 1979,

p.114). Este é o ponto de consolidação da autonomia que institui a gestão direta dos

trabalhadores, isto é, determinação do processo de produção desde o planejamento até a

execução pelos produtores.

De acordo com as mais profundas aspirações da classe trabalhadora, as normas de

produção, em seu sentido capitalista, serão abolidas, e a completa igualdade nos salários será

instituída. No seu conjunto, estas medidas significam a abolição da coerção econômica e

restrição na produção como uma forma de disciplina imposta externamente por um aparato

coercitivo específico. Contra a heteronomia dos ritmos de trabalho na empresa capitalista, a

disciplina do trabalho será imposta por cada grupo de trabalhadores sobre os seus próprios

membros, por cada fábrica sobre os grupos que a compõem. Em decorrência, a integração de

determinadas atividades individuais em um todo será realizado basicamente pela cooperação

de vários grupos de trabalhadores ou fábricas que será o objeto da atividade de coordenação

permanente e contínua dos trabalhadores.

E a principal característica desta sociedade não é "o desenvolvimento das forças

produtivas" ou "o aumento da satisfação das necessidades dos consumidores" ou

"um aumento da liberdade política." Radicalmente diferente da sociedade capitalista,

a marca do socialismo é a transformação que trará na natureza e conteúdo do

trabalho por meio da transformação consciente e deliberada da tecnologia herdada.

Pela primeira vez na história, a tecnologia será subordinada às necessidades

humanas, não só para as necessidades das pessoas enquanto consumidores, mas

também para suas necessidades na condição de produtores (CASTORIADIS, 1979,

p.126).

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A alteração da natureza do trabalho partirá de todas as etapas do processo produtivo.

Por um lado, o desenvolvimento de capacidades e faculdades humanas será a maior prioridade

da sociedade socialista. Isto exigirá o desmantelamento sistemático de todo o edifício da

divisão do trabalho. Por outro lado, a nova sociedade encontrará o desafio de reorientar

completamente a finalidade da técnica herdada e a forma como o desenvolvimento

tecnológico deve ser aplicado no processo de produção (CASTORIADIS, 1949). Estes são

apenas dois aspectos da mesma coisa: a relação do homem com a técnica. Todas as mudanças

em direção à sociedade socialista serão mais evidentes no que diz respeito aos meios de

produção. A nova sociedade atacará o problema de como transformar conscientemente a

tecnologia que herdou do capitalismo que planeja e executa os objetivos finais do esforço

criativo social independentemente do usuário e de suas preferências.

Também é importante ter em mente que este processo de maturação da revolução

acontece em diversos ritmos quando aplicados nos mais diferentes países. Todo o

aspecto internacional da organização é destinado à sincronização da revolução

global, mas seu sucesso nunca é garantido com antecedência. Em contraste com a

sociedade burguesa, cuja permanência em nível internacional é fundada sobre o

funcionamento automático de expansão industrial, nenhum mecanismo econômico

ou social garante automaticamente a rápida expansão da revolução proletária

(CASTORIADIS, 1949, p.73).

Resumindo, segundo as linhas gerais do pensamento de Castoriadis (1949), o

amadurecimento das condições para o socialismo não implica alcançar determinadas

condições objetivas (crescimento das forças de produção ou das "contradições" econômicas).

Também não pode significar uma experiência puramente subjetiva (a sedimentação da

experiência real do proletariado), na realidade, significa o acúmulo de condições objetivas

para uma consciência operária reflexiva que aponte para a construção da nova sociedade.

Estas condições requerem que o movimento revolucionário sofra transformações profundas,

com destaque para sua crítica da sociedade, que é essencial para ajudar os trabalhadores a

perceberem que sua própria experiência direta é valiosa e pode ser estendida a todas as esferas

sociais (CASTORIADIS, 1949b). Para cumprir com este objetivo, o papel da construção do

conteúdo programático da organização revolucionária consiste em descrever e analisar as

contradições e a irracionalidade da gestão burocrática da sociedade em todos os níveis, bem

como, denunciar o caráter desumano e absurdo do trabalho na sociedade de classes. Portanto,

deve expor a arbitrariedade e monstruosidade de hierarquia na produção e na sociedade em

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geral. De forma correspondente, a parte do programa destinada às reivindicações deve

centrar-se em torno da luta sobre a forma como o trabalho é organizado e sobre as condições

de vida no local de trabalho. Por outro lado, permanece o problema básico do movimento

revolucionário que consiste em passar da luta de classes no nível da empresa para a luta de

classes no nível geral da sociedade, o fim de todo movimento operário autêntico e radical

(CASTORIADIS, 1985).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se que a principal preocupação de Castoriadis em todo o seu percurso

filosófico é pensar o projeto de transformação da sociedade em oposição a qualquer tentativa

de antecipar racionalmente a organização coletiva futura. O temor de que após a queda dos

referenciais teóricos do marxismo levasse a destruição do movimento revolucionário lança o

desafio de pensar criticamente a organização social sem o auxílio de uma teoria delimitadora

da ação consciente. Isto somente será possível quando o pensamento e a reflexão estiverem

reatados à práxis, ou melhor, quando as pessoas forem reconhecidas como seres agentes do

desenvolvimento da sua própria autonomia. “Esse por fazer não é o caso das relações

simplesmente pessoais, como a amizade e o amor, onde esta autonomia é reconhecida, porém

seu desenvolvimento não é colocado como objetivo do relacionamento.” (CASTORIADIS,

2007, p.94). Diferente também de um saber absoluto, a orientação do saber da práxis constrói-

se de maneira fragmentária e provisória, pois não há teoria total do homem e da história, e o

desenrolar da práxis origina constantemente novo saber. Portanto, a atividade precede a

elucidação, pois a transformação do dado é o suporte da construção do conhecimento sobre a

realidade. Decorre daí outro aspecto importante que é a transformação do próprio sujeito a

partir da experiência em que está engajado. Mas os preconceitos norteadores da política

liberal tratam os homens como coisas a partir de suas propriedades e de suas reações

previsíveis diante dos fenômenos sociais. Diferente desta organização burocrática da

sociedade, a política democrática radical tem como objeto a organização e a orientação da

sociedade de modo a permitir a autonomia de todos, pressupondo a transformação radical do

mundo pela atividade autônoma dos homens (CASTORIADIS, 2007, p.97).

Por outro lado, o debate sobre a relação do projeto de autonomia com a realidade deve

sair do plano metafísico do avanço irresistível do socialismo na história para a discussão sobre

a transformação da sociedade num sentido mais flexível e concreto (CASTORIADIS, 2007,

p.99). O fazer lúcido não está alienado na imagem adquirida do momento atual, mas se

modifica a cada passo que não confunde intenção e realidade, desejável e provável, porque

todas as definições do objetivo do movimento emancipatório revelam-se sucessivamente

como provisórias (CASTORIADIS, 2007, p.108). A política apresentada pelo projeto de

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autonomia consiste em reconhecer e explicitar os problemas da sociedade como totalidade em

constante alteração, por isso reconhece a coletividade como algo que não é inércia em relação

aos seus próprios problemas. O projeto de autonomia, por meio da transformação consciente

dos homens e da instauração da sociedade organizada para a promoção da autonomia entre

todos, ampara-se na constatação da crise da sociedade estabelecida e na realidade histórica

efetiva que permite transformá-la.

Cabe lembrar que a sociedade autônoma não é uma sociedade perfeita que declara o

fim da história ou a coincidência entre as instituições ideais e a realidade. Ao contrário, o

projeto de autonomia é uma forma de sociedade que surge na história real, que já encontrou

algumas aparições como na Grécia Antiga e na época moderna. Para Castoriadis, a

característica principal do projeto de autonomia é que o movimento de reorganização da

sociedade realizou-se no passado e continua a trabalhar o presente e a construir o futuro,

apresentando-se como uma práxis. “Para a práxis, a autonomia é um fim em si mesmo, que

visa o desenvolvimento da autonomia como fim e utiliza para esse fim a autonomia como

meio” (CASTORIADIS, 2007). O modo como a práxis e a filosofia tradicional se confrontam

com a realidade é totalmente distinto. Quando a teoria unitária apresenta a realidade, postula

que a possui em sua totalidade absoluta. A práxis, pelo contrário, mesmo que leve em

consideração a totalidade, não a toma nunca por acabada, visa-a como unidade aberta

fazendo-se ela mesma. Deste modo, a prática da autonomia não procura produzir um esquema

total da realidade, uma espécie de saber absoluto sobre a sociedade que poderia resolver todas

as questões que lhe fossem colocadas. Para a práxis basta somente que a sua realização

permita acréscimo na capacidade da sociedade particular de responder aos seus problemas

reconhecidos lucidamente.

Por isso, a queda do pensamento e da ação marxista burocrática não inviabiliza a ação

revolucionária que tem o mesmo significado do projeto de autonomia inaugurado pelos

gregos antigos. Continua em nossa época existindo um grande número de seres humanos

impedidos de administrar seu trabalho e participar do movimento de transformação social. A

história do conflito entre a classe operária e os dirigentes burocráticos encarna o anseio do

reconhecimento universal e irrestrito da atividade criadora humana, a luta pela ampla

participação daqueles que executam as tarefas de produção ainda é o centro das mudanças

sociais contemporâneas.

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O capitalismo apresenta uma extraordinária flexibilidade e adaptabilidade de suas

instituições, entretanto, a ausência de um projeto de efetiva emancipação leva o homem

contemporâneo a assimilar de maneira totalmente heterônoma o imaginário social vigente. O

resultado deste fenômeno consiste no crescimento da massa apática, indivíduos que encarnam

a vida em sociedade como fardo e somente continuam vivendo nela porque estão presos à

rotina brutalizante. E a única possibilidade de mudança reside em potencializar a herança de

liberdade deixada por todos os movimentos que ousaram pensar e agir criativamente de forma

lúcida e radical. “A revolução exigida para tal é infinitamente mais profunda e mais difícil do

que a tomada do Palácio de Inverno ou a vitória em uma guerra civil.” (CASTORIADIS,

2004, p.243).

A primeira etapa necessária para a sociedade autônoma passa por uma nova

consciência histórica que implique ao mesmo tempo uma restauração da relação significativa

com o passado que permita outra articulação do presente e do futuro. Isto consiste numa

ruptura com a mitologia do desenvolvimento, do crescimento orgânico, das ilusões da

acumulação aquisitiva. Inevitavelmente este desafio de instituir uma alternativa viável à

ordem vigente passa por uma grande reavaliação do quadro estratégico das lutas contra o

capitalismo e das condições de manutenção do projeto de autonomia diante dos fatos e das

decepções das últimas décadas. Necessitasse de um novo esforço intelectual que não seja

somente um antídoto contra as absurdas teorizações do “fim da história”, mas que reexamine

o quadro conceitual deixado pelos resquícios do projeto de autonomia, principalmente naquilo

diretamente ligado à relação circular entre teoria e ação. “Mas devemos ver com ‘sentidos

sóbrios’ o que é, perseguir as ilusões, dizer com vigor o que queremos; sair dos circuitos de

fabricação e difusão tranqüilizantes, esperando poder quebrá-los” (CASTORIADIS, 2009,

p.27).

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