beaud, s; webr, f - parte 3 - analisar os dados - cap. 8 (1)

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8i ~ I Interpretar e redigir I I 8 no momento da redação que sua análise toma forma e constrói sua coerência. Até o momento efetuou uma série de reajustes progressivos do tema ao objeto de pes- quisa; doravante está de posse de um quebra-cabeça cujas peças (narrações de observa- ções, análises de entrevistas) são mais ou menos volumosas. Resta-lhe associá-Ias. Não tente teorizá-Ias a qualquer custo, nem generalizá-Ias a qualquer preço. Deve fazer um relatório de pesquisa, o campo não deve desaparecer sob os conceitos mas, pelo contrário, os conceitos devem iluminar o campo e fazer justiça aos casos singulares. Seja modes- to e preciso, seja honesto e rigoroso. Interpretar os dados Três elementos devem particularmente prender sua atenção antes de colocar em ação comparações sistemáticas: relacionar, em cada caso, posições objetivas, práticas e pontos de vista subjetivos; as palavras nativas e os silêncios; os mal-entendidos. Posições objetivas, práticas e pontos de vista subjetivos Os seus pesquisados não são pessoas desencarnadas, são seres "em carne e osso", inscritos numa história plural (familiar, profissional, local ou regional, nacional etc.). Não são, portanto, os indivíduos abstratos do homo sociologicus (os" A" e "B" do indivi- dualismo metodológico), são laços de relações. Você os encontrou fisicamente, na casa deles ou no lugar de trabalho deles. Viu-os se comportando, irritarem-se ou rirem, ou- viu-os falar. Eles, por sua vez, lhe mostraram ou contaram aspectos importantes de suas vidas. Agora você sabe um certo número de coisas a respeito deles; cabe a você, en- tão, neste momento, distinguir aquelas que interessam ao seu objeto. Num primeiro momento, estabeleça para cada pesquisado, a partir do conjunto de seus dados, uma ficha sintética com o detalhe de suas características sociais. Por certo, essas características têm importância diferente de acordo com o objeto de suas buscas. Se trabalha práticas culturais, tudo o que diz respeito à trajetória escolar dos pesquisa- dos e aquela de seus pais é central para elucidar os fenômenos de transmissão e de apropriação culturais. Exemplo: acabou de fazer uma longa entrevista com um pesquisado. Indique suas principais características sociais. Ele se chama Alain Durand (é um pseudônimo), de 45

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Page 1: BEAUD, S; WEBR, F - Parte 3 - Analisar Os Dados - Cap. 8 (1)

8i~I Interpretar e redigirII

8 no momento da redação que sua análise toma forma e constrói sua coerência.Até o momento efetuou uma série de reajustes progressivos do tema ao objeto de pes­quisa; doravante está de posse de um quebra-cabeça cujas peças (narrações de observa­ções, análises de entrevistas) são mais ou menos volumosas. Resta-lhe associá-Ias. Nãotente teorizá-Ias a qualquer custo, nem generalizá-Ias a qualquer preço. Deve fazer umrelatório de pesquisa, o campo não deve desaparecer sob os conceitos mas, pelo contrário,os conceitos devem iluminar o campo e fazer justiça aos casos singulares. Seja modes­to e preciso, seja honesto e rigoroso.

Interpretar os dados

Três elementos devem particularmente prender sua atenção antes de colocar emação comparações sistemáticas: relacionar, em cada caso, posições objetivas, práticas epontos de vista subjetivos; as palavras nativas e os silêncios; os mal-entendidos.

Posições objetivas, práticas e pontos de vista subjetivos

Os seus pesquisados não são pessoas desencarnadas, são seres "em carne e osso",inscritos numa história plural (familiar, profissional, local ou regional, nacional etc.).Não são, portanto, os indivíduos abstratos do homo sociologicus (os" A" e "B" do indivi­dualismo metodológico), são laços de relações. Você os encontrou fisicamente, na casadeles ou no lugar de trabalho deles. Viu-os se comportando, irritarem-se ou rirem, ou­viu-os falar. Eles, por sua vez, lhe mostraram ou contaram aspectos importantes desuas vidas. Agora você sabe um certo número de coisas a respeito deles; cabe a você, en­tão, neste momento, distinguir aquelas que interessam ao seu objeto.

Num primeiro momento, estabeleça para cada pesquisado, a partir do conjunto deseus dados, uma ficha sintética com o detalhe de suas características sociais. Por certo,essas características têm importância diferente de acordo com o objeto de suas buscas.Se trabalha práticas culturais, tudo o que diz respeito à trajetória escolar dos pesquisa­dos e aquela de seus pais é central para elucidar os fenômenos de transmissão e deapropriação culturais.

Exemplo: acabou de fazer uma longa entrevista com um pesquisado. Indique suasprincipais características sociais. Ele se chama Alain Durand (é um pseudônimo), de 45

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172 Terceira parte: Analisar os dados etnográficos

anos, filho de pequenos agricultores bretões que tiveram cinco filhos. Há vinte anos étécnico na indústria agroalimentar, casado com uma professora primária também bretãe filha de agricultores (possuindo uma fazenda de maior porte), originária de uma cida­de vizinha da do seu marido. Proprietários de uma casa (que acabam de pagar), moramna sede de seu município na região da Bretanha. São católicos não praticantes e votamregularmente nos candidatos da esquerda (Partido Socialista). Seus dois filhos que sem­pre freqüentaram a escola pública são alunos do ensino médio.

Ê preciso que faça recortes nas informações. Os pesquisados podem disfarçar da­dos, mentir por omissão, não porque querem enganá-l o, mas porque procuram passara melhor imagem deles mesmos. Cabe-lhe separar o verdadeiro do falso, o plausível doprovávet em função do conjunto dos dados de pesquisa de que dispõe. Seja como for,adote sempre uma posição crítica a respeito dos propósitos que lhe impõem, recortesempre suas informações. liA dúvida metódica" não é privilégio dos historiadores;deve sê-Io também dos etnógrafos. Por exemplo, quando procurar, após o fato, recons­tituir uma trajetória, encontrará sempre zonas pouco claras em seus materiais, notada­mente nas datas. Em lugar de se lamentar, assuma essa falta de clareza como objeto dereflexão: por que tal data e não outra, foi lembrada precisamente com apoio de docu­mentos? Quais são os pontos de referência temporais que permitem aos pesquisadosdatar sobre o que falam (nascimento de seus filhos, as campanhas eleitoraisj as datas deexamej da compra da casa etc.).

Num segundo tempoj procurará relacionar as posições objetivas dos pesquisados,suas práticasj tais quais as pôde observar e seus pontos de vista subjetivos expressos naentrevista. Como o diz B. Zarca a propósito de seu trabalho com entrevistas sobre astrajetórias profissionais dos artesãos: "Ê preciso distinguir naquilo que é dito durante aentrevista os fatos objetivos (por exemploj o fato de ter sido aprendiz em tal ofício du­rante tal períodoj ete.) e os julgamentos sobre os fatos (C era duroj o patrão era osso depescoço) que constituem dados que, por falta de melhor, pode-se chamar lide subjeti­vos" e que informam tanto sobre a subjetividade do locutor quanto de seu passado ne­cessariamente reconstruído. Háj portantoj espaço para analisar esses lidados subjeti­vos" referindo-os ao conjunto da trajetória socioprofissional do indivíduo: a apreciaçãodo aspecto penoso das condições de uma aprendizagem pode ser muito diferentej naidade maduraj de acordo com o caminho que se percorreu depois"3. Mesmo que vocênão tenha visto seus entrevistados a não ser em situação de entrevistaj o seu contextofamiliar lhe forneceu elementos objetivos a respeito da posição delesj assimj o quadrodoméstico é o resultado material de suas práticas. Se você teve outras ocasiões de reen­contrá-losj constatou diretamente o que eles fazem, como se comportam, como são con­siderados.

Exercício

Para aprender a relacionar posições objetivas, práticas e pontos de vista subjetivosjexercite-se em comparar pesquisados próximos socialmente. Por exemplo: dois traba­lhadores, trabalhando na mesma empresaj são proprietários de habitações num mesmo

3. ZARCA, Bernard. Les Artisans.,gens de métier, gens de paro/e. Paris: L'Harmattan, 1987, p. 9.

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8. Interpretar e redigir 173

loteamento de uma cidadezinha de província, recebem salários semelhantes, possuema mesma formação de um operário qualificado mas seus cônjuges têm propriedades(posições) sociais diferentes (uma é operária, titular de um CAP - Certificado de Apti­dão Profissional inferior a uma formação de nível médio, a outra é funcionária públicade nível médio). Estabeleça as semelhanças entre os dois pesquisados e ao mesmo tem­po anote as diferenças. Terá grandes chances de constatar que esta única diferença (aprofissão das esposas) se manifesta na decoração, no interior, na linguagem, no modode educar os filhos, a relação com a escola, a relação com a política e com o futuro. Ca­be-lhe testar essa influência, isolar a "variável" pertinente, uma vez neutralizadas asoutras" variáveis" principais. A qualidade da análise se dá nessa faculdade de localizaras pequenas diferenças e de captar sua expressão durante a entrevista.

Atenção às palavras "nativas"

Para conduzir com precisão seu trabalho de análise, deve apoiar-se sobre as pala­vras que captou no ar nas conversas, que apareceram numa entrevista. Essas palavrastêm a virtude de dizer à sua maneira - simples, figurada, cotidiana - as categorias declassificação e de julgamento "nativas" que pode confrontar com os modos de classifi­cações sociais mais gerais e abstratos. É, por exemplo, o caso das palavras utilizadas nasfábricas (puxa-sacos, pelegos, "grevistas"), palavras de quadros diretivos Cdisponibili­dade", "espírito de equipe"), das palavras de "jovens" C giga", "mega" ...). Reflita sobreo sentido dessas palavras que, inventadas na hora, soam "bem" e condensam a verdadesocial de uma situação.

Exemplos

fi Tirado da observação de um colégio de ZEP (Zona de Educação Prioritária) situa­do no morro, em pleno coração de um bairro de habitação popular" em crise". Esse co­légio recruta dois grupos opostos de alunos - de um lado, crianças de famílias de traba­lhadores e de classe média, habitando" embaixo" e, de outro lado, alunos do "alto", vi­vendo nos conjuntos habitacionais próximos, filhos de imigrantes a grande maioria de­les. Por ocasião de uma entrevista com o chefe de estabelecimento, este busca lembrar,com as palavras mais corretas, a maneira como a divisão social se traduz em seu colé­gio. Em um momento da entrevista, convida-nos a olhar pela janela de sua sala a saídados alunos do colégio. Os dois grupos são claramente identificáveis: de um lado os queviram" à direita" e se dirigem" para baixo" (alguns com pastas, com roupas de cidade,alguns de bicicleta, "franceses") e, de outro, aqueles que vão para a "esquerda" (commochilas, a pé, "imigrantes"). O diretor conclui: "Isso é o que eu chamo de juízo final,os 'eleitos' partem pela direita para retornar às moradias do vale, os 'reprovados' par­tem à esquerda para encontrar o seu conjunto habitacional".

fi Tirado da entrevista de Michel Pialoux [78b] com o chefe de equipe e sua esposa,operária no mesmo setor. Os dois pesquisados são levados a recordar o ambiente dessesetor. Lá onde o marido vê "bom ambiente" reinante, a mulher, alguns minutos maistarde, fala de "mau ambiente". As palavras não têm o mesmo sentido para os dois pro­tagonistas. Para a operária ambiente refere-se às relações sociais entre trabalhadores, aju­da mútua, à solidariedade, às fofocas (todas essas práticas de solidariedade operária

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174 Terceira parte: Analisar os dados etnográficos

que tendem a desaparecer). Na mente do marido, chefe de equipe, o ambiente refere-sea características objetivas dos postos de trabalho (iluminação, qualidade dos postos detrabalho, cadências).

Prestar atenção às maneiras de falar, aos silêncios e aos não-ditos

Para interpretar as observações ou as entrevistas, esteja atento não só às falas pro­nunciadas, às palavras e ao diferente sentido que elas adquirem de acordo com o con­texto de enunciação, mas também à maneira que o pesquisado as pronuncia, ao tomcom que ele utiliza. O "tom" indica com muita precisão osentido do que é dito. Busque emsua análise tirar proveito da diversidade das maneiras de dizer. Vise sempre a esclarecer

o que o pesquisado, em situação de entrevista ou não, recusou, até o fim, a dizer. Estejasempre à escuta dos múltiplos indícios que trazem uma incerteza, uma censura, umanegação. Pense na "escuta flutuante" do psicanalista que destaca sistematicamente oslapsos (atos falhos) e as associações de idéias.

Tente, a título de exercício, explicar as hesitações ou os silêncios repetidos de seuspesquisados. Espante-se com sua existência, não os considere como automáticos, per­gunte-se qual é a sua razão de ser. Por exemplo, um longo silêncio em entrevista teste­munha sempre um embaraço que se deve procurar compreender. Entendamo-nosbem: não se trata de interpretar todas as hesitações, todos os silêncios, querer tudo in­terpretar (se corre o risco da interpretação exagerada) mas de destacar, na análise, aque­les que aparecem como os mais significativos.

Conselho

Preste atenção particular aos momentos de interação em que o pesquisado hesita,tem dificuldade de pronunciar as palavras, resiste ou" se fecha". Você está tocando nes­se momento pontos sensíveis, zonas de "resistência" que são interessantes para se ana­lisar. Esse exercício interpretativo aplica-se também a situações de observação ou a umtrabalho retrospectivo sobre cenas vividas (DELSAUT [69])quanto às entrevistas.

Exemplo

Para os filhos de operários não qualificados imigrantes moradores dos conjuntoshabitacionais da região toda a questão sobre o trabalho do pai na fábrica provoca mal­estar e resistência. Se seu pai for operário não-qualificado ou qualificado, eles respon­dem com frases breves e lacônicas ou com expressões estereotipadas. A gente tem quesuplicar-Ihes para arrancar algumas palavras e percebe-se logo que insistir seria fora depropósito. A atitude indiferente ou o desdém dos pesquisados diante de nossas ques­tões são maneiras polidas de nos convidar a pôr termo final nesse ponto da discussão.Interrogá-Ios diretamente sobre seus pais, obrigá-Ias a tematizar ou explicitar a tomadade distância em relação aos pais e a ruptura progressiva com o universo familiar, asquais só podem ser vividas ou suportadas, na maior parte das vezes, se vividas nonão-dito, no implícito e no incômodo recíproco. Retomavam, então, na fala dos colegiaispesquisados, as mesmas expressões de morbidez e de repugnância ("Sempre tive hor­ror disso aí"," é sujo", "e repugnante"). O trabalho do pai, e mais amplamente as condi-

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8. Interpretar e redigir 175

ções de vida da família, o dinheiro, não parecem ser da ordem do enunciável. Falar dis­so seria, forçosamente, falar da fadiga e do desgaste físico do pai, da diminuição pro­gressiva de suas forças, evocar o medo na fábrica (o medo de ser transferido de posto detrabalho ou de cair num setor mais "duro", ou de ser um dia demitido ...). Em lugar, eem vez dessa crônica impossível de sustentar, os pesquisados respondem com suspi­ros, frases inacabadas, mímicas que marcam a impotência e a resignação. O silêncio éentão, talvez, a única maneira possível, em uma entrevista, de falar da negação/renún­cia da origem operária de seus pais. Ela lhes permite proteger-se, preservando seu futu­ro, poder pensar-se de outra forma que não a de filho de operário, destinado socialmen­te a ser operário. Permite também defender" apesar de tudo" a estima de seus pais, orespeito por seu trabalho duro e ingrato, desse "trabalho de escravo". Falar do trabalhodo pai nesse momento de sua carreira escolar é conciliar um passado que está morren­do e um futuro que lhe vira as costas. Silenciar-se equivale, ao mesmo tempo, a ficar fielao pai" privado" e a renegar o pai" profissional", respeitar a autoridade do pai na famí­lia e contestar a submissão do pai na fábrica (d. Encarte 55).

Procurar interpretar os mal-entendidos

Seu material de pesquisa abrange também situações, tanto em observação como ementrevista, no decorrer das quais o mal-estar entre os pesquisados e você jamais se dissi­pou. Tome esse mal-estar como objeto de reflexão partindo da hipótese que nada se deveao acaso, porque há sempre uma causa (sociológica);não abandone nunca o princípio derazão suficiente. Não ceda também à tentação psicologizante ("é um(a) grosso(a)", ummal-dormido, ele não era simpático, etc.) que alivia você da responsabilidade de analisaras falhas de interação. Procure antes compreender por que o pesquisado, inicialmente,fez o jogo da pesquisa e em seguida se fechou; por que ele cedeu a seu pedido de entrevis­ta e, uma vez diante do gravador, resistiu (por vezes até o fim) à entrevista.

O essencial da análise se dá, aqui, na descrição e na elucidação do mal-estar. Esfor­ce-se por reconstituir as condições sociais dessa interação particular, pergunte-se quem(qual tipo de pessoa social)você representa para o entrevistado. Um jovem, um diploma­do, um "bac + 5" (diplomado da universidade e da pós-graduação), um (pequeno) bur­guês, um" estrangeiro", um "jornalista", um" ingênuo", etc. A seguir estabeleçª com deta­lhe as características sociais de seu interlocutor. Faça a lista de todos os mal-entendidos li­gados à pesquisa. Enfim, procure a ou as "falhas", as razões principais do mal-estar. Só aanálise detalhada da relação que se dá entre você e o pesquisado vai permitir que você es­clareça a divergência entre as expectativas dele e as suas e explicar os mal-entendidos.

Conselho

Na entrevista, os mal-entendidos são manifestos quando uma questão de sua parteprovoca uma resposta "paralela". Preste atenção a essas respostas paralelas, elas sãosempre compreensíveis e ricas de sentido. Não são falsas nem" sonsas", mas denotamuma distância. Confronte suas expectativas (através das questões que você lhes coloca)e as respostas que obtém: o desvio, sempre significativo, expressa uma diferença en­tre suas próprias categorias de percepção (de pesquisador e de pessoa singular) e as dopesquisado. É esse desvio que faz sentido sociologicamente. E isso exigirá um traba­lho de análise.

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176 Terceira parte: Analisar os dados etnográficos

Encarte 55

Um filho de trabalhador que não quer falar de seu pai

Trechos de uma longa entrevista com Mehmet, de 2] anos, estudante do primeiro ano de

d'AES (Administração Econômica e Social) na faculdade de Besançon, filho de operário não

qualificado imigrante turco (trabalhador da Peugeot, vindo para a França em ]970), ele gostariade tornar-se mais tarde funcionário público.

- Essa idéia de ser funcionário de onde veio?

- Bem, eu gostava muito do que eles faziam, os profs ... funcionário prof! ... Os profs., eles

eram tranqüilos, tinham boas férias e eu tinha colegas cujos pais eram professores. Eles também

queriam todos ser professores. Talvez seja isso que me influenciou (risadas) Então ele (seu ami-

go) me disse: uau! é isso mesmo, ele (seu pai) ganha um bom salário, bem ele tem férias ... dois

meses pagos ... bem isso faz com que, quando vejo meu pai que trabalha ... (hesita em dizer a pala­

vra, tom mais agressivo) ... daquele jeito lá embaixo (não fala o nome de fábrica).

- Teu pai trabalha na fábrica?

- Oh! sim trabalha na fábrica (diz rapidamente como que para cortar curto e grosso qualquer

outra questão) ... Eu me dizia bom, é... cem vezes melhor!. .. E ao menos sendo funcionário, não se

tem a angústia de ser transferido, qual é... não se tem a angústia ... isso dependerá da conjunturaeconômica (risadinhas).

- E essa idéia de tornar-se funcionário você a teve no final do ensino médio ou mais cedo?

Quando estava no terceiro colegial você queria fazer o quê?

- Quando eu estava no primeiro ano? Bem é sempre assim, eu sempre quis fazer isso. Quan­

do eu era garoto queria ser piloto, aquelas evoluções, manobras assim ... (risos). Não se deve pen­sar mais alto, é preciso ser realista ...

- E quando foi que lhe pareceu importante o fato de não ser demitido ... seu pai fala disso ...- Bem, eu vejo que ... cada vez que há uma demissão coletiva, lá eu vejo como eles são ... (ele

se contém) eu vejo como ele está agora ... cada vez que há uma demissão coletiva eles são ...(ele não acha a palavra certa ou não ousa falá-Ia). Seja meu tio que trabalha lá embaixo,seja ele ... eles estão (suspiro). Eles têm um medo estúpido!. ..

- E vocês falam disso? Seu pai, ele lhe conta?

- Sim, ele me conta: "É demais, eles nos fazem trabalhar demais ... " Tudo isso para que eles

se enojem ... para que eles retornem ao país de origem ou então que parem de trabalhar, é tudo as­sim ... (silêncio).

- Ele trabalha em qual setor da fábrica?

- Na pintura eu acho ... Na pintura, é... (silêncio).

- E você nunca quis trabalhar? ...

- (cortando) Já trabalhei lá onde ele trabalha ... No polimento ...

- E você acha aquilo pesado?

- Bem não é, né ... (risadas). Mas também não é um presente! Mas nós (os "alunos") não fi-

zemos o mesmo trabalho ... ficamos dando brilho na pintura. Ele, eu não sei o que ele fazia exata­

mente, não era ... algo fácil, hein! ... Com o pó que tem em toda a parte ... e depois há um momento

que se faziam, toda hora, exames de sangue, tudo isso, para ... [... ]

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8. Interpretar e redigir 177

- E para retomar a essa questão de escola, você queria ser funcionário, mas funcionário profnão tinha outras ...

- .. ,(cortando) Isso mesmo funcionário ... de qualquer forma funcionário eu queria um trabalho

legal, um trabalho tranquilo ... enfim quero dizer que ser professor é tranqüilo (olhando-me, dan­

do-se conta de sua "gafe") Mas, mesmo assim é mais tranqüilo que os outros trabalhos (silêncio).

- Sim é mais tranqüilo ... que trabalhar na fábrica.

- É mais tranqüilo que os outros trabalhos ... (silêncio).

- E no decorrer de seu último ano havia também ...

- (cortando) Sim tinha uns trecos ... uns BTS (certificado técnico superior), tudo isso me

tentou mas depois eu me disse "Os BTS é muito legal mas ... (silêncio) ... é preciso trabalhar co­

mo um "doido" (risos), e não é certo que você vai encontrar um trabalho depois. Ao passo

que como funcionário você passa por concursos, é duro entrar mas quando você está lá dentro fica

tranqüilo ... funcionário-policial também ... policial... isso mesmo .... mas o exame de visão também

me dá medo porque sou míope.

Rumo a uma problemática

Agora, você tem em mãos séries de observações, comentários de entrevistas, semesquecer a contextualização da pesquisa (seu desemolar, a evolução das relações depesquisa). Esses diferentes materiais dialogam entre si; é preciso de início compararseus materiais de pesquisa, e depois tentar construir, a partir da reclassificação destematerial, uma problemática.

Comparar seus materiais entre si. Um controle cruzado

Vocênão tem um corpus homogêneo. Não se pode reprová-Io,é a base da pesquisa etno­gráfica" queimar todos os cartuchos". Tais materiais, você não os colocará lado a lado; ten­tará confrontá-Ios uns com os ouh"os.Tal confrontação acontece em vários níveis:

- No nível da própria pesquisa por meio de um recorte das informações. Você deve,com efeito, esforçar-se sempre para confrontar o que as pessoas lhe disseram, o quevocê as viu fazerem (nas diversas circunstâncias e diversos espaços da vida social), ocontexto em que eles vivem (observação conduzida durante a entrevista) e os elemen­tos que pode saber sobre eles sem que o saibam (algo que os outros lhe disseram sobreeles, e o que você aprendeu ao acaso com diversos documentos).

- No nível da interpretação geral permita-se comparar seus" dados", apesar de suaheterogeneidade, com os outros que encontra em textos publicados sobre o seu tema.Outros campos, outras categorias sociais, outras problemáticas: você deve ler a partirde uma perspectiva de comparação não sistemática (pois é impossível), mas heurística,

os textos dos sociólogos, dos etnólogos, dos historiadores.

Exemplo

Você observa uma cerimônia, depois faz uma entrevista com um dos participantes;pede-lhe que descreva o que se passou e confronta essa descrição cuidadosamente com a

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178 Terceira parte: Analisar os dados etnográficos

sua (anotada cuidadosamente em seu diário de pesquisa). Veja o que lhe faltaria se de­vesse se restringir a um uso" puro" da observação ou da entrevista: o risco de contra-sen­so seria muito maior. Aqui a heterogeneidade de suas fontes é a fonte de sua confiabilida­de; você controla uma pela outra. Verifica assim as distorções mais ou menos grandes,sempre significativas, entre as narrações de pessoas diferentes (incluindo você); que sepermite totalizar, de fato, um maior número de pontos de vista do que se estivesse fecha­do, por um purismo metodológico frio, na única observação ou no uso de entrevistas forada pesquisa de campo. Faça esse exercício com um evento que conhece bem, que pôdeobservar de forma repetida e do qual conhece a maior parte dos protagonistas; faça-oscontar de novo sem medo de se cansar ou de perder seu tempo" a mesma coisa", com vá­rias pessoas diferentes. Não receie também fazer analogias ousadas; talvez não o levem aparte alguma (esteja atento), talvez o levarão a chaves decisivas.

Construir uma problemática

Seu trabalho agora consiste simplesmente em reclassificar todos esses materiaissem levar em conta a ordem cronológica de sua fabricação, mas organizando-os segun­do uma ordem lógica. Guarde no entanto vestígio de sua data para não perder sua aná­lise do desenvolvimento da pesquisa. Corno chegar a essa ordem lógica?

• Numa primeira etapa você vai abrir novas pastas cujos títulos não serão mais"Entrevistas com o Senhor Dupont", nem" urna festa na escola maternal", mas" os con­tramestres: urna posição instável" ou "relações famílias/escolas" isto significa quevocê irá passar dos casos singulares às questões conceituais às quais esses casos "respon­dem" parcialmente. Você atingirá o seu objetivo reduzindo o caso ao conjunto de suascaracterísticas objetivas e escolhendo depois urna dessas características para orientar aleitura do material. Deixe de lado por ora os materiais para os quais não for criar "le­gendas".

• Numa segunda etapa irá manusear essas pastas, nas quais organizou só urna parte deseu material já existente, para tentar compreender os laços lógicos entre as questões quedestacou desta forma. Exemplo: uma está incluída na outra, uma supõe a outra, urna écomplemento da outra, urna e outra são idênticas mas não suas respostas. Agindo assim,vê surgirem convergências ou contrastes inesperados, na medida em que casos singula­res, nunca relacionados, são percebidos respondendo à mesma questão conceitual.

Exemplo

Se você está abordando o trabalho em empresa, nomeou o conjunto de entrevistas"os contramestres em posição instável" e um outro conjunto" os sindicalistas em situa­ção instável". Nada lhe teria permitido supor que urna comparação sistemática entrecontramestres e sindicalistas pudesse servir para alguma coisa. Você tem a chance en­tão de descobrir a existência de urna semelhança de trajetórias, por exemplo: urna esco­larização interrompida por razões financeiras ou acidentais quando se tratava de um"bom aluno", como no caso dos sindicalistas agrícolas, a existência também de umaforma de proximidade social entre essas duas categorias sociais (por intermédio dasprofissões das esposas, por exemplo), que será preciso certamente verificar, isto é, sóadmitir a título de hipótese, mas que lhe servirá de ponto de apoio para avançar.

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8. Interpretar e redigir 179

Veja como a questão da "organização" não é formal, escolar, dissertativa. Ela estádiretamente ligada à formulação de hipóteses, de respostas parciais a essas hipóteses,de rejeição e de reformulação das hipóteses. Tem direito de estar em estado de "vir aser", de expor hipóteses que virá a abandonar, não tem obrigação de ser de imediato"perfeito", progredirá" tateando". Tem fortes chances de fazer uma primeira organiza­ção dos materiais, depois uma segunda, depois uma terceira, etc., ao sabor do desloca­mento de seu questionamento e do refinamento de sua problemática.

Conselho

Não se feche dentro de um esquema rígido no interior do qual procurará armaze­nar seus dados, deixe-se, antes, guiar pelo trabalho interpretativo sobre seus materiais.

Se você não assume esses riscos de interpretação, se não "mergulha" nos raciocí­nios (que é preciso explicitar para poder controlá-los, enfraquecê-los ou persegui-los),jamais chegará a redigi-los. Ao contrário, se organizar seu relatório de pesquisa a partirde hipóteses teóricas externas ao campo, terá faltado com o ponto essencial da pesquisaetnográfica que é quebrar a dicotomia entre" teoria" e" empiria". Seus casos singulares(quer se trate de eventos observados ou de pessoas entrevistadas) não são exemplosilustrativos de teorias que já existem, mas pontos de apoio para fazer avançar hipótesesque a seguir poderá testar, aprofundar ou abandonar.

Alguns conselhos importantes

1) Esclareça agora, se já não o fez, quais são seus objetivos, isto é, qual, entre todasas questões, é aquela a que seus materiais respondem, a mais importante. Seus materiaissão ricos, muito ricos mesmo. Eles o conduzem para múltiplas direções diferentes.Agora é preciso escolher uma. Escreva e apóie-se nela; é confortante dizer agora, enfim,que trabalha com" os trabalhadores e seus filhos", o que se poderia traduzir como" a re­prod ução do grupo trabalhador"; com" as relações entre a profissão e fora de profissão",do ponto de vista do extraprofissão ou do ponto de vista da profissão.

Explicite pois seu objeto em alguns parágrafos. Por certo, já o fez muitas vezes. Masas formulações precedentes, em particular antes do campo, eram destinadas a seremmudadas. Esta servirá de ponto de partida e de fio condutor para a redação definitiva.Se "fixou" muito cedo sua questão principal, corre o risco de ter ficado cego às surpre­sas do campo e de só ter encontrado, por fim, em sua pesquisa, o que nela colocara deantemão. Se muito tarde, corre o risco simétrico de ter acumulado uma massa de mate­riais inúteis.

Nesse momento de redefinição de seu objeto (que pode intervir mais cedo no cursoda pesquisa, ou mais tarde, no momento de redigir) é vital que discuta com seu orienta­dor. É ele que, com você, faz essa escolha. Pode, de fato, dizer-lhe que sua perspectivanão é original, que seu projeto é muito difícil e que dará com os burros n' água. De qual­quer forma, não tenha medo demais dessa escolha. Ela o engaja, é certo. :~vfasnão o ma­tará. A maior parte das coisas importantes que viu ou compreendeu no curso da pes­quisa você será forçosamente levado a utilizá-Ias. Simplesmente serão orientadas pelaquestão principal que colocará doravante. Colocar uma questão e, uma só, equivale a

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180 Terceira parte: Analisar os dados etnográficos

colocar muitas, mas em ordem, hierarquizadas. Esta informação não vale só para a pes­quisa: a de campo, certamente, mas para qualquer utilização ativa de materiais.

Agora, tem sua questão principal. Tem materiais classificados com rubricas que são"questões secundárias". Veja como essas questões representam etapas para chegar àquestão principal. Use sem receio de abusar esquemas, setas, rascunhos de planos atéchegar a alguma coisa que lhe satisfaça ou que, pelo menos, satisfaça a seu orientador.Não transforme em fetiche esse resultado provisório. Não passa de um primeiro roteiro;no decorrer da redação evoluirá e só poderá de fato escrever seu roteiro definitivo quan­do o manuscrito estiver pronto. Um conselho ainda: não hesite em mudar os títulos daspartes, subpartes etc. É nesse exercício que se passa metade das conceitualizações e hipó­teses que, sem se dar conta, estará relatando, tentando, desfazendo e refazendo.

2) Aceite a idéia de que boa parte desses materiais (entre um terço e a metade) nãolhe servirão para nada na redação de sua dissertação (tese). Deixe de lado, por exemplo,os documentos para os quais não encontra a questão à qual respondem. Esses materiaisnem por isso são sem interesse. São inúteis simplesmente porque não respondem auma curiosidade sua ou porque não conseguiram atiçá-Ia. Talvez seja porque não temos elementos de comparação necessários ou simplesmente porque são, uma vez termi­nada a pesquisa, "fora do tema". Sabe bem que seu tema evoluiu de forma considerávelno decorrer da pesquisa. Portanto, é normal que existam" sobras". Sejapor ter ultrapas­sado o estágio no qual você se situava na fase de coleta (o material é, então, inútil por­que mal fabricado, mal observado, entrevista mal conduzi da, etc.). É o equivalente aum "rascunho" que serviu, mas não servirá mais (imagine um segundo o monte deanálises estatísticas inúteis ou não publicadas que seus colegas" quantitativistas" fabri­cam), seja porque abre uma pista que você não quer ou que, por ora, não pode seguir.Não jogue fora, portanto, guarde-o numa pasta "para mais tarde".

Não hesite em "jogar fora", se não fisicamente, pelo menos mentalmente, boa partedo seu material de pesquisa. Não seja fetichista com seus materiais acumulados. Só têmsentido e interesse para aquilo que fizer com eles. Tornar-se-ão apaixonantes.

Escrever um relatório de pesquisa

Tudo isso representa um considerável trabalho, demanda tempo, supõe escrever,riscar, copiar de novo, refazer. .. Os textos claros são os mais trabalhados.

Uma linguagem simplesPrivilegie a clareza: "Para que a mensagem seja digna de valor, ser claro é condição

necessária mas não basta, pois pode-se ser claro e chato, claro e inútil, claro e mentiroso,claro e vulgar [...). Se não se é claro não há mensagem alguma" (LEVI,Primo. Le métíer

des autres. Paris: Gallimard/Folio "Essais", p. 76). Daremos, nesse momento, algunsconselhos para evitar os obstáculos mais comuns (aqueles que a gente lastima ver nostrabalhos de estudante mas também, por vezes, no texto de certos colegas nossos antesda publicação). Há com efeito um verdadeiro "trabalho" técnico de redação, um verda­deiro saber-fazer profissional que muitos autores ignoram e que você terá que apren­der o mais rápido possível. Por exemplo, o tratamento de texto segue a ilusão de escre-

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8. Interpretar e redigir 181

ver um texto "limpo" mesmo quando as regras elementares para a leitura não são res­peitadas. Serão sugeridos alguns remédios, regras léxicas e gramaticais que o ajudarãona busca de uma forma rigorosa, precisa e simples.

• Inicialmente, não mitifique essa fase da escrita da redação; não a autonomize,com valor em si, não faça dela uma montanha. Em seu quebra-cabeça terão lugar tex­tos já escritos e revisados bastando-lhe apenas integrá-Ios tais quais em sua redaçãofinal. Na proporção de seu campo, você dedicou tempo a escrever, isto é, a verificarem que ponto está do seu processo, o que lhe resta a fazer, o que já sabe e o que nuncacompreendeu.

• Escrever não é "improvisar", jogar sobre o papel com pressa e no calor da inspira­ção, fórmulas geniais, mas é antes de tudo trabalhar. Numerosos são aqueles que rees­crevem e corrigem cada página sete ou oito vezes antes de alcançar uma versão correta.As versões sucessivas não mudam só de forma, pois é o raciocínio que se torna mais só­lido a cada passo. Tais exigências (rigor, clareza, simplicidade, lógica) não estão fora dealcance. Não acredite também que haja pessoas mais dotadas para escrever do que ou­tras. O que se exige de você não é ser escritor ou poeta inspirado. Busque esquecer suasangústias escolares diante das redações de francês ou ensaios de filosofia. Conscienti­ze-se de que não se trata de um trabalho literário sobre as palavras nem de um trabalhofilosófico sobre as idéias, mas de um trabalho científico sobre os dados produzidos porvocê mesmo.

• O trabalho de escrita etnográfico se distingue muito do trabalho literário no pon­to em que não visa" ao efeito de real", que busca, na corrente realista, fazer crer na ve­rossimilhança da narração. Ele busca o rigor e a precisão, a demonstração e a respostaàs objeções. Um relatório científico de pesquisa deve proscrever as alusões, os suben­tendidos, os "meios-termos", a cumplicidade com o leitor (piscar de olhos para o leitorrevela, no mais das vezes, um etnocentrismo compartilhado). Deve visar à explicitaçãona concisão. É preciso levar a sério o próprio termo "relatório" pois está no processo de"prestar contas", porque as pessoas têm o direito de pedir-lhe explicações. Você nãodeve" seduzir" o seu leitor, impressioná-Io, mas convencê-Io, ajudá-Io a compreender oque você está afirmando. É por isso que lhe será preciso evitar as descrições inúteis,aquelas justamente que permitem ao romancista realista atrair o leitor ao mundo noqual acreditará na proporção em que não vir onde o autor quer chegar. Mas não deverátambém fazer demonstração de seus conhecimentos, pois não se trata de uma disserta­ção, e não será julgado pela quantidade das citações e referências bibliográficas4, maspor sua pertinência em relação aos dados. Não será julgado pela forma como cita os au­tores mas pela forma de como presta contas de sua pesquisa. Não é um trabalho escolarque está sendo pedido. É um trabalho científico pessoal. Claro que não foi você quem in­ventou tudo. Cite os trabalhos publicados, mas somente se forem pertinentes. Está emjogo seu lugar em uma continuidade, aquela dos trabalhos empíricos em ciências sociais.Outros etnógrafos o ajudam a "ver" o campo e você ajudará outros por sua vez.

4. No entanto uma bibliografia abundante ajuda muito; o risco é de utilizá-Ia sem conhecimento.

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182 Terceira parte: Analisar os dados etnográficos

Relatar

Produziu dados originais, dos quais deve prestar contas com a maior precisão pos­sível, com a condição que essa precisão tenha lugar em seu raciocínio. Não tenha medode mostrar" os pontos falhos" de sua documentação, demonstrar o que teria sido ne­cessário, verificar mais uma vez: isso o ajudará a avançar, a ver o que falta; no futuroser-Ihe-ão gratos por ajudar seus sucessores a efetuarem os complementos de pesquisaou as verificações que se impõem. Deve, pois, produzir um raciocínio à altura de seusdados, nem de mais nem muito pouco.

Não chegará logo de imediato a um raciocínio satisfatório. Quando começar a redi­gir, isto é, a seguir um raciocínio de ponta a ponta, verificando que ele se sustenta sofre­rá, é verdade, sentir-se-á mal e isso acontecerá passo a passo, mas também compreen­derá a fundo intuições que antes eram vagas como se em retalhos, porque não ligadasentre si.

• Redigir seu relatório de pesquisa é ao mesmo tempo explicitar os detalhes e associ­

ar no interior de um racicínio esses mesmos detalhes. Redigir é testar raciocínios suces­sivos, abandoná-Ios, produzir novos, mais simples e mais eficazes. É preciso admitirtentar várias formulações antes de achar a boa. Atenção às palavras e à exatidão das for­mulações.

Seus dados não devem em caso algum servir simplesmente de ilustrações a seupropósito. Este último é, de fato, construído inteiramente a partir da interpretação deseus dados. Você raciocina sobre seus dados, você não ilustra com eles uma tese fabri­cada em outra situação. Isso lhe evitará a síndrome do papagaio: repetição mecânica deconceitos forjados em outras condições. De fato está buscando a "prestar contas" da­quilo que se passou, a esclarecer suas observações e suas entrevistas a partir das condi­ções sociais de sua efetivação. Você pode tentar formalizar suas" descobertas": escre­vendo uma fórmula ou um esquema que lhe pareçam válidos para o caso X e testá-Iosem outros casos.

• É preciso também mostrar suas "fontes", respeitando o anonimato dos pesquisa­dos. Está numa situação particularmente desconfortável, é preciso reconhecê-Io. Nãopode, como os sociólogos estatísticos, apoiar-se sobre a autoridade, mesmo que mági­ca, de uma tabela numérica. Não pode também, como os historiadores, apoiar-se sobreuma lista de caixas com os arquivos encontrados. Você deve, necessariamente, produ­zir, no sentido jurídico do termo, suas fontes, isto é, mostrá-Ias, exibi-Ias. Você serásempre suspeito de estar falando sobre o vazio e de "interpretar excessivamente". Suaúnica garantia, é preciso admiti-Io e reivindicá-Io, é seu diário de campo, seus relatóriosde observações, os documentos que recolheu e as entrevistas que transcreveu.

Isso é importante. Não tenha medo de citá-los, com a condição de fazê-Io com dis­cernimento e propriedade. O que se pensaria de um estatístico que mostrasse dezenas,centenas de quadros inúteis antes de ter colocado a limpo aquele que lhe parecesse con­vincente? O que se pensaria de um historiador que se contentasse com copiar, em ane­xo, todos os documentos que tivesse consultado antes de encontrar aquele que convies­se à sua demonstração?

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8. Interpretar e redigir 183

Algumas regras

1) Propor um problema como introdução (a introdução se escreve no fim!).

2) Fazer sua introdução ponto por ponto.

3) A cada ponto, procurar, entre seus materiais, "os" ou "o" caso sobre o qual seapOIar.

4) Exibir tal caso em anexo ou em paralelo, isto é:

• autonomizá-Io (com prudência para não tirar uma frase de seu contexto, para nãoretirar um fato do conjunto, sem o qual não tem sentido), restituindo sua coerência;• recontextualizá-Io;

• retorne ao capítulo 7 para as regras de transcrição final das entre\"istas e para asregras a passar a limpo/ explicitação das observações.

5) Não terminar sem ter evidenciado claramente os complementos da pesquisa (tal­vez consideráveis, aliás) que necessitaram de uma demonstração perfeitamente con­vincente. É aí que pode sugerir um tratamento de dados estatísticos, que talvez terátempo para efetuá-Io você mesmo a seguir. Invente um "teste" de confirmação/nega­ção de seu propósito: nem que seja para que se possa verificar que não manteve sim­plesmente um discurso retórico vazio.

As principais armadilhas

São a síndrome da enumeração, a tentação literária, a complicação inútil.

• A Síndrome da Enumeração. Ela espreita aqueles que não fizeram bem feita a pes­quisa, pois vão enumerar dados justapostos sem vínculo entre si, sem perspectiva. Se­rão repreendidos por falta de raciocínio, pela falta de construção dos dados, pela au­sência de confiança no poder explicativo da sociologia. Serão vistos como suspeitos delevar a cabo, com menor esforço, um exercício escolar que os chateia. Dir-Ihes-ão quenão buscam demonstrar nada, que listam e alinham casos sem saber o que querem di­zer. Essa síndrome atinge aqueles que não propuseram questões suficientes sobre seumaterial, para os quais tudo parece evidente, aqueles que não têm capacidade de se ad­mirar. A síndrome não deverá atingi-Io se tiver seguido nossos conselhos para análisede seus materiais (capítulo 7).

o remédio

O caso é grave. Se foi atingido, retorne ao seu material. Proponha-lhe questões.Compare os casos que erroneamente analisou separadamente. A cada vez, pergun­te-se: porque o Senhor Dupont não se comporta como Senhor Dubois? Reconstitua a co­erência dos casos. Construa as comparações pertinentes, as famílias de casos, reflita so­bre as proximidades, as analogias, antes de refletir sobre as diferenças. Resumindo, épreciso que chegue a ficar confuso, pois seus dados num ou noutro momento deverãoparecer-lhe bizarros, sem explicação. Você talvez sofra de uma falta de inquietação ci­entífica, como se o mundo fosse plano. Se essa patologia persistir, questione-se sobreseu interesse pela sociologia, talvez tenha que mudar de rumo.

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184 Terceira parte: Analisar os dados etnográficos

• A tentação literária. Ela espreita sobretudo os românticos da pesquisa de campo, osque escolheram a pesquisa pela rejeição da abstração e redução próprias da atitude ci­entífica. O espírito antipositivista conduziu recentemente a várias formas, mais ou me­nos insidiosas, de liberação e de abandono dos princípios científicos, em sociologia esobretudo em antropologia. Há um risco de apagar a fronteira entre etnografia e ficçãoque se torna embaraçoso quando proposto como modelo a estudantes. Um conselho:não misturar literatura e sociologia. Não é questão de impedi-Io de ter tentações literá­rias, mas satisfazê-Io em outro espaço que não um relatório de pesquisa. Não renuncieao rigor, não se deixe levar por suposições não verificadas ou por "projeçõesfl (no senti­do psicológico do termo), nem confundir a imaginação e a observação. Isso não quer di­zer que deva ostentar um texto pesado e complicado sob pretexto de um flfazer científi­cofl• É legítimo escrever "narrativas" literárias, mesmo com componente sociológico(por exemplo, Georges PerecI Annie Ernaux), entretanto é pernicioso procurar fazê-Iaspassar sob a autoridade e a legitimidade científicas.

Essa armadilha traduz-se por um excesso de imagens inúteis, por uma procura dedetalhes sem tirar proveito algum a não ser retórica. Não se inquiete demais, pois o quelhe propomos é uma luta sem fim contra si mesmo, nós também não estamos sempre àaltura de nossos conselhos!

o remédio, o elogio da concisão

De cara, exercite-se fazendo frases curtas (nada de frases excessivamente sutis), pa­rágrafos curtos. Dê títulos, mentalmente, a seus parágrafos, pois isso lhe permitirá sa­ber onde quer chegar depois de reconstituir integralmente seu raciocínio. Você pode fa­zer um roteiro detalhado depois, se for preciso; utilize todos os meios possíveis paracontrolar o rigor de seu raciocínio. Depois releia-os. Comece por suprimir os advérbios,as locuções que exprimam uma dúvida polida. Assuma suas posições. Não crie muitasmatizes. Faça uso prudente dos adjetivos, utilize só um de cada vez. Escolha bem e per­gunte-se por que hesita na escolha, a solução talvez seja de não conservar nenhum. Cor­te as frases, pois não só cansará menos o leitor, mas será levado a hierarquizar o que vocêquer dizer, a deixar claro e, provavelmente, a reduzir o seu texto.

De modo geral atente às palavras que utiliza. Procure sempre a palavra" certa"; uti­lize sem restrição os dicionários (o Littré e o Robert5, para verificar a mudança de senti­do das palavras a um século de distância). Isso reconstrói de fato uma série de pontosde vista sobre o mundo social; cada um desses pontos de vista se expressa em palavras,muitas vezes sem que aqueles que as pronunciam o saibam. Deve estar bem colocadopara saber que as palavras carregam algum sentido, sinalizam uma relação com o mun­do. Pergunte-se se foi justo com o que fez, viu, ouviul ao utilizar as palavras que usa.

Não coloque em cena inutilmente seus personagens, não faça perdurar o suspense.Não está escrevendo um romance policial. Todos lhe agradecerão pela simplicidade. Sem­pre haverá uma suspeita em relação ao inchaço estilístico, de não ser mais que um disfarce

5. N.R.: Dicionários franceses clássicos, seria o equivalente a utilizar o Houaiss e o Aurélio no Brasil.

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8. Interpretar e redigir 185

que esconde a pobreza do estilo, de mascarar uma falta de trabalho empírico, a falta de se­riedade, uma falta de rigor no raciocínio. Um excesso de descrição sem conceitos.

• A complicação inútil. É o principal defeito dos estudantes, que não se dão conta deque ele destrói até o próprio projeto de um empreendimento etnográfico. A complica­ção inútil consiste em obscurecer aquilo que deveria esclarecer, notadamente por umexcesso de conceitualização fora de propósito. Localizam-se facilmente os textos queapresentam esse defeito: eles atribuem" eficácia" a termos abstratos. Por outro lado,nesses textos não se "vêem" os pesquisados, não se "vê" mais o campo, nada-se numateoria flutuante que sufoca o campo. É um sinal de que você hierarquiza o universo deuma forma muito intelectualista, pois os textos tornam-se sagrados e são privilegiadosem relação aos dados de campo. É uma maneira lastimável mas compreensível deadaptar-se a um universo intelectual que, de fato, funciona muitas vezes assim.

o remédio: elogio da simplicidade

Para tudo que concerne a essas questões ligadas à maneira de redigir e, especial­mente, para evitar a última armadilha (freqüente quando se é inspirado na escrita pormodelos de identificação) far-se-á aqui o elogio da simplicidade.

Caça aos neologismos. Só utilize termos abstratos quando forem úteis, esclarecedo­res. Pese cada palavra para verificar se ela acrescenta algo mais de inteligibilidade e quenão perturbe a compreensão. Não leia só textos sociológicos, leia historiadores, leia, detempos em tempos, textos científicos. Cace os jargões de todas as escolas. Saiba que osgrandes textos são límpidos, veja Durkheim. As regras do método sociológico; veja Mauss.Le variations saisonnieres ...; veja Bloc, L'étrange défait. Veja Strauss, Miroirs et Masques.Por certo a sociologia formiga de textos célebres e obscuros mas é que muitas vezes sãoinacabados propícios a todas as leituras e interpretações. Ricos com suas ambigüida­des! Não os imite ou, pelo menos, não de imediato!...

Da prova à experimentação

Acusa-se muitas vezes o etnógrafo de falar sem provas. Ou, mais exatamente, historia­dores de um lado, estatísticos de um outro, levantam dúvidas sobre a validade do pro­cedimento etnográfico. Os historiadores, porque crêem que o etnógrafo jamais podeexibir o equivalente a suas caixas de arquivos. Os estatísticos, porque o etnógrafo estáprivado da prova de verificação representada pelos "testes" estatísticos. Semelhantecrítica não seria grave se os etnógrafos estivessem reagrupados em uma associação pro­fissional poderosa. Ademais, na medida em que a pesquisa de campo é utilizada pelossociólogos, por vezes até pelos historiadores, estes têm sempre que justificar diante deseus pares o uso de um método também singular. De fato, apesar do uso de uma mes­ma acusação (nós não poderíamos exibir" provas"), esses dois críticos que convergemcontra o trabalho de campo derivam de dois universos de referência distintos.

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186 Terceira parte: Analisar os dados etnográficos

Arquivar o trabalho de campo

Do lado dos historiadores, a prova pelo arquivo é da ordem da prova judiciária. Aquestão é a da qualidade, da "confiabilidade" da testemunha que garante a confiabili­dade do testemunho. A crítica deles contra o etnógrafo é portanto uma crítica fundadasobre a singularidade do pesquisador: quem garante que ele não tenha falsificado suasfontes? Quem garante que não tenha inventado o que conta? A resposta aos historiado­res consiste em uma organização mais coletiva e portanto mais controlada do trabalhoetnográfico.

• Constituir arquivos etnográficos6, cujo princípio e cujos primeiros elementos já exis­tem no Museu das Artes e Tradições Populares (ATP). Entre 1936 e 1955 todos os pes­quisadores das grandes pesquisas coletivas realizadas pela Comissão das pesquisas co­letivas e depois pelo Museu das ATP, eles mesmos, mantiveram "diários de campo"que depositaram em conjunto com seus documentos de pesquisa (fotografias, planos,esquemas, etc.). É uma fonte já utilizada, mas insuficientemente conhecida. Dever-se-iamultiplicar esse gênero de "depósito". Nada de pesquisa publica da sem depósito dasfitas e dos diários sob condições restritivas de consulta. Poder-se-ia mesmo imaginarque os pseudônimos (cf.mais abaixo) fossem" depositados" com uma lista dos nomesreais dos pesquisados, sob reserva de consulta tardia (tipo dos arquivos privados).

• "Revisitar" o campo dos antecessores. É o que fizeram, mais ou menos sistematica­mente, os antropólogos americanos. Até o momento, os antropólogos da França nãomanifestaram um gosto particular por essa prática:-.

• Desqualificar as pesquisas de campo cujo relatório não nos fornece nenhum dado so­bre a forma como a pesquisa foi conduzida (datas, duração, colaborações, presença dopesquisador, etc.).

o trabalho de campo

Experimentações singulares. Do lado dos estatísticos, a prova estatística é da or­dem do raciocínio fundado sobre a amostragem cujo fundamento é a intercambialida­de dos pesquisados: se não localizo o Senhor Dupont pelo telefone, eu o substituo peloSenhor Durand que, como ele, é francês, empregado, entre 30 e 39 anos, casado, dois fi­lhos, e mora num apartamento de dois quartos na região parisiense; um acaba de per­der seu pai e o outro está a ponto de se divorciar. O raciocínio se baseia sobre pessoassingulares a partir da relação entre algumas variá\'eis (os empregados dessa categoriatêm chances de votar em Le Pen se os pais deles votarem na direita e outras tantas chan­ces se seu pai votar na esquerda). É possível, claro, que se tenham escolhido más variá-

6. Deve-se esta idéia a Hervé Sciardet, a quem aqui agradecemos.

7. Em 1980, havíamos pedido a Lucien Bernot autorização para um estágio etnográfico em "Nouville"! o quenos foi recusado.

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8. Interpretar e redigir 187

veis. Mas um bom estatístico não se arriscará a nenhuma conclusão sobre as chances deuma pessoa votar em Le Peno

Lembremos antes que não estamos numa lógica de amostragem; o que observamosnão uvaleu para uma outra população que não a que pesquisamos diretamente. Desteponto de vista entramos na categoria das monografias. Mesmo assim, não abdicamos detoda a ambição pela generalização. Simplesmente não generalizamos a respeito dos Uin_divíduosu ou das Upopulaçõesu, mas no que se refere a Uprocessosu eU relaçõesu. E, acimade tudo, entramos numa lógica cumulativa. Nós experimentamos interpretações e hipó­teses, por definição gerais, que têm vocação para serem contestadas aqui e alhures.

Colocamos uma pedra, nossa modesta contribuição, ao edifício cumulativo edifica­do por nossos antecessores. Longe de procurar originalidade teórica a todo custo, e umquadro vazio, nós nos situamos numa tradição científica sólida, mesmo que não seja re­conhecida universalmente, e avançamos sobre o campo já bem baliza do da descriçãodas relações sociais.

A presença do pesquisador age como um catalisador sobre as reações sociais pree­xistentes; serve de revelador de conflitos e classificações locais, pois se torna um ele­mento no jogo das relações de força que não conhece ainda e que menos ainda domina.À medida que permanece no campo, tornar-se-á o confidente, o refém, a testemunha,o juiz, a providência, a ajuda; representa, de certa maneira, o Umundo exterioru, umaaposta na representação que as pessoas encontradas fazem de si mesmas e querem apre­sentar ao upúblicou.

Após esse primeiro tempo de pesquisa às cegas, o pesquisador forja uma primeirainterpretação daquilo que ele desencadeou. É então que sua presença torna possíveluma verdadeira U experimentaçãou em que a cobaia não é o pesquisado como ele mui­tas vezes se imagina, mas sim a relação que se estabelece entre pesquisador e pesquisa­do. O pesquisador está então à altura de fazer previsões sobre a evolução de suas rela­ções com os pesquisados. Que ele as anote. Que reserve tempo para observá-Ias. Ele seengana às vezes. Muitas vezes viu (previu) certo. Poderá se vangloriar por ter uma in­terpretação convincente, pelo menos aos seus próprios olhos, quando tiver visto confir­mar-se um certo número de suas previsões referentes a pessoas singulares.

***

O verdadeiro recurso do etnógrafo é sua crônica de pesquisa. Uma vez acabada suapesquisa poderá predizer não só a atitude dos pesquisados a seu respeito, mas tambémas relações que se estabelecem entre diferentes pessoas que observa. Poderá predizer asreações de uns ou de outros diante de tal ou tal evento exterior. Terá mesmo, muitas ve­zes, o prazer de ouvir, resumidamente, toda sua interpretação validada por um discur­so ouvido ao acaso, de uma conversa, que retoma o conjunto das palavras cuja análisefez pacientemente, o conjunto das fórmulas que aprendeu a localizar e a interpretar. Afivela fechou-se então. Isso não acontece muitas vezes, mas pelo menos saiba que podeacontecer. É claro, nessas condições, que o horizonte de expectativa da etnografia não éa generalidade de uma lei universal, mas a generalização parcial: sobre tal e tal condi-

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ção, em tal ou tal contexto, se tal fato (ação) acontece então tal outro evento (reação) de­veria seguir-se. O que nos importa não é a ação individual mas a forma da relação inter­pessoal. É isso que nos permite manter à igual distância o individualismo metodológi­co (que postula as singularidades individuais como" explicações" das relações sociais)e a hipóstase dos coletivos (que postula as "classes", os "grupos" ou "as forças sociais"como "explicações" das ações individuais).

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Conclusão

Ucê acaba de redigir sua dissertação ou sua tese e fez a defesa: foi julgado, louva­do, criticado. Ora, muitas vezes sua dissertação manter-se-á do jeito que está para con­sulta somente na biblioteca universitária. Se seu trabalho foi particularmente apreciadopor seus mestres, esforce-se, com a ajuda de alguns deles, por publicá-Io ou pelo menosredigir um artigo ou, melhor, um livro derivado da tese. É claro, terá que trabalhar no­vamente o seu texto, muitas vezes, por longo período. Mas, para aqueles que queremengajar-se na carreira de pesquisador, é um investimento indispensá\-e1. ~ão tenha dú­vidas em pedir conselho aos membros da banca para saber o que merece ser publicado(tal capítulo mais que outro). Não espere muito para fazê-Io, é melhor forjar o ferroquando está quente. Redija, pois, um projeto de artigo, mostre-o aos que o rodeiam, es­pecialmente a seu orientador, corrija-o em função das críticas que lhe foram feitas, de­pois encaminhe-o ao corpo editorial de diferentes revistas de sociologia ou de antropo­logia. O procedimento de leitura é anônimo e só leva em conta a qualidade científica dotexto e não as qualidades sociais do autor. Para aumentar a visibilidade dos bons relató­rios de pesquisa de campo realizadas pelos estudantes, seria necessário entre outras coi­sas, criar, em etnografia, o equivalente para os trabalhos de conclusão do Prêmio Mai­tron (do nome do historiador social Jean Maitron), que é outorgado todo ano a um tra­balho de conclusão em História Social por um júri nacional composto de professores dehistória. O estudante premiado vê então no ano seguinte sua monografia publicada emlivro. Bela recompensa. Mas nós não estamos lá ainda. Contentemo-nos com esperarque um dia a disciplina seja suficientemente forte e institucionalizada para que tal inici­ativa venha à luz.