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BRUNA TORQUATO
AS ONZE ESSÊNCIAS
Bruna Torquato 2016
Todos os direitos reservados.
Arte de capa
Maria Leão Gomes de Moraes
To reget one’s own experiences is to arrest one’s own development. To deny one’s own experiences is to put a
lie into the lips of one’s own life. It is no less than a denial of the soul.
Oscar Wilde, “De Profundis”
Índice
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Epílogo
AGRADECIMENTOS
A INVOCADORA
Capítulo 1
Ariana
Uma gota de suor escorreu por minhas costas. O líquido lambeu
minha pele como um singelo aviso de advertência, sussurrando
que algo estava errado. Eu estava nervosa, apesar de dificilmente
me ver dominada por esse sentimento. Nem mesmo quando
precisava inventar as mais mirabolantes desculpas para minhas
saídas e chegadas noturnas. Enfrentava a ansiedade como um
sentimento a ser convidado, não adentrava as paredes de meu
corpo — ou mente — sem minha permissão. Mas tudo isso
parecia mentira quando nossos olhares se cruzavam. Aquelas
pessoas eram capazes de despertar em mim algo que há muito
havia conseguido controlar.
O garoto ainda me fitava. Cinco minutos haviam se passado
sem que saísse da mesma posição. O cabelo azul despencava em
fios grosseiros de sua cabeça, e os olhos possuíam uma aparência
avermelhada, após tanto tempo chorando. Sua expressão
lembrava-me a de um animal ferido, rosnando e babando.
Olhei ao redor. Não havia mais ninguém ali. Ninguém que
pudesse ouvir aquele lamento. O baixo gemido que escapava
daqueles finos lábios. Apenas eu. Eu e o garoto de cabelos azuis.
Nem ao menos sabia seu nome.
Nossos braços se esbarraram e senti o nervosismo que pulsava
por seu corpo, a eletricidade que parecia acelerar seu coração.
Suas mãos inquietas brincavam com a barra da camiseta,
enquanto balançando a cabeça, ele tentava se livrar das lágrimas.
Sentei-me ao seu lado ao pé da escada de madeira. O degrau
rangeu como se com o passar do tempo houvesse suportado tanto
peso que era necessário gritar.
Eu já havia passado por isso antes. Sabia o que ele queria.
— O que está acontecendo? — perguntou o garoto, em meio
aos soluços.
— Eu não sei — respondi com sinceridade.
Entenda-me, disse que já passei por isso, não que sei como lidar
com isso. Sobre tal coisa sei tanto quanto ele. Sei que sempre
existe alguém, e que sempre existe essa pergunta.
— Meus pais — disse ele, fungando. —não me respondem.
Nem ao menos olham para mim quando grito seus nomes.
O garoto me fitou, esperando uma resposta, seus olhos
estudando minha reação. Um brilho de esperança trespassou seu
olhar e engoli em seco. Vamos, disse minha mente, não seja tão
inútil.
— Por favor — implorou ele. — Me ajude.
Acordei num sobressalto. O coração acelerado parecia
ricochetear em meu peito — assim como as últimas palavras do
garoto. Levantei os olhos. Lucas me encarava preocupado,
apoiado contra seu banco. Seu cabelo loiro estava molhado
devido ao calor, e ele tirara a camisa. Respirei fundo, repetindo
para mim mesma que havia sido apenas um sonho — como
sempre. Lucas sorriu para mim, erguendo as sobrancelhas, como
se perguntando se eu estava bem. Assenti com a cabeça.
Fechei os olhos por um segundo, tentando me recompor. Não
poderia permitir que tal coisa me atrapalhasse. Principalmente em
um momento que deveria ser de descontração. Senti as palmas de
minhas mãos arderem ao pressionar minhas unhas com força
contra elas, parando apenas quando a carne se acostumou e o ato
pareceu sem sentido. Por mais que não gostasse daquilo, era uma
das poucas coisas que conseguia trazer-me de volta à realidade
completamente, de modo que quase sempre o fazia após um
sonho.
Estávamos no carro de Maia, a música tão alta que era difícil
ouvir o que ela falava. Do lado de fora da janela, as casas haviam
sido substituídas por árvores. Percebi, então, que dormira quase
todo o trajeto até a casa de campo.
— Outro pesadelo? — perguntou Maia.
— Sim — respondi, um pouco sonolenta.
A imagem do garoto ainda me perturbava, mas isso era normal.
Sempre ficava abalada após um sonho desses. Porém, ainda não
havia me acostumado a isso. Talvez nunca fosse me acostumar.
Não era um sonho comum, ou mesmo um pesadelo comum. A
estranheza estava, talvez, em sua repetição — ou na sua não
repetição. Era sempre o mesmo repertório. As mesmas lamúrias.
As mesmas dúvidas. Mas nunca as mesmas pessoas. Às vezes,
acordava gritando. Às vezes, tentava não dormir com medo de
que pudesse vê-los, ouvi-los. No começo, tinha esperança de que
parassem depois de um tempo, mas eles só ficaram piores e mais
constantes. As noites eram longas demais e os dias não pareciam
durar o suficiente. Com o tempo, ao contrário de as luzes irem se
apagando conforme eu ficava mais velha, elas acendiam em um
número cada vez maior.
Eu nunca havia falado sobre isso com meus pais — por alguma
razão não ouviam meus gritos ou, se ouviam, não se importavam
—, mas Lucas e Maia sabiam sobre eles. Muitas vezes eu
acordara gritando na casa dela e seus pais apareceram assustados
na porta. As desculpas passavam de histórias de terror para Maia
me pregando uma peça.
— Fique calma, tudo bem? — disse Lucas.
— Eu estou calma, é só que... eles parecem tão reais.
— Ariana, são apenas sonhos — lembrou Maia, em seu
discurso semanal. — E sonhos parecem reais.
Mas não era isso que me incomodava. Não o fato de eu pensar
que não eram apenas sonhos. Era a maneira como se repetiam
sem nunca serem os mesmos. Como pareciam seguir algum tipo
de padrão. Posso não ser a pessoa mais adequada a dizer isso,
nunca estudei nenhuma teoria, mas tudo me parecia um tanto
peculiar. Quando tive um sonho desses pela primeira vez, fiquei
assustada. Sempre ficamos quando temos um pesadelo. Mas na
segunda e terceira vez, o sentimento passou para medo, e tem sido
assim desde então.
Batemos em algo e fui jogada para frente. Maia socara o carro
contra o portão de sua casa.
— Droga —resmungou ela, enquanto o portão terminava de
abrir e nós entrávamos.
Estávamos em uma casa de campo em Dantana, com o sol da
tarde sobre nossas cabeças. Umas poucas árvores faziam sombra
aqui e ali, enquanto boa parte do terreno era apenas grama. Abri a
porta do carro e meus pés tocaram o chão macio com um alívio.
Era reconfortante pensar que mesmo com todos aqueles
pesadelos, algo ainda fazia sentido. A chuva ainda caía. O vento
ainda soprava com a mesma intensidade.
Maia puxou um chaveiro de sua bolsa e, com um rangido, abriu
a porta de madeira envernizada. A casa era grande, de um branco
quase vivo. A sala estava sem móveis, somente com uma mesa
para o DJ no canto direito e uma para as bebidas na outra ponta
do mesmo lado. Bem no meio da parede esquerda subia uma
escada que levava para o segundo andar, os degraus espaçados e
envernizados no mesmo tom da porta, assim como o chão.
Por fora, a casa era ainda mais simples, mas nem por isso
deixava de ser bonita. Pintada de um amarelo aceso, as paredes se
erguiam enquanto trepadeiras se entrelaçavam a elas, formando
um quadro vivo. A grama estava um pouco alta, mas isso não nos
atrapalharia.
— Minha prima sabe arrumar festas não? — Maia riu. Ela era
do tipo que adorava festas, e havia decidido fazer uma para
comemorar o início das férias. Não que precisasse de um motivo
para dançar e ficar bêbada, mas fingir ter um deixava com que ela
fizesse todas essas coisas sem culpa. — Ari, você sabe que tem
dois quartos lá — disse, apontando para cima. — Pode usar um
dos dois. Você usa o outro Lucas. Vou ficar com o de minha mãe.
Todo o banheiro cheirava a limão, desde os sabonetes até a
essência que espirravam no ar.Pequenos desenhos de nuvem se
alternavam nas paredes, combinando com o azul bebê no qual era
ladrilhado todo o lugar. Ninguém da família de Maia morava na
casa, mas existiam algumas pessoas que cuidavam do local,
passando duas vezes por semana para limpá-lo e checar se estava
tudo certo.
Liguei o chuveiro, ansiando por renovar minhas energias. Não
existia nada para me perturbar ali. Somente o barulho da água e o
silêncio reconfortante que preenchia o espaço à minha volta. O
vapor desenhava espirais no ar, e logo uma cortina branca se
formou sobre mim. Fiquei lá durante um tempo, ouvindo a água
cair pesadamente sobre meus pés, como se me arrumar fosse a
última coisa que quisesse fazer no momento.
O garoto de cabelo azul ainda não havia saído de minha cabeça.
O modo como pedira ajuda. O desespero em sua voz. Tentei
pensar no que isso significava, por que sonhara com ele. Muitas
vezes passara horas olhando para o teto, tentando imaginar a
razão de meus pesadelos. Se não existia uma mensagem oculta
por entre os pedidos de socorro.
Não tinha ideia de quanto tempo havia se passado, mas já podia
ouvir a festa, a leve batida constante que parecia fluir do piso em
minha direção. Talvez houvesse ficado lá por trinta minutos,
quarenta. Ainda não queria sair. O calor da água me transmitia
certa paz. Contudo, conclui que ficar ali não ajudaria muito.
Fechei o chuveiro no mesmo momento em que ouvi uma
movimentação no quarto. Tropecei ao sair do box e peguei uma
toalha, indo em direção à porta. Não seria estranho se a abrisse
para encontrar um casal se pegando. Isso já havia acontecido
antes. Para ser sincera, pelo tipo de festas que costumava
frequentar, seria o mínimo que poderia acontecer. Mas era uma
festa de Maia, e nossas companhias não eram as mesmas.
Pressionei minha mão contra a maçaneta fria. O toque dela sob
minha pele quente me trouxe de volta. Quando a porta abriu, já
estava preparada para expulsar os intrusos a fim de poder me
trocar, mas meus olhos focaram um rapaz. Ele estava parado à
minha frente. O cabelo escuro caindo até a base das sobrancelhas.
O nariz era fino, e a boca curvilínea. A pele azeitonada dava um
ar de verão ao seu rosto expressivo. Era um pouco mais alto que
eu, e apesar de magro, era visível pelos braços torneados que não
era completamente reto. Trajava calça e blusa pretas, e um
coturno sujo sobre os pés.
— Então? — arqueei as sobrancelhas, me perguntando o que
ele estaria fazendo no quarto de Maia. Talvez fosse um dos novos
caras com quem ela estava saindo.
Seus olhos castanhos percorreram meu corpo e lembrei-me de
que estava apenas de toalha. Ele sorriu. Um sorriso tão bonito
quanto ele. Senti-me corando.
— Acho que me perdi da festa — disse ele, baixinho, com um
sorriso malicioso no rosto.
— Ela provavelmente está lá embaixo — devolvi, tentando
segurar a toalha ao meu redor.
Ele continuou parado, me encarando, a boca levemente curvada
no canto direito.
— Acho melhor você não descer assim, sabe, tem muitos
garotos pervertidos lá embaixo — ele riu. Então piscou para mim
e foi em direção à porta.
Fiquei olhando-o enquanto saía do quarto. A curva de seus
ombros. A forma como andava. Somente quando sua figura sumiu
corredor afora é que consegui me mexer, adiantando-me para me
arrumar.
Toda a sala estava uma confusão de cores que fazia meus olhos
doerem. O cheiro de fumaça invadia meu nariz; a música alta
pressionava meus ouvidos; a mesa de bebidas me chamava. Por
todos os lados pessoas segurando copos, cantando, dançando. Era
a terceira festa na mesma semana a qual eu ia, e meu corpo
parecia gritar por descanso. Meus olhos já quase enxergavam
apenas quando o mundo piscava e tudo parecia fazer sentido
somente quando embebido em álcool. Sabia que deveria diminuir
o ritmo ou não haveria mais ritmo para ser diminuído. Porém, era
nas festas, e unicamente nas festas, que conseguia observar
realmente os seres humanos. Longe da multidão, observando com
olhos atentos, compreendia por que a maioria das pessoas gostava
tanto daquilo. Era o modo que elas encontravam de esquecerem
dos problemas e serem felizes por um tempo, como se a vida a
partir do momento em que a música parasse não existisse. Um
momento entre a realidade e o mundo de música e luzes.
Fui até a mesa de bebidas e peguei um copo. Não tinha muita
certeza do que era, mas possuía um forte sabor de morango. A
bebida tocou minha garganta com uma ardência bem-vinda, e
levantei os olhos para a festa. A fumaça havia enfraquecido.
Tentava ver o que estava acontecendo na sala. O casal a mais ou
menos um metro de mim estava se beijando — ou tentando
arrancar a língua um do outro da boca. Um grupo de garotas
dançava no meio da pista. Quando um rapaz se aproximou do
amontoado, sumiu em meio à roda, puxado por mãos com unhas
bem-feitas. Da mesa eu podia ouvir os gritos agudos que elas
davam.
Quando foquei na mesa do DJ, percebi que era Lucas quem
estava tocando as músicas. Seus olhos me encontraram e ele
acenou para mim. A fumaça aumentara novamente, e eu não tinha
certeza de qual era o caminho até ele, de modo que segui pela
parede e logo estava parada em sua frente.
— Então — disse ele. — O que está achando das músicas?
— Acho que você está indo muito bem — falei.
Nós gritávamos um para o outro para sermos ouvidos sob o
som alto.
— Valeu.
Esperei enquanto ele trocava a música e o grupo de garotas
dava mais gritinhos, escolhendo uma nova vítima.
— Precisa de ajuda? — perguntei.
— Não. Mas se você não se importar de ficar aqui e me ajudar a
escolher a playlist... Sei que não vai dançar.
— Não vou mesmo — concordei. — Você viu a Maia?
— Vi. Ela estava ficando com aquele garoto loiro da última
vez. Será que você pode buscar algo para eu beber? — perguntou
Lucas.
Concordei e me virei para ir em direção à mesa de bebidas
novamente. O casal já havia saído de lá, e agora duas garotas
dançavam de modo sensual. Por mais que eu não achasse aquilo
bonito, e concordasse com as pessoas que as chamavam de
atiradas, ou mesmo vadias, era óbvio que elas sabiam o que
faziam. Possuíam a sensualidade das divindades do amor, e o fato
de terem conhecimento disso apenas às tornava mais perigosas.
Pecavam somente em um aspecto, e esse era o de se entregarem
para os hipócritas que as ofendiam e depois as comiam, como se
fossem de uma raça superior. Mas se até mesmo os animais mais
letais possuem seus pontos fracos, por que não haveria de ter o ser
humano?
A mesa estava mais cheia do que da última vez. Peguei um
copo azul — algo de coco. Ao meu lado, um garoto enchia seu
copo com cerveja, seus braços se movendo rapidamente enquanto
entregava o primeiro a alguém à sua direita e já começava a
encher o segundo. O objeto azul em minha mão lembrou-me de
algo, ou alguém. O garoto de cabelo azul de meu sonho. Péssima
hora, pensei. Mas a verdade é que não existia hora boa. De
repente, a música tocou mais alta em meu ouvido, e, junto a ela,
minha pulsação. Meus dedos ficaram moles em torno da bebida, e
pousei-a na mesa, derramando um pouco do líquido sobre a
madeira. Era como se todo o meu corpo concordasse em parar na
mesma hora. O garoto ao meu lado tocou em meu ombro.
— Ei, você tá legal? — perguntou ele, o hálito cheirando a
álcool.
— Estou — respondi, respirando profundamente e repetindo
para mim mesma: “é apenas um sonho”.
Peguei o copo novamente, mas dessa vez meus dedos estavam
firmes ao redor dele. Minha pulsação voltou ao normal.
Atravessei a sala outra vez e entreguei a bebida a Lucas. Ele não
parecia estar se divertindo tocando as músicas tanto quanto estaria
se estivesse no meio da pista. O que era estranho para ele.
Lembrei-me de certa vez em que fomos à festa de uma amiga de
Maia, e Lucas bebera tanto que ela o deixou dormir em sua casa,
pois ele não tinha forças para andar sozinho.
— Ei, acho que você deveria ir para a pista — disse.
— Eu vou. Só preciso esperar o Rafael chegar para tomar conta
do som.
— Tudo bem. Acho que vou sair um pouco, estou com dor de
cabeça.
— Ok, depois eu encontro você e Maia.
Afastei-me dele e entrei na confusão de corpos. Quantas
daquelas pessoas Maia realmente conhecia? E quantas delas eram
penetras? Para todos os lados em que olhava só conseguia
distinguir formas dançando. Não sabia dizer se a fumaça estava
muito forte ou se eu estava perdendo os sentidos novamente, mas
precisava de ar fresco antes que a sala se diluísse à minha frente.
Desci os longos metros que separavam a casa e o lago — uma
pequena faixa de pedras que cortava a grama — e sentei-me à
borda. A noite estava fria, mas não passei as mãos ao redor do
corpo a fim de me proteger. Gostava da sensação. De como o frio
e a noite pareciam acalmar meus pensamentos, torná-los mais
coerentes.
O lago era grande e fundo. E agora, iluminado pela lua, emitia
uma tênue luz prata que percorria todo o local até o começo da
floresta, onde era substituída por um preto denso. Ao longe, o
som das corujas se misturava ao do vento soprando as nuvens.
Fechei os olhos, respirando o ar puro que me cercava, bem
diferente da mistura tóxica que inundava a casa. Pensei ter ouvido
um peixe pular na água, mas isso seria impossível. A mãe de
Maia nunca a deixara ter peixes no lago, por mais que a filha
pedisse. E estava correta ao negar aquilo. Os bichos certamente
teriam morrido de fome.
Tomei mais um gole de minha bebida, constatando que a
mesma estava acabando. Tinha esperanças de buscar mais um
pouco, deitar na grama e me deixar levar pelo cansaço e pelo
álcool, mas estava com preguiça de subir todo o trajeto de volta e
enfrentar a aglomeração de pessoas somente por outro copo, de
modo que apenas fiquei em silêncio, observando a água parada à
minha frente, deixando que o vento brincasse com meu cabelo.
Estava prestes a fechar os olhos e deitar na grama quando um
barulho chamou minha atenção. Virei a cabeça rapidamente, bem
quando o garoto parou atrás de mim. Reconheci-o quase que de
imediato.
— Oi — disse ele.
Perguntei-me se havia me seguido, ou se aquilo era apenas
coincidência — apesar de não acreditar em tal coisa.
— Oi — respondi.
Como se eu houvesse estendido minha mão e oferecido meu
espaço à grama, ele sentou-se ao meu lado, esticando as pernas.
— Então, por que não está na festa? — perguntou, inclinando a
cabeça para me olhar.
— Estou fugindo de alguns pervertidos — encarei-o. — Mas
parece que não deu certo.
O rapaz deu de ombros, com um sorriso inocente, claramente
achando graça.
— Qual seu nome?
— Ariana.
Ele franziu os lábios, então disse o seu:
— Max.
Acenei com a cabeça, sem saber o que falar em seguida. A festa
parecia distante, como se o som e as luzes estivessem sendo
filtrados pela água. E rápido como chegara, meu momento
tranquilo foi embora. Max não parecia disposto a me deixar
sozinha tão cedo. Ele ajeitou as pernas e deitou de costas na
grama, levantando o olhar para mim em seguida.
— Sempre gostei de lugares afastados. Elas brilham mais longe
da cidade — comentou ele, apontando para o céu.
Não sabia ao certo o que Max queria, mas deitei ao seu lado na
grama, olhando para os pontos luminosos acima de nós, sem
conseguir lembrar-me da última vez em que o céu estivera tão
bonito. As estrelas pareciam estar em um número maior que o
habitual. Até mesmo seus brilhos pareciam mais intensos. Deixei-
me mergulhar naquele universo paralelo, como se o céu fosse um
oceano e eu pudesse pular de cabeça.
— Acho que construímos luzes demais e acabamos ofuscando
as que já existem — falei, lembrando-me de algo que havia lido
certa vez.
— É — concordou ele.
Ficamos um tempo deitados, olhando a noite em silêncio.
Depois de alguns minutos, já me sentia completamente sozinha. A
visita à casa de campo estava valendo pelo meu momento no lago,
ainda que eu não estivesse aproveitando a festa. Quando senti que
estava prestes a pegar no sono —o álcool começava a fazer efeito
—, sentei-me novamente.
— O que está fazendo aqui, afinal? — perguntei, fitando-o na
semiescuridão.
Max sentou-se.
— Vi esse lago e decidi descer para vê-lo de perto — ficou em
silêncio por um instante, então sorriu. — Na verdade, eu vi você.
Nossos olhares se cruzaram, e os seus brilharam com
intensidade. Eu já havia visto muitos rapazes bonitos, mas
nenhum era como ele. Max era diferente; a maneira como sorria e
falava, fazendo parecer que sabia de algo. Eu não queria cair em
pensamentos clichês, não gostava deles, mas realmente sentia que
havia algo de diferente nele. Não diferente como o fato de gostar
de se vestir de uma maneira excêntrica, ou de falar com um
sotaque com o qual não estamos acostumados. Diferente no
sentido real da palavra. Diferente.
— Ainda bem que não estou apenas de toalha — disse,
entrando em seu jogo.
— Eu não me importaria de buscar uma para você — ele riu.
Então se levantou, estendendo a mão para mim. — Quer dançar
comigo?
Eu ri.
— O que é isso? Alguma fala de um filme bobo onde estamos
em um baile? Prometeu aos meus pais que me levaria de volta
antes da meia noite? —brinquei, já estendendo a mão para pegar a
sua.
Quando me coloquei de pé, ele deu um meio sorriso, chegando
tão perto que poderíamos ter nos beijado.
— Receio que minhas intenções não sejam tão puras quanto
conduzi-la em uma dança —disse ele, ao pé de meu ouvido.
Mas antes que eu pudesse responder ao seu sutil comentário,
Max já estava me puxando de volta à festa. Sua mão guiava-me
em direção à casa, e em poucos segundos alcançamos a porta,
sendo tragados pelas luzes ofuscantes e cheiros indistintos. A
música era alta. Senti o aperto de sua mão na minha se dissipar
quando chegamos ao meio da pista. Seus braços tomaram lugar ao
meu redor, levando-me em sua direção. Ele sorria. Seus olhos
eram fixos nos meus, e eu tinha receio de que pudesse ver como
me sentia. Toda a insegurança, o medo. Nunca me sentira
totalmente confiante — e não me sentia agora.
Capítulo 2
Ariana
Eu estava sentada na beirada da cama de Maia, olhando para o
quarto vazio. Uma tigela gelada de morangos, que eu estava
absorta demais para comer, pendia em minha mão.Fazia algumas
horas que havíamos voltado, deixado Lucas em sua casa e
seguido para descansar. A primeira coisa que fiz ao entrar na
cidade foi ligar para meus pais, avisando que estava tudo bem e
que eu passaria o dia fora. Estava me sentindo melhor. Meu
estômago já não se embolava com qualquer cheiro. Entretanto,
engolir qualquer alimento ainda parecia um trabalho difícil,
principalmente depois de ter passado a noite toda vomitando —
não por causa da bebida, e sim pela maestria com a qual Maia
preparava lanches sem olhar a data de validade dos queijos.
— Eu entendo que os morangos vão esquentar, mas não
estragar — disse ela, diminuindo o passo para olhar para mim.
Fazia cerca de quinze minutos que sua inquieta figura andava de
um lado para o outro no meio do quarto. — Mas você devia
comer alguma coisa.
Olhei para a tigela em minha mão. Eu estava com fome. Não
havia comido nada desde a noite anterior. Ainda assim, meu
corpo se recusava a levar o garfo até a boca.
— Não estou com fome — menti.
Coloquei a tigela ainda intacta na mesinha perto da cama.
Forcei meu corpo a se levantar, e fui até Maia na janela. Seu
cabelo preto estava preso em um coque bagunçado, e o vento
brincava com sua franja.
— Sobre ontem — comecei, quando ela olhou para mim. —
Você falou a verdade?
— Sim — ela suspirou, como se já estivesse cansada de repetir
a mesma história. — Vi você no começo da festa, depois te
encontrei na cama. Não vi mais ninguém com você nesse meio
tempo, e não tenho ideia de quem seja esse garoto de quem fala.
Concordei, desapontada. Esperava que ao menos Maia pudesse
me dizer algo sobre Max. Quem era ele. Porém, tudo indicava que
minha mais recente companhia fazia parte dos penetras na
festa.Deitei na cama, encarando o teto. Maia deu um grito pela
terceira tentativa frustrada de falar com Lucas.
—O que tem de errado com ele que não responde minhas
mensagens? — berrou ela, ao mesmo tempo em que levantava da
janela e derrubava um vaso de flores.
— Talvez ele ainda não tenha levantado. Ele não dormiu,
lembra? Alguém precisou arrumar nossas coisas e você não estava
acordada.
Ela olhou para mim e piscou em concordância.
— Vou pegar uma vassoura para limpar isso — disse Maia,
apontando para a terra que agora estava espalhada pelo chão de
seu quarto.
Levantei-me da cama e fui até a tigela de morangos, engolindo-
os rapidamente. O gosto doce da fruta acendeu meu paladar e
desci para buscar mais. Maia voltou depois de um tempo, com a
vassoura na mão. Começou a varrer, mas o vento que entrava pela
janela espalhava a terra ainda mais, o que fez com que ela
desistisse de limpar a sujeira. Aquela terra ficaria onde estava
sabe-se lá por quanto tempo.
Seu celular tocou e ela abriu um sorriso. Antes mesmo de Lucas
poder dizer algo, Maia já disparava frases incompletas.
— Finalmente!
A risada dele ressoou no quarto.
— Vai com calma, tudo bem? Meu primo veio passar um
tempo aqui e fui buscá-lo no aeroporto — ela o colocou no viva
voz. — Não estava ignorando suas ligações.
— Ah, tudo bem. Eu só fiquei preocupada de tipo, você acordar
no meio da rua por estar bêbado e não ter me deixado te colocar
dentro da sua casa — ela fez uma pausa. — de preferência dentro
do seu quarto.
Para qualquer pessoa aquela frase poderia assumir outra
entonação. Não para aqueles dois. Era como se fossem irmãos, só
que com mais intimidade ainda.
— Eu estou bem, obrigado — disse ele. — O que acha de nós
quatro irmos tomar um café e aí vocês podem conhecer meu
primo?
Maia olhou para mim em busca de resposta, mas seu rosto
praticamente dizia sim. Concordei com a cabeça.
— Acho uma boa ideia, encontramos vocês lá.
— Ok. Tchau.
Entrei no café sentindo a lufada do ar condicionado gelar meu
coro cabeludo. O dia estava quente e a mudança repentina de
temperatura fez meu estômago revirar. Não demorou muito para
vermos Lucas sentado em uma mesa, com um garoto de pele
bronzeada ao seu lado.
— Ele é bonito — disse Maia, adiantando o passo em direção
aos dois.
Passamos pelas diversas pessoas que se espalhavam pelo local,
tomando seus expressos e cappuccinos. O sol traçava pequenos
pontos coloridos ao passar pelos vidros decorados, fazendo com
que a cafeteria parecesse brilhar naquele momento do dia. Era um
ótimo lugar para se tomar café da manhã.
— Vocês chegaram atrasadas — Lucas apontou para os copos
sobre a mesa. — Eles já estão aí faz uns cinco minutos —
completou, sorrindo. Então, se virou para seu primo.— Essas são
Ariana e Maia, as amigas das quais lhe falava.
O garoto olhou para nós, balançando a cabeça e dando um oi
pouco sonoro.
— E você é? — perguntou Maia, lançando um de seus sorrisos
sedutores.
— Giovane — respondeu ele.
Era realmente bonito. Possuía olhos azuis como os de Lucas,
mas era um pouco mais alto do que ele. Seu cabelo um pouco
mais curto que o do primo, e também mais escuro, porém, ainda
assim, loiro. Os braços torneados e a barriga definida se
destacavam na blusa que usava. Era o corpo de alguém que levava
os exercícios a sério.
— Vai passar quanto tempo aqui? — questionei-o.
— As férias inteiras.
— Isso quer dizer que ele vai passar o tempo todo com a gente
— enfatizou Lucas.
Giovane riu.
— Por favor, me digam que vão fazer algo. Não vim aqui para
passar as férias jogando com ele.
Lucas fez um som de deboche, levando seu copo à boca.
— Você adora jogar comigo. Admita.
Tomei um gole de meu café. O gosto amargo se misturou ao
doce do chantilly e isso me lembrou de todas as vezes que
tomamos café juntos: Maia, Lucas e eu. Gostava da ideia de uma
nova pessoa no time.
—Se é assim, por que você não fala o que podemos fazer?—
sugeri.
Giovane se endireitou na cadeira, como se aquela fosse uma
pergunta muito séria que exigia sua concentração.
— Vamos ver — ele pegou seu expresso e tomou um gole. —
Eu estou gostando disso, de tomar café com vocês. Podemos fazer
isso mais vezes. Também podemos passar um dia na piscina.
— O que vão fazer amanhã? — quis saber Lucas.
— Podemos ir — afirmou Maia, em meio a um gole.
Lucas fez uma careta.
— Eu nem chamei você ainda.
— Mas podemos ir.
— E se eu chamasse você para matar alguém? Quer dizer, você
não esperou eu terminar a frase.
— Lucas — Maia lançou um olhar repreensor sobre o amigo.
— Pare de ser infantil. Ari, vamos ali comigo pegar outro
cappuccino— disse ela, levantando-se da mesa.
Pulei da cadeira e por pouco não caí.
— O que querem? — perguntei, virando-me para Lucas e
Giovane.
— O mesmo.
Fui até o balcão junto a Maia. Ela fez os pedidos e em pouco
tempo eles estavam prontos. Ergui minha mão para pegar o meu e
o de Lucas, sentindo os copos quase queimarem as pontas de
meus dedos. Quando me virei para voltar à mesa, percebi uma
figura conhecida sentada a alguns metros de onde eu estava.
— Maia — chamei-a, os olhos focados no rapaz que tomava
café a algumas mesas de nós. — Consegue levar as bebidas
sozinha? Preciso falar com alguém — deixei os copos sobre o
balcão e avancei.— Oi — disse, parando à sua frente.
Ele levantou os olhos do celular, sorrindo ao me ver.
— Oi.
Continuei em pé, olhando para ele, incerta do que dizer. Por
que fui lá mesmo? Ele nem havia me visto.
— Não vai sentar? — ele riu.
Max parecia uma pessoa completamente diferente. Todo aquele
charme e atitude tinham se transformado em um jovem normal
tomando café da manhã em um moletom maior do que ele. Pensei
em todas as partes dele que eu não conhecia. Todos os eles que
existiam dentro dele.
— Achei que nunca mais fosse vê-lo — falei, me arrependendo
em seguida.
— Eu acho que você não viu — ele se inclinou para frente. Seu
cabelo escorregou pela testa e parou a poucos centímetros dos
olhos, que agora haviam retomado ao brilho do dia anterior. —
Mas coloquei meu número no seu celular.
Minhas mãos escorregaram para dentro do bolso e fiquei
tentada a olhar. Ele não parecia estar mentindo. Continuei
olhando para ele, a mão parada no bolso, sentindo a tela fria do
celular sob a ponta de meus dedos. Max ergueu as sobrancelhas e
percebi que não havia dito nada.
— Não. Eu não vi.
Ele sorriu.
— Posso dizer que fico feliz em ouvir isso. Pensei que não
quisesse mais me ver.
Ele ergueu o braço e por um segundo achei que fosse me tocar,
então sua mão deslizou para o copo em sua frente, os finos dedos
envolvendo o recipiente quente.
— Você me deixou do nada ontem — disse ele, e perguntei-me
se havia um tom de acusação em sua voz.
— Desculpe. Não estava me sentindo bem.
Max anuiu, girando o copo na mão.
— Imagino que não. Você ficou bem pálida antes de sair
correndo. Espero que esteja se sentindo melhor.
— Eu estou. Obrigada.
Ele tomou um gole de sua bebida. Alguns segundos se
passaram até que a conversa continuasse.
— Eu queria saber se... — começou ele, colocando o copo de
volta na mesa. — Se gostaria de sair comigo um dia desses.
Senti meu rosto esquentar. Aquele convite parecia tão formal
para o garoto que eu conhecera no dia anterior.
— Eu quero — respondi.
— Ótimo — ele sorriu. — Você me liga quando puder?
Concordei. Max olhou para o relógio no pulso, suspirando.
— Preciso ir — disse ele, levantando-se e se despedindo com
um beijo em minha bochecha.
Em poucos segundos,já havia atravessado toda a cafeteria e
estava saindo. Olhei para ele uma última vez antes de passar pela
porta. Seus olhos estavam sobre mim, e mesmo àquela distância,
seu sorriso causou uma onda estranha em meu estômago. Que
coincidência! Escolhêramos o mesmo lugar para tomar café, bem
quando eu me perguntava se conseguiria descobrir quem
exatamente era Max, e de onde surgira. Esse era mais um ponto
que adorava sobre as festas: as diferentes pessoas que encontrava.
No dia seguinte, geralmente saía à procura de informações sobre
meus amigos de uma noite. Pela tarde, já sabia mais sobre eles do
que suas próprias famílias.
Capítulo 3
Max
Saí do café sabendo que tinha conseguido. Ela ligaria para mim.
A certeza disso me deixava feliz. Não que houvesse duvidado em
algum momento de que tudo daria certo. Tinha que dar. Como
diziam os velhos, eu confiava em meu taco. Dentre todas as
minhas opções, a única que não me era possível seria discordar
quanto ao que tinha de fazer. Ainda mais ir contra as ordens. Se
houvessem me pedido para fazer isso em outra época, eu
provavelmente diria não. Meu senso de humanidade ainda estaria
ligado e controlaria minhas decisões. Porém, as coisas eram
diferentes agora. Talvez seja essa a razão para terem feito o que
fizeram. Sabiam que eu não poderia negar.
Cheguei em casa pouco tempo depois de ter saído do café. Fui
andando pela rua, olhando as pessoas ao meu redor e tentando me
lembrar da última vez em que havia falado com alguém vivo. A
última vez em que estivera em uma discussão. Tirei o moletom e
o coloquei no sofá, torcendo o nariz para o cheiro das garrafas de
cerveja no chão. Odiava aquele lugar. Odiava cada canto e cada
móvel. Mas era a única moradia que possuía, e não podia ignorar
o teto que me fora dado. Estava prestes a ir à cozinha quando ouvi
algo.
— Vocês estão indo longe demais — ressoou uma voz
conhecida vinda do quarto. Não precisava que Azriel dissesse
mais nada para saber que era ele.
Por um segundo, uma onda de esperança percorreu a sala. As
palavras do rapaz quando o conheci voltaram a ecoar em minha
mente, guiando-me em direção à luz, afastando-me da escuridão.
Então a risada áspera de Carlos invadiu o cômodo. Parei ao lado
da porta, a fim de escutar mais claramente o que estavam falando.
— Deixe de ser idiota, Azriel. Desde quando você se importa
com o que fazemos? — ralhou Carlos.
— Desde que vocês passem dos limites. Uma coisa é ela
assumir o papel que lhe cabe, outra é ser enganada como vocês
pretendem enganá-la. O que estão fazendo é errado. Ela vai se
apaixonar pelo garoto.
Pensei em entrar no quarto e defender Carlos, que fora minha
única companhia durante os longos meses que havia passado na
casa. Mas eu não podia fazer isso. Não contra Azriel.
— E então? Que seja. Ela nunca assumirá seu papel sem que
façamos isso. Ela é fraca. Além do mais, sem querer ofendê-lo,
qual seu interesse nisso? Você não tem nada com essa história.
Nunca teve. Não sei por que continua se intrometendo onde não é
chamado.
Carlos tinha ido longe demais. Eu sabia que se não entrasse no
quarto naquele momento, Azriel poderia livrar-se dele facilmente,
sem que ninguém desse conta ou se importasse. Por mais que eu
odiasse o bêbado com o qual vivia, sentia que devia algum tipo de
agradecimento a ele por sua companhia — ainda que não muito
bem-vinda.Passei a porta rapidamente, vendo os olhos de Azriel,
antes consumidos por raiva, se abrandarem para um tom neutro.
— Eu acho que — me esforçava para pensar em algo que não
fizesse ambos ficarem bravos comigo.— Azriel, você deveria ir
embora. Por mais que não aprove o que estamos fazendo, não tem
o direito de interferir. Não pode protegê-la, e sabe disso — ele se
endireitou. Sabia que eu estava certo. Se ele a protegesse, pagaria
por isso, ambos os mundos ficariam contra ele. E aquilo o
destruiria.
Ele suspirou.
— Tudo bem. Mas se você machucá-la, eu volto. Danem-se as
regras — disse Azriel, e fiquei imaginando como era estranho
ouvir aquele tipo de palavra vindo de sua boca, considerando seu
lugar de origem.
Carlos riu, fazendo um som falho e catarrento tomar conta do
quarto.
— Vocês anjos — disse ele. — Sempre tomando conta das
pessoas.
Azriel olhou para mim e fui tomado por flashbacks. Sem
perceber, me vi concordando mentalmente com Carlos. Sim. Eles
estão sempre cuidando das pessoas. O anjo acenou com a cabeça
em minha direção, e eu sabia o que significava. Ele se preocupava
comigo. Ainda não havia desistido. Mas isso não importava. Eu
não precisava mais dele.
Azriel abriu as asas, fazendo uma corrente de ar derrubar Carlos
e eu. Então, passou pela janela, a luz do sol em volta de sua
silhueta. Antes que meu colega pudesse dizer qualquer coisa —
algo entre obrigado e eu quero que aquele anjo se foda —, saí do
quarto. Não estava no clima para aturar suas reclamações. Eu
tinha uma missão. Carlos era apenas um boçal que fazia parte de
um exército. Meu papel era muito maior, e não incluía cuidar
dele.
De qualquer maneira, concordava com o homem. Ele não
estava brincando ao dizer que Azriel sempre se metia onde não
era chamado. Apesar de ter me ajudado um dia, isso não queria
dizer que podia controlar meus atos, quanto mais minhas
escolhas. Desta vez, querendo ou não, o anjo teria de se manter
fora da história.
Capítulo 4
Ariana
Maia corria em círculos em volta da piscina, enquanto Lucas a
perseguia. Pareciam ter saído de um desenho aonde um gato
persegue um rato ou um passarinho. O biquíni verde dela
começou a cair, e Maia se jogou dentro da água para fugir das
mãos do amigo, enquanto tentava levantá-lo. Acima de nós, o sol
atingiria seu ponto mais alto em poucos minutos. Era,
provavelmente, o dia mais quente da semana. Eu passava a mão
na grama bem cuidada do quintal de Lucas, balançando as pernas
dentro da água gelada. Os pelinhos de minhas coxas se
arrepiavam, vez ou outra, entre os movimentos.
— Vocês parecem bem unidos — disse Giovane. Ele estava
sentado ao meu lado, usando um shorts e óculos escuros. O
cabelo molhado brilhava, refletindo como ouro sob a luz do sol.
Eu ri, olhando para as duas figuras que agora se debatiam
dentro da água.
— Você mora aqui mesmo ou é de outra cidade? É um dos
poucos primos de Lucas que eu ainda não havia conhecido.
— Eu moro perto daqui. É que Lucas e eu tivemos nossos
desentendimentos. Voltamos a conversar faz pouco tempo.
Depois de quatro anos, eu acho — declarou Giovane, olhando
para o primo. Perguntei-me o que teria sido tão grave que fizera
os dois se evitarem por tanto tempo. Lucas nunca havia nem
mesmo mencionado Giovane. Era quase como se o garoto
houvesse surgido do nada.— E vocês? São amigos desde quando?
— Sete anos, se não me engano. Nos conhecemos na escola e
desde então somos quase que inseparáveis.
Ele assentiu.
— É bom ter amigos assim, em quem se pode confiar. Acho
que a invejo um pouco nesse sentido. Meus amigos sempre estão
indo e vindo, mas nunca ficam.
Tentei pensar naquilo. Parecia uma forma solitária de se viver,
ainda que não se estivesse sozinho. Sempre acreditei que para
aproveitarmos a vida ao máximo precisávamos dividir nossas
alegrias. E com quem mais o faríamos senão com aqueles com
quem possuímos um vínculo?
— Talvez você tenha acabado de conhecer os que ficarão —
falei, fazendo um pequeno sorriso surgir em seus lábios.
— Mas então — disse ele. — O que você gosta de fazer?
— Ler, ouvir música. Sou viciada em séries. Nada muito
interessante. E você?
— Pode não parecer, já que estou sentado aqui ao contrário de
estar dentro da piscina, mas uma das minhas atividades preferidas
é a natação. Já participei de vários campeonatos e coisas do tipo.
Tenho várias medalhas guardadas.
Levantei-me e tirei a canga da cintura. O pano caiu no chão e o
empurrei para longe com a ponta do pé. Não tinha certeza se era
uma boa ideia. Contudo, ficar ali com o sol queimando minha
pele também não era uma opção.
— Ganha de mim? — perguntei, arqueando as sobrancelhas em
uma moldura de desafio.
Giovane franziu a testa e deu um sorriso do tipo: você
realmente está me perguntando isso? Ignorei sua expressão e
continuei em pé, ao lado da piscina. O sol queimava minhas
costas e eu estava esperando que ele aceitasse o desafio antes que
eu derretesse. Por fim, ele riu, se levantou e mergulhou de ponta
dentro da água. Pulei desajeitadamente atrás dele, nadando até
encontrar a parede da qual sairíamos.
— No três?
— No três.
— Um, dois, três.
Começamos a nadar, ambos fazendo um nado crawl. Giovane
movimentava os braços com destreza e eu tentava acompanhar
seu ritmo — o que era difícil. Mesmo não gostando do esporte,
havia feito aulas de natação durante grande parte da minha
infância, o que compensava minha falta de agilidade, mas não a
total humilhação diante do rapaz. A água parecia ficar dez vezes
mais densa à medida que eu colocava um braço depois do outro.
Segundos depois, ele havia alcançado a outra margem e virado.
Fiz o mesmo com algum tempo de diferença. Tentei nadar mais
rápido, mas já era. Ele havia chegado ao outro lado novamente.
Apoiei na borda e encostei a cabeça no ladrilho, cuspindo a água
que engolira durante o caminho. Minha respiração estava
acelerada.
— Não foi tão feio assim — disse ele.
— Tem razão — concordei. — Mas agora preciso achar algo
em que sou melhor do que você.
— Ei — Maia surgiu acima de nós, enrolada em uma toalha
felpuda. — Vamos comer alguma coisa? Já deve estar na hora do
almoço e estou faminta. Venham. Vamos conversar um pouco —
ela estendeu a mão para me ajudar a sair da piscina.— Eu também
não teria ganhado. Se isso serve de consolo.
Sempre gostara da casa de Lucas, e existiam dois motivos para
isso.O primeiro era o fato de a casa estar localizada longe do
centro, o que lhe conferia um silêncio incomparável. Dificilmente
se ouvia barulho de carros ou conversas, e eu achava aquilo
maravilhoso. Em segundo lugar: os pais de Lucas sempre
viajavam, e isso significava a casa só para ele — não que
fôssemos dar uma festa ou algo do tipo sem o consentimento de
ambos. Era simplesmente o sentimento de liberdade que se tinha
dentro da casa, que fazia tudo parecer mais tranquilo, calmo e
distante.
—Podemos ir ao cinema amanhã. O que acham? — Maia
recolheu nossos pratos e os colocou na pia.
Lucas levantou da bancada onde estávamos sentados e foi até a
geladeira, pegando uma garrafa de refrigerante e colocando-a
sobre a mesa.
— É. Eu acho uma boa ideia —comentou, servindo um copo.
— Não quero ficar em casa —puxei a garrafa para mim. —
Onde decidirem ir, eu vou. Tem algum filme legal passando?
— Acho que uns dois, talvez. Podemos confirmar depois.
Lucas acabou seu copo e levantou rapidamente. Não parecia
satisfeito. Ergueu sua mão até alcançar uma das taças em cima da
prateleira e então abriu o freezer, tirando um pote de sorvete de
dentro. Sentou-se novamente, com a taça cheia.
— Vou ao banheiro —avisei, saltando da banqueta.
Teresa — mãe de Lucas — matinha a casa sempre arrumada e
cheirosa, não importando se estava nela ou de viagem, e Lucas e
seu irmão cuidavam para mantê-la assim. As cortinas estavam
sempre abertas, assim como a janela, para que os cômodos
permanecessem secos e arejados. As comidas não estragavam na
geladeira, já que compravam apenas o suficiente para uma
semana. As roupas eram lavadas dia sim e dia não, e ambos
conseguiam dividir as tarefas de maneira que a casa era mais bem
cuidada do que se houvessem contratado alguém para fazer
aquilo.
Abri a porta do banheiro, sentindo instantaneamente o cheiro do
sabão de laranja com que limpavam o chão. Quem não soubesse a
verdade pensaria que era uma mulher excêntrica quem arrumava
os sabonetes, pastas e escovas acima da pia, ou quem dobrava
perfeitamente as toalhas que pendiam nos ganchos.
Aproximei-me do espelho, focando a criatura de pele pálida e
cabelos castanhos que me encarava de volta. Analisando meu
rosto, procurei por pontos vermelhos, espinhas ou qualquer outra
coisa indesejada. Encontrei somente as manchas roxas abaixo de
meus olhos. Parecia mais cansada do que me sentia. Passei a mão
no rosto gelado.
— Ariana...
Minha respiração falhou. Parei de esfregar os olhos, porém,
mantive as mãos no rosto. Não me mexi. Sentia que se me
mexesse seria notada. Notada por quem?, pensei. Não há
ninguém aqui além de você, Ariana. Mas alguma voz sussurrava
que isso não era verdade. Eu havia, de fato, ouvido algo.
Abaixei os braços lentamente, tornando a olhar para meu
reflexo, sentindo um medo repentino. Poderia ter sido apenas
minha imaginação? Provavelmente era minha imaginação.
Continuei encarando minha imagem, temendo levar os olhos ao
redor. Que bobagem. Não há ninguém aqui. Ainda assim, senti
um frio percorrer minha espinha ao checar se havia alguém atrás
de mim no reflexo do espelho. Ninguém.
— O que está fazendo? — a voz soou novamente, e os pelos de
minha nuca se eriçaram. Aquilo não era minha imaginação.
Era como se, de repente, uma onda de vento atingisse o
banheiro e ressoasse em meus ouvidos. O farfalhar de uma
floresta ecoando dentro de mim. A voz era de mulher, disso tinha
certeza. Fiquei esperando ouvir algo mais. Entretanto, o silêncio
dominava o lugar. Todo o meu corpo parecia paralisado pelo
medo. Tentava me convencer de que aquilo estava apenas em
minha cabeça, que o sol estava forte demais.
Lentamente, afastei-me do espelho, o coração dando pulos no
peito. Ainda com movimentos vagarosos, levei minha mão até a
maçaneta, girando-a levemente e ouvindo o clique denunciar que
a porta se encontrava aberta. Por pouco não soltei um suspiro de
alívio.
— Por que está fugindo? — a voz pareceu assustadoramente
perto de mim.
Dei um grito, abrindo a porta com força e me lançando no
espaço à minha frente. Choquei-me contra a parede, a respiração
acelerada, as pupilas dilatadas. Eu ouvi aquilo. Eu ouvi... Podia
escutar os passos se aproximando. Só conseguia pensar na
proximidade daquela voz. O que está acontecendo?O que era
aquilo? Quem...
— Ariana — Maia abaixou-se ao meu lado, passando a mão por
meu rosto. Seus olhos estavam arregalados e ela me estudava com
cautela. — O que aconteceu? Você gritou. Está tudo bem?
Os três me olhavam preocupados, e eu não tinha certeza do que
falar. Minha cabeça doía. Por mais que Maia e Lucas soubessem
sobre meus pesadelos, isso era diferente, e não podia contar para
eles. A última coisa de que precisava era que pensassem que eu
estava louca.
— Pensei ter visto uma barata — disse, odiando o fato de
parecer infantil.
Levantei-me do chão, olhando para a porta do banheiro. Eu não
iria entrar ali por um bom tempo. Ainda podia sentir a vibração
que passara por meu corpo no último segundo, a estranha
sensação que percorreu minhas veias.
Lucas foi até a porta.
— Não estou vendo nada. Se havia uma barata, já foi embora.
Respirei fundo.
— Será que alguém pode me levar para casa? — o que mais
queria naquele momento era me distanciar daquele lugar.
— Por quê? — perguntou Maia.
—Não estou me sentindo muito bem.
— Eu levo você — afirmou Giovane, antes que Maia pudesse
dizer qualquer coisa.
Lucas foi até a mesa de centro da sala, pegou uma chave e a
jogou para o primo.
— Vá com meu carro.
Conversei um pouco com Giovane durante o caminho, apesar
de ter passado a maior parte olhando para fora. Ele provavelmente
notou minha ansiedade, e respeitou meu silêncio. Durante todo o
trajeto eu estava nervosa, esfregava as mãos uma na outra com
tanta força que chegava a doer. Antes que percebesse, o carro
parou na frente de casa. Meus dedos se pressionaram uma última
vez e soltei a respiração. Era começo de tarde. Meus pais não
estariam.
— Ei — chamei-o, olhando para dentro do carro, após ter
descido. — Você pode esperar tipo, meia hora comigo? —
perguntei, desejando não ter que passar aquele tempo sozinha.
Sentamo-nos no jardim da frente e conversamos, enquanto a
tarde ia embora e a noite chegava. Podíamos ver as luzes das
casas se acendendo, o número de pessoas na rua diminuindo.
Maia ligou uma vez para saber por que Giovane demorava, e pude
ouvir algo mais em sua voz, apesar de não conseguir identificar o
que era. Mais ou menos uma hora depois, minha mãe chegou do
trabalho. Giovane a cumprimentou e se despediu de mim. Eu
agradeci, e ele falou que não fora nada.
Capítulo 5
Max
Os dois dias seguintes passaram rapidamente. O sol nascia,
inundava parte da casa com seu calor, enquanto a outra padecia
sob o frio junto ao mofo. E então se punha, levando todas as
esperanças de um dia bom junto a ele para abaixo do horizonte
outra vez. O mundo parecia distante e nada saciava minha
vontade de viver. O tédio de um dia gasto em preto. O cansaço de
meses gastos em branco. Tudo se fundia em meu peito,
pressionava, pulava, gritava.
Estava ficando impaciente de esperar por uma ligação de
Ariana. Ela parecia ter se esquecido completamente de nosso
encontro no café, onde prometera me ligar.Eu precisava agir e,
ainda assim, estava sentado no sofá, com o mesmo moletom de
quando a vira, uma caixa de bombons vazia jogada aos meus pés
e os farelos em minha roupa. Nesse momento, tinha certeza de
que eu não era a definição de charme.
Comecei a pensar que Azriel poderia ter falado com ela,
contado a verdade. Algo poderia ter dado errado sem que eu ao
menos soubesse. Não permitiria que isso acontecesse. Precisava
tomar providências.
—Carlos, acho que vou ligar para ela — gritei para que ele me
ouvisse da cozinha.
Alguns segundos depois Carlos apareceu na porta, segurando
um prato em uma das mãos e um lanche de aparência duvidosa na
outra.
— Ela passou o celular para você? — perguntou com a boca
cheia. Um pedaço de alface pendeu do lado direito de seus lábios.
— Não — respondi.
— Então, idiota. Você não pode simplesmente falar que tem o
número dela sem que ela sequer tenha lhe passado.
Carlos era um homem cansado da vida — literalmente —, por
volta dos trinta e sete anos de idade. Possuía um corpo bem
estruturado — razão pela qual fora designado para a missão
comigo. Mas, acima de tudo, tinha o cérebro do tamanho de uma
ervilha. Era um milagre conseguirmos dialogar.
— Tem algo de errado. Ela ainda não me ligou.
Ele riu.
— Não tem nada de errado. Talvez você não seja tão charmoso
quanto pensa.
— Cale a boca — disse, enquanto voltava a deitar no sofá. Não
ficaria em pé ouvindo sermão de um quarentão que não conseguia
pegar ninguém.
— Ela tem que te procurar dessa vez. Você já fez muito a
seguindo até o café logo no dia seguinte em que se conheceram
— ele se sentou no outro sofá, analisando seu lanche. — Eu
entendo o que quer dizer, mas você não pode começar a aparecer
em todos os lugares para ela. Isso seria estranho.
Apesar de tudo, ele estava certo. Ficaria muito evidente se eu a
procurasse novamente. Porém, mais uma vez, perguntei-me por
que estávamos planejando tudo com tanta delicadeza, se aquilo
que realmente me fora ordenado eram simples palavras que não
exigiam qualquer tipo de preparação para serem ditas. Poderia
simplesmente bater em sua porta e despejar a verdade. Pensava
nisso como uma boa solução. Se algo desse errado, lidaríamos
com o imprevisto e o superaríamos. Mas antes, precisávamos dar
o primeiro passo. Precisávamos contar a ela.
Capítulo 6
Ariana
Minha nuca estava gelada. Passei a mão entre os lençóis,
sentindo-os úmidos devido ao meu suor. O quarto parecia frio e
deserto. Apenas uma fina faixa de luz proveniente da rua
ultrapassava a fresta da janela.Era a primeira vez que não me
lembrava de um sonho. Não era comum, mas às vezes acontecia
de não me lembrar de partes de um sonho, e isso era uma forma
de alívio para mim, não me torturar com todas aquelas faces que
diziam saber meu nome. Mas ao contrário de me fazer bem, não
lembrar meu sonho estava me deixando aterrorizada, como se
algo importante me escapasse por entre os dedos.
Levantei cambaleante da cama e fui em direção à cozinha. A
casa se encontrava imersa em completa escuridão. Os únicos
pontos de luz visíveis eram as luzes dos aparelhos, indicando que
a televisão e a geladeira estavam ligadas. Em meio ao silêncio,
podia ouvir minha pulsação em meus ouvidos, acelerada.
— Ai — murmurei quando bati na porta.
Pela janela, a lua já desaparecia do céu, dando lugar a um novo
dia. Tudo parecia tão calmo comparado a mim que chegava a ser
irônico. Bebi água, coloquei o copo na pia, e subi de volta. O
chão frio me despertava e eu sabia que não conseguiria dormir
mais. Deitei na cama, olhando para o escuro, tentando me lembrar
com o que havia sonhado. Aquilo era pior do que ter as palavras
de sempre me perseguindo.
Em algum momento, meus pensamentos se voltaram para Max.
Eu havia me esquecido completamente dele. Quantos dias tinham
se passado? Dois? Três? Pensei em mandar uma mensagem,
marcar de nos encontrarmos. Estiquei minha mão até a mesa e
peguei meu celular. A luz branca me cegou por alguns minutos.
Quando consegui enxergar novamente, fui até a agenda. Meu
dedo deslizava pela tela a fim de encontrar o único número que
me importava naquele momento.
E lá estava ele. Max Foster. Percebi que até então não sabia seu
sobrenome. Foster. Tal palavra me lembrava de algum desenho
de minha infância.Olhei para as horas. Três da manhã. Coloquei o
celular em cima da mesa e me virei para o outro lado. Mandaria
uma mensagem para ele quando acordasse novamente.
Pouco a pouco, o sono voltou, se embrenhando em meio aos
meus pensamentos, os consumindo lentamente. Com o passar das
horas, o calor foi retornando ao quarto, os carros voltaram a
zumbir na rua. A casa criou vida novamente no momento em que
ouvi a porta do quarto de meus pais se abrir, anunciando o
começo de um novo dia. Minha mãe passou para me dar bom dia,
beijando-me a testa e pedindo para que tivesse cuidado ao utilizar
o fogão — algo que ainda repetia todos os dias mesmo depois de
dezesseis anos. Eu estava aconchegada demais para me levantar
naquele momento, de modo que apenas saí da cama duas horas
depois, quando a campainha começou a tocar insistentemente.
O primeiro barulho fez com que um gemido de preguiça
escapasse de meus lábios; o segundo, não muito depois, fez com
que eu suspirasse, colocando os pés para fora da cama. E então
veio o terceiro, quarto, quinto... O barulho simplesmente não
parava. Não era um curto toque, e então a espera pela porta ser
aberta. Era como se alguém precisasse desesperadamente que eu a
abrisse.
Desci mais depressa do que esperava, tropeçando no último
degrau e quase caindo no chão. Aquele barulho infernal continuou
até eu girar a maçaneta, xingando mentalmente o infeliz que
estava a fazer tal coisa.
— Meu Deus. Um pouco de paciência seria útil para
acrescentar às suas virtudes — gritei, escancarando a porta. —
Max?! — fiquei sem fala ao me deparar com aqueles olhos
castanhos. Ele estava parado à minha frente, o cabelo preto
brilhando sob a luz do sol. Minha cabeça rodava com perguntas,
mas uma parecia se sobressair as outras. — Como sabe onde eu
moro?
Ele não respondeu. Sua expressão era pesarosa, como se
trouxesse notícias de um morto. Meu estômago se revirou.
— Por que estava tocando a campainha como um louco?
Ainda nenhuma resposta.
— Max...
— Por favor, não feche a porta em minha cara — sua voz soou
como uma súplica.
Não sabia ao certo o que estava acontecendo. Max parecia
terrivelmente absorto em algum tipo de tristeza, mas eu não tinha
ideia de como aquilo poderia ter ligação comigo. Por que ele
estava na porta de minha casa? Aliás, como ele sabia onde era
minha casa?
— Eu não vou — respondi.
Ele continuou em silêncio. O ar pareceu tremular ao nosso
redor.
— Preciso falar com você.
— Tudo bem.
— Preciso que me deixe entrar.
— Não.
— Não?
— Não.
— Por quê?
— Está de brincadeira? Você acabou de tocar a campainha de
minha casa. Eu nunca te dei meu endereço.
— Eu achei na lista telefônica.
— Bem, isso seria um feito e tanto, considerando o fato de que
nunca passei meu celular, quanto mais o telefone de casa.
— Olhe para mim — disse ele, levantando as mãos. — Tenho
cara de louco? Estou lhe dizendo, deixe-me entrar e posso
explicar tudo isso. Tudo isso e muito mais, Ariana.
Max entrou no cômodo e sentou na cama. Puxei meu pufe preto
e sentei em sua frente, olhando-o como um guarda que vigia um
suspeito. Estava tentando entender por que razão havia o deixado
entrar tão facilmente. Eu não era assim. Talvez fosse sua
expressão, ou a maneira preocupada com que se pronunciara. A
questão é que ele parecia realmente possuir algo importante para
me dizer — ou algo que julgava importante. De qualquer maneira,
acabei deixando-o entrar.
Não parecia charmoso. Nem estava daquele modo conquistador.
Aparentava, na verdade, cansaço. Max estudou o quarto por um
tempo, e fiquei com um pouco de vergonha das coisas jogadas no
chão, mas ele não pareceu se importar com aquilo. Voltou-se para
mim, olhando-me com algo que eu pensava ser pena.
— Você deve estar confusa — disse ele.
— Sim, estou confusa. O mais confusa que poderia estar nesta
situação.
— Vamos acabar logo com isso então — sua voz soava baixa,
fazendo o quarto parecer pequeno.— Eu procurei você por que
tinha que te contar isso. Não podia esperar por sua ligação nem
mais um dia.
Cruzei as pernas, como se de algum modo isso fosse mudar o
fato de estar sendo possuída por um sentimento estranho. Medo,
talvez? Eu não tinha muita certeza. Havia visto Max três vezes,
contando agora, e não tinha ideia do tipo de coisa que ele poderia
querer me contar.
— Não existe uma maneira correta de se contar isso, muito
menos fácil. O que posso fazer é praticar aquela velha história do
band-aid, sabe? Dizer tudo rapidamente, para que doa menos.
— Por céus, Max. Você está me deixando nervosa. Conte logo
o que quer que... — mas não pude terminar a frase, pois o rapaz
pareceu receber a coragem que precisava para proferir as palavras
que estavam entaladas em sua garganta. Palavras essas que
fizeram meu coração parar de bater por um milésimo de segundo.
— Seus sonhos são reais — disse ele, olhando-me com
cuidado. — As pessoas que você vê todas as noites, e que
conversam com você. Elas existem.
Meu corpo parecia feito de pedra. Um pequeno zunido se
instalou em meu ouvido.
— Não sei do que está falando — menti.
Ele soltou o ar.
— Sim, você sabe. Não tente bancar a desentendida para cima
de mim. Você sabe exatamente do que estou falando.
Não respondi.
— Eu posso te ajudar, Ariana — disse Max.
Franzi a testa, soltando um barulho que imaginei ser uma
risada.
— Isso é algum tipo de brincadeira? — perguntei, apertando os
lados da almofada que segurava. — Lucas e Maia mandaram você
aqui? Por que se foi isso, sugiro que vá embora antes que eu o
expulse.
Ele balançou a cabeça.
— Ninguém me mandou aqui.
— Então o que diabos estava fazendo na porta de minha casa?
— gritei, sentindo meus olhos arderem.
— Ariana, desculpe-me. Eu sei o quanto isso parece estranho
para você. Mas precisa me dar uma chance. Só peço que me ouça.
Estou aqui por que você não pertence a este mundo. Ao menos,
não completamente. Uma parte de você, e uma grande, pertence a
outro lugar. Um lugar para o qual precisa ser apresentada. Sei
sobre seus sonhos por que vim de lá, não por que alguém me
contou.
Alguns minutos se passaram enquanto eu assimilava suas
frases, palavra por palavra, tentando encontrar o significado
contido nelas.
— O que quer dizer com “você não pertence a esse mundo”?
Max suspirou, relaxando ao ouvir algo que parecia
condescendência em meu tom de voz.
— Quero dizer que não pertence apenas a este mundo, com o
qual está habituada. Quero dizer que, apesar de ser humana, existe
algo em você que ultrapassa os limites do que é considerado
normal, ou mesmo aceitável, em diversos sentidos, para seu povo.
Continuava sem entender nada. É claro que eu era humana —
até por que não acreditava poder ser qualquer coisa além disso.
As palavras de Max eram, senão estranhas, completamente
descabidas. Contudo, uma pequena voz gritava dentro de mim,
dizendo para que ouvisse o garoto, para que não o mandasse
embora sem ter escutado algumas de suas palavras. Com os
pensamentos conflitantes, segui a regra que usava na maioria das
coisas: melhor se arrepender de algo que fez do que de algo que
não fez.
— Se sou apenas metade humana, sou outra metade o quê? —
questionei-o.
— Você é metade do mundo sobrenatural. Resumindo, você
tem a sua própria espécie, com descendência natural e não
natural. E isso faz de você uma balança entre esses dois mundos.
Porém, seu trabalho é apenas para com os da sua espécie original.
Os humanos — ele fez uma pausa, detendo-se ao iniciar a frase
seguinte. — Você é uma Invocadora, Ariana, e todas aquelas
pessoas estão mortas.
Capítulo 7
Ariana
Reprimi um riso e continuei olhando para Max, esperando que
ele risse, mas sua expressão continuava séria.
E lá estava ele, o jovem à minha frente, dizendo saber sobre
meus sonhos, algo que ninguém além de Maia ou Lucas jamais
soubera. Olhei ao redor do quarto, esperando ver formas
flutuantes e o início do apocalipse, mas tudo continuava em seu
lugar. Max havia me dito que eu conversava com pessoas mortas,
e tudo continuava normal. Ele havia me dito que eu era apenas
metade humana, e o mundo parecia continuar o mesmo.
— Max, isso é loucura — minha voz estava trêmula. Podia
sentir uma sensação gélida dançar por entre os músculos de meu
corpo, que a essa altura haviam passado de rocha para água.
— Por favor, Ariana, acredite em mim — seu tom de voz era
mais suave. — Eu preciso que você acredite em mim.
Tudo aquilo soava como uma grande brincadeira. Como uma
história dentro de um livro. Em muitos lugares pessoas podiam
voar, ter presas para beber o sangue de humanos ou serem anjos
caídos. Mas nenhum desses lugares incluía a realidade. Eu queria
bater nele por estar fazendo com que meus pesadelos tivessem um
significado ainda pior. Mas algo estava errado. Max não parecia o
tipo de pessoa que faria algo do tipo. E ele parecia preocupado.
Realmente preocupado. Por outro lado, eu não o conhecia. Não
tinha ideia do que poderia fazer.
— Continue — pedi, imaginando que, talvez, se o deixasse
continuar, algo viria a fazer sentido.
Ele me fitou por alguns segundos antes de voltar a falar, como
se não tivesse completa certeza sobre minha crença em suas
palavras — algo sobre o qual estava certo em duvidar.
— Seu dever é garantir que as almas cheguem aos seus
destinos, que encontrem sua morada final. Aquilo que muitos
chamam de “paraíso”. Elas vêm até você quando estão perdidas, e
você vai até elas quando não sabem que morreram. Essa é a razão
para os sonhos. É seu meio de contato com as almas atormentadas
pela desgraça da ignorância sobre o próprio final. É como se você
deixasse seu corpo por algumas horas e as visitasse, onde quer
que estejam.
Lembrei-me de que em todos os pesadelos algo se repetia:
sempre me pediam ajuda. Sempre choravam, alegando não
saberem o que estava acontecendo. E tudo que eu conseguia
pensar era e como eu saberia? Nunca havia contado isso a
ninguém. Não tinha como Max saber.... a menos que fosse
verdade. Esse simples pensamento fez minha cabeça doer.
— Como você sabe de tudo isso? — perguntei. Uma dor aguda
atravessou meu peito. Medo. Agora eu tinha certeza.
Ele ergueu um lado da boca, esboçando um sorriso e dando de
ombros.
— Como lhe disse antes, sei disso por que vim de lá. Por que eu
também estou morto.
Ele desviou o olhar. Senti uma náusea momentânea e me
segurei para não vomitar. Ele estava brincando? Se estivesse, eu
faria questão de matá-lo.
— Max...
Ele meneou a cabeça.
— É por isso que eu tinha que contar logo. Você não pode se
aproximar de mim. Até agora a sua atração é física, e eu não
posso deixar que passe disso.
— Isso é ridículo — falei, levantando a mão para agarrar seu
braço.
Eu havia dançado com ele na festa. Eu o havia cumprimentado
no café. Se pelo menos metade do que ele estava falando era
verdade, então como eu podia senti-lo? Ele não deveria ser algo
como... uma névoa? Um holograma que se dispersava quando
tocado?
— Ariana — disse ele, no momento em que ergui minha mão
em sua direção. Ele continuou parado, me olhando, sua expressão
numa eterna incógnita. No último segundo, quando minha mão
estava prestes a encontrar seu braço, vi em seu rosto o que iria
acontecer. Mas era tarde demais. Meus dedos passaram direto por
seu corpo, sem qualquer impedimento ou sensação ao fazê-lo.
Afastei-me rapidamente, puxando a mão de volta com força. Ele
suspirou. — Agora que sabe a verdade, não pode mais me tocar.
Voltei a sentar no pufe, mantendo certa distância dele. Eu vi
meu corpo passar pelo seu, pensei. Minha mão estava ali, e
passou direto. Tentei imaginar todas as explicações lógicas para o
acontecimento, mas não havia nenhuma. Aquilo ia contra tudo
que acreditava. Contra tudo que jurava concreto. Todos os rostos,
de todos os pesadelos que já tivera na vida voltaram, um a um,
para me assombrar. Ajude-me. Ajude-me. Ajude-me. Minha
cabeça latejava e eu podia sentir o sangue pulsando em minhas
têmporas. Fechei os olhos com força. O que está acontecendo?
Minhas mãos tremiam.
— Ainda existem muitas coisas que você não sabe, e eu vou te
contar, mas não agora. Por enquanto, só saiba que eu estarei por
perto se você precisar — disse ele, sua voz em um tom normal,
mas um tanto cautelosa.
Concordei com a cabeça, os olhos ainda fechados. Queria puxá-
lo para mim, em busca de algum conforto para suportar aquilo.
Ao mesmo tempo, queria empurrá-lo para o mais longe possível,
como se pudesse apagar suas palavras ao fazer isso. Por alguma
razão, acreditava nele. Talvez pela veracidade que sentia em meus
sonhos, ou por ter acabado de presenciar algo inexplicável. Suas
palavras ecoavam por mim como os sons em uma caverna,
reverberando e voltando mais densos e carregados, seu tom grave
arranhando as paredes — minhas costelas.
Como aquilo poderia ser verdade? Como qualquer coisa do que
ele dissera poderia ser verdade? Aquilo fugia completamente do
possível e existente. E, ainda assim, via-me mais acreditando do
que desacreditando em suas palavras. Durante as horas que se
seguiram, não fiz nada que não fosse pensar no que ele havia dito.
Eu sabia muito pouco, ele parecia saber demais. Sentia-me como
uma pequena criança a quem o mundo estava sendo introduzido.
Era como se, de repente, eu não soubesse mais andar ou falar,
como se precisasse aprender a fazer tudo novamente, de uma
maneira completamente diferente da anterior.
Mas não era ao mundo exterior que eu estava sendo
apresentada.
Era àquele preso dentro de mim.
Capítulo 8
Max
Fui para meu quarto, sem me preocupar em fechar a porta —
isso apenas o estressaria mais caso tentasse falar comigo. Mas o
que ainda havia a ser dito? Nada. Essa era a verdade. O que estava
feito, estava feito, e nada poderia mudar isso. O problema era que
Carlos não aceitava a situação. O idiota pensava que sabia mais
do que eu, que podia mudar o rumo disso ou daquilo quando, na
verdade, não podia fazer muito mais do que oferecer algumas
palavras de consolo.Não foram necessários mais que dois minutos
para o homem começar a rondar a porta de meu quarto, virando
garrafas e mais garrafas de cerveja, xingando baixinho. Fechei os
olhos, ignorando os murmúrios que vinham do corredor.
Tinha certeza de que Ariana sentia-se enlouquecendo naquele
momento, exatamente como eu havia me sentido quando entrara
nesse mundo, quando me contaram a verdade. Era como se
fossemos jogados dentro de outro universo, passando a olhar para
tudo com outros olhos. Mas aquilo durou pouco. O que não
faltavam eram razões para acreditar. Ela só precisava perceber
isso.
Mesmo com meu peito dominado pela certeza de que estava
conseguindo, algo ainda parecia não se encaixar. Talvez o
problema fosse eu. Eu não me encaixava na droga de plano.
Meu nariz ardeu quando Carlos passou pela porta e meu quarto
se inundou com o cheiro de álcool.
— Que merda, Carlos. Vá tomar um banho — gritei para o
zumbi que andava em círculos pelo corredor. Ouvi uma porta
bater e imaginei que ele havia seguido meu conselho.
Levantei-me da cama, pensando em aproveitar o tempo que
teria sozinho para comer algo e assistir um pouco de televisão.
Estava me sentindo pesado. Desejava uma boa noite de sono mais
do que qualquer coisa. Estava saindo do quarto quando senti uma
mão em meu ombro. Preparei-me para virar e levar eu mesmo
Carlos para debaixo do chuveiro. Porém, não era ele quem estava
ao meu lado. Era Azriel. O anjo olhava-me de forma austera,
como um pai que analisa o filho.
— Você fez o que era certo — disse ele, tirando a mão de meu
ombro.
— Não — esbravejei, sentindo a raiva que começava a
extravasar. Havia arriscado toda a missão quando aceitara fazer o
que ele queria. Se algo desse errado, eu pagaria, enquanto Azriel
continuaria ileso. Ele não podia ser punido. Não por quem
mandava em mim. — Eu não fiz o que era certo para mim, e sim
o que era certo para você. Por que, por alguma razão estúpida, eu
acho que lhe devo algo.
Azriel abriu a boca para responder, mas eu ainda não havia
terminado.
— Você não pode dizer que isso não é verdade. Desde aquele
dia, eu... — minha voz vacilou. — Acho que você fez algo bom
para mim, e eu o decepcionei — encostei-me à parede, deslizando
até o chão. — Mas a verdade é que eu não te devo nada. E não
quero você se metendo em meu caminho. Então, agora que já fiz
o que queria, vá embora.
Azriel ajoelhou-se ao meu lado. Era como uma velha cena se
repetindo, exceto que eu não deixaria que isso acontecesse.
— Eu não vou embora. Não vim aqui só por que queria que
você fizesse algo. Vim por que me importo com você. Sabe que
ainda existe uma salvação.
— Como da outra vez? — ri sarcasticamente. — Se não o
conhecesse, Azriel, arriscaria o palpite de que é um otário. Agora,
vá embora.
Mergulhado nas lembranças de uma noite de que não queria
lembrar, deitei-me na cama quando o anjo me deixou sozinho. O
quarto estava silencioso, e não havia sinais de Carlos fazia um
bom tempo. Coloquei meus fones de ouvido, esperando que, pelo
menos dessa vez, a música fosse mais alta que meus pensamentos.
Capítulo 9
Ariana
Ainda aturdida pelo dia anterior, desci as escadas para tomar
um pouco de água. Como de costume, o único barulho audível era
o do tilintar do copo quando esse batia em outro. Queria dormir
um pouco. Apesar de ter passado a noite toda dormindo, me
sentia cansada, como se isso não tivesse a ver com meu estado
físico, mas sim emocional. Era muito para se digerir em poucas
horas.
Subi as escadas correndo, com medo de que alguém aparecesse
de repente e ocupasse meu tempo com perguntas. Meu pai havia
me parado na porta antes de sair. Como foi seu dia ontem,
querida? Como você está?Evitar suas perguntas era uma das
minhas prioridades no momento.
A porta do quarto bateu com força atrás de mim. Vi-me sozinha
finalmente, no local em que queria estar. Sem perguntas. Sem
pessoas. Deixei meu celular no chão e deitei na cama, os
pensamentos dando voltas. Não conseguia dormir, por mais que
tentasse. Não sabia ao certo se era por que minha mente não
parava de contornar as palavras de Max, ou por que sentia mais
medo do que nunca de sonhar, sabendo agora o que significava.
Mesmo demorando a ceder, aos poucos deixei que o sono
chegasse. E ele teria chegado, não fosse o movimento no quarto
que chamou minha atenção. O vidro da janela se chocava contra a
madeira, como se alguém estivesse tentando entrar por ela.
Levantei a cabeça. Uma forma se projetava por sobre meu pufe.
Havia passado uma das pernas quando dei um grito. Max
levantou a cabeça assustado, batendo-a na moldura. Ele devia ter
pensado que eu estava dormindo.
— Droga, Ariana — ele riu, jogando-se para dentro do quarto e
se estirando ao chão, o peito subindo e descendo, a respiração
voltando ao normal após o esforço de escalar a árvore para chegar
até minha janela.
— Desculpa — ri também.
Estava feliz por vê-lo. Feliz de verdade. Em algum momento da
madrugada, começara a questionar se o veria novamente, se ele
não fugiria ou coisa parecida. Contudo, aquilo soava estúpido
agora, vendo-o se levantar calmamente à minha frente, após
invadir minha casa.
— Você está bem? — perguntou Max, vindo em direção à
cama e detendo-se na metade do caminho. Seus olhos pousaram
sobre mim, lançando uma pergunta silenciosa que eu não
conseguia compreender — ou estava cansada demais para tentar
fazê-lo.
Eu definitivamente não estava bem, mas já não sabia mais o
porquê. Era como se todos os meus pensamentos houvessem se
transformado num emaranhado. Impossível puxar um sem trazer
outros à tona, ou embromá-los ainda mais. Queria saber o que
estava acontecendo. O porquê de tudo. Mas as palavras pareciam
se liquefazerem todas as vezes em que tentava juntá-las,
escapando por entre meus dedos. Não tardou para eu perceber que
não conseguiria compreender aquilo sozinha. Seria inútil
continuar tentando. Apenas uma pessoa poderia saciar minhas
dúvidas, e daí meu temor pelo seu desaparecimento repentino.
Levantei-me e fui até a janela, na tentativa de me sentir menos
sufocada. O dia estava alto, e o sol brilhava como uma grande
esfera de metal no céu. O vento era um bafo quente. Mesmo
àquela distância, era possível sentir o calor sendo projetado nas
calçadas. Quando tempo eu havia passado na cama?
— Não respondeu minha pergunta — apontou Max, colocando-
se no chão perto a mim quando me sentei no parapeito, apoiando
as pernas contra o corpo.
— Estou bem— respondi de pronto, sem olhá-lo. Pela visão
periférica, pude ver seu rosto se retorcendo, o que me causou
certa angústia. Não queria magoá-lo. — Desculpe. É que estou
muito confusa.
— Faço ideia.
Alguns segundos de silêncio se seguiram, e perguntei-me se ele
sabia de minhas intenções. Se sabia que eu queria continuar a
conversa do dia anterior. Aprender mais. Conhecer mais. Eu era
metade sobrenatural. Mas será que existia tal coisa? Seria possível
eu ser apenas metade daquilo? Se ambos os genes, naturais e
antinaturais, haviam se unido em um só ser, e se eu era minha
própria espécie, isso não queria dizer que eu era completamente
sobrenatural? Ou, pelo menos, completamente as duas coisas?
— Max, preciso que me diga tudo o que sabe — pedi.
Suas sobrancelhas subiram, deixando claro seu desgosto.
— Vim aqui para saber como você está, não para continuar
aquela conversa.
— Mas eu quero continuar —protestei. — Já disse que estou
bem. Ficarei melhor ainda se me responder algumas perguntas.
— É muita informação. Eu não sei se você vai ter condições de
assimilar tudo agora. Não acha que foi um avanço significativo o
fato de ter acreditado em mim tão facilmente? — não foi
facilmente. Se eu não houvesse visto com meus próprios olhos
meu corpo passar pelo seu, ele estaria até agora tentando me
convencer sobre o que dissera. Mas ele não parecia compreender
isso.— Não pode se contentar com o que sabe por enquanto?
— Pare com isso — ralhei. — Pare de dizer que não vou
compreender algo que diz respeito a mim. Não sou idiota.
— Não falei que era.
— Então por que não me diz tudo?
— Estou tentando proteger você.
— Mas você não pode. Nem ao menos pode me tocar!—
exclamei, me arrependendo logo em seguida.
O olhar de Max foi tomado por algo contido de raiva. Fiquei
esperando que gritasse comigo ou, pior, me advertisse que estava
cansado e que iria embora, deixando-me com um fardo que eu
sabia não ser capaz de suportar. Mas ele apenas levantou-se do
chão, inclinando-se em minha direção. Os olhos emanando uma
chama até então desconhecida.
— É aí que você se engana — ele sorriu, não com felicidade,
mas superioridade. O sorriso de alguém prestes a contrariar as
convicções de outro. — Você pode me trazer de volta.
Todo o meu corpo amoleceu e quase caí para fora da janela.
Agarrei-me à madeira branca, fincando minhas unhas pouco antes
do peso ser fatal para completar o acidente. Meu coração batia
descompassado no peito, e eu encarava o garoto sorridente à
minha frente, sentindo um misto de confusão e esperança.
— Você não consegue aguentar isso, e quer tudo? — perguntou
ele.
Concordei com a cabeça, ainda sem conseguir articular
qualquer coisa. Aquelas simples palavras pareciam ter quebrado
uma parede dentro de mim. Eu podia trazê-lo de volta. A frase
gritava em minha mente como a água gira em torno de um
buraco: rápida e inevitavelmente.Max balançou a cabeça,
descontente por ter que falar.
— Como irá querer isso, no estilo discurso ou interrogatório?
— eu sabia que ele estava apenas tentando melhorar o clima, mas
visto sua última afirmação, aquilo seria um tanto difícil.
— Ahn, não sei. Qual acha melhor?
—Qualquer um, contanto que eu consiga diminuir as suas
dúvidas.
— Nesse caso, explique o que acha importante e, quando
acabar, pergunto algo se ainda precisar.
Ele concordou com a cabeça, então começou:
— O dever das Invocadoras, a razão para sua existência, é a
incumbência que possuem para com o amparo dos mortos. Devem
ajudá-los a encontrar seus mundos. O da Luz, ou o das Trevas. A
cada geração de Invocadoras nasce uma de cada lado. Ambas
podem ver as almas, mas cada uma só pode ajudar as que
pertencem ao seu grupo. Está entendendo?
— Estou. Pode continuar.
— Durante todo o tempo, existe a guerra entre os mundos, e
vocês vivem no meio dela. Anjos são reais e, não muito
raramente, vocês ressuscitam pessoas para lutarem suas batalhas.
Cada alma só pode ser ressuscitada uma vez a cada geração, por
um tempo limitado—ele pronunciou a última frase de modo lento,
como se fosse um recado que eu precisasse ouvir atentamente.
— Quer dizer que se eu o trouxer de volta, vai ser só por um
tempo?
— Sim.
— Quanto?
Ele deu de ombros.
— Não sei, Ariana. Esse tipo de coisa não foi feito para deixar
as pessoas felizes. Foi feito para eles terem um exército —ele não
expressava nenhum tipo de sentimento em sua frase que não fosse
irritação.
— O que mais preciso saber? — a frustração era perceptível em
minha voz.
Max desviou o olhar, focando diferentes pontos em meu quarto,
como se esperasse que eu retirasse a pergunta. Mas eu não o faria.
Aquilo parecia dizer muito mais sobre mim do que sobre ele. O
que me fez,novamente, imaginar que diabos ele queria comigo.
Então seu olhar voltou para mim, os olhos parecendo pesar no
corpo.
— Para fazer tudo isso, você tem poderes que chamamos de
dons. Do tipo que pode lutar com eles. Não irá passar seu tempo
apenas ajudando as pessoas. Vai ter que se ajudar, se manter viva.
O mundo sobrenatural é vasto, Ariana. E mesmo uma sombra
pode vir a se tornar uma ameaça. Para aprender a controlar seus
dons, existem cinco livros que a guiarão.
Apesar da avalanche de informações, eu estava conseguindo
acompanhar. Cinco livros. Precisava encontrá-los, e então
aprenderia a controlar meus poderes. Dons. Ok, talvez eu não
estivesse acompanhando tão bem assim — ou acreditando.
— É só isso? — perguntei.
— Só isso? — ele riu. — Garota, acabei de introduzir você na
sua missão para com a humanidade e você me pergunta se é só
isso?
Dei de ombros, aparentando neutralidade, agora mais para
provocá-lo do que por, de fato, senti-la.
— Parece simples. Conversar com os mortos, dizer a eles “ei,
você está morto”, aprender a dominar poderes que não tenho a
mínima ideia de que possuo e continuar viva. Apenas três coisas
— declarei, franzindo o cenho, como se não entendesse a
preocupação de Max. Ele me encarou com descrença, abrindo e
fechando a boca, sem exprimir nada. Não consegui segurar a pose
por muito tempo. Caí na risada, enquanto ele soltava o ar que
antes segurava.
— Você está caçoando de mim — concluiu com a voz pequena.
— Claro que estou — disse, ainda rindo. — Me encontro à
beira da loucura neste momento. Mas não paremos agora.
Continue falando. Onde estão esses livros?
— Espalhados — prosseguiu ele. — Você tem que achá-los.
Existe apenas um problema: os livros são os mesmos para os dois
lados.
Os mesmos para os dois lados? O que era aquilo, algum tipo de
corrida? Não queria ter de disputar nada com ninguém, quanto
mais a única chance de descobrir mais sobre mim mesma. Disputa
essa que seria contra minha própria espécie. Para ser mais exata,
contra o único outro espécime vivo de minha raça. Minha raça.
Era estranho pensar nisso. Passara minha vida toda pensando ser
humana — o que não era completamente errado — e, de repente,
descubro possuir minha própria linhagem — que eu não tinha
ideia de como surgia, já que ser uma Invocadora não tinha
nenhum tipo de ligação com meu sangue.
— Então preciso encontrá-los antes! — exclamei. — Preciso
pegá-los antes que... quem quer que seja os pegue.
Max assentiu.
— Eu vou ajudar.
Minha cabeça rodava. Não sabia no que focar primeiro. Eram
tantas as perguntas e poucas as respostas, que a confusão
começava a se tornar sólida dentro de mim.
— Você tem alguma pista de onde o primeiro livro possa estar?
— Não, mas conheço alguém que pode nos ajudar. Ele é um
anjo do lado da luz. Já me amparou antes. Tenho certeza de que
não negará um pedido de socorro.
Max se referia ao anjo como se aquilo fosse a coisa mais
normal do mundo. Eu estava me jogando no desconhecido.
Estava, definitivamente, enlouquecendo. Por uma fração de
tempo, temi pelo que estava fazendo. Não tinha noção do que
viria pela frente. Possuía somente um punhado de palavras
jogadas e uma sensação de dever a ser cumprido. Fora isso, tudo o
que me restava era a sensação gélida do medo a me corroer.
— Max, isso pode ser... perigoso?
Ele não respondeu de pronto, mas seus olhos o entregaram
antes mesmo dele abanar a cabeça em concordância, dando um
leve sorriso triste. Aquilo era perigoso. Eu podia morrer
tentando.
— Mas você só estará em perigo quando descobrirem que já
sabe quem é, e o que está prestes a fazer — disse ele, tentando me
acalmar ao ver o terror que dominava meu corpo. Por alguma
razão, uma pequena frase voltou à minha mente. “Você teme a
morte?”, perguntava o personagem de um de meus filmes
preferidos. Até aquele exato momento, não havia percebido como
aquelas simples palavras eram capazes de abalar a confiança de
um espírito.
Não estava preparada para me proteger. Não sabia controlar o
que estava dentro de mim. Queria poder voltar para a casa de
Maia e passar a noite tomando sorvete e falando sobre rapazes.
Pensamentos normais. Coisas normais. Por que não podia
simplesmente fechar os olhos e acordar para um mundo
completamente convidativo?
— Ariana — levei um susto com a proximidade de sua voz.
Max havia levantado e estava em minha frente, o rosto a um
palmo do meu. Seus olhos possuíam a mesma intensidade de
sempre, e quase me esqueci de que ele não estava ali em carne e
osso.— Seus pesadelos podem ficar mais constantes.
Engoli em seco. Só podia ser brincadeira! Tinha esperança de
que com toda essa história talvez houvesse alguma maneira de
fazer com que cessassem de uma vez por todas, mas isso não
parecia uma opção. Pelo contrário, teria agora de me acostumar à
ideia de que possuiria cada vez mais sonhos. Mais amigos para
lamentarem sobre suas vidas. O futuro parecia simplesmente
maravilhoso.
Max se remexeu no chão ao sentar novamente. Eu não era
especialista em linguagem corporal, mas algo no modo como
evitava meu olhar e batia com a mão na coxa da perna dava-me a
impressão de que tinha algo a dizer.
— O que foi? — perguntei.
— Nada — respondeu ele, tentando claramente disfarçar seu
desconforto. — É só que... Você tem saído bastante com o
Giovane ultimamente, não?
A pergunta pareceu fora de contexto. O que Giovane tinha a ver
com o que estávamos discutindo? Eu havia saído para comer
pizza com ele, ir ao cinema, piscina. Mas Maia e Lucas sempre
estavam junto. Havíamos combinado de tentar fazer uma coisa
por dia durante as férias, para aproveitar ao máximo o tempo.
Mas não era aquilo que ele estava me perguntando. Alguma
coisa não se encaixava.
— Espera. Como você sabe quem é ele? —questionei-o,
quando percebi que isso era o que não se encaixava.
Max abriu a boca, fechando-a novamente, incerto sobre o que
responder.
— Ariana, eu sei sobre seus amigos. Quer dizer, eu te observei
antes de ir falar com você.
— Mas conheci Giovane depois de te conhecer— franzi as
sobrancelhas. — Você andou me seguindo?
Ele sugou o ar, sem intenção de soltá-lo. Estava nervoso.
— Sim —parecia desapontado por ter me deixado descobrir. —
Mas só por que preciso te proteger.
Não respondi. Aquele argumento não poderia ser usado em
todas as situações. Estava começando a me irritar com suas
respostas.
— Você quer que eu pare de vê-lo? — ri. — Giovane é meu
amigo. Já você é... bem, não sei o que é meu. Mal o conheço. Para
ser sincera, estou um tanto quanto surpresa com o seu
comportamento.
Max passou a mão pelo cabelo grosso, fazendo um topete
deslizar pelo topo de sua cabeça.
— Não gosto dele —admitiu.
Ergui as sobrancelhas. Ele focou seus olhos nos meus e então
os desviou mais uma vez. Pensei ter notado súplica em seu olhar,
mas o lampejo de tal fora tão rápido que me perguntei se
realmente havia visto algo. De repente, o quarto parecia tão
silencioso e desabitado quanto o resto da casa.
— Só... me prometa que não vai ficar falando com ele.
— Não.
Ele franziu a testa, olhando para mim.
— Por que não?
— Não vou parar de falar com ele só por que você está com
ciúmes.
— Não estou com ciúmes.
— Tanto faz. Não importa. Não vou parar de falar com ele.
Max assentiu fracamente, ainda com raiva. Ele estava com
ciúmes ou aquilo era algo de minha cabeça?
— Eu preciso ir agora.
Max não esperou uma resposta antes de se colocar de pé,
desviando de mim — ainda que sem necessidade — para
conseguir passar pela janela.
— Espere— pedi no momento em que tentei segurar sua mão,
inconscientemente.
Ele virou e olhou para mim. De súbito, me vi surpreendida por
uma vontade esmagadora de tocá-lo, senti-lo. Ele estava com
metade do corpo para dentro do quarto e metade para fora. O
vento acariciava seus cabelos, enquanto o sol da tarde esquentava
sua pele. Um meio sorriso surgiu em seus lábios.
— Vai ficar tudo bem — disse ele, antes de pular em direção ao
jardim.
Queria pedir para que ficasse, nem que para isso precisasse me
esforçar em não fazer perguntas. Mas Max já havia passado pela
janela, e agora corria rapidamente pela rua, distanciando-se cada
vez mais, indo para qualquer lugar, para todos. Pela primeira vez
desde que me contara sobre o pouco que sabia, comecei a
imaginar qual era seu papel nisso tudo. O que tinha a ver com
essa história? Por que era ele quem estava me contando isso?
Minha cabeça latejava novamente.
Capítulo 10
Ariana
Eu estava na mesa de café com meus pais — algo raríssimo,
porém, mais do que bem-vindo, desejado — quando meu celular
vibrou. Terminei minha xícara de chocolate quente e arrastei os
dedos para a tela do aparelho, desenhando minha combinação. Era
uma mensagem de Lucas.
Está tudo bem?, perguntava ele.
Refleti sobre os últimos acontecimentos, passando rapidamente
as cenas dos dias anteriores em minha mente, analisando-as.
Claramente algumas coisas haviam mudado, mas não me sentia
mal em relação a nada. Um pouco apreensiva, talvez. Também
nervosa. Certo, eu podia não estar mal, porém, com certeza, não
estava bem.
Meus pais levantaram juntos da mesa. Cada um deu um beijo
em minha testa e saíram para trabalhar. Eu havia conversado um
pouco com os dois quando chegaram mais tarde, no dia anterior.
Como de costume, estavam ocupados demais, cansados demais
para perceberem qualquer tipo de mudança de humor que eu
poderia ter tido.
Sim, e aí?, respondi.
Estamos bem. Maia está preocupada com você. Não fala com a
gente há dois dias. E nosso lema de férias? Como fica?
Estou bem, Lucas. Sobre nosso lema de férias: surgiram alguns
imprevistos. Problemas de família. Entende?
Tudo bem. Você pode passar aqui mais tarde? A Maia já falou
que vem. Outros colegas meus também estarão aqui. Considere
isso como uma última diversão antes de você nos abandonar.
Eu não tinha certeza. Queria começar logo a busca pelos livros,
apesar de Max não ter se comunicado comigo desde nossa
discussão. Na noite anterior, eu havia sonhado com mais pessoas.
Não sei se sonhar ainda era a palavra certa. Eu havia encontrado
algumas pessoas. Não parecera tão assustador como geralmente
era, por que agora eu entendia o que estava acontecendo. Mas me
senti culpada de não poder ajudá-las a chegarem ao mundo da
Luz. Eu nem ao menos sabia onde isso ficava. Pelo menos agora
elas tinham conhecimento de que não estavam mais vivas, e isso
já era algo.
Não vai dar, tenho algumas coisas para fazer, mandei outra
mensagem.
Que droga. Tudo bem. Eu aviso eles.
Passei o resto da tarde no computador, assistindo televisão e
comendo. Terminei de atualizar minhas séries. Baixei músicas
novas. Não era o programa mais legal para se fazer em um sábado
à tarde, mas era o único de que eu estava afim. Quando o sol
finalmente deixou o cômodo e minha mãe passou pela porta, com
o rosto tomado pela exaustão de mais um dia de trabalho, decidi
tomar banho.
Levantei do sofá e ia subindo as escadas quando ela me deteve,
colocando sua mão macia sobre meu ombro. Eu havia passado
muito tempo em meu quarto nos últimos dias, por mais que
tivesse saído com meus amigos. Temia que ela achasse que havia
algo de errado — ou percebesse que havia algo de errado. Pensei
em dizer que só estava subindo para deixar a televisão para ela,
mas não sabia se isso funcionaria.
— Querida, preciso falar com você — sua voz estava rouca.
— Sim? — respondi, ficando de frente para ela.
Seu cabelo, pintado de preto, agora possuía alguns pequenos
fios brancos, e perguntei-me quando ela começara a ficar assim,
com o rosto inchado e a expressão cansada. Não lembrava a
mulher que me carregava no colo nos passeios de domingo no
parque, mas era ela. Em algum lugar ali, eu sabia que existia
alguém que era capaz de mais do que apenas arrumar a casa e
seguir ordens em troca de dinheiro. Perdida nessa triste figura que
agora me olhava, eu sabia que estava minha mãe.
— Você parece tão distante nesses últimos dias, meu amor —
disse ela, acariciando levemente o topo de minha cabeça. — Está
tudo bem? — concordei. — Está se alimentando direito? — anuí
mais uma vez. — Certo. Pais são chatos e fazem perguntas
demais. Já sei, já sei — ela riu. — Seu pai e eu vamos viajar.
Uma visita à sua avó. E, apesar de não estarmos felizes com a
decisão, pensamos que se você quiser ficar na Maia, tudo bem.
Era isso. Minha chance de procurar os livros. Eu teria uma,
talvez duas semanas até que voltassem. Seria tempo suficiente
para encontrá-los, esperava eu. Dei um sorriso mais largo do que
pretendia.
— Quando vão? — perguntei, tentando disfarçar minha
animação.
— Amanhã de manhã. Seu pai quer aproveitar essa semana para
visitar sua avó. Faz tempo que não a vemos.
Ela sorriu, soltando um suspiro em seguida. Seus olhos
castanhos brilharam em minha direção, e pensei que começaria a
chorar. Afagando-me com carinho, ela me olhava com os olhos
marejados.
— Ah, minha filha. Sentirei tanto sua falta — disse, abraçando-
me. E então, sob o semblante cansado daquela pessoa que me
apertava, consegui visualizar minha mãe.
Ficamos um tempo abraçadas, sentindo as energias boas que
fluíam entre nós. Aquela mulher era muito mais que minha mãe.
Era minha amiga. E por essa razão, sentia-me mal por gostar de
seu afastamento temporário, mas não podia negar que estava feliz
por poder tirar algum proveito disso. Aquela viagem surgia em
hora ideal.
Durante os minutos seguintes, repeti diversas vezes as frases:
“ficarei bem”, “tenho dezesseis anos, não sou um bebê”, “sim,
mãe. Ligarei se algo acontecer”. E sentia-me completa por estar
vivendo algo tão bobo e dando respostas tão triviais. Afinal, não é
isso a adolescência? Tentar provar de todas as maneiras que você
é independente e dono de seu próprio nariz, que não precisa da
ajuda de ninguém, apesar de, no fundo, saber que isso não é
verdade.
De qualquer maneira, consegui convencer minha mãe de que
tudo daria certo. Eu ficaria bem. Não existiam motivos para ela se
preocupar.O único problema, agora, era se deveria ou não dizer
para Maia que passaria um tempo em sua casa. Quero dizer, como
poderia procurar os livros se estivesse lá? Não seria mais fácil
mentir para minha mãe, dizendo que ficaria em outro lugar
quando, na verdade, ficaria em casa? No final das contas, acabei
realmente mandando a mensagem para Maia, imaginando que,
hora ou outra, passaria em sua casa. Não suportaria ficar sozinha
durante uma semana.
Com tudo resolvido, subi para meu quarto. Meus pensamentos
estavam longe. O que comeria nos dias sozinha? Como lavaria as
roupas? Nunca havia tentado lavar minhas roupas. Quase gritei ao
abrir a porta. Max estava sentado em minha cama, as costas
curvadas sobre montes de papel. Toda a cama estava tomada por
folhas e havia ainda mais delas pendendo de suas mãos. Ele
levantou o olhar para mim por aproximadamente dois segundos,
então voltou a mexer nos papéis em seu colo. A expressão
concentrada me dizia que era algo importante.
— Você está louco? Não pode ficar entrando aqui. Minha mãe
pode te ver — adverti-o, olhando para o corredor e fechando a
porta rapidamente.
Ele riu, sem tirar os olhos dos papéis.
— Não seja tola, Ariana. Só você pode me ver.
Franzi o cenho. Ele pronunciara as palavras com tanta fluidez
que quase não pareceram estranhas. Quase.
Vendo que Max parecia concentrado demais para iniciar uma
conversa, aproximei-me da cama para checar do que se tratavam
aquelas folhas. Suas ágeis mãos passavam de papel para papel,
fazendo anotações e rabiscos em uma velocidade admirável.
Quando finalmente cheguei ao seu lado, vi diversas coordenadas e
mapas em seu colo, enquanto ele os estudava minuciosamente.
— Você falou com seu amigo? — perguntei, imaginando que
aquilo teria a ver com a busca.
Ele assentiu, ainda sem olhar para mim. Estudou uma folha por
mais alguns segundos e então puxou outra da pilha, fazendo os
papéis caírem para os lados. Estendi a mão para ajudá-lo a
arrumar tudo, tomando cuidado para não esbarrar nele.
— Ele disse que tem um livro perto de nós, na Biblioteca
Municipal. O lugar é antigo, então deve estar escondido embaixo,
nos túneis. Acho que conseguiremos pegar. Mas temos que tomar
cuidado — finalmente levantou o olhar, ao terminar a frase.
Parecia um personagem saído de um drama policial, cheio de
mapas e anotações, seguindo um alvo ainda incerto.
— A biblioteca me parece um lugar bem óbvio para esconder
um livro — comentei, colocando as últimas folhas que haviam
caído sobre a cama. Max puxou todos os papéis, ajeitando-os
sobre a colcha e ficando com apenas um em sua mão.
— Eles não estão escondidos, Ariana. Até por que ninguém
além de vocês teria alguma razão para lê-los. Estão espalhados.
Concordei com a cabeça, sentando-me ao seu lado.
— Quando vamos? — indaguei, ansiosa. Queria começar
aquilo o quanto antes. Queria saber mais, conhecer a história por
trás de minha existência. Já havia superado o sentimento de
estranheza que toda a situação me causava. Era como se, de
repente, eu houvesse encontrado o que sempre procurara.
Ele riu.
— Ei, calma. Nós temos que pensar em um plano antes. Não
podemos simplesmente chegar e invadir o lugar. Como vamos
passar pelas pessoas e chegar ao lado antigo?
— Eu encontro um jeito de entrar sem ser notada. Aquela
biblioteca tem mais de duzentos anos. Duvido muito que tenha no
mínimo uma câmera de segurança.
— E se tiver?
— Se tiver, nós daremos um jeito.
Ele me encarou por alguns segundos, parecendo refletir sobre
minhas palavras.
Eu estava certa, não? Aquilo não parecia algo complicado. Já
havia passado inúmeras vezes na pequena biblioteca e em
nenhuma das visitas notara uma câmera sequer. O lugar parecia
mais desprotegido que o cemitério da cidade — que, por alguma
razão, era constantemente assaltado. Esperava estar certa sobre
isso. De qualquer maneira, ninguém além de mim era capaz de
ver Max. Se algo desse errado, simplesmente o mandaria sozinho
para dentro do lugar e pronto.
— Tudo bem — ele cedeu. — É simples. Entrar, pegar o livro e
sair.
Concordei. Entrar, pegar o livro e sair. Três comandos. Eu
conseguiria fazer.
Mas então percebi uma falha no plano.
— Espera. Como vamos saber qual é o livro?
E rápida como havia chegado, minha confiança foi embora.
Estávamos atrás de algo que nem ao menos sabíamos como era.
Como esperávamos encontrá-lo em meio a tantos catálogos? Todo
o plano agora parecia impossível. E tudo por causa daquela
pergunta. Qual era o livro? As quatro palavras que pareciam
colocar tudo a perder.
Max deu de ombros.
— Você vai saber. Foi o que ele disse.
Apesar de sua resposta me tranquilizar, não era nem de longe
suficiente para acabar com minhas dúvidas.Estiquei-me e alcancei
o pedaço de papel em sua mão, trazendo-o para mim. Ele recuou
rapidamente, como se minha mera proximidade lhe causasse
aversão. Mas não era isso. Max, assim como eu, repudiava ver
nossos corpos se transpassarem, de modo que tentava manter a
maior distância possível, como se ao fazer isso, toda a verdade se
transformasse em mentira. Como se o fato de estarmos longe
pudesse, de alguma forma, nos aproximar. Em cantos separados
do quarto não éramos a alma e a Invocadora, e sim apenas duas
pessoas conversando.
Nunca havia pensado nisso. No que significava para ele estar
morto. Ver todas aquelas pessoas sem poder tocar nenhuma.
Tentar se comunicar com elas e perceber que não era ouvido.
Como ele suportava aquilo? Como podia sequer sorrir existindo
naquela condição? Onde estava o Céu, ou mesmo o Inferno
naquele momento? Continuar preso à terra parecia a pior das
opções. Não desejaria aquele fim nem mesmo para meu pior
inimigo.
Levantei meu olhar na altura do seu, fixo e penetrante. Um
arrepio percorreu meu corpo. Se eu pudesse ao menos tocá-lo...
— Vou trazer você de volta — disse, sabendo que nunca havia
prometido algo com tanta intensidade.
Queria trazê-lo de volta.
Iria trazê-lo de volta.
Max deu um leve sorriso, deixando transparecer que não
acreditava, mas queria ser capaz de fazê-lo. Senti-me mal por um
segundo. Ele não podia ter perdido as esperanças, podia? Mas
esperanças de que, afinal? Ele já estava morto. Sua vida acabara e
a energia se esvaíra de seu corpo. Final feliz parecia um
xingamento se dirigido a ele.Questionei-me se era a decisão mais
sábia trazê-lo de volta. Se aquilo não serviria apenas para
machucá-lo ainda mais. Porém, já havia feito a promessa, e não
podia voltar atrás agora — nem queria.
— Posso perguntar como morreu? — minha voz inundou o
quarto, quebrando o silêncio.
Max se retesou, olhando para baixo. Pela primeira vez parecia
vulnerável. Eu havia transgredido os limites.
— Eu não quero falar sobre isso.
— Desculpe, eu não...
Parei de falar quando percebi que não mudaria nada. Deveria
ter percebido antes que aquilo não era algo para se perguntar de
maneira tão direta.
Levantei-me da cama e fui até a porta.
— Aonde vai? — perguntou ele, parecendo ter se recuperado de
qualquer coisa que minha pergunta pudesse ter causado em sua
pessoa.
— Aonde vamos — respondi.
Ele franziu a testa.
— Você não está pensando em ir agora à biblioteca, está?
— Eu estava. Por quê?
— Acho melhor você resolver as coisas sobre ficar na casa de
Maia antes.
Fiquei parada na porta, piscando com seu comentário.
— Como você... esquece. Tem que parar de me vigiar.
Ele deu de ombros.
— Nem que eu quisesse, não poderia.
Apoiei na porta, arqueando as sobrancelhas.
— E por que não?
— Por que é minha missão.
— Me vigiar?
— Não. Te levar segura para o seu lado.
— Seja lá o que isso signifique, não?
Ele sorriu, espremendo os olhos, e não pude deixar de pensar
em como era bonito. Como um vento inesperado a sussurrar, sua
voz apareceu em minha mente. Você não pode se apaixonar por
mim. Balancei a cabeça, tentando me livrar daquela sensação.
— Max, por que escolheram você? Quero dizer, para essa
missão.
Ele balançou a cabeça.
— Queria saber também.
Então nem mesmo ele estava ciente de tudo. Outra razão para
irmos atrás do livro o quanto antes. Quem sabe ele não tinha mais
respostas do que imaginávamos?
— Droga. Como vou começar a busca ou mesmo falar com
você com Maia por perto?
Ele me olhou com a expressão confusa.
— Talvez você possa contar para ela?
Arregalei os olhos, meneando a cabeça rapidamente. Aquela era
a ideia mais estúpida que ele poderia ter dado.
— Nunca. Não posso envolvê-los nisso. Quanto menos
souberem melhor.
Alguns segundos se passaram e recebi uma mensagem de
Lucas. Estavam vindo até minha casa a fim de me dar uma carona
até Maia. Apesar de querer recusar, pois já estava arquitetando
toda a invasão em minha cabeça, não pude fazê-lo. Não tinha
carro, nem mesmo habilitação, e não estava com a mínima
vontade de pegar um ônibus à noite. Talvez não devesse ter
enviado aquela mensagem para ela. Agora estava presa a um
cronograma do qual não tinha como escapar.
— Diga que não vai mais — disse Max, enquanto eu terminava
de arrumar a mala.
— Não posso. Maia já conversou com a mãe e se eu não for lá
hoje, ela provavelmente ligará para a minha, e aí não teremos
chance alguma de irmos até a biblioteca.
Joguei mais algumas roupas na mala, apertando para que todas
coubessem. Passaria apenas uma semana longe de casa, mas
levava peças suficientes para um mês. Max me ajudou, segurando
as alças para que eu conseguisse fechar o zíper. Em pouco tempo
estava pronta. Coloquei-me de pé, indo em direção à porta. Logo
eles chegariam, e seria mais fácil de ouvi-los da sala. Mas antes
que eu pudesse sair do quarto, Max postou-se à minha frente,
parando a poucos centímetros de mim. Não havia qualquer
sensação de calor irradiando de seu corpo. Nem mesmo a menor
das sensações de algo vivo à minha frente. E isso me deixava
louca.
— Você gosta dele? — perguntou, encarando-me com dureza.
Engoli com dificuldade. Seus olhos castanhos pareciam vibrar
esperando por minha resposta, e eu não conseguia forçar as
palavras para fora, não com ele me olhando daquela maneira.
Continuei transferindo o peso de uma perna para a outra, sem
conseguir responder ou desviar o olhar. Não precisava que ele
dissesse mais nada para saber que falava de Giovane.
— Não — a resposta saiu quase como um sussurro, forçada e
baixa.
Comecei a sentir algo se mover por mim. Uma pequena onda
que se alastrava por meu corpo, percorrendo meus órgãos e pele.
A princípio, era um formigamento, como aquele que sentimos ao
dormir sobre um dos braços, prejudicando a circulação. Mas então
a sensação se instalou em meu estômago e, de repente, parecia
que eu estava puxando algo. O sentimento de peso era tão forte
que grunhi de dor, arfando com as diversas pontadas que me
atravessavam. Meu corpo se retesou e uma onda de calor o
percorreu. Gritei, caindo de joelhos e envolvendo-me com os
braços.
A dor era insuportável. Sentia como se alguém estivesse a
arrancar meu estômago, puxando-o para fora do corpo sem
qualquer delicadeza. Minha respiração era entrecortada por
gemidos, e toda a cena durou até que a buzina do carro de Lucas
soou, e o peso sumiu tão rapidamente quanto aparecera. Toda a
força que antes dominava meu corpo havia se esvaído. Sentia-me
vazia. Sem conseguir evitar, acabei de cair os últimos centímetros
em direção ao chão frio, chocando-me contra ele com os olhos
cheios de lágrimas.
— O que foi isso? — perguntei com a voz rouca. Temia que a
qualquer momento aquela sensação voltasse, e sabia que não seria
capaz de suportar o ataque indefinido outra vez.
Max abaixou-se ao meu lado, encarando-me com os olhos
arregalados. Parecia tão assustado quanto eu. Seu rosto estava
vermelho e a respiração falhava. Mas não era ele quem havia
sentido a presença da morte, a sensação de explosão interna que
seria capaz de derrubar até mesmo o mais forte dos homens.
Quando consegui me colocar de pé, cinco minutos depois, desci
lentamente as escadas, indo ao encontro de meus amigos. O
coração batia descompassado no peito. Cada passo era uma nova
hesitação. Seria o correto entrar naquele carro, mesmo depois do
que havia acabado de acontecer? Tinha certeza de que não estava
doente. Sabia que aquilo tinha a ver com o sobrenatural. Apenas
desconhecia a razão.
O tempo estava frio e chuvoso quando saí pela porta, pisando
na grama úmida e encharcando os sapatos. Olhei para o céu. Para
onde havia ido o dia quente? Parecia que tudo estava culminando
para que eu não chegasse à biblioteca naquela noite.Entrei no
carro, sentando-me ao lado de Maia. Lucas acelerou e começamos
a nos afastar de minha casa, dobrando a esquina. Os rapazes
conversavam sobre algo na frente, alguma coisa tocava no rádio,
mas tudo era ofuscado pela chuva que começava a cair e minha
frustração perante a natureza. Como chegaria à biblioteca agora?
Estava dentro de um carro, no meio de um temporal, com meu
parceiro no crime a metros de distância.
Nada parecia funcionar e, ainda assim, eu não estava disposta a
desistir.
Capítulo 11
Max
Fiquei na janela, vendo o carro se afastar. Os grossos pingos de
chuva caíam sobre meu cabelo, e em pouco tempo estava com o
rosto completamente molhado. Não sentia frio, mas isso nada
tinha a ver com meu estado físico. Apesar de não conseguir tocar,
ser visto ou ouvido pelas pessoas, eu ainda era capaz de segurar
objetos, sentir a água da chuva, o frio e o calor. Não fosse a falta
de comunicação e tato com os vivos, para mim era quase como se
nunca houvesse morrido.
Havia momentos em que chegava a gostar de minha condição
— algo que nunca pensei ser possível. Momentos como quando
passei a noite em uma sorveteria, acabando com o estoque que
nunca saberiam onde foi parar. Ou como quando entrei em um
show sem precisar pagar. A questão era que existiam, sim, coisas
boas em relação à invisibilidade. Mas nenhuma que eu pudesse
apreciar no momento.
Afastei-me da janela, passando a mão pelo cabelo ensopado,
ainda sentindo aquela vibração. A sensação de leveza que tomou
conta de mim quando Ariana passou mal. No momento em que
ela começou a ficar pálida, pensei que era apenas um mal-estar,
alguma coisa que comera e não caíra bem. Mas então senti o
formigamento. E depois, o peso. Foi quando percebi que algo
estava acontecendo entre nós. Foi como se estivesse sendo
puxado de um lugar profundo e obscuro. Todas as minhas
memórias tornaram-se mais vívidas, e pude sentir a dor ao
relembrá-las.
Ariana tinha feito algo, ou estava prestes a fazer.
Saí do quarto e desci as escadas, traçando mentalmente o
caminho até a biblioteca. Tinha certeza de que ela tentaria algo. A
conhecia há tempo suficiente para saber como era impaciente.
Ariana odiava esperar. E eu tinha certeza de que não esperaria até
o dia seguinte para pegar aquele livro. Eu tinha duas opções: ou ia
atrás dela, ou a deixava se machucar tentando alcançar o objeto.
— Droga — resmunguei, virando a esquina e seguindo na
direção da antiga construção.
Capítulo 12
Ariana
A chuva não dava trégua, caía ininterrupta, como o choro de um
bebê a clamar pela mãe. À luz da lua, a cidade era acinzentada,
cortada apenas pelas luzes dos postes que iluminavam as ruas,
mas não os becos, que padeciam na escuridão. Esses se tornavam
a casa do desconhecido, do fugitivo, do envenenado. Por que é
sempre nas sombras que se escondem, que vivem. Os renegados.
Os loucos. Os abandonados.
Grandes gigantes com luzes acesas em cada andar coloriam o
caminho que eu conhecia melhor que a palma de minha mão: o
trajeto de minha casa até a de Maia. A velocidade com que o
carro atravessava as diversas avenidas me fazia querer sair dele
cada vez mais rápido. Precisava de um plano. Uma razão para
pararem.
— Espera — dei um grito, antes mesmo de pensar em uma
desculpa para ele.
Lucas freou o carro bruscamente, agradecendo por não haver
ninguém atrás e o sinal estar fechando. Ele já havia batido uma
vez e, se o fizesse novamente, os pais lhe tirariam o carro.
— O que foi? — gritou ele, olhando-me pelo espelho. — Está
louca? Eu podia ter batido.
Meu coração martelava no peito. Precisava pensar em algo
logo. Algo convincente.
— Não é nada. Eu só queria comer algo — disse, por fim.
— Sério? Eu achei que você estivesse morrendo — retrucou
Lucas, soltando o ar.
— E estou. De fome — brinquei, desejando que aquilo fosse o
suficiente para melhorar o clima.
— Tudo bem então senhorita, o que você quer comer?
—Burger & Cia.— falei. — e não tenho dinheiro.
— Eu tenho — afirmou ele, acelerando o carro novamente
quando o sinal abriu.
Então, eu tinha um plano. Não era nada maravilhoso, mas
deveria servir. Precisava servir. Pegaria aquele livro com ou sem
chuva, tendo a ajuda de Max ou não. A minha escolha de
restaurante não havia sido por acaso. Sabia que existia um Burger
& Cia. a algumas quadras da biblioteca. E era, também, o
restaurante do qual estávamos mais próximos.
Não tardou para vermos as cores azul e rosa que tomavam conta
da rua. Pequenos letreiros luminosos que faziam tudo ao seu redor
ofuscar. Era meu único tiro. Minha única chance. Um movimento
em falso e perderia tudo.
Lucas parou em uma das vagas.
Era agora.
Apesar de estar fazendo frio, minhas pernas tremiam de
nervosismo. Enquanto Maia remexia em suas coisas para
encontrar um guarda-chuva, abri a porta do carro e avancei em
meio à água que caía do céu, correndo em direção à construção
rosa à nossa frente.
— Espera, Ari — gritou ela.
— Preciso ir ao banheiro — respondi, enquanto empurrava a
porta e entrava no estabelecimento.
Esperava que não fosse possível ver o que faria em seguida
através do vidro que nos separava.
Enquanto os três entravam no salão, eu me apressava por entre
as pessoas, hora os empurrando, hora me espremendo em meio a
eles. Precisava chegar à outra porta antes que me vissem.
Empurrei mais alguns corpos quentes, que se irritaram com a
garota molhada que os incomodava, e consegui alcançar à saída.
Agradecendo por ainda não terem me visto, abri a porta e saí em
direção à noite. Teria alguns minutos até que notassem minha
falta.
Disparei em meio à calçada, correndo contra o vento. Não tinha
certeza se estava mais assustada com o fato de estar andando
sozinha àquela hora, ou o de estar a caminho de invadir uma
biblioteca sozinha àquela hora. A chuva caía torrencialmente, de
modo que precisei colocar a mão sobre a testa para enxergar o
caminho. Os postes, carros e prédios só eram visíveis devido as
suas luzes, que agora serviam para me guiar. Era como seguir
estrelas. Um caminho iluminado no céu. Atravessei a rua,
apertando o passo para chegar ao outro lado. A biblioteca estava a
duas quadras.
Meu corpo estava dominado pela a adrenalina, e minha mente
continuava fazendo duas perguntas opostas. O que você está
fazendo? e como vai fazer isso? O mundo parecia desabar em
água. Certamente os noticiários teriam sobre o que falar na manhã
seguinte. Bairros inundados, árvores caídas, fios estourados, e é
claro... a biblioteca municipal roubada. Um prato cheio para
qualquer jornal sensacionalista.
Quando finalmente comecei a ficar cansada, já ensopada há um
bom tempo, cheguei à construção. Uma grande estrutura branca
de dois andares, com uma porta de madeira envelhecida na frente.
Não conseguia enxergar naquele momento, mas sabia que acima
de mim estava pendurada a placa que dizia Biblioteca Municipal.
Sob a chuva forte e iluminação precária, o lugar mais parecia um
cenário de filmes de terror, com suas paredes descascando e
janelas com grade. Hesitei por um segundo. Não podia mais usar
a desculpa isso não existe, por que, no final das contas, o
isso,existia. E até onde eu sabia, poderia vir a designar a mim.
Mesmo tendo quase certeza de que a porta da frente estaria
trancada — imaginava ser uma das poucas coisas das quais os
bibliotecários não se esqueciam de fazer —, tentei abri-la. Vendo
que estava correta quanto aos bibliotecários, andei mais à frente,
encontrando uma pequena porta cinza, a uns três metros da
principal. Devia ser a entrada dos funcionários. Forcei a
maçaneta. Também fechada. Estava prestes a entrar em pânico
quando me lembrei dos grampos em meu bolso. Saquei um,
volvendo à minha memória de como fazer aquilo — Lucas havia
me ensinado dois verões atrás, quando queríamos abrir o freezer
de seu irmão para pegar sorvete. Estava quase conseguindo
quando senti meu celular vibrar.
Onde você está?
Era Maia. Eles haviam percebido.
Parada no meio da rua, com o celular iluminando meu rosto e a
chuva castigando minha roupa, dei a última volta com o grampo e
a porta deu um estalo. Meu coração saltou do peito. Até então
estava focada demais no que queria fazer para realmente me dar
conta do que iria fazer. Não tinha certeza se o lugar possuía
câmeras, então coloquei meu gorro, detestando o fato de me sentir
uma delinquente. Mas, para ser sincera, era exatamente isso que
eu estava sendo.
Fechei a porta atrás de mim e vi-me tragada pela escuridão
total. Idiota, pensei. Havia me esquecido da lanterna. Como
esperava invadir um local sem levar uma lanterna? Somente
alguém totalmente inexperiente cometeria um erro grave como
aquele. Não sabia se ficava triste ou feliz por ser uma péssima
ladra.
Acendi a tela do celular e levantei-o na minha frente, tentando
enxergar através do breu. Lentamente, comecei a distinguir
borrões pretos que eu imaginava serem os livros e estantes. Não
era a melhor iluminação, mas serviria. Comecei a caminhar,
tomando cuidado para não esbarrar em nada. Ainda não estava
confiante quanto à segurança do local. Nenhum alarme havia
soado quando eu destravara a porta, mas nada impedia que soasse
a partir de agora.
O salão encontrava-se completamente silencioso, sem qualquer
barulho que indicasse a tempestade do lado de fora — que eu
sabia estar aumentando a cada minuto. Aquilo era assustador.
Sentia-me presa em uma grande sala à prova de som, e precisei
ignorar a sensação de claustrofobia para seguir em frente.
Continuei por um longo corredor, caminhando em direção à ala
sul. Segundo as anotações de Max, lá deveria haver um acesso
para outro salão, onde os livros mais antigos ficavam.
Meus passos ressoavam no piso de madeira e de tempos em
tempos tinha a impressão de estar sendo seguida. Já havia parado
três vezes para rodar o celular trezentos e sessenta graus e me
certificar de que não havia ninguém. Livrei-me daquele
pensamento, dizendo a mim mesma que eram apenas meus
sapatos.
Após mais alguns minutos andando quase às cegas e com o som
do coração parecendo amplificado na vastidão de silêncio,
encontrei o que procurava: uma pequena porta de madeira
enegrecida. Peguei o grampo novamente e a abri, trabalhando
com dificuldade, já que não podia segurar o celular e destravar a
fechadura ao mesmo tempo.
Não sei exatamente o que estava esperando. Talvez um
corredor feito de pedras e iluminado por tochas. Algo que
remetesse à antigas construções. Só que, no caso, o que eu
realmente olhava era um pequeno corredor de concreto, que fazia
uma curva no final. Levei as mãos até as paredes, tateando no
escuro em busca de um interruptor. Meus dedos esbarraram em
um botão e resolvi arriscar, apertando-o. Uma lâmpada
fluorescente se acendeu quase que de imediato acima de minha
cabeça.Olhei em volta. Era incrível aquele lugar não ter um único
segurança à noite. Pensei novamente na teoria das câmeras e
liguei o celular, apontando para cima e saindo do espaço
iluminado. Nada.
A curva levava para uma pequena sala, onde as paredes eram
cobertas por livros, de modo que não era possível ver nem mesmo
a cor com que o cômodo fora pintado. No teto, outra luz como a
do corredor iluminava os poucos metros que formavam o local.
Presumi que não conseguiria achar um livro em meio a tantos
outros.As estantes seguiam até dois metros de altura. Eu não
alcançaria o topo, e não via nenhum tipo de apoio para fazer
aquilo.
Senti uma lufada de ar gelado e levei os braços ao redor do
corpo molhado, a pele arrepiando. Perscrutei os metros mais altos
das paredes, à procura de alguma janela que passara despercebida.
Então o som da porta batendo fez com que eu percebesse: alguém
estava entrando. Poucos segundos depois, uma sombra se projetou
saída do túnel, anunciando o garoto que terminava de completar a
curva. Ele estacou ao me ver, encarando-me com grandes olhos
verdes. Sua expressão era estranha. Quase como se me
conhecesse.
— Finalmente — disse ele, rindo com uma voz doce. — Você
assumiu seu papel.
Não entendi o que aquilo significava. Eu o conhecia? Tinha
quase certeza de que não. Nunca me esquecia de um rosto.
Entretanto, a maneira como sorria para mim, como se
reencontrasse alguém que há muito não via, deixava-me confusa
quanto a isso.
O garoto começou a andar em minha direção, lentamente, tal
qual eu fosse um pássaro que precisava ser amansado. Nada nele
passava a ideia de perigo, mas o simples fato de parecer saber
quem eu era já me deixava nervosa.
— Meu nome é Bronx. O seu é Ariana, certo? —indagou ele,
confirmando minhas suposições.
— Sim — respondi. Pude sentir uma gota de água — ou suor
— rolar por meu pescoço.
Passo a passo, recuei na medida em que ele tentou se aproximar
de mim, parando apenas quando minhas costas bateram contra
uma das estantes e me vi sem saída.
— Você parece com medo — disse o garoto, franzindo o cenho.
— Sabe que não vou tentar lhe machucar, não é?
Sua voz e expressão eram doces. Meus braços e pernas
relaxaram, e soltei a respiração. Talvez estivesse paranóica,
pensando que, por alguma razão, aquele jovem tentava me
encurralar.
— Crystal me pediu para pegar o livro, mas tenho certeza de
que podemos chegar a um acordo — declarou ele.
— O quê? Você veio atrás do livro?— minhas esperanças de
um roubo tranquilo caíram por terra.
— É claro. Por que acha que estou aqui?
Bufei de indignação. Ele estava de brincadeira? Eu havia feito
meus amigos de idiotas; enfrentado uma chuva torrencial; estava
molhada, cansada e com frio; destrancara a porta da biblioteca e
estava prestes a roubá-la. Tudo isso, apenas para um garoto idiota
chegar e levar o livro embora? Se ele pensava que existia
qualquer chance de isso acontecer, não poderia estar mais
enganado.
— Ariana, por favor. Eu não quero brigar. Vocês duas tem
direito ao livro. E, se nós dois estamos aqui, podemos chegar a
um acordo.
— Nós duas?— perguntei, momentaneamente confusa.
— Sim. Você e Crystal — disse ele. E vendo que aquilo não
surtia qualquer efeito de reconhecimento em mim, adicionou: —
A outra Invocadora.
A outra Invocadora. Até então não havia pensado nela como
algo sólido. Era mais como uma imagem mental para completar o
significado da minha. Contudo, agora, com Bronx defendendo
seus interesses, ela parecia mais real do que eu desejava.
— Crystal não tem direito a nada — uma voz conhecida se
ergueu sobre a pequena sala.
Virei-me para a esquerda, bem quando Max passava a curva e
se aproximava de nós. Queria perguntar se estava me seguindo,
ou se me conhecia tão bem a ponto de saber o que eu faria.
— Max — falou o garoto, sem um pingo de doçura na voz.
Encarei-o, surpresa.
— Consegue vê-lo?
Ele anuiu.
— Somos iguais, Ariana — disse, fazendo com que eu piscasse
em confusão. Seus lábios formaram um sorriso. —Há muito o que
aprender, Invocadora. Por hora, vamos focar no livro.
— Não existe conversa — recomeçou Max. —Como já disse,
Crystal não tem direito a nada. As regras são claras. Ela deveria
estar aqui para ter seu direito sobre o objeto.
— As regras dizem que quem chegar primeiro leva.
— Sim, mas você não pode fazer isso por ela. Não se existir
outra Invocadora no local. Então, Ariana leva o livro — concluiu
Max, triunfante.
Bronx ficou calado, encarando-o. Seu cabelo cor de mel e olhos
verdes esbanjavam doçura segundos atrás, mas não agora, quando
tinha que enfrentar Max. O garoto olhava-o como se quisesse voar
em seu pescoço, e eu temia que, de fato, o fizesse.
— Você é realmente difícil. Mas no final das contas, está certo
— disse ele. Então se voltou para mim, os olhos analisadores. —
Adeus, Ariana. Espero reencontrá-la um dia, se possível.
Foi em direção à curva e sumiu, deixando bater a porta atrás de
si. O baque pareceu preencher o ar à minha volta, e senti-me
tragada pelo silêncio. Ainda não conseguia ouvir a chuva, apesar
de ela estar lá. Ainda não conseguia sentir o vento, apesar de
saber que ele estava a derrubar árvores naquele momento. A outra
Invocadora. Aquilo tudo estava começando a acontecer mais
rápido do que eu esperava. Eu possuía uma inimiga? Se sim, por
que ela havia mandado seu ajudante, ou sabe-se lá o que Bronx
era seu, ao contrário de vir ao meu encontro? Não parecia fazer
sentido.
— Você me seguiu? — questionei Max, cortando o silêncio que
dominava o local.
Ele negou com a cabeça.
— Só sabia que você viria.
A sala parecia me pressionar. Meu estômago se revirava
ferozmente, como se algo o estivesse incomodando. Por um
segundo, pensei que aquela dor voltaria, e estava pronta para cair
de joelhos mais uma vez. Mas então, um tanto involuntariamente,
comecei a seguir em direção às estantes.
Livros empoeirados se sobrepunham uns aos outros, e não
havia espaço para tantos. Levantei a ponta de meus dedos, até
tocar na lombada de um livro grosso próximo a mim. Minha mão
formigou e recuei assustada. Era quase como se não apenas as
letras, mas todo o conjunto estivesse tentando me contar uma
história.
Existiam as histórias nos livros, e as histórias dos livros.
— Que tipos de livros eles guardam aqui? — perguntei,
enquanto caminhava, passando a mão em cada uma das lombadas.
— Não sei— respondeu Max, andando para ficar ao meu lado.
— Talvez livros que considerem banidos, ou antigos demais para
serem disponibilizados. O seu, por exemplo, deve conter coisas
que muitos não compreendem — ele deu de ombros.
A sala cheirava a pó e, à medida em que avançava, parecia que
o cheiro se impregnava cada vez mais em meu nariz. Perguntei-
me se ao menos limpavam aquele lugar.
— Como vou achar um título específico no meio de tudo isso?
— olhei para ele. — Eu nem ao menos sei como ele é.
Max se afastou de mim, sem desviar o olhar, indo até o centro
da pequena sala.
— Apenas —fez uma pausa. — tente sentir a energia que flui
dele.
Concentrei-me em suas palavras, pedindo para que não fossem
somente mais um tipo de ajuda psicológica. Fechando os olhos,
foquei-me nos livros à minha volta, e no que tinham para me
contar. Muitos datavam de antes de meu nascimento. Na verdade,
nenhum deles era mais novo do que eu. Podia sentir quanto tempo
possuíam por meio da emissão de suas energias únicas, que
adquiriam peso a cada ano passado. Não demorou para eu
perceber que meu livro deveria ser o mais antigo.
A sensação no estômago voltou, e minha mente me levou até o
canto leste das estantes. Era como se eu estivesse sendo
empurrada para aquela direção. Meus pés não precisavam de
comandos para seguir o caminho mental. Quando senti que havia
chegado onde queria, abri os olhos. Um grande e grosso livro azul
se encontrava à minha frente. Sua capa de couro estava gasta, mas
fora isso, parecia bem cuidado. Puxei-o, e seu peso fez com que
meus braços descessem.
— É esse — falei, ainda incerta de como sabia aquilo.
Max surgiu atrás de mim, analisado cuidadosamente o objeto
em minhas mãos. O livro não estava caindo aos pedaços, do jeito
que eu imaginava que estaria. O azul da capa era claro, imitando
aquele com que se pinta os quartos dos bebês, e as folhas estavam
amareladas. Só então notei a falta de um título. Não existiam
letras, desenhos ou qualquer coisa em sua capa. A arte era
completamente lisa.
— Não foi tão difícil assim, não é? — perguntou Max, pegando
o livro de minhas mãos.
Ele tinha razão. Não havia sido difícil. O começo, um pouco
complicado. Mas quando percebi como funcionava, foi como se o
manual para realizar tal tarefa estivesse, o tempo todo, gravado
em meus ossos.
Ficamos estudando o livro — que ainda não havíamos aberto
— por um tempo, e quando olhei para Max, não consegui deixar
de me perguntar, novamente, o que tinha a ver com tudo aquilo.
Ele estava aqui, me acompanhando, sendo meu ajudante e
cúmplice, e eu ainda não sabia o que queria dizer com “é minha
missão”. Se essa era sua missão, quem a havia passado?
O estrondo da porta se abrindo invadiu a sala. Fôramos
descobertos. Seríamos pegos. Minha mente rodava e pela primeira
vez desde que entrara na ala sul sentia medo. Seriam os
bibliotecários? A polícia? Maia havia contatado minha mãe ou
qualquer pessoa, dizendo que eu sumira? Nenhuma das opções
era agradável, mas não demorou muito para eu descobrir que
nenhuma delas era a verdadeira também.
Max se virou no momento em que Bronx entrou no local,
marchando em nossa direção.
— O que está fazendo aqui? — gritou para o garoto. Pelo modo
como seus músculos estavam tensionados, sabia que teríamos
problema.
— Mudei de ideia — considerou Bronx. — Ainda quero o
livro. Sabe o que é: não conseguiria encontrá-lo sozinho. Então,
obrigado, Ariana. Você me poupou um grande trabalho.
Dito isso, o garoto disparou sala adentro, correndo
selvagemente em nossa direção. Quando estava a apenas três
metros de nós, fiquei esperando que pulasse em cima de Max,
derrotando a parte mais forte de nossa dupla. Em vez disso, parou
em minha frente, os olhos em um misto de doçura e maldade. Um
sorriso lhe subiu aos lábios e senti minhas pernas tremerem. Ele é
louco, pensei.
Eu estava sem opções. Não sabia lutar e não possuía qualquer
tipo de objeto para me defender. Devia impedi-lo pulando em
cima dele? Era a única coisa que poderia fazer naquele momento.
Mas antes que meus pensamentos se concretizassem, ele me
empurrou contra a estante. Senti minhas costas arderem ao me
chocar contra os livros velhos. E com agulhas perfurando minhas
costas, caí no chão.
— Afaste-se dela — gritou Max, largando o livro e correndo
em direção ao garoto.
Bronx riu melodicamente quando o corpo do outro passou
direto pelo seu.
— Não seja estúpido. Não pode me tocar — Max o observava
espantado, arfando estirado ao chão. E como se Bronx soubesse
exatamente o que se passava na cabeça do garoto, completou: —
Eu voltei.
Aquelas palavras congelaram até a mim, que continuava
sentada abaixo da estante, respirando pesadamente. Crystal
trouxera Bronx de volta? Como havia conseguido aquilo? Se ela
sabia realizar tal feito, então eu estava em desvantagem. A sorte
era minha de a garota não estar ali. Caso contrário, tinha certeza
de que sofreria mais do que um empurrão.
Max levantou-se, tirando o cabelo dos olhos e encarando Bronx
com um ódio profundo demais para aquela simples briga.
— Então, como pretende me derrotar? — perguntou ele, apesar
de nossa óbvia desvantagem.
Bronx pegou o livro do chão, sem se dar ao trabalho de olhar
para o jovem que o enfrentava. Fiquei esperando sua resposta,
assim como Max. Ele queria voar em Bronx. Não podia tocá-lo,
mas o desejo ardente de fazer aquilo estava estampado em seus
olhos. O garoto se levantou e começou a andar em direção à
curva, levando o livro consigo. Minha mente gritava para que me
levantasse, para que fosse atrás dele. Mas todo meu corpo parecia
feito de concreto.
— Não pretendo — respondeu Bronx, no momento em que
virava o corredor, nos dando um último vislumbre de sua pessoa.
Minhas costas ardiam com o esforço que fazia para me levantar.
Não deixaria Bronx levar o livro. Nem que tivesse que caçá-lo até
o fim do mundo. Não deixaria. Ele estivera escondido o tempo
todo, apenas esperando que eu achasse o objeto para poder pegá-
lo. Queria socar a parede de frustração, mas isso seria apenas um
gasto desnecessário de energia. Apoiei-me na prateleira acima de
mim, forçando-me a ficar de pé.
— Ariana — a voz de Max era baixa, mas ainda me atingia
com a mesma intensidade.
— O quê?— arquejei, fazendo ainda mais força para me
levantar, sentindo uma dor aguda atravessar meu corpo.
Ele chegou ao meu lado, segurando o braço direito, que parecia
machucado.
— Você não vai alcançá-lo.
Olhei para seu rosto. A expressão de derrota estampada nele era
inegável.
— Me desculpe. Eu não devia ter largado o livro — disse ele,
desviando o olhar e fitando o chão por alguns segundos.
— Está tudo bem — tentei tranquilizá-lo. Aquilo não era culpa
dele. — Existem mais quatro, certo?
Ele assentiu, tentando forçar um sorriso que não ultrapassou o
canto de seus lábios. Apesar do roubo do livro afetar mais a mim
do que a Max, era ele quem parecia mais decepcionado, olhando-
me como se houvesse cometido um erro grave. Não sabia se era
devido à perda da luta, que afetava seu orgulho, ou se haveria
outra razão.
— Sim. Mas não com o mesmo conteúdo do que foi roubado —
queixou-se ele.
Saímos da biblioteca, o sentimento devastador do fracasso
repousando em nossos ombros. Se pensava ter algum tipo de
coragem, essa havia se esvaído por completo. E tudo graças
àquele garoto. O rapaz de olhos verdes e sorriso doce que
conseguira me roubar, levando embora a única chance que eu
teria de saciar minhas dúvidas. Se algum dia voltasse a vê-lo — e
eu sabia que veria —, faria com que pagasse pelo que fizera
comigo hoje.
Ao atingirmos a rua, percebi que a chuva diminuíra, mas que
ainda era constante. As roupas, já molhadas da caminhada do
restaurante até a biblioteca, começaram a se encharcar
novamente. A cidade parecia um caos ao longe. Ouvia o corpo de
bombeiros em alguma rua ao norte, uma ambulância em uma ao
sul. Sem contar a quantidade de carros e pessoas que deveriam
estar ilhadas nas partes mais baixas, esperando a chuva passar por
completo ou o sinal do celular voltar para pedir ajuda.
A noite parecia um desastre. E agora eu estava tremendo de
frio, sem conseguir me mover, fincada ao chão na frente da antiga
biblioteca, amaldiçoando a tudo e a todos. Pela primeira vez em
dezesseis anos, minha impulsividade me colocou em problemas.
Suspirei, encostando-me à parede da velha construção. Não queria
me mover. Não queria fazer todo o trajeto de volta. Se fosse
possível apenas deitar e dormir, certamente o faria.
— Acho melhor eu ligar para Maia — tentei ser ouvida sob o
barulho da chuva.
Max voltou a olhar para mim.
— Você ainda não me contou como conseguiu chegar aqui —
indicou ele, aproximando-se.
— Eu menti que estava com fome e pedi para passarem no
Burger & Cia. Quando entraram no restaurante, vim correndo até
aqui.
Ele assentiu.
— Acho melhor voltarmos então.
A noite caía sobre nós como um véu negro. Ao meu lado, Max
andava calmamente,os olhos perdidos em algum ponto, indicando
o estado pensativo. Já eu ia pisando em todas as poças possíveis,
chutando todos os acúmulos de água como se fossem a cabeça de
Bronx. Dos diversos postes pelos quais passávamos, a maioria
estava apagada. O estrago parecia ter sido pior do que eu
imaginava.
— Eu acho que isso foi bem divertido — comentou Max,
depois de um tempo, virando-se para mim. — Exceto pela parte
em que ele levou o livro.
Uma grande poça de água surgiu à minha frente. Chutei-a com
tanta vontade que até Max foi atingido.
— Concordo. Mas foi você quem não me deixou ir atrás dele —
resmunguei.
Ele olhou para mim, franzindo a testa.
— Por favor, Ariana, você não conseguiria alcançar ninguém
agora. Caiu no chão sem ao menos ter sido acertada direito.
— O quê?— estaquei. Lembrava-me bem de quando fora
jogada contra a parede. Aquilo havia doído. — Apesar de parecer
inofensivo, ele é forte.
Max riu, um som melódico e bem-vindo em meio à cacofonia
da cidade.
— Tenho certeza que sim — concordou, ironicamente. Então,
avançou alguns passos, ficando tão perto de mim quanto estava
antes de sairmos de casa. Senti meus pelos se eriçarem com sua
proximidade, apesar de saber que provavelmente não havia nada
ali. — Eu posso brincar, mas sabe que me importo com você de
verdade, não sabe?
Ele estava com as mãos nos bolsos. O cabelo caindo sobre a
testa. Pequenas gotas da chuva escorriam por sua face, e ele não
poderia estar mais bonito. Seus olhos profundos se encontravam a
poucos centímetros dos meus. Sua boca. Meu coração saltava no
peito, como um grito de misericórdia ecoando dentro mim. Não
pensei no que estava fazendo no momento. Uma parte de mim
sabia o que aconteceria, mas a outra negava. Levei meus braços
ao redor de seu pescoço, à medida que me aproximava dele,
temendo o momento em que nossos corpos encontrariam o vazio.
Mas tudo que senti foi a colisão de sua boca contra a minha.
Senti seus lábios nos meus, que mesmo com toda a chuva,
continuavam quentes. Quentes e doces. Suas mãos se encaixaram
em minha cintura com um toque macio, e ele me puxou para
perto. Sua língua deslizou pela minha e senti um arrepio percorrer
meu corpo. Não conseguia pensar em mais nada. Não sentia mais
a chuva. Não sentia mais o frio. O vento tornara-se minha
imaginação.
O mundo era ele.
Éramos nós.
Capítulo 13
Ariana
Max me observava espantado. Suas mãos ao redor de minha
cintura me apertavam, como se não acreditasse que estava me
tocando — e, para ser sincera, nem eu acreditava. Sentia como se
em um piscar de olhos pudesse acordar, tragada pelo êxtase que
me consumia. Talvez acordasse no carro de Maia, com Lucas me
encarando. Talvez acordasse para descobrir que tudo aquilo, tudo
o que aconteceu depois da festa, não passara de um sonho. Um
sonho ao mesmo tempo mágico e terrível.
Fitei o rapaz à minha frente, estreitando os olhos.
Poderia acordar?
— Como fez isso? — perguntou Max, encostando sua testa na
minha. Seus olhos brilhavam. Ambos estávamos sorrindo,
apertando um ao outro para nos certificarmos de que o momento
era real. Não tinha ideia de como fizera tal coisa. Assim como
acontecera na biblioteca, aquilo parecia estar gravado em meus
ossos.Porém, de uma coisa tinha certeza: não era a primeira vez
que o fazia. Quero dizer, era a primeira vez. Mas eu já havia
tentado, ainda que involuntariamente, trazê-lo de volta quando
estávamos prestes a sair de meu quarto. As pontadas haviam sido
as mesmas, ainda que mais amenas. Entendia agora o que estava
fazendo naquele momento, e sabia o porquê da sensação de peso,
da constante força que parecia querer me arrancar de meu
corpo.Estava puxando Max. Estava trazendo-o de volta.
— Eu não sei — suspirei, tentando pensar nas únicas palavras
que seriam capazes de explicar o acontecido. — Eu queria te
trazer de volta. Pensei nisso, e aconteceu.
Ele levantou meu queixo, beijando-me novamente. Queria
poder ficar ali para sempre, envolta em seus braços, sem me
preocupar com o futuro ou o presente. Mas logo a chuva voltou a
cair, e o vento a soprar. As luzes reapareceram e a cidade tinha
vida mais uma vez. O frio era tão intenso que não gelou apenas
meu corpo, mas também minha alma. O que eu queria era
impossível. Lembrava-me somente agora de suas palavras. Aquilo
duraria um tempo limitado. Ele estava ali, segurando-me em seus
braços, e eu não tinha ideia de quando isso poderia acabar.
Senti meu celular vibrar. Afastei-me de Max, colocando a mão
no bolso e pegando o aparelho. Era Maia.
— Oi — falei, já imaginando qual seria minha desculpa para a
fuga.
— Eu juro que quando te encontrar, eu te mato.
E rápido assim, houve a quebra de meu momento perfeito.
— Tudo bem. Você pode fazer o que quiser, ok? Eu sei que o
que eu fiz foi errado.
Ao meu lado, Max deu uma risada.
— Você está com alguém? — a voz de Maia mudou de
assassina para curiosa em questão de segundos, e perguntei-me
como conseguira ouvi-lo sob tanto barulho.
— Ah, não. Quer dizer, estou.
— Ele é bonito?
Levantei o olhar para Max.
— Sim — respondi, agradecendo por ser noite e estar
chovendo, caso contrário, ele perceberia minha face enrubescida.
Maia deu um suspiro. Eu havia atingido seu ponto fraco.
Garotos.
— Você foi se encontrar com ele? — perguntou ela, agora com
um tom que lembrava minha mãe.
— Fui — menti. — Não sabia como contar a vocês então eu
simplesmente vim.
Ela fez uma pausa.
— Deve gostar mesmo dele para enfrentar toda essa chuva —
disse algo fora do celular, então voltou:— Tudo bem. Onde você
está? Nós passamos te pegar.
— Não precisa. Estou perto da lanchonete.
—Certo. Nesse caso, venha logo. As ruas estão um caos.
Vamos demorar o triplo do tempo para chegar em casa.
E com isso ela desligou, deixando-me com um barulho
repetitivo e nenhuma repreensão. Seria melhor se tivesse gritado
comigo. Depois de tudo o que havia feito, era o mínimo que
merecia — o máximo, era a prisão.
— Eu preciso ir — forcei as palavras que se recusavam a sair.
— Eu posso ir com você — sugeriu Max. — Agora eles podem
me ver. Não é como se você fosse falar com alguém invisível.
Balancei a cabeça.
— Eu sei, Max, mas não acho uma boa ideia. Quero saber
exatamente o que está acontecendo antes de você falar com eles,
tudo bem?
Ele concordou, um pouco magoado, mas compreendendo meu
ponto.
A questão era que não podia simplesmente jogá-lo em meio a
meus amigos, esperando que fosse aceito. Haveriam perguntas, e
faltariam respostas. Onde você mora? De onde vem? Onde
estuda? Tudo aquilo era complicado demais para se pensar
rapidamente, dando uma resposta coerente. Max havia morrido e,
estando aqui ou não, sua vida tinha acabado. O que ele
possivelmente poderia dizer para aquelas pessoas? Não seria
possível esconder falhas tão grandes por muito tempo, de modo
que a melhor decisão era mantê-lo afastado de todos.
— Sabe que vou atrás de você, certo? — ele colocou meu rosto
entre suas mãos e apoiei minha bochecha em sua palma.
Pela primeira vez, tinha sentido na pele a loucura de suas
palavras, lutado por um objeto que não fora fabricado neste
mundo e resgatado uma alma de outro. Pela primeira vez, via-me
sem saída senão acreditar. Era como se, de uma hora para a outra,
todas as suas frases houvessem tomado vida, avançando em
minha direção como uma parede invisível, porém, inevitável.Mas
afinal, era tudo sobre isso, não? Desde o momento em que o vira
na base do lago até agora. Tudo culminava em uma única ideia.
Acreditar. E agora não existiam dúvidas remanescentes: eu era
uma Invocadora, e precisava fazer meu trabalho.
As luzes brilhantes da lanchonete já eram visíveis, e eu sabia
que, em algum lugar lá dentro, Maia, Lucas e Giovane me
esperavam, provavelmente bravos pela minha saída injustificada.
Contudo, não me sentia culpada, como há minutos atrás. No
momento, qualquer coisa que não fosse relacionada a Bronx ou
Max parecia não merecer meu pensamento.
Cruzei a rua, abrindo a porta assim que cheguei ao
estabelecimento, clamando por um local quente e seco. Se ficasse
mais um segundo sob aquela chuva, acabaria doente. Não havia
dado três passos para dentro quando um grupo voltou-se para
mim, rindo baixinho. Como se eu precisasse disso para saber o
meu estado, resmunguei mentalmente, ignorando os burburinhos
e seguindo em frente.
Os três estavam em uma mesa ao lado da janela, tomando suco
e conversando. Ao contrário do que pensara, não pareciam
bravos, apenas cansados. Lucas estava debruçado sobre a mão,
tentando lutar contra as pálpebras pesadas, enquanto Maia
gesticulava ao contar alguma história — pelo menos já sabia que
ela seria uma fúria a menos. Aproximei-me, vendo os três
levantarem a cabeça em minha direção.
— Você nos deixou esperando — disse Lucas, sonolento.
— Sim. Desculpem-me por isso — respondi, sentando-me ao
seu lado.
Só então percebi que não comia nada há horas. Pedi licença,
indo buscar um sanduíche, voltando alguns minutos depois com a
bandeja.
— Onde você estava? — perguntou Giovane, parecendo o mais
acordado dos três.
— Fui me encontrar com uma pessoa — esclareci, afastando as
imagens de Bronx de minha mente. Esperava poder ter ao menos
uma boa noite de sono antes de voltar a me preocupar com ele —
se é que isso seria possível.
— Hum — mascou Lucas. — Você demorou bastante. O que
estavam fazendo?
Fiquei em silêncio. O que deveria responder? Mencionar que eu
passara a última hora ao lado de uma pessoa morta, que mais
tarde eu trouxe de volta à vida, lutando contra outra com o cabelo
cor de mel, que no começo parecia muito legal, mas que no fim
me jogou contra a parede, por que eu queria um livro que me
ensinaria a controlar meus poderes, não parecia uma opção.
— Nada — respondi.
— Ah, sim — Lucas bebeu um gole de seu suco. — Adoro
fazer nada com as garotas — disse ele, arqueando as sobrancelhas
e sorrindo maliciosamente.
Do lado de fora do restaurante, a chuva começava a parar. Os
poucos carros que passavam acendiam seus faróis, e era possível
ver a quantidade de água na rua. Muitos dos postes ainda
permaneciam apagados, e eu sabia que continuariam assim por
pelo menos mais um dia. Minha cabeça e pernas doíam. Estava
esgotada. Acabei meu lanche e todos agradeceram quando nos
levantamos, seguindo para o carro e, finalmente, para a casa de
Maia.
Acabei dormindo durante o trajeto, acordando apenas para me
arrastar casa adentro. A essa altura, poderíamos estar em qualquer
outro lugar que eu não teria notado a diferença. Era como um
cavalo que não enxergava nada além do que se encontrava à sua
frente. No meu caso, a cama. Não pensei em tomar banho, sequer
escovar os dentes. Estava tão cansada que me deixei cair sobre o
colchão, onde acordei horas depois, com alguém me chamando.
Levantei a cabeça. A claridade que inundava o quarto fazia com
que meus olhos se recusassem a abrir. Sabia pela voz que era
Maia quem me acordava, parada sobre mim, chacoalhando-me
com vivacidade, suas pulseiras tilintando ao chocarem-se umas
contra as outras.
— Ari. Acorda — ela puxou as cobertas. — Vamos. Precisa
fazer algo. Ainda está com as roupas de ontem e nem escovou os
dentes.
Fiz um som contraditório e virei de barriga para baixo. Queria
dormir por mais dois dias seguidos se fosse possível. Não me
importava com as roupas molhadas, ou o péssimo hálito.
— Não posso passar o dia inteiro aqui? — tirei a cabeça do
travesseiro. Ao tentar me virar para olhá-la, senti minhas costas
arderem. Apesar de a dor ter diminuído de um dia para o outro,
ainda estava ali.
Maia riu.
— Claro que pode. Mas não acho que você vá querer perder a
piscina.
Meneei a cabeça entre os lençóis.
— Eu realmente não me importo, Maia. Cansei desse lema de
“um dia, uma diversão”. Então, se puder me deixar dormir, ficarei
feliz.
Ela bateu com a mão em meu ombro, irritada com minha
resistência. Para alguém que gostava de estar sempre no comando,
não seguir suas ordens era um disparate. Sabia que Maia não
aceitaria aquilo.
— Deixe de ser chata. Não estamos sozinhos. Lucas trouxe um
monte de gente. Agora levante dessa cama e vá se arrumar.
Espremi os olhos, focando-a sob a luz forte.
— Por favor, não me diga que vocês estão dando outra festa. A
última que fizeram foi o início de uma confusão.
Antes mesmo dela falar qualquer coisa, percebi o que havia
feito. Eu e minha boca grande estávamos prestes a deixar tudo
pior. Levantei rapidamente, afastando os lençóis e prendendo o
cabelo. As roupas grudavam em meu corpo. Minha garganta
parecia uma lixa. Maia me observou, enquanto eu levantava,
seguindo até o espelho atrás da porta e grunhindo ao ver meu
reflexo. Sabia que estava horrível, somente não imaginava o
quanto.
— Isso é um desastre — sussurrei, olhando para as roupas e
cabelo completamente sujos.
— Nem me diga. Quando passou pela porta ontem, me
perguntei como teve coragem de encontrar quem quer que fosse
dessa maneira.
Tirei a blusa, analisando minha imagem. Estava pálida como
um bloco de neve. Digamos que nem mesmo o banho mais quente
seria o suficiente para dar um trato naquilo.
Como se o súbito ganho de energia fosse um sinal, as imagens
do dia anterior voltaram com força, chocando-se em minha mente
cheia de raiva e frustração. Dispensei Maia, dizendo que
precisava de um tempo sozinha. Ela respeitou meu pedido,
lançando-me um sorriso caloroso ao sair pela porta.
Os últimos dias haviam sido uma sequência desorganizada de
eventos. Já estava me acostumando à ideia de ser uma
Invocadora, mas ainda havia muito que não sabia — e não tinha
noção do quanto as coisas mudariam quando soubesse. Sempre
quis viver uma aventura, se não, viver por algo que valia a pena.
Mas isso fugia de tudo o que eu havia imaginado. Quanto mais
tentava entender, mais me sentia deslocada em minha própria
história.
Quando percebi, estava andando rapidamente pelo meio da
casa. As pessoas ao meu redor não pareciam notar minha
presença. Estavam ocupadas demais com suas conversas,
gesticulando com fervor e gritando para ninguém. Sempre pensei
que vivemos em bolhas separadas que, vez ou outra, têm a sorte
de se tocar. E então os mundos se chocam, as ideias, as
experiências. Mas não era isso que estava acontecendo ali.
Nenhuma bolha se encontrava. Nenhuma experiência era
compartilhada. O que se ouvia eram os gritos das pessoas
alteradas e o silêncio dos espectadores, cansados da mesma
ladainha.
Estava passando a saída para o quintal quando senti alguém
segurar meu cotovelo com firmeza, puxando-me na direção
oposta.
— Preciso falar com você — apesar de não conseguir vê-lo,
sabia que era Giovane.
Sem esperar minha resposta, começou a me empurrar para
dentro, procurando um ponto com menos pessoas para
conversarmos. Sua mão me conduzia por entre os grupos que se
espalhavam pela casa, e apesar de seus movimentos serem
calmos, o tom de sua voz indicava que estava tenso. Por fim,
sentamo-nos no balanço da varanda, olhando para a rua e as
dezenas de pessoas e carros que passavam por ela a cada minuto.
— Tem algo acontecendo, não? — perguntou ele, quando nos
vimos sozinhos.
Sua pergunta me pegou de surpresa, de modo que abri a boca,
esperando que alguma resposta surgisse a tempo. Mas nada saiu, e
meu silêncio, por si só, foi resposta suficiente.
— Eu sabia — disse ele, triunfante. — Posso não conhecer
você há tanto tempo quanto Lucas, mas percebi só de olhá-la que
algo estava errado. O que foi?
Senti meu celular vibrar.
Se eu dissesse que tenho uma pista de Bronx, você iria atrás
dele comigo?
Foi instantâneo. Mal Giovane acabara de falar e a mensagem
chegou. Perscrutei a rua, procurando algum sinal de Max. Mas se
ele me observava, eu nunca saberia.
Olhei para Giovane, que ainda esperava por minha resposta, e
tive uma ideia que em qualquer outro momento consideraria
descabida. Mas já havia tomado minha decisão, e me parecia a
certa no momento. Enviei uma mensagem, omitindo o que estava
prestes a fazer.
— Preciso de sua ajuda para algo muito importante — disse,
esperando que ele deixasse eu me explicar antes de fazer mais
perguntas.
— Do que está falando?
— Vamos por partes. Primeiro, preciso te contar o que
aconteceu.
E foi o que fiz, sem deixar nenhum detalhe de lado. Com o sol
batendo na grama à nossa frente e o vento soprando nossos
cabelos, eu contei toda a história para Giovane. Quando paro hoje
para pensar por que fiz isso, não me vem à mente nenhuma
resposta isenta da palavra impulso — ou mesmo egoísmo.
— E quando eu acho que não pode ficar melhor, você ressuscita
seu namorado morto — Giovane riu.
— Ele não é meu namorado!— protestei.
Mas meu pensamento já havia se distraído e estava distante.
Refletia sobre a mensagem de Max, onde Bronx estaria, como
conseguira tal informação. Talvez o anjo soubesse de algo, ou
Max possuísse algum outro contato. Era óbvia sua ligação com
um tipo de entidade que trabalhava a meu favor — ainda que eu
não houvesse perguntado sobre ela até então —, e sabia que
provavelmente o ajudaria caso necessário.
— Ainda não sei se acredito nisso tudo — disse Giovane,
olhando-me de esguelha. — Você assiste muitos filmes e séries.
Isso afeta as pessoas, sabia? Eu estava assistindo um
documentário um dia desses...
— Sério? — bati em seu braço. Achava estranho ele estar
levando tudo na brincadeira, apesar do tom sério de minhas
palavras. Giovane sabia que eu não estava jogando, certo? Eu
esperava que sim. De qualquer modo, não me preocupei muito
com sua ausência de questionamento sobre minha sanidade. —
Você é a única pessoa que sabe sobre isso, e está zombando de
mim.
Ele riu quando cruzei os braços, e passou o seu por meus
ombros.
— Desculpe.
Respirei fundo. Não queria pensar em Max. Toda vez que fazia
isso sentia algo comprimir meu peito. Contudo, não consegui
evitar imaginar o que ele diria se estivesse me vendo agora.
Lembrei-me de sua expressão ao me perguntar se sentia algo por
Giovane, o modo como parecera tenso. Era tudo uma grande
besteira, mas por alguma razão, o fato dele demonstrar ciúmes me
incomodava.
Meu celular vibrou novamente e tive certeza. Max estava me
observando. Em algum lugar, por entre todas aquelas casas, ele se
espreitava, aguardando o momento mais oportuno para se revelar.
Puxei o aparelho e atendi, esperando algum questionamento sobre
o que estava acontecendo. Mas ele parecia mais calmo do que o
normal.
— Oi — falei.
— Oi — respondeu ele. — Nós podemos ir hoje à noite?
— Podemos. Eu...
— Ótimo — cortou-me. — Mas não tenho carro. Acha que
consegue um para nós?
— O Lucas tem um. Giovane pode pegar emprestado —
assegurei, percebendo, apenas depois, que aquela fora a maneira
mais sutil que havia encontrado de dar a notícia.
Ele ficou mudo do outro lado da linha.
— Você contou para ele?
Não respondi. É claro que Max estava me observando, mas isso
não queria dizer que estava me ouvindo. Ligou por que achava
necessário, não por que sabia o que eu havia feito.
— Você não contou para sua melhor amiga, mas contou para o
primo do Lucas? — sua voz continuou impassível.
— Ele também é meu amigo — retruquei.
— Que seja. Você quem sabe. Mas não cuidarei de ninguém.
— Qual o seu problema? — ralhei, fazendo dezenas de olhos
voltarem-se em minha direção.
— Eu não gosto desse garoto, Ariana. Agora você quer me
enfiar num carro com ele.
— Sim, Max, eu quero. Pode, por favor, fazer isso por mim?
Silêncio novamente. Alguns segundos depois, respondeu:
—Encontro vocês às seis, no estacionamento do shopping —
avisou, desligando antes que eu pudesse indagá-lo.
Bufei, olhando incrédula para a tela do celular, como se
conseguisse vê-lo do outro lado. Sem me dar ao trabalho de olhar
os arredores mais uma vez, levantei-me, puxando Giovane pela
mão e atravessando o tumulto em direção à cozinha. Enquanto
empurrávamos as pessoas pelo caminho, eu lhe explicava que
precisaríamos pegar o carro de Lucas e ir até o estacionamento
encontrar Max. Poupei-o dos detalhes, tanto para não gerar
perguntas — apesar de ele possuir, agora, conteúdo suficiente
para me questionar durante uma semana —, quanto por preguiça.
— Você acha que ele simplesmente vai nos dar as chaves? Sem
explicação alguma?
— Ele não precisa saber, Giovane. Quando voltarmos
inventamos alguma desculpa para a saída.
— Você quer roubar o Lucas?
— Isso não é roubar.
— Tecnicamente é. E se ele perceber enquanto estamos fora e
ligar para a polícia? Acha que vão acreditar que foi um mal
entendido?
Olhei para ele, ponderando suas palavras. Lucas poderia
reportar o automóvel roubado. Se o fizesse, então estaríamos com
problemas. Ainda assim valia a tentativa. Se conseguíssemos
chegar ao estacionamento sem sermos parados por qualquer
autoridade, deixaríamos o carro em algum lugar afastado. Se não
o encontrassem — o que eu esperava que acontecesse —,
simplesmente o pegaríamos e seguiríamos até o suposto
esconderijo de Bronx.
— Ei — alguém tocou meu braço.
Acabei de fechar a mochila térmica que enchera com comida e
água — era sempre bom estar preparada — e me virei para Maia.
— Oi — respondi.
Seu olhar moveu-se para a bolsa, depois para Giovane, que
parecia desconfortável.
— Vou dar uma saída — informei, esperando que ela não
fizesse mais perguntas.
— Vou com você —prontificou ela.
Balancei a cabeça, colocando a mala sobre o ombro e me
adiantando para sair de lá.
— Não precisa — disse, tentando soar o mais descontraída
possível.
Maia lançou um olhar ameaçador e totalitário. Estaquei na porta
da cozinha. A última coisa que queria era perder tempo tentando
dissuadi-la— algo que,pela minha experiência, sabia levar muito
tempo —, de modo que acabei cedendo, pedindo para que
chamasse Lucas para ir conosco.
Não me preocupei com quem ficaria cuidando da casa, agora
que ambos sairiam comigo. Nem com o que pensariam e qual
seria a desculpa que precisava formular para enganá-los. Queria
sair de lá o mais rápido possível. Avancei entre as pessoas que
conversavam, seguindo para a garagem.
Capítulo 14
Max
Carlos não estava contente com minha decisão. Dizia
considerá-la precipitada. No fundo, penso que na verdade não
queria perder minha companhia. Sempre fora um homem solitário
—é difícil criar vínculos quando se está morto —, mas eu era a
pessoa com quem passara mais tempo, e acho que o marquei, de
alguma forma, como o amigo que nunca teve.
Para ser sincero, não odiava completamente o cara. Na maior
parte do tempo, ele era como um grande e velho amigo. Como os
tios que, consequentemente, hora ou outra, acabam falando
besteira. Exceto que com Carlos isso ocorria com mais frequência
do que eu gostaria. Não me importava de limpar sua bagunça,
gritar com ele ou mesmo mandar em sua pessoa quando estava
alterado. Importava-me com sua falta de integridade — coisa
contra a qual precisava lutar todos os dias. Conhecia todas as suas
histórias espalhafatosas, mas sobre isso prefiro não comentar.
— Ela precisa ir agora. As coisas estão começando a acontecer
e Ariana deve estar preparada — disse, tentando convencê-lo,
pela última vez, de que estava fazendo a coisa certa.
Ele riu com escárnio.
— Você fala como se soubesse o que vai acontecer. Você não
sabe de nada. Tudo o faz é seguir ordens. Durante todo esse
tempo agiu como se fosse uma marionete dos Anciãos. Um
boneco movido conforme os interesses deles — cuspiu.
—Às vezes é preciso fazer coisas que não queremos para
sobreviver.
— Você já falou com Azriel? Ele acha isso certo?
— Não use Azriel para me convencer a ficar — rebati
rudemente.
Fazia um tempo que não via o anjo. Em parte, sentia falta dele,
mas também agradecia por não ter de lidar com suas convicções
corretas e nada puritanas. Ele era um dos poucos celestes que eu
conhecia, e uma das raras pessoas em quem confiava. Apesar de
nunca ter dito isso a ele, Azriel era importante para mim, e uma
parte minha temia que ele não se importasse com o que poderia
acontecer comigo no final da história.
— Eu vou voltar a te ver, tudo bem? — falei, tentando tornar
aquela despedida mais fácil.
— Tá legal. Só tome cuidado — disse Carlos. — Como forma
de luto pela sua volta à vida, vou ficar três dias sem beber, meu
amigo.
— Acha que consegue fazer isso por mim?
— Tem razão. Você não vale tudo isso. Vou te dar um luto de
dez horas.
Dei um último aceno para meu colega e passei pela porta,
sentindo o peso daquele momento. Após dois anos, as coisas
começavam a acontecer. Eu ganhara a confiança da Invocadora.
Estava tão perto de completar minha missão e, ainda assim, tão
longe. A essa altura, mesmo o menor dos deslizes poderia colocar
tudo a perder.
Capítulo 15
Ariana
Eu já estava começando a me arrepender do momento em que
não havia lutado contra Maia, insistido para que continuasse na
casa enquanto saíamos. Ela não teria ficado feliz, e eu teria
demorado até conseguir tal coisa, mas ao menos não precisaria
ouvir suas reclamações agora. “Alguém quebrou o lustre”,gritou
ela em certo momento, ao receber uma mensagem. Lucas e
Giovane tentaram acalmá-la quando começou a berrar comigo,
pedindo para que voltássemos antes que sua casa fosse destruída.
Quando respondi que não havia a arrastado até ali, Maia quase se
jogou sobre mim, gritando nomes que eu sequer conhecia o
significado.
Eu observava enquanto o sol sumia, cedendo seu lugar à lua, e
os poucos postes espalhados pelo cimento se acendiam. Minha
cabeça doía pressionada contra o vidro da janela. Já se passavam
trinta minutos do horário combinado, e nada de Max aparecer.
Nem mesmo uma mensagem. Pensei em ligar para ele, mas
resolvi esperar mais um pouco, afinal, ele não tinha um carro.
Estava vindo a pé de onde quer que fosse.
— Estou com fome — disse Maia, pela terceira vez.
— Não podemos sair daqui — respondi, sem me dar ao
trabalho de olhá-la.
Ela bufou.
— Quer saber, vocês que fiquem aqui. Eu vou entrar.
Não me movi. Levantei os olhos apenas para ver sua figura
saindo do carro e se afastando, o salto da sandália batendo de
forma exagerada pelo estacionamento. Lucas olhou para mim e
levantou as sobrancelhas.
— Por que está assim? — perguntou ele.
— Assim como?
— Estranha. Estamos no meio de um estacionamento e você
ainda não nos contou o porquê.
— E nem contarei.
— Está vendo? — ele riu.
Lucas saiu do carro e em dois segundos estava ao meu lado,
puxando-me para fora do veículo.
— Vamos atrás dela — disse, passando o braço por dentro do
meu e guiando-me em direção ao shopping.
— Não posso sair daqui — repeti, estacando. — Me desculpe.
De verdade. Mas não posso ir atrás dela e realizar seus caprichos.
Não dessa vez.
Ele soltou meu braço.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que odeio o fato de ter sempre que fazer tudo o
que Maia pede. Não podem, pelo menos uma vez, fazer algo que
eu peço? O que custa para ela esperar mais vinte, trinta minutos
comigo? Não pedi para que viessem, mas estão aqui.
Ele me olhava surpreso, como se não esperasse minha reação.
Para ser sincera, nem mesmo eu esperava. Mas as palavras
estavam ali, saindo de minha boca com a mesma facilidade com a
qual eu costumava engoli-las.
— Você sabe que ela é assim. Sempre soube lidar com isso. O
que há agora?
Balancei a cabeça, subitamente cansada daquela conversa.
— Só não me atrapalhem — resmunguei, virando-me e
voltando ao carro.
Nunca ficava brava com Maia, e nisso Lucas tinha razão. Eu
sempre havia sido calma e lidado com seu jeito de maneira
paciente por que, no fundo, valia a pena. Mas eu não podia fazer
isso agora. Dessa vez, ele teria que se virar sozinho com ela. Eu
possuía meus próprios problemas para resolver.
— Você sabe que eles não estão bravos com você, certo? —
disse Giovane, alcançando-me na metade do caminho. — Eu
também ficaria estressado se estivesse com fome e não soubesse
por que estamos há uma hora parados no estacionamento de um
shopping.
Revirei os olhos.
— Tudo bem. Já entendi. Só não me importo que fiquem
bravos.
— Eles são seus amigos. Por que não contou a verdade a eles?
— Por que não quero que se machuquem.
Ele riu, e senti como se uma faca houvesse atravessado meu
peito.
— Giovane... — comecei.
Seu rosto foi tomado por uma expressão confusa. Não estava
mais olhando para mim. Seus olhos dançavam sobre algo que se
encontrava além de minha figura. Parei de falar, virando o corpo,
tentando ver o que chamara sua atenção. Três garotos estavam
postados em frente ao carro de Lucas. Um deles, de cabelos
loiros, encostava-se preguiçosamente no lado direito, enquanto
outro, de cabelos castanhos, deitava-se sobre o esquerdo. Meus
olhos pousaram no rapaz de cabelos azuis, sentado na frente do
automóvel, e algo se remexeu dentro de mim.
— O que eles estão fazendo? — perguntei.
— Não sei — respondeu Giovane.
Enquanto observava as estranhas figuras, percebi que essas
também nos observavam, com os olhos arregalados e atentos,
como se não pudessem perder um único movimento. Algo estava
acontecendo. Sabia disso. Coloquei um pé na frente do outro,
ameaçando dar um passo em direção a eles, mas detive-me. O que
diabos estavam fazendo, afinal? Continuavam olhando-nos com
seus olhos amendoados, sem fazer sequer um movimento. Por
fim, Giovane tocou meu cotovelo de leve, e começamos a andar
até o carro.
Apesar de nossa aproximação constante, os garotos não se
moveram. Como se fossem pedras, estátuas a serem admiradas,
continuaram parados ao lado do automóvel, deixando apenas os
olhos entregarem que se tratavam de seres vivos.
— O que vocês estão fazendo aí? —gritou Giovane, sua voz
assumindo um tom mais grave.
— Esperando vocês — devolveu o de cabelos loiros, abrindo
um sorriso largo que em pouco me lembrava o de Bronx.
O de cabelos azuis riu.
— Na verdade, estamos esperando você, Ariana.
Dei um passo para trás. Todo o meu corpo me alertava sobre
algo que eu não conseguia decifrar. Aquele sentimento estava ali,
parecia ricochetear em todos os ossos que possuía e, ainda assim,
eu não conseguia identificá-lo.
— Eu não conheço você — disse, tentando manter a voz firme.
Eu não conheço você, repeti mentalmente, então, por que tenho a
leve impressão de que sabe muito mais do que apenas meu nome?
O de cabelos castanhos desencostou do carro, seguindo em
direção a Giovane. Os passos largos. A expressão neutra. Aquilo
não me parecia um bom sinal.
— O que querem? — perguntou Giovane,quando o garoto
parou ao seu lado, sorrindo para ele como um caçador sorriria
para sua caça.
— De você? — o Cabelos Azuis balançou a cabeça. — Nada.
Então ouvi Giovane gritar. Um grunhido de dor abafado pelos
ruídos à nossa volta. Com o coração martelando sob o peito, me
virei para o Cabelos Castanhos, que agora segurava ambos os
braços de Giovane torcidos para trás, forçando-o a se ajoelhar no
chão.
— O que está fazendo? — gritei.
Mas antes que eu pudesse sair do lugar, o Cabelos Loiros surgiu
ao meu lado.Seus braços eram fortes e inevitáveis. Enlaçaram-me
com a experiência de quem já repetira o mesmo movimento
diversas vezes. Debati-me por alguns segundos, acabando por
machucar meu ombro. Tentar me desvencilhar seria inútil. Era tão
capaz de vencê-lo em uma briga quanto seria de sair correndo sem
que me alcançassem. Quanto mais força fazia para me soltar, mais
ele pressionava meus pulsos.
— Salve ele, Ariana — disse o Cabelos Azuis, desencostando-
se do carro e ajoelhando-se à minha frente. — Duvido que
consiga salvar qualquer um — completou a frase com um riso de
escárnio.
Tentei me mover, fazendo com que a dor que atacava meu
ombro se transformasse em algo duas vezes pior. O suor brotava
em minha testa. Meus antebraços ardiam. Giovane gemia à
medida que o garoto puxava cada vez mais seus braços, torcendo-
os.
— Deixe-o em paz — ralhei.
O Cabelos Azuis franziu a boca.
— Por que eu o ajudaria? — perguntou, parecendo ligeiramente
indignado. — Você não me ajudou.
Aquele rosto. Aquela voz. Estava errada. Eu o conhecia de
algum lugar. Porém, por mais fundo que vasculhasse em minhas
memórias, não conseguia lembrar-me de onde.
Giovane levantou a cabeça, encontrando meu olhar. A face
vermelha e suada estampava a rendição. Ele desistira de lutar. Em
um último movimento, o moreno levantou seus braços até a altura
da cabeça e os soltou. Giovane gritou e gemeu, encolhendo-se aos
pés de seu agressor como uma criança vulnerável. Queria correr
até ele, limpar o corte que acabara de ganhar ao se chocar contra o
chão. Como se soubesse o que se passava em minha mente, o
Cabelos Loiros apertou ainda mais meus pulsos, e agora eu tinha
dificuldade até mesmo para sentir a circulação que deveria fluir
neles.
Levantei um olhar carregado de raiva para o Cabelos Azuis, que
ria incontrolavelmente ao meu lado, como se estivesse a apreciar
uma comédia. Batia uma das mãos na coxa, balançando a cabeça
com um sorriso estampado em seu rosto, enquanto encarava
Giovane, que ainda gemia baixinho. Quando finalmente tornou a
me olhar, percebi que sua expressão me lembrava a de um animal
ferido.
— Você — murmurei, incrédula. — Eu sonhei com você. Eu o
vi em um de meus sonhos.
Os risos cessaram, e ele passou a me olhar com algo que julguei
ser decepção.
— Você não me ajudou. Lembra? — disse ele, levantando-se.
— Deixou que eu pensasse que havia algo de errado comigo —
sua expressão passou de desafiadora para insana. Ele andou
alguns metros, puxando os fios coloridos de sua cabeça e
chutando as pedrinhas sob seus pés. — Você não me contou que
eu estava morto — gritou, virando-se para mim, os olhos
parecendo saltar das órbitas.
Senti meu peito se comprimir. Uma sensação avassaladora de
desamparo tomou conta de meus pensamentos. Eu era culpada,
em parte, pelo sofrimento daquele garoto. Por ele desejar
vingança de mim agora. Lembrei-me da cena na escada. Eu
sentando ao seu lado. Ele implorando por ajuda. Quando aquilo
aconteceu, eu ainda não tinha conhecimento de seu estado. Não
sabia que era uma Invocadora. Como poderia tê-lo ajudado? A
despeito do sentimento de abandono, tinha convicção de que,
naquele momento, não existia nada que pudesse ter feito por ele.
Do outro lado, Giovane tentou se levantar do chão, os braços
tremendo com a dor. Não elevou o corpo mais que dez
centímetros antes de cair pesadamente sobre o concreto, arfando
com o sumiço repentino do ar de seus pulmões. Ele não percebia
que, mesmo conseguindo levantar, ainda assim, não poderia fazer
nada? No primeiro movimento seria jogado ao chão mais uma
vez. Seria mais fácil, tanto para ele quanto para mim, se desistisse
da ideia de revidar.Mas estava claro que ele não faria isso.
Posicionou as duas mãos espalmadas no chão, forçando seus
braços ao máximo, a fim de colocar-se de pé. Com as pernas
tremendo, endireitou a coluna, fuzilando com o olhar o moreno
que o observava. Não tive tempo nem mesmo de pensar antes que
o garoto desse um soco certeiro em Giovane, que cambaleou para
trás, zonzo com o movimento. Gritei, contorcendo-me entre as
mãos que me apertavam.
Os socos seguintes vieram com rapidez e precisão. Um no
estômago, outro perto do rosto, um seguinte no joelho direito, e
um último no tronco, fazendo com que ele perdesse o equilíbrio.
Não demorou mais de vinte segundos para Giovane se ver
subjugado ao chão, mais uma vez.
— O que vai fazer, Ariana? — o Cabelos Azuis ria.
Giovane se contorcia, tossindo e engasgando com o próprio
sangue.
— Acho que seu amigo não está bem — disse o Cabelos
Castanhos, com um leve sorriso.
Por um segundo, quase arrisquei ter meus braços arrancados,
apenas para conseguir chutar a cara daqueles dois imbecis. Como
podiam se divertir com aquilo? Medo, raiva e impotência ferviam
dentro de mim. Mas todo o barulho do mundo pareceu aquiescer
quando ouvi um tilintar metálico vindo da direção do Cabelos
Azuis. Levantei o olhar, enquanto ele rodava uma pequena lâmina
polida entre os dedos.
— Você não pode salvá-lo— disse o garoto. — Você é fraca.
O desespero tomou conta de mim no momento em que ele
levantou Giovane do chão, posicionando a faca em seu pescoço.
Seus olhos encontraram os meus e, naquele momento, ele sabia:
não havia nada que eu pudesse fazer para ajudá-lo. O garoto
pressionou a lâmina contra a carne macia, fazendo com que um
pequeno filete de sangue escorresse pelo pescoço de sua vítima.
Meu coração se apertou. Eu não suportaria aquilo. Não suportaria
vê-lo matar Giovane. Abaixei a cabeça e fechei os olhos.
A princípio, houve um silêncio que pareceu prolongar-se por
longos minutos. O mundo desacelerava, emitindo graves ruídos
que ao longe se perdiam. Mantive os olhos fechados, desejando
poder fazer o mesmo com minha audição. Logo ouvi o som do
corpo se estatelando ao chão, o barulho abafado que significava a
perda, a culpa, a morte.
Apertei os olhos ainda mais.
Pequenos borrões brancos dançavam sob minhas pálpebras.
Um grito.
Algo foi derrubado.
Meus olhos continuavam fechados.
Passos se distanciaram.
Mãos me soltaram.
Com essa última afirmação tendo ocorrido abruptamente, não
consegui evitar abrir os olhos, arregalando-os e os conduzindo em
direção ao local onde eu imaginava estar Giovane, sem vida. Meu
coração deu pulo — não sei se por alegria ou choque — ao
deparar-me com algo completamente inesperado.
Max estava parado sobre o corpo ensanguentado do garoto de
cabelos azuis, a mão direita manchada de um vermelho intenso.
Abaixo dele, Giovane respirava pesadamente, com as duas mãos
em volta do pescoço, como se houvesse acabado de se livrar de
uma forca. O garoto havia cortado boa parte de sua pele, mas não
o suficiente para matá-lo antes que Max chegasse.
—Max?! — minha voz saiu trêmula.
— Atrás de você — gritou ele, jogando-me a faca, que agarrei
meio sem jeito, porém, felizmente, sem me machucar.
Levantei e girei o corpo até encontrar o loiro atrás de mim.
Nunca havia batido em alguém de modo que, quando levantei a
faca para ele, o garoto puxou meu braço com facilidade, torcendo-
o. Meus dedos fugiram de meu controle e a faca caiu de minha
mão. Não é um bom começo, pensei. Com minha mão livre, dei
um soco desajeitado em seu rosto, fazendo com que me soltasse.
Aproveitei os segundos conquistados e me abaixei rapidamente,
alcançando o objeto que caíra próximo aos meus pés. Antes que
pudesse me levantar, suas mãos enlaçaram minha cintura,
puxando-me em sua direção. Cai pesadamente sobre ele,
deixando, mais uma vez, a arma fugir de meus dedos.
Debati-me como uma jovem aflita, odiando a mim mesma por
não saber fazer mais do que chutar. Suas mãos me pressionavam
cada vez mais, fazendo com que o ar em meus pulmões fosse
expelido contra minha vontade. Chutei e esmurrei-o até conseguir
me livrar o suficiente para alcançar a faca. Em um movimento
totalmente amador e movido pelo instinto, cortei seu braço. A
visão do líquido vermelho escorrendo do corte me causava
náuseas.
Foi quando recebi meu primeiro soco na vida — que eu
esperava, inutilmente, ser também o último. O mundo pareceu
girar por alguns segundos, e rolei para o lado, saindo de cima
dele. Meu maxilar latejava. Sentia como se todo o osso houvesse
se fragmentado em diversos pedaços, que agora dançavam sob
minha pele.
Livrando-me da surpresa do golpe, levantei o corpo, apoiando-
me nos cotovelos. Um grito de aviso ecoou de algum lugar, mas
antes que eu soubesse se viera de Max ou Giovane, o Cabelos
Loiros sentou em meu peito, pressionando meus braços com suas
pernas. Com a mão esquerda, pegou meu cabelo, embrenhando
sua mão em meio aos fios e batendo minha cabeça contra o chão.
Uma dor excruciante atravessou minha nuca, e pensei por um
momento que iria apagar. Contudo, continuei lúcida, e ele tornou
a aplicar o golpe, com um pouco mais de força. Na terceira vez
em que tentou repetir o movimento, puxei o braço— que,
felizmente, ainda se agarrava ferozmente a faca —, sentindo a
pele ser esfolada enquanto a arrastava para longe da perna do
garoto. Seus olhos se arregalaram ao perceber o que estava prestes
a acontecer. Mas então já era tarde. A lâmina atravessou sua
barriga, e ele soltou meus cabelos.
O loiro levantou-se, encarando o ferimento com uma expressão
de completo horror. Seus dedos, agora ensanguentados,
seguravam a pequena haste que pendia de seu abdômen. Fiquei
sentada ao chão, observando-o enquanto cambaleava para trás,
caindo de joelhos. Seu olhar cruzou o meu, e o que vi fez meu
corpo gelar. Ele tombou para frente, a faca penetrando ainda mais
em sua barriga. E tudo estava acabado.
O que se seguiu foi um completo silêncio. Até mesmo as
movimentações ao longe pareciam ter cessado. Minhas mãos e
pernas tremiam, sem que eu conseguisse contê-las. Meu rosto
estava encharcado pelas lágrimas furiosas que começaram a fluir
sem minha permissão. Max postou-se à minha frente, levantando-
me sem hesitar. Suas mãos, assim como as minhas — assim como
as do garoto —, estavam banhadas em vermelho. Queria correr
para o mais longe possível, afastar-me daquele lugar.
— Você está bem? — perguntou ele, segurando meu braço em
um aperto consistente, como se soubesse o que eu pretendia fazer.
Olhei para o lado. O corpo do Cabelos Azuis estava estendido
ao chão. Uma faca — que eu tinha certeza de ter sido arremessada
por Max — encontrava-se cravada em suas costas.
— Droga — sussurrei.
Max puxou-me para si, passando seus braços ao meu redor.
— Você está bem. Isso que importa.
— Eu matei uma pessoa — falei, sentindo um gosto amargo
tomar conta de minha boca e um peso de meu coração.
Ele afastou minha cabeça de seu peito, segurando meu rosto
entre as mãos.
— Você está aqui. É isso que importa. Escutou? Você está viva.
Foquei em seus olhos castanhos e, de repente, toda aquela culpa
pareceu deixar meu corpo. Eu havia agido em legítima defesa. Eu
estava viva. Era isso que importava, não? Tentei ignorar os corpos
dos garotos que jaziam ao chão e o terceiro que aparentemente
tinha fugido.
— Se não estiverem muito ocupados — disse Giovane, ainda
deitado, a alguns metros de nós. — Preciso de uma ajuda aqui.
Depois de lavarmos seu pescoço com uma das garrafinhas de
água, percebemos que o corte não era tão profundo. Max
escolhera a hora perfeita para chegar, no final das contas. Giovane
gemeu quando toquei um machucado no canto de sua boca, mas
logo ficou em silêncio para que eu pudesse terminar de limpá-lo.
Depois de retirado o sangue, seu rosto já possuía um aspecto
melhor. O grito que escapou de seus lábios quando seu ombro foi
posto no lugar fez com que o mundo ao nosso redor acordasse
novamente.
Éramos três adolescentes, machucados e confusos, parados no
meio do estacionamento de um shopping, cercados por dois
corpos que, para nossa sorte, ainda não haviam sido notados.
Tudo poderia acontecer.
Meu corpo doía. Meus músculos pareciam pedras. Minha nuca
latejava como se pedaços de concreto estivessem grudados a ela.
Uma lembrança sólida do terrível ocorrido. Olhei para meus
braços, dois ou três hematomas estavam começando a aparecer.
—Precisamos sair daqui, agora — advertiu Max, abrindo a
porta do carro.
— Não podemos — puxei-o pelo braço. — Maia e Lucas ainda
estão lá dentro.
Ele abanou a cabeça
— Ninguém vai atrás deles. Não sabem de nada. Vão ficar bem.
Eu sabia que eles ficariam bem. Mais um sumiço meu não seria
complicado explicar. Mas não queria deixá-los, novamente, para
trás.
— Eu sei. Eu quero que venham conosco.
— O quê?— Max franziu o cenho, e penso que Giovane tenha
feito o mesmo.
—Decidi contar para eles — anunciei.
— Tudo bem — concordou Max. — Mas você vai ter que
explicar no caminho. Ainda podemos estar sendo perseguidos.
Maia e Lucas entraram no carro por vontade própria, ainda que
para isso eu tenha mentido um pouco. Para eles, seguiríamos para
jantar em alguma lanchonete, e toda a espera no estacionamento
não havia passado de um erro do “novo namorado de Ariana”
sobre o horário marcado. Havíamos saído de perto dos corpos
pouco antes deles voltarem, e toda a desculpa surgira na mente de
Maia — ainda que ela não soubesse — quando viu Max e
começou a tagarelar.
Apresentações feitas e perguntas respondidas, entramos no
carro, Max, Giovane e eu trocando olhares tensos, enquanto Maia
e Lucas conversavam preguiçosamente. A garota, agora sem a
aura carregada de antes, sorria para mim, arqueando as
sobrancelhas e acenando em direção ao rapaz que tomava o
volante. Alguns segundos depois seus lábios se moveram
formando uma mensagem. Nada mal, dizia ela.
Max acelerou, olhando duas ou três vezes para trás,
certificando-se de que não estávamos sendo seguidos. Um
garotinho passou correndo pela traseira do carro e meu coração
deu um pulo, pensando que pudesse ser uma ameaça. Quando
percebi estar enganada, relaxei. Apenas ao chegarmos à rua,
sendo cercados pela cacofonia urbana, carros e prédios, é que tive
coragem de dizer o que estava pensando.
— Max — chamei-o, aproximando-me de seu banco. Lucas e
Maia conversavam animadamente, então, presumi que não
ouviriam nossa conversa.— Aquele garoto de cabelo azul. Eu o
conhecia.
— Como assim? — ele me olhava pelo espelho.
— Em um de meus sonhos. Há menos de uma semana, acho.
Alguém o ressuscitou, não?
— Sim. Os três.
—Então eu matei alguém que já havia sido morto?
Ele concordou.
— E isso é possível?
— Depois de ressuscitados eles podem ser mortos
normalmente. São humanos, Ariana. Como qualquer outro. O fato
de já terem sido destituídos da forma carnal uma vez não muda
isso.
— Qual a sua religião? — perguntou Maia, encarando-o.
Aparentemente, eu não sussurrara baixo o bastante.
Max fitou-a por um segundo, ignorando sua pergunta.
— Tenho uma novidade para você, Maia — disse ele, e no
mesmo instante percebi seu estranho tom de voz. — Ariana
mentiu para você. Não estamos seguindo para uma lanchonete.
Posso lhe assegurar de que as razões para ela ter feito tal coisa são
boas. Porém, não contaremos a verdade até pararmos. Suponho
que ainda ouvirá muitas conversas estranhas dentro desse carro
até que alguém possa responder suas perguntas. Então, nada
melhor do que apenas ignorá-las.
As palavras foram disparadas de maneira rápida e direta. Estava
claro que ele queria evitar questionamentos. E, para ser sincera,
eu também.Os últimos acontecimentos haviam drenado minhas
energias, e sentia-me cansada de uma maneira que nunca
imaginara ser possível. Maia ainda o fitava, emudecida, quando
decidi me pronunciar.
— Por favor — pedi. — Eu não estou conseguindo dormir e
acabei de fazer uma coisa que nunca serei capaz de esquecer.
Confie em mim, tudo bem?
Ela abriu a boca, o rosto ficando vermelho. Esperei um
confronto, palavras cuspidas para cima de mim e outra briga tola.
Mas quando Lucas tocou seu braço, a súbita raiva sumiu de seu
rosto, e ela concordou lentamente.
Estávamos rodando há aproximadamente meia hora, os minutos
parecendo cada vez mais longos. Não conseguia afastar a imagem
dos corpos de minha mente. Minha mão entalhando a faca no
estômago do garoto. Sua expressão à medida em que a vida o
abandonava novamente. Como eu fora capaz de fazer aquilo? Não
conseguia compreender de onde viera tal ato. Estava lutando e,
em um segundo, tudo acabara. Não me lembrava nem mesmo de
ter ponderado sobre a ação.
Encostei a cabeça no vidro gelado, meus pensamentos mais
conturbados que de costume. Queria matar Bronx. Tudo aquilo
era culpa dele. O fato de termos ido ao shopping, de eu ter
colocado Maia e Lucas na história. Porém, ao mesmo tempo, não
queria matar mais ninguém. Nunca. Que ele apodrecesse onde
quer que estivesse. Eu não dava a mínima. Tudo o que queria era
voltar para minha casa e pular para baixo das cobertas, onde
permaneceria por pelo menos doze horas seguidas, até,
finalmente, ter coragem de enfrentar o mundo outra vez.
Do lado de fora da janela, as casas passavam rápido, e me
perguntava a cada segundo quando chegaríamos. A cada sinal que
avançávamos, a cada esquina que contornávamos, chegávamos
mais perto de nosso destino— e eu não tinha mais certeza se
queria fazer aquilo.
Como pegaríamos o livro? Apesar de sua aparência, Bronx não
era amigável. Muito menos inofensivo.
É engraçado isso.Como as pessoas às vezes não possuem uma
característica física compatível com a sua personalidade. Elas
podem parecer legais quando, na verdade, querem te machucar;
ou parecer normais quando, na verdade, estão mortas. Há outras
vezes em que podem parecer felizes quando, na verdade, sentem
todo o mundo à sua volta, inclusive elas mesmas, desmoronando a
cada segundo.
— Ariana — chamou Max, arrancando-me de meus devaneios.
— Era para eu ter contado isso antes, mas esqueci. Me desculpe.
— Do que está falando?
— Devia ter mencionando no momento em que te contei sobre
os livros que eles são apenas uma forma de ajuda. Você pode
aprender a dominar seus dons sem eles. São como um manual de
instruções. Entende? Você pode montar o quebra-cabeça sem
ajuda alguma, ou optar por lê-los.
Fitei-o em uma carranca.
— Não pensou em contar isso antes? Por exemplo, quando
saímos da biblioteca? Seria um ótimo...
— Já disse que me esqueci. Desculpe — disse ele, suspirando.
— À propósito, estamos chegando.
Capítulo 16
Max
Então era isso. A hora havia chegado. Podia sentir o cheiro da
desgraça que precedia o momento. O zumbido insistente que
entregava a ansiedade. Ariana olhava-me com uma confiança que
fazia meu estômago se revirar, e eu me perguntava quando virei
isso.
Apesar de tudo o que havia acontecido, uma parte de mim,
aquela que ainda se lembrava de como era estar vivo pela
primeira vez, de como era ser ingênuo sobre todas as coisas
existentes, sabia que, se nada disso estivesse acontecendo, e eu a
encontrasse no meio da rua em um dia normal, essa parte sabia
que poderia se apaixonar ela.
Mas eu não era assim. Não mais. Se existia uma coisa de que
tinha certeza era de que ninguém era capaz de odiá-lo mais do que
alguém que fora traído. E Ariana estava prestes a descobrir isso.
Ela não sabia o poder que tinha nas mãos. A força que corria por
suas veias. E era isso que a fazia ser manipulada tão facilmente,
que a fazia ceder sob falsas afirmações e amizades. Se ela ao
menos soubesse as diferentes maneiras de torturar uma alma, aí
sim, eu poderia ter medo.
À medida que nos aproximávamos da casa, imagens geradas
pela incerteza e angústia dominavam meus pensamentos. Queria
gritar por ajuda. Gritar por Azriel. Mas não podia fazer isso.
Minhas escolhas haviam me levado até ali, e teria de aceitá-las.
Durante os últimos meses que passara com Carlos, havia deixado
o anjo de lado diversas vezes, sem contar as inúmeras em que o
insultara. Queria provar alguma autoridade, penso. Provar que era
tão importante quanto ele nessa história toda. Mas eu não estava
tentando provar isso para mim. Era para ele. Queria provar que
não era mais o garoto fraco que ele salvara tempos atrás.
Capítulo 17
Ariana
Todos se calaram após Max anunciar que estávamos chegando,
e imediatamente lancei meu olhar à rua, sondando os metros pelos
quais passávamos, imaginando onde desceríamos. Não havia uma
pessoa sequer nas calçadas. Todo o bairro padecia sob penumbras.
Quase gritei para que Max desse meia-volta e nos tirasse dali o
mais rápido possível. Mas seria covardia desistir naquele
momento, estando tão perto. Quando o carro finalmente parou em
frente a uma casa aparentemente igual a todas as outras, meu
coração batia tão depressa que cheguei a pensar se era a única a
ouvi-lo. Entorpecida pela ansiedade misturada ao medo, não
tomei consciência de ter descido do carro, percebendo apenas
depois, quando já havia batido na porta, o que fizera.
A maçaneta se mexeu e a porta abriu para dentro, dando espaço
para uma figura desconhecida nos receber. Olhando para mim
estava uma garota — minha idade, provavelmente — um pouco
mais alta do que eu, e também mais magra. Os cabelos negros
desciam até a base dos ombros, e os olhos eram amendoados.
Atrás dela, meio deitado no sofá, encarando com surpresa a visita
que chegara, estava Bronx.Cogitei, por um segundo, empurrar a
garota para o lado e avançar casa adentro. Porém, não podia fazer
isso. Sabia quem era ela.
— Oi?! — disse Crystal. Seu olhar percorreu a todos e se focou
ao fundo. De repente, sua expressão mudou. Se antes parecia
confusa diante de nossa presença, agora, com certeza, estava
irritada. — Por que veio até aqui?
Então ela sabia quem eu era.
— Vim atrás do seu amigo — disse, sem mais delongas. — Ele
tem algo que me pertence.
A garota manteve a expressão neutra. Somente seus olhos
entregaram sua inquietação, correndo de mim para algum lugar,e
vice-versa.
— O livro não é seu — objetou ela, voltando-se para mim.
— Bem, não é seu também — rebati, enquanto ela tornava a
olhar para longe. Crystal semicerrou os olhos, observando algo
sob a luz bruxuleante que nos cercava. — Mas o que...
Segui a trajetória de seu olhar, perguntando-me o que estava a
incomodando tanto a ponto de ignorar minha presença daquela
maneira. Para minha surpresa, era Max o objeto de sua atenção. E
esse devolvia seu olhar com a mesma intensidade, encarando-a
com o queixo erguido.
— O que está acontecendo? Por que você fica olhando para ele
como se estivesse com raiva? — perguntei para Crystal, virando-
me para Max em seguida. — Por favor, pare de olhar para ela
como se quisesse matá-la.
Ele se voltou para mim, os olhos perdendo a dureza de poucos
segundos atrás. Uma mão quente encontrou meu ombro e virei o
rosto. Lucas estava parado ao meu lado, pressionando meu braço
levemente para que eu me afastasse, gesticulando com a cabeça
na direção da porta. Crystal havia descido as escadas e agora
estava a poucos centímetros de mim.
— Ariana, não quero brigar com você.
— Ótimo. Então concordamos. Não quero brigar com você
também — sorri. — Quero que seu amigo estúpido me devolva o
livro.
Coloquei a mão direita no ombro da garota, empurrando-a para
o lado, e corri para dentro da casa. Tudo acontecendo por culpa
dele — mais uma vez —, e Bronx continuava sentado. Quando
passei pela porta, ele levantou subitamente, caminhando em
minha direção, cada vez mais rápido. Meu sangue fervia. Queria
socá-lo. Estávamos a poucos centímetros. Levantei a mão para me
defender, então, detive-me. Seus olhos. Ele não parecia querer me
atacar. Bronx chegou tão perto que pude sentir seu hálito.
— Você precisa acreditar em mim — começou ele, os olhos
fixos nos meus. Uma pequena voz interna vociferou,
perguntando-me por que havia parado, abaixado a mão justo
quando ele estava bem à minha frente. Mas não tive tempo para
pensar nisso. Suas palavras fluíram com rapidez, e precisei
concentrar-me para entender tudo. — Eu não sou o cara mau
nessa história. E se você continuar com isso, na certa não será a
heroína. Aquele dia, quando fui buscar o livro, eu pretendia
conversar com você. Mas quando vi que estava junto dele, soube
que não teria como. Era tarde demais. Só percebi depois, quando
você agiu de um modo tão diferente do esperado, que não tem a
mínima ideia do que está acontecendo — nesse momento a porta
se abriu violentamente e Max passou por ela, seguido de Crystal e
os outros. — Me deixe te ajudar. Só peço que me ouça.
Suas palavras fizeram uma onda de calor percorrer meu corpo.
Ele estava sendo... sincero?
— Ariana — gritou Max, fazendo-me olhar para ele.
Um quebra-cabeça estava começando a se formar em minha
mente. Tudo acontecendo muito rápido. Lembranças de
momentos, palavras, pessoas. O dia em que conheci Max. “Eu
não sou o cara mau nessa história”. Quando ele me contou a
verdade. “Você não tem a mínima ideia do que está
acontecendo”. Quando matei o garoto de cabelos loiros. “Se você
continuar com isso, na certa não será a heroína”. Quando quis
me vingar de Bronx. “Me deixe te ajudar”.
Não podia ser verdade. Não. O que estava surgindo em minha
cabeça era fruto de palavras articuladas a fim de me confundir.
Bronx não estava do meu lado, por mais sincero e prestativo que
houvesse parecido ao apresentar tais ideias. Não seria possível...
—É ele, Ariana — berrou. — Ele é o cara mau. Eu sei que pode
não fazer sentido o que estou falando, mas eu sei que ele não está
te ajudando.
— O quê?— minhas palavras saíram quase inaudíveis.
Max atravessou os metros que nos separavam, envolvendo meu
rosto em suas mãos.
— Você vai escutá-lo? Depois de tudo o que aconteceu?
— O que está havendo? — perguntei, olhando de um lado para
o outro, esperando que algum deles me desse uma resposta
concreta, e não outra frase vaga.
— Peça a verdade a ele, Ariana. Depois disso, se ainda quiser
tentar me matar, ótimo, faça. Mas antes ouça-o. Max não é quem
você pensa.
A sala ficou silenciosa diante àquela afirmação. O que ele
queria dizer com aquilo? E por que eu estava ouvindo seus
conselhos? Não compreendia a virada súbita de opiniões que
houvera em meu interior.Levantei as mãos, afastando as de Max
de meu rosto. Era difícil olhá-lo. Apenas o pensamento de ter sido
traída por ele já fazia com que me sentisse mais fraca. Não sabia
em quem acreditar. Uma parte minha — que ainda não conhecia
bem — dizia-me que Bronx estava certo, e Max escondia algo; já
a outra — a mais humana, que se apaixonara pelo rapaz de olhos
profundos— dizia-me que ele nunca mentira.
— Do que ele está falando, Max? —questionei-o.
— Nada —gemeu, a voz se elevando. — Por que está dando
ouvidos a ele? Esqueceu-se do que aconteceu na biblioteca?
— Você mentiu? — pressionei-o. Queria acreditar que aquilo
não era verdade, mas pelo modo como Max reagia, era cada vez
mais difícil.
Ele franziu as sobrancelhas. Parecia o Max que eu conhecia. A
pessoa que sempre sabia mais do que eu. Seus olhos percorreram
a sala e se focaram nos meus, carinhosos e suplicantes como
sempre foram.
— Eu te conto tudo. Prometo. Mas não aqui — disse ele,
assumindo uma entonação completamente diferente da qual eu
estava acostumada.
— Ah meu Deus — sussurrei, sentindo o impacto de suas
palavras. Bronx estava certo. Max estava mentindo. Não sabia o
que era pior.
— Ariana...
—Não. Está tudo bem. Ficarei bem —declarei, enquanto
puxava-o até o cômodo mais próximo.
Capítulo 18
Max
O nervosismo. Aquilo parecia explodir dentro de mim.
Enquanto Ariana me puxava para algo que eu pensava ser um
escritório — uma pequena mesa de madeira encontrava-se no
canto da sala, acompanhada de uma cadeira com o estofado
rasgado —, eu só conseguia pensar que iria magoá-la, e odiava
isso. Odiava ainda mais o fato de não poder escolher se queria ou
não contar a verdade. Se queria ou não continuar o que, para
início de conversa, havia me recusado a fazer. Todo o mundo
espiritual parecia caminhar em direção à liberdade. Ainda assim,
eu tivera esse direito negado.
Ela fechou a porta atrás de nós e se encaminhou para a mesa,
apoiando as mãos sobre a madeira e inclinando-se em minha
direção. Esperava que eu começasse, que fizesse o que prometera
e contasse a verdade. Agora, ela definitivamente saberia sobre
minhas intenções, e não haveria mais o que esconder. Eu não teria
o que fazer quanto à sua escolha de como proceder a partir desse
ponto, e isso me preocupava. Não tinha mais tanta certeza de que
seria útil.
— Nossos mundos — comecei. — são divididos entre o lado da
Luz e o das Trevas — o que muitos definem como o Bem e o
Mal. E você, Ariana, pertence ao segundo grupo — declarei,
sentindo um peso deixar meu corpo ao pronunciar a primeira, e
mais grave, omissão.—Anciãos das Trevas, que são homens que
ajudam a manter o nosso lado, me procuraram pouco tempo
depois de minha morte, há uns dois anos atrás, alegando terem
uma missão que somente eu seria capaz de realizar. Após me
contarem o que esperavam que eu fizesse, tentei negar. Tentei
mesmo. Mas você não os conhece. Não há nada que se possa
fazer contra eles. Uma vez que o escolhem, não há saída.
“Minha missão inicial era Crystal. Eu deveria matá-la. Para
isso, tentei me aproximar, entrar no seu círculo de amigos. Mas
ela é durona. No momento em que percebeu o que eu estava
fazendo, jurou acabar comigo. E quase fez isso. Foi Bronx quem a
impediu. Conversou com ela até que Crystal aceitou minha ida,
contanto que eu nunca mais voltasse. Pensei, então, que tudo
estava acabado, que os Anciãos me deixariam em paz.”
Ri com pesar, focando o chão. Feridas antigas e novas pareciam
se abrir em meu peito. Era a primeira vez que contava tudo — ou
quase tudo — a alguém.
— Mas então veio você — continuei, fitando Ariana. — E tudo
piorou. Meu Deus. Foi aí que percebi que toda a missão com
Crystal, tudo o que fizera para tentar feri-la, não era a verdadeira
razão de me quererem. Aquilo era um treinamento para lidar com
você. Você era a verdadeira missão, Ariana. Uma Invocadora das
Trevas com luz demais no coração.
Ela se remexeu, parecendo incomodada pela primeira vez.
Perguntei-me se não estava me alongando demais. A resposta
poderia ser mais simples. Eu sabia disso. Mas não queria que ela
achasse que fizera tudo sem pensar nas consequências ou pessoas
envolvidas. Por alguma razão, não queria que Ariana me visse
como alguém que visualiza seres humanos como peças de um
jogo — como os Anciãos faziam.
— Por milhares de anos, Invocadoras da Luz e das Trevas
ergueram seus exércitos e lutaram. Mas você nunca faria isso —
abanei a cabeça. — Não sem a ajuda de alguém. Você nunca
sucumbiria à sua própria escuridão — não conseguia imaginar
como aquilo poderia sair de uma maneira fluída de mim. Queria
gritar as palavras. Cuspir tudo o que havia guardado desde minha
morte. — Por isso me mandaram. Eu deveria me aproximar de
você, fazer com que confiasse em mim a ponto de conseguir lhe
transformar na Invocadora que é. Em algum lugar no seu interior,
a escuridão comanda. Você sabe disso. Pode senti-la se movendo
por você. Sei que pode— olhei para o chão, tentando disfarçar o
sorriso que se formou em meu rosto ao pronunciar as palavras
seguintes. — Você se apaixonou por mim — levantei o olhar,
mas Ariana desviara o seu. — Tornou tudo mais fácil.
Encontrava-se tão vulnerável a minha presença que faria
praticamente qualquer coisa se eu lhe dissesse que essa era
correta. Eu estava conseguindo realizar minha missão, levá-la
para as Trevas. Você matou um cara, e desejava vingança de
Bronx. Vingança física. Eu nunca poderia obrigá-la a gostar do
que fez. Compreende isso? Posso ter influenciado em certos
acontecimentos, mas não em seus sentimentos.
Ela piscou algumas vezes, olhando-me incrédula. Talvez eu
houvesse passado dos limites com minhas últimas afirmações.
Mas como poderia contê-las, se eram verdade? Seria melhor que
Ariana lidasse com isso agora do que posteriormente, quando
tudo poderia estar pior.
— O quê?— murmurou ela. — Está dizendo que... está
realmente dizendo que gostei de matar aquele garoto?
— Precisa admitir que gostou —respondi, firme.
— Não. Você está errado — ela não sabia se respirava ou
lançava as palavras sobre mim. Suas mãos começaram a tremer e
Ariana agarrou o tampão de madeira, em uma tentativa inútil de
controlá-las.
— Estou? — minha voz preencheu-se de raiva. — Eu estava
quase completando minha missão. Se você tivesse acabado com
Bronx, ou com qualquer outro, teria certeza de quem é. Eu não
mudei você, Ariana, apenas lhe mostrei um pedaço de sua alma
que estava escondido.
— Nada estava escondido de mim, seu babaca — gritou ela,
batendo nas coxas. — Eu não gostei de matar aquele garoto. Foi
um dos piores momentos de minha vida. Como pode pensar que
tive prazer em fazer aquilo?
Fitei-a. Ariana parecia genuinamente revoltada comigo, e não
em negação, como eu esperava.
— Um dos piores momentos de sua vida? — perguntei,
confuso. — Não seria mais como um momento de libertação? —
ao menos, era isso que os Anciãos haviam dito. “As Trevas, que
agora se encontram subjugadas pela Luz, deverão ser libertas
quando o espírito da menina descobrir sua verdadeira vocação”.
Em outras palavras, Ariana deveria ter gostado de matar aquele
menino, não abominado o ato.
— Está se ouvindo, Max? — era perceptível o desgosto em sua
voz. — Parece um lunático disparando teorias absurdas.
— Você não tem ideia do que é absurdo. Tudo o que estou lhe
dizendo é a mais pura verdade. Mas confesso que estranho sua
rebeldia. Não era para estar assim.
— Não era pra...? Do que está falando?
Minha cabeça girava. Havia, de fato, previsto algo ruim para
esta noite — Ariana fora enganada por mim, era certo que
guardaria algum rancor —, apenas não previra que outra parte
poderia dar errado. Uma crucial. Ela precisava admitir ter gostado
de tirar aquela vida, caso contrário, minha missão não estaria
completa. Eu ainda teria um dever para com ela e os Anciãos.
— Por que fez isso? — perguntou. Seu lábio inferior tremia.
Dei de ombros.
— Não tive escolha.
— Todos temos escolha.
— Não nós. E se pensa assim, então já está morta.
Ela me encarou por alguns segundos, e pude ver estampado em
seus olhos a confusão interna. O medo. A coragem. A repulsa. A
atração. Ela era, naquele momento, todo par e oposto em um
único ser. A fusão da verdade e da mentira; do concreto e
inconcreto. Poderia eu, mais tarde, afirmar que fora nesse
momento que Ariana começou a se transformar, a deixar de ser
quem era. Mas eu não poderia — e muito menos ela — afirmar
isso com convicção.
Ariana deu alguns passos em minha direção, fitando-me com
uma curiosidade até então inexistente. Estudava-me como se um
novo ser houvesse brotado diante de seus olhos. E, pensava eu,
aquilo era exatamente o que se passava por sua cabeça. Ela não
tinha ideia de quem era o rapaz parado à sua frente. Não mais. O
rosto para o qual olhava, agora, pertencia a alguém desconhecido,
ainda que não compreendesse isso muito bem. E dependeria
apenas dela se gostaria de conhecê-lo.
— Como pôde olhar para mim esse tempo todo, e fingir estar
apaixonado?
Não sabia como responder àquilo. Também, não tinha certeza
se ela realmente queria uma resposta. Poderia dizer que não tivera
escolha, já que essa era a melhor desculpa. Mas não me parecia
certo. Não era a verdade. Em nenhum momento os Anciãos
disseram que eu teria de fazer ela se apaixonar por mim, do
mesmo modo que eu nunca tentara fazer isso. Simplesmente...
aconteceu. E admito ter me aproveitado de tal coisa.
— Desculpe-me— foi tudo que consegui dizer, todo o resto
ficou entalado em minha garganta.
Ariana observou-me por alguns segundos.
— Não — asseverou.
— O quê?
— Eu não desculpo você. Por favor, não fale mais comigo —
disse, passando por mim e caminhando para a porta.
Sentia como se houvesse acabado de tomar um banho de água
fria. Aquele era o veredicto final. Ela me queria longe. Como teria
ficado feliz de ouvir isso quinze minutos atrás, quando ainda
pensava que Ariana encontrara seu lado obscuro e tudo acabaria
de uma vez por todas!Ela vai governar à mão de ferro como o
esperado, pensava eu, sentirá prazer ao punir os errados e poder
ao torturar os corretos. Mas nada disso parecia possível agora. E
não me deixariam ir embora até que conseguisse persuadi-la.
Talvez ela precisasse matar mais pessoas? Talvez necessitasse
sentir aquilo mais de uma vez para, então, perceber que era
atraída por tal ação. Fosse qual fosse o caso, para minha
infelicidade, minha missão ainda não estava completa. Precisaria
continuar a influenciá-la, mesmo sabendo o quão difícil seria após
ter admitido meu verdadeiro propósito ao contatá-la.
Fiquei na sala mais alguns segundos, absorvendo o silêncio que
passou a imperar quando toda a discussão acabou. Como tudo
estava confuso. Como as coisas pareciam erradas. Sentia-me um
inútil por não conseguir atingir meus objetivos. Porém, mais do
que isso, sentia-me preso por ainda ter de servir aos Anciãos.
Como podia ter chegado tão longe, apenas para ver minha
liberdade pousar sobre meus olhos e distanciar-se ainda mais? Se
ao menos houvesse uma maneira de incutir em Ariana a maldade
que queriam presente nela.
Afastei qualquer ideia idiota — ainda que talvez eficiente — de
obrigá-la a machucar mais pessoas. Isso apenas a deixaria com
mais raiva e eu não sabia até que ponto estava seguro se
começasse a incitá-la. Quem sabe ela não planejava, agora,
enquanto caminhava até a sala, uma maneira de acabar comigo?
Talvez eu estivesse morto pela manhã, jogado no lixão das almas
para perdurar, mas não apodrecer, enquanto a humanidade
continuava seu curso destrutivo. Seria um ponto final para uma
vida de reticências.
Passei pela porta, atordoado pela confusão que apenas crescia
em minha mente, mirando a esguia figura a alguns passos de
mim. Os cabelos ruivos e aparados. A pele branca como algodão.
Meu coração pulou quando percebi o que estava acontecendo. De
onde estavam saindo tantos? Pareciam brotar do chão. Antes que
Ariana percebesse a aproximação, o rapaz enlaçou seu pescoço.
Um nó de desespero se formou em minha garganta e disparei em
direção aos dois. De repente, Bronx estava ao seu lado, jogando-a
para longe do ruivo que, surpreso de uma forma dramática,
cambaleou cegamente em minha direção, caindo no chão quando,
em um ato calculado, quebrei-lhe o pescoço. Estava ofegante com
a reviravolta. Aquele fora um ataque preparado para ser
executado em uma casa cheia de pessoas que poderiam evitá-lo, e,
ainda assim, o rapaz parecia não ter pensado ou se importado com
isso. Havia sido detido com tanta facilidade que me perguntava o
que diabos se passara em sua cabeça ao decidir fazer tal coisa.
Pensava mesmo que teria alguma chance?
— Que merda é essa? — a voz estridente de Crystal irrompeu
em meio à sala. O zumbido voltara a meus ouvidos.— Aquilo era
um Renácito — gritou ela. — Eu não o invoquei, e suspeito que
você também não — completou, apontando para Ariana, que
franziu a testa, confusa.
— É o nome que damos aos ressuscitados — disse, sentindo-
me no dever de saciar suas dúvidas, apesar da recente briga. —
Crystal pode trazer de volta os da Luz, e você, bem, você sabe.
— Espera —Ariana se aproximou, estudando-me, como se
percebesse, apenas então, algo que estivera à sua frente o tempo
todo. — Se eu consegui trazê-lo de volta, isso quer dizer que...
— Exato — cortei-a, confirmando seu pensamento. — Se eu
houvesse contado antes que você só podia ressuscitar pessoas do
lado das Trevas, como acha que eu teria chegado tão longe? —
perguntei, sem conseguir evitar o tom de provocação. Seus olhos
pareciam inchar. Havia neles uma raiva genuína direcionada a
mim. Raiva essa que Ariana nunca seria capaz de expressar em
palavras. Era mais do que desgosto por minha pessoa — ou
mesmo minhas ações. Era uma paixão transformada em ódio.
— Eu deveria matar você — disse ela, o lábio superior
tremendo ao pronunciar as palavras que nem mesmo eu acreditava
serem verdadeiras.
— Deveria mesmo — ressaltou Crystal, pulando o corpo no
meio da sala e chegando ao nosso lado. Parecia mais madura do
que me lembrava. Os olhos agora traziam uma dureza
característica dos seres com os quais convivíamos. — É uma pena
que não possa fazer isso.
Ariana cruzou os braços, assumindo uma postura defensiva.
— E por que não? Max disse que alguém ressuscitado pode ser
morto normalmente.
— Não pode matá-lo por que a traiu. Em que século pensa que
estamos? — retorquiu Bronx.
Crystal balançou a cabeça.
— Não foi isso que eu quis dizer — esclareceu. — Ela não
pode matá-lo não por que é errado, mas sim por que o escolheu.
— Eu o escolhi?
— Para ser seu Forti — disse, olhando-nos como se fôssemos
completos idiotas. Eu não tinha ideia de sobre o que ela falava.
Após tanto tempo sabendo sobre tudo e todos que me cercavam, a
simples menção de existirem coisas e conceitos desconhecidos
por mim fazia com que me sentisse vulnerável. — Seu protetor.
Você criou uma ligação com ele. Escolheu-o para ser a pessoa
que vai acompanhá-la durante sua jornada.
— Isso quer dizer que Ariana está, de alguma forma, ligada a
mim de uma maneira que não a permite me afastar? —perguntei,
sentindo possuir nas mãos um trunfo maior do que o esperado.
— É exatamente o que estou falando. Ela pode odiar você, e
você pode ser um idiota, mas não poderiam ficar longe um do
outro nem se quisessem. Isso poderia vir a custar suas vidas. É
melhor que saibam disso.
— Como sabe tudo isso? — inquiriu Ariana, olhando-me de
esguelha por um segundo.
— Está no livro — respondeu Crystal. — Não está explicado
detalhadamente, mas acreditem no que digo. Estou tentando
ajudar.
— Não me lembro de tê-lo escolhido para nada. Ainda mais
para ser meu acompanhante.
Crystal meneou a cabeça.
— Foi uma escolha inconsciente. Sua parte sobrenatural sabia
que cada Invocadora possui um Forti. E você escolheu o seu.
Houve um pequeno barulho seguido por essa frase, que penso
ter sido Ariana a engasgar um pouco. Seu olhar encontrou o meu
e, naquela hora, não havia qualquer resquício do que sentira por
mim, apenas um desprezo imensurável. Ao menos disso, eu sabia
ser digno.
— Desculpe se isso a ofende, mas o fato de Max ser seu Forti é
a menor de nossas preocupações no momento — disse Bronx. —
Os garotos que a atacaram hoje, tanto o daqui quanto os do
shopping, eram todos Renácitos. Porém, isso seria impossível, já
que são as únicas capazes de invocá-los. E todos sabemos que
nenhuma de vocês o fez.
— O que está sugerindo? — perguntou ela.
— Penso que algo extremamente errado esteja acontecendo.
Podemos não entender muito sobre isso ainda, mas sabemos o
suficiente para reconhecer padrões. E isso não se aplica a eles.
— Padrões?
Bronx assentiu.
— Tudo que sabemos sobre as Invocadoras até agora sugere
que são as únicas a conseguirem ressuscitar alguém. Esse é o
padrão. Agora, se isso não estiver acontecendo, se, por alguma
razão, estivermos lidando com algo diferente disso, então nosso
problema é uma anormalidade. E dificilmente existem respostas
para anormalidades.
— Seja mais direto, Bronx — reclamou Crystal. — A última
coisa de que precisamos agora é você complicando as palavras —
ela se voltou para Ariana. — O que ele quer dizer é que, muito
possivelmente, pela primeira vez, possamos ter de enfrentar algo
com o mesmo poder que nós. Algo que, por razões
desconhecidas, também consegue invocar os mortos e trazê-los de
volta à vida.
— Então o que faremos?
— Por enquanto? — Crystal suspirou. — Nada. Preciso dormir.
— O quê? Não pode estar falando sério. Como vai conseguir
dormir depois disso? — questionou Ariana, apontando para o
corpo que jazia aos nossos pés. A bochecha pressionada contra o
chão frio e a boca entreaberta davam a impressão de que estava
apenas tirando um cochilo. Sentia que a qualquer momento ele
levantaria, dizendo alguma saudação e juntando-se a nós.
— Ele não é o primeiro Renácito que vejo, Ariana. E o fato dele
ter lhe atacado não muda nem um pouco meu cansaço. Você vai
dormir comigo. Max com Bronx. Seus amigos podem ficar com o
quarto que está sobrando. Espero que não estejam assustados
demais para tentar uma fuga agora à noite. Existem coisas piores
lá fora — Crystal levantou um sorriso. — Boa noite.
E com isso ela saiu marchando, pulando com naturalidade o
garoto morto em meio ao piso, e seguindo em direção ao corredor.
Como mudara! Estava madura. Não conseguia compreender como
Bronx alcançara tal transformação. Quando conheci Crystal, ela
não era nada mais que uma criança assustada, ainda que cheia de
promessas de morte. Mas agora? Agora realmente era a
Invocadora que tentara interpretar um ano antes.
Capítulo 19
Ariana
Estou correndo o mais rápido que posso, forçando minhas
pernas ao máximo, mas isso não parece ser o suficiente. Um coro
de vozes me segue, gritando meu nome, gritando por ajuda. A rua
está escura. Não consigo ver mais do que três metros à minha
frente, a distância do poste mais perto. Olho para trás. Não
consigo ver onde estão, apesar de saber que estão perto. Viro em
uma casa branca e sigo correndo até ultrapassar o quintal,
chegando a outra rua. Essa, por sua vez, completamente
iluminada, me deixa ainda mais aterrorizada. A qualquer
momento aquelas vozes me alcançarão, e não terei onde me
esconder.
Acordar. Preciso acordar.
Sentei na cama, suando, sem muita certeza sobre ter gritado ou
não. As roupas de frio que colocara depois de tomar banho
certamente não estavam confortáveis. Grudavam em meus braços
e pernas, dando-me a sensação de estar sendo amarrada, ou posta
em um saco. O quarto estava completamente escuro, mas sabia
pelo som da respiração de Crystal que ela se encontrava ao meu
lado. Tateei até sentir sua cabeça, então comecei a cutucá-la.
— O que foi? — resmungou ela, remexendo-se sob as cobertas.
— A porcaria do Renácito levantou?
— O quê?! — quase pulei da cama. — Não. Credo. Não. Eu
tive um sonho.
— Nosso tipo de sonho, ou o de todos?
— O nosso — respondi. — Não tive muitos sonhos desde que
Max apareceu, apesar dele ter me dito que aconteceria o contrário.
Eu meio que conseguia me controlar para não os ter quando não
queria— o que geralmente era o tempo todo. Mas não consegui
controlar esse. Foi como se não tivesse força alguma para impedi-
lo. E havia tantos deles. Por todos os lados. Não os vi, mas ouvi.
Ela suspirou.
— Você sabe muito pouco, Ariana. Seria bom para você se
tratasse de se informar sobre sua espécie, seus problemas. Como
pretende sobreviver se não sabe nem mesmo como se proteger?
Precisou ser salva as duas vezes em que foi atacada, e me
pergunto se algum dia não precisará — fez uma pausa. — Olha,
isso também é um efeito dos Fortis. Se eles não estão em sintonia
com você, se estão de mal um com o outro, isso enfraquece
ambos. É a forma que a natureza encontrou para nos obrigar a
sempre estarmos em paz com quem convivemos. Talvez você não
seja capaz de controlar os sonhos até estarem de bem. Quando eu
brigo com Bronx, começo a ter pesadelos novamente. Só que ele
também sente isso; não consegue dormir. Então vem até o meu
quarto e nós ficamos juntos, um tentando evitar que o outro fique
mal, mesmo estando bravos. Talvez você tenha que fazer o
mesmo com Max.
— Você não entende — podia sentir meu coração martelando
no peito. — Não posso ficar perto dele, por que sei que se ele
pedir, confiarei nele novamente. E não posso fazer isso. Não
depois do modo como mentiu para mim.
— Por que não? Ele te protegeu, Ariana. Ficou ao seu lado. Se
Max quisesse algum mal para você teria a deixado morrer em
qualquer uma das vezes em que se arriscou para salvá-la.
Agradeci pela luz estar apagada, caso contrário, Crystal teria
percebido a dúvida que surgira em meu rosto.
— Por que está defendendo ele? Não queria matá-lo quando
esteve aqui a primeira vez?
— Isso era antes de Bronx me contar como são as coisas do
outro lado. Acredite, se Max disse não ter escolha, então estava
sendo sincero.
— É? Bem, então é realmente uma pena que sinceridade seja
uma das últimas coisas que espero dele.
Capítulo 20
Ariana
Quisera eu poder ter continuado naquela cama, envolta em três
cobertas e dezenas de memórias forjadas para afastar o que
realmente tentava dominar meu corpo e mente. Por que não
podemos simplesmente escolher do que nos lembramos? Por que
não podemos ordenar para que tal memória ou pensamento nunca
mais venha a cruzar nossa mente? Somos culpados por nossos
atos e mais tarde penalizados pelos pensamentos.
Sentei-me à mesa. Pãezinhos de queijo que pareciam ter
acabado de sair do forno estavam postos no centro, em uma
grande tigela. Ao lado, três jarras vermelhas se enfileiravam: suco
de laranja, leite e café. Outras coisas se encontravam espalhadas
sobre a toalha. Pão francês, manteiga, requeijão, frutas. Para eu
que, quando sozinha em casa, contentava-me com uma torrada
com manteiga, aquele café da manhã era praticamente uma
dádiva.
Aos poucos, os outros foram acordando. Esperei até que pelo
menos metade de nós houvesse sentado à mesa para começar a
comer. Estava passando geleia em um biscoito, com Giovane
colocando-se na cadeira ao meu lado, quando Bronx saiu de seu
quarto e, sem dizer uma palavra, deixou a casa. Todos, exceto
Maia, que continuava em seu quarto, tomaram café. Tão quietos
que era quase possível ouvir a respiração da garota, vinda do
quarto.
Era impossível dizer quem estava mais absorto na mesa.
Metade dos olhares eram perdidos, e a outra metade, dormentes.
Apenas Lucas parecia atento. Possuía em cada movimento seu
uma parcela da inquietação que o consumia. Sua mão derrubava a
faca que tentava segurar; o cotovelo havia batido tantas vezes na
xícara que me perguntava como essa ainda estava cheia. Queria
aproximar-me, dizer algo para acalmá-lo. Afinal, ele havia
presenciado um assassinato. E, apesar de a maioria das pessoas na
casa saber que aquilo não era nada, e que o garoto já estava, de
todo modo, morto, Lucas não sabia disso.
Os minutos se alongaram indeterminadamente até que, com a
voz embargada, ele finalmente resolveu dar início a seus
questionamentos.
— Até quando ficaremos aqui fingindo que nada aconteceu? —
perguntou, a voz grave.
Ninguém respondeu. Ninguém fez menção de ter ouvido a
pergunta. Copos e talheres eram encarados com tamanha
intensidade que não seria surpresa se algum deles tomasse vida,
saltando da mesa e correndo para longe daquela situação, das
perguntas que eu sabia estarem por vir.
— Eu não vou...
— Não há o que explicar — cortei-o, fazendo com que todos os
pares de olhos presentes se voltassem em minha direção. — Você
pensa que viu algo, mas não viu.
Ele riu, incrédulo.
— Não vi?
— Não. Não viu.
— E o que acha que vi, Ari?
— Algo que não compreende.
Ele não respondeu.
— Ariana — chamou Crystal, abanando a cabeça quando
levantei meu olhar. Ela sabia, tanto quanto eu, o perigo que seria
envolver Lucas, Maia e Giovane na história. Não fora necessário
um olhar mais significativo para que eu soubesse que ela
concordava comigo em um ponto: eles deveriam ir embora. —
Precisamos acabar esse café rapidamente, e então decidir o que
faremos.
— Não há o que decidir sobre meus amigos. Eles nos deixarão
ao primeiro raio de sol.
— Não irei embora sem uma explicação — protestou Lucas. —
Você me deve isso pela noite anterior. Tem sorte de eu não ter
chamado a polícia.
— Não. O que tenho é sua amizade. E é por essa mesma razão
que irá embora sem olhar para trás ou fazer perguntas. Me deve
isso pelos anos que passamos juntos.
— Não pode estar falando sério.
— Sinto muito, Lucas. Sinto mesmo.
— Besteira. Faz dias que está estranha. E agora isso. O que
essas pessoas estão fazendo com você?
— Chega, rapaz— interveio Crystal. — Não fizemos nada a ela
e nem faremos a você. Como Ariana já disse, você presenciou
algo que não compreende. E pelo seu próprio bem, deve fazer o
que pedimos e ir embora. Agora, vamos ao que interessa —
sondou a mesa. — Onde está Bronx?
— Saiu há alguns minutos— falei.
— Bem, não podemos começar uma reunião sem ele. Max? —
ela arqueou as sobrancelhas. Ele concordou com um gesto,
levantando-se e passando pela porta tão rapidamente quanto o
outro fizera minutos atrás.
Capítulo 21
Max
De dia era possível observar melhor o lugar. Não mudara muito
desde minha última visita. A grama em frente à casa parecia um
pouco mais seca, e a árvore, que antes nos proporcionava uma fria
sombra, havia sido cortada. Do resto, possuía o mesmo cheiro de
grama de antes, o mesmo vento frio e uivante a atravessar os
estreitos das casas. Cada fenda na calçada, cada construção que
passava era uma memória dolorosa e nostálgica. Lembrava-me de
tudo com vivacidade, como se houvesse deixado aquele lugar no
dia, e não ano, anterior.Eram muitos os acontecimentos que
haviam sucedido àquele,nem de longe mais importantes. Fora
naquela casa que minha segunda história começara. Naquele
lugar, eu havia descoberto quem estava predestinado a ser.
Atravessei a rua correndo, mirando a figura de Bronx ao longe,
um ponto cor de mel em meio a um quadrado verde ainda à
venda. Ele se virou para mim quando me aproximei, limitando-se
a um aceno de cabeça. Parecia não ter mudado. Preferia que isso
fosse verdade.
— O que está fazendo aqui fora? — perguntei, chegando ao seu
lado. Vi, então, a cova aberta à sua frente. O tamanho preciso para
enterrar alguém.— É para o Renácito de ontem?
Ele concordou.
— Arrastei-o até aqui, mas de alguma forma, quando fui jogá-
lo dentro da cova, havia sumido.
Levantei o olhar, encarando-o com descrença.
— Vai dizer que não sabe? — questionei-o.
— Não sei o quê?
— Os corpos dos Renácitos mortos somem algumas horas após
suas mortes. Pensei que seus Anciãos haviam ensinado isso.
Bronx suspirou, franzindo os lábios.
— Não. Eles não ensinaram. Na verdade, não ensinaram quase
nada. Crystal e eu descobrimos a maioria das coisas por nós
mesmos ou pelo livro que peguei na biblioteca aquele dia. Azriel
também foi uma boa ajuda, uma ou duas vezes, quando estávamos
encrencados com algum assunto, sem saber o que fazer.
Olhei-o, arqueando um sorriso com a súbita ideia que sugira em
minha mente. Como não pensara naquilo antes?
— Mas é claro. Azriel. Ele é nossa resposta. Podemos não saber
quem ou o que está invocando os Renácitos, mas ele
provavelmente sabe — disse.
— Pensei que vocês dois não estivem em uma relação muito
boa — comentou Bronx.
Dei de ombros.
— Isso não importa agora. Sei que ele não nos negaria uma
ajuda.Então, vamos fazer isso ou o quê?
Capítulo 22
Ariana
Estava conversando com Lucas quando Bronx e Max voltaram,
alguns minutos depois. Ambos possuíam o rosto pálido e a
frustração estampada em suas expressões. Caminharam
rapidamente em nossa direção, suspirando ao debruçarem-se
sobre a mesa. Algo havia acontecido. Bronx aspirou o ar, focando
as palmas abertas das mãos. Havia nele um ar de insegurança que,
lentamente, parecia caminhar em nossa direção, envolvendo-nos
em uma teia. Ele levantou a cabeça, pedindo a Lucas que se
retirasse da cozinha, e o garoto fez o que fora pedido, deixando-
nos para ir atrás de Maia, que ainda dormia.
— A situação é a seguinte: Azriel certamente possui as
respostas que procuramos, e se conseguirmos falar com ele, então
grande parte de nossos problemas estarão resolvidos. A questão é
que tentamos contatá-lo, e não recebemos nada em troca. Ele não
apareceu ou mandou alguém em seu lugar para comunicar algo.
Talvez não tenha ouvido nosso chamado, mas duvido disso. Acho
que virá quando encontrar tempo — disse Bronx.
— Até lá devemos nos proteger. Sei que podem achar estranha
a ideia, já que vocês supostamente deveriam ser inimigas, mas a
melhor maneira de nos protegermos é unindo forças. Bronx me
contou sobre os ataques, Crystal. Sei que não é apenas Ariana
quem vem sofrendo ameaças. Então, se concordarem,
pretendemos levá-las para a cidade mais próxima, em busca de
um lugar seguro para ficarmos até descobrirmos o que fazer —
completou Max.
— Esperem — disse, um pouco confusa. — Quem é Azriel?
— Nosso amigo anjo — respondeu Bronx, e lembrei-me de
Max tê-lo mencionado alguma vez.
— Deixe me ver se entendi. Vocês querem que façamos as
malas para ir para algum lugar incerto, enquanto esperamos uma
resposta que pode ou não chegar? — questionou Crystal.
— Não é bem assim, e você sabe. Conhece Azriel. Se ele não
veio, existe uma explicação. Posso assegurar que o veremos em
breve. Enquanto isso, podemos encontrar um lugar longe daqui
para ficar. Não é incerto.
— Mas também não é certo — retorquiu ela. — Não temos
dinheiro para bancar um hotel. E ainda assim, se tivéssemos,
seríamos facilmente encontrados. Iriam nos rastrear até lá com a
mesma facilidade que o fizeram até aqui — de repente, Crystal
parecia alarmada, como se um medo profundo se abrisse em seu
peito. Ela se virou para mim, os olhos arregalados. — Sabia que
fugi de casa por isso? Eles me encontraram lá. Por céus! Tinha
um no meio do quarto de minha mãe. Pensei que vindo para cá
estaria segura, mas está claro que isso foi um engano.
— Pode apenas confiar em mim? — pediu Bronx, fitando a
amiga com diminuta decepção. — Encontrarei um lugar para nós.
E prometo que farei de tudo para não nos acharem.
Crystal cedeu, parecendo cansada. Ela havia fugido de casa?
Não compreendia como conseguira tal feito. Deixara para trás
toda a família. Mãe, pai, talvez irmãos. Estava claro que o ato
havia sido uma forma de proteção não apenas para ela, mas
também para aqueles a quem amava. Contudo, a simples ideia de
deixar tais pessoas para trás, ou mesmo apagá-las de minha vida,
fazia meu peito se comprimir, como se eles não fossem somente
minha família e amigos, mas também partes de meu ser. Deixá-
los para trás seria como... abandonar uma parte de mim mesma.
Mas Crystal não parecia pensar assim.
Durante os minutos que se seguiram, decidimos que partiríamos
em algumas horas. Até lá, Lucas, Maia e Giovane estariam bem
longe. E, para minha felicidade, seguros.Quando toda a discussão
acabou, e Crystal prontificou que não passaríamos de jeito algum
pegar minhas roupas, deitei o queixo sobre a mesa, desistindo de
ganhar a discussão. Ela estava certa. Eu poderia emprestar suas
roupas. Ir para a casa de Maia seria apenas uma maneira de levar
os Renácitos até lá, e não queríamos fazer isso.
Com tudo resolvido, restara-me apenas esperar a hora de agir,
ignorando os olhares acusadores de Maia que, desde o dia
anterior, não me dirigira uma palavra. Ela estava sentada no
último assento do sofá — o lugar mais longe que encontrara de
mim —, lançando-me olhares que percorriam meu corpo dos pés
à cabeça, e julgavam com uma obstinação silenciosa o que parecia
ser minha alma. Estava clara a sua súbita repulsa. A seus olhos eu
era, provavelmente, uma louca desvairada, que aceitava
assassinos como o mais belo tipo de amigos que se poderia
encontrar.
Crystal, enfim, anunciou que a hora havia chegado. Ambos os
grupos — o que voltaria para o calor de suas casas, e o que
seguiria para uma jornada desconhecida— estavam com suas
malas arrumadas no meio da sala, em um silêncio que poderia
significar qualquer coisa, exceto entusiasmo.
— Acho que não preciso alertar para que não contem o que
viram para ninguém, certo? — questionou Crystal, colocando em
cada palavra proferida uma quantidade suficientemente grande de
ameaça, para que nenhum dos três, na mais remota hipótese,
pensasse em nos entregar.
Não houve despedidas calorosas, apertos de mão ou palavras
coloridas com uma felicidade inexistente. Lucas levantou-se do
sofá, puxando Maia consigo e acenando em minha direção, como
se dissesse “obrigado por tudo até aqui. Tenha uma boa vida”.
Senti meu coração murchar. Como era possível tê-lo perdido de
uma forma tão boba? E todos aqueles anos, tudo o que havíamos
passado? Como podiam abandonar aquelas lembranças com a
mesma facilidade com que caminhavam para aquela porta?
Mas tudo pareceu se ajeitar, ainda que de um modo errado,
quando Giovane me abraçou. O mesmo Giovane que não me
conhecia há mais que alguns dias. O único que se dignara a
despedir-se com um abraço. Uma promessa de que, nem mesmo o
mais estranho dos acontecimentos, era capaz de acabar com a
melhor das memórias. Porém, minha pequena fantasia ruiu ao
ouvir aquelas palavras segredadas a meu ouvido:
— Não irei embora com eles. Não a deixarei aqui sozinha.
Suguei o ar, empurrando-o para longe. Não iria embora? Ele
precisava ir embora. Lançando um olhar para minha mão sobre
seu ombro, soltei-o, percebendo a força com a qual o tinha
pressionado.
— Nem pensar — disse, exasperada. — Você irá embora.
Ele arqueou um sorriso zombeteiro, meneando a cabeça.
— Não. Vou ficar aqui. Já disse.
Não sabia o que fazer. Lancei um olhar para Crystal,
implorando para que convencesse Giovane a ir com os outros.
Mas a garota, que até poucos minutos atrás ditava as ordens na
casa, apenas deu de ombros, dizendo em uma mensagem labial
que o amigo era meu, e, portanto, o problema também. Ótimo,
pensei. Além de possuir dois amigos que nunca mais olhariam
para mim eu ganhara, de brinde, um que era tão louco quanto eu.
Era o pacote completo. Me vendo sem argumentos ou outras
alternativas, precisei concordar com a ideia de Giovane:
— Certo. Pode vir — disse, encarando as pessoas à minha
volta. —, já que ninguém expressou suas opiniões quanto a isso.
Mas que fique bem claro que...
Estava prestes a me isentar da culpa quando Lucas me cortou:
— Perdeu a cabeça? Giovane não pode ir com vocês — objetou
ele, virando-se para nós.
— Sei me cuidar, primo — Giovane acenou com a cabeça para
a porta. — Vá, e quando chegar lá, diga que precisei ajudar um
amigo. Não vou demorar para voltar. Prometo.
— Você só pode estar brincando. Eles mataram uma pessoa.
Compreende isso, não? Como posso deixar você ficar aqui?
— Confio neles quando dizem que não compreendemos o que
aconteceu — afirmou Giovane, deixando claro que, querendo ou
não, o primo teria de fazer o que era pedido.
Lucas lançou um olhar demorado sobre mim, e senti-o
avaliando cada palavra que escutara, tentando entender o que
acontecera e o que viria a acontecer. Naquele momento, penso
que nossa dúvida era a mesma: será que um dia, ainda que
distante, voltaríamos a nos ver?
Somente quando entrei no carro, sentando-me entre Crystal e
Giovane, é que percebi o tamanho de minha loucura. O que,
exatamente, estava acontecendo? Essa era a pergunta da vez. O
sussurro incessante em minha mente. O medo me levara a
concordar com estranhos, e agora eu seguia para algum lugar,
fazendo o contrário do que acreditava e deixando família e
amigos para trás, assim como Crystal fizera. Quem sabe, isso não
era algo comum para Invocadoras.
Mas quem poderia me culpar? Existiam pessoas atrás de mim.
Pessoas que, por alguma razão, me queriam morta. Estava claro
que minha melhor opção era fugir com um reforço. Quem, em sã
consciência, me pediria para ficar em casa, andando colada às
paredes e com os olhos atentos, tendo como ajuda a única pessoa
da qual me queria ver livre? Não. Eu havia feito a escolha certa.
Fitando o céu azul claro salpicado pelas nuvens, quase
acreditava que o dia anterior não havia acontecido. Poderia dizer
que estava a caminho de uma reserva com meus amigos. O carro
cheio de barracas e travesseiros, enquanto com os vidros abertos,
entoávamos os hits da estação. Quando saímos da cidade,
tomando a pista como nossa companheira de viagem, decidi que
queria saber mais. Com isso em mente, pedi a Crystal que me
desse o livro, não com uma voz questionadora, mas sim
imperativa. Sabia possuir o mesmo direito que ela sobre a peça, e
faria questão de deixar isso claro.
Com o objeto em mãos, passei algum tempo estudando-o. A
capa azul da qual me recordava, agora sem pó, parecia mais nova
do que deveria ser. Para um livro passado de geração em geração,
por tempo indeterminado, este parecia mais do que bem
conservado. Parecia novo. Com a expectativa dançando em meu
estômago, abri-o na primeira página.
Guia Para Invocadoras
Capítulo um: Se Descobrindo
Há centenas de anos, a natureza deu o poder à uma criança: o
homem. Imprudente e egoísta, ele tinha o poder de se reproduzir
e conquistar lugares como nenhum outro ser vivo jamais tivera.
Durante séculos, seus descendentes se clamaram fortes e
poderosos, sem saber que, na verdade, eram tão insignificantes se
comparados ao seu redor que, as únicas coisas vivas capazes de
se vangloriarem com seus atos, eram eles mesmos.Mal sabiam
que existia algo maior que eles. Um mundo completamente
diferente que, devido ao seu egocentrismo, os foi escondido.Nesse
mundo, habitam diferentes criaturas com diferentes dons e,
certamente, diferentes deveres. Cada uma conhece seu lugar, e
este não pode ser tomado. Ressaltando isso, saiba que ninguém,
neste ou em outro mundo, seria capaz de ocupar sua posição, de
modo que, de bom grado ou não, resta-lhe apenas entender as
palavras aqui contidas, e não questionar seu destino.
O texto seguia por mais dez páginas, das quais li apenas
algumas linhas, já que não trazia nada de novo para mim. Eram as
mesmas informações que Max me passara: o transporte, consolo,
e outras coisas relacionadas às almas. Ao menos, sobre isso, ele
havia sido sincero. Nenhuma informação sobre meus deveres para
com os mortos fora inventada — o que era uma surpresa.
Continuei a leitura:
Capítulo dois: Controlando Os Sonhos
Os sonhos são a maneira que as almas encontram de lhe
localizar e pedir ajuda. Quando alguém morre, dependerá apenas
das circunstâncias se essa pessoa estará ciente, ou não, do
acontecido. Se a resposta for positiva, então é a alma que vem ao
seu encontro, atravessando o véu dos sonhos e traçando um
caminho até você. Caso ela não saiba, você a encontra,
inconscientemente ou não, em sonho ou plano físico.
Um grande problema relacionado aos sonhos é seu desgaste,
tanto psicológico quanto físico. Cientes disso, muitas
Invocadoras optam por controlá-los, escolhendo os momentos
que consideram mais propícios para tê-los. Contudo, essa é uma
técnica que requer prática e, portanto, leva anos para que tal
nível de controle seja atingido.
O capítulo sobre sonhos era especialmente curto e, como o
anterior, não trazia nada novo. Percebi, apenas então, que aquele
livro era inútil. Mesmo sem folhear as páginas restantes, sabia que
não encontraria nada do que esperava nele. Nenhuma resposta
para minhas perguntas. Nenhuma revelação impactante. Fechei-o,
sentindo o vento embolorado lamber minhas faces. Decepção era
pouco para o que estava sentindo.
Capítulo 23
Max
Minha cabeça latejava quando finalmente pegamos a pista.
Meus braços, pernas e pescoço doíam. Pela primeira vez em
meses, dormira tão pouco que mal sustentava meu próprio peso.
Quem diria. Max, o herói das Trevas, o peão dos Anciãos,
subjugado por algo mundano como o cansaço. Era uma ironia
para todos os chicotes.
Pisei no acelerador, ultrapassando um carro que nos atrasava e
avançando em meio ao cimento liso, ainda acelerando. Somente
quando Bronx lançou-me um olhar repreensivo é que afrouxei a
pressão no pedal, percebendo que não importava minha
velocidade, meus problemas sempre me seguiriam por inércia. No
mesmo instante em que pensei nisso, flagrei-me observando
Ariana pelo espelho, quase sentindo por mim a raiva que ela
mesma nutria.
Tratei de afastar logo tal sentimento. Sabia que, apesar de tudo
que ela achava, eu a protegera mais do que machucara. Se não
fosse eu a fazer o que fiz, ela teria sofrido muito mais. Os Anciãos
não saberiam distinguir os limites entre o suportável e não
suportável para um humano. Se um dia foram um de nós — algo
que eu não sabia — haviam há muito se esquecido de como era.
Quarenta minutos depois, com o sol ardendo em cor laranja no
céu, encostei na beira da estrada, sentindo as lufadas de ar
causadas pelos carros que ainda corriam na pista. Fui até a porta
de Bronx, assumindo seu lugar, e ele tomou o volante. Quando
me virei para afivelar meu cinto, percebi que éramos os únicos
acordados no carro.
Nem mesmo isso foi o suficiente para iniciarmos uma conversa.
E nem mesmo o silêncio do ambiente conseguiu me colocar para
dormir. Fiquei encostado na janela, observando Bronx ultrapassar
mais carros e entrar em uma cidade.
Era uma visão estranha. Com os vidros levantados, todo o
barulho das ruas não chegava aos meus ouvidos, e o lugar perdia
parte de sua vivacidade. Os altos prédios, casas coloridas e lojas
lotadas não eram a paisagem completa. Sem o estridente barulho
das conversas, buzinas e músicas, a cidade mais parecia um filme
mudo.
Observei enquanto uma senhora idosa, trajando um recatado
vestido azul, cruzava a rua, puxando pela coleira o pequeno
poodle que a acompanhava. O cachorro parou na faixa, em frente
ao nosso carro, e ficou observando-nos com seus olhos negros.
Quase cheguei a pensar que me reconhecera como seu dono
perdido. Então o sinal abriu, e a mulher arrastou o animal para
longe, mancando um pouco enquanto subia a outra calçada. E
como se minha respiração se ajustasse, caí no sono.
Acordei com um solavanco do carro. A tarde havia chegado e a
luz que nos guiava era o último resquício do dia. Demorei alguns
segundos para perceber que não estávamos mais na cidade. Muito
pelo contrário. O cenário que nos cercava não possuía nada de
urbano. A estreita estrada de terra era ladeada em ambos os lados
por grandes árvores, as exuberantes folhagens de um verde
vívido. Pelo cheiro de terra que invadia meu nariz — Bronx havia
aberto as janelas —, estávamos o mais longe da cidade possível.
— Onde estamos indo? — questionei Bronx, perguntando-me o
que poderíamos achar no meio do nada.
— Ah — exclamou ele, olhando-me de esguelha. — Pensei que
não acordaria nunca mais. Talvez possamos achar uma casa
abandonada por aqui. Não tenho certeza. Mas vale a pena tentar.
O carro avançou por mais alguns metros na estrada de terra.
Alguns segundos depois, o trajeto estava tão estreito que imaginei
que acabaríamos em algum lugar sem saída, com uma parede de
folhagens à nossa frente. Mas então, como um castelo mágico que
surge em meio à névoa, uma construção se materializou
embrenhada à vegetação. E bem quando as árvores se fecharam
ao nosso redor, o carro atravessou o último pedaço da estrada.
Estávamos em uma clareira.
Mal conseguia acreditar em meus olhos. Uma grande casa de
dois andares se erguia em meio às árvores, pintada de um branco
que agora assumia a cor do local. Até onde meus olhos
alcançavam, todas as janelas ainda possuíam vidros, e as paredes
aparentavam uma firmeza quase imprópria para o cenário.
— Acho que encontramos um lugar — riu Bronx, desligando o
carro.
Quando o som do motor desvaneceu, meus ouvidos foram
tomados pelos ecos da natureza que nos cercava. O farfalhar das
plantas. O canto das aves. O zumbido do vento. Tudo era ao
mesmo tempo lembrança e novidade. Envolto pela paisagem
quase imaculada— exceto pela construção —, sentia-me
protegido como jamais estivera. Quando olhei para o céu,
avistando um grupo de aves entrecortando-o, imaginei que aquele
era o lugar perfeito para uma pintura.
— Ah, qual é — resmungou Ariana. — Você sabia que tinha
uma casa aqui. Não ia simplesmente pensar: vamos entrar na
floresta, talvez haja uma casa. E bum, havia uma casa.
Bronx a fitou pelo espelho, levantando um sorriso do tipo você
está completamente certa, mas não admitirei isso.
— Talvez — comentou, por fim.
Descemos do carro quando a última luz se apagou no céu, e
fomos envoltos pela noite. Eu sabia que, acompanhado da lua,
viria o frio, de modo que me adiantei em direção à porta, forçando
a maçaneta enferrujada pelo tempo. Após três tentativas
infrutíferas, percebi que a porta estava emperrada.
— Vamos ter que arrombar — disse, dirigindo-me mais a
Bronx do que aos outros.
— Não é um bom começo — murmurou Crystal, envolvendo o
corpo em um abraço, como se sentisse uma brisa gelada. Mas não
estava fazendo frio. Não ainda.
— Acha que é uma boa ideia? — perguntou Bronx, analisando
a porta ao meu lado. — Podemos tentar abri-la com algo. Um
grampo.
Fitei-o.
— Onde vamos encontrar um grampo no meio do mato?
Ele pareceu considerar a ideia.
— Certo. Vamos arrombar — pousou a mão em meu ombro. —
Apenas lembre-se de que seremos nós que consertaremos isso.
Lancei um sorriso malicioso para ele pouco antes de me afastar,
tomando o espaço necessário para arrebentar nossa entrada. Já
havia feito aquilo antes. Sabia onde posicionar meu pé para que a
madeira cedesse mais facilmente. Quando, dois chutes mais tarde,
a porta caiu com um estrondo oco sobre o piso, o cheiro de
guardado inundou nossos narizes com a mesma violência com
que o mar invade a areia.
— Meu Deus. Acabamos de abrir uma tumba — reclamou
Crystal, tossindo. — Há quanto tempo isso está fechado? Posso
sentir o cheiro da morte.
— Vamos, não seja tão maldosa — repreendeu Ariana,
tomando a dianteira do grupo e adentrando a casa.
A despeito do cheiro — que diminuiu consideravelmente assim
que abrimos as janelas —, a casa parecia ter saído de um sonho.
Não por ser majestosa, mas sim exatamente o que precisávamos.
Estava conservada, apesar das muitas infiltrações e rachaduras, e
isso era mais do que podíamos pedir. Pintada de um branco
gélido, as paredes contrastavam com o chão de madeira imundo.
Surpreendi-me ao notar os móveis — o sofá, a pequena mesa, a
poltrona bege —, todos cobertos de plástico, como se esperassem
a chegada dos novos moradores.
— Aquilo é uma lareira? — perguntou Bronx, rindo. —
Caramba, temos uma lareira.
— Olhem o tamanho desse lugar — Crystal girou trezentos e
sessenta graus, a felicidade lhe inundando cada vez mais a face.
— Isso é maior que minha casa. Maior que três casas minhas.
— E é só o primeiro andar — comentou Ariana, afastando uma
das cortinas. — Como você sabia sobre esse lugar, Bronx?
Ele deu de ombros.
— Já fazia algum tempo que eu estava pesquisando onde ainda
existiam casas de antigas Invocadoras. Achei que seria útil para
nos escondermos, já que a maioria delas escolhia viver de forma
reclusa. Demorei algumas semanas para encontrar esta aqui, mas
foi a melhor que achei. E não, Ariana. Não fiz essa pesquisa na
internet.
Ela sorriu para ele, claramente entendendo algo que eu
imaginava ser uma brincadeira interna.
Antes de subir para o segundo andar e avaliar os quartos —
algo que estava morrendo de vontade de fazer —, segui até o
interruptor, apertando-o com uma expectativa desgostosa. Sabia
que seria necessário mais do que móveis e um teto sob nossa
cabeça para podermos ficar ali. De primeiro, nada aconteceu.
Então, uma a uma, as luzes foram se acendendo, brancas como
pequenas estrelas incrustadas no teto. Em poucos segundos, toda
a sala estava iluminada.
— Ótimo. Vou ver se tem água — disse Giovane, correndo para
a cozinha.
— Vou checar o segundo andar — divulguei, finalmente
convencido de que aquela casa era um presente dos deuses.
Subi a gasta escada com a alegria de um garotinho sendo
apresentado ao seu novo lar. Era quase palpável a figura paterna
que caminhava ao meu lado, enquanto avançava em direção aos
quartos. Quando pousei o pé sobre o último degrau, vi-me em
meio a um salão de alguns metros quadrados. O lugar não possuía
móvel algum, tendo como complemento apenas quatro portas,
uma em cada parede.
Enquanto uma gritaria se iniciava no andar de baixo, verifiquei
os cômodos — três quartos e um banheiro. Assim como o resto da
casa, esses também estavam mobiliados. Apressei-me em descer
buscar minha mala, que fizera pouco antes de encontrar com
Ariana no estacionamento. Por alguma razão, lembrei-me de
Carlos, e de como ele tentava acumular bens para levar consigo
aonde quer que fosse. O pobre coitado, mesmo depois de morto,
ainda pensava como um vivo.
— Ei — Giovane puxou-me o ombro quando passei pela sala.
— O que tem lá em cima?
— Três quartos e um banheiro. Temos água?
— Aham. E limpa.
— Ótimo — comentei, saindo.
Antes que qualquer um dos quatro pudesse escolher em qual
quarto ficar, peguei minha mala e subi rapidamente, assegurando-
me de que teria a terceira porta para mim — não que houvesse
muito divergência quanto às decorações. Somente quando havia,
finalmente, marcado meu território, foi que saí do quarto,
observando enquanto o resto de meu grupo alcançava o topo da
escada e torcia o nariz para o cheiro.
— Temos a tumba número dois. Ótimo — fungou Crystal.
— Que minhas narinas queimem — disse Ariana. — Contanto
que eu não precise olhar para a cara de um Renácito por um bom
tempo.
Bronx riu, dando um leve tapinha em suas costas.
— Não me subestime.
— Ah, Bronx. Não mesmo— Crystal beijou sua bochecha. —
Mas se algum deles aparecer aqui, juro que te ofereço como
comida — ameaçou, segurando o rosto do amigo entre as mãos.
Bronx riu, afastando os dedos que lhe pressionavam as
bochechas e virando-se para mim:
— Algum problema?
Apontei para as portas.
— Só temos três quartos.
— Bem. Alguém terá de dividir, então — disse ele, lançando
um olhar questionador sobre mim. — Importa-se? — perguntou.
Antes mesmo de eu poder abrir minha boca, sua figura passou
por mim, avançando contra a porta protegida e tomando meu
quarto como seu.Esperei ao lado da escada, apoiado no corrimão
que ameaçava ceder a qualquer instante, enquanto os outros se
instalavam nos quartos vazios.
— Seria mais fácil você admitir que sente minha falta —
brincou Bronx, ao voltar do quarto. — Essa carranca que faz toda
vez que converso com você não me parece real.
— Não faço carranca alguma.
— Está fazendo agora — apontou o dedo para mim.
— Deixe de ser tolo, Bronx. Não há razão para carrancas.
Ele sorriu, dando-se por satisfeito.
— Exatamente — disse, passando o braço por meus ombros. —
Já disse que sou seu melhor amigo. Não importando o quanto seja
babaca.
Capítulo 24
Ariana
Segui até o quarto remanescente. Pouco me importava o
cômodo em si, contanto que houvesse uma cama para dormir.
Assim como o resto da casa, o aposento não surpreendia por
nenhum outro aspecto que não fosse a presença de móveis. Uma
cama de solteiro com o estrado forte — pulei nela para me
certificar disso — ocupava o centro do quarto. Ao seu lado, uma
pequena mesa manchada com diversos círculos revelava a antiga
presença que levava copos de água como companhia durante as
longas noites. Joguei a mala que Crystal me emprestara sobre a
cama e segui até uma porta lateral, descobrindo um banheiro
pessoal. Não me demorei nele. Queria ver o resto da casa. A
cozinha. Os outros quartos. As árvores que nos cercavam. Eram
tantos os elementos que eu poderia passar uma semana inteira
conhecendo-os e ainda assim não me lembraria de todos.
Porém, quando ameacei sair de meu novo quarto, avistei as
únicas duas figuras que conversavam apoiadas à escada. Bronx e
Max. Dei meia volta antes que um dos dois me visse, e levantei a
mão para a cortina da janela. O pano era pesado, tingido com uma
cor de berinjela fora da data de validade. Precisei puxar duas
vezes até que se movesse, lançando uma nuvem de pó sobre mim
enquanto deslizava para o lado, revelando a gasta madeira que
protegia a janela. Após abri-la, uma rajada do vento frio da noite
preencheu o quarto. Os pelos de meus braços se eriçaram, e
vasculhei a bolsa em busca de um casaco.
— Preciso comprar roupas — pensei alto, puxando um fino
cardigã e vestindo-o antes de voltar para a janela. — Mas para
isso preciso de dinheiro. E para conseguir dinheiro preciso de um
trabalho. Mas isso implicaria em sair daqui, o que não é uma boa
ideia. Preciso...
— Calma. Você precisa fazer coisas demais — riu Giovane,
aparecendo ao meu lado. — Ah. Sua vista é bem melhor do que a
minha — seus olhos perscrutaram a paisagem noturna. A lua
prata no céu. A floresta ao longe. O campo que se entendia por
metros e metros abaixo de nós. — Mas, então, como está?
Dei de ombros.
— Acho que bem. Um pouco pilhada.
— Imaginei — suspirou ele. — Eu vou dormir agora. Só passei
para desejar boa noite e agradecer por me deixar vir.
Suas palavras acenderam em mim.
— Ei — puxei-o pela manga da camisa. — Ainda não tive a
chance de conversar sobre isso com você.
— Sobre o quê?
— Essa ideia maluca de vir conosco. Não tinha que vir. Por que
fez isso?
Ele riu.
— Você está se preocupando demais...
— Ah, não. Não estou.
— Que mal pode me acontecer?
— Muitos. Me dê um bom motivo para não mandá-lo de volta
agora mesmo.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Talvez o fato de eu ser a única pessoa neste lugar que
verdadeiramente quer te ajudar?
Não respondi.
— Você acha que está acontecendo o que aqui? A criação de
um grupinho de estudos? Por favor, Ari. Você sabe que Bronx e
Crystal só estão aqui por eles. E Max por que foi obrigado. No
momento, penso que sou sua companhia mais honesta.
— Isso não é verdade — retruquei, cruzando os braços. —
Bronx é uma ótima pessoa. Se eu pedisse ajuda, ele não negaria.
— Mas ele não está aqui por você. Sabe disso, não? Diga que
sabe, Ariana. Que não está se enganando com falsas amizades. Se
confiar nas pessoas erradas, quebrará a cara no final disso.
— É claro que não estou me enganando com falsas amizades —
bufei. — Eu e Crystal somos iguais. Preciso confiar nela. Se não,
em quem mais poderei confiar?
— Você entende que são inimigas?
— Entendo que as pessoas querem que sejamos...
— Meu Deus. Ela pode se voltar contra você. Coloque isso em
sua cabeça. Crystal pode ficar contra você.
— Pare com isso, Giovane. Chega.
— Só pararei quando disser que entendeu.
Grunhi, empurrando-o em direção à porta.
— Saia. Não preciso ouvir essas coisas.
— Prometa — disse ele, sua mão contornando meu pulso.
— Certo. Tudo bem. Eu prometo. Não confiarei completamente
neles, está bem? Terei sempre um pé atrás, mesmo achando isso
sem sentido. Satisfeito?
Ele segurou o batente da porta, impedindo-me de colocá-lo para
fora. Seus olhos irradiavam, e era impossível saber o que se
passava por sua mente.
— Você acha que estou falando por falar? — abaixou a voz. —
Falo isso por que me preocupo com você. Se algum dia, por
alguma razão, Crystal decidir que você não está do lado dela, o
que acha que farão?
Parei de empurrá-lo. Meus braços caíram como dois pesos
mortos ao lado de meu corpo. Estava exausta.
— Entendo sua preocupação, Giovane. Apenas acho que não
precisamos nos preocupar com isso agora. A situação que supôs
funciona para qualquer um dos lados. Não percebe? — levantei os
olhos para as duas figuras que continuavam ao lado da escada.
Quando meu olhar cruzou com o de Max, senti um bolo de
angústia se formar em meu peito. Eu, mais do que qualquer um
ali, sabia exatamente do que Giovane estava falando. A traição
iminente que era confiar em qualquer um.
Capítulo 25
Ariana
— Ah meu Deus! — acordei com Crystal gritando. Podia ouvir
as risadas que atravessavam a madeira até meu quarto. Pareciam
estar quebrando a casa.Espreguicei-me, acidentalmente acertando
uma madeira lascada da janela e machucando minha mão.
Puxando-a de volta para baixo das cobertas, enrolei-me até a
cabeça. Não havia despertadores. Essa era a melhor parte.
— É só um rato —disse Bronx.
Levantei de supetão, imaginando que a criatura usaria suas
ágeis patas para entrar em meu quarto. Então me lembrei de que a
porta estava fechada e tornei a deitar, pensando que ninguém se
importaria se eu passasse mais três ou quatro horas dormindo.
Contudo, soube que estava errada assim que a porta de meu
quarto se abriu, e uma chuvarada de bom dias torturou meus
ouvidos.
— Vamos. Levante-se! Temos muito que fazer — gritou
Crystal, puxando a coberta até meus pés. Alguém abriu a janela e
comprimi meus olhos para a claridade. — A casa não vai se
limpar sozinha.
— Espere... — murmurei.
— Bronx acabou de se livrar de um rato. Deve ter mais alguns
por aí. Vamos, Ariana. Precisa nos ajudar.
Ela parecia ligada no duzentos e vinte. Andava de um lado para
o outro, passando a vassoura em cada canto visível. Os cabelos
estavam presos em um perfeito rabo de cavalo, que balançava
conforme ela pulava, tentando alcançar os pontos mais altos das
paredes.
— O que está fazendo? — perguntei a Bronx, agachado ao lado
de minha cama.
— Procurando por ratos. Viu algum?
— Ugh. Não. Eca.
Ele riu, levantando-se.
— Precisam de mim agora? — falei.— Não posso dormir por
mais umas três horas? Estou realmente cansada. Minha noite não
foi das melhores.
Passei a mão pelo rosto, forçando-me a acordar. Sabia que
tentar convencer Crystal não daria em nada, mas quem sabe
Bronx não fosse mais compreensivo.
— Acho que umas duas ou três horas não vão atrapalhar
ninguém, não é mesmo? —ele sorriu. — Venha, Crystal. Já
acabou por aqui?
— Nem de perto — gritou ela, saindo do banheiro. — Eu teria
que queimar esse lugar se quisesse realmente limpá-lo.
Capítulo 26
Max
Era um perfeito dia de verão. Parecíamos ter sido tragados por
uma névoa esperançosa, fazendo com que tudo ao nosso redor
parecesse espetacular. As flores amarelas que nos cercavam eram
como pinceladas em uma pintura, colorindo uma paisagem
imortalizada em seu tom vívido. Com o sol brilhando acima de
nossas cabeças, conseguia perceber que a entrada para a casa não
era um local fechado por árvores, mas sim ramos, que formavam
uma espessa cortina, impossibilitando a visão através dela.
O tempo fora da casa definitivamente estava melhor que o de
dentro, onde as coisas se negavam a funcionar. Primeiro, a
torneira da cozinha estourou. Estávamos no segundo andar e
descemos para ver o que era o barulho. Passamos, no mínimo,
meia hora secando o chão e consertando o cano. Depois, tentamos
arrumar a porta que eu havia arrebentado— o serviço não foi
perfeito, mas daria para o gasto. Uma lâmpada queimou aqui.
Uma tábua se desprendeu ali. Eram coisas pequenas, mas com as
quais nos preocupávamos. Se ficaríamos ali, seria com conforto.
Imersos em um verde intenso, Crystal e eu éramos dois pontos
beges cortando o mato alto. O vento soprou mais forte e brincou
com o seu cabelo, tapando seus olhos bem no momento em que
alimentava um rechonchudo esquilo que aparecera enquanto
trabalhávamos. O animal saltitava para lá e para cá, como uma
bola de pelos viva.
— Isso não tem nada a ver com os livros — comentei.
Crystal jogou a noz no chão para o bichinho. O animal
observou a comida por um instante, então a enfiou na boca e saiu
rapidamente em direção às árvores.
— Não — disse ela, em um tom incerto, como se ainda tivesse
dúvidas quanto a isso. — Seja lá o que esteja acontecendo, creio
que não tem nada a ver com os livros. Acho que Ariana e eu
tivemos má sorte de sermos as Invocadoras deste século. Tem
alguma coisa errada. Só não sei o que — fez uma pausa. — Acho
que o melhor e mais seguro agora é ficarmos aqui enquanto
esperamos respostas de seu amigo.
Quando chegou a hora do almoço, decidi dar uma olhada em
volta e ver o quanto estávamos escondidos. Era uma boa
localização. Uma casa no meio de árvores, dentro de uma cidade
da qual o nome não me recordava. Qual era a probabilidade de
virem a nos encontrar? Não tinha ideia. É difícil saber o potencial
do inimigo quando não o conhece.
Mais tarde, voltamos para dentro e nos reunimos na sala. Não
estava completamente limpa, mas havíamos feito alguns avanços.
As cortinas lotadas de pó foram arrancadas. O chão, varrido. A
mesinha, limpa. Entretanto, ainda era preciso sentar
delicadamente no sofá, ou uma névoa de poeira dominava todo o
cômodo.
Ariana fizera o jantar. Era a primeira vez que a via naquele dia.
E apesar de não saber o verdadeiro porquê, tinha duas ideias em
mentes. Ou ela estava tentando me evitar, ou passara tempo
demais na cama, já que eu imaginava suas noites como sendo um
pouco... perturbadas. Sabia disso melhor do que ninguém.
Estávamos ligados. Não podia ouvir seus pensamentos, sentir o
que sentia, mas compartilhávamos algo. Ariana tinha os seus
demônios para manterem-na acordada à noite, e eu tinha os meus.
Capítulo 27
Ariana
Durante os dois dias que se seguiram, fizemos compras,
consertamos tudo que possuía salvação e limpamos a casa quase
todos os dias, já que devido à localização encontrávamos mais
terra no chão do que piso. Não havia muito que fazer se
descontássemos o trabalho. Passava horas ajudando Bronx a
cozinhar, tirando o pó com Crystal, ou auxiliando Giovane a
cortar a grama. Encontrava-me limpando aqui ou ali
inconscientemente, como se estivesse tão habituada a espanar,
esfregar e varrer que a verdadeira estranheza era não estar
fazendo isso. Como resultado, meu quarto era, provavelmente, o
cômodo mais limpo de toda a casa. E essa, com o passar dos dias,
se renovara.
A poeira, marca registrada da Tumba quando chegáramos, já
não cobria mais o chão. As estantes foram limpas, assim como os
outros móveis e tapetes. Os vidros das janelas estavam cristalinos,
e a paisagem que antes nos estava oculta, agora preenchia nossa
visão com cores. Do lado de fora, a grama fora aparada, e os
grossos troncos das árvores lembravam pinceladas escuras em
meio a uma folha de cor vibrante.
Quando finalmente me senti segura, saí para explorar os
arredores, não muito distante da casa. Caminhei alguns metros do
campo, dando a volta à esquerda e encontrando um conjunto de
altas pedras, não muito difíceis de se escalar. Já era final de tarde
quando lá passei, de modo que, ao tocar a superfície irregular das
rochas, pude sentir o calor emprestado que irradiavam. Era um
ótimo lugar para se observar o pôr-do-sol.
Ao voltar para a Tumba horas depois, avistei à distância a
parede de folhas e troncos que anunciava o início da floresta, e
meu peito se inflou de alegria. Como me sentia livre. Ali não
existiam olhos atentos para me julgar, conversas fúteis para
ocupar meu tempo. Nem mesmo o relógio parecia me pressionar.
O celular não tinha sinal, e gastava meu tempo contemplando o
lugar no qual me encontrava. Era incrível como minha reclusão
trouxera não apenas segurança, mas uma nova sensação de mundo
para mim.
À noite, quando toda a casa estava dormindo, aproveitei para
subir no telhado e observar as estrelas. Tentei não pensar na
última vez que fizera aquilo, na circunstância e companhia, e
somente aproveitar o momento. Afastei todos os pensamentos
possíveis de minha mente, e foquei nos pontos luminosos acima
de mim. Nem mesmo o pior dos pesadelos conseguiria destruir
tamanha beleza.
A FLORESTA
Capítulo 28
Max
— Preste atenção, Foster. Caso contrário, será sempre o mesmo
herói de merda que só fez algo de útil no momento da morte —
apesar da distância da memória, as palavras de Aimon causavam
o mesmo efeito agora que na primeira vez em que as ouvira.
—Desculpe-me, Mestre — respondi com a voz baixa, temendo
o que viria em seguida.
O velho Ancião riu. Sua voz engasgada e rouca deu a impressão
de que uma bola de pelos estava presa em sua garganta.
Rodeando-me, ele levantava e abaixava a cabeça, analisando-me
como um pai severo a decidir o castigo de seu filho.
— Um dia, Pequeno Sacrifício — era assim que ele me
apelidara. — seus pensamentos o farão ser morto. Você pensa
demais e em momentos inapropriados. Pergunto-me se fora a
escolha certa para essa missão. Sempre concordei que
precisávamos de alguém inteligente. Mas nunca pedi um
pensador. Se você pensa demais, age de menos.
Seus olhos encontraram os meus e senti a fúria que estava
prestes a cair sobre mim se não fizesse nada.
— Não pensarei mais, Mestre. Agirei por puro instinto, se for
isso o que deseja.
O Ancião riu novamente, dessa vez algo mais contido, como se
apenas um fio de cabelo o incomodasse.
— Melhor assim.
Ele levantou as duas mãos, fazendo o manto negro escorregar
por seus braços. Apesar de aparentar certa idade — algo visível
em suas linhas de expressão, tom de voz e eloquência — seu
corpo era bem conservado, assim como os dos outros Anciãos. E
como se fosse a personificação das sombras...
— Cadê ela? — gritou ele.
Não, não era ele.
Acordei, ainda envolvido pela memória não bem-vinda. O
quarto estava escuro. Uma silhueta se projetava em minha porta,
agarrada ao batente. Pisquei algumas vezes até me acostumar com
a claridade.
— Cadê ela? — ele repetiu a pergunta.
Sentei-me.
— Pelos céus, Bronx. Pare de gritar.
— Pararei assim que responder. Onde ela está?
— Ela quem?
— Ariana, é claro.
— Como vou saber? Ela não fala comigo desde que brigamos.
— Você é o maldito Forti dela. Se existe alguém que deveria
saber é você.
— Bem, eu não sei. O que está havendo?
— Merda — resmungou ele, socando o batente e saindo da
porta.
— Espere — coloquei-me de pé, seguindo-o rapidamente
enquanto descia as escadas. — O que aconteceu?
Ele não parou para me responder:
— Não consigo encontrá-la em lugar algum.
— Ela não saiu para andar?
— É exatamente disso que estou com medo — disse Bronx,
parando abruptamente e virando-se para mim. — Acho que tinha
alguém rondando aqui ontem.
Encarei-o, sem conseguir acreditar.
— E não pensou em contar a alguém?
Ele franziu o cenho, ignorando minha pergunta e tornando a
descer.
— Ei, ei — puxei-o pela camisa. — Como espera que
convivamos em harmonia se escondemos possíveis ameaças uns
dos outros?
— Não escondi ameaça alguma — retorquiu ele. — Se existisse
qualquer indício de que o garoto era um Renácito, todos saberiam.
— Quer indício maior do que ele estar aqui?
Bronx fitou-me, soltando o ar.
— Certo. A culpa é minha. Agora, vai me ajudar a encontrá-la
ou preciso de um sermão?
Capítulo 29
Ariana
O ar cheirava a mato quando alcancei o campo, logo de manhã.
Por alguma razão, acordara disposta a finalmente visitar a floresta
que observava de meu quarto todos os dias. Aproveitei os
primeiros raios de sol para me colocar em pé, vestindo uma calça
e blusa de mangas compridas. Ao abrir a janela, percebi que a
neblina ainda cobria grande parte do terreno.
Após percorrer metade da clareira — que eu imaginava ter
aproximadamente duzentos metros de extensão — cheguei à parte
onde a vegetação rasteira sumia, dando início à floresta. Fiquei
parada alguns segundos, observando as árvores que se erguiam à
minha frente, algumas com copas tão altas que acabavam por
serem escondidas pelas mais baixas. Era realmente um lugar
lindo. As maiores construções da humanidade não se comparam
aos lugares mais simples e remotos que a natureza nos apresenta.
Voltando de um devaneio, comecei a avançar lentamente em
meio aos troncos, meus pés mal fazendo barulho ao tocarem o
solo. Embaixo deles, a terra era fofa, como se todo o chão
estivesse coberto por pequenas bolas de algodão. Levantei o olhar
para os galhos mais altos, onde micos pulavam de árvore em
árvore e os passarinhos faziam seus ninhos. Flores amarelas, cujo
nome eu desconhecia, coloriam alguns pedaços de terra,
complementando a paleta de cores da floresta. Abaixei até o local
onde um tufo delas crescia e puxei uma, levando-a até o nariz.
Não possuía um cheiro aparente, apenas um leve aroma que
recordava a primavera.
Avancei mais um pouco, estudando o local que por horas
enamorara de minha janela. Era ainda mais vivo de perto. Uma
borboleta azul passou por mim. Observei-a enquanto ia, e então
voltava, pousando em meu ombro apenas para alçar voo
novamente. Quando a parede de árvores parecia a metros de
distância foi que senti, pela primeira vez, o aroma da flor amarela
a inundar o lugar. Estava impregnado nas cascas das árvores, na
grama que cobria o solo, nas folhas que farfalhavam ao meu
redor. Se pudesse resumir aquela floresta em uma única palavra,
seria amarelo.
De repente, um frio se formou em meu estômago. E quase no
mesmo momento, ouvi um galho se quebrar. Meu coração
disparou. Olhei ao redor. Nada. As folhas ainda balançavam e os
animais ainda transitavam por entre elas. Nada parecia ter
mudado. Exceto minha sensação. Sabia que um Renácito estava
por perto.
Tentando não fazer barulho, coloquei um pé na frente do outro,
ansiando por sair o quanto antes daquele emaranhado da natureza.
Fora negligente ao não avisar ninguém, imaginando que uma
rápida visita à floresta não seria problema. Agora, estava mais
encrencada do que nunca. E se algo me acontecesse? Eu poderia
muito bem ser morta. Se eles não encontrassem um corpo, nunca
saberiam...
— Ei.
Parei abruptamente, retesando assim que ouvi a voz. Sabia que
não deveria ter medo de Renácitos, mas penso que tal reação
poderia ser perdoada se analisado os meus encontros nada
agradáveis com eles.
Conseguia ouvir a respiração ofegante da criatura atrás de mim.
Não sabia se tentava olhá-la ou se esperava pelo seu bote.
Lentamente, me virei, deparando-me com um jovem com o dobro
de minha altura. Seus cabelos eram pretos, cortados rente ao
couro cabeludo, e sua pele escura parecia brilhar com os raios de
sol que penetravam pelas copas. Não consegui prestar atenção em
mais nada. Todos os meus pensamentos estavam focados em me
defender caso ele atacasse.
— Você é uma Invocadora, não? — perguntou o garoto, o peito
subindo e descendo rapidamente.
Precisei forçar as palavras a saírem. Tudo parecia suprimido
pelo nervosismo, e eu sabia que, se precisasse sair correndo,
demoraria tempo demais para conseguir fazer isso.
— Sim — respondi, minha voz indicando meu estado de
espírito. — E você é?
— Ian. Ian Ferreira — disse ele, apreensivo.
Por um segundo, pensei que estava com medo de mim. Ou seria
apenas outro truque?
— Bem Ian, sou Ariana. Posso saber por que está aqui? Não me
parece um lugar muito apropriado para alguém na sua... condição.
O garoto olhou em volta, como se considerasse minhas
palavras.
— Eu queria falar com você — assumiu ele, tentando se
aproximar. Instintivamente me afastei, e algo que não consegui
captar cruzou seu semblante. — Não quero te atacar — sua voz
possuía um certo sotaque.— Sei que quer descobrir por que
dezenas de nós estão indo atrás de vocês, e eu posso te dar a
resposta. Quero te ajudar, Ariana. Não o contrário.
— O quê?
— Mais de duas Invocadoras — declarou sorrindo, ignorando
minha confusão. — É isso que está havendo. Sim.
— Espere. Vá com calma. Mais de duas Invocadoras? Como
sabe disso?
— É complicado. Não posso explicar tudo agora. Estão me
vigiando, sabe? Vigiando todos nós. Se souberem que disse isso a
você, certamente serei morto.
Fitei-o, procurando sinais que o entregassem caso estivesse
mentindo. Mas havia uma luz genuína em seus olhos, algo que me
impediu de simplesmente dar as costas e sair da floresta. Além do
mais, era o primeiro Renácito que encontrava não apontando uma
arma para mim. Queria saber quanto tempo aquilo duraria.
— Se sabe que poderá ser morto, por que vir até aqui? Por que
me avisar?
Ele franziu a testa.
— Não estou do lado deles. Por que estaria? Vim até aqui lhe
avisar por que sei que é nossa única chance. A única que pode nos
ajudar. Eles estão invocando demais. Estamos renascendo aos
montes, em todos os lugares. Isso vai causar um desequilíbrio
entre as forças. E, se os anjos tiverem que descer para consertar a
bagunça, não quero nem saber o que acontecerá conosco.
— Uou. Os anjos descerem? O que eles têm a ver com isso?
Ele riu.
— Sei que seu papel é tipo, a balança entre os dois mundos,
mas você não é a personificação do equilíbrio. Se algo der errado,
se formos muitos, serão eles quem consertarão isso, não vocês.
Arquei as sobrancelhas, assumindo um tom severo.
— Você diz que sou sua única chance, mas que não serei eu
quem consertará tudo. Por que não deixar os verdadeiros heróis
fazerem isso de uma vez, então? Pelo que me disse, sou um tanto
quanto descartável nessa história.
— Não — o garoto meneou a cabeça avidamente. — Perdoe-
me se foi isso que dei a entender. Você é muito importante.
Entenda, não queremos os anjos envolvidos. Todos os Renácitos
morrerão se isso acontecer. Essas criaturas não são conhecidas
por sua benevolência. Acredite.
— E o que você espera que eu faça? — perguntei, já irritada.
— O seu trabalho, é claro. Esperamos que você nos proteja.
— Proteja quem?
— As almas. Queremos que você nos liberte.
— As almas? Quantos de vocês há aqui? — questionei-o,
sondando rapidamente o lugar.
— Acho que você não está compreendendo o grau da situação,
Invocadora. Não estou me referindo apenas a esse acampamento,
mas sim a todos. Eu não possuo as estatísticas corretas, mas meu
parceiro sim. Gostaria que falasse com ele, se possível. Apesar de
todo meu discurso anti-anjos, preciso confessar estar preso nesta
situação por ter trabalhado com um. Azriel. Conhece-o?
Um estalo ocorreu no fundo de meu cérebro, e esse gritava
Aleluia. Finalmente, após tantas horas, parecíamos ter encontrado
a resposta para nossas dúvidas da maneira mais inesperada: por
meio de um Renácito qualquer, saído de seu esconderijo em meio
às árvores.
— Não pessoalmente, mas já ouvi falar. Parece que está mais
metido nisso do que imaginávamos — disse.
— Creio que sim — concordou Ian, voltando-se para os troncos
à suas costas. — Preciso ir agora. Quanto antes voltar, menos
chances tenho de ser pego. Mas primeiro, devo alertá-la sobre o
ataque que acontecerá daqui a três semanas. Alessandra está
motivando toda a tropa. E pelo que vi, não está para brincadeiras.
Se quiser sair dessa viva, o que espero que faça pelo bem de
todos, é melhor estar preparada.
Estava prestes a perguntar quem era Alessandra quando Ian
sumiu em meio à vegetação. Não precisei pensar muito para
entender que esse era o nome de minha inimiga, minha
perseguidora. A pessoa que mandara Renácitos para me matarem
e que agora fazia um cerco em volta de meu abrigo, esperando o
momento certo para atacar. O porquê de tudo isso era algo que eu
eventualmente precisaria descobrir.
Outra vez sozinha, disparei por entre as árvores, percorrendo
rapidamente o trajeto feito até meu encontro com o garoto. As
folhas roçavam em meus braços e pernas, mas não diminui a
velocidade. Era a primeira pista que tínhamos sobre aquele
quebra-cabeça, e se isso não levasse a nenhum lugar, não
poderíamos sentar e esperar mais cinco dias para obter notícias. O
tempo estava passando. Logo meus pais estariam de volta em
casa, e se eu não estivesse lá para recebê-los, não haveria história
a ser contada que pudesse apagar o que Lucas e Maia diriam.
Precisava descobrir o que estava acontecendo e deter minha
perseguidora o quanto antes.
Absorta em pensamentos, não vi o obstáculo que surgiu à
minha frente ao sair da floresta, caindo sobre Bronx como um
saco de batatas. Ele grunhiu, segurando meus ombros enquanto
encontrávamos o chão. Uma dor atravessou meu ombro e rolei
para o lado, saindo de cima dele. Estava ofegante. A corrida não
durara mais que alguns segundos, porém, sentia todos os
músculos de meu corpo arderem com o esforço. Finalmente a vida
sedentária que eu levava viera buscar seu pagamento.
Não tive tempo nem mesmo de respirar antes que Bronx se
projetasse acima de mim, os cabelos claros pendendo em minha
direção, os olhos intensos e verdes sob o cenho preocupado. Não
sabia se sua expressão lembrava a de meu pai ou do irmão que
nunca tivera.
— Você está bem? — perguntou ele, analisando meu rosto de
diferentes ângulos.
— Merda — coloquei a mão sobre o ombro.
— Por que estava correndo tão rápido? — seu comentário fez
com que eu voltasse o olhar para a floresta, onde Ian e eu
estávamos poucos minutos antes. Perguntei-me se descobriram o
que fizera, ou se ele conseguira se esconder a tempo. Bronx
seguiu meu olhar, voltando a me fitar logo em seguida. — O que
aconteceu?
— Um Renácito — respondi. — Havia um Renácito na floresta.
— Ele te atacou? — Bronx jogou o corpo para trás,
observando-me dos pés à cabeça.
— Não — sentei, mexendo o ombro que torcera. — Ele não me
atacou. Na verdade, veio para pedir ajuda — suspirei.
E se existissem mais deles? Mais Renácitos ressuscitados
contra sua vontade, esperando que alguém os resgatasse? Era meu
dever fazer algo.
— Ele disse que existem mais de nós, Bronx. Mais
Invocadoras. Não consegui compreender tudo perfeitamente. A
conversa foi rápida. Não podiam perceber seu sumiço.
Resumindo: ele disse que existem outros acampamentos de
Renácitos. Deus sabe quantos são.
— Precisamos descobrir o que está acontecendo.
— O que precisamos é falar com Azriel. Ele sabe a história toda
— coloquei-me de pé, percebendo apenas então a figura postada
atrás de mim. Max me fitava com as mãos nos bolsos. O olhar
neutro. Quase disse algo a ele. Então me obriguei a desviar o
olhar, não sabendo ao certo se havia algo para ser dito.
— Ele conhece Azriel? — perguntou Bronx.
Concordei com a cabeça.
— Tenho uma leve impressão de que seu anjo sabe mais do que
esperávamos.
Capítulo 30
Ariana
— Outra Invocadora? — Crystal estava perplexa ao meu lado.
Na verdade, era a única de nós que parecia realmente surpresa
com a notícia.
Haviam se passado vinte minutos desde que eu começara a
contar toda a história. Sem omitir nenhum detalhe, expliquei
como encontrara Ian na floresta, e tudo que o garoto me dissera.
Todos ouviram em silêncio, estudando os acontecimentos e
palavras com calma, como se julgassem o quanto daquilo parecia
verídico e o quanto o Renácito poderia ter inventado. Ao final,
chegamos à conclusão de que apenas Azriel poderia solucionar
essa dúvida — assim como todas as outras.
— Você disse que ela tem uma tropa sendo preparada para um
ataque? —indagou Bronx.
— Sim — confirmei, lembrando-me das três semanas que Ian
disse possuirmos.
— Então o que faremos? — pronunciou-se Max, que
permanecera calado até momento. Seu lado lutador começava a
transparecer. Os olhos pareciam inflamados por um desejo
sombrio, e forcei-me a desviar o olhar, ignorando a voz no fundo
de minha mente gritando para que parasse com aquilo, para que o
desse outra chance. Parecia tão disposto a nos ajudar... Ou talvez
apenas quisesse salvar sua pele, como em todas as outras ocasiões
em que fôramos atacados.— Não podemos nos defender sem
armas. Estamos em número menor, desprotegidos e cercados.
Seremos facilmente derrotados.
— Primeiro, nós chamamos Azriel. Ian disse que deveríamos
contar para ele — disse, tentando assumir alguma posição perante
o grupo.
— Armas — rebateu Max. Apesar de falar diretamente comigo,
seus olhos nem mesmo ameaçavam passar por mim. — Antes de
qualquer coisa, precisamos de armas. Até uma faca de cozinha
serve. Mas precisamos ter com o que lutar.
Antes que eu pudesse protestar, Bronx se posicionou:
— Ele está certo. Precisamos das armas antes de qualquer
coisa. Não podemos arriscar. E se o Renácito mentiu e, na
verdade, não temos três semanas? — suspirou, batendo no tampão
de madeira da mesa. — Se os antigos moradores dessa casa
foram, de fato, Invocadoras, então temos uma grande chance de
ter um cômodo com armas nesta casa —ergueu a cabeça,
perscrutando a sala como se esperasse que uma passagem secreta
aparecesse diante de seus olhos.
Toda a felicidade e segurança que aquela estadia me trouxera
desapareceram de meu corpo. Tomaram seus lugares a antiga
insegurança e dúvida que sentira quando conversara sobre ser
uma Invocadora pela primeira vez. Não havia nem três dias e já
voltava a me sentir pressionada por todos os lados, sem entender
o que estava acontecendo ou saber o que fazer. De que adiantava
a casa estar cheia de pessoas, se nenhuma delas poderia me dar as
respostas de que precisava? Não teria sido mais fácil ficar em
casa? E por que eu não voltava agora? Fôramos descobertos. Por
que esperar pelo ataque? Para que me arriscar apenas para
descobrir a razão da garota estar me perseguindo? Não parecia
valer a pena. Não me importava não saber nada, contanto que
continuasse em segurança. Porém, mais uma vez, precisei
lembrar-me de que estar em casa não era o mesmo que estar em
segurança.
— O porão, talvez? — sugeriu Giovane.
Max franziu o cenho.
— Temos um porão?
— É claro. Não sabiam?
— Não. Por que não nos contou?
— Quero dizer, está meio óbvio. Tem um tapete bem em cima
dele— Giovane apontou para o tecido vermelho a alguns metros
de nós. Apenas então percebi a mudança na madeira. Para alguém
detalhista, certamente era um farol. Mas para outros como eu,
nada mais era do que um erro no piso da casa.
Sem dizer uma palavra, levantamo-nos rapidamente, formando
um pequeno círculo em volta do espaço desconhecido. Giovane
puxou o tapete para o lado, revelando uma grossa argola de metal
enferrujado presa ao assoalho. Enquanto ele forçava o pequeno
círculo de metal, peguei-me desejando que aquilo fosse um portal
para outro universo, um no qual eu não precisasse ser eu mesma.
Meu pequeno sonho morreu quando, após a quarta tentativa, e
mãos e pernas utilizados em conjunto, a porta cedeu, dando
espaço para um perfeito quadrado negro. Giovane desceu
primeiro, seguido de Max.
O lugar estava escuro, de modo que tomei o máximo de
cuidado ao descer as escadas, nas quais não confiava totalmente,
já que todo o lugar parecia ter sido construído antes mesmo de
minha bisavó nascer. Quando toquei o chão com uma pisada
incerta, o odor que invadiu minhas narinas não foi dos mais
agradáveis. O ar cheirava a mofo — o que era compreensível. Se
a casa ficara fechada por décadas, aquele porão certamente se
encontrava esquecido há bem mais tempo.
Tateei as paredes geladas ao meu redor em busca de um
interruptor. Uma lâmpada amarelada se acendeu no teto.
Estávamos em um cômodo pequeno, feito completamente de
madeira. Para um porão, era bem menor do que o esperado, e o
acúmulo de objetos não ajudava no aproveitamento de seu espaço.
Três estantes cheias de livros empoeirados cobriam a parede
direita, enquanto a esquerda permanecia limpa. No centro, estava
posicionada uma grande mesa, com diversas pilhas de papéis e
lápis devidamente arrumados sobre ela. Bronx foi o primeiro a
puxar algumas folhas, analisando seu conteúdo. Atrás dele, em
um quadro pendurado na parede, era possível encontrar anotações
pregadas com tachinhas, pequenos papéis envelhecidos,
preenchidos por letras cursivas e uma ortografia impecável.
— Isso é incrível — disse Max, sorrindo ao observar o cubículo
no qual nos encontrávamos. — Olhem quantos mapas. Eles
realmente levavam isso a sério — somente quando ele puxou o
grosso rolo foi que percebi o vaso ao lado da mesa. Inúmeros
mapas enrolados ocupavam o recipiente.
— Caramba! — disse Bronx ao descer, seguido de Crystal, que
fez o mesmo giro de reconhecimento que fizera ao chegar à casa.
Depois de todos terem descido, mal tínhamos espaço para
andar. Ainda assim, consegui me movimentar em direção à
estante, empurrando Crystal para o lado e me apertando entre a
mesa e Bronx. Quando finalmente me vi de frente a todos aqueles
livros, não consegui conter o sorriso que tomou conta de meu
rosto. Passei a mão sobre algumas lombadas, vendo meu dedo
ficar preto devido à camada de poeira existente sobre elas. Puxei
um exemplar de capa vermelha e título em dourado: prática das
artes da mente.O objeto quase se desfez sob meus dedos, e decidi
que seria melhor não tocar naquilo tudo antes de ter certeza de
que não estragaria nada.
— Achei — gritou Giovane.
Coloquei o livro de volta na estante e voltei-me para ele, que
segurava uma arma nas mãos. Ao observar minha expressão —
que imagino ter sido de choque — ele rapidamente devolveu a
arma ao seu lugar, colocando-a sobre a prateleira.
— Tem mais umas dez pelo menos.
— Ótimo — disse Bronx, aproximando-se e analisando o
achado.
— Puta merda. Olhem o que encontrei — gritou Max,
levantando uma caixa decorada em veludo azul. Uma coleção de
facas.
Apesar de não gostar a ideia de ter que lutar com elas, precisava
admitir que cada uma das lâminas recebera um trabalho tão
refinado que seria impossível não as apreciar. Uma em particular
chamara minha atenção: possuía um pequeno cabo preto,
incrustado com pedrinhas vermelhas, e um corte comprido e
reluzente. Se algum dia precisasse usar qualquer uma delas, já
sabia qual escolheria.
— Rapazes — disse Crystal, surgindo ao meu lado. — Quem
diria que nossa segurança renderia tanta diversão a eles.
Fitei-a, sem saber se brincava ou não.
— Diversão? Acha que estão se divertindo?
Ela revirou os olhos.
— Qual é, Ariana. É claro que estão. Todos felizes com seus
novos brinquedinhos.
— Não são brinquedos, Crystal. Vamos usar isso para nos
defender, não para uma tarde de sábado.
Ela deu de ombros.
— Como quiser — disse, se afastando.
— Sabe usar? — virei-me e vi Giovane estendendo um revólver
para Max, e mais uma vez meu sangue gelou ao observar o
objeto. Odiava aquilo. Sentia-me mal apenas de olhar para tal
coisa. Quanta desgraça um simples projétil não era capaz de
causar. Algo tão pequeno, com um poder tão letal.
Max pegou a arma com um sorriso zombeteiro, estudando-a
com descaso.
— Sabe, sou mais um cara de luta corpo a corpo. Se for matar
alguém, espero que seja justo. E, para isso, preciso ter as mesmas
chances de perder que meu oponente— levantou o revólver,
apontando-o para a parede.— E certamente não é justo poder
matar seu adversário à distância, enquanto você permanece
intacto — abaixou a arma, rindo ao passar o dedo sobre o cano.
Giovane foi até a prateleira, puxou outro revólver e apontou
para Max.
— E se o seu oponente também tiver uma arma? — perguntou
ele, erguendo um sorriso de escárnio.
— Então estamos falando de sorte — respondeu o outro,
entrando no jogo. — Quem puxa o gatilho primeiro —girou o
corpo, apontando o revólver para o peito de Giovane.
— Você treinou um tipo de combate, mas existem aqueles que
treinaram para a artilharia. Por que vencer com uma arma de fogo
seria menos merecedor do que vencer com uma faca? —
questionou Giovane, circundando Max.
— Eu não disse que era desmerecedor — ele meneou a cabeça,
acompanhando os passos do possível adversário. — Disse que
não era justo.
— Pois bem. Por que acha isso?
— Por que iguala as forças — Max deu um passo à frente. —
Por mais que você precise ter uma boa mira para acertar alguém,
não é necessário muito trabalho se essa pessoa estiver bem à sua
frente. E então bum. A sorte está com quem apertou o gatilho.
Não é necessário força. Ambos os oponentes têm a mesma chance
de ganhar. Acredito que do mesmo modo que as armas nos
deixam mais fortes, nos enfraquecem. Não lutamos pelo que
queremos. Resumindo, não tem graça.
Giovane sorriu, abaixando o revólver.
— Isso seria um ótimo conselho — disse ele, balançando a
cabeça. — Se o seu objetivo não fosse a morte do oponente.
Enquanto os garotos discutiam sobre as novas armas e Crystal
abria mapas sobre a mesa, aproveitei para dar uma olhada nos
livros. Existia algo mágico naquele lugar. Perdurara sobre o
tempo, o sol e a chuva. Certamente existiria algo digno de ser lido
ali, e não meras anotações como as encontradas sobre o quadro.
Pulei da cadeira assim que a ideia me ocorreu e caminhei até as
estantes, tentando adivinhar pelas lombadas vazias qual exemplar
deveria ser lido primeiro. As opções eram praticamente
infindáveis. Do rodapé ao teto, as prateleiras estavam preenchidas
por livros de todas as cores e tamanhos. Meus olhos sondaram
aquele paraíso por alguns minutos, até eu finalmente esticar a
mão, alcançando um pequeno livro amarelo de bordas desenhadas
e folhas onduladas que parecia ter passado tempo demais junto à
umidade. Com medo de que começasse a se desfazer como o
anterior, abri-o com cuidado, decidida a começar pelo seu fim.
Marie Lambusco. 1804
Celine morreu, e com isso meu destino foi fechado. É chegada
minha hora, e aceitá-la-ei.
No entanto, longe de eu estar me queixando. Jamais seria
capaz de testemunhar contra a dádiva que me fora dada. Usarei
estas findas linhas para deixar minha gratidão ao mundo. Não
ousaria malgastar as últimas gotas de tinta que me restam para
fixar nestas páginas recordações funestas, pois dessas o mundo já
está cheio. Deixo aqui meus agradecimentos a todas as pessoas
com quem dividi meus anos; às minhas amigas almas; aos meus
indomáveis guerreiros Renácitos; ao meu Forti Lorenzo e minha
eterna êmula Celine, que nem mesmo em morte deixara
transparecer sua bondade, jurando caçar-me até os confins da
terra, para que eu pudesse, enfim, provar o gosto de meu próprio
sangue.
Despeço-me agora desta vida, e aceito de mãos abertas a
próxima. Poderá encontrar-me correndo pelos vales iluminados,
ou tomando chá com pessoas que há muito não vejo. Sorrisos
colorirão minhas faces, e anjos embalarão meus sonhos. Estou
certa sobre a outra vida tal qual estou certa sobre o fato de você,
minha cara amiga leitora, ser ainda uma criança. Antes de
fechar, por definitivo, este livro, abandonando minha história
para as traças, deixe-me lhe contar um diminuto segredo:
chegará um momento em sua estafante vida no qual há de
esquecer-se de sua antiga pessoa. Guarde estas palavras como
guarda a si mesma, minha irmã: há de esquecer-te. Acredite
quando digo que não estou a rogar-lhe pragas. O Universo bem
sabe que não seria capaz de tamanha audácia.
Espero que enquanto minha alma descansa, e uma próxima se
prepara para sua jornada, que a humanidade não se perca em
meio aos seus egoísmos e desilusões; que, ainda que por poucos
anos, consiga enxergar o futuro como algo instável e aceite isso.
Por fim, desejo que minha leitora e irmã não necessite de noventa
anos para depreender que existe mais mágica em uma criatura
arfante do que numa lamuriosa.
Não acredito que chocada seja a palavra certa. Mas fiquei, de
fato, curiosa com minha descoberta. O texto continuava com uma
caligrafia redonda e caprichada, e, ao terminar de lê-lo, estava
mais entusiasmada do que nunca. A moça que o escrevera era
ninguém menos que a Invocadora da Luz de sua geração. E aquilo
que eu segurava em minhas mãos, era nada menos que seu diário.
Quem diria. Um diário. Uma estante cheia deles.
Durante alguns segundos, fiquei apenas a observar as palavras,
as frases e os sentidos que tomavam quando unidas. Passando a
mão levemente sobre o nome da mulher, quase senti suas
emoções ao escrever aquelas linhas. E então era como se Marie
estivesse ao meu lado, segredando ao pé de meu ouvido todas as
suas loucas aventuras; como era conviver com Lorenzo, lutar
contra Celine, ajudar todas aquelas almas e, mais tarde, ser uma
delas.
Deixei o livro em cima da mesa, seguindo rapidamente para a
estante e puxando outro.
Jolene Arcada, 1562.
Eles estão queimando bruxas, enforcando-as.
Ao menos, é isso que pensam estar fazendo.
Ao menos, acreditam estar perseguindo as mulheres certas.
Não estou mais segura. Sei agora que escolhi errado.
Pela Deusa, como escolhi errado.
John disse que voltaria por mim.
Já se passaram quatro dias desde que ele entrara na floresta.
Não creio que o verei novamente.
Para seu bem, espero que esteja morto sob algum carvalho.
Pedirei à Deusa para protegê-lo.
Proteger a todos nós.
Eram todos diários. Diferentes Invocadoras de diferentes
épocas. Certamente, havia muito para aprender ali. Muito a se
compreender. Poderia descobrir coisas sobre eu mesma, apenas
por ler sobre as experiências de outras. Era uma chance incrível.
Crystal e eu não possuíamos modelos a serem seguidos. Aqueles
livros eram o mais próximo que teríamos de mentoras.
Precisaríamos aprender a nos comportar segundo as leis que
regiam nosso mundo, e apenas aquelas páginas poderiam nos
dizer as reações que cada decisão nossa traria.
Continuei a ler os nomes e datas, retirando livro após livro da
estante e formando uma grande pilha sobre a mesa.Em questão de
minutos, já havia folheado mais da metade da primeira estante.
— Crystal, olhe isso — disse, jogando o último diário da pilha
sobre o mapa que a garota lia.
Crystal pegou o livro nas mãos, torcendo o nariz e sussurrando
algo que imaginei ter sido “que mau gosto”.
— O que é esta velharia? — perguntou ela.
— Não seja tão apressada em julgar as coisas — repreendi-a.
— Abra e veja por si mesma do que se trata.
— Não, obrigada — disse ela, ameaçando descartar minha
ideia, mas sem conseguir soltar o livro. — Acho que prefiro que
me diga o que é isto. Assim não precisarei ficar lendo e tentando
adivinhar o que quer me contar.
Suspirei, controlando-me para não rolar os olhos para seu
descaso.
— É um diário, Crystal. O diário de uma Invocadora. Essa
estante está cheia deles — apontei para as prateleiras metade
vazias. — Talvez queira tirar a cara desses mapas um pouco e
aprender com nossas ancestrais.
Sem esperar por sua resposta, virei-me e continuei minha
viagem pelo tempo.
Melina Lagguna, 1327.
Laverna Victoria, 1940.
Alexis Ambrosia, 1221.
Pilar Felicia, 1488.
Octavia Cardad, 1700.
Caminhei por feudos da Idade Média, navios mercantes, terras
distantes e cidades modernas. Chorei perdas de pessoas que
conheço apenas por nome e visitei o momento de suas mortes.
Consolei-me quando estava só, e reergui-me para continuar a luta.
Apreciei as pequenas dádivas que me foram dadas. As duradouras
companhias que, apesar de serem poucas, eram as melhores.
Queimei na fogueira junto àquelas que chamavam de minhas
irmãs, e fui enforcada por crimes não cometidos. Passei fome.
Assisti enquanto o mundo queimava à minha volta, sabendo não
haver nada que pudesse ser feito. Vi impérios ruírem e homens
serem devorados por seus desejos. Chorei paixões que não pude
viver. Alegrei-me pelos beijos trocados. Senti a felicidade do
nascimento, bem como a solidão da morte.
Dia a dia, ano a ano, geração a geração. Tudo registrado.
Descrito com a maestria de quem compartilhava minha sina.
Todas aquelas mulheres, Invocadoras da Luz ou Trevas, sabiam
pelo que eu estava passando. Ler seus manuscritos era como um
sopro gélido em minha alma: ao mesmo tempo em que era
reconfortante, era terrivelmente assustador.
Crystal olhava-me de soslaio. Senti algo escorrer por minha
face e ergui a mão, constatando que meu rosto estava molhado.
Também, como poderia não estar? Após ler páginas e mais
páginas sobre como o destino de minhas antecessoras não fora em
nada promissor, era de se esperar que eu pensasse o mesmo sobre
o meu. E se morrêssemos naquela casa? E se o começo de minha
história fosse também o meu fim? Minha mãe nunca saberia o que
aconteceu. Nem meu pai. Lucas e Maia passariam o resto de suas
vidas pensando que eu enlouquecera. Tudo o que possuía agora
era uma chance de sobreviver. E precisaria me agarrar a ela se
quisesse mudar as coisas.
— Vamos. Largue isso — disse Crystal, puxando o diário de
minhas mãos. Larguei o objeto com os olhos perdidos, enquanto
as cenas que acabara de ler se repetiam em minha mente. — Ari
— ela pousou o livro na mesa, virando-se para mim e abaixando
até nossos rostos se encontrarem. Com a mão em meu ombro,
continuou: — Não se prenda a memórias que não são suas. Essas
páginas. Elas não pertencem a você.
— É claro que pertencem a mim. Assim como pertencem a
você. Como pode dizer que não?
— Minhas memórias estão aqui — ela tocou a cabeça com o
indicador. — Esses diários nada mais são do que memórias de
pessoas que vieram antes de nós. Não há razão para nos
lamentarmos por elas.
— Mas e se tivermos o mesmo destino? Tem ideia de quanta
desgraça essas páginas guardam?
Ela suspirou, largando meu ombro e começando a arrumar a
bagunça que eu fizera sobre a mesa.
— Sei que está com medo. Também estou. Mas não podemos
acreditar que teremos o mesmo destino somente por que somos a
mesma coisa. O mundo mudou, Ariana, e nós também — ela
retirava os livros de baixo dos braços e os colocava novamente na
estante. — Todas as noites antes de dormir me pergunto como
será o dia seguinte. Se ainda estarei viva para apreciá-lo. Mas
então me forço a aceitar que não existe maneira de saber isso.
Precisamos viver cada segundo acreditando que existirá um
seguinte.
— Mas e se não existir, Crystal? E se este momento, esta
conversa, for a última coisa que terá?
Ela parou de arrumar a estante e virou-se para mim.
— Mas não há como saber isso, não é mesmo? — alguns
segundos se passaram, enquanto suas palavras pareciam
preencher o ar à nossa volta. — Saia um pouco daqui. Vá tomar
um ar puro. Certamente se sentirá melhor. Essas velharias não
servem para outra coisa senão nos deprimir — forçou um
sorriso.— Pode ir. Termino aqui.
Saí do pequeno porão, franzindo os olhos para a claridade
quando atingi a sala. Giovane tomava algo com Bronx no sofá. Os
dois levantaram a cabeça para perguntar se estava tudo bem e,
quando acenei de volta, voltaram para sua conversa. Perguntei-me
se pensavam como eu e Crystal. Se temiam a morte todas as
noites.
Sentei-me sob uma das árvores ao lado da Tumba, inspirando
profundamente o cheiro da tarde. A grama. As árvores. Tudo
parecia tão calmo. Os passarinhos voavam alto e as nuvens
dançavam preguiçosamente no céu. Logo escureceria, e ainda não
havíamos chamado Azriel. Ou será que Bronx já o havia feito
enquanto eu estudava os diários? De qualquer forma, estava
nervosa. Queria que as respostas chegassem logo. Não suportava
mais esperar para saber o que fazer. E se Ian estivesse em apuros?
Precisava ajudá-lo. Devia isso a ele. Apesar de nenhum de nós ter
mencionado isso, sabíamos que sem o aviso do Renácito,
poderíamos não estar vivos até o fim do mês.
Uma faca pousou ao meu lado. Gritei, levantando-me
cambaleante e focando as árvores atrás de mim. Estava prestes a
correr para a casa quando ouvi sua risada. O mesmo tom de
malícia misturado à diversão que eu conhecia muito bem.
— Está louco ou só querendo me matar? — gritei para os
quatro cantos, sem saber onde ele se escondia. — Por que
acredite, também quero fazer isso com você.
— Só queria te mostrar o quão estúpida é por ficar sentada aí —
disse Max, saindo de trás de um tronco. Seus olhos irradiavam
jovialidade e ele ria para si mesmo, como se houvesse acabado de
ouvir a mais engraçada das histórias.
Cruzei os braços, bufando. Não pretendia lhe dirigir a palavra
tão cedo, porém, não possuía mais escolha.
— E por que seria estupidez de minha parte ficar sentada aqui?
— perguntei, encarando-o em tom de desafio.
— Por que seu amiguinho poderia aparecer, é claro — ele
arrancou a faca do chão, limpando a lâmina na calça. Se existia
qualquer chance de reconciliação entre nós, essa parecia morrer a
cada palavra proferida. — Não me importo se quer ficar andando
por aí com um possível ataque sobre nós. Mas se o jogo depende
de todos, por favor, faça sua parte e continue viva.
— Você é realmente um babaca — resmunguei.
— E você é cheia de hipocrisia, sabia?
Olhei para ele, surpresa.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que você fala o tempo todo sobre como fui
babaca com você, sendo que me ignora dia e noite. O que eu fiz
quando te machuquei? Pedi desculpas. Tentei de verdade ser seu
amigo. Mas você não quis isso. Tudo que fez nos últimos dias foi
me ignorar. Vai dizer que se importa comigo? Não. Você me quer
morto. Então, por que eu deveria te tratar de maneira diferente?
—sua mão direita se fechou em punho, as veias parecendo saltar
de sua pele.
— Você me traiu. Acha que foi fácil superar aquilo?
— Não. Mas que droga, Ariana. Eu nunca pensei que seria
fácil. Apenas deixe de ser tão egoísta. Você não é a única pessoa
que sofreu no mundo.
Senti um gosto amargo tomar conta de minha boca. O que ele
queria dizer com aquilo? Que o que me causara não fora tão ruim
quanto eu dizia? Que o fato de ter mentido para mim sobre seus
sentimentos era algo tão ridiculamente bobo que somente alguém
como eu reclamaria sobre isso? E o fato de ter tentado me levar
para as Trevas, me induzido a matar pessoas? Nada disso
significava algo? Talvez houvesse feito tantas coisas piores que,
por comparação, o que fizera comigo nada mais fora que uma
brincadeira para ele.
— Você não entende — disse Max, aproximando-se.— Eu não
sou a porcaria do seu inimigo. Por mais que você queira.
— Não tente jogar isso para cima de mim. Foi você quem
mentiu, para início de conversa.
— É claro que menti. Precisei mentir. Mas você não
compreende isso, não é mesmo? É boa demais para ferir alguém,
mesmo que isso custe sua vida.
— Fala como se fosse algo ruim.
— Por que é.
— Prefiro mil vezes morrer a me tornar alguém como você.
— Alguém como eu?
— Alguém que precisa passar por cima dos outros para atingir
seus objetivos.
Ele me fitou boquiaberto. E, pela primeira vez, pensei tê-lo
atingido.
— É isso que pensa que fiz? — perguntou, expirando.
Não respondi.
— E ainda assim tem coragem de dizer isso a mim — ele riu.
— Você é patética.
— Está vendo? Tudo o que faz é me insultar.
— O quê? Prefere elogios? Talvez eu a elogiasse se fosse seu
amigo. Não, espere. Não sou seu amigo. Por que você não me deu
a chance de me explicar.
Grunhi, jogando os braços para o alto.
— Chega. Pare de falar como se a culpa fosse minha.
— A culpa é sua.
— Como... Como pode dizer isso? O que fiz a você? Se não o
dei outra chance é por que estava tentando me proteger. Como
posso confiar em qualquer coisa que saia de sua boca, tendo em
vista que tudo o que me disse até a casa de Crystal foi mentira?
— Tudo mentira? — ele me olhou incrédulo. — Como você
pode dizer isso? E a biblioteca com o livro? E os sonhos? Eu
contei dezenas de coisas a você. Conseguiu me trazer de volta.
Como pode dizer que tudo foi uma mentira? Só por que não lhe
contei que pertencia ao lado das Trevas? Ah, Ariana. Supere isso.
Haverá muito mais com o que se preocupar.
Quando sua fala acabou, estava tão confusa que não pude
formular uma resposta. Não sabia mais o que pensar. Não sentia
que estava errada evitando-o. Mas também não sentia que estava
certa. Não acreditava que ele merecia uma segunda chance,
porém, questionava-me a razão pela qual não a oferecia. Talvez
ambos fôssemos culpados no fim das contas. Eu de minha
maneira. Ele da dele.
Capítulo 31
Ariana
Azriel era uma criatura gloriosa. As longas e brancas asas eram
dotadas de um caráter etéreo, se estendendo atrás de seu corpo
como a coroar alguém que deveria ser o rei dos céus. Os olhos,
azuis como o mar em um dia de tempestade, transmitiam ao
mesmo tempo paz e destruição, e perguntei-me como era possível
alguém possuir olhos tão expressivos. O corpo mais parecia uma
escultura. E o cabelo era como fios de ouro a escorrerem lhe sobre
as faces. Era a mais perfeita visão do homem — ainda que não o
fosse.
Estávamos reunidos na sala. Crystal distribuíra copinhos de
plástico para nos servimos do chá que foi posto sobre a mesa. O
líquido possuía uma aparência esverdeada e, apesar de não gostar
da bebida, sabia que naquele momento não conseguiria tomá-la
nem que fosse minha preferida. Meus pensamentos fervilhavam.
E se não quiséssemos saber o que o anjo viera contar? E se fosse
melhor que ficássemos no escuro, preparados apenas para o
ataque? Não podíamos simplesmente fechar os olhos e fingir que
tudo aquilo era normal, que a vida seguia seu curso naturalmente?
Azriel continuava silencioso, estudando-nos com seus olhos
poseidônicos. Vez ou outra ameaçava dizer uma palavra, então
levava o copo até a boca e tornava a nos fitar. Era difícil — para
não dizer impossível — saber o que se passava em sua mente.
Chegara horas atrás e, até agora, não havia feito outra coisa senão
beber. Seus largos dedos contornavam o copinho e o levavam até
a boca repetidas vezes, até o recipiente se esvaziar. Então ele o
enchia novamente e recomeçava o ciclo. Fitando e bebendo.
Fitando e bebendo.
— Azriel — Bronx quebrou o silêncio. — Tenho certeza de que
não veio aqui para acabar com nosso chá.
O anjo encarou-o calmamente, arqueando o lado esquerdo de
sua boca.
— Certamente que não, meu amigo. Mas não sou eu quem tem
perguntas, não é mesmo?
Bronx olhou para Max, procurando por ajuda.
— Você sabe por que o chamamos — disse ele. — Por que não
pulamos as perguntas e vamos direto às respostas?
— Perdoem-me. Não ouvi o chamado de vocês. Estou aqui a
pedido de Ian. O Renácito me contatou ontem à tarde, pedindo de
forma veemente que eu viesse para esta casa. Entendo agora a
razão.
— Não ouviu nosso chamado? — riu Bronx. — Isso é ótimo.
Por que estamos o esperando há dias.
— Sinto muito, Bronx. Se soubesse disso certamente teria
estado aqui mais cedo — disse o anjo, dando outro gole na
bebida. — Agora, o que querem saber?
— Ian está bem? — perguntei, atropelando todas as perguntas
já preparadas que possuíamos.
— Não posso lhe responder isso, Invocadora. Não estive com
Ian, apenas ouvi seu chamado. Mas penso que não devemos temer
por sua vida. Tudo ficará bem após vocês resolverem os
contratempos.
— Após nós resolvermos o quê? — perguntou Crystal, tirando
as palavras de minha boca.
— A situação das Invocadoras, é claro — ele franziu o cenho,
observando-nos. — Ah. Então é isso. Vocês não sabem sobre as
outras Invocadoras. Pensei que alguém já teria lhes avisado a essa
altura. As coisas não estão muito boas — ele pousou o copo sobre
a mesa.
— Sabemos disso. Estamos sendo caçadas.
— Caçadas? — o anjo riu. — Essa é nova. Estava mesmo me
perguntando para que tantos Renácitos. Acho que agora sabemos.
Bronx levantou do sofá, caminhando até o amigo e parando em
sua frente. Com um olhar, conseguiu cessar a risada de Azriel. O
anjo ficou apenas o observando, enquanto o outro andava de um
lado para o outro, como se tentasse encontrar a solução para um
grande problema.
— Por favor, Azriel. Não temos tempo — disse ele. — O
relógio nos pressiona e temos apenas alguns dias para nos
prepararmos para o ataque. Se sabe de algo, nos conte.
O anjo suspirou com a interrupção de seu riso. Não parecia feliz
ou triste, cansado ou entediado. Sua expressão era como um
diamante: austera, bonita e solene.
— Alguns meses atrás — começou ele. — Ian me procurou.
Disse que muitos de seus companheiros estavam sumindo e a
situação ficando estranha. Não liguei para isso na hora. Renácitos
são convocados o tempo todo, é algo normal. Entretanto, vieram
outros, Renácitos e anjos, cada um com sua história. Até o dia em
que alguns amigos meus me apresentaram uns dados. O nível de
ressuscitados dessa geração era algo estrondoso, maior até que os
das épocas de Primeira e Segunda Guerra Mundial.
— Espere — interrompi-o. — Por que ressuscitariam Renácitos
para as guerras?
Ele deu de ombros.
— Não achou que pudessem voltar à vida só para ajudar
Invocadoras, não é?— seu sorriso fez com que eu me sentisse
boba, como se houvesse acabado de fazer uma pergunta estúpida.
O que, com certeza, era o que ele pensava. — A razão de eles
poderem voltar é também um pequeno caso de escravização,
penso. Possuem autorização para retornar e curtir mais um pouco,
desde que cumpram o que foi exigido. Quando preciso, lutam em
suas guerras; quando preciso, nas do mundo.
Tentei colocar aquilo na cabeça. Milhares de almas trazidas de
volta à vida, apenas para serem assassinadas nos campos de
batalha. Era nisso que eu estava envolvida. Uma guerra que não
se contentava somente em matar as pessoas, mas também em tirá-
las de seu descanso, fazendo com que vivessem em um ciclo
interminável de vida e morte a seu bel-prazer.
— Mas enfim, essa não é a questão — recomeçou Azriel.—
Quando finalmente chequei os números, não pude acreditar no
que estava vendo. Era algo grande demais. Seria impossível duas
Invocadoras inexperientes terem trazido tantos Renácitos em tão
pouco tempo. E não entendam isso como falta de fé em vocês,
acredito em seus potenciais. Mas já vivi muitos séculos. Sei como
as coisas funcionam. E, depois de observá-las por algum tempo,
tive certeza de que algo estava errado. Ainda nem sabiam que
eram Invocadoras quando os números começaram a aparecer. Por
isso, dois anos atrás, criei um grupo em conjunto com algumas
almas. Chegaríamos ao fim disso e descobriríamos o que estava
acontecendo. Mas muitas delas sumiram em meio à busca e, já no
começo, precisei cancelar toda a missão — ele expirou
fortemente, como se quisesse anunciar que o pior ainda estava por
vir. Bronx, Max e Crystal se encontravam tão concentrados que
mal piscavam. Pareciam hipnotizados pelas palavras de Azriel, e
precisei me concentrar para não sentir o mesmo. — Cerca de um
ano depois, quando ambos os mundos estavam entrando em
colapso, e nem mesmo os anjos sabiam o que fazer, um amigo me
trouxe essa lenda. Uma antiga história encontrada nas anotações
de uma bruxa. Nela dizia que era possível gerar mais de duas
Invocadoras em uma única geração. Porém, o preço para tal era
alto. O feitiço era tão poderoso que afetaria não somente quem o
fizesse, mas também todas as pessoas que possuíssem qualquer
tipo de ligação com a linhagem das Invocadoras.
— É isso que está acontecendo? — interrompi-o novamente,
agradecendo sua expressão neutra. — Alguém fez esse feitiço e
agora temos mais Invocadoras além de Crystal e eu?
Azriel anuiu.
—Como fizeram isso?
O anjo fitou-nos por um momento, ponderando o que estava
prestes a nos contar.
— A Invocadora que fizesse a magia precisaria abrir mão de
sua essência, doá-la ao universo para que encontrasse novas
hospedeiras. Entretanto, como já devem saber, a essência de uma
Invocadora é quem ela é. Está em seus ossos, carne, sangue e
espírito. Em outras palavras, quem fizesse o encanto precisaria se
sacrificar.
— Ah, meu Deus — murmurou Crystal. — Alguém fez isso?
Alguém se matou para gerar mais de nós?
— A Invocadora das Trevas da geração anterior, Liliane—
declarou Azriel. — Não tive a chance de conhecê-la, mas
disseram ser muito impetuosa.
— Por que ela faria isso? — disparei, sem conseguir imaginar
um motivo que levasse alguém a acabar com sua própria vida
apenas para dar poder a outros.
Ele balançou a cabeça.
— Não sei. Talvez para causar um desequilíbrio na balança.
Criar mais Invocadoras em uma única geração, mas beneficiando
apenas uma das forças. É um golpe baixo. E para ser sincero,
arriscado. Ela não estaria expondo apenas as crianças que
nasceram com sua essência, mas também todas as almas que
residem no lado afetado.
— O das Trevas, no caso — disse Max.
— Sim. O das Trevas — concordou Azriel.
Meu peito se apertou ao ouvir aquelas palavras. Por que eu
precisava estar ligada a tais coisas? Por que eu, de todas as
pessoas, era a Invocadora das Trevas? Fui até o sofá e afundei nas
almofadas, mergulhando nas dezenas de pensamentos que
afloravam em minha mente. Com a ponta dos dedos, comecei a
massagear minhas têmporas. Pensava já ter ouvido o suficiente,
porém, sabia que aquela poderia ser nossa única chance de obter
respostas, de modo que precisei continuar com o questionário.
— Mas se é tão simples assim, por que nenhuma Invocadora
fez isso antes? — perguntei. — Por que ninguém, até então, havia
se sacrificado em busca de poder?
— Não é simples, Ariana. Ela deu sua alma por isso. Liliane
não existe mais, em nenhum mundo. Seu espírito foi
transformado em poder e fragmentado. E por mais que isso possa
ser considerado uma forma de permanência, é como se ela nunca
houvesse existido.
De repente, imaginei meu corpo se transformando em pó, e
então esse se juntando à pele de um recém-nascido, lisa e úmida.
Minha essência entrava nele e, como um verme, tomava conta. Eu
estava em suas veias. Eu estava em seu cérebro. Eu estava em seu
coração.
— Por que Ian não o chamou antes? Você poderia tê-lo tirado
de lá, não? Por que ele continua com aquelas pessoas?
— Ian pensou que eu o obrigaria a sair do acampamento caso
me chamasse. Disse que estava com o grupo procurando alguém
que pudesse ajudar, alguém capaz de impedir uma guerra.
Minha respiração falhou.
—Eu. Ele ficou lá para me encontrar — um silêncio se seguiu.
— E não pode ir salvá-lo agora? Traga-o para cá.
Ele meneou a cabeça.
Um nó se formou em meu estômago. O fato de Azriel dizer que
Ian ficou com o grupo de Renácitos — o que, de fato, ele era —
apenas para conseguir me encontrar me apavorava. Tinha medo
da quantidade de confiança que o rapaz depositava em mim, de
suas altas expectativas. Quantos mais pensavam da mesma
maneira? Quantos deles acreditavam que eu poderia salvá-los?
Será que não sabiam o quanto eu era inexperiente? Não estava
pronta para aquilo. Não estava pronta para nada.
Engoli aquela sensação, fechando os olhos e a empurrando para
longe.
— Quantas Invocadoras a mais existem? — questionei Azriel,
certa de que não possuía animação para outras perguntas.
— Não sei exatamente — respondeu o anjo. — Dizem que o
máximo que se pode dividir a essência é nove vezes. Porém, só
teremos certeza disso depois que vocês as encontrarem.
A sala toda estava em silêncio. Giovane sentado ao chão, Max
na poltrona, Crystal ao meu lado e Bronx em pé, encostado à
lareira. Todos com os olhares fixos na deslumbrante figura ao
centro. Apesar de não termos certeza do que viria pela frente,
sabíamos que não seria agradável.
Assim que Azriel acabou de falar, compreendi o que queria
dizer. O que tentava dizer desde o começo. Fitei meus amigos,
perguntando-me se eles, assim como eu, captaram a mensagem
silenciosa nas palavras do anjo. Esperava que o houvessem feito.
Por via das dúvidas, decidi que o melhor seria alguém dizer
aquilo em voz alta. Juntei o pouco da força que encontrei em meu
corpo e empurrei as palavras para fora, sentindo seus gostos
amargos ao atravessarem minha língua:
— Precisamos matá-las — falei, preenchendo com um ódio
ainda inexistente o até então silêncio que nos cercava. —
Precisamos encontrar as outras Invocadoras e colocá-las abaixo,
antes que façam isso conosco.
Capítulo 32
Max
Foi uma sensação estranha escutar aquilo sair da boca de
Ariana. Era exatamente o que queria ouvir. Exatamente o que
precisava ouvir. Mas não como pensei que seria. Era como um
eco distante de sua voz. Um grito que saía de seu corpo, mas que
não era seu.
Não. Aquilo era ela. Uma Invocadora falando.
Precisava colocar em minha cabeça que Ariana estava prestes a
mudar. Bronx e eu sabíamos muito bem o que o convívio com os
seres do outro mundo causava. Como você se tornava mais forte,
frio e determinado. Crystal estava no mesmo barco, exceto que já
havia começado a entender isso.
Como alguém que passara diversos anos em treinamentos, eu
estava ciente de que não possuíamos forças para combater um
grupo de Renácitos. Ariana não sabia lutar. O máximo que
conseguira fazer fora cravar uma faca no abdômen de uma
pessoa— o que, em termos de um grupo, não serviria de muita
coisa. Nunca vira Crystal lutando, mas assumi que ao menos sabia
usar uma faca. Bronx era inteligente, certamente teria a ensinado
alguns golpes durante o tempo em que moraram juntos. E tinha
Giovane, quem nem deveria estar ali. Mas já que estava, saber dar
alguns socos era o mínimo que eu esperava dele.
Quando Azriel finalmente se levantou para ir embora, cerca de
uma hora depois, lançou-me um olhar significativo, e não precisei
de mais nada para compreender o que queria dizer. Era o
momento de os jogos acabarem. As brigas precisavam cessar.
Ariana não estava pronta, e era meu dever como Forti ajudá-la. A
Invocadora, querendo ou não, deveria ser treinada. Não
poderíamos mais nos entregar a sentimentos como traição,
desilusão ou mentiras. Para podermos ter um futuro,
precisaríamos nos livrar do passado.
Todo o meu corpo formigava com a tensão à nossa volta, das
coisas que não sabíamos e do que teríamos de enfrentar. Contudo,
eu não estava com medo. Essa é uma promessa que se ganha ao
viver nesse mundo. Depois de um tempo, você simplesmente
enfrentou coisas suficientes para não tremer quando vê algo novo.
Entretanto, diferente do que pensavam, não me importava
somente comigo. Ariana, Bronx, Giovane e Crystal eram as
únicas pessoas que me restavam. Não éramos uma família, não
estávamos tão unidos, mas eu temia por eles. Tinha medo de que
não conseguissem encontrar coragem para enfrentar o que estava
atrás de nós, ou o que acharíamos pela frente. Tinha medo que
temessem morrer, por que isso, de uma maneira ou de outra, era
inevitável.
Capítulo 33
Ariana
O lago era azul, da mais cristalina água. O vento soprava, e
pequenas ondas se formavam sobre a superfície. Um sentimento
de paz parecia flutuar por entre a grama alta, tocando plantas e
animais para se juntarem em seu sussurro abençoado. Ao fundo, a
voz de minha mãe cantava para mim, doce, serena e distante. As
descrições do paraíso não chegavam aos pés daquele lugar.
Deitei na grama, esparramando-me sob o céu anil e fechando os
olhos. Deixei que me carregassem para onde os pássaros voavam.
Era longe?
Não tinha ideia.
Tudo parecia distante.
Tão distante...
— Ariana — chamou alguém.
Era de manhã. O quarto estava tomado por uma luz oscilante.
Não consegui reconhecer a voz de primeira. Levantei a mão até a
janela e a abri completamente, sentindo o calor inundar o cômodo
e revelar a figura à minha porta.
— O que está fazendo aqui? — perguntei, mal-humorada.
Max se remexeu, subitamente desconfortável.
— Você estava sussurrando o nome de uma mulher — disse,
estudando minha expressão. — Desculpe. Não esperava
interromper um momento tão privado.
— Então agora você tem educação? — ri, passando a mão em
meus cabelos emaranhados. Não queria ser má com ele, mas até
ter certeza de que estava disposta a perdoá-lo, não daria espaço.
— Bom saber.
Ele suspirou, jogando-se contra o batente.
— Precisamos conversar —informou, desviando o olhar.
— Precisamos?
Ele concordou.
— Já pensou em como vai lutar contra os Renácitos, ou está
esperando que eu a proteja novamente? —não consegui
identificar se existia um quê de brincadeira em sua voz.
— Espero que meu príncipe encantado esteja lá para morrer por
mim. Não tenha dúvidas — disse, levantando-me.
— Estou falando sério — Max desencostou-se da parede,
assumindo uma postura ereta. — Quero te ajudar.
Virei-me para ele, exasperada. Só podia ter ouvido errado. Ele
não havia realmente falado aquilo.
— Você quer me ajudar? Que lindo, Max. Por que não coloca
isso no próximo cartão com flores que me enviar?
Ele me fitou com descrença, balançando a cabeça como se eu
houvesse acabado de desapontá-lo.
— Pare de ser infantil. Não percebe que isso já devia ter
acabado? Meu Deus. Você prefere morrer a ouvir o que tenho
para falar?
— Não. Prefiro morrer a ter de confiar em você novamente —
disparei, sem conseguir conter as palavras.
Seus olhos dançaram sobre mim por um segundo. Então ele
desviou o olhar, focando o chão à sua frente.
— Esse é o problema. Você terá que confiar —ergueu o queixo,
determinado. — Eu sou seu Forti. Não Bronx ou Giovane. Sou eu
quem pode ajudá-la. Espero que perceba isso logo — disse, dando
as costas e completando: — Me encontre ao lado da casa em meia
hora. E não ouse me fazer esperar.
Meia hora depois, e contra minha vontade, eu estava na clareira.
Não tenho nada melhor para fazer, de qualquer modo, pensei.
Vestia uma blusa azul de alcinha e um short jeans. Já passava das
dez da manhã, e o tempo começava a esquentar. Quando o sol
começou a queimar meus ombros, levantei o rosto, sentindo
minhas faces corarem.Sem querer admitir, havia começado a
gostar daquele lugar. Da maneira como tudo parecia se encaixar.
Os cheiros. As plantas. As cores. Os animais. As únicas coisas
que não seguiam as regras éramos nós e a Tumba. Sentia-me
como um parasita, apenas sugando a energia que me era
oferecida.
Algo fino roçou em minhas costas e, antes que pudesse me virar
para ver o que era, uma mão me pressionou, impedindo meu
movimento.
— Nem pense nisso — ele riu. — Regra número um: sempre
esteja atenta.
Soltei o ar.
— Acho que não preciso dizer o quanto isso está chato.
O objeto deixou minhas costas e virei-me para ele.
— Chato, mas necessário —constatou Max. — Você é distraída
demais. Se eu precisar apontar algo para você de cinco em cinco
minutos para que preste mais atenção nas coisas, tenha certeza de
que farei isso.
Ele tornou a se afastar, a postura ereta, o andar calculado. Foi
até a pequena coleção de facas que colocara sobre a grama macia,
pegando-a e voltando até mim.
— Escolha uma — disse ele, abrindo a tampa e revelando
quatro facas, cada uma com seu próprio estilo.No mesmo instante,
meus olhos pousaram sobre a de cabo preto, pela qual me
interessara no outro dia. Coloquei a mão sobre ela e, quando Max
acenou em concordância, tirei-a da caixa, passando por minhas
mãos e analisando o produto. Era feita de um material
extremamente leve, o que me ajudaria.
Ele levou a caixa até a grama novamente, voltando com uma
faca de cabo verde em suas mãos — a mesma que arremessara ao
meu lado dois dias atrás. Seus olhos brilhavam de excitação.
Quando ficamos frente a frente, a arma pareceu queimar sob
minha pele.
— Primeiramente vamos ver o que sabe — Max girou a lâmina
entre os dedos. — Mas não se preocupe, não espero muita coisa.
Revirei os olhos.
— Pode parar com as piadas? — pedi, mesmo sabendo que ele
não o faria.
— Não são piadas, e sim constatações — ele relaxou, saindo da
posição de ataque. — Você não sabe nada. Provavelmente nem
estaria viva se não fosse por mim.
— Ei — ralhei, irritada. — Não devo minha vida a você.
Ele riu.
— Claro. O que fizer com que se sinta melhor.
Então veio em minha direção. A faca pendendo em sua mão, os
olhos fixos em minha figura. Fiquei petrificada, sem saber o que
fazer. Deveria correr em sua direção? Deveria esperar que
chegasse até mim?Antes que pudesse fazer qualquer coisa, sua
mão encontrou meu pescoço e ele me puxou para perto —
naquele momento, percebi que já perdera, antes mesmo de
encontrar o chão. Sua mão direita, que estava com a faca, foi
posicionada em meu estômago. Meus olhos se arregalaram com o
susto e soltei todo o ar que restava em meus pulmões. Fora a luta
mais rápida e patética que já havia presenciado. Max deu um leve
sorriso e disse:
— E morreu.
Suas mãos me soltaram.
— Droga — exclamei, fincando minha faca na grama.
— O quê?
— Isso vai ser difícil. Meu instinto sempre vai ser fugir. Não
posso simplesmente correr quando você fizer isso?
Ele franziu o cenho, como se eu houvesse feito a pergunta mais
estúpida que já ouvira.
— Não. Vamos de novo.
Ele estava na mesma posição de antes, e eu agora fazia o
mesmo. Era óbvio que Max era mais forte. Se eu quisesse ganhar,
teria que ser por meio de alguma técnica — algo que eu
claramente não possuía. Decidi atacar e corri em sua direção,
tentando repetir o movimento que fizera comigo, colocando a
mão no pescoço do oponente e posicionando a faca em sua
barriga. Porém, não saiu como o planejado. Max desviou para a
esquerda, passando por baixo de meu braço com a lâmina e
puxando-o para trás. A faca caiu no chão. Tentei ignorar a dor que
atravessou minha coluna. Precisava me soltar. Ele passou o outro
braço por meu pescoço, posicionando o metal afiado sobre minha
pele, e então eu não tinha mais chance.
— E morreu — mesmo sem vê-lo, sabia que estava sorrindo.
— Ok. Isso não vai dar certo — falei, me afastando.
Larguei a faca no chão e me joguei para trás, encontrando a
grama fofa. Fechando os olhos, tentei esvaziar a mente. Mas isso
não era fácil. Sentia a pressão das expectativas me comprimindo.
Você precisa aprender a lutar. Você é a única que pode nos
ajudar. Você é uma Invocadora. Você deve salvar almas. Era uma
luta constante, não só para aceitar tudo o que me diziam, mas
também para não sair correndo.
— Você pode ao menos tentar? — perguntou Max, abrindo os
braços acima de mim, não compreendendo meu mau humor. É
claro que não compreendia. Socar alguém era tão fácil para ele
quanto ser socada era para mim.
— Eu posso tentar, ok? Eu posso. Mas nunca vou vencer você.
É bom demais para mim. Nunca serei uma oponente à altura.
Ele riu secamente.
— Se sou tão bom assim, não existe pessoa melhor para te
ensinar a lutar.
— Eu sei — encolhi-me.
Ele se aproximou, sentando ao meu lado. Parecia um pouco
desconfortável com toda a situação, como se não soubesse o que
fazer quando eu ficava emburrada. Suas relações eram à base do
tranco, e aquilo não parecia funcionar comigo.
— Quer que eu chame o Bronx?
— Não. Ele também sabe lutar. Todos vocês sabem.
Ele franziu as sobrancelhas.
— O que está te incomodando?
Balancei a cabeça.
— Nada — respondi.
— Droga.
— O quê?
— Se você disse que não é nada,então a coisa está feia. Vamos.
Conte-me. O que foi? — pediu ele, apoiando-se nos cotovelos.
Uma imagem tomou conta de minha mente. Eu segurava uma
faca banhada em sangue. Abaixo de mim jaziam dezenas de
corpos, cada um com uma ferida única e letal. Em minhas visões
eu não era fraca. Muito pelo contrário, era a mais forte. Apesar de
considerar muitos desses meus pensamentos algo deplorável —
toda a crueldade já vivida encontrando-se em apenas uma pessoa
—, uma parte de mim gostava da sensação de poder que traziam,
como se em algum momento eu realmente fosse capaz de tudo
aquilo. Minha imaginação era ao mesmo tempo válvula de escape
e tortura, e muitas vezes eu não sabia com qual das duas estava
lidando.
— Você acha que conseguiremos? — perguntei, sustentando
meu olhar sobre ele. — Matar as outras garotas, digo.
Max pigarreou, virando-se para encarar as pedras ao longe. Seu
maxilar banhado à luz do sol adquiria um tom pétreo, e por um
segundo lembrei-me de Azriel.
— Vai dar tudo certo, ok? Vamos encontrá-las e acabar com
essa bagunça. E então ninguém vai estar atrás de você. O máximo
que fará será transportar algumas almas idiotas que não sabem
onde estão. Parece bom?
— Parece ótimo.
Ele concordou com a cabeça, colocando-se de pé e estendendo
a mão para mim.
— Mas, claro, para isso você precisa parar de lutar como uma
criança.
Capítulo 34
Max
Entrei no quarto após o jantar, jogando-me sobre a cama e
apreciando a coberta macia. Há quanto tempo não tinha um lugar
como aquele. Não importava o quanto ouvisse que as coisas
materiais eram descartáveis, ainda acreditaria que mais valia uma
cama para dormir do que um dia a mais na Terra. Sabia bem do
que falava. Já havia passado a noite nos lugares mais pútridos que
se podia imaginar. Aqueles que alegam não precisarem de nada
material nunca passaram necessidade.
— Não vá dizer isso para Ariana ou Crystal, mas eu realmente
acho que deveríamos dar o fora daqui — comentou Bronx,
fechando a porta atrás de si.
Não me dei ao trabalho de responder. Era a décima vez que ele
comentava aquilo, e pelas minhas dez respostas anteriores, Bronx
sabia muito bem o que eu pensava. Éramos um alvo fácil. Não
importava se estávamos na Tumba ou na Rússia, os Renácitos nos
encontrariam onde quer que fôssemos. Se a luta não ocorresse
aqui, eventualmente aconteceria em algum outro lugar.
Fugir não era a solução. Fugir era adiar.
A primeira vez que disse aquilo, ele ainda ponderou minhas
palavras, dizendo que talvez eu estivesse certo e que valesse a
pena arriscar. Mas então pareceu esquecer tudo isso, sussurrando
repetidas vezes durante o dia para que eu convencesse Ariana e
Crystal a nos colocar para fora da casa. Nem parecia a pessoa que
eu conhecia. Trazia uma expressão afugentada no rosto e uma
sede por correr que até mesmo o maior dos covardes estranharia.
— Bronx — chamei-o. — Você acha que os Anciãos são mais
sábios que qualquer outra pessoa?
Ele levantou a cabeça do travesseiro. Já passava da meia noite,
mas ainda não havíamos desligado a luz.
— Por que está pensando nisso?
— Por nada. É só que... eles sempre falaram conosco como se
soubessem todos os segredos do universo. Pareciam possuir
respostas para tudo. Será que sabiam sobre as outras Invocadoras?
Ele grunhiu, revirando-se no colchão.
— Provavelmente. Aqueles velhos dificilmente deixariam
passar algo. Ainda mais dessa magnitude.
A expressão aqueles velhos trouxe uma onda de memórias.
Senti como se estivesse, mais uma vez, frente a eles.
— Idiotas — resmunguei, encarando o teto. — Deviam ter nos
contado o que sabiam. Teriam nos poupado um bom tempo no
escuro.
Bronx riu. Uma gargalhada gostosa e genuína. Nem parecia que
o assunto era nossas piores companhias.
— Acha mesmo que eles se importam? Não nos contaram por
que não sentiram vontade. Tenho certeza de que sabiam sobre
tudo antes mesmo das Invocadoras nascerem. Principalmente seus
amigos encapuzados. Duvido muito que não tinham ideia do que
Liliane planejava fazer.
Ele estava certo. Os Anciãos jamais deixariam passar algo
daquele tipo. Nunca deixavam passar nada. Sabiam tudo sobre
todos e não existia quem pudesse provar o contrário. Se cuidaram
e protegeram Liliane assim como faziam com Ariana, então
estavam cientes do que ela pretendia fazer. Ninguém, nem mesmo
uma Invocadora das Trevas, era capaz de enganar aqueles
homens.
— O que, então? Eles estão mentindo?
— Sempre estiveram, Max. Sempre estiveram.
— Mas isso é diferente — sentei-me, indignado. — Não
poderiam ter escondido o feitiço. Precisávamos saber disso para
cumprir nossas missões. Como puderam nos mandar para cá
conscientes de que precisaríamos lutar sem ao menos nos dar uma
dica sobre o que Liliane fez?
— Ei, ei, se acalme. Não era tão importante assim.
Convenhamos. Você está apenas com raiva.
Soltei o travesseiro que estava apertando, caindo de costas no
colchão. Sentia-me extremamente cansado. Poderia dormir por
horas, sabendo que viria a acordar da mesma maneira. A ligação
Forti-Invocadora ainda prejudicava meu sono.
Levantei da cama e fui até o interruptor.
— Espere. Não apague a luz ainda. Quero te perguntar uma
coisa — disse Bronx, levantando a cabeça.
— Tudo bem — respondi, cruzando os braços e encostando-me
a parede.
Ele se sentou desajeitadamente, evitando meu olhar.
— O que vou perguntar pode te machucar. Preciso saber que
não vai bater em mim por fazer isso.
Abri a boca, incrédulo.
— Mas que... Bronx — gritei. — Nunca mais diga isso. Não
me faça soar como um imbecil que bate em pessoas apenas por
que não gosta da voz delas.
Ele riu.
— Você bem que poderia fazer isso —deu de ombros.
— Bem, eu o farei se não disser logo...
— Você sente falta de sua família? — disparou ele, o rosto se
comprimindo como se esperasse uma bofetada.
Meu estômago se retorceu.
— O quê?
Bronx sugou o ar, procurando algo no quarto em que se focar.
— Me desculpe. Não sei o que estava pensando quando
perguntei isso.
— Não, tudo bem — pressionei minha nuca. — Só quero saber
por que pensou nisso agora. Não é como se a conversa estivesse
caminhando para este assunto...
— Não. Esqueça que perguntei isso. Estou dormindo. Agora
apague essa luz — ele se cobriu da cabeça aos pés, evitando o
olhar acusativo que eu o lançava.
Por fim, a conversa morreu tão rapidamente quanto começara.
Capítulo 35
Ariana
Depois do jantar, desci as velhas escadas que levavam até o
porão. Desde que acabara o primeiro diário, uma fome insaciável
por conhecimento crescia dentro de mim. Queria saber mais sobre
a vida de minhas antepassadas, seus desejos. Aquilo era como um
verme rastejando por dentro de meu corpo, implorando por mais,
me empurrando em direção àquela sala pequena e mal cheirosa,
que guardava algumas das histórias mais incríveis das quais já
tivera conhecimento.Crenças, culturas, vestimentas, épocas. Tudo
era diferente. Nenhuma Invocadora era igual à outra, e era isso
que as tornava tão atrativas. Sentia-me compelida a devorar um
diário atrás do outro, no intuito de saciar minha sede por
aventuras. Gostava de todas as histórias que lia, cada uma à sua
maneira. Mas se existia uma pela qual me apaixonara, essa fora o
romance de Amélia e Antônio.
Ela, uma Invocadora das Trevas de apenas dezoito anos. Ele, o
Forti da Invocadora da Luz de sua geração, Melissa. Apesar das
diferenças, os dois se apaixonaram tão perdidamente um pelo
outro que nem mesmo as rixas de ambos os lados foram capazes
de separá-los. Encontravam-se sempre que podiam, debaixo das
árvores que floresciam coloridas com a primavera, perto dos lagos
azuis e cristalinos nos quais nadavam. Passavam horas
conversando, se não, contemplando a natureza, sem emitir som
algum. Por vezes Amélia jurara que poderia passar o resto de sua
vida em silêncio, contanto que o resto de sua vida se resumisse
àquele momento. Viveram em oito meses uma história de amor
mais intensa do que muitos viviam em toda uma vida. E cada
palavra trocada, cada sentimento compartilhado entre os dois,
estava eternizado nas linhas que agora eu lia.
Contudo, como o esperado, o destino cobrou. Quando a
verdadeira guerra chegou, Antônio se viu no meio do fogo
cruzado. Não podia deixar Melissa. Prometera sua vida para
salvá-la, e em nenhum momento cogitara a ideia de ser desleal.
Porém, também não queria abrir mão de seu grande amor. Jurara a
Amélia que voltaria, e não conseguia imaginar sua vida sem ela.
Por meses ele lutara ao lado da Invocadora da Luz,
comunicando-se por meio de cartas com a das Trevas. Nunca
pedindo informações. Nunca as passando. Ambos sabiam os
riscos que corriam. Como seriam castigados caso a afeição fosse
descoberta. Durante o tempo que se seguiu, continuaram a se
encontrar nos horários marcados, tomando todas as precauções
necessárias, regulando cada passo e horário para que não
houvesse desconfiança por parte de seus companheiros.
Entretanto, em um dia que seria lembrado por Antônio até o
momento de sua morte, ele fora designado para uma missão:
precisaria descobrir uma maneira de derrotar o exército das
Trevas de uma vez por todas. Encontrar uma maneira de matar a
mulher que amava, e destruir seu legado junto às almas.
Desolado, contara a Melissa o que vinha acontecendo. Amélia
recebeu uma carta notificando sua morte pouco tempo depois.
Eu estava chorando ao ler as últimas linhas.
“E então precisei dizer adeus ao meu amor. Que eu o veja
quando a terra me acolher. Que possa ouvi-lo sussurrar meu
nome uma última vez. Não jurarei vingança, pois ele vira em mim
a bondade, enquanto o resto do mundo via apenas a destruição.”
O diário de Amélia acabava ali. Deixara de escrever no
momento em que Antônio morrera. Perguntava-me o que aquilo
significava para ela, já que todas as outras Invocadoras
mantiveram seus diários até pouco antes de suas mortes.
O estalido da porta do porão se abrindo desviou minha atenção.
Coloquei o diário sobre a mesa e me virei a tempo de ver Crystal
descendo as escadas, chegando sorridente à minha frente.
— Por que essa cara triste? Não vá me dizer que ela morreu no
final do livro — brincou, passando o braço por meus ombros.
— Já leu algum?— apontei para as estantes.
— Ainda não — respondeu ela. — Não tenho certeza se estou
pronta para toda a lamentação que precisarei aguentar se quiser
acabar uma dessas coisinhas.
Concordei com a cabeça.
— Devia ter ouvido quando disse que essas memórias não eram
minhas — admiti. — Já tenho coisas demais com que me
preocupar.
Ela me olhou de soslaio, dando de ombros.
— O que esperava, Ariana? Contos de fadas para te colocarem
para dormir? —meneou a cabeça. — Não. Isso está mais para
contos de terror — puxou um diário da prateleira. — Se eu fosse
um pouco mais malvada, apenas um pouco, já teria queimado
tudo — disse, abrindo o exemplar e o folheando. Reconheci-o
como sendo o diário de Laverna, Invocadora da Luz de 1940. O
tecido vermelho sangue da capa era inconfundível. — Ótimo. Mal
comecei a ler esta coisa e já estou contando mortos — ela jogou o
diário sobre a mesa, puxando-me me pela mão em direção à
escada. — Venha. Vamos tomar um sorvete. Bronx acabou de
chegar com o estoque de comida para os próximos dias.
Capítulo 36
Ariana
Minha ideia de que Max pegaria mais leve nos próximos treinos
mostrou-se completamente equivocada. Nem mesmo o sol quente,
que agora fazia nossa pele ferver, era capaz de mudar sua opinião
quanto à minha falta de habilidade e necessidade de prática. Ele
se movia com extrema rapidez, me acertando na canela, abaixo
das costelas, cabeça e estômago. Meu cérebro parecia zunir a cada
golpe. O tempo que precisava para me recuperar era o mesmo que
ele levava para me acertar novamente. Em suma, ao final da
manhã do segundo dia, eu era uma grande bola de carne cheia de
hematomas. E ele parecia feliz com isso.
Soltei outro gemido quando mais um soco me derrubou. Ele,
como sempre, continuou com a expressão séria, me observando
estirada sobre a grama, cansado e desapontado por eu ter caído no
chão mais vezes do que era possível contar. Porém, dessa vez,
nem tentei me levantar. Estava exausta, com fome e dolorida, de
modo que o chão parecia o lugar mais confortável do mundo
naquele momento.
— Se não levantar, vou começar a te acertar aí mesmo — disse
ele.
A verdade era que Max estava pegando mais leve. Ao menos,
era isso que ele pensava fazer ao ter se livrado das facas, dizendo
que antes de aprender a usá-las deveria saber utilizar meu corpo.
Imaginei que com unhas e punhos o jogo seria mais fácil, mas
continuava apanhando.
— Ótimo, faça isso. Aproveite e dê o golpe de misericórdia —
falei, pronta para fechar os olhos e adormecer.
Ele não riu.
—Como espera parar de cair se nem se esforça para ficar em
pé?
— Eu estou exausta, Max. Meu corpo inteiro dói. Não foi
suficiente passar duas horas me socando, quer discutir sobre como
sou péssima nisso também? Deixe-me aqui ou faça o que disse e
me acerte enquanto ainda estou deitada. Não me importo. Apenas
fique quieto por um segundo. Meu Deus.
Ele apertou os olhos em minha direção. Sabia não estar
brincando sobre me chutar enquanto não me levantasse. Mas
apesar da expectativa, continuou imóvel, encarando-me com uma
carranca. Seus profundos olhos castanhos a me julgar numa
incógnita. Depois de alguns segundos em silêncio, voltou a falar:
— Acho que precisamos de uma abordagem diferente — disse
ele.
— O que quer dizer? — perguntei, sem muito entusiasmo.
— Não vou mais lutar com você. Ao menos, não para ver quem
vence. Vou te ensinar alguns movimentos e gostaria que
conseguisse realizá-los comigo. Se nem isso der certo, acho que
podemos parar por aqui e comprar um grupo de mercenários para
você.
Franzi os lábios.
— Caramba. Nossa relação melhorou tanto em tão poucas
horas. Já estamos até fazendo piadas um com o outro — sorri para
ele.
Max rolou os olhos, arqueando levemente o canto da boca. O
vento soprou mais forte e, ao longe, na floresta, as copas das
árvores dançaram, balançando de um lado para o outro com a
força da corrente que as empurrava. Todas as noites desde que
encontrara Ian, olhava para aquele mesmo lugar da janela de meu
quarto, pouco antes de dormir, desejando ter notícias dele.
— Descansada? Podemos continuar? — perguntou Max.
Estávamos treinando desde cedo. E, ainda assim, ele não
demonstrava nada que não fosse voracidade em seus movimentos.
Sua respiração era controlada. Os passos calculados. Parecia
enxergar dez movimentos à minha frente, antes mesmo de eu
pensar em realizá-los.
— Você nunca se cansa? — questionei-o, colocando-me de pé e
limpando a calça.
Ele riu.
— Como se eu precisasse me esforçar com você.
Pouco antes do horário de almoço eu já havia aprendido
diversos modos de ataque. Onde posicionar minha mão, onde
acertar a outra, como movimentar meu corpo enquanto fazia tudo.
Aprendera também movimentos de defesa, que Max alegara
serem tão importantes quantos os outros — talvez até mais. Como
me esquivar, abaixar, confundir e, o meu preferido, como saber a
hora de correr. Mas, como de praxe, continuava encontrando o
chão, ainda que os socos houvessem diminuído em termos de
número.
A cada novo movimento, uma tensão se criava dentro de mim.
Prosseguia dando meu máximo, ainda que não parecesse
suficiente. Vez ou outra conseguia desviar de um de seus golpes,
e isso já era um grande avanço. Mas, quando tentava acertá-lo,
Max sempre era mais rápido. Se não, mais forte.
— Chega — disse ele, soltando meu ombro, dando pela
primeira vez no dia algum sinal de cansaço por meio da
respiração acelerada. — Você está indo bem, e não estou dizendo
isso para ser legal —passou a mão no cabelo molhado. — Não
espere me derrotar com apenas dois dias de treino. Será
necessário, no mínimo, uma semana para isso.
Sentia meus músculos arderem, alguns tendo espasmos
involuntários. Estava fora de forma. Todo aquele tempo na
companhia de livros e computadores parecia falar mais alto do
que qualquer exercício físico que já fizera na vida.
— O problema é que não sabemos se temos todo esse tempo —
apontei, arfando.
Max calou-se. Seus olhos assumiram um ar gelado. Assim
como eu, ao fechar as pálpebras, tudo o que via era a guerra que
chegava até nós. O sangue, os corpos, as perdas. Era impossível
fugir daquele sentimento. Estava em todos os lugares, sussurrado
por todas as coisas vivas ou mortas. O mais fácil era fingir que
não estava ali. Era isso que vínhamos fazendo.
— Você não pode ter medo, Ariana. Isso é algo do qual terá que
se livrar — sua voz não parecia saída de seu corpo, e sim de uma
alma antiga. Suas palavras davam a impressão de virem de
tempos esquecidos, atravessando eras apenas para me atingirem.
— Você não pode ter medo — repetiu ele, pausadamente. —
Entende isso?
A intensidade com a qual me fitava fazia os pelos de meu braço
eriçarem. Balancei a cabeça, confusa tanto em relação à pergunta,
quanto à resposta.
— Como posso não sentir medo? — indaguei, frustrada. —
Essas pessoas me seguiram de casa até aqui. Tentaram arrancar
minha cabeça no mínimo duas vezes durante o caminho. Por mais
que eu queira dizer que me sinto forte, que sinto que posso ganhar
deles, isso não é verdade, Max. Sinto como se estivesse somente
esperando pelo seu ataque para denunciar nossa derrota.
Senti um alívio ao dizer aquilo em voz alta. Passara os últimos
três dias tentando me convencer do contrário, mas estava claro a
cada novo golpe, a cada novo soco: eu não era forte o suficiente
para vencer. Não estava desistindo. Mas com certeza não estava
animada para continuar. Toda a energia que conversar com Ian
me trouxera, toda a vontade de ajudá-lo que senti, tudo isso se
esvaía aos poucos cada nova vez que minha cabeça batia contra o
chão.
Max aproximou-se, estudando minha expressão a cada passo.
Trazia no rosto um daqueles olhares que querem dizer tudo o que
a boca se nega a deixar escapar.
— Ariana, quando digo para você não ter medo, não estou me
referindo a eles, e sim a se ferir. Não pode ter medo de cortar a
pele ou esfolar o rosto. Precisa estar pronta para tudo.
Fitei-o.
— O que devo fazer então?
Ele deu de ombros, como se dizendo que a resposta era óbvia.
— Encarar seu medo.
Ri diante do comentário, imaginando que ele me pediria para
me jogar de um abismo ou coisa parecida. Seria uma solução
para seus problemas, Max. Um ponto para você.
— O que espera que eu faça? Que fique parada enquanto atira
facas em mim?
Meneei a cabeça, imaginando a terrível cena. Havia algo de
burlesco naquilo tudo; um drama que ao mesmo tempo divertia e
assustava. Mas nada me assustou tanto quanto seu comentário
seguinte:
— Na verdade, é uma ótima ideia.
Minha risada entalou na garganta.
— Você está brincando, né?
— Não. Por que eu brincaria sobre isso? — ele franziu o cenho,
ofendido.
— Eu não vou ficar parada enquanto você atira coisas em mim.
— Facas. Eu vou atirar facas. E, sim, você vai ficar.
Ele arqueou um sorriso zombeteiro, achando graça da expressão
de horror que tomou conta de meu rosto. Então, em menos de
cinco segundos, se posicionou a dez metros de mim. Suas facas
de estimação reluziam ao seu lado, devidamente arrumadas dentro
da caixa. Aquelas finas lâminas nunca pareceram tão letais. Nem
mesmo quando estavam rente à minha pele. Ele alisava com a
ponta dos dedos o metal polido, deliciando-se com a expectativa
do que estava prestes a fazer.
Ele vai me matar, pensei. Estou parada aqui, e deixarei que ele
me mate...?
Meu sangue borbulhava e eu já não sabia mais o porquê. Max
estava a apenas alguns metros de mim, o olhar feroz e o maldito
sorriso de canto de boca. Somente quando minhas costas
encontraram o concreto percebi estar recuando. Desejei por um
segundo que a parede se liquefizesse, me permitindo a passagem
para dentro da casa, para longe de Max, para longe das lâminas e,
principalmente, para longe da morte.
— Você precisa ver sua cara — riu ele.
— Se você me matar — rosnei. — juro que volto para te
buscar.
— Disso eu tenho certeza.
Seu olhar era fixo em mim. Sentia-me como um alvo a ser
avaliado. Era isso que eu era para ele agora, um alvo. Imaginei
uma maçã acima de minha cabeça, algo cinematográfico demais
para o momento. Ele endireitou a postura. O medo começou a
tomar conta de minha mente. E se ele errar? E se essa faca
acertar alguma parte do meu corpo? Minhas mãos começaram a
tremer, e eu sabia que em breve as pernas fariam o mesmo. Por
que estou deixando que faça isso? Por que não saio daqui? Max
arrumou a faca em sua mão, concentrado em mim. Por que não se
mexe, Ariana? Corra. Ele vai te matar.
Mas era tarde. A faca já saíra de sua mão e vinha diretamente
em minha direção, cortando o ar como um peixe a cortar a água.
Sentia meus órgãos se transformarem em pasta à medida que a
arma chegava mais perto, e mais perto, e mais perto. Até que ela
se chocou com a parede ao meu lado, um som oco de metal contra
concreto que fez uma onda de alívio percorrer meu corpo. Eu
estava viva. E Max era um louco.
Contudo, antes que pudesse agradecer, ele já havia abaixado e
pegado outra faca que se encontrava na coleção, levantando-se
novamente e me olhando com a mesma expressão concentrada de
antes. Queria mandar que parasse, que não lançasse o objeto, mas
não consegui emitir nenhum som. Minha garganta parecia
derretida — assim como meus músculos. O medo me paralisara.
Estava grata por continuar inteira, mas isso não significava que eu
teria a mesma sorte de antes. Max poderia errar o arremesso. E foi
o que ele fez.
O objeto deixou sua mão com um balançar tosco, como se
houvesse saído antes do que ele esperava. Olhei para Max, a
expressão de terror em seus olhos ao ver a lâmina fazer
exatamente aquilo que temia. A faca rodopiava no ar em minha
direção, como se estivesse se movendo em câmera lenta. Cada
vez mais perto.
Meu corpo estava se preparando para a dor.
Mais perto.
Fiz a única coisa que julguei sábia naquele momento e levantei
os braços para proteger meu rosto.
Mais perto.
Ouvi seu zunido à minha frente.
Mais perto.
Um segundo.
Dois.
Eu continuava com as mãos sobre o rosto, temendo que, no
momento em que as retirasse, a lâmina me atingisse.
Três.
Houve um leve baque de algo se chocando contra o solo, e
então silêncio.
Nada.
O mundo parecia ter parado.
Lentamente, após o que pensei ter sido um minuto, abaixei os
braços. A primeira coisa em que reparei fora na expressão de
Max. Algo entre aturdido, descrente e deslumbrado. Ele
permanecia no mesmo lugar. Não dera nem mesmo um passo
após o lançamento da faca. A faca. Essa estava a uns bons dez
metros à minha esquerda, caída no chão, inofensiva.
— Como fez isso? — perguntou ele, soltando todo o ar que
segurava de uma só vez.
Por que Max parecia impressionado? Como a faca estava a
metros de nós? Ele conseguira desviá-la? Não, não podia ser isso.
—Como fiz o quê?— devolvi.
Ele sorriu, animado.
— A faca. Você atirou a faca... Como fez isso? Quer dizer,
você nem ao menos encostou nela.
Ele não conseguia parar de sorrir. Parecia um pequeno menino
que acabara de presenciar um show de mágica. Seus olhos
brilhavam de excitação, e eu esperava o momento em que
começaria a pular.
— O que você quer dizer? Como assim eu atirei a faca?
— No momento em que levantou os braços... Eu não sei.
Pareceu que a faca bateu em algo e ricocheteou para o outro lado.
Olhei para o objeto que jazia na grama. Realmente não havia
uma explicação plausível para sua distância, considerando o fato
de que o vira vindo em minha direção.
— Já havia feito algo assim? — perguntou Max, correndo até
chegar ao meu lado.
Olhei-o.
— Você está dizendo que, de alguma maneira, eu consegui
controlar essa faca para que não me machucasse? — encarei-o
com a mesma expressão incrédula que preenchia seu rosto poucos
segundos atrás.
Ele concordou com a cabeça.
— Isso é loucura.
— Não. Loucura foi essa faca quase ter acertado você —
inspirou fortemente, passando a mão pelo rosto. — Me desculpe.
Eu não sabia o que fazer. Congelei quando pensei que iria te
machucar.
Então ele não estava brincando. Eu realmente havia feito
aquilo. Eu realmente havia desviado a faca.Mas como? Como isso
era possível?
— Precisa fazer de novo.
— O quê?
— Você precisa fazer de novo.
— Não, Max. Eu não consigo. Ainda nem sei como o fiz da
primeira vez.
— Então precisa descobrir. Precisa tentar fazer essa coisa outra
vez — ele fez uma pausa, passando a língua sobre os lábios secos.
— Por favor. Apenas se concentre e tente mover a faca.
Suspirei, fitando-o com cansaço. Como ele esperava que eu
repetisse aquilo? Não entendia o que tinha acontecido. Muito
menos como. Entretanto, era impossível negar a credulidade em
seus olhos. E, mais ainda, ignorá-la. De modo que resolvi fazer o
que pedia.
Andei alguns metros, ganhando distância — não queria seus
olhos cravados em mim enquanto tentava repetir a façanha. Sem
saber exatamente como proceder, foquei a faca, de modo que a
paisagem ao redor do objeto parecesse sumir. Fiz isso por um
longo tempo. Fiz isso até tudo esmaecer, tornando-se uma mistura
de borrados. Durante o tempo em que fiquei em silêncio, apenas
encarando o objeto, Max observou-me ansioso, como se soubesse
que a qualquer momento a faca se moveria.
O que ela, obviamente, não fez.
— Isso é besteira — disse, jogando os braços para o alto. — Eu
não tenho poderes. E não posso mover coisas. Isso é impossível.
— Se você acreditar que é, então sim, é impossível.
Ele esperou que eu retorquisse, mas continuei em silêncio.
— Você não pode, nem mesmo por um segundo, parar de achar
que não vai conseguir fazer algo? — repreendeu-me ele, me
fazendo corar. — É claro que cai quinze vezes quando luta
comigo. Você é fraca. Mas não é só por isso. Você acredita que a
fraqueza é uma coisa imutável, que isso irá persegui-la para
sempre. E sabe de uma coisa? Não é bem assim. Então pare de
reclamar e faça algo para mudar as coisas.
Senti como se houvesse levado um soco na cara. Eu estava
ganhando um sermão de... Max? A mesma pessoa que mentira
para mim, agora queria me dar lições de vida? Aquilo era ridículo.
Se não estivesse tão surpresa teria o socado.
— Max...
— Não — ele se afastou. — Já chega. Ou você realmente tenta
algo a partir de agora, ou eu vou desistir de você — abaixou a
cabeça, passando a mão pela testa e voltando a me encarar com
olhos frios.— Vamos. Tente. Realmente tente. Estou esperando.
— Não fale assim comigo.
— Assim como? Como se estivesse pronta para se entregar? —
ele franziu os lábios. — Ah, me desculpe. É que parecia ser isso o
que estava fazendo.
Suguei o ar, sentindo meus pulmões incharem. Precisava fazer
algo. Se não para provar que estava certa, e que aquilo era
impossível, então para me provar errada, e impedi-lo de desistir
de me treinar.
Sem dizer uma palavra, voltei-me para a faca. Ignorando o
garoto ao meu lado. Ignorando os pensamentos sobre Ian.
Ignorando tudo. Não existiam mais árvores. Não existia mais
grama. Não existia mais sol, flores, vento ou nuvens. Não existia
mais nada. O mundo era uma folha em branco, e eu almejava
colori-la com a arma.
Contudo, ela não se moveu de primeira. Foram necessários
minutos e mais minutos até que ela, finalmente, balançasse alguns
centímetros. Mas ela havia se movido. Isso era o mais importante.
Max estava certo, e eu consegui comandar o objeto metálico.
Controlei-me para não erguer o olhar na direção dele, pois sabia
exatamente o que diria. Como se gabaria por estar correto — mais
uma vez.
Porém, não consegui evitá-lo por muito tempo. Logo suas mãos
encontraram meus ombros, e ele sorriu às minhas costas,
repetindo diversas vezes em um som melódico: eu não disse? E
eu respondi: sim, Max, você disse. Então ele riu, e pediu-me para
que fizesse novamente.
Levantei a mão direita e manipulei o pequeno objeto que, dessa
vez, avançou alguns metros pela grama, indo parar ainda mais
longe de nós. O movimento era leve, como ordenar ao vento em
que direção ele deveria seguir, ou passar a mão na água para que
ela ondulasse em certo momento. Mas também era extremamente
prazeroso. Pela primeira vez me sentia poderosa.
Capítulo 37
Max
Estava sentado sobre as pedras aquecidas no meio da clareira, o
verde colorindo toda a natureza visível em um raio de cem
metros. Era um ótimo lugar para se ficar quando era preciso um
pouco de silêncio. Para mim, era o melhor lugar da propriedade.
Conseguia ver tudo com facilidade devido à altura, desde a casa
até a floresta, e um pouco da rodovia ao longe, depois de dezenas
de copas, onde, vez ou outra, um carro passava e era possível
enxergar seu teto.
Viera para esse mesmo lugar cinco ou seis vezes na última
semana. Alguma coisa em sua simplicidade, na maneira natural
como fazia toda a paisagem se encaixar me encantara. Demorava
no mínimo três minutos para subir a formação — não por que
encontrava dificuldade —, mas todo o esforço valia a pena
quando eu ganhava aquela visão do sol poente. A mistura de cores
que o céu adquiria no exato momento em que o sol encontrava o
horizonte, pronto para despertar outra parte do mundo. Seus raios
laranja se misturando ao rosa, roxo e azul do céu. Um espetáculo
que somente aqueles que não estavam preocupados demais com
seus afazeres poderiam ser capazes de apreciar.
Fiquei devaneando por um tempo, enquanto a lua acabava de
completar seu caminho e a floresta ganhava vida noturna. Então,
quando o astro atingiu o topo do céu, brilhando com as estrelas,
comecei a voltar para a Tumba, me sentindo mais calmo. Meus
problemas pareciam ter se transformado em água e evaporado à
medida que eu apreciava os últimos minutos de luz.
Isso sempre acontecia quando eu visitava as pedras quentes,
mas nunca durava muito tempo.
Passei pela porta da casa, esperando encontrar Crystal e
Giovane conversando no sofá, como faziam na maioria das noites,
enquanto tomavam seus chás ou chocolates quentes. Mas tudo
que encontrei fora seus edredons dobrados ao lado do móvel.
Após beber água na cozinha e passar por meu quarto atrás de
Bronx, percebi que, na verdade, nenhum deles estava em qualquer
lugar da casa.
Estava prestes a sair novamente, imaginando que foram para
algum passeio noturno, quando ouvi vozes vindas do porão.
Estivera naquele lugar apenas uma vez — quando o cômodo fora
descoberto. Não via muita necessidade de ir e vir de lá, como os
outros faziam, já que tudo que eu precisava — minhas facas —
estava ao meu alcance. Claro que dali a algum tempo eu desceria
para pegar uma arma ou outra, ainda que contra minha vontade,
para ensinar Ariana a atirar. Mas essa hora ainda não havia
chegado.
Encaminhei-me rapidamente em direção ao cômodo
subterrâneo, imaginando que, na pior das hipóteses, os
encontraria apontando revólveres uns para os outros, como
Giovane e eu fizéramos dias antes. Ao descer as escadas,
constatei que nada de muito interessante estava acontecendo.
Bronx debruçava-se sobre a mesa, com Crystal ao seu lado,
ambos olhando atentamente para mapa aberto à sua frente. O
cenho dele possuía a mesma ruga que eu conhecia e vira tantas
vezes, não apenas em vida, mas também em morte. O cabelo
penteado para trás tinha um aspecto oleoso, e as mangas da blusa
estavam arregaçadas até o ombro. Parecia ter feito exercício o dia
inteiro e descido direto para analisar os mapas. Era possível notar
as pequenas gotas de suor a evaporarem de sua testa. Crystal não
estava muito diferente. Sua expressão era de exaustão, de alguém
que precisava urgentemente de algumas horas de sono. O cabelo
negro se encontrava preso em um rabo de cavalo, com vários fios
soltos ao redor do rosto, e ela piscava pesadamente, enquanto
caminhava os finos dedos pela folha.
Levantei o olhar para Ariana e Giovane, que conversavam em
um canto, agitados. Gesticulavam, riam, e então fechavam o
rosto, abrindo outro daqueles livros que preenchiam a estante. Eu
não tinha ideia do que se tratavam aquelas inúmeras páginas, mas
pela excitação em seus rostos, certamente era algo interessante.
Aproximei-me da mesa com o mapa, Bronx e Crystal tão
concentrados que mal notaram minha presença. Contornos cheios
coloriam uma folha, e linhas davam vida ao formato de algum
lugar. Ao prestar mais atenção, notei que era um mapa dos
arredores da Tumba. Não sabia nossa posição exatamente, mas o
objeto dizia que se tratava dali, com letras grandes e quadradas no
topo da folha.
— Isso é burrice — disse Crystal, sem tirar os olhos do mapa.
— Não, não é. Não vamos ser pegos. E então teremos alguma
vantagem — respondeu Bronx, sem olhar para ela.
Eu conhecia aquela expressão. Ele estava tramando algo. Não,
não tramando. Tal palavra faz com que ele soe amador, e se
existia algo que Bronx que não era, é isso.
Ele esticou a mão, apontando para uma grande mancha verde
em um dos pontos da folha.
— Está vendo aqui? Nós só precisamos contornar isso, verificar
os arredores, e então voltar. Se sairmos bem cedo, voltamos
pouco antes de escurecer.
Crystal ficou em silêncio, estudando o que ouvira. Eu ainda não
tinha certeza sobre o que falavam, mas pelo tom da conversa,
parecia algo importante, ou, no mínimo, perigoso. Ela suspirou,
dando a entender que cedia após um longo tempo de discussão.
— Tudo bem, se acha que vai ajudar. Mas saiba que Ariana
precisa concordar, senão nada feito.
Bronx tirou os olhos do papel para olhá-la, dando um pequeno
sorriso de vitória. Ele sempre fazia aquilo quando ganhava uma
discussão. Lembrava-me de nós dois pequenos, ele com seu
caminhão e eu com meu carrinho, apostando corridas enquanto
imitávamos o som dos motores. Não importava quem chegasse
primeiro. Ele sempre conseguia me convencer de que era o
verdadeiro vencedor. E então, mais tarde, quando roubávamos
doces antes do jantar, fosse em sua casa ou na minha, os adultos
sempre acreditavam que não havíamos feito nada — ou fingiam
não acreditar. Mesmo quando ainda não possuíamos irmãos mais
novos para levarem a culpa. Resumindo, se Bronx tivesse uma
história a ser contada, um argumento inventado ou não, era
praticamente impossível vencê-lo em uma discussão.
Seus olhos se moveram para cima e ele pareceu me notar.
— Ei, cara. Acho que arrumei uma missão para nós amanhã.
Encarei-o. Que tipo de missão poderíamos ter em um lugar
como aquele? E por que ele iria querer arrumar uma? Já não
tínhamos problemas o suficiente?
— Ari, pode vir aqui? — chamou Crystal.
— O que foi? — perguntou Ariana, saindo de onde estava com
Giovane e caminhando até a mesa. Parou acima do mapa, olhando
os contornos. Seus olhos se moviam com rapidez pelas linhas,
analisando algo que eu tentava compreender. Ela mordeu a boca,
tamborilando a ponta dos dedos na madeira. Estava prestes a
perguntar o que estava acontecendo quando Crystal tornou a falar:
— Sobre a corrida de reconhecimento que Bronx quer fazer. O
que acha? — perguntou.
Ariana apertou as mãos.
—Se Max e Giovane toparem, não tenho nada contra. A não ser
o fato de que podem se machucar — disse ela, dando uma batida
leve sobre a folha. — Não podemos nos dar ao luxo de nos
arriscarmos. Precisamos estar inteiros. Todos.
— Esperem — senti que era o momento de me intrometer. —
Não podemos nos machucar fazendo o quê? E que missão é essa?
Parecia que haviam decidido nosso destino enquanto eu estava
fora. Odiava aquela sensação. Remetia a tempos antigos, onde eu
apenas recebia as ordens e as acatava, sem questionar ou
expressar minha opinião. Mas eu não estava na Corte. Aquilo não
era mais necessário. Por mais que fosse minha obrigação
responder as ordens de Ariana, podia, sim, questioná-las. Graças
aos céus, ainda possuía minha razão.
Foi Bronx quem me colocou à par de suas ideias:
— Eu, você e Giovane percorreremos o perímetro da floresta
para checar se o acampamento dos Renácitos está em um lugar de
fácil ataque. Não vamos confrontá-los. Seria loucura fazer isso em
um momento como esse. Queremos apenas descobrir o quão perto
estão. Sairemos na alvorada. Se Ian conseguiu chegar tão perto da
Tumba, certamente outros o farão. Precisaremos tomar cuidado
para não sermos vistos. Se tudo ocorrer bem, ao final do dia
teremos informações importantes sobre a organização deles.
Poderemos usar isso a nosso favor mais tarde.
Analisei a base da ideia. Não era de todo ruim, no fim das
contas. Bronx estava certo ao querer fazer aquilo. Precisávamos
de alguma vantagem. Aquelas criaturas pareciam saber bem mais
sobre nós do que nós sobre elas. E isso era crítico.
— É praticamente uma missão suicida —ressaltou Ariana. —
Estarão entrando em território inimigo. Sabem o que vai
acontecer caso sejam pegos.
Ela olhou para nós, esperando algo que talvez pudesse confortá-
la diante do dia que se seguiria.
— Então vamos nos certificar para que isso não aconteça —
respondi, levantando a faca que carregava comigo, deixando claro
que, a partir de agora, só existiam duas opções, tanto para eles
quanto para nós.
Acordei pela manhã, não sentindo a paz usual que o silêncio me
causava, mas a pressão de seu barulho em meus ouvidos. Sentia
como se estivesse sendo submerso. O peito pesado. A consciência
confusa. Tomei alguns goles de água, imaginando que a sensação
passaria logo. Mas essa se prolongou enquanto me banhava e
trocava de roupa. Somente quando abri a janela, avistando a
imensidão verde que teríamos de percorrer, é que percebi o que
estava acontecendo. Eu possuía um pressentimento ruim.
Nunca acreditara em destinos selados, assim como era cético a
respeito de coisas como visões. Contudo, sempre que sentia
aquilo, o aperto em meu estômago que desejava anunciar um
acontecimento ruim, sabia que algo ocorreria. E apesar de tentar
negar que poderiam existir explicações não lógicas para isso, até
então não havia encontrado nada que pudesse me dizer o porquê
de tal sentimento.
Coloquei uma calça jeans e camiseta, jogando um moletom
cinza por cima. Calcei meu coturno e desci as escadas. Ainda
faltava em torno de uma hora para o sol nascer quando nos
reunimos na frente da casa, tremendo com o ar gelado da manhã.
Estávamos todos quietos e atentos aos sons à nossa volta. Ao
canto dos passarinhos que, assim como nós, começavam seus
dias. Por um segundo, os invejei, imaginando que seria mais fácil
se minha vida se resumisse a catar gravetos para fazer ninhos e
perscrutar chão e plantas em busca de alimento. Estaria bem
melhor sem meus pensamentos.
Então, já sem tempo, Ariana e Crystal deram instruções para
voltarmos antes do anoitecer e percorrermos o perímetro da forma
mais rápida e discreta possível. É claro que queriam isso. Seria
preocupante passarem a noite sozinhas, sem notícias sobre nós.
Não tínhamos nada para nossa comunicação, de modo que só
saberiam sobre a missão quando retornássemos. Bronx e eu
sabíamos o nosso dever. Mais importante do que obter dados
sobre os Renácitos era manter as duas seguras. Voltaríamos no
horário combinado, com ou sem informações.
Com tudo acertado, partimos junto aos primeiros raios de sol,
correndo pela clareira ainda sem receio de sermos pegos.
Estávamos em nosso território. A grama em que pisávamos ainda
era de nossa possessão. Entretanto, eu sabia que isso não era
totalmente verdade. Existiam espiões nos vigiando. Discutira a
teoria com Bronx pouco antes de dormirmos, na noite anterior.
Ele concordara comigo sobre a existência deles, mas não com a
parte de serem perigosos. Para ele, os Renácitos que nos
observavam eram meros informantes, relatavam o que fazíamos
em cada momento do dia e como nos organizávamos em nossa
rotina. Mas, se precisassem lutar conosco, Bronx acreditava que
perderiam.
Chegamos na metade do campo. O vento frio agora maltratava
nossas gargantas enquanto respirávamos, buscando forças para ir
cada vez mais rápido. E se por acaso algum deles descobrisse o
que estávamos fazendo? Ou nos seguisse? Isso poderia complicar
tudo. Estaríamos vulneráveis. Tanto nós três na floresta, quanto
Crystal e Ariana na Tumba. Se possuíamos problemas juntos,
separados era ainda pior. A força e experiência do grupo residiam
conosco, distanciando-se cada vez mais da casa, ganhando terreno
a cada passo. Para as garotas, restava seus dons. E com Ariana em
treinamento, e Crystal talvez nem conhecendo do que era capaz
ainda, essa era a hora perfeita para um ataque. Poderiam nos
liquidar em segundos.
O ar gelado cortou minha face e, por um momento, só consegui
pensar em me aquecer. Aproveitei a distração das ideias
pessimistas e foquei em correr, adentrando tão rapidamente a
floresta que precisei diminuir o ritmo, enquanto meus olhos se
acostumavam à baixa claridade. Olhei para cima. Nuvens cinzas
tomavam o céu, esperando a hora mais oportuna para voltarem à
terra. Seria um péssimo sinal começar a chover. Ainda me
lembrava da sensação que tivera ao acordar. Desejava fortemente
que estivesse errado.
Bronx parou, dando sinal para que fizéssemos o mesmo.
Estaquei, colocando-me atrás de uma árvore, enquanto tentava
ouvir os animais à nossa volta. Não havia qualquer sinal de
movimentação. A floresta estava dominada por um silêncio
profundo. Nem mesmo as aves cantavam. Agachei em direção a
uma planta cujo nome desconhecia, empurrando suas largas
folhas para o lado, a fim de enxergar algo que estivesse à nossa
direita. Assim como todo o resto, aquela parte da floresta também
parecia adormecida. Apenas então notei a ausência de vento.
Sempre que observava o lugar de longe, via as copas das árvores
balançando. Mas naquele momento, mesmo com o céu cinzento,
parecia não haver corrente de ar.
Levantei a cabeça para Bronx, que também estivera estudando
o local. Ele fez sinal para que continuássemos e retomamos a
caminhada, desviando dos galhos mais grossos e empurrando os
mais finos.
Avançar.
Parar.
Olhar.
Continuar.
Avançar.
Parar.
Olhar.
Continuar.
A cada passo a floresta ficava mais densa, gelada e escura.
Parecia crescer ao nosso redor. Cores, cheiros, sons. Tudo
ganhava vida com o passar do tempo. Depois de quatro ou cinco
minutos, havíamos andado cerca de vinte metros, sem sinal de
qualquer coisa viva fora a vegetação. Eu suava dentro do
moletom, mas sabia que seria uma péssima ideia tirá-lo.
Tropecei em um tronco em decomposição. O barulho ressoou
alto demais na imensidão silenciosa. Giovane olhou para mim, e
então para Bronx, esperando que ele me repreendesse. Ignorei sua
reação e levantei o olhar, tentando enxergar através das copas.
Porém, era como observar um mural verde. Toda luz que passava
chegava em raios fracos. Não tinha ideia da posição em que o sol
se encontrava — o que tornaria mais complicada a tarefa de
percebermos qual era a melhor hora para voltarmos.
Caminhar na floresta era como andar de carro, exceto pela parte
em que era preciso ficar atento aos sons que ocorriam ao redor.
Minha mente viajava e, quando percebia, estava sonhando
acordado. Não tinha certeza de como conseguia fazer aquilo —
me concentrar no mundo à minha volta e ao mesmo tempo me
perder no meu interior —, mas era algo que fazia com extrema
habilidade. Lembrava-me de minha mãe ao arrastar um galho.
Visualizava meu irmão em meu quarto, eu gritando com ele,
enquanto avançava silenciosamente pela grama.
Mais uma vez, as palavras de Bronx me atingiram.
Pouco antes de nos deitarmos na noite anterior, ele havia
finalmente colocado para fora o que vinha remoendo há dias: sua
vontade de visitar a família. Em um primeiro momento, fiquei
chocado com a ideia, sem conseguir ao menos formular uma
resposta para tamanho disparate. Já não havíamos causado
sofrimento suficiente, ele queria proporcionar mais? Porém,
quando questionado, Bronx disse não se importar com isso.
Alegou que nenhuma tristeza seria maior que a felicidade que eles
teriam ao nos ver. E, como sempre, ele possuía um bom
argumento.
Enquanto arrastava outro galho e avançava sorrateiramente,
comecei a me questionar se meu amigo não estava certo,se não
deveríamos aproveitar a chance. Afinal, como ele mesmo dissera,
éramos de carne e osso novamente, e nunca saberíamos quanto
tempos nos restava. Por que, então, não aproveitar para nos
despedirmos de maneira correta, com abraços e explicações? Era
verdade que sentia saudade de meus pais, de meu irmão. Sentia
saudade de suas vozes, por que até mesmo estas sumiram de
minha mente depois de um tempo. Toda e qualquer lembrança
que um dia possuíra de minha família se perdera. Não me restava
nada além de nomes e rostos borrados. E, por alguma razão,
sentia-me mal ao pensar nisso, na maneira como os esquecera
rapidamente. Contudo, não era melhor assim? Não seria menos
sofrimento para ambos os lados?
Mais uma vez, obriguei Bronx a se lembrar do modo como os
deixamos, de como seria extremo egoísmo nosso querer vê-los
agora. O que pensariam? Como reagiriam? Estava decidido. Não
faríamos aquilo. E, se ele tentasse, o impediria.
Estava absorto em pensamentos, de modo que quase soquei
Giovane quando sua mão veio de encontro ao meu peito,
segurando-me. Lancei lhe um olhar severo, e ele rapidamente me
soltou, a boca abrindo e fechando, enquanto decidia se pediria
desculpas por ter me avisado. Por fim, meneei a cabeça, olhando
para a direção na qual apontava.Todo o chão, antes coberto pela
grama fofa e orvalhada, agora se abria em um extenso marrom
recheado de galhos e folhas secas. Não havia como passarmos por
lá sem emitir barulho suficiente para arrastar toda a tropa de
Renácitos até nós. Olhei em volta. Não existia outra rota. O
mesmo terreno se estendia horizontalmente até onde a visão
alcançava. Fim da linha.
— O que vamos fazer agora? Não podemos ir por aqui — disse
Giovane, posicionado os pés sobre os últimos centímetros de
grama.
Bronx fungou, olhando de um lado para o outro.
— Na verdade podemos — respondeu.
— Está louco? — fitei-o. —Se alguém estiver por perto nos
ouvirá. E então em poucos minutos seremos pegos. Não
adiantamos nada para eles vivos, e nada para elas mortos.
— Nós continuaremos — retorquiu ele, irredutível.
Encarei o terreno à nossa frente. O solo era como um campo
minado. Um passo em falso e tudo estaria perdido. Estava claro
que o acampamento era por ali. Aquele terreno não era algo
natural. Eles sabiam, antes mesmo de nós, que pretenderíamos
encontrá-los. E, ainda assim, Bronx achava que era seguro
continuar.
— Olhe isso. Como pretende ultrapassar esse trecho? Se
conseguir dar dois passos sem emitir barulho, então não sei por
que estamos aqui e não invadindo a porcaria do acampamento —
ralhei, sentindo meu sangue ferver. Não havia chegado tão longe
apenas para me jogar de braços abertos em uma armadilha.
Ele me olhou de esguelha, com o rosto ainda voltado para o
problema.
— Pode tentar não fazer isso? Não consigo me concentrar—
murmurou.
— Fazer o quê?
— O que você acha? Barulho.
— Eu não fiz...
Então eu o vi. O vulto passou tão rapidamente que apenas
alguém atento o teria notado. Por sorte, deixara meus devaneios
metros atrás e começara a prestar atenção. Levantei as duas mãos,
puxando Bronx e Giovane para baixo. Os dois caíram
pesadamente ao meu lado, surpresos pelo movimento. Com o
dedo indicador nos lábios, sinalizei para que fizessem silêncio.
Em seguida, movi a boca lentamente para que entendessem o que
dizia: Renácito. Bronx arqueou as sobrancelhas, apontando para o
lado em que seguíamos. Ali? Concordei com a cabeça.
Nos três ouvimos os passos. Ele se movia pela vegetação morta,
tentando fazer pouco barulho. Devia estar pisando apenas nas
pedras e troncos, mas não era nada discreto. Parados e em
silêncio, era fácil seguir os estalos das madeiras e folhas secas que
o Renácito deixava para trás.
O que faremos? Gesticulou Giovane.
Nada. Balancei a cabeça.
Mais estalos. Ouvimos sua respiração pesada a alguns metros
de nós, mas não nos atrevemos a espiar. Era perigoso demais. Se
fosse apenas ele, conseguiríamos matá-lo. Mas não tínhamos
como saber se estava ou não acompanhado, e arriscar um palpite
não era uma opção. Esperamos dois ou três minutos, até que a
floresta silenciou novamente.
— Devemos voltar — disse, colocando-me de pé.
— O quê? Não agora. Se ele estava aqui significa que estão por
perto — protestou Bronx.
— Ou que é um dos espiões. Nós não sabemos onde eles estão,
e já andamos mais de quatrocentos metros. Mesmo que estejam
aqui perto, acha que vale a pena? O que podemos descobrir de tão
importante que vale arriscar nossa própria vida para conseguir?
Ele abriu a boca para dizer algo, se calando logo em seguida.
De repente, a floresta escureceu. A tarde chegava.
Capítulo 38
Max
O que muitos não sabem sobre os Renácitos é que são ótimos
enganadores. Criaturas sorrateiras. Sabem apagar seus rastros,
bem como criar outros. Entretanto, não me lembrei disso ao
toparmos com um deles. Minha mente estava focada em não
sermos percebidos. Não cogitara a ideia de que ele queria ser
percebido. Somente quando as folhas estalaram ao nosso redor é
que me dei conta disso. Ele conseguira nos tirar de nosso
esconderijo, e não o contrário.
— Giovane — gritei, quando uma faca passou zunindo ao seu
lado.
Ele se jogou para trás, caindo pesadamente sobre o chão. A
terra ali era fofa, e uma camada dela se desprendeu do solo,
subindo alguns centímetros e impregnando-se em seus cabelos.
Enquanto Giovane se colocava de pé, aturdido, um homem saiu
de trás da folhagem, o olhar animalesco dirigido a nós. Ele girou
o corpo robusto, dando uma cambalhota perfeita e levantando-se
com facilidade em seguida. Seu cabelo claro, cortado rente à
cabeça, parecia um capacete luminoso a protegê-lo. Brandindo
um cutelo em sua mão direita, começou a vir em minha direção.
O corpo se preparando para o ataque. Os olhos dilatados. O
grunhido rouco.
Levei a mão até o coturno e saquei a faca, sentindo os efeitos da
adrenalina que corria por minhas veias. A sede de luta que me
consumia. Com Ariana não era a mesma coisa. Não era real. Eu
precisava de um conflito no qual minha vida se encontrava em
risco. Precisava lutar pela sobrevivência. Mas, antes que o homem
me atingisse, Bronx interceptou-o, jogando-se contra ele. Vendo
os dois rolarem no chão, não sabia se batia nele ou o agradecia
por ter feito tal coisa.
Ele acertou um soco. E então outro. E depois mais um. Mas
nada disso pareceu afetar o homem, que virou a cabeça, cuspindo
no chão saliva e sangue. Em um movimento que pareceu fácil
demais, se livrou de Bronx, arremessando-o do outro lado. Tudo
não durou mais do que alguns segundos, de modo que, quando
Bronx atingiu o solo, tudo o que consegui fazer foi observar a
cena, paralisado. Ele era um bom lutador, e caíra tão rapidamente
que mal tivera a chance de revidar. Uma coisa era certa: aquele
Renácito não estava para brincadeiras.
O homem se levantou, sacolejando. Não aparentava mais de 30
anos. Possuía braços fortes e esculpidos, como alguém que
malhara durante a vida toda. Não era à toa que fora recrutado. Ele
alongou o pescoço, sorrindo cinicamente para mim, enquanto
rodava o cutelo na mão, pronto para me estraçalhar.
Não me sentia intimidado, quanto mais temeroso. Era tudo o
que vinha desejando há dias. Sua arma era como a mais bela visão
da morte, e seu grunhido uma melodia doce que preenchia meus
ouvidos. Com esse pensamento, me joguei em direção à criatura,
que agora parecia mais uma besta do que um humano.Ele urrava,
brandindo sua arma em minha direção, e eu fazia o mesmo. Levei
um soco no queixo, fazendo toda a região latejar, mas ignorei a
dor, compensando-a ao fazer um talho na face de meu
oponente,sentindo-me revigorado ao ouvir seu grito quando a
lâmina rasgou sua pele. Estávamos rodando e grunhindo no meio
da floresta. O suor escorrendo por meu rosto e costas.
— Não — gritei quando Giovane ameaçou intervir. Apesar de
incerto, ele não se moveu.
Nesse momento de distração, o homem me acertou na altura das
costelas. Gritei, me afastando e colocando as mãos sobre o lugar
ferido, sentido o soco ressoar em meus ossos. Sabia não possuir
tempo para ver se algo mais grave acontecera. Respirei
profundamente, fingindo não sentir a dor aguda que me
atravessava.
A sede cresceu, atiçada pela raiva e desejo de sangue. Em um
movimento bem feito, derrubei-o no chão, chutando sua cabeça
em seguida. Primeiramente, ele pareceu atordoado por ter
encontrado a terra seca, provavelmente não esperava por isso.
Então, voltou a si, lançando-me um olhar feroz antes de acertar
minha panturrilha. Tentei me afastar quando percebi o que
pretendia fazer, mas, ainda assim, senti um talho se abrir em
minha pele.
O homem sorriu, quase gargalhando, enquanto eu ajoelhava no
chão ao seu lado, o sangue ensopando minha calça. Não tive
tempo nem de pensar antes que ele se levantasse, arremessando
sua figura contra mim. Quando sua risada se tornou algo doentio,
finalmente cravei minha faca em seu peito, tombando para trás,
trincando os dentes. O Renácito retirou a faca de seu coração,
olhando para o objeto como se fosse algo mágico. Bem quando
pensei que investiria novamente, reunindo suas últimas forças
para me atacar, seus olhos piscaram e ele levou uma das mãos até
o peito, soltando um gemido abafado, enquanto seu corpo caía
inerte.
Enxuguei o nariz com o dorso da mão, sem me dar conta de que
esse estava completamente coberto pelo sangue do morto,
deixando um cheiro adocicado incrustado em minha narina.
Funguei, tentando me livrar daquilo, mas parecia impossível.
Aquele odor estava gravado em minha memória.
— Tire essa merda da cara — replicou Bronx, se aproximando.
— Essa o quê?—interpelei, na defensiva. Acabara de salvar sua
vida. Merecia mais do que palavras cuspidas.
— Essa merda de sorriso — disse ele, torcendo o nariz.
Eu estava sorrindo?
— Relaxe— respondi, irônico, perguntando-me quando iriam
perceber que meu ferimento era grave. Estava mordendo a parte
interior de minha boca para não gritar.
— Não, relaxe você — ele levantou a voz. — Nunca vi alguém
ter tanto prazer em tirar uma vida, Max. É insano.
Bronx me olhava como se não reconhecesse quem estava à sua
frente. Como se, diferente de mim, não visse seu melhor amigo,
mas sim o cara que estava acompanhando a Invocadora das
Trevas. O ressuscitado que traiu a todos. Aquele que matava por
puro prazer.
Ele deu meia volta, seguindo em direção a Giovane. O rapaz
nos observava atentamente, e eu não saberia dizer sua opinião
sobre mim naquele momento. Havíamos conversado em diversas
ocasiões, e em nenhuma delas mostrara meu lado mais brutal. Isso
poderia mudar nossa relação? Não queria pensar que me trataria
de um modo diferente depois do que vira. Giovane era um dos
poucos que ainda não me odiava.
— Sabe — disse Bronx, estacando no meio do caminho e
voltando-se para mim. — Por dois anos me perguntei por que
você. Por que justo você. O que viram de tão ruim em meu amigo
para o designarem ao lado das Trevas? — ele fez uma pausa,
meneando a cabeça e dando um sorriso, cabisbaixo. — Mas agora
eu entendo. Eles viram o que ninguém mais viu. O que nem eu vi.
Eles viram o monstro no qual você se tornaria.
Capítulo 39
Ariana
Desde a hora em que o grupo partira pela manhã, eu havia feito
apenas duas coisas: ensinar Crystal a controlar seus poderes e ler
mais diários. E ambas agora pareciam somente passatempos,
enquanto tentava me desviar da verdadeira questão: por que
estavam demorando tanto? Fui até a janela pela décima vez,
debruçando-me sobre o sofá e comprimindo os olhos ao olhar
através das árvores. Nenhum sinal deles.
O sol já havia se posto há duas horas, e toda a propriedade
parecia imersa em um breu quase sólido, com exceção da casa
que, imaginava eu, ser como uma estrela em meio à escuridão.
Inconscientemente, comecei a bater na coxa. Se tardassem a
voltar, sairia à procura. Entretanto, quando me virei para retornar
à cozinha, onde Crystal acabava de preparar o jantar, a porta se
abriu com um estrondo, e um Bronx cambaleante a atravessou
como um raio.Corri em sua direção, segurando-o no momento em
que suas pernas cederam.
— Eu estou bem — disse ele, tentando se livrar de meus
braços. — Apenas cansado e dolorido.
Ignorei aquilo e continuei segurando-o firme, não somente pela
palidez de sua pele, mas também por me sentir extremamente
feliz de vê-los bem — ou ao menos vivos. Ele colocou as duas
mãos em torno de meu rosto e puxou-o para perto do seu.
— Eu estou bem, entendeu? Vou subir para tomar um banho —
finalmente conseguiu se libertar de minhas mãos, seguindo em
direção à escada, sem olhar para trás ou agradecer minha
preocupação.
Uma Crystal descabelada e cheirando a alho chegou ao meu
lado, poucos segundos depois. Os olhos atentos, ansiosos com as
duas figuras que adentravam a sala, também cambaleantes.
Giovane trazia Max apoiado em seus ombros, os músculos
retesados ao suportar o peso do colega. Suas pernas tremiam com
o esforço. A roupa de ambos estava marrom e molhada, e a de
Max possuía alguns cortes. Mal passaram pela entrada e Crystal e
eu já estávamos em cima, perguntando o que acontecera,
colocando a mão em seus rostos para vermos os machucados.
Pareciam ter passado — e muito —da classificação de ruim. Os
olhares eram perdidos, e perguntei-me quanto sangue haviam
perdido para estarem naquele estado. Levantei seus queixos,
olhando os cortes que atravessavam suas bochechas, lançando
tantas perguntas que nem mesmo eu consegui acompanhar.
— O que aconteceu? — Crystal e eu perguntamos juntas.
Mas minha cabeça já fazia outro questionamento: por que
Bronx subira para seu quarto, deixando Giovane e Max para trás
naquela condição?
— É uma longa história. Contaremos depois — Giovane ajeitou
o braço de Max ao redor de seu pescoço, como se o arrumasse
para continuarem viagem. — Agora, acho que nós dois
precisamos de um bom banho.
Ele tentou dar um passo, mas Crystal interceptou-o, lançando
lhe um olhar de reprovação que faria até mesmo o mais confiante
dos homens se encolher.
— Não seja tolo. Olhe o estado dele — ela gesticulou para
Max, que gemia baixinho. Gotas de suor brotavam de sua testa.
Mal tinha noção de estar acordado.— Ele não precisa de um
banho. Precisa de um médico.
Enquanto Crystal discutia com Giovane, tornei a olhar para
Max, em busca de um ferimento grande o suficiente para deixá-lo
naquele estado. Uma pequena poça de sangue se formara embaixo
de seu pé direito. Abaixei-me e, vendo a calça rasgada em certo
ponto, levantei-a para revelar a causa do sofrimento: um corte
jorrava sangue em jatos. Ao apertar levemente a carne
avermelhada ao redor do machucado, constatei que era fundo.
Mordi o lábio inferior, um tanto por repulsa, um tanto por
angústia.
— Há quanto tempo ele está sangrando? — levantei o corpo,
olhando Giovane com descrença. — Há quanto tempo ele está
assim, Giovane?
Max fora levado para meu quarto e, após muita persuasão,
consegui convencer Crystal e Giovane a me deixarem sozinha
com ele. Fora uma ideia estúpida, percebi. O ferimento
continuava a sangrar e eu não tinha ideia de como fazê-lo parar.
Não queria acordar ninguém a não ser que fosse extremamente
necessário, de modo que tentei me virar da maneira que pude para
controlar a hemorragia, fazendo um torniquete logo acima do
corte.
Com muito esforço, carreguei seu corpo até o banheiro,
colocando-o sob a água corrente enquanto lavava com sabão não
somente o ferimento, mas também seu rosto, que assumira uma
aparência grotesca devido à terra e o sangue grudados nele. Fui o
mais delicada possível ao redor do corte, mas, ainda assim, Max
gemeu quando toquei a pele partida ao meio, dando sinais de
clareza em alguns momentos e caindo inconsciente logo em
seguida.Era uma cena lamentável. Quem o vira em seus melhores
dias não acreditaria que viria a precisar de amparo. Sempre cheio
de si, dava a impressão de que seria o único sobrevivente caso a
raça humana fosse dizimada.
Olhei para ele. A pele pálida. A boca em uma linha. Senti-me
completamente idiota. O que tinha na cabeça ao pensar que
poderia ajudá-lo?
— Ei — disse ele, fracamente, mal abrindo os olhos quando
soltei sua cabeça e a deixei repousar sobre o travesseiro.
— Ei — respondi.
Ele tornou a fechar as pálpebras.
Levei minha mão até seu rosto, tirando o cabelo molhado de
sua testa e acariciando sua bochecha macia, sentindo a pele gelada
sob meu toque. Há tanto tempo não o via sereno daquela maneira,
com o rosto livre das expressões carregadas que costumava ter.
Quando percebi o que fizera, retrai rapidamente a mão, as pontas
dos dedos formigando conforme retomava consciência de meu
tato. Cruzei os braços, tentando me livrar da sensação. Mesmo
sabendo estar sozinha, olhei em volta, com medo de que mais
alguém pudesse ter visto a cena. Por alguma razão, sentia-me
extremamente envergonhada.
Max se remexeu, franzindo o cenho. Aos poucos, abriu os
olhos, piscando repetidamente. Ele me fitou por alguns segundos,
apoiando os dois braços na cama e impulsionando-se para cima,
sentando em seguida.
— O que aconteceu? — perguntou, ainda sonolento.
— Lavei seu corte — disse, sentindo-me como uma enfermeira
orgulhosa de seu trabalho.
Esperei que ele olhasse para a perna, que dissesse obrigado,
mesmo sabendo que não faria nenhuma dessas coisas. Seu olhar
sobre mim era fixo, brilhante e sólido como pedra.
— Não precisava ter feito isso — disse ele, rudemente.
Murchei na cama. Não esperava um agradecimento, mas
também não aceitaria aquilo. Encarei-o com a mesma rispidez
com a qual o fazia.
— Você poderia ser mais agradável — disparei.
— Então não seria eu — rebateu Max.
A raiva que ainda sentia por ele entalou em minha garganta.
— Deixe de ser mal agradecido. Você estava passando mal. Sua
perna não parava de sangrar. Eu lavei o corte para você. Deus
sabe se estaria acordado para reclamar essa hora se não fosse por
mim. Por que não pode, uma vez na vida, ser legal com alguém?
— Por que eu não sou legal, Ariana —ele aumentou a voz,
olhando-me com desprezo.— Você sabe disso. Todo mundo sabe
disso. Então não exija de mim algo que não possuo —encarou o
teto, expirando. — Sabe como consegui este corte? Em uma luta.
Do mesmo Renácito que matei poucos segundos depois. Sou
atormentado diariamente pelo sentimento de culpa e passo cada
segundo tentando afastar a sensação de que o que eu faço é
errado. E, ainda assim, consigo sentir prazer em realizar coisas
que a maioria das pessoas considera mórbida. Que você considera
mórbida — as palavras jorraram com facilidade, como se ele as
houvesse segurado por tanto tempo que não existia espaço para
mais nenhuma.
Eu não sabia o que dizer. Apenas fitei-o enquanto, aos poucos,
sua respiração diminuía. Tinha certeza de que ele nunca dissera
nada daquilo a alguém. O ferimento o afetara mais do que
imaginava. Max mal conseguia segurar sua língua, quem diria
sustentar seu corpo. Então, quando pensei que adormecera, e
estava prestes a sair do quarto para pedir um espaço na cama de
Crystal, ele abriu os olhos, a expressão pesarosa.
— Me desculpe. Eu não queria falar assim com você. É que
Bronx me chamou de... — ele pareceu se assustar, parando de
falar repentinamente. Percebeu o quanto revelara sobre si mesmo.
— Não importa — disse, virando o rosto e fingindo não notar
minha presença.
Apesar de conhecer essa outra versão de Max há pouco tempo,
conseguia compreendê-la melhor do que poderia tê-lo feito com o
Max que fora meu amigo. O jovem à minha frente parecia muito
mais humano. Mas o principal: ele possuía defeitos. Como eu não
percebera antes? Ele dera, desde o começo, indícios de que algo
não estava certo. Fora, em outras palavras, ainda que não
perfeitamente, a idealização de um herói para mim, não somente
me salvando na biblioteca e no estacionamento, como também me
acompanhando para onde eu desejasse ir. Eu apenas precisava ter
notado seus sinais.
Um frio gelado caminhou por minha espinha e estremeci.
Deixando Max meio desacordado sobre a cama, levantei-me, indo
até a janela e abrindo-a somente o suficiente para varrer os olhos
sobre os metros perto da casa. A noite era absoluta. Não
conseguia ver nada, mas sabia que estava ali.
— Renácito — sussurrei para mim mesma, no momento em
que a sensação se dissipou de meu peito.
— Droga — disse Max atrás de mim, desperto de repente.
Levantou-se antes que eu pudesse impedi-lo e, em menos de dois
segundos, estava ao meu lado, apertando o rosto entre os pedaços
da janela para conseguir observar o local.
Joguei-me aos seus pés, horrorizada. Ele ainda precisaria de
pontos. Era impossível estar andando sem dor, quanto mais sem
mancar. Corri os olhos por sua panturrilha, em busca do corte,
encontrando somente sua pele limpa e lisa. Não havia um
hematoma para lhe macular o corpo. Contive um grito.
— Max — arregalei os olhos, levantando o queixo. — Sua
perna!
Ele franziu o cenho, virando a perna para fora e olhando-a com
descrença. Não existia nem mesmo uma cicatriz no local. Era
como se o ferimento nunca houvesse acontecido. Mas como isso
era possível? Lembrava-me bem da carne partida, do vermelho
vivo que dela jorrava. Não, aquilo não era real. Não tinha como o
ferimento ter se curado rápido daquela maneira. E onde estava a
cicatriz? Algo daquele tamanho certamente deixaria uma marca.
— Que porra... — ele me agarrou pelos ombros, puxando-me
para cima. — O que você fez?
Contive um riso.
— Eu? Nada. Acabei de ver isso.
Ele balançou a cabeça.
— Vamos lá, Ariana. Você tem que ter feito algo.
— Eu juro. Se fiz isso, não tenho ideia de como aconteceu.
Ele suspirou, olhando ao redor do quarto. Percebi que
procurava algo.
— Onde está sua faca?
— O quê? Por que quer minha faca?
— Você sabe muito bem por que quero sua faca — disse ele,
inclinando a cabeça.
E eu sabia.
— Não vou te dar minha faca para você abrir um talho em
alguma outra parte de seu corpo. Deixe de ser idiota.
— Pois bem. Prefere que eu estoure sua janela e use o vidro?
Era incrível seu poder de persuasão — ou chantagem. Para
evitar um acontecimento trágico, como perder minha linda janela
pelo resto da viagem, fui até o armário, levantando as pilhas de
roupas dobradas e retirando a faca de cabo preto de baixo de um
cachecol. Ganhara a arma alguns dias antes. Ainda que não a
estivesse usando para treinamento, Max achou que seria bom tê-la
por perto, para me proteger caso algo acontecesse.
— Meu pai sempre disse: se não pode vencer alguém com
argumentos, então nunca saberá o que é ganhar uma discussão
sem chantagem — comentei, enquanto entregava a faca a ele.
— Bom para mim que isso não é uma discussão. Certo?— ele
pegou o objeto, comprimindo os olhos para mim.
Antes que Max fizesse algo estúpido, fui até a janela uma
última vez. Quem quer que houvesse estado lá, já havia ido há
algum tempo. Fechei a janela, jogando a cortina por cima.
— Tudo bem — disse, apertando as mãos e voltando-me para
ele. — Qual o plano?
— Eu vou me cortar com essa belezinha aqui — ele levantou a
faca. — E você irá curar o machucado. Simples e rápido, contanto
que não me deixe sangrar até a morte.
— Sem pressão —falei.
— Sem pressão —repetiu ele.
Então me encarou, esperando uma resposta. Comecei a sentir
que poderia liquefazer-me naquele momento — ou que desejava
fazê-lo. Queria sair correndo do quarto. Queria atravessar a
floresta, abrir a porta de casa e ser recebida pelos braços de meus
pais, abertos e acolhedores, como sempre eram em meus sonhos.
Queria minha vida de volta, meus domingos, meus problemas
adolescentes. Queria poder sorrir ao falar de um garoto com Maia,
e desejava que o que estava em minha frente sumisse. Queria
esquecer que tudo um dia acontecera, e acordar assustada em
minha cama, com mais um sonho de pessoas que sussurram.
Mas a primeira gota caiu. E meu coração sabia o que tinha de
fazer.
Avancei até Max, puxando sua mão para perto. Meu estômago
se revirou ao ver a carne partida ao meio, o sangue jorrando em
pulsos conforme seu coração batia. Um desespero tomou conta de
mim. Não sabia o que fazer. Minhas ações pareciam controladas
pelo instinto. Tudo o que fizera até agora... Não conseguia
lembrar-me de algo voluntário.
Passei a parte carnuda do dedão em sua palma, sentindo-o se
retrair. O corte fora largo, mas menos profundo do que eu
imaginava. A faca pendia em sua mão esquerda, pressionada por
dedos fortes. Olhei para ele, que tentava esconder a dor. Ao
menos escolhera uma parte do corpo que não poderia causar sua
morte.
O sangue logo começou a escorrer por meus braços, e eu ainda
não havia conseguido pensar em nada. Ele ainda sangrava sobre
minhas mãos, e eu não sabia como curá-lo.Meus olhos ficaram
marejados. Seu ferimento se tornou um borrão vermelho
indiscernível. Abaixei a cabeça.
Eu não consigo.
Eu não...
Senti seus dedos em meu queixo, quentes e carinhosos — mais
carinhosos do que me lembrava. Ele levantou minha cabeça,
olhando-me nos olhos, e nesses vi uma confiança que fez meu
corpo esquentar. Estavam exatamente como me lembrava:
profundos e instigadores. Ele assentiu.
Você consegue.
Foquei em sua mão, no que queria que ela fizesse. Visualizei o
corte se fechando, a dor parando. De repente, comecei a sentir um
peso em minhas costas. Uma série de agulhadas que seguiu por
meus braços, passando por minhas mãos e dedos. E então senti as
mesmas saindo da mão de Max, só que mais fortes, mais
redondas. Era como se algo palpável saísse de meu corpo e
caminhasse em direção ao seu e vice-versa. O sangue parou de
pulsar do corte. Aos poucos, a vermelhidão foi sumindo, à medida
que um lado da carne se unia ao outro, como se alguém os
colasse. Max observava a tudo calado, e eu não ousava tirar os
olhos de sua mão.
O corte se fechou tão rapidamente como fora feito, mas os
efeitos colaterais de meu ato perduraram. No momento em que
soltei sua mão, uma dor descomunal atingiu meu estômago.
Sentia como se alguém o pressionasse de dentro para fora,
procurando uma passagem para sair de meu corpo. Gritei,
arqueando as costas e abraçando-me. A dor que antes era
incômoda se tornara insuportável, e minha visão esmaeceu.
Estava caindo.
Senti os braços de Max me envolverem. Tentei continuar em
pé, mas o esforço era inimaginável. Passei a mão por sua nuca,
enquanto ele me pegava no colo e me levava até a cama.
— Vai ficar tudo bem — sussurrou ele, a boca colada em minha
pele. — Vai ficar tudo bem.
Queria dizer que acreditava nele, que sabia que no final tudo
daria certo. Que esses dias passariam, e que outros sentimentos
tomariam o lugar dos quais sentia agora. Que nada durava para
sempre. Nem mesmo aquilo.
Porém, nada foi dito, e tudo escureceu.
Capítulo 40
Ariana
Sempre me perguntara o que acontecia após seu coração parar
de bater, quando a única e mais avassaladora certeza de nossas
vidas se concretizava. Existia um céu? Existia um inferno? Talvez
o purgatório, que por muitos anos servira de fonte monetária para
as igrejas da idade média, se concretizasse, no final das contas.
Ou talvez fosse algo completamente vazio. Um vácuo tão grande
que sugaria até mesmo nossa razão.
Escuridão. Foi isso que vi naquela noite, enquanto meus olhos
se fechavam.
Não vi minha vida passar diante de meus olhos. Ainda que o
tivesse feito, não acredito que haveria muito para ser visto.
Não existia uma luz ofuscante.
Não existia um túnel.
Também, como poderia haver? Eu não estava morta.
Era difícil saber quanto tempo ficara apagada. Sentia que Max
mal tinha me colocado na cama quando acordei. Rolei os olhos
pelo quarto. Era a única pessoa que se encontrava nele. Meu copo
com água estava na cômoda, como sempre, posicionado sobre um
pires. Estava cheio até a boca, e sabia que alguém o
preenchera.Lentamente, estiquei braços e pernas, sentindo meus
músculos arderem com o movimento. Meu corpo todo doía, mas
fora isso, nunca havia me sentido mais em paz do que envolta no
silêncio do quarto, sem nada para atormentar minha mente ou
coração.
Respirei fundo.
Era difícil afastar as lembranças e o medo. Imagens de
momentos passados, desejos futuros. Tudo se fundia em minha
mente, criando um mar no qual eu lutava para não me afogar.
Constantemente questionava-me com perguntas que não sabia
como responder, e precisava me manter ocupada para não pensar
demais.
A descarga soou, e poucos segundos depois a porta do banheiro
foi aberta. Eu não estava sozinha, então.
— Você acordou — Giovane sorriu, caminhando até a cama em
um passo apressado.
Estava mais bronzeado do que me lembrava. Os fios loiros
traçavam desenhos em sua cabeça, e uma barba rala começava a
crescer em seu queixo.
— Andou se exercitando? —perguntei, devolvendo o sorriso da
melhor maneira que pude.
Ele concordou.
— Bronx têm me ensinado alguns movimentos nesses últimos
dias.
— Últimos dias? Por quanto tempo estive apagada?
—Exatamente trinta e seis horas desde que executou seu
truquezinho — ele arqueou as sobrancelhas, como se
desaprovasse o que acontecera.
Desviei o olhar. Três dias. Estávamos cada vez mais perto da
data do ataque, e ainda não havíamos feito muito. A missão de
reconhecimento fora não somente um fracasso, mas também uma
razão para discórdias. Giovane me contou o acontecimento em
detalhes nos minutos seguintes. A maneira como Bronx tomou as
rédeas da missão, e como ficara transtornado ao ver Max agir de
maneira tão brutal, mesmo sendo para com um Renácito. Ele não
se lembrava dos diálogos exatos, mas deu o seu melhor para
apimentar a história, dizendo que nunca vira alguém olhar com
tanto desprezo para uma pessoa.
Ouvi tudo em silêncio, sem expressar minha opinião. Sabia que
não deveria tomar lados. Isso só dividiria a casa, e não faria bem a
ninguém — até por que já sabíamos qual seriam os lados
tomados, e tal ação desencadearia algo que não estávamos prontos
para enfrentar. Ainda éramos todos amigos, e não ousaria fazer
algo que comprometesse isso.
Quando Giovane terminou, eu não estava chocada, nem mesmo
decepcionada com o comportamento de Max. Sabia quem ele era.
E sabia o que fazia. Mas também conhecia um lado seu do qual
ninguém mais estava ciente, e compreendia que, apesar de tudo,
ele não era um monstro.
— Onde está Max? — perguntei, levantando os olhos para
Giovane.
Ele não respondeu.
— O que foi?
Meneou a cabeça.
— Qual é a dessa sua fixação por esse cara?
Senti-me corar. Eu não possuía uma fixação por Max e, se o
fizesse, seria pela vontade extrema de acertar-lhe o rosto.
— Pare com isso — disse, olhando feio para ele.
Giovane riu, como se minha reação fosse digna de algum
humor.
— Por que não passamos o dia fazendo algo legal? —ele se
jogou ao meu lado na cama, colocando as mãos atrás da cabeça e
se inclinando para me olhar.
— Não sei se é uma boa ideia. Quero dizer, eu adoraria fazer
algo interessante hoje. É só que... não consigo pensar nisso
agora.O fato de estarmos vulneráveis volta o tempo todo à minha
mente. Mas também sei que não importa quantas coisas façamos,
nunca parecerá o suficiente para mim.
Ele anuiu.
— Ainda assim, acho que seria muito mais proveitoso para
você descer agora comigo e passar o dia andando por aí, do que
ficar trancada em uma sala lendo ou em um campo ganhando
hematomas.
Aquilo era verdade. Eu estava louca por um dia de folga — um
no qual estivesse consciente — e Giovane estava bem ali, me
oferecendo isso. Percebi então como andávamos distantes desde
que chegáramos na casa. Sentia falta de passar o dia conversando
com ele, de gastar minutos em sua companhia apenas para rir.
Pulei para fora da cama, ainda com as roupas sujas de sangue de
três dias antes. Ele olhou para mim, torcendo o nariz para o
cheiro.
— Te dou cinco minutos para resolver isso.
Capítulo 41
Max
— Sim, Bronx, é uma péssima ideia — arremessei outra pedra
no lago, vendo-a quicar cinco vezes na superfície limpa da água
antes de afundar.
Havíamos saído de manhãzinha da casa, imaginando que uma
conversa em algum local inóspito seria de boa serventia. Não
esperávamos realmente brigar, mas cautela nunca era demais.
Portanto, pegamos a rota mais afastada que encontramos e
pusemo-nos a caminhar por ela, discutindo sobre todos os tópicos
que vínhamos negligenciando nos últimos dias.Não demorou para
toparmos com um lago. As águas cristalinas preenchiam grande
parte da paisagem, e perguntei-me como não o notáramos antes,
ou mesmo como ele não estava indicado em um dos mapas do
porão. Na outra margem, a floresta seguia normalmente, ainda
mais fechada que perto da Tumba. Decidimos que aquele seria
nosso destino e, feito isso, começamos a arremessar pedras para
dentro do lago.
Estávamos indo bem, nos entendendo na maioria dos tópicos
abordados: Crystal, Ariana, Renácitos, Azriel e Anciãos. Porém,
quando a conversa tomou o rumo de nossas famílias, eu sabia
que, mais uma vez, discutiríamos sobre o assunto. Bronx sabia
minha opinião, assim como tinha conhecimento de que eu não era
do tipo facilmente influenciável, mas, ainda assim, tentava
encontrar maneiras de me convencer a fazer o que queria.
— Pense bem, Max. Nossa última chance — disse ele, lançando
uma pedra ao lago. Ela quicou três vezes e então sumiu.
Eu estava farto daquele argumento. Sim, esta era, de fato, nossa
última chance. Contudo, nem mesmo isso poderia me fazer mudar
de ideia. Acreditava que não poderíamos causar mais mal à nossa
família do que já havíamos feito, mas toda vez que Bronx tocava
nesse assunto, eu sabia que não era verdade.
— Ponha de uma vez por todas em sua cabeça — falei, jogando
a pedra com tanta força que ela nem mesmo quicou. — Nós
estamos mortos para eles. Mortos. Nossos pais nos enterraram,
passaram pelo luto e, por céus, no momento em que penso que
podem ter superado a perda, você quer simplesmente aparecer lá?
Ele balançou a cabeça.
— Você não entende, não é? Minha mãe me amava. Eu nunca
causaria nada senão felicidade indo visitá-la.
Larguei a pedra que preparava para jogar e virei-me para ele
com a expressão séria. Estava na hora de Bronx compreenderas
coisas, como existiam pessoas, palavras e momentos que não
podiam ser reescritos ou revisados, como em um livro.
— Diga-me. Vai passar o resto de sua vida lá? Pelo que eu
saiba, você teria de abandoná-la uma segunda vez. É isso que
quer?
Ele se calou, olhando com tristeza para o lago. Parecia
ponderar, pela primeira vez, os acontecimentos que acarretariam
de sua escolha. Apenas observei-o, sem dizer nada, enquanto
Bronx assumia um modo introspectivo. Durante os minutos que
se passaram, esperei ansiosamente por sua resposta, acreditando
que aquele seria o fim da discussão.
— Ela está doente, Max — disse ele, tão baixo que mal ouvi.
— O quê?
Seus olhos me alcançaram, marejados.
— Ela está com câncer. Não passará deste mês. Azriel me
contou algum tempo atrás — ele esfregou os olhos. — Eu fui um
covarde, Max. Um covarde. Ele me ofereceu a viagem até o
hospital. Disse que me levaria até lá e me traria em segurança
depois. Que se certificaria de que mais ninguém além de minha
mãe me veria. Que meu pai nunca saberia que estive lá, assim
como minhas irmãs — fez uma pausa, levantando o queixo e
fechando os olhos. — Mas eu disse não. Disse que não suportaria
vê-la morrer. E me sinto completamente impotente agora, por que
sei que tudo pelo que ela está passando seria tão mais fácil se eu
estivesse lá. Se seu filho estivesse ao seu lado.
Ele não conseguiu mais se segurar. As lágrimas tomaram conta
de seu rosto e Bronx se sentou pesadamente no chão, puxando as
pernas para si.
Era uma imagem triste, não importando o ângulo ou a versão da
história que se avaliasse. Tanto para sua mãe, que cozinhara
diversas vezes para mim e agora jazia em uma cama de hospital,
pendendo entre a vida e a morte, quanto para Bronx, meu melhor
amigo, alguém que por muitos anos — até hoje — considerei uma
das pessoas mais corajosas com as quais já tivera a sorte de
esbarrar, e que estava ali, sentado à minha frente, as pernas juntas
ao corpo enquanto chorava, tremendo.
Estendi minha mão, posicionando-a em seu ombro. Queria
poder fazer algo. Queria saber o que dizer, mas palavras não eram
a minha especialidade. Qualquer coisa que condissesse com
minha área, de certo, não teria utilidade alguma para ele agora.
— Talvez eu possa ir com você ao hospital? — perguntei.
Não houve resposta, apenas mais uma onda de soluços.Percebi,
então, o que estava havendo. Bronx não chorava por não ter ido
ver a mãe, mas sim por que sentia que já a havia perdido. Chorava
sua morte mesmo sem saber se isso já ocorrera, por saber ser
inevitável.
Lembrei-me de um ditado que minha avó costumava dizer
sempre que eu reclamava sobre algo que não havia acontecido
ainda.
— Você morre antes de levar o tiro, menino— repetia ela.
A frase se aplicava àquele momento.
Capítulo 42
Ariana
— Giovane. Não. Pare — minhas palavras eram entrecortadas
por risos, chegando a gargalhadas às vezes. Eu rolava na grama, e
ele continuava sobre mim.
Estávamos no meio da clareira, sentados em uma toalha
estendida sobre a vegetação. Ao nosso lado, diversos potes de
patê, pães, frutas e doces espalhados. Havíamos acabado de
comer, e agora eu tentava me livrar de suas mãos, enquanto ele
me fazia cócegas.
— Saia, Giovane — empurrei-o para longe. Ele caiu no chão,
um sorriso enorme lhe estampando o rosto.
Sentia-me energizada. Giovane estava certo sobre o dia de
folga. Não havia me divertido tanto desde que chegara àquele
lugar. Primeiro, andamos acompanhando o trajeto da floresta,
conversando, enquanto mantínhamos uma distância segura das
folhagens. Um dia de folga era um dia sem perigos. Depois,
escalamos as pedras ao fundo da clareira, sentando-nos no ponto
mais alto para apreciar a vista de toda a propriedade. O céu não
possuía uma nuvem. As aves voavam de lá para cá, distantes, mas
não livres de nossa companhia. Então, almoçamos sobre a grama,
estendendo uma grande toalha vermelha no chão e cobrindo-a
com as mais variadas comidas que furtáramos da geladeira sem
que ninguém percebesse.
— Isso é ridículo. Por que a mandariam para lá? — perguntou
Giovane.
— Não sei. Acho que ela não era legal o suficiente.
Ele fez um som de desaprovação.
— Vocês, garotas. Todas malucas. Sem exceção.
Encarei-o.
— Desculpe? Que eu saiba são vocês quem fazem a maioria das
besteiras de que ouço falar.
Ele deu de ombros.
— Isso é por que podemos.
— E isso se deve a...?
— Nossas besteiras são as melhores. Com certeza. Por isso
podemos fazê-las — deitou-se, fitando o céu.
Sentei ao seu lado.
— Isso não é verdade. Conheço garotas que fizeram muitas
besteiras. Algumas bem melhores que as suas. Pode acreditar.
Ele franziu a boca.
— Provavelmente é uma mentira. Elas nem deve saber o que é
uma besteira realmente boa. Mas, e você? O que tem para me
contar?
— Eu?
— Sim. Que besteiras já fez?
Pensei sobre aquilo. Não considerava minhas festas uma
besteira. Meus pais sempre sabiam sobre elas, e apesar de não
terem noção dos tipos de pessoas que as frequentavam, sabiam
que eu não pertencia ao que chamavam de “más influências”.
— Nenhuma. Acho.
Giovane meneou a cabeça.
— Isso é impossível. Além do mais, está fazendo uma agora.
Tenho certeza de que, quando seus pais descobrirem que não está
na casa de Maia, vão considerar isso uma besteira — sorriu. — E
das grandes.
Mordi meu lábio inferior. Eles já sabiam que eu havia fugido?
Esperava que não.
Algumas horas depois, quando o jantar já havia sido servido e
nada me restava além de uma longa noite de sono, desci os
degraus que levavam ao porão, para mais uma sessão de
memórias emprestadas. Depois de tantos diários, passara a
arrumá-los de maneira que, ao bater os olhos sobre a estante, já
soubesse quais haviam sido lidos e quais não. Estava há
aproximadamente duas horas lendo, o relógio quase dando meia
noite, quando alguém adentrou o lugar, fechando a pequena
abertura com um baque leve.Soltei o exemplar, deixando-o em
cima da mesa, e ergui os olhos para a figura que se aproximava.
— Oi — disse Max, descendo as escadas e puxando uma
cadeira para perto de mim. Não parecia trazer nenhuma novidade
consigo. Os olhos estavam calmos, me fitando com serenidade.
Ele pressionou os lábios. —Você parece melhor. Isso é bom —
escorregou na cadeira. — Imaginei que a encontraria aqui.
Olhei para os livros, lembrando-me das duras palavras que
sempre descreviam as noites após brigas com Fortis. Talvez o
melhor fosse realmente agir como se nada houvesse acontecido
entre nós.
— É mesmo? Tinha algo para me falar?
— Na verdade, algo para mostrar — disse ele, levantando e
indo até o canto mais escuro do cômodo. Seu corpo se fundiu às
sombras do local onde a luz não alcançava, ficando fora de vista
por um tempo. Então ele voltou. Um grosso livro se encontrava
em suas mãos. Antes mesmo dele se aproximar, já sentia a energia
que fluía dos papéis.
— Um livro de Invocadoras? — perguntei, sorrindo.
Ele assentiu, estendendo o objeto para mim. A capa de couro
cinza estava limpa, como se fosse a única coisa naquele lugar a
não ser afetada pela poeira. Não, ela estava limpa demais. Max
provavelmente limpara o livro ao encontrá-lo mais cedo, mas
resolvi não perguntar. Ele tornou a sentar na cadeira, me olhando
curiosamente, esperando que eu abrisse a pesada edição feita à
mão.
— Como não percebi antes? Como não senti que estava aqui?
—questionei-me em voz alta.
Aquela era uma dúvida que agora me parecia interessante.
Viera tanto a este lugar, e em nenhuma das vezes sentira a
presença do livro, nem mesmo enquanto passava horas em
silêncio, concentrada.
— Talvez estivesse focada demais nesses diários — ele
gesticulou para a estante atrás de mim.— Como sempre digo:
deveria prestar mais atenção nas coisas.
Quase não era possível notar, mas um sublime sorriso tomava
conta de seu rosto. Para qualquer um poderia passar
imperceptível, mas não para mim. Depois de algum tempo,
percebi que Max nunca sorria completamente, mas que seus
lábios sempre demostravam o que ele tentava esconder. Assim
como seus olhos.
— Eu tomei a iniciativa de ler algumas das páginas,
imaginando que talvez houvesse uma explicação para o que
aconteceu com você.
— E então?
— E então que eu estava certo. Abra na página 103.
Foi o que fiz. Em cima da folha estava escrito em letras
redondas: Capítulo seis. Aprendendo a controlar sua força.
“Antes de tudo, minha querida, deve saber que nada pode ser
aprendido por estas páginas a menos que já tenha descoberto do
que é capaz. Isto não é um manual. As seguintes palavras são,
senão regras, algumas das leis que regem seu mundo.
Objeto um: nenhuma Invocadora deve utilizar seus dons para
matar sua oponente, visto que a mesma estará sujeita aos reflexos
de suas ações.
Objeto dois: não existem dons diferentes, mas sim variações
dos mesmos. Porém, tais variações acontecem ao passar do
tempo, ao longo das gerações, de modo que duas Invocadoras de
uma mesma geração sempre possuirão os mesmos dons.
Objeto três: no início, a adaptação a tais dons pode ser um
tanto dolorosa, possuindo efeitos colaterais que variam de
Invocadora para Invocadora. Esses durarão até que esta se
acostume à prática de tal ação. ”
— Estou cansada desses livros que não ajudam em nada —
falei, fechando o exemplar, irritada com a quantidade de palavras
e a pouca informação.
— Deixe de ser mal agradecida — disse Max, em tom
provocativo.
Girei os olhos e ele sorriu. Um sorriso de verdade.
O tempo estava se esgotando e o nervosismo ficava estampado
na feição de todos que habitavam a pequena casa branca no meio
da floresta. As refeições eram preparadas às pressas e ingeridas
com mais rapidez ainda. Não possuíamos tempo nem mesmo para
conversar. Cada um tinha sua rotina, e nada faria com que nos
perdêssemos nela. Max e eu passávamos as tardes lutando, às
vezes Crystal e Bronx também, a alguns metros de nós. Mais
tarde, eu descia para o porão para continuar a ler os diários. Não
aprendia muito com eles, mas gostava de ler sobre as histórias,
dilemas, dramas e, poucas vezes, felicidades pelas quais passaram
minhas antecessoras.
Meu corpo não aguentava mais chutes e socos. Ainda assim,
aceitava levá-los, pois sabia estar melhorando. Cada vez que
encontrava o chão, sentia-me mais forte. Cada vez que me
desviava de um ataque, sentia-me mais capaz.
— O que exatamente estou fazendo aqui? — perguntou
Giovane, nos seguindo até a lateral da casa.
Olhei para ele. Não podia responder-lhe exatamente o que o
esperava, mas sabia, de certa forma, o que iríamos fazer.
— Você será uma espécie de cobaia — respondi. — Não tente
levar isso como uma ofensa.
Ele me observou, ponderando o nível de humor presente em
minha frase. Pareceu não chegar à uma conclusão.
Seguimos até estarmos contentes com a distância da casa —
qualquer efeito negativo do que estávamos prestes a tentar deveria
ser evitado. Desde que aprendera a controlar objetos, minha sede
por evolução crescia a cada dia. Queria saber o que mais podia
fazer, ou de que outras maneiras poderia utilizar o que já
reconhecia possuir. Max e eu havíamos passado os dois últimos
dias em busca dessa resposta. Eis que, então, a ideia me surgiu no
meio de uma conversa, como se alguém a houvesse colocado em
minha mente: se podia controlar objetos, isso se aplicava também
a pessoas?
Era o que estávamos prestes a descobrir.
Capítulo 43
Max
Estava tão certo quanto ela sobre aquilo. E com isso quero dizer
que não tinha a mínima ideia se o que imaginamos funcionaria ou
não. Ariana já havia feito os objetos mais bobos a obedecerem,
assim como também quase arrancara uma árvore do chão alguns
dias antes. Porém, controlar um ser humano era algo
completamente diferente. Era desafiador.
Ela me perguntara, na noite anterior, pouco depois de
discutirmos a ideia, se aquilo que queria fazer não era
desagradavelmente algo que Invocadoras das Trevas adorariam
praticar. Não me dei ao trabalho de responder. Sua pergunta era
um tanto estúpida para mim. Crystal possuía os mesmos poderes,
e eu tinha certeza de que não se sentiria mal ao usá-los. Ser vivo
ou não, se algo entrasse em seu caminho, ela o retiraria com a
mesma rapidez com que se chuta uma folha. E eu esperava o
mesmo de Ariana.
O problema era que estava realmente preocupado com ela. A
primeira coisa que me alarmava era o medo que possuía daquilo
que deveria impor seu poder sobre: os Renácitos. Ariana corria
deles. A prova disso era que passara as últimas três semanas
escondida na Tumba, com medo de topar com algum deles
durante todo o tempo. A segunda coisa e, sem dúvida alguma, a
mais preocupante, aquela que poderia vir a custar sua vida, era
sua negação. Ariana era uma Invocadora das Trevas. Ela sabia
disso. Podia sentir isso. Crystal certa vez me contara que o
sentimento que tinha sobre as Luzes era algo quase sólido em seu
sangue, e imaginei que para todas as Invocadoras fosse o mesmo.
Mas nem mesmo isso parecia ser capaz de transpô-la. Ariana
matara uma pessoa, e isso não surtira efeito algum em seu
espírito. Ela não sentira o prazer que todos os seres pertencentes
às Trevas sentem. Não sentira o poder em suas mãos ao
experimentar tirar uma vida. E se não viesse a sentir nenhuma
dessas coisas em pouco tempo, se não aceitasse a que mundo
pertencia, eu sabia que haveria consequências.
Temia que eu fosse sua única chance.Mas como poderia ajudá-
la? Já havia tentado fazer isso uma vez, e não acabara bem para
ninguém. Ainda pagava por tê-la enganado. Se fosse realmente
fazer aquilo, deveria ser claro e aberto com ela, mesmo sabendo
que poderia colocar tudo a perder.
— Pronta? — perguntei a Ariana. Seu semblante estava rígido.
Mal se permitia respirar.
— Sim — respondeu ela, expirando.
Concordei com a cabeça. Ela endireitou as costas.
— O que estou fazendo aqui? Vou ser tipo... o alvo? —
indagou Giovane, confuso. Seus olhos transitavam entre as
figuras à sua frente, carregados de ansiedade.
— Nós vamos ser — dirigi-me a ele, a expressão neutra.
Mal tive tempo de voltar meu olhar para Ariana e já senti algo
me arremessar contra a parede. Foi estranho, diferente. Ao mesmo
tempo em que parecia ter sido uma onda de vento a me empurrar,
parecia ser algo dentro de meu corpo me forçando naquela
direção, retirando todo o ar de meus pulmões com o impacto.
Bati as costas com força contra o cimento, sentindo toda a
extensão de minha coluna arder. O choque fora mais forte do que
eu esperava. Caí sentado, a cabeça latejando. Estava a ver
estrelas, ainda incerto se o ato ocorrera com a força que
imaginara, ou se tal coisa fora projeto de minha distração.Olhei
para frente. Ariana possuía as mãos sobre a barriga, os olhos
arregalados. Aparentava tamanha incredulidade que chegava a ser
cômico.
— Isso é incrível! — exclamou, dando pequenos pulinhos.
Seus olhos me fitaram por mais algum tempo, deslumbrados,
então se voltaram para Giovane, que deu um passo para trás de
imediato.
— Não. Não. Me recuso. Nem pense em fazer...
E lá foi Giovane voando contra a parede. Sua cabeça a
ricochetear contra a pedra fria. Quando o vi cair de bruços sobre a
grama, mal respirando, percebi o quão perigoso era aquilo. Era
bom que Ariana tomasse cuidado. Ainda sabíamos muito pouco
sobre seus dons, portanto, desconhecíamos seus limites.
— Caralho — gemeu Giovane, enquanto se virava de bruços,
segurando o braço.
Ele abriu os olhos, lentamente. O azul de sua íris se igualando
ao azul do céu sobre nós. Olhou-me, um sorriso se formando em
seus lábios, e antes que eu percebesse, estávamos rindo. Um riso
nervoso e dolorido, que caminhava por nosso corpo de maneira
ritmada.
— Isso foi horrível — cuspi a terra que se encontrava em minha
boca.
— Com certeza — concordou ele. — Me lembrem de não
aceitar mais seus convites. São péssimos.
O comentário fez com que eu risse ainda mais. Quando levantei
a cabeça, vi Ariana me fitando com um leve sorriso, achando
graça da cena.
— O que foi? — perguntei.
Ela balançou a cabeça, os lábios se alargando.
— Nada. É que... nunca vi você rindo dessa maneira.
Inclinei o corpo.
— Bem, você me arremessou contra uma parede. O que
esperava?
Então, pensei ter visto algo passar por seus olhos. Uma ideia
ocorrendo. Ariana perscrutou as pedras, a casa e as árvores, e temi
que quisesse nos arremessar contra um deles. Porém, antes que
pudesse me pronunciar, ela levantou a mão, e eu já não me
encontrava mais sobre o solo.
Os segundos seguintes foram de puro horror. À primeira vista,
pensei estar sendo jogado para o alto, sabendo que uma queda reta
e ininterrupta me esperava— e, possivelmente, senão de modo
concreto, a morte. Então notei que, diferente da primeira vez, ela
não abaixara seu braço, continuava a sustentá-lo no ar. Por fim,
percebi que não estava sendo arremessado, mas sim carregado
para cima. Ariana me manipulava da mesma maneira que o fazia
com objetos.
Abaixo de mim, talvez a cinco metros, encontrava-se a terra
fofa na qual estivera pisando há poucos segundos, as flores roxas
que acompanhavam a borda da casa, pintando o solo assim como
as amarelas o faziam na floresta. Giovane continuava sentado,
observando-me subir cada vez mais alto. Havia passado o
primeiro andar quando a expressão de Ariana mudou.
— Ari, está tudo bem? — perguntou Giovane, se aproximando
ao perceber algo de errado.
Seu rosto se contorceu, como se alguém a houvesse socado.
Não senti nada em um primeiro momento. Era como flutuar em
uma imensidão. Foram apenas segundos, mas o suficiente para a
gravidade me encontrar novamente. Uma dor aguda atravessou
minha canela direita. Dobrei-me em posição fetal, puxando as
pernas até o torso, tremendo. Meus olhos estavam fechados, mas
pude ver quando duas sombras surgiram acima de minha cabeça.
— Desculpe — era a voz de Ariana.
Respirações pesadas enchiam o ar à minha volta.
— O que está doendo? — esse era Giovane.
— Tudo — minha voz saiu em um grunhido de dor.
Despencara de cinco metros de altura, precisava mesmo
escolher uma única parte de meu corpo que parecia prestes a
rebentar?
Mas eu sabia o que estava pior. Minha canela. Tentei movê-la,
soltando um grito de dor que acompanhou o ato.
— Eu acho que quebrou — tartamudeei.
Giovane pareceu ouvir aquilo em alto e bom som, pois puxou
minha perna, forçando-me a virar, e analisou com dedos
experientes.
— Não está quebrada — disse ele. — Apenas deslocada. Posso
colocar no lugar para você. Já fiz isso diversas vezes.
— Pode colocar — falei, mordendo a parte interna de minha
boca, preparando-me para a dor que viria na sequência.
Ele colocou meu pé no lugar e fora tão sutil ao fazê-lo que
cheguei a sentir o gosto metálico do sangue invadir minha boca.
Quando a dor passou, abri os olhos. Ariana tinha a expressão
preocupada, e Giovane estava no mínimo chocado. Já eu, por
outro lado, não sentia nada. Queria apenas deitar em minha cama
e dormir por um bom tempo. Desejava acordar quando tudo
houvesse acabado. Do que me adiantaria continuar a viver
daquela maneira, topando com o perigo a cada dia e tendo de
gastar as únicas horas livres que possuía a treinar? Poderia desistir
agora mesmo. Poderia levantar e ir embora, em direção às
árvores, e nunca mais retornar. Pegar a faca que sempre trazia
comigo em minha bota e, com um único movimento, voltar para
meu local de origem. Para onde me fora oferecido descanso.
Mas não faria isso. Não podia. Ariana estava ali, fitando-me
com seus olhos curiosos, e nem por mil Renácitos a deixaria
passar por tudo sozinha.
Estudei-a sob o sol quente. A maneira como seu cabelo caía ao
lado do corpo, e o jeito que cruzava as mãos sobre o colo. Como
pressionava os lábios ao contemplar-me, as cores marrom e cinza
dançando em sua íris. A pele macia que agora afastava os fios que
caíam sobre meu rosto, dançando por sobre minha visão. E, por
baixo de tudo isso, a doçura misturada à malícia; o desejo de
descobrir o desconhecido; a provocação em pessoa; a iminente
batalha entre bem e mal, prestes a implodir dentro de si, ainda que
ela mesma não soubesse disso.
Capítulo 44
Ariana
Acordei com o sol batendo na janela. Todo o quarto cheirava a
uma planta que não consegui identificar pelo aroma. Jasmim,
talvez?
Foi difícil me levantar, já que dormira tarde da noite. Algo com
o qual havia parado de me preocupar voltara com força total: os
sonhos.
Bem quando pensei estar livre de suas garras gélidas, contente
por ter noites completas de sono, o mal decidira retornar. Era
como aquelas histórias de terror que ouvimos durante o dia, e
podemos passar meses sem nos lembrar, mas que quando a pior
das noites desce sobre nossos espíritos, e a lua já não é suficiente
para iluminar o escuro, ressurgem. Em certo momento, até
levantara para abrir a janela, imaginando que talvez, só talvez, o
sol nascesse mais rápido caso eu pedisse.
Mas ele não o fez, e a lua já tardava a sumir.
Quando pensei que o amanhecer nunca chegaria, e que a noite
faria do mundo seu escravo, o céu finalmente se iluminou.
Levantei da cama e fechei a cortina. Apesar de estar um dia lindo,
não queria olhar para fora, não queria olhar para a floresta. Na
noite anterior, não havia apenas sonhado com pessoas, havia
também revivido meu encontro com Ian.
Estive de volta ao lugar de nossa conversa, ouvindo os micos
pularem acima de nós e as árvores balançarem em sintonia. Tudo
pareceu tão vivo novamente. Tão vivo e tão frágil. Era isto que
Ian representava para mim: a fragilidade encontrada em todas as
pessoas— no medo, nas desculpas, nas inseguranças; nas palavras
e ações que guardamos para nós, por receio do que possa vir a
acontecer. Tememos o amanhã por ele ser uma consequência do
hoje, e tememos o hoje, pois ele justamente arquitetará o amanhã.
Tínhamos exatamente três dias até o anunciado ataque, se esse
viesse mesmo a ocorrer. Nem me dava ao trabalho de refletir se
Ian estava dizendo a verdade. Se tudo não passara de um plano.
Confiava nele. Acreditava cegamente em suas palavras, mesmo
conhecendo os perigos que ações como essa poderiam trazer.
Afinal, ele era minha única opção. Além do que havia me dito, e
do que descobrira por meio dele, não sabia mais nada. Sem seu
aviso, estaria tão perdida quanto estivera no começo de tudo.
Parei no meio da clareira, examinando cautelosamente aquilo
que viria a ser nosso campo de batalha. Até os arredores da casa
pareciam segurar o fôlego, apreensivos com os próximos dias. No
que se tratava da vegetação, não havia muito o que usar em nosso
benefício. Tudo que poderia nos dar algum tipo de vantagem,
fosse por meio de esconderijos ou outras coisas, eles também
conheciam. Agradeci mentalmente a Max por ter matado ao
menos um de seus espiões.
— Cuidado, Ariana — disse Crystal, levantando a mão.
De todos nós era ela, sem dúvidas, a mais ansiosa. Passava
horas lutando com Bronx, aprendendo comigo. Parava apenas
para dormir e, quando muito necessariamente, comer. Não estava
temerosa. Muito pelo contrário. Parecia ansiar pela luta, como se
esperasse numa fila para andar em um brinquedo que se recusava
a chegar mais rápido.
— O que vai fazer? Me jogar contra a parede? Truque velho
esse não acha? — disse, pulando para o lado quando uma onda
saiu de sua mão em minha direção. Mas era impossível desviar do
golpe, de modo que fui jogada para trás alguns metros, caindo
sentada no chão.
— Você viu isso? — ela gritou de felicidade, surpresa com o
próprio avanço.
Eu não sabia muito mais que Crystal. Não havia nenhuma
vantagem minha sobre ela. Possuíamos os mesmos dons. Em
contrapartida, eu parecia dominar mais facilmente todos eles, de
modo que nada seria mais justo do que ajudá-la. E era isso que eu
vinha fazendo.
— Sim, você está melhorando — berrou Bronx, desviando-se
de um soco de Max e acertando Giovane no queixo logo em
seguida. Mais pareciam os três mosqueteiros do que os jovens que
eu conhecia.
Estávamos todos no campo, cada qual em seu lugar, treinando
chutes, socos, defesa e, no caso de Crystal e eu, controle. Ao
contrário do que parecia, não era somente movimentar os braços e
as coisas magicamente se moviam. Aquilo exigia de nosso corpo
de tal forma que, ao final do dia, mal tínhamos forças para
continuar em pé. Também não era algo simples atingirmos o nível
de concentração necessária, de maneira que, muitas vezes,
demorávamos a consegui-lo.
O dia não seguia ensolarado. Nuvens cinzas e carregadas
começavam a serpentear por cima de nossas cabeças, anunciando
a chuva que estava por vir. Os pássaros voavam baixo, e em
pouco tempo as árvores começaram a sussurrar. Não era a
primeira vez que o tempo se fechava daquela maneira. E depois
de tantos alarmes falsos, apreendi que ali, mesmo com o céu
escuro, a chuva dificilmente caía.
Levantei-me do chão, limpando as mãos na calça. Não
tínhamos tempo para lavar nossas roupas sempre que queríamos,
portanto me senti um tanto ingrata ao sujá-las, já que fora
Giovane quem as lavara para mim. Com um movimentar de
braço, fiz Crystal parar no meio das árvores, tirando de seu rosto
o sorriso zombeteiro que me lançava. Alguns segundos depois ela
levantou as mãos, balançando-as a dar sinal de que, apesar da
queda, encontrava-se bem. Mesmo de longe, conseguia ouvir sua
risada, acompanhada da minha.
Sentia-me cada vez mais poderosa, cada vez mais forte. E não
só por que percebia, agora, não ser tão vulnerável quanto um dia
imaginara, mas por que não sentia mais medo. Não temia mais os
Renácitos. Queria que viessem ao meu encontro. Queria que
trouxessem Ian. E então, só então, eu teria a chance de salvá-lo.
Precisava atraí-los como em uma armadilha. Precisava construir a
teia que os prenderia antes de a aranha dar o bote. Era isso que
dizia a mim mesma. O que repetia dia e noite, enquanto o tempo
passava. A tão conhecida frase em frente ao espelho, que
pronunciamos ao olhar para os reis e rainhas de nossas histórias.
Tolos, pensei. Por que no fundo, onde toda a verdade se escondia,
e as loucuras se tornavam mais sãs do que as ideias do mundo que
nos cercava, eu estava tremendo, aterrorizada da cabeça aos pés.
E não acreditava, nem por um segundo, que conseguiria fazer
aquilo.
Enquanto Crystal se punha a levantar, apoiando-se nos galhos à
sua volta, caminhei em direção a Max, esperando que o elemento
surpresa me desse algum tipo de vantagem. Olhei rapidamente
para Bronx, que com um leve movimento de cabeça concordou
em não entregar o jogo. Desatinei a correr, percorrendo
sorrateiramente o espaço que nos separava, cada vez mais perto
dele. Mas então, no momento exato da colisão, Max desviou,
dando um largo passo para a esquerda. Continuei por inércia,
quase caindo de cara no chão. Por sorte, consegui continuar em
pé, parando de costas para ele.
Não conseguia enxergar sua expressão, mas sabia que um
sorriso sutil havia lhe tomado a face, e que um sentimento de
superioridade inflara seu ego. Não precisei me virar para saber o
que faria em seguida. Lutáramos o suficiente para eu conhecê-lo
quando provocado. Enquanto eu ainda estava de costas, ele se
curvou até alcançar a bota, em busca de sua faca.
Um segundo.
Dois.
Virei-me para ele no momento em que se levantava, a boca em
um leve sorriso de canto. Ele arqueou as sobrancelhas para mim, e
fiz o mesmo para ele, rodando sua faca em minha mão direita,
aproveitando o júbilo que trazia o momento. Ele olhou para a
lâmina de cabo verde em minha mão, percebendo estar em
desvantagem ao lutar contra alguém que poderia desarmá-lo
facilmente sem ser notado.
Ouvi a risada de Bronx e Giovane atrás de mim, ambas suaves e
contagiantes, e pensei que nunca me sentira tão viva quanto
naquele momento, compartilhando palavras, gestos e futuro com
aquelas quatro pessoas. Não sabia o quanto sentiria falta daquele
lugar; de todos os dias, inclusive os ruins. Por que quando algo
com o qual nos importamos acaba, até mesmo os piores
momentos parecem magníficos.
Os três dias seguintes se passaram como vento.
Capítulo 45
Ariana
Fazia um bom tempo que não tomava um banho de verdade,
daqueles de limpar o corpo e a alma. Não que isso fosse algo real
— sentia-me mais suja e desgastada psicologicamente do que
fisicamente, ainda que possuísse mais machucados em minha pele
do que um dia imaginara ser possível. Mas o dia amanhecera
nublado, e isso significava nada de treinos. O que, em minha
opinião, era a mesma coisa que um dia dedicado a mim.
Levantei a cabeça e fechei os olhos, deixando que a água
escorresse por meus cabelos e pescoço. Ela caía quente,
contornava suavemente meu corpo e estalava ao encontrar o chão.
O banheiro estava tomado por uma fina névoa. Sentia-me calma
pela primeira vez em dias.
Saí do box, ainda pingando, e enrolei-me em uma toalha. O
vento gelado que entrava por de baixo da porta esfriava meus pés.
Fui até o armário, pegando minha escova, pasta de dentes e o
creme que sempre deixava lá. Meu pé escorregou no piso
molhado e por pouco não caí. Quando acabei tudo, abri a porta
para o quarto.
Senti minha respiração falhar por um segundo. Max estava
sentado em minha cama. Seus dedos deslizaram sobre o livro que
segurava, soltando-o sobre o colchão macio, enquanto ele se
virava para me observar. Não consegui me mover. Algo naquele
encontro inesperado me causava certo nervosismo. Fiquei ali, em
pé, envolta no vapor que escapava por de trás de mim, vindo do
banheiro. Devo ter feito alguma careta, pois ele levantou o canto
esquerdo da boca, em um meio sorriso.
— O que está fazendo aqui? — perguntei, um tanto na
defensiva. Desde quando ele possuía permissão para entrar em
meu quarto daquela maneira?
— Eu queria te ver — respondeu ele, encarando-me fixamente.
Apertei a toalha em torno de meu corpo, sentindo-o esquentar. —
Parece que possui um grande problema quanto a manter-se
vestida em minha presença, não? —inclinou a cabeça.
— Não seja bobo. Você sabia muito bem que eu estava
tomando banho — retorqui.
Ele deu de ombros.
— Talvez.
Um pequeno silêncio se seguiu, no qual eu ignorei seu olhar,
apesar de senti-lo sobre mim.
— Então — olhei-o com firmeza. — O que o traz aqui?
Ele riu. Uma gargalhada alta e suave.
— O que é isso? Algum filme passado na idade média onde sou
posto frente à um poder maior? — sua expressão abrandou, os
ombros se curvando levemente. — Nada específico — franziu a
boca.
— Então pode, por favor, me dar licença? Preciso me trocar.
— Não — declarou ele, com um sorriso nos lábios. Podia sentir
a malícia presente em suas palavras.
— Não é hora para joguinhos, Max — falei, começando a sentir
frio. — Saia para que eu possa me trocar.
Ele piscou para mim antes de se jogar para trás, deitando na
cama e, em sua língua, dando uma resposta. Rolei os olhos,
mesmo sabendo que ele não veria isso. Por que tinha de ser tão
irritante?
Fui até o guarda roupa, puxando uma calça jeans e uma blusa
branca velha. Não estava me preocupando com o que vestiria.
Percebi, então, ter pegado uma das blusas que achava que
destacavam meus seios. Senti minha face ruborizando.
Arremessei a blusa para dentro da gaveta novamente, sem me
importar se a amassaria ou não, puxando uma azul de alcinha em
seguida e indo até o banheiro para me trocar.
— Você sempre ganha as discussões à força? — perguntei,
fechando a porta atrás de mim.
Max levantou o torso, apoiando-se nos cotovelos. Seu cabelo
estava perfeitamente desarrumado, caindo sobre a testa. Senti o
impulso de afastar uma das mechas que tocava sua sobrancelha,
mas limitei-me a cruzar os braços.
— Eu não diria que é à força. Acho que possuo apenas... um
jeito diferente de lidar com as situações.
— Você quer dizer batendo o pé?
Ele riu.
— Está me chamando de mimado?
— Talvez — disse, me aproximando e parando em frente à
janela.
De repente, lembrei-me do dia em que ele se machucara. Como
eu afastara seus cabelos enquanto ainda dormia, e como precisei
controlar o que cresceu em mim enquanto o observava. A maneira
como, em um piscar de olhos, ele se tornara uma pessoa diferente.
— Está aí algo que não sou — disse Max, depois de um tempo.
— O quê?— perguntei, dispersa.
— Não sou mimado.
— Ah, sim.
Virei meu corpo em direção à janela, absorvendo as últimas
luzes que entrecortavam o céu. Ao longe, estavam as árvores, e
mais perto, as pedras e a clareira. Fechei os olhos, respirando
profundamente, tentando acalmar meus pensamentos. Depois de
viver algumas semanas naquela casa, estava quase sabendo
diferenciar o cheiro das diferentes flores que tomavam conta do
ar. Begônias, cravinas e petúnias.
Algo quente roçou em meu cotovelo, fazendo uma onda de
calor se espalhar por meu braço. Desvencilhei-me de sua mão, me
afastando rapidamente. Max franziu as sobrancelhas, e pude ver
um lampejo de tristeza atravessar seus olhos, tão rápido que fora
quase imperceptível.
— Por que está fazendo isso? —questionou ele, em tom sóbrio.
— Fazendo o quê?— perguntei, passando as mãos ao redor de
meu corpo, sentindo-me mais exposta do que quando estava
apenas com uma toalha.
— Me evitando.
— Não estou te evitando.
— Sim, você está. Toda vez que tento me aproximar você
recua. E eu realmente não sei o que está acontecendo.
Ele fechou os punhos, e todo seu corpo pareceu se tensionar de
raiva. Desviei o olhar, não suportando a intensidade do seu.
— Nada está acontecendo — murmurei.
O silêncio pareceu pesar à nossa volta. Não sabia se queria que
ele saísse do quarto e me deixasse sozinha, ou se me desculpava
por algo que não sabia ter cometido. Afundei o rosto entre as
mãos, expirando. Por alguma razão, não conseguia olhá-lo. Sentia
que ele estava prestes a dizer algo. E, se estivesse correta, sabia
não querer ouvir.
Max afastou minhas mãos em um toque macio, sem soltá-las
depois.
— Estava tudo bem até poucos dias atrás. Estávamos nos dando
bem —ele fez uma pausa, esperando que eu levantasse o olhar.—
Eu fiz algo que a chateou?
As palavras travaram em minha garganta. Balancei a cabeça em
negativa, encarando o chão.
— Então o que foi? — perguntou ele, me soltando.
Forcei-me a encará-lo. Seus olhos brilhavam com uma
intensidade que fazia meu coração disparar.
— É exatamente isso — disse, minha voz em um sussurro. —
Estamos nos dando bem demais. Era para termos apenas uma
trégua, não? Uma brecha para que você pudesse me ajudar
enquanto eu precisava. Eu não pretendia confiar em você
novamente, Max. Seria... burrice.
Sua expressão ficou gélida em segundos.
— É sobre isso, então? Eu sou o traidor que você não quer
como amigo — ele sorriu, e senti como se houvesse me
apunhalado com minha própria faca. — Pois bem.
Ele girou o corpo e começou a se afastar. Os ombros eretos
enquanto avançava em passos largos. Em pouco tempo chegaria à
porta. Em pouco tempo a atravessaria. E então tudo aquilo estaria
selado para sempre. Minhas palavras eram como armas, e eu não
conseguiria evitar os feridos. A menos que fizesse algo. A menos
que avançasse.
No último instante, quando sua mão tocou a maçaneta,
coloquei-me entre ele e a saída.
— Por favor — sussurrei. — Não vá.
Seu olhar ainda era pétreo, mas pensei ter abalado algo ali.
— Me dê uma razão para não fazer isso. Acha que gosto de
ficar ouvindo as pessoas falarem sobre como não me querem por
perto? Ou sobre como sou horrível?
— Você não é horrível.
— Bem, tenho certeza que não é pelo grande apreço por minha
pessoa que você me quer longe.
— Eu não te quero longe, Max — protestei, em voz baixa,
quase com vergonha.
— Então o que você quer? — perguntou ele, olhando dentro de
meus olhos.
Sentia a força que Max fazia ao tentar puxar a porta. Ele era
completamente capaz de arrastar-me junto a ela se quisesse. Mas
queria me dar tempo. Queria me dar uma chance para consertar o
que havia dito, assim como eu fizera com ele dias antes.
Não existiam palavras que expressassem aquilo que queria lhe
dizer. Fitei seus olhos na luz do entardecer, os tons de marrom e
dourado se mesclando em sua íris. Ele continuava parado, apenas
sua mão exercendo força contra a maçaneta. Contornei suas
sobrancelhas com meu olhar, descendo para o nariz afinado e,
então, para sua boca. Não pensei. Não podia pensar se quisesse
fazer aquilo.
Levantei-me na ponta dos pés e alcancei sua boca, beijando-o
levemente no canto dos lábios. Max se retraiu, como se meu
toque o causasse enjoo. Coloquei os calcanhares de volta no chão,
olhando-o timidamente. O que ele queria, afinal? Por que tudo
tinha que ser complicado com ele?
— Não faça mais isso — pediu. E apesar das palavras duras,
sua voz era suave, como se estivesse a acariciar minha pele.
Afastei-me da porta, liberando sua passagem. Não conseguia
encará-lo. Sentia meu rosto arder. Era como se milhares de
pessoas estivessem assistindo enquanto eu tentava
desesperadamente fazer algo certo. Exceto que não existia
ninguém ali além dele. Apertei minhas mãos uma contra a outra,
meu sinal de nervosismo.
— Vá — falei, tentando soar o mais inexpressiva possível, mas
havia um tremor em minha voz.
— O quê?— perguntou ele.
Como se já não fosse suficiente toda aquela cena.
Levantei os olhos, agora com raiva.
— Vá, Max. Saia daqui. Não te dei razões para ficar. A porta
está aberta. Deixe-me sozinha.
Ele não se moveu. A luz bruxuleante que antes tomava conta do
quarto se fora. Estávamos no escuro.
— Não... Quer dizer, sim... Quer dizer... Ariana — disse ele,
tentando me alcançar.
Recuei de seu toque como um animal recua de um predador.
Era exatamente isso que eu era naquele momento, uma presa. E
não conseguiria fugir dele. Porém, pior do que isso: eu não
conseguiria fugir daquele sentimento.
— Você entendeu errado — explicou Max, desta vez sem se
mover.
Não respondi.
— Ariana, não posso deixar que se aproxime.
— Acredite. Eu entendi muito bem. Agora pode, por favor, sair
daqui? — abri a porta com rispidez, indicando o caminho.
Levei um susto quando sua mão veio de encontro à minha,
fechando a porta com um baque que ecoou pelas paredes. A
madeira tremeu sob meus dedos, e pensei que era assim que me
sentia. Sua mão deslizou pela minha, parando ao encontrar meu
pulso. Ele me puxou para perto, delicadamente, como se meu
corpo fosse um campo minado e o mais leve toque pudesse
colocar tudo aos ares.
— Eu disse que não posso deixar que se aproxime, não que não
quero — segredou ele, o rosto a poucos centímetros do meu.
— Isso não faz sentido — continuei na defensiva.
— Sim, faz — ele fez uma pausa, levando uma das mãos até
meu rosto e acariciando minha bochecha. — Eu quero você,
Ariana. Mas se eu a tomar em meus braços, então estarei
assinando meu próximo sofrimento.
Levantei a mão, afastando a sua de meu rosto. Ele dizia uma
coisa, mas fazia outra, e eu já não sabia mais em que acreditar.
— É tão ruim assim ficar perto de mim? Eu não te trarei
sofrimento.
Sua expressão se tornou pesarosa.
— A menos que me deixe — disse ele.
— Não vou te deixar.
Sua mão deslizou pelo meu pescoço, afastando delicadamente
minha blusa, enquanto seus dedos acompanhavam o contorno de
minha pele.
— A menos que morra — sussurrou, fitando-me.
Senti um frio tomar conta de meu corpo.
— Mas aí é diferente. Não vou poder ter evitado. Não é como
se eu estivesse escolhendo magoar você — disse, rapidamente.
Ele se afastou.
— Sim. Mas, de qualquer modo vou te perder. Morrendo ou
não, ainda vai me deixar no final. Ou acha que vai voltar a viver
em sua casa e me ver todos os dias? Não existe por que fingirmos
que isso daria certo.
— Então não vamos fingir. Vamos apenas viver enquanto durar
— estava desesperada por encontrar algo que trouxesse suas
barreiras abaixo.
Ele me fitou com curiosidade. Então, se aproximou, envolvendo
seus dedos em meus cabelos e se inclinando em minha direção.
Ele me beijou, nossos lábios mal se tocando. Quando se afastou,
senti uma pontada em mim implorando por mais. Aquele toque
fora tão leve, tão suave, que não fizera outra coisa senão acender
o desejo que já havia em mim.
— É mais difícil se desfazer de algo que já teve — explicou ele.
— Do que nunca ter algo e desejar aquilo.
Sentia como se meus órgãos pegassem fogo.
— Você já me teve — apontei, a voz inebriada.
— Aquilo não foi... real. Não é a mesma coisa. Eu não a tive
como queria.
Fitei-o.
— Então, por que não faz isso agora?
Max hesitou por um segundo, olhando-me como se houvesse
sido pego em uma armadilha. E havia sido, de fato. Observei
enquanto diferentes sentimentos passavam por seu rosto, desde a
incerteza até a rendição. Quando seus lábios vieram de encontro
aos meus, não fora nada parecido com nenhum dos beijos que já
havíamos trocado. Os de agora eram famélicos, avassaladores.
Ele pressionou o corpo contra o meu, e me encontrei envolvida
em seu abraço. Suas mãos corriam por minha cintura, cabelos,
nuca, enquanto me beijava vorazmente. Sua língua deslizou por
meus lábios e senti um arrepio de prazer percorrer meu corpo.
Puxei-o para mim, retribuindo com a mesma intensidade. Toda
vez que nossos lábios se tocavam, sentia como se algo dentro de
mim se aquietasse. Como se durante todo esse tempo eu estivesse
sendo consumida pelo desejo de seu toque.
Capítulo 46
Ariana
Estávamos reunidos na sala ao final do dia, a bocejar e trocar
bebidas quentes. Pela primeira vez,fôramos surpreendidos pela
mãe natureza, sem entender que tipo de jogo essa praticava.
Pouco antes de descermos para jantar, uma chuva torrencial
começara a cair do lado de fora das janelas. A temperatura havia
caído quase cinco graus durante as últimas horas, e a grama agora
mais parecia uma piscina de lama.
Eu estava no sofá, constantemente puxando as mangas de
minha grande blusa preta a fim de cobrir minhas mãos, que
estavam geladas. Do outro lado da sala, Bronx esticava os pés
cada vez mais para perto da lareira, como se quisesse que as
chamas lambessem as pontas de seus dedos — o que aconteceria
logo, caso ele não parasse. Seu cabelo estava molhado, e ele tinha
a expressão calma e aconchegada, como se estivesse passando um
dia de inverno com sua família. Eu não tinha ideia de qual era o
sentimento que trazia consigo, pois já morrera, e a família que
antes considerava como sua talvez já não mais fosse. Mas pensava
que, de alguma forma, era exatamente isso que significávamos
para ele.
Ao pé da escada estavam Crystal e Giovane, conversando e
rindo baixinho, se aprumando um ao outro enquanto dividiam a
mesma coberta. Qualquer um que nos olhasse naquele momento
pensaria que se tratava apenas de um grupo de jovens a aproveitar
um feriado, se divertindo em uma casa distante onde não existiam
regras —ou pais —para atrapalhar.
Estava dispersa em meus pensamentos quando Max tocou
minha mão, a pressão leve e macia de seus dedos. Não consegui
deixar de me assustar. Afastei-me rapidamente, levantando os
olhos para ele, que arregalara os seus imaginando ter feito algo de
errado. Então, aos poucos, abrandaram-se.
Fitava-me com intensidade, como se quisesse ler o que se
passava em minha mente. Como se pudesse, em um piscar de
cílios, apoderar-se de toda minha história. E eu não me permitia
desviar o olhar. Continuava a encarar o brilho profundo de seus
olhos, sentindo-me ser transportada para algum lugar no passado,
tão distante que chegava a ser inatingível.
As chamas do fogo aumentaram por um segundo, e pude ver
Bronx recuar velozmente, rindo de si mesmo, enquanto batia um
pé no outro para apagar uma pequena chamuscada em sua meia
branca.Voltei-me para Max. Sua mão ainda se encontrava ao lado
da minha. Podia sentir o calor que emanava dela. Ergui a ponta de
meus dedos, frios e duros, em busca dos seus. Entrelacei minha
mão à sua, ainda o contemplando.
— Você está fria — disse ele, sua voz tão baixa e carinhosa que
custei a acreditar que viera mesmo dele.
— E o dia não está?
Ele se limitou a me dar um meio sorriso.Então, puxou-me para
si, me envolvendo em seus braços.
Senti-me presa por alguns segundos, como se uma antiga
mentira voltasse para me torturar. Como se paredes crescessem à
minha volta, esperando o momento certo para virem de encontro
ao chão, me sufocando em meio aos destroços. Queria me libertar.
Queria gritar não. Porém, aos poucos, meu corpo relaxou, e
lembrei-me de que as coisas já não eram mais como antes. Eu
podia confiar em Max outra uma vez.
Sua mão esquerda acariciava minha escápula, enquanto a direita
traçava caminhos por meu braço. A respiração era constante ao
meu lado. Seu peito subia e descia, lentamente, e eu observava o
movimento, como se houvesse algo de mágico para apreciar
naquele simples ato. E realmente havia. Tudo o que conhecia,
tudo o que já ouvira e lera, dizia que era impossível alguém voltar
à vida uma vez morto. E, ainda assim, ali estava Max, sentado ao
meu lado, com o seu subir e descer que desafiava tanto as leis da
ciência, quanto às da religião.
— Ariana — chamou-me, abaixando a cabeça para me olhar.
— Eu...
Um grito alto e agudo cortou a sala, como uma lâmina que
divide a carne ao meio. Virei-me assustada na direção de onde o
som viera, encarando as escadas. O cobertor ainda estava jogado
ao chão, mas Crystal e Giovane não se encontravam mais lá. O
grito fora definitivamente dela.
Não tive tempo para pensar no sentimento de decepção que se
formara devido à conversa inacabada. Uma angústia tomava conta
de meu peito. Enquanto subia as escadas correndo, seguida pelos
garotos, só conseguia me perguntar o que poderia ter acontecido.
Alcancei o segundo andar. O sangue pulsava em minhas
têmporas, fazendo toda a cabeça latejar. Então vi Crystal,
encostada na parede ao lado de fora de seu quarto, tremendo. As
pequenas mãos balançando no ar, tentando em vão agarrassem-se
ao corpo, que também sacudia. Seus olhos estavam vidrados na
porta do banheiro. Nem fez menção de ter nos notado.
Corri até o cômodo que ela fitava, fincando-me no chão diante
da porta. O branco estava descascando na maior parte da madeira,
que agora revelava o cinza opaco do qual era pintada por baixo.
Um arrepio gelado subiu-me a espinha, como se garras frias como
a noite tentassem me arrancar a pele. Meus pelos se eriçaram, e
fui envolvida por uma camada de gelo anímica.
— Tem algo aí dentro. Eu posso sentir — declarei, olhando
para Bronx, que chegava ao meu lado.
Não tinha ideia de como sabia aquilo. Apenas sabia. Conseguia
sentir a energia que a criatura emanava. A sensação era forte,
quase palpável, e eu já não possuía mais tanta certeza de que
queria saber o que se encontrava atrás daquela porta.
Bronx me lançou um olhar desconfiado. Às minhas costas, Max
abraçou Crystal, tentando acalmá-la, enquanto perguntava o que
acontecera. A única resposta audível eram os soluços. Ela
balançava-se violentamente para frente e para trás, as mechas do
cabelo escuro lhe cobrindo o rosto. Max olhou ao redor, em busca
de ajuda, mas nenhum de nós sabia o que poderia ser.
Por fim, Bronx colocou a mão na maçaneta e a girou,
empurrando-a com força quando a madeira não se moveu. Outra
onda fria atravessou meu corpo. Algo muito errado estava
acontecendo.
— Crystal — gritei, virando-me para a garota que quase se
afogava nas próprias lágrimas, os lábios vermelhos e inchados de
tantas mordidas. — Preciso que me diga o que está acontecendo.
Por que essa porta está trancada? Giovane está lá dentro?
Ela não respondeu. Continuou em seu estado catatônico,
balançando-se. Parecia não ter ouvido minha pergunta.
Não podia esperar mais. Levantei a mão, movimentando-a de
modo que a porta abrisse. O trinco estourou com um estalido e a
madeira foi jogada para dentro com força, batendo contra a parede
e voltando em nossa direção, fechando o banheiro mais uma vez.
Contive um grito. Olhava atônita para a fresta que se abria
lentamente, temendo o que poderia surgir por ela. No meio
tempo, enquanto a porta batia e voltava, mirara uma figura
estranha. Era escura como a noite, e tão disforme quanto uma
sombra. Uma criatura esguia e indefinida, tomando seu lugar ao
lado do corpo que jazia na banheira. O corpo de Giovane.
Todos os pesadelos de minha infância ganharam força. Era
como entrar em túnel do tempo e me encontrar fora da cama,
checando se nada se encontrava embaixo dela. Apressei-me em
direção ao banheiro, mais preocupada com meu amigo do que
comigo. Quando adentrei o cômodo, não havia nenhuma criatura.
Não mais.
— Ah meu Deus — soltei um grito ao ver Giovane.
Ele estava na banheira, semiconsciente. Possuía um corte
horizontal em cada pulso, os filetes vermelhos escorrendo em
direção ao chão. Acima desses, um corte vertical seguia até a
metade de cada braço. Sua roupa havia sido rasgada, amontoada
em uma pequena pilha no canto. A única peça que continuava em
seu corpo era a cueca boxer preta. Ele fitava o teto, as pupilas
dilatadas. Havia cortes menores em sua barriga, mas nenhum
aparentemente tão profundo quanto os dos braços. Ao ver a poça
de sangue que se formava no chão, meu estômago se revirou,
náusea se misturando à desespero.
Bronx surgiu ao meu lado, parando ao observar a figura quase
sem vida na banheira. Meus olhos já estavam a ponto de
transbordarem, mas ele não parecia sentir coisa alguma. Encarava
a cena com um olhar clínico. Estendeu a mão, tocando o pescoço
de Giovane.
— Ainda está vivo — disse. —, mas não sei por quanto tempo.
Levantei os olhos marejados. Existia esperança? Talvez, se eu
tentasse, conseguisse salvá-lo. Não havia tempo para
dúvidas.Puxei seu braço direito, ignorando o enjoo em meu
estômago, e coloquei minha mão sobre o corte. Meu coração
apertou. Se não conseguisse salvá-lo, não haveria ninguém além
de eu mesma para culpar. Mas aquilo não era minha culpa, era?
Deveria eu tê-lo impedido quando quis vir conosco? Giovane era
determinado. Nada que eu houvesse dito ou feito mudaria sua
decisão. Deveria tê-lo protegido, então? Ele era meu amigo.
Como pudera deixá-lo assim, a caminhar por entre coisas que não
conhecia e arriscar sua vida dessa maneira?
— Ariana — disse Bronx, olhando aflito para mim. — Ele
parou de respirar.
Lágrimas quentes escorreram por meu rosto. Senti minha mão
formigar e, então, aos poucos, as agulhadas começaram a
percorrer meu corpo. Olhei para ele, bem a tempo de ver os
menores cortes iniciarem sua cura.
— Por favor, aguente — sussurrei.
Bronx posicionava sua mão em meu ombro. Sentia seu toque
como uma fonte de energia, e a potencializava em direção a
Giovane. A mão do garoto sob a minha esfriava em um ritmo
anormal, como se a morte lutasse para tirá-lo de mim. Os olhos
continuavam inertes. O peito, parado. Lágrimas escorriam por
meu rosto, molhando minha boca seca. De repente, os cortes em
seus braços começaram a se fechar. Fitei Bronx, que levou mais
uma vez sua mão até o pescoço de Giovane, checando seu pulso.
Olhou para mim, sem dar resposta, apenas acompanhando o
processo. Finalmente, quando pensei ter perdido as esperanças, os
cortes mais profundos iniciaram suas cicatrizações. Era como
assistir ao regresso do tempo. Dentro de minutos, Giovane não
possuía mais nenhum ferimento.
Bronx afastou a mão, dirigindo-me um olhar pesaroso.
Balançou a cabeça negativamente, e senti meu coração murchar.
Não havia sido rápido o suficiente. De que me adiantava ter
poderes se não podia salvar aqueles a quem amava?
Mas então Giovane tossiu; catarro e sangue caíram como um
véu sobre a água. Não me contive. Lancei os braços sobre a figura
agora acordada, lhe afagando a face. Bronx sorriu, e fiz o mesmo
ao seu lado. Aos poucos, Giovane abriu os olhos, confuso. Como
se acordado de um transe, se lembrou do acontecido, levantando
os braços para checá-los. Mais do que aliviado, ele parecia
horrorizado. Seus olhos percorreram o chão e a banheira na qual
se encontrava, piscando várias vezes com a luz forte.
— O que foi isso? — perguntou ele, a voz embargada.
— Sucumbidores — a resposta de Max se projetou de trás de
mim.
Olhei para ele. Crystal estava aninhada em seu colo e, apesar do
esforço, ele parecia não se importar. Os cabelos dela desciam por
seus braços torneados, como se lambessem sua pele, e ele a
segurava com tanta firmeza que senti uma pontada de ciúmes. Só
conseguia encarar suas mãos rodeando a perna dela, o encontro
das carnes, e como aquilo me atordoava. Ele seguiu até um canto
do banheiro, deitando-a com cuidado sobre uma toalha e voltando
para junto de nós. Percebi, então, que Crystal estava desacordada.
— O que são eles? — perguntei.
Max suspirou, como se ponderasse a forma de descrever aquilo.
Mas não era preciso. Vira a coisa com meus próprios olhos. Sabia
como era horrível, até mesmo sem conhecer do que era capaz.
— São almas, mas não como nós. Foram perdidas há muito
tempo e, por alguma razão, nunca invocadas — ele fez uma
pausa, abaixando-se para pegar algo do chão. — Em algum
momento começaram a perder sua humanidade. Ninguém sabe ao
certo como isso acontece, e ninguém quer pagar para ver.
Simplesmente sabemos que, se ficarmos muito tempo sem voltar,
nos tornamos um deles. Ficamos tão maus e fortes que somos
capazes de possuir corpos —girou o fino metal entre os dedos. A
lâmina com a qual Giovane quase morrera.
Em um impulso, levantei-me e tomei de suas mãos o objeto,
olhando-o com desaprovação. Max pareceu não se importar,
continuando seu discurso:
— Entretanto, não são capazes de muito. São fortes, sim. Mas
não o suficiente para tomarem o corpo de alguém e saírem por aí
curtindo a vida. Se quisessem fazer isso, há muito já teriam
voltado e usado suas próprias carnes em seu benefício — sua
expressão mudou, os olhos ficando turvos. — A única coisa que
conseguem fazer, e a única da qual tiram proveito, é matar
pessoas — inspirou, endurecendo a feição.
À princípio, pensei ser coisa de minha cabeça. Então, percebi a
razão de seu tom de voz, da maneira como contava a história.
Max estava parado à minha frente, as mãos pendendo ao lado do
corpo. Levantei-me na ponta dos pés, ficando em uma altura na
qual conseguia olhá-lo nos olhos. Esses estavam sem vida, como
se encarassem a própria morte. Toquei seu cotovelo.
— Foi um desses, não foi? — perguntei em tom baixo,
esperando que ninguém mais ouvisse.
Contudo, ele me ignorou, desviando de meu toque e se
afastando. Estava tremendo. Sentia vontade de chacoalhá-lo,
pedindo para que, de uma vez por todas, se abrisse comigo.
— Nunca conheci alguém que sobreviveu a eles — disse
Bronx, tentando animar Giovane.
— Bem, eu não estaria aqui se não fosse por Ariana —
respondeu o outro, lançando-me um olhar caloroso.— Obrigado.
Acenei com a cabeça.
Quando o torpor do momento finalmente deixou meu corpo,
percebi como estava fraca. Agarrei a beirada da pia, sentindo o
cômodo girar. Como não percebera antes? Estava claro que
haveria danos colaterais. Giovane estava à beira da morte. Pensei
sobre isso. Fizera algo de errado salvando-o? Existiria uma hora
certa para todos nós? E se sim, aquela era a dele? Não. Com
certeza, não. Se existisse algo realmente programado, não seria
uma criatura daquelas a fazer o serviço. Não com toda a dor
imposta.
Senti minhas pernas falharem ao sair do banheiro. Pensei em
descer e tomar um copo de água, tentar me acalmar. Estaria
melhor em alguns minutos, com um pouco de descanso. Sabia
disso por que, apesar das feridas de Giovane serem piores do que
as de Max no dia em que o curara, não me sentia tão esgotada
quanto da outra vez. De alguma forma, os danos pessoais
diminuíam a cada prática da cura, exatamente como dizia o livro.
— Você está bem? — perguntou Max, chegando por trás e
passando um dos braços pelas minhas costas.
Desvencilhei-me de sua mão, olhando-o com raiva. Era incrível
aquilo. A maneira como meus sentimentos fluíam do amor ao
desprezo em uma fração de segundos.
— Eu não quero falar com você —assegurei.
Ele franziu o cenho.
— O que eu fiz? — perguntou, irritado.
— Você não percebe mesmo, não é?
— O quê?
— Eu não sei nada sobre você — disse, cruzando os braços
sobre o peito. — Você me conheceu, e eu te contei tudo que
poderia existir sobre mim. Eu confiei em você, Max. E foi uma
decepção — ele me fitava com intensidade, seus olhos passando
do brilho profundo ao opaco sem vida e vice-versa, como se duas
pessoas vivessem dentro de sua pele, ambas lutando para ver
quem resistiria. — Eu odeio isso. Por que é tão fechado comigo?
Eu te dei outra chance, deixei ser meu amigo. Não consegue
perceber que me deve, no mínimo, alguma informação? Ou é para
eu confiar cegamente minha proteção a você, quando a única
coisa que sei a seu respeito é sua capacidade de matar?
Ele desviou o olhar, focando os pés.
— Não posso garantir que será uma história agradável de se
ouvir.
— Quanto mais de se viver, então.
Max sorriu diante do comentário, ainda que não houvesse graça
alguma nele. Sua mão acariciou minha bochecha, fazendo uma
onda de calor percorrer meu corpo. Seus dedos desceram,
traçando uma linha por meus lábios. Ele abaixou a mão e
começou a falar:
— De minha infância nada importa para você compreender a
história. Não vou te encher de detalhes sobre uma vida comum,
como muitas outras. Eu tinha minha família. Eu tinha meus
amigos. E vivia muito bem. Era o melhor amigo de Bronx, mas
isso você já sabe — ele respirava pesadamente, como se tentasse
desenterrar algo profundo de dentro de si. — Estávamos andando
de skate um dia, quando um homem apareceu. Ele era estranho,
me lembro de ter pensado isso. Tinha idade para ser meu avô.
Mas no momento em que prestei atenção em seu corpo, notei algo
incomum. Era como se houvessem grudado a cabeça de um idoso
ao corpo de um jovem. Ele chegou bem perto de nós, sorrindo.
Quase senti seu hálito. Perguntou se faríamos um favor a ele.
“A verdade é que os Anciãos sabiam do problema das
Invocadoras a mais desde aquela época. Provavelmente a intenção
deles era que preparássemos vocês exatamente para o que vai
acontecer agora. Para liquidarem as desnecessárias com
eficiência. Elas são números que não se encaixam em uma
equação.
Quando o homem nos contou o que teríamos de fazer, eu
recusei, assim como Bronx. Tinha dezoito anos,e seu pedido não
parecia loucura para mim, mas eu com certeza não gostaria de me
meter no meio daquela história.
Ele pediu para que nos matássemos, e então nos
aproximássemos de vocês. Exatamente como fizéramos. Exceto
que não nos suicidamos. Não íamos fazer nada disso. Porém, ele
representava tanto os Anciãos da Luz quanto os das Trevas, e não
aceitou nosso não. Disse que nos daria uma escolha: ou nos
suicidávamos e pegávamos a missão, ou ele mataria toda nossa
família.”
Max fez uma pausa, reunindo coragem para continuar.
— Eu escolhi proteger minha família, claro. Mas não consegui
me matar. Por isso ele mandou um sucumbidor fazer isso por
mim.
Suas mãos começaram a tremer e ele as colocou nos bolsos.
Mas era tarde. Eu vira o movimento. Assim como vira aquela
lágrima silenciosa descer por sua face. A máscara que ele tanto
usara nas últimas semanas já não se encontrava mais. Tudo que
existia agora era alguém que perdera o pai e a mãe, que fora
obrigado a seguir um caminho horrível para proteger os seus. Ele
não conseguiria mais fingir indiferença ao mundo. Ao menos, não
para comigo.
— Foi a pior coisa do mundo quando minha mãe entrou no
quarto e me encontrou. Achou que eu tinha feito aquilo. Achou
que a culpa era dela.E sim, eu estava lá. Fiquei ao seu lado o
tempo todo— ele cerrou os dentes, controlando as outras lágrimas
que ameaçavam cair. — Mas eu a salvei. Era tudo que queria
fazer. Ela, meu pai, meu irmão; eles estariam em segurança a
partir daquele momento. E nada mais me importava. Já o homem
que me obrigara a fazer aquilo havia sumido. Não conseguia
encontrá-lo em lugar algum. Andei por semanas sozinho.
Caminhei por diversos lugares. Por incrível que pareça, apesar de
o Ancião ter conseguido o que queria, não voltou. Foi Azriel
quem me encontrou. Eu devia ser uma imagem lastimável. Sujo,
cansado, com olheiras do tamanho das palmas de minhas mãos.
Ele disse que vinha seguindo tanto eu quanto Bronx desde o
começo, e que iria nos ajudar. Que apesar de termos chegado até
lá, aceitado fazer aquilo, ainda poderíamos nos salvar. Ele
tentaria nos salvar. Mas eu não dei ouvidos. Estava tomado de
ódio e tristeza, e aquilo me consumiu de uma maneira que,
quando outro Ancião me contatou, aceitei a missão.”
Algo em mim gritou para que o parasse. Remexeu-se diante
àquele olhar vazio, clamando por ajuda. Crystal saiu do banheiro,
olhou para nós e seguiu em outra direção, como se soubesse que
não deveria nos interromper. Sentia que não iria querer ouvir o
resto da história. Existia algo nela que não seria de meu agrado.
Contudo, eu devia isso a ele. Max precisava ser ouvido, e se o
universo se negara a fazer isso, então eu o faria.
— Aceitei você — disse ele, olhando-me com profunda tristeza.
— Foi quando briguei com Bronx e Azriel, e então não os vi
durante dois anos. Passei esse tempo sendo treinado, e torturado
quando falhava — deu de ombros. — Deve ser por isso que sou
tão bom.
Ele se afastou, indo até a escada e se apoiando no corrimão,
jogando o corpo para frente. Continuou a história de costas para
mim:
— Passei algum tempo te observando também. E meu Deus,
como eu te odiava. Achava que você era a razão para terem feito
aquilo comigo. Achava que minha mãe sofria pela minha perda, e
que isso era culpa sua. Tudo era culpa sua — ele se virou,
lentamente, o olhar cheio de raiva. Por um segundo pensei que
fosse avançar sobre mim e cumprir a promessa que tinha feito
para si, aniquilando de uma vez por todas a pessoa que causara
tanto sofrimento a ele. — Mas você não é. Isso é culpa deles. Dos
Anciãos, sucumbidores, e qualquer outro tipo de criatura que
cruzara comigo durante esses anos. Eles me prometeram que, se
eu cumprisse a missão, teria liberdade. E o resto você sabe. O
resto começa quando te conheci.
A história acabou e tudo que consegui fazer foi encará-lo. Ele
ainda estava encostado no corrimão, usando sua máscara mais
uma vez. Exceto que aquilo não era uma máscara. Era o que havia
se tornado após tanto tempo sendo explorado.
Senti que precisava dizer algo, dar-lhe algum tipo de conforto,
ainda que por meio de frases já feitas. Mas minha boca se negava
a abrir. Meus lábios estavam secos e meu coração acelerado. Max
me odiava? Como eu fora tola. Achara esse tempo todo que
possuía razões para tratá-lo como a escória do mundo, quando
infligira mais sofrimento a ele indiretamente do que poderia
imaginar. Nada que eu pudesse dizer ou fazer tornaria aquilo
mentira. O passado estava escrito, e eu era a responsável pelo seu.
— E Bronx? Foi possuído? — perguntei.
Max balançou a cabeça.
— Não, ele conseguiu fazer. Mas tem tanto medo de
sucumbidores quanto eu. Qualquer pessoa deveria ter.
Concordei. Aquilo tudo era muito para digerir. Estava
envolvida naquela história há mais tempo do que pensava. Para
mim, tudo havia começado há um mês, quando descobrira minha
outra identidade. Só que sabia agora que isso não era verdade.
Meus pés pareciam ter se fundido ao chão. Eu fazia parte
daquela casa, das histórias sobre as quais lera no porão. Nunca
havia compreendido por que todas as Invocadoras se lamentavam
por seus destinos, alegando não existir coisa alguma ao seu redor
que não fosse destruição. Entendi, finalmente, que não se referiam
a elas mesmas, mas a todas as pessoas que levaram consigo
durante suas jornadas. Todas as pessoas as quais suas companhias
causaram sofrimento.
— Mas por que o Giovane? Por que agora? — forcei-me a
perguntar, querendo respostas.
— Por que estão vindo — disse Bronx.
Virei-me e o vi parado no meio do cômodo, a expressão de
alarme. Giovane e Crystal estavam debruçados na janela. Tive
uma má impressão, como se o mundo estivesse prestes a chocar-
se diante de nossos olhos. Corri até eles. O que vi fez meu
estômago se retorcer. Havia, no mínimo, trinta sombras que
consegui identificar como Renácitos vindo em direção à casa.
Uma marcha lenta, mas decidida.
Era a hora.
Capítulo 47
Ariana
— Eu nunca ouvi falar de sucumbidores trabalhando com
Invocadoras — comentou Max, percorrendo o centro do cômodo
e parando ao lado de Bronx.
— Mas com certeza com os Anciãos. Aparentemente não
fomos somente nós que ficamos bravos com seu comportamento
— argumentou o amigo.
Crystal se voltou para os dois, franzindo a testa.
— O que ele quer dizer?
Os rapazes se entreolharam.
— Os Anciãos se zangaram com o fato de eu ter mudado de
lado— declarou Max, fitando-me por alguns segundos. — Escolhi
servir aos interesses de Ariana, e agora querem me fazer pagar
por isso, diminuindo nossas chances de vencer esta batalha,
tomando um de nós.
— Mas não deu certo. Ainda estou aqui — disse Giovane, com
nervosismo.
— Isso é ridículo — estávamos sendo castigados por algo que
não havíamos cometido. — Você não mudou de lado, por que eu
não mudei de lado.
Max lançou-me um olhar questionador, como se me condenasse
por estar sendo tola ao não enxergar algo que estava debaixo de
meu nariz.
— Mas você também não escolheu um lado — respondeu ele,
sério.
— Como isso seria possível? Não tenho escolha, lembra? Você
mesmo disse isso. Também disse que se eu pensava possuir
alguma, então já estava morta.Eu sou uma Invocadora das Trevas.
Pertenço ao lado da escuridão. Não existe nada que eu possa fazer
para mudar isso — senti um frio atravessar meu corpo conforme
as figuras sombrias chegavam mais perto da casa. Não tínhamos
mais tempo. Estávamos prestes a colocar em prova tudo o que
vínhamos fazendo durante as poucas semanas, e eu só esperava
que fosse o suficiente. — Acho melhor descermos. Bater de frente
com eles é melhor do que sermos encurralados.
Virei-me em direção as escadas e corri sem olhar para trás, pois
sabia possuir a última palavra. Meu mundo interior estava em
choque. Eu não havia escolhido um lado? Que droga era aquela?
E quem esses Anciãos pensavam ser para terem o direito de
decidir se deveríamos ou não ser punidos por algo? Enquanto
descia os degraus às pressas e me posicionava em frente à porta,
esperando o momento em que alguém passaria por ela,
questionei-me sobre o que Max quis dizer ao falar que servira aos
meus interesses. Por que esses eram conflitantes com os dos
Anciãos? O que eu estava fazendo de errado? De fato, não estava
seguindo suas ordens, como Max fazia, mas isso não queria dizer
nada. Eu era uma Invocadora, e tinha certeza de que, quem quer
que fossem os Anciãos, não estavam muito acima de mim. Por
que, então, eram eles que estavam no comando?
A pergunta precisaria esperar. Parei no meio da sala, Crystal ao
meu lado, o barulho de dezenas de pés ficando mais alto. Eles
avançavam rápida e continuadamente sobre o solo molhado,
encharcando sapatos e calças. Mesmo sem conseguir vê-los, era
possível ter a imagem mental de seus corpos frios. As blusas
grudando nos torsos. Os cabelos caindo sobre as faces. Seus
dedos tremiam sobre pequenas facas, ou quaisquer objetos que
pudessem nos machucar. Porém, não traziam armas de fogo.
Pareciam ter a mesma opinião que Max sobre o assunto, apesar de
eu achar que aquilo se devia mais à falta no estoque do que
convergência opinativa.
Antes que Crystal — que agora parecia tão bem que me
perguntava se se lembrava do acontecido — e eu pudéssemos
impedir, Max e Bronx se posicionaram à nossa frente, nos
deixando com espaço visível apenas para que enxergássemos a
porta. Entreolhamo-nos. Os dois viraram para trás, nos focando
com pose austera. Não pareciam temerosos, ansiosos, ou qualquer
outra coisa que pudesse subjugá-los no meio de uma luta. Seus
olhos brilhavam com a confirmação de minha pergunta.
— Não vamos sair daqui — disse Bronx.
— Nem tentem — acrescentou Max.
Eram dois idiotas se pensavam poder nos conter, e mais tolos
ainda de acharem que possuíam algum tipo de influência sobre
nós. Coisa de Forti, pensei.
Giovane estava logo atrás de mim. Olhei para ele uma última
vez, para checar se estava tudo bem. Não possuía mais a
expressão amena que costumava trazer consigo, muito menos a
expressão assustada do garoto na banheira. Trazia olhos atentos,
preparados para o que viria em seguida. Medo algum lhe percorria
o corpo. Ele acenou com a cabeça e olhei para frente no momento
em que a porta estourou, e uma garota de cabelos ruivos adentrou
a sala.
Ela possuía uma estatura mediana. Longos fios rubros desciam-
lhe pelas costas, contrastando com o verde vívido de seus olhos.
A pele era contornada por diversas veias escuras. E apesar de seu
corpo transparecer fragilidade, seu olhar era feroz, como o de um
leão prestes a abater uma gazela. Não sabia se era a expressão em
seu rosto ou a horda de seguidores que possuía, mas no momento
em que passou pela porta, senti algo se remexer dentro de mim,
pedindo para que eu fugisse.
— Comitê de recepção — zombou a garota, mostrando uma
fileira de dentes para nós. — Sei que sou importante, mas não era
necessário. De certo eu estaria feliz em encontrar apenas minhas
iguais aqui —fez uma pausa, esperando que alguém respondesse.
Mas eu não a atiçaria a menos que ela começasse. Sabia como
tudo iria acabar. Sabia que no final lutaríamos de um jeito ou de
outro. Contudo, naquele momento, prolongar a conversa parecia a
decisão mais prudente. Precisava de tempo para conhecer o
inimigo, nem que fosse por dois ou três minutos. Qualquer coisa
sobre aquela garota já me seria de serventia. Era algo no mínimo
justo, por assim dizer. Se ela me estudara por dias, semanas, o que
seriam alguns segundos?
Porém, ela não parecia concordar.
— Tragam meu amiguinho — disse a ruiva, sem tirar os olhos
de nosso pequeno grupo.
Dois Renácitos passaram pelo aglomerado de pessoas e
chegaram ao lado dela. Meu coração apertou. Senti o impulso de
correr na direção deles quando vi quem traziam. Ian.
— Eu poderia me apresentar, mas acho que isso não será
necessário. Imagino que o Renácito já tenha feito as honras — ela
colocou as mãos sobre a cintura larga. — Bom, que seja. Eu o
paguei pelo favor. Muito bem, se me permitem dizer.
A Invocadora mexeu a mão e a cabeça do garoto foi levantada
com violência. Tive que usar todas as forças que possuía para não
correr até Ian naquele momento. Os olhos estavam roxos.
Hematomas percorriam-no desde o pescoço até os braços. Sua
boca estava seca e entrecortada por diversas pequenas feridas,
enquanto uma linha de sangue endurecido a coloria no canto. Seu
cabelo castanho mais parecia um emaranhado de fios, e a roupa
estava suja e cheia de buracos.
Ameacei dar um passo à frente, então me detive. A garota
alargou o sorriso, e percebi que estava confirmando o que ela
queria, mostrando o quanto suas ações podiam me atingir. Ian não
era uma isca, muito menos uma maneira de me acertar. O
Renácito era usado mais como um medidor. Quem entendesse
bem as pessoas poderia dizer o quanto eu estava disposta a lutar
para salvar meu grupo, e o quanto seria necessário para me
cansar.
Não consegui continuar em silêncio.
— O que fez com ele? — perguntei, grudando as palmas de
minhas mãos às coxas, sentindo o suor que fluía delas.
Nesse momento, as pálpebras de Ian tremeram, e ele enfim
abriu os olhos, indicando que ainda estava consciente— ou, ao
menos, vivo. Encontrou-me em meio às pessoas, abrindo a boca
ao perceber de quem se tratava. Alguns segundos se passaram,
mas nenhuma palavra ou som foi emitido, e ele pareceu ter menos
forças ainda para fechar os lábios.
— É uma pena o estado dele. Sei disso — continuou
Alessandra. — Mas se negava a cooperar. O que eu poderia ter
feito? — balançou a cabeça, como se aquela resolução fosse tão
óbvia e tediosa que não merecesse atenção. Então, se aproximou
do Renácito. — Isso é culpa sua. Espero que esteja ciente disso
enquanto morre.
Cada palavra proferida por ela me causava enjoo. Sentia a
eletricidade que pulsava por meu corpo. A necessidade me jogar
sobre Ian e, consequentemente, Alessandra. Entretanto, consegui
me controlar. Precisei me controlar. Sabia que ainda não era a
hora. Queria que ela falasse mais. Queria ouvir suas ideias sobre
tudo aquilo. Ela acabou de falar e se afastou novamente, virando
para nós com uma expressão desdenhosa.
— Credo. Desse jeito até parece que estou falando sozinha.
Cadê a animação, meus amigos? Vamos fazer as apresentações e
começar logo a festa. Não suporto grupos parados — sua risada
ecoou pela sala, então seus olhos desceram sobre mim e o sorriso
se fechou, dando lugar a um leve arquear de lábios irônico.—
Imagino que você seja Ariana Berloque, não estou certa? E aquele
Maximilian Foster — afirmou, apontando. — Crystal Altéz,
Giovane Kober e Bronx Litheys — completou, apontando um a
um. — Devo confessar que é uma honra estar finalmente falando
com vocês. Estava cansada de observá-los à distância. Foi algo
necessário estudá-los, não nego. Mas é bem mais divertido estar
aqui, não concordam? — dessa vez seu sorriso quase me fez
acreditar que estávamos fazendo algum bem a ela. “Salvamos a
garota da floresta” ecoava em minha mente.
— Você ainda não respondeu — aumentei o tom de minha voz.
— O que fez com Ian? Por que meu Renácito está nesse estado?
—Seu Renácito? — Alessandra arqueou as sobrancelhas, duas
linhas de fogo. — Desculpe-me, mas acho que está enganada.
Que eu saiba, o único Renácito que lhe pertence é Maximilian—
disse, lançando olhares sugestivos para o jovem atrás de mim.
— Posso não ter trazido Ian — continuei. —, mas isso não quer
dizer que ele não me pertença. Veja bem, Alessandra, posso
chamá-la pelo primeiro nome, certo? Então, existe uma divisão
entre nossos lados. Uma divisão que, em minha opinião, não está
assim tão bem dividida. Mas, seja como for, Ian escolheu um
lado, e penso que isso vale mais do que uma posição imposta.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que o Renácito me pertence não por que eu o
trouxe de volta à vida, mas sim por que ele escolheu pertencer a
mim.
Ela abriu a boca, soltando o ar, admirada.
— Como? — riu, aproximando-se. — Você não está falando
sério, está? — jogou a cabeça para trás, fechando os lábios. —
Por que razão uma alma se entregaria de espontânea vontade a
alguém, sua tola? Isso não existe. Se pensa que esse garoto a
ajudou por que a escolheu está muito enganada. Ele se aliou a
você por que não se aliou a mim. Compreende isso? Existem dois
lados, e se você não está em um, está no outro. Simples assim.
O tempo entre eu perceber o que iria acontecer e sentir o que
ela fizera foi curto. Em um segundo, sua mão estava levantando,
no seguinte, eu estava deitada de bruços no chão da sala, a coluna
ardendo como se dezenas de tijolos houvessem tentado atravessá-
la. Parecia ter sido arremessada a metros do chão, mas a verdade
era que não havia sido mais do que alguns centímetros.
— Achei que merecia isso por sua idiotice. Encare como uma
lição —disse a garota, de algum lugar à minha frente.
Uma sombra passou voando por cima de meu corpo e por um
momento pensei que um Renácito investia contra mim. Max
derrubou a Invocadora, subindo sobre seu peito e segurando seus
braços. Durante alguns segundos, ouvi a garota se debater. Porém,
estava claro que a única razão para ele ter conseguido fazer tal
coisa era a surpresa no movimento. Logo Alessandra se deu conta
do acontecido, Max estava estirado ao meu lado, respirando
pesadamente.
Seus dedos envolverem meu pulso.
— O que me diz? Todos contra um ou nos dividimos? Há uma
horda de Renácitos lá fora, Ariana. Precisamos nos entender —
pressionou-me com mais força. Olhei para ele. — Precisamos nos
entender — repetiu, fitando-me com nervosismo, fazendo um
sentimento de ânsia subir por meu estômago.
Ouvi os baques dos corpos de Bronx e Crystal ao acertarem o
chão. Ouvi os gritos da garota ao tentar um novo ataque. Dezenas
de pés invadiram a sala e, de repente, o cheiro de suor e sangue
dominou o cômodo.
Eu sabia o que deveria fazer.
Eu sabia como aquilo deveria acabar.
— Eu fico com ela — gritei, soltando-me de seu aperto e
colocando-me de pé.
A essa altura a sala já estava tomada de corpos em movimento.
Girei a cabeça de um lado para o outro, tentando reconhecer
alguma figura à minha volta. Bronx estava perto da porta,
recebendo com socos e chutes aqueles que tentavam entrar, os
punhos se movendo com agilidade. Um nariz quebrado aqui. Um
braço deslocado lá. Um deles caiu sobre os companheiros atrás de
si, e toda a fila se desestruturou. Ainda assim, eles continuaram
forçando a entrada, como se o maior prêmio de suas vidas se
encontrasse dentro daquela casa. De nossa Tumba, no meio da
floresta.
Desviei minha atenção e tentei entrar no emaranhado de
pessoas. Max já não estava mais ao meu lado. Giovane parecia ter
se vaporizado no meio dos corpos. Alguém acertou minha nuca e
virei-me rapidamente, lhe socando a boca do estômago e vendo-o
se curvar, lançando um olhar ao mesmo tempo temeroso e
agradecido à figura que se estendia acima de si.
Durante cerca de meio minuto, não consegui fazer outra coisa
senão observar aquela criatura. A maneira como seus braços
tremiam convulsivamente. Como os olhos foram tomados por
lágrimas, e a boca mordida diversas vezes. Enquanto me afastava,
cheguei até mesmo a pensar que escutava um sussurro de
desculpas sendo repetido de algum lugar que se tornava mais
distante a cada passo.
Eu trombava e empurrava os corpos para os lados, sem saber
para onde seguia exatamente. Num momento estava atrás da voz
de Crystal, no seguinte, da de Giovane. A sala girava ao meu
redor e pessoas eram lançadas de lá para cá, como leves
marionetes, sem começo ou fim. Durante os poucos segundos em
que parava para procurar Alessandra, imaginava que tudo aquilo
acontecia por um tempo indeterminado, como se aquela luta se
repetisse eternamente no universo. Conseguia visualizar seus
diversos fins, e a mão que sempre lhe dava um recomeço. Sentia
as mortes e as ressurreições. Os gritos e as vitórias. A Tumba se
tornara seu próprio mundo, e nós possuíamos nossa própria
realidade. Poderíamos passar anos, décadas lutando, e isso não
mudaria absolutamente nada.
Estava prestes a derrubar a pessoa seguinte quando seus dedos
pousaram sobre meu ombro. Suas unhas tentaram penetrar em
minha carne e me contorci, arranhando o rosto da garota, sua
única parte ao meu alcance. Senti suas garras se afastarem de
minha pele, e então ambos meus braços estavam presos atrás de
minhas costas, fazendo pressão contra minhas costelas.
— O doce cheiro da destruição — segredou a Invocadora. —
Não é maravilhoso, irmã? Ver dezenas de pessoas lutando por sua
causa? Por sua vida? Ah, sim. É maravilhoso — um chute me
acertou na altura da bacia e gritei, minha dor sendo abafada em
meio à tantas outras.— O quê? Não sente o mesmo? — ela riu. —
Não me olhe dessa maneira, irmã. Não estou brincando com você.
Muito pelo contrário. Quero ver do que é capaz.
Seus dedos me pressionaram com mais força, e ela começou a
me arrastar pela sala. Fui a seguindo aos tropeços, esbarrando nos
diversos corpos que surgiam à nossa frente. Os Renácitos, apesar
de estarem todos do seu lado, não abriam espaço para nossa
passagem. Estavam submersos em suas próprias lutas. Qualquer
corpo que se aproximasse era inimigo, e qualquer um que
passasse longe seria desconsiderado.
— Primeiro, vamos afastar você dos seus amigos — Alessandra
empurrou-me escada acima. Meu joelho se chocou contra o
primeiro degrau e meu queixo ricocheteou na madeira, a dor se
alastrando por todo o maxilar. — Por Deus! Não consegue nem
mesmo ficar de pé? — questionou impaciente, arrastando-me
pelos degraus que faltavam.
Atingimos o segundo piso e ela me arremessou contra o chão,
soltando um suspiro de alívio ao se ver longe de toda a briga que
ocorria no andar de baixo. Caminhou até a ponta do amplo
cômodo e deu uma olhada pela janela, sorrindo ao ver a cena que
desejava. As dezenas de corpos que invadiam a sala. A certa
derrota que nos esperava. Seu contorno se fundiu às cores que
vinham de fora e, naquele momento, mais do que em qualquer
outro, ela parecia uma criatura de outro mundo.
— Sabe, foi uma grande negligência o que você e sua amiga
fizeram — a Invocadora me olhou, esperando uma objeção. Não
parecia querer brigar novamente. Ao menos não por enquanto.
Suas palavras davam a entender que tinha mais a comentar.
Queria prolongar a conversa, afinal. — Não deviam ter deixado a
casa sem proteção. Sem uma dúzia de Renácitos que fosse.
Sabiam que eu estava vindo. Ian havia lhe contado. Por qual razão
não invocaram mais pessoas? Por que preferiram ficar somente
com seus Fortis e um humano ordinário?
— Vai me dizer que não sabe — cuspi, colocando-me de pé e
seguindo até a janela. Esperei que Alessandra se afastasse ou me
impedisse, mas cheguei ao seu lado facilmente. Meus olhos
caíram sobre as sombras do outro lado do vidro, e percebi que
todos haviam entrado. Todos aqueles Renácitos, que até então
lutavam com Bronx. Todos estavam em nossa casa. — Vocês
estão em um número menor do que eu esperava— comentei. —
Imaginei que não caberiam na sala. Bem, couberam.
Ela me olhou, indecisa.
— Eu não podia invocar o estado todo, podia? — desviou o
olhar para as árvores, fazendo uma pausa. — Você ainda não
respondeu minha pergunta, e devo dizer que realmente estou
interessada nela. Por que não trouxeram mais pessoas? Por que
estão em apenas cinco?
Então era verdade. Ela não estava mentindo. A Invocadora
viera me enfrentar sem saber ao menos o porquê de não lutar
contra um exército completo.
— Não consigo — falei. — Por mais que eu tente. Não
consigo.
— Do que está falando?
— Não consigo trazer ninguém de volta. Max foi uma exceção.
— O quê?— ela riu. — Está brincando, sim?
Não respondi.
— Está dizendo que Ariana, a grande Invocadora das Trevas,
não consegue trazer a porcaria de uma alma de volta à vida? —
sua risada preencheu meus ouvidos e logo não era ela, mas eu
quem estava pronta para atacar.
Levantei a mão, jogando uma onda para cima dela, e
Alessandra teve sua risada cortada por dez centímetros de
concreto contra sua cabeça. À merda se ela queria conversar. Não
ficaria ali em pé ouvindo suas zombarias sobre mim. Se me
considerava assim tão inferior, não seria com argumentos que
provaria isso.
— Sua... — mal ela pronunciou a palavra, senti-me ser
arremessada ao ar por uma mão invisível, caindo pesadamente
sobre a porta do banheiro. Gemi, passando os dedos pelo local
onde a tábua havia batido com força, sentindo a sala girar. Sabia
que não teríamos mais conversa fiada. Os gritos no andar de baixo
só provavam isso. Aquele não era o momento para ameaças ou
jogos. Era a hora de decidirmos quem sairia vivo, e quem ficaria
preso à casa. O adversário não cavaria covas para seus queridos
perdedores.
Com isso em mente, levantei a Invocadora como fizera com
Max enquanto treinávamos. Ouviu-se um som oco quando seu
corpo se chocou contra o teto. Ela caiu de quatro, arfando, as
mãos espalmadas no chão. Aproveitei o momento para colocar-
me em pé.
— Nada mal — cuspiu Alessandra, levantando-se. — Nada mal
mesmo — seus olhos verdes me focaram, e senti o poder de suas
palavras em meu corpo, o ódio que sentia por mim.
Não dei chance à garota. Quando ela retomou o equilíbrio,
tornei a arremessá-la, vendo seu corpo avançar para cima como se
fosse um brinquedo. Sua figura atingiu a parede e senti algo se
remexer dentro de mim, um fagulhar em minhas costelas no exato
momento em que ouvi um barulho que imaginei ser Alessandra a
quebrar as suas. Em poucos segundos ela estava de volta ao chão.
O peito subindo e descendo rapidamente.
Quando tentei repetir o movimento mais uma vez, não consegui
me mexer. Meu corpo parecia fora de meu comando. Assisti
enquanto a Invocadora se levantava, endireitava a coluna e
penteava os longos cachos com seus dedos finos, como se
arrumá-los fosse a coisa mais importante no momento. Aos
poucos, ela se aproximou de mim, o sorriso aumentando
gradativamente. Como ela estava fazendo aquilo? Como...
— O quê?— perguntou ela, inclinando levemente a cabeça.
Seus olhos me miravam com brilho e contemplação, e questionei-
me há quanto tempo sonhava em fazer isso. Há quanto tempo
treinava para estar aqui comigo. — Ainda não aprendeu todos os
truques? — pressionou os lábios, dando de ombros. — Sinto
muito.
Num piscar de olhos, a ruiva tirou uma faca de seu cinto e se
jogou contra mim. Debati-me sob a pressão de suas pernas, me
mexendo a fim de machucá-la ou irritá-la o suficiente para que me
soltasse. Nada parecia funcionar. Alessandra sorria para mim
como se eu fosse o prêmio da corrida, e eu estava em suas mãos.
Uma gota de sangue caiu de sua boca para dentro da minha.
Gritei, me retorcendo ainda mais sob seu toque. O líquido tinha
gosto de morte. Minhas entranhas estavam a ponto de se
liquefazerem e minha respiração nunca estivera tão anormal.
Puxava o ar com força, tentando mantê-lo dentro de meus
pulmões, enquanto mãos e pernas me empurravam cada vez mais.
— Sabe — disse ela, rindo. — Esperava que isso fosse um
pouco mais divertido. Talvez devesse lhe soltar, deixar você
correr um pouco e só depois matá-la.
Tentei me libertar mais uma vez.
— O que sou para você? Um animal? — gritei, sentindo meus
pulmões esvaziarem com rapidez. Estávamos as duas balançando
de um lado para o outro, os cabelos entrando no meio de nossas
visões, as costas doendo com o movimento.
— Ah não, Ariana. Você não é um animal. Diga-me, pelo que
está lutando, sobrevivência ou obrigação? — ela aproximou seu
rosto do meu. — Por que é impossível estar fazendo as duas
coisas.
Aproveitei seu deslize e lancei minha cabeça contra a sua.
Alessandra levou as mãos até o local da pancada, pouco abaixo da
testa. Demorei alguns segundos para me mexer. Batera com força.
Parecia ter esquecido de que não doeria apenas nela. Quando
finalmente consegui abrir os olhos, fechei o punho e lhe dei um
soco no nariz, vendo o sangue pingar vermelho em meu colo,
enquanto ela agarrava meus cabelos e batia minha cabeça contra a
madeira.
— Morte — gritou. — É isso que você merece. É sim — sem
tirar os olhos de mim, tateou em volta à procura da faca, que
havia sumido durante a luta. — Você e Crystal. Vocês não são
melhores que ninguém. Não sei por que acreditam nisso.
Em uma última tentativa — era o quarto ou quinto encontro
entre minha cabeça e o chão, a consciência pronta para me deixar
—, levei minhas mãos até a cintura da Invocadora, pressionando-a
com tal força que ela gritou, soltando meu cabelo e me acertando
com um tapa. Contudo, era tarde para ela. No minuto em que sua
mão se distanciou de meus fios, consegui me libertar,
empurrando-a para o lado e subindo sobre seu corpo.
Não dei tempo para Alessandra pensar. Assim que me vi sobre
ela, comecei a desferir um soco após o outro. Em poucos
segundos seu rosto estava coberto por uma camada viscosa de
sangue, e apenas os olhos se destacavam, preenchidos com ódio,
as pálpebras abrindo e fechando a cada novo golpe. Minha mão
desceu um pouco, e a garota gritou quando acertei sua boca.
Braços vieram ao meu encontro, desesperados e fortes. Ela tentou
me empurrar para longe. Seu torso se contorcia violentamente, e a
Invocadora provava de seu próprio veneno.
Não diminui a força nem mesmo quando pensei que ela havia
parado de respirar. Seus olhos permaneceram fechados por um
longo tempo, e minha mão continuou descendo sobre sua face.
Apenas quando um estouro no primeiro andar chamou minha
atenção, me fazendo olhar para trás, é que senti a leve pressão que
o peito de Alessandra fazia contra minhas coxas. Ela ainda estava
viva.
Incerta sobre o que fora o barulho, e crente de que o inimigo
estava fraco demais para se levantar, coloquei-me de pé e segui
até a escada. A sala estava em silêncio. Uma leve fumaça subia os
degraus em minha direção. O vento uivava no andar de baixo, e
tive certeza de que a porta ainda estava aberta. Teriam eles se
dirigido para fora a fim de acabar a briga? Teriam os meus caído,
e os outros fugido para as árvores? Bem quando pensei em
chamar por Crystal, meu corpo foi puxado para trás.
Com um ataque rápido, Alessandra conseguiu me subjugar.
Mais uma vez, ela estava sobre mim, acertando-me com um soco
após o outro. Seu sangue, agora em grande quantidade, tornou a
cair sobre meu rosto, causando-me náuseas. Afastei o líquido de
meus olhos e abri as pálpebras. A visão que tive foi repugnante.
Seu rosto e cabelos estavam ensanguentados, e os dentes
brilhavam em meio à uma imensidão vermelha.
Ela sorria. Por Deus, ela sorria.
Por fim, meus braços e pernas foram presos, e minha cabeça
tornou a encontrar o chão, agora com uma força menor. Senti seus
dedos envolverem meu pescoço e sabia que não existia mais
saída. Ela apertaria a carne abaixo de suas garras, e isso seria meu
fim. Ela desceria e comemoraria a vitória, mesmo que ninguém
mais estivesse vivo. Alessandra não dava o mínimo para o
barulho no andar de baixo, ou quantos dos seus haviam morrido.
Tudo o que significava estava bem ali, à sua frente, sob seus
dedos.
Ela pressionou as unhas contra minha carne e todo meu corpo
doeu. A morte seria distribuída igualmente. Tentei gritar, não por
que temia o que estava acontecendo, mas por não saber aquilo que
já havia acontecido. O barulho. A fumaça. Fragmentos passavam
por minha cabeça conforme o mundo esmaecia. O dia. A noite. O
claro. O escuro. Entendia esses pensamentos. Compreendia sua
mensagem.
Nem mesmo a morte existia sozinha.
De repente, a pressão sobre meu corpo sumiu. Vi-me
levantando a cabeça, respirando com dificuldade. Alessandra
rosnou ao meu lado. Senti mãos me puxarem para cima, e em
poucos segundos estava de pé, o rosto sendo segurado por alguém
que gritava comigo. Sua voz era um enigma. A sala girava. Eu
continuava a sentir os efeitos da privação de ar, mesmo estando
livre das mãos da garota.
Ariana. A voz continuava a gritar. Mãos me chacoalhavam.
Ariana. Mais pessoas surgiram. Mais vozes. O mundo era uma
massa indefinida. Somente quando senti as mãos frias da
Invocadora me tocarem é que acordei, empurrando-a contra a
parede, apertando seu pescoço como ela fazia com o meu, até
poucos segundos.
Não olhei para trás.
Pouco me importava que me salvara.
— Você não vai sair daqui — gritei, prensando Alessandra
contra o concreto. Seu rosto se contorceu em uma careta e minha
mão escorregou sobre a pele suja. Ela levantou o braço direito, e
me preparei para o golpe. Mas sua mão não veio ao meu encontro.
Não. Ela havia sacado a faca, e estava prestes a arremessá-la.
Em um movimento que pareceu demorar anos para se
concretizar, olhei para trás e percebi, no último segundo, que seu
alvo era Ian. No momento em que a faca deixou a mão da
Invocadora, pulei sobre o garoto, jogando-o ao chão, enquanto a
lâmina passava zunindo por cima de nossas cabeças. Ele mal
respirava abaixo de mim. Suas costas subiam e desciam de forma
irregular, como se pudessem parar a qualquer instante.
A sala foi tomada por um silêncio mortal. Uma sensação gélida
caminhou por minha espinha. Algo estava errado. Algo estava
muito errado.
Levantei a cabeça rapidamente, ignorando o rapaz que parecia
definhar sob mim, procurando outro no meio das pessoas que
observavam a cena caladas. Vi Bronx em um lado, segurando
uma faca suja de sangue. Giovane afastado de todos, com um
Renácito aos seus pés. Crystal era a que estava mais perto,
olhando-me com os olhos arregalados. Girei a cabeça de um lado
para o outro novamente, sentindo o desespero caminhar para fora
de meu corpo.
Ele não estava lá.
Mas como podia não estar? Tinha a nítida sensação de que
foram suas mãos que me levantaram. Ele tinha que estar lá. Ele
precisava estar. Voltei meu rosto para a criatura que, apesar de
não mais obrigada, continuava a recostar-se na parede, sorrindo
para mim como se achasse graça por eu não ter compreendido
alguma piada.
— Você é uma idiota — riu Alessandra.
Saquei minha faca e avancei em sua direção, fechando o punho
fortemente ao redor da bainha. Ela não expressava medo. Seus
olhos pareciam estar em paz. Nem ao menos tremeu com a
aproximação da lâmina. Não tinha certeza se a odiava ou invejava
por sua reação, pela indiferença diante à uma situação de perigo.
Estávamos apenas nós no andar de cima, e tinha certeza de que
todos os seus se encontravam mortos no de baixo. Ainda assim,
ela não parecia se importar com isso. Não parecia se importar
com nada. Quando parei em sua frente, avancei contra seu
pescoço com ferocidade.
— Eu não vim aqui para te matar. Também não me importo em
morrer — afirmou ela, como se lesse meus pensamentos. —
Vocês são tolas. Completamente idiotas. Não percebem que
sabemos quem são antes mesmo de vocês? Existe algo muito
maior do que essa floresta. Algo mais aterrador do que meus
Renácitos. E isso, Invocadoras, é aquilo que ainda não conhecem.
Vocês estão à mercê de uma realidade da qual possuem muita
pouca informação. Não há como ganhar — ela riu, e senti não
somente os meus músculos, mas os de todos os presentes se
retesarem. Quando a risada da garota finalmente cessou, o
cômodo teve até mesmo os seus mais baixos ruídos sugados para
fora.
Olhei para ela. Seus olhos estavam vermelhos. Podia sentir o
suor escorrer por minhas costas.
— O que você fez? — perguntei.
Ela sorriu. Seu maior sorriso.
— É impossível destruir o inimigo sem antes deixá-lo
vulnerável, não concorda?
Seu último sorriso.
A faca atravessou seu pescoço e ela parou de respirar, ou
afogou-se no próprio sangue. O líquido escorria por minhas mãos,
e eu sabia que sentiria aquele cheiro pungente mesmo a metros de
distância. Soltei a faca. A lâmina caiu no chão com um barulho
maligno. Fechei os olhos, zonza.
— O que ela fez com ele? — desabei sobre os joelhos.
— Não sabemos exatamente. Parecia algum tipo de portal. Se
estivermos certos, ela o arremessou para dentro dele — respondeu
Crystal, aproximando-se e colocando a mão sobre meu ombro. —
Ian foi uma distração, mas acho que você já sabe disso.
— Foi uma distração para mim — disse, virando-me para ela.
— Vocês não fizeram nada. Por quê? Ele estava bem ao seu lado.
Ficara simplesmente olhando enquanto ele sumia? Como
puderam...
Levantei os olhos para a sala. Os rastros vermelhos de sangue
inundando o chão, enquanto o sabor penetrava em minha boca e o
cheiro alcançava meu nariz.
Precisava sair de lá.
— Vamos embora — avisei, colocando-me em pé. Não
suportaria passar mais um segundo naquela casa. As paredes
pareciam gritar minha culpa, me empurrar na direção daquela que
matara e me relembrar dos inúmeros momentos passados com
aquele que sumira sob minha proteção. Para mim, a palavra Forti
não significava apenas ter alguém para me proteger, mas também
alguém a ser protegido.
Olhei para Ian. Não tinha mais certeza se ele respirava.
— Me ajudem a colocá-lo no carro — minha voz soou dura,
mas ninguém ousou se mexer. Pareciam entorpecidos, perdidos
em algum flashback. Dei um grito, e todos se voltaram para mim.
— Eu disse que vamos agora. Se mexam.
Do lado de fora da casa, a floresta possuía um aspecto morto,
como se aquilo que a mantinha ativa há houvesse abandonado.
Seria irônico se seu coração pulsante fosse o acampamento de
Alessandra. Eu sabia que era bobagem, mas era o que parecia para
mim. Agora, não se tratava mais do esconderijo dos Renácitos, ou
mesmo de meu ponto de um encontro com um deles. Olhando à
distância a floresta era apenas... uma floresta.
Olhei para casa uma última vez, esperando que, de algum
modo, Max saísse correndo dela. A Tumba parecia a mesma do
dia em que havíamos chegado. Se não estivesse de noite, as duas
datas poderiam ter se fundido em minha cabeça: a chegada e a
partida.
— Achei que estivesse com frio — disse Bronx, colocando sua
blusa sobre meus ombros.
— Obrigada — sussurrei.
Ele deixou as mãos caírem ao lado do corpo e estendi as minhas
em sua direção. Ele me abraçou fortemente.
— O que foi isso? — perguntei.
— Uma das muitas batalhas que vamos ter pela frente —
respondeu ele.
Senti outra mão em minhas costas. Crystal. Ela estendeu os
braços, se juntando a nós.
— Eu não sei vocês, mas vou precisar de um energético — riu
baixinho, tentando melhorar o clima.
Estava perto da aurora, mas a noite ainda dominava as
folhagens ao nosso redor. Enquanto o carro avançava em meio à
estrada de terra, seguindo com seus solavancos, tentei memorizar
cada pedaço daquele lugar. Cada folha e cada pedra. Cada flor e
cada árvore. Tudo existiria somente em minha mente depois
daquele dia. A casa na floresta se tornaria uma pintura no vasto
museu da memória, e nossa Tumba voltaria a ser o que era antes
de nossa chegada: apenas uma casa abandonada.
OS DOIS MUNDOS
Capítulo 48
Ariana
Era um novo dia. Uma nova era. Sabe como você possui suas
convicções, seu estilo de vida formado, e então alguém surge do
nada, saindo inesperadamente da loja ao lado, de uma festa, e
muda completamente tudo aquilo em que você acredita?— era
isso que Max representava para mim. Uma força mutável.
Alguém que, por meio de palavras, conseguira me apresentar a
um novo mundo. E então, da mesma maneira rápida e sorrateira
com a qual aparecera, some? Deixando você, e tudo aquilo que
ele modificou, para trás? Como se nunca houvesse acontecido. E
como se você não estivesse prestes a sentir o que chamamos de
realização: quando percebe o quanto sua vida mudou.
Fazia três dias que havíamos chegado à cidade. Talvez quatro.
Eu não estava contando o tempo, tornava tudo mais doloroso.
Instalamo-nos em um hotel afastado do centro. A construção
pintada de amarelo possuía uma aparência velha, janelas e portas
gastas. Parecia quase abandonada, e as poucas pessoas que dali
entravam e saíam estavam sempre com as cabeças baixas.
Não saí do quarto durante esses dias. Na verdade, espanto-me
ao pensar que desci até o salão para jantar uma ou duas noites, já
que ninguém conseguia me convencer a fazer nada. A cama era o
lugar mais seguro e aconchegante do universo, e qualquer tipo de
conversa causava-me enjoo. Não queria ouvi-los dizer que
sentiam muito, por que também perderam alguém. Não queria
ouvi-los dizer que deveria parar de me lamentar, por que não
pedira a ninguém para que continuasse no quarto comigo. Queria
somente que me deixassem em meu luto incerto, quieta em meu
canto, repassando as inúmeras conversas que tivera com Max e
tudo que deixara de dizer por ser negligente.Ele era agora — e
sempre seria — um borrão de meu passado.
Era nisso que pensava, enquanto Bronx terminava de completar
uma transação para nós, os dedos se movendo de forma ágil sobre
o computador pessoal que compráramos.
— Da onde você tirou o dinheiro? — perguntei, ainda que não
me importasse realmente. Não queria abrir a porta e me deparar
com a polícia por um deslize dele.
— De nenhum lugar que eu não pudesse tirar — respondeu
Bronx.
— Bronx? — pressionei-o.
Ele me encarou por um tempo, ponderando a resposta. Bateu o
pé na parte de baixo da mesa e a cadeira girou.
— Da conta de alguém com muito dinheiro — disse, jogando a
cabeça para trás. — Qual é, você sabe que eu não roubaria alguém
que não tivesse muito dinheiro e pouco lugar onde gastar.
Dei de ombros.
— Que seja. Tem certeza que não vão conseguir rastrear?
— Certeza absoluta, senhorita.
O computador apitou. Bronx girou rapidamente na cadeira e
olhou para tela. Além de ser um ótimo lutador, ele também era
muito bom com outras coisas que eu não tinha a mínima ideia de
como fazia. Como a transferência bancária que acabara de
completar para nós, garantindo que teríamos dinheiro para bancar
nossa estadia no hotel, e tudo mais que precisássemos.
Havíamos alugado quatro quartos. Não eram os melhores, mas
serviriam muito bem para o que queríamos. Qualquer coisa que
acontecesse ali — se algo viesse a acontecer — não seria tão vista
quanto no centro da cidade. E precisamos ser discretos.
— Ele não vai acordar? — perguntou Crystal, mirando Ian.
Olhei para o garoto jogado na cama ao lado, desacordado,
coberto de hematomas e visivelmente perturbado, mesmo
enquanto dormia. Fazia quatro dias que estava naquela situação,
meio vivo, meio morto. Não sabia mais o que fazer. Ele precisava
acordar para se alimentar e limpar o corpo, caso contrário, não
teria forças para se recuperar.
— Ele provavelmente vai acordar amanhã. Os machucados não
estão tão feios — disse Giovane.— Você não pode ajudá-lo a se
curar?
Balancei a cabeça.
— Não tenho forças para isso agora.
Mal acabei de pronunciar as palavras e fui tomada por um
choque. Um torpor que me perseguia agora não somente durante
as longas noites, mas também em meio aos ensolarados dias.
Tudo acontecia rapidamente. Imagens em flashes — o que não as
tornava menos dolorosas. Max passando os braços ao meu redor.
Eu perfurando o estômago de um Renácito. Giovane andando
comigo pela clareira. O olhar feroz de Alessandra. Crystal me
puxando para me dar um de seus abraços calorosos. Minha faca
cortando o pescoço da Invocadora. Bronx sorrindo para mim com
seus olhos brilhantes.
Puxei minhas pernas até a barriga e as abracei, fechando os
olhos enquanto segurava mais uma lágrima. Nem mesmo as
melhores lembranças deixavam uma marca feliz. Tudo era
destruição.
Houve uma leve batida na madeira.
— Tem alguém na porta — comentou Bronx, sem tirar os olhos
do computador.
— Pedi comida.
Crystal levantou-se da cama. Seu cabelo preto balançou pouco
abaixo dos ombros, uma onda estranha e assimétrica. Eu
provavelmente a lembraria de cortá-lo depois. Pensei em mim.
Meu cabelo deveria estar uma droga agora, depois de todos os
treinos e puxões recebidos.
— São três da manhã — objetou Bronx.
— Eu estou com fome. Você não?
Ele balançou a cabeça, relutante, não querendo admitir que ela
estava certa. É claro que estava com fome. Todos estávamos. Não
havíamos descido para o jantar. E mais uma vez, a culpa era
minha. Passaram tanto tempo tentando me persuadir que
acabaram perdendo o horário. Mas não me sentia mal por isso.
Eles tomavam suas próprias decisões, assim como eu. Meu desejo
era ficar sozinha. Porém, se havia algo no qual todos
concordavam, era de que não me deixariam sozinha em qualquer
momento.
Por essa e outras razões, minha hora preferida era à noite,
quando me deitava para dormir — mesmo demorando horas para
pegar no sono. Podia ficar sozinha com meus pensamentos, o que
era muito útil. Precisava me questionar sobre diversas coisas nas
quais acreditava, e em muitas outras nas quais ainda nem havia
pensado. E, para isso, era necessário que não houvessem três
pessoas matraqueando ao meu lado.
O garçom entrou com a mesa no quarto, colocando-a no centro
e se retirando. Crystal e Bronx pegaram alguns bolinhos,
sentando-se lado a lado no chão. Olhando-os dali, quase podia
esquecer-me de tudo o que havia acontecido. Giovane ainda
estava encostado na parede, uma das pernas dobrada, o braço
apoiado sobre o joelho.
— Giovane — chamei-o. — Não vai comer?
Ele desencostou da parede, balançando a cabeça.
— Preciso dormir — disse, levantando-se. — Até amanhã.
Os olhos de Crystal se arregalaram, desviando-se da figura que
passava pela porta, focando-a novamente apenas quando já era
tarde demais e ela sumira corredor afora, fechando a porta atrás
de si. Giovane parecia incomodado, e isso já durava mais de um
dia. Fiquei alguns segundos na cama, fitando Ian, como se
esperasse que o garoto abrisse os olhos de uma hora para a outra.
Então,quando não consegui mais aguentar, levantei e fui atrás de
Giovane.Abri a porta e o vi no momento em que girava a chave
para entrar em seu quarto. Ele parou, encarando o trinco.
— O que foi? — perguntei.
Ele não respondeu de pronto. Observou a maçaneta por mais
alguns segundos, virando-se lentamente.
— Lucas me ligou. Ele me pediu para voltar.
Segurei o ar. Ouvir aquele nome depois de tanto tempo fez uma
antiga dor reacender em mim.
Giovane saiu de perto da porta, vindo em minha direção,
parando na metade do caminho.
— Eu realmente quero te ajudar, Ariana. Você é uma das
minhas melhores amigas, e eu daria tudo para te acompanhar —
suspirou, como se não estivesse contente. E realmente não estava.
— Mas à que custo? No momento em que aceitamos fazer parte
desse jogo, começamos uma lista de feridos, e o número vai
depender de nós. Eu não quero machucar ninguém e também não
quero me sentir culpado pelas pessoas que não conseguirmos
salvar.
Senti um choque ao compreender o que ele dizia.
— Você vai embora? — não conseguia imaginar aquilo. Havia
perdido Lucas e Maia, depois Max. Não podia perder Giovane
também. — Você não pode fazer isso. Por favor, Giovane. Eu não
suportarei perder mais ninguém.
Ele me fitou por alguns segundos, e imaginei que estivesse com
pena. Por fim, girou a maçaneta.
— Boa noite, Ariana — disse ele, entrando em seu quarto.
Não era a resposta que queria ouvir, mas me dizia algo: ele
cogitava a ideia de ir embora. Giovane bateu a porta atrás de si e
fiquei sozinha no corredor silencioso, sentindo meu coração bater
descompassado no peito. Por que ele estava fazendo aquilo? Por
que agora? Lista de feridos. Isso era uma bobagem. O tipo de
ferimento que causava em mim não contava?
Entrei no quarto e encontrei Bronx e Crystal me observando, os
semblantes calmos e caridosos. Percebi que ouviram a conversa.
— Sabe, foi incrível ele ter aguentado até agora. Não é o tipo de
aventura que muitas pessoas topariam — disse Crystal, colocando
o bolinho que estava em sua mão de volta na bandeja.
— Eu não quero perder mais ninguém — falei, em tom baixo.
Dizer aquilo em voz alta só tornava tudo pior.
— Você não pode culpá-lo, Ariana — disse Bronx.
Encarei-o.
— Vocês estão de brincadeira? Eu acabei de perder Max. Matei
uma pessoa há menos de quatro dias. Estou cansada, triste e
condenada. Perdi os únicos dois amigos que tive durante toda
minha vida, e também deixei meus pais para trás — mal respirava
entre as frases. Quanto mais falava, mais precisava contar. — E
vocês pedem para que eu não o culpe por me deixar nesse
momento? Devo agradecê-lo por me dar as costas quando mais
preciso?
A expressão que se apoderou do rosto de Bronx foi austera. Ele
se levantou, vindo em minha direção tão calmamente que senti
vergonha por ter explodido daquela maneira.
— Nós estamos de brincadeira? Preste atenção no que acabou
de falar. Só pensa em si mesma. Giovane quase morreu por sua
causa naquela casa, por que você o arrastou para lá. Seu lugar
nunca foi entre nós. Você é a razão dele ter arriscado a própria
vida. Agora quer culpá-lo por estar com medo? Por querer voltar
para de onde nunca devia ter saído? — senti meu rosto se aquecer
diante de tais palavras. — Por céus, Ariana. Você não é a única
pessoa sofrendo aqui. Já parou para pensar em tudo que nós
deixamos para trás? Em tudo que perdemos? Não, você não
parou. Por que não enxerga um palmo à sua frente.
— Isso não é verdade — retorqui, colocando as mãos, que
tremiam, nos bolsos da calça. — Eu me importo com ele, me
importo com vocês.
A expressão de Bronx abrandou. Ele colocou as mãos sobre
meus ombros, pressionando-me.
— Então, mostre. Deixe-o ir. Deixe que ele volte para a
segurança de sua família. Para sua vida. Aqui não é seu lugar.
Olhei para Crystal, encolhida a alguns metros de nós. O
moletom grande que usava e o rosto cansado não deixavam
transparecer a garota forte que havia por dentro.
— Nós sempre vamos estar aqui com você, certo? Não vamos
te deixar sozinha —disse ela, forçando um sorriso.
Concordei com a cabeça, abaixando-me para abraçá-la. Sentei
no chão ao lado deles. Bronx passou um dos braços por cima de
meus ombros e me puxou para perto, pressionando-me com
delicadeza contra seu peito. Comi alguns bolinhos, observando as
pessoas pelas quais estava cercada. De repente, um pensamento
cruzou minha mente e estremeci.
Quantos de nós estariam ali quando tudo acabasse?
Capítulo 49
Ariana
Eu estava envolta em uma névoa do sono. Faces, toques,
palavras. Pessoas com as quais estava acostumada a viver minha
vida, e outras que nunca vira. Os sonhos não eram mais sutis,
palavras de consolo ou realização. Não existia mais uma barreira
entre esses e meus pesadelos, de modo que transitava
constantemente entre um e outro, sem saber ao certo o que estava
acontecendo. A névoa era espessa. Uma vez que me encontrava
nela, era difícil me libertar. Mas algo não parecia certo. Havia um
barulho estranho, como se alguém estivesse com dor. Um barulho
que não parecia pertencer àquele lugar. Abri os olhos, percebendo
o que era.
Levantei da cama, cambaleante, e fui até Ian. Sua pele estava
arroxeada e cheia de escoriações e cortes que estavam sarando.
Ele suava. Seus olhos continuavam fechados, e ele resmungava
baixinho. Se tivesse forças, certamente o ajudaria para que o
processo fosse mais rápido. Mas sentia tanto cansaço quanto ele
sentia dor. Quando me aproximei um pouco mais para observar
um corte próximo ao seu olho, decidi que estava na hora dele
tomar um banho, consciente ou não.
Puxei a blusa por cima de sua cabeça. Depois tirei sua calça,
deixando que ficasse apenas de cueca. O cheiro de seu corpo era
azedo, e precisei tapar o nariz para continuar. Peguei-o pelo
tronco e tentei arrastá-lo até o banheiro. Felizmente, Ian não era
pesado. Coloquei-o dentro da banheira e liguei o chuveiro,
deixando que a água quente escorresse por seu corpo e limpasse o
sangue seco. Suas costas conseguiam estar pior do que todo o
resto. A pele dilacerada estava completamente vermelha,
entrecortada por tons de amarelo e roxo. Ele tremia um pouco,
mas ainda não havia aberto os olhos.
Estiquei minha mão até o sabonete e comecei a limpar seu
corpo, esfregando com delicadeza os locais onde tinha medo que
infeccionasse, retirando o sangue seco que ainda estava grudado
em algumas partes. Havia limpado toda sua costa e tórax quando
ele começou a respirar pesadamente. Fiquei observando-o,
esperando que acordasse. Contudo, Ian continuava inconsciente.
Levantei sua cabeça e deixei a água escorrer sobre ela, enquanto
limpava o sangue e terra grudados em seu rosto. Pensei em limpar
suas pernas, mas isso exigiria uma intimidade que não
possuíamos.
Desliguei o chuveiro e posicionei sua cabeça na beirada da
banheira. Ele parara de tremer e resmungar, e agora parecia tão
morto quanto antes na cama. Sentei-me pesadamente sobre o chão
frio. Até o menor dos movimentos drenava minha energia com
rapidez. De repente, seus olhos se mexeram por baixo de suas
pálpebras, e ele as abriu com um pouco de dificuldade.
— Ariana? — piscou. — O que aconteceu?
Sorri, tentando demonstrar que estava feliz por ele estar bem.
— Bom, depois de levar uma surra dos amigos de Alessandra,
quase ser morto por ela, e depois por mim, você apagou.
Alessandra e todos os outros estão mortos. Estamos em um hotel
no momento.
Ele franziu o cenho, tossindo.
— Por que me salvaram? — perguntou, apoiando-se nas bordas
da banheira, tentando se sentar. Seu pé escorregou e ele caiu
deitado novamente.
— Por que você está do nosso lado, é claro— ajudei-o.
— Eu não estou em lado nenhum — devolveu ele, afastando
minhas mãos.
Estudei-o, sem saber o que dizer. Por mais que ele não quisesse
admitir, no momento em que nos ajudara, havia sim, escolhido
um lado.
— Tudo bem. Nós te salvamos por que você é bom —
respondi, por fim.
— Bom?
— Sim. Diferente dos outros Renácitos. Você não quer matar
ninguém.
Ele sorriu, balançando a cabeça.
— Vocês mataram pelo menos cinco Renácitos que também me
apoiariam. Eu pedi para você nos salvar. Não nos matar.
Fitei-o. Com seu rosto agora limpo, era possível ver cada
arranhão.
— Desculpe. Eu não pensei nisso. Achei que todos eram
inimigos. Afinal, eles nos atacaram.
— É isso que você precisa entender. Não estavam contra vocês.
Nenhum de nós está. Eles têm medo do que pode acontecer se não
fizerem o que mandam.
— Você não teve medo.
— E olha o que aconteceu.
Olhei para o resto de seu corpo, os hematomas e cortes nas
pernas. Aquilo poderia assustar a qualquer um. Ian estava sendo
forte ao suportar tudo. Não importava o porquê de ter me
procurado. Se fora para salvar seu povo, a própria pele, ou a mim.
Ele havia sido mais corajoso do que qualquer outro. Não temeu
pelo o que lhe poderia acontecer, mesmo sabendo todas as
possibilidades e o quanto cada uma o afligiria fisicamente.
Levei minha mão até a sua e a segurei. Ele retraiu o braço,
olhando assustado para mim. Então, lentamente, o estendeu de
volta. Fitava-me enquanto o calor entre nossas mãos aumentava e
eu começava a me sentir tonta. Minhas costas formigavam. Eu
sabia que era arriscado fazer aquilo, mas não podia deixá-lo
naquele estado depois de tudo que fizera por nós. Seus
hematomas sumiram e ele subitamente começou a parecer mais
saudável. As pontadas ficaram mais fortes e os cortes começaram
a cicatrizar. Aos poucos, a carne voltava a sua cor natural. A
tontura aumentou e caí ao lado banheira. Senti seus braços me
levantarem do chão, e em poucos segundos estava deitada na
cama. Se não estivesse mal, provavelmente teria o repreendido
por estar molhando todo o quarto.
— Você está bem? — perguntou Ian, sentando-se ao meu lado
no colchão.
— Estou. Só um pouco fraca ainda. Não posso me esforçar
muito, mas precisava retribuí-lo de alguma forma.
A porta do quarto abriu.
— Eu não esperava ver isso — virei o rosto para um Bronx
boquiaberto. — Se quiser eu tenho algumas roupas — ele
continuou olhando para Ian. — Acho bom você colocar alguma
roupa.
O garoto olhou para o próprio corpo, como se percebesse
apenas então a falta de pano.
— Certo. Acho uma boa ideia.
— Eu cuido dela. Vá até o meu quarto e peça para Giovane
pegar uma blusa minha para você. E uma calça também — disse,
jogando a chave para Ian, enquanto ele saía.
Bronx fechou a porta atrás de si, trancando-a. Imaginei que não
quisesse que nos interrompessem. Andou até as cortinas e as
abriu, fazendo a claridade inundar o cômodo. Minha cabeça
latejou mais um pouco.
— O que aconteceu? — perguntou ele, sentando-se na cama ao
meu lado e afastando um cabelo de minha testa.
— Ian ainda estava desacordado, então resolvi ajudá-lo a se
recuperar. Coloquei-o embaixo da água e quando acabei de limpar
o sangue consegui ver os machucados. Não estavam tão feios,
mas com certeza eram de dias diferentes. Acho que Alessandra o
torturou por algum tempo. Enfim, depois de curá-lo, passei mal.
Ele concordou com a cabeça.
—Precisa descansar. Ainda está se recuperando. Tente não usar
seus dons pelos próximos dias.
Seu cabelo brilhava quando a luz que vinha da janela o
encontrava. Não havia nem ao menos o penteado. Provavelmente
acordara e viera falar comigo. Uma pomba pousou no parapeito
da janela, balançou a cabeça algumas vezes e voltou a voar. Não
estava chovendo, mas o céu possuía uma cor acinzentada,
entrecortada apenas pelos finos raios de luz que chegavam até
nós. Era um dos meus tempos preferidos.
Estava prestes a dizer algo quando outra onda de lembranças se
apoderou de mim. Fechei os olhos, esperando até que os choques
passassem. Não puxei minhas pernas para mim. Não chorei. Não
emiti som algum. Apenas fiquei ali, parada, até que as imagens
cessassem.
— Sabe que não foi culpa sua. Certo? — disse Bronx, enquanto
eu ainda estava com os olhos fechados. Ele era o único dos três
que sabia apenas de olhar para mim quando eu estava tendo um
choque. — Nada do que aconteceu foi culpa sua.
Abri os olhos. Os seus transpareciam calma, mas eu sabia que
aquilo era apenas uma fachada.
— Eu poderia tê-lo salvado — murmurei.
— Não, não poderia. Nenhum de nós poderia — retrucou ele.
— Se eu não tivesse virado para o outro lado, ele ainda estaria
aqui.
—Mas então Ian estaria morto. É isso que você quer?
— Mas agora quem está morto é Max. É isso que você quer?
Ele não respondeu.
— Não estou dizendo que trocaria a vida de Ian pela a de Max
— continuei, apesar de saber que aquilo não era verdade. — Só
estou dizendo que ele ainda poderia estar aqui se eu tivesse
prestado atenção.
— Não seja tola. Por que gastar seu tempo pensando nisso? Por
que ficar se martirizando por algo que não pode mudar? — ele
estendeu a mão para pegar a minha. — Você precisa deixar o que
aconteceu naquela casa dentro daquela casa. Precisa deixar o
passado no passado e pensar no que fará daqui em diante.
— Como posso fazer isso, Bronx? — apertei sua mão. —
Lembro-me de todas as pessoas com as quais conversei e que
choraram diante de mim por não terem tido tempo de dizer tudo o
que queriam para as pessoas com as quais viveram. Ainda havia
tanto que queria lhe falar. Ele se tornou meu amigo, mas nunca
consegui dizer a ele que o perdoara pelo que fizera.
— Você vai encontrar forças para superar isso.
Ri com descrença.
— Como se tivéssemos tempo para esperar coisas como essa
acontecerem.
Ele me estudou em silêncio. Então sua expressão mudou.
— Quero te perguntar algo.
Bronx soltou minha mão e, de repente, me senti sozinha, como
se ele também fosse sumir diante de meus olhos.
— Eu não quis perguntar antes por que ainda estava abalada
pelos últimos acontecimentos. Mas já faz cinco dias, Ariana, e
preciso saber. O que, exatamente, você sentiu ao matar aquela
garota?
Franzi a testa.
— Por que me perguntaria isso?
— Eu não sei. Mas preciso saber.
— Você não pode estar falando sério.
Ele suspirou.
— Estou preocupado com você. Certa vez, enquanto
conversava com Max, ele mencionara que estava quase
completando sua missão. Estava feliz por pensar que poderia
voltar para Penumbra e fugir de tudo isso —fez uma pausa,
olhando ao redor do quarto, como se pudesse ver as frágeis
paredes da Tumba ao nosso redor. — Disse que faltava apenas
uma morte. Mais uma vida tirada por suas mãos e seu lado
obscuro se manifestaria. Só quero saber como está se sentindo.
— Não era isso que queriam? Que Max tinha de fazer?
Despertar meu lado obscuro?
— Não seja idiota. Ele usou a palavra traição por alguma razão.
Ele traiu o dever dele, Ariana. Traiu por você. É por isso que quis
matar aquela garota? Para deixar seu lado obscuro se manifestar?
— Não — gritei.
Ele estendeu a mão novamente, tocando minha bochecha. Seus
olhos pareciam tentar arrancar a verdade de mim, como se ele
acreditasse que eu omitia algo.
— Não fique brava comigo. Eu só quero ajudar.
— Então não me pergunte mais isso. Não tente me fazer
acreditar que existe algo capaz de modificar quem sou.
Ele balançou a cabeça.
— Queria poder acreditar não existir — sua voz era carregada
de decepção. Do que ele estava falando? Por que não estava feliz
com minha resposta? Bronx queria que eu me tornasse a
Invocadora das Trevas que viraria contra ele e Crystal?
— Não existe, Bronx. Sou quem sou, e isso não é algo ruim.
Você sabe disso. Me conhece.
— Uma hora, Ariana. Uma hora você vai se tornar aquilo que é.
Só quero estar pronto para quando acontecer.
— Não diga isso. Não fale essas coisas para mim.
— Mas você precisa saber. Por que estou certo. Max estava
certo — ele percebeu a lágrima silenciosa que rolou por meu
rosto. — Droga, Ari. Desculpa.
Bronx tentou se aproximar, mas empurrei seu braço com força.
— Não. Fique longe de mim. Você é como todos os outros.
Não consegue pensar, nem por um segundo, que posso ter alguma
escolha.
Queria gritar para que saísse, para que me deixasse sozinha,
mas não conseguia encontrar forças para fazer isso. Não
conseguia pedir para que fosse embora, pois sabia que, se o
fizesse, então realmente estaria sozinha. Eu teria, finalmente,
perdido a todos.
— É exatamente por saber que você não tem escolha que estou
tentando te ajudar. Nem tudo precisa ser difícil, Ari.
Alguém bateu na porta e ele se levantou para abrir.Encolhi-me
na cama, enquanto Ian entrava no quarto e Bronx me olhava uma
última vez, antes de passar pela porta, dignando-se apenas a me
dar um aceno de cabeça. Em poucas horas estaríamos todos
reunidos, e eu tinha certeza de que ele não tocaria no assunto
novamente.
Ian foi até a janela, observando as casas abaixo de nós. Pedi
mentalmente que não começasse a fazer perguntas agora que
estava melhor. Por um momento, quase desejei que não houvesse
acordado. Ele usava uma blusa verde e jeans escuro. Havia secado
o cabelo e parecia um cara normal que não fora torturado durante
semanas e quase morto.
— Quero falar com você — disse.
Ian se virou e veio até mim, sentando-se à minha frente,
esperando. Pela primeira vez, senti o poder que possuía. O
Renácito demonstrava total respeito à minha figura, e obedeceria
cada palavra que saísse de minha boca, gostando ou não. Entendi,
de uma vez por todas, o que não só ele, mas também Max,
quiseram dizer ao falarem que não possuíam escolha. A única
realidade que conheciam era aquela, na qual eram subordinados a
um tipo de força inquestionável.
— Preciso saber sobre a busca. A que você estava fazendo com
Azriel — minha voz soou autoritária.
Ian olhou para o chão, como se tentasse encontrar uma memória
muito antiga em sua mente. Então levantou a cabeça e começou a
falar:
— Conheci Azriel há um bom tempo, quando ele recrutou um
grupo de almas para ajudar na busca. Acho que há
aproximadamente cinco anos. Não éramos somente nós dois,
imaginei que soubesse disso.
Anuí.
— Onde estão os outros? Os que trabalhavam com vocês?
— Suponho que ele os tenha mandado embora a essa altura.
Não possuem mais utilidade. Penso que uma minoria tenha sido
capturada como eu, e que agora vivam com alguma Invocadora.
Esbocei um sorriso. Ian era prestativo. Não questionava,
mantinha a coluna sempre ereta e a voz no mesmo tom passível. E
era corajoso. Me lembraria disso quando precisasse. Tinha certeza
de que conseguiria persuadi-lo a me ajudar, caso necessário.
— Obrigada, Ian. Agora, você sabe que não poderá ficar
conosco. Certo? Estamos em uma missão perigosa e, apesar de ter
sido colocado no meio disso tudo, o que faremos não lhe diz
respeito. Espero que compreenda quando digo que preciso
arrumar o quanto antes um lugar para você.
Se ficou chocado com minhas palavras, não demonstrou.
Apenas assentiu, como já era de se esperar.
— Pois bem. Peço que vá até o salão principal servir-se do café
da manhã enquanto converso com Crystal. Ao voltar,
provavelmente já teremos o veredicto.
Ele se levantou da cama, seguindo minhas instruções sem mais
questionamentos.
— Por que não chamou eles? Bronx e Giovane? Não acha que
deveriam participar disso se vamos tomar alguma decisão?
Ela me olhava como se achasse que eu houvesse me esquecido
de chamá-los. Remexi-me na cama, me sentindo já bem disposta,
mesmo tendo curado Ian há poucos minutos. Estava ficando boa
naquilo. Puxei meus cabelos para cima e os prendi em um nó.
Alguns fios rebeldes desceram pelas minhas faces. Aquela seria
uma conversa delicada.
— Eu preciso admitir, Giovane e Bronx nos ajudaram a tomar
várias decisões até agora. Mas isso mudou, Crystal — disse,
olhando-a. — Você sabe que Bronx terá de seguir suas ordens
querendo ou não. Então acho que está na hora de você assumir
sua posição como Invocadora e começar a dá-las.
Ela me fitou com curiosidade.
— Pensei que fôssemos um time — apontou, com voz sóbria.
Não respondi. É claro que éramos um time. Um time com um
companheiro morto, outro indo embora, e outro desconfiado. No
momento, éramos um time de dois. Ela não percebia o que estava
acontecendo?
— Isso é por causa de Max? — perguntou, quando tomou
coragem.
— Não — respondi, tentando ignorar a dor que se instalou em
meu peito. — Isso é por que Giovane quer ir embora, e por que
briguei com Bronx.
— Você brigou com Bronx? Não foi por causa do Giovane
novamente, foi?
— Não. E acho melhor você não perguntar a nenhum de nós a
razão. Provavelmente não gostará do que pode ouvir.
Depois de muito tempo, o céu deu seu primeiro sinal de chuva,
um relâmpago ao longe.
— Não vou perguntar. Só não quero ver todos nós separados.
— Diga isso a Bronx. Não fui eu quem entrou em seu quarto,
lançando lhe perguntas horríveis, como se estivesse diante de uma
possível ameaça.
— Tenho certeza que não era isso que ele pensava ao fazer
qualquer que seja a pergunta que tenha feito a você — ela olhou
para fora quando a chuva começou a cair, finos pingos chocando-
se contra o vidro das altas janelas, criando uma melodia lúgubre.
— Quanto a Giovane — disse Crystal, ainda sem olhar para mim.
— Também estou triste com a sua decisão.
Ela abaixou a cabeça, encarando os sapatos. Odiava vê-la
daquele jeito. Era tão boa com as pessoas e não merecia o que
estava acontecendo. Coloquei a mão em seu ombro, recebendo
um sorriso em troca. Droga, Giovane. Talvez queira considerar
isso como mais um ferido em sua lista.
— Mas não foi para me contar isso que me chamou — ela
passou a mão no rosto. — Então, o que queria me perguntar?
Contei a ela sobre minha conversa com Ian, e como ele
confirmara a história de Azriel. Ela apenas balançou a cabeça e
esperou que eu continuasse. Depois de tudo esclarecido, expliquei
minha ideia, dizendo que já tínhamos feito tudo o que podíamos
por ele, e que Ian deveria encontrar um novo caminho. Senti-me
estranha ao proferir tal pensamento. Por tanto tempo meu objetivo
fora salvá-lo que, agora que isso estava feito, não sabia muito bem
como prosseguir.
— O que vamos fazer com ele, então? — perguntou ela quando
acabei.
— Eu não sei.
— Talvez ele pudesse encontrar Azriel e pedir algum conselho?
— Pelo o que ele me disse, Azriel o mataria. E sinceramente,
não vejo maldade no ato. Mas também não creio que seja o
melhor destino que possamos encontrar. Ian certamente nos será
de serventia em algum momento. Sei disso.
Ficamos em silêncio, pensando. Dezenas de ideias cruzavam
minha mente, e eu as descartava uma a uma. Precisávamos
encontrar algo inofensivo, mas ainda assim útil. Um lugar onde
Ian não corresse perigo, mas sua presença fosse necessária.
A chuva aumentou, e o vento ricocheteou com força na janela.
— Vamos ter que ir atrás das outras Invocadoras, não? —
Crystal levantou o olhar quando falei, esperando que eu houvesse
encontrado a solução para os nossos problemas. — Talvez
pudéssemos criar um local para abrigar os Renácitos que
salvarmos?
— Como uma casa para almas que não pertencem nem a este
mundo nem ao outro?
— Exato. Um lugar que sirva de intermédio — disse, já
convicta de que seria com aquela ideia que prosseguiríamos. —
Renácitos têm um tempo de vida limitado. Porém, seria injusto
encurtar seu tempo apenas por estarem ocupando espaço, após
tudo o que sofreram. Vamos dá-los uma chance de aproveitarem o
tempo que resta.
Crystal concordou.
— Só precisamos tomar cuidado para não os matar na próxima.
Capítulo 50
Ariana
Em menos de duas horas, Ian já estava longe, apenas com as
roupas do corpo e um comando a ser seguido. Era tudo o que
possuía. Tudo que fomos capazes de dar a ele. Não me sentia mal
por colocá-lo para trabalhar menos de uma semana após ter sido
liberto, pois era assim que as coisas funcionavam do nosso lado.
Se estivesse pensando, se estivesse ativo, então teria de ser útil.
Ócio era uma palavra que não constava em nosso dicionário.
A chuva agora caía pesadamente, arrastando fios, árvores e tudo
o mais que encontrasse na rua. Fui até a janela ao voltar do salão,
depois de almoçar. Os grossos pingos traçavam linhas no vidro, e
todo o quarto estava gelado. Deitei-me na cama, fechando os
olhos e absorvendo o barulho. Imaginei-me lá fora, no meio da
rua. Os braços abertos e a cabeça inclinada para trás. Sentia-me
quase conectada à natureza.
Pouco tempo depois, Bronx surgiu à porta, questionando-me
sobre minha decisão de excluí-lo sobre o assunto de Ian. Não
estava contente. Andara de um lado para o outro no quarto, me
dando um sermão de como não podíamos brigar. Não agora. Mas
o estrago já estava feito. Ele mostrara para mim que não tinha
confiança em relação ao meu futuro no momento em que
perguntara se eu havia gostado do que tinha feito, e se sentia algo
mudar.
— Você não pode me fechar desse jeito, Ariana. Eu sou seu
amigo. Não percebe que o que acontecer daqui em diante pode vir
a afetar não somente você, mas todos nós?
Ignorei-o, fechando os olhos novamente e imaginando-me na
rua, sob a chuva mais uma vez. Quando finalmente saiu, suas
palavras ainda ressoavam em mim. Algo está prestes a mudar, e
você sabe disso. Não acreditava nele. Você precisa me contar se
algo estiver acontecendo. Como poderei ajudá-la se não me deixa
fazer isso? Eu não me tornaria um monstro. Por que ele pensava
isso? Não sentiria prazer ao tirar uma vida. Não usaria os poderes
que possuía para destruir alguém.
Mas então me lembrei de que destruí Alessandra. Aquilo fora
fácil para mim. Estava repleta de raiva e medo, e essas duas
coisas juntas são capazes de causar estragos inimagináveis.
Contudo, eu fiz o que era certo, não? Fiz o que me pediram, do
mesmo modo que o faria dali em diante. Matara uma das
Invocadoras que não deveria estar viva, e teria de fazê-lo
novamente. Isso fora um aviso de um anjo, e eu sabia que as
ordens vinham de um poder maior. Então, como Bronx podia
perguntar-me se eu estava mudando, quando a única coisa que
fizera fora cumprir ordens? Ordens essas da mesma missão na
qual era subordinado.
Penso que talvez todos estivéssemos condenados, no fim das
contas.
Depois de algum tempo, envolta em um silêncio perturbador,
acabei dormindo. Por sorte, não tive sonhos ou pesadelos, apenas
uma paisagem branca e inabitada. Não existiam paredes, chão ou
teto. Ainda assim, eu sabia que se tratava de um lugar fechado.
Um barulho ensurdecedor. Uma voz melodiosa. Foram essas as
impressões que ficaram comigo quando acordei assustada,
olhando para a porta.Crystal estava parada à minha frente,
cabisbaixa. Sua mão segurava a maçaneta com tanta força que
tive medo que a explodisse.
— Ele foi embora. Giovane foi embora.
Sentei de supetão.
— O quê? Tem certeza de que ele não está no banheiro? Ou
saiu para comer algo?
Seu corpo chacoalhava e ela tentava inutilmente manter-se
ereta.
— Tenho. As coisas dele não estão mais aqui.
Meu coração apertou. Apesar do choque, não estava surpresa.
Sabia que ele nos deixaria. Apenas não pensara que seria daquela
maneira, sem um adeus. Aquilo não parecia algo que o Giovane
que eu conhecia fosse capaz de fazer. Saltei da cama e fui atrás de
Crystal, controlando minha respiração acelerada devido ao susto.
Cada passo parecia estar em câmera lenta. Não queria chegar ao
seu quarto. Não queria perceber que ele fora embora.
Mas isso era um fato. Giovane fora embora. O quarto vazio era
a prova disso. A cama na qual antes dormia estava arrumada com
esmero, e o local ao lado, onde se encontrava sua mala no dia
anterior, possuía apenas uma mancha de algum líquido no carpete.
Senti um soluço subir à garganta. Ele nos deixara sem ao menos
dizer adeus. Aquelas semanas na casa, os passeios que fizemos,
não significaram nada para ele? Como isso era possível?
Senti meu rosto esquentar de raiva. Fiquei esperando aquela
lágrima cair, mas ela não o fez. Ao contrário, virou uma chama
que penetrava meu corpo. Sentia cada músculo arder. As chamas
devoravam-me por dentro. Meu estômago. Meu coração. Por onde
passavam tragavam as esperanças escondidas. Nem mesmo os
recantos mais sórdidos de minha alma foram poupados. Caí de
joelhos no chão, tremendo.
Giovane, seu idiota. Era isso que queria dizer quando falou que
era meu amigo?
Agarrei o chão com as unhas, sentindo-as quase descolarem da
pele.
Droga, Max. Onde você está? Não vê que preciso de você?
De repente, o quarto parecia quente. Eu podia sentir a fumaça
penetrar meu nariz. Minha cabeça doía. Passei a mão no rosto,
agora molhado.
— Ariana —Crystal gritou atrás de mim, trazendo-me de volta
à realidade.
Olhei em volta. O quarto estava em chamas. As cortinas perto
da janela cintilavam com o fogo. Não consegui me mexer. As
labaredas eram ao mesmo tempo destrutivas e maravilhosas. E eu
queria ser como elas. Queria conseguir destruir tudo que
encontrasse pela frente. Queria possuir dentro de mim a essência
que seria capaz de transformar o sofrimento em algo belo, ainda
que mortal.
A janela explodiu e cobri meus olhos com as mãos.
— Vamos sair daqui — disse Bronx, puxando-me para fora do
quarto.
— Eu fiz isso? — perguntei, incrédula.
Ele se virou para Crystal, que estava na porta, puxando-me com
mais força, obrigando-me a segui-lo.
— Vamos —gritou ele.
— Espere — disse ela.
Crystal levantou as mãos e em poucos segundos o quarto estava
inundado. Ela atraíra todas as gotas que caíam do lado de fora
para dentro do cômodo. O calor que antes parecia fluir de meu
corpo para a sala se apagou. Sentia-me gelada, mais gelada do que
deveria. A água escorria lentamente para o corredor, e não
demoraria muito até que alguém a notasse. Coloquei as mãos ao
redor do corpo, como se uma rajada fria houvesse passado. O
incêndio que causara no quarto parecia ter se instalado em minha
cabeça.
—O que há de errado com você? — gritou Bronx, ao fechar a
porta. — Incendiar as coisas não trará Giovane de volta. Não trará
nenhum dos dois de volta.
Sentia minha cabeça explodindo. Fui até a janela e a abri,
desejando que o pouco de ar que entrava fosse suficiente.
— Max está morto e Giovane se foi. Nem mesmo seus dons são
capazes de mudar isso— sua voz continuava alta em minha
direção.
Crystal nos observava do canto, sem dizer uma palavra. Sua
expressão não era de medo, muito menos de tristeza, era uma
simples feição neutra, como se nada estivesse acontecendo ao seu
redor. Ela também viu quando me virei e arremessei Bronx contra
a parede do banheiro, que se despedaçou abaixo de seu corpo.
Não pretendia colocar tanta força no movimento, mas era difícil
controlá-lo à medida que tudo dentro de mim ficava mais
confuso. Só então ela fez algo: prensou-me contra a janela,
fitando-me surpresa. Sua figura esguia defendendo o garoto caído
no chão. Me debati contra o vidro, apesar de saber ser inútil.
Mesmo em desvantagem, não revidei. A última coisa que queria
era que déssemos razão para suspeitarem de nós sobre o ocorrido
no quarto de Giovane. Apenas pedi mentalmente para que ela não
colocasse força demais e me jogasse prédio abaixo.
Demorou alguns segundos para eu perceber o que havia feito.
Só quando vi o sangue escorrendo por seu pescoço é que tive
noção de que o machucara. Bronx estava caído no chão, mal
respirando. Sua figura agora tão feia quanto a de Ian no dia em
que o resgatamos. O fogo dentro de mim cessou tão rapidamente
quanto começara. Sentia-me zonza, como se não estivesse
controlando meu corpo. De repente, o sentimento de culpa era
avassalador. Olhei para Crystal, que me encarava com a expressão
numa mistura de preocupação e raiva.
— Você vai nos matar se continuar assim.
Despenquei em direção ao piso, sentindo minhas pernas
arderem. Ela correu até Bronx e pegou sua mão, colocando a
outra sobre sua testa. O que eu fiz? Fechei os punhos, prometendo
para mim mesma me controlar melhor da próxima vez.
Não, não poderia haver próxima vez.
Ele abriu os olhos, focando a garota acima de si e, apesar da
dor, lançando um sorriso caloroso. Levantei e comecei a ir em sua
direção quando Crystal balançou a cabeça.
— Não chegue perto, Ariana — falou com voz imperiosa.
Nunca a tinha visto dirigir-me qualquer palavra naquele tom, o
que me fez perguntar se não somente eu, mas também ela,
passava por algum tipo de mudança.
Bronx se apoiou nos cotovelos e levantou a cabeça para mim.
Seus olhos cintilavam. Vê-lo ali sentado, com o rosto machucado
e o pescoço sangrando, me fez indagar do que eu era capaz.
— Você não consegue controlar, não é? Suas emoções —
apontou ele, quase com um sorriso no rosto, como se eu houvesse
acabado de provar que sua teoria estava certa. E, de certo modo,
fizera mesmo isso.
— Bronx, eu não quis te machucar — disse, aproximando-me
lentamente, com medo de que Crystal pedisse para que me
afastasse outra vez.
— Não. Mas isso não a impediu — seus olhos estavam
preenchidos de emoção. Era possível sentir suas ideias fluindo
internamente. — É isso que estou dizendo. É sobre isso que Max
me alertou.
Ajoelhei ao seu lado, vendo Crystal desviar o olhar com raiva.
Eu machucara seu melhor amigo, e tinha certeza que, mais do que
ele, era ela quem nunca esqueceria isso.
— Não vai acontecer de novo.
Abaixei a cabeça. Aquilo era uma confusão. Eu não estava
pensando com clareza. Todo movimento que fazia era embaçado
meio às lembranças e sentimentos. Nunca quis machucar Bronx,
mas naquele momento, não o vi como quem me acompanhou esse
tempo todo. Para mim era somente alguém que teimava em me
contrariar, e eu não admitiria isso.
— Ariana — ele fez uma pausa, olhando-me dentro dos olhos.
— Você não foi a única a perdê-lo.
Inspirei o ar, segurando-o o máximo que pude.
— Não parece sentir falta dele — comentei, sem saber ao certo
por que sempre voltávamos para esse assunto.
Bronx sorriu, não de felicidade.
— Por que não é a primeira vez que aquele idiota me abandona.
Eu meio que aprendi a suportar isso.
— O problema é que ele não te abandonou — objetei.
O sorriso de Bronx se esvaiu lentamente. Senti-me mal por ele.
Queria abraçá-lo, mas permaneci imóvel. Do lado de fora do
hotel, a chuva começou a passar. Em poucas horas ligaríamos a
televisão para saber todo o estrago que causara. Crystal levantou,
pairando acima de nós.
— Vão para a cama. Deixem que arrumo essa bagunça. Vamos
passar a noite aqui, OK? Uma pequena terapia em grupo.
Ninguém sai ou entra desse quarto até estarmos entendidos. Se
queremos que isso funcione, está na hora de estabelecermos
algumas regras.
Nada era como antes. Nem mesmo a fina chuva que caía
possuía o mesmo cheiro. O cheiro de quando eu estava em casa.
De algo normal. Agora parecia apenas água. Uma água que caía
do céu. Não enxergava mais sua beleza. Algo que antes, para
mim, era um dos mais belos espetáculos da natureza,
transformara-se em simples mudanças temporais.
Olhei para Bronx, deitado no chão depois da conversa da noite
anterior. Um dos braços sob a cabeça e o outro estirado ao lado do
corpo. Passamos a noite toda discutindo e não chegamos a um
consenso. Isso por que não foi uma discussão justa. Ambos não
queriam me ouvir, achando que suas conclusões precipitadas a
meu respeito que estavam certas. Para ser sincera, culpava Max
por isso. Se não estivesse morto, certamente teria levado um tapa.
Como podia ter acreditado que contar para Bronx, o Forti da Luz,
que meu lado obscuro se manifestaria em breve, seria uma boa
ideia?
De qualquer modo, isso não importava agora, por que Bronx
estava determinado a arrancar a verdade de mim, ainda que essa
fosse mentira. Ele não queria minha resposta. Queria ouvir o que
estava esperando. Mas eu não arriscaria minha liberdade para
satisfazer suas ideias. Por que eu sabia,sim, sabia o que fariam
comigo caso dissesse: sim, sinto algo mudando dentro de mim.
Posso sentir meus ossos estremecerem cada vez que tenho um
pensamento distorcido ou um ideal invertido.
As regras foram estabelecidas e nenhum de nós fora poupado
— muito menos eu. Estávamos proibidos de mencionar qualquer
acontecimento relacionado ao passado. Nomes foram banidos e
lembranças deveriam ser erradicadas, ainda que apenas de nossas
bocas. Se havia entendido algo na noite anterior era que, se você
deixa suas emoções te guiarem, pode acabar machucando a si
mesmo, ou outras pessoas.
Nosso foco deveria ser para com a missão. Nossos pensamentos
deveriam estar ligados a isso, e apenas isso. Sem distrações. Seria
um longo caminho pela frente, e mais uma vez, me questionei
quantos de nós chegaríamos ao final. Talvez houvesse um dia
distante no qual o nome de Bronx também fosse banido, ou o de
Crystal, ou mesmo o meu. Um dia em que toda a responsabilidade
se encontraria nos ombros de apenas uma pessoa. Mas eu
duvidava que qualquer ser humano fosse capaz de suportar
sozinho uma carga dessas.
— Não podemos brigar — disse Crystal, assumindo seu posto
de líder das decisões. — Se tivermos algum problema com o
outro, não será por meio da violência que o resolveremos. Somos
inteligentes, e com isso assumo que sabem o quanto uma palavra
pode ser mais forte que uma ação. Não existe passado, não existe
futuro. Somos almas condenadas ao nosso presente. Cada um
sabe o peso do fardo que carrega. E, apesar de tudo, esse não pode
ser divido.
Ao final da noite, éramos três figuras paradas no centro de um
quarto escuro. Três figuras que possuíam apenas nomes e ideais.
Capítulo 51
Ariana
— Vamos, seus preguiçosos!— gritou Crystal, abrindo as
cortinas.
Toda a escuridão do quarto foi sugada para debaixo das camas,
e o que restou para nós foi um ambiente tão iluminado que mal
conseguíamos abrir os olhos. Infelizmente, era outro dia.
Bronx resmungou no chão ao meu lado, afundando nos lençóis.
— Deixe de ser ridícula. Posso ser obrigado a fazer muitas
coisas, mas não a acordar antes dos galos. Feche essa cortina e
volte para sua cama, Crystal — sua voz saiu abafada devido à
cabeça pressionada contra o travesseiro.
Puxei as cobertas, cobrindo meu rosto, desejando que Crystal
sumisse quando não estivesse mais à vista.
— Se contente em ficar quieto e levantar. Vamos, não temos o
dia inteiro — ela agarrou nossas cobertas, jogando-as no chão.
— É claro que temos! — exclamou Bronx. —A menos que
ache que devemos fazer compras. Por que, nesse caso, penso que
devíamos ter acordado cinco horas mais cedo para você ter tempo
de visitar todas as lojas.
Ele se levantou da cama improvisada, sentando na beirada do
colchão, enquanto esticava o corpo dolorido depois da noite de
sono. Era a primeira vez que via Bronx sem camisa, e não
conseguia afastar o olhar. A luz que entrava pela janela refletia
em seu peito nu, marcando o tórax definido e os braços fortes. Ele
bocejou, passando a mão no cabelo bagunçado. Virei-me
rapidamente para encarar a parede.
— Ei, Bela Adormecida —disse ele, puxando meu pé. — O
horário se aplica a você também.
Rolei na cama, encontrando seus olhos brilhantes e um sorriso
maroto ao encará-lo. Crystal mal esperou que acordássemos e
veio até nós, levemente ansiosa.
— Precisamos começar a busca novamente — disse, em tom de
advertência.
— Não podemos ter um dia de folga sequer? — reclamei.
— Nós tivemos cinco, por falta de um — respondeu ela, como
se eu estivesse sendo mal agradecida.
Nada como cinco dias de férias antes de lutar pela minha vida
outra vez, pensei. Joguei o travesseiro para longe e levantei da
cama em um pulo.
— Preciso de um banho — falei, dirigindo-me ao cômodo que
fazia ligação com meu quarto, desejando me afastar o máximo
possível de Crystal e seu novo caráter ditatorial.
Na noite anterior, pouco antes de dormirmos, ouvimos
encanadores chegando. Provavelmente acharam que havia um
cano estourado no quarto ao lado. Quando já era quase
madrugada, ouvi-os indo embora, com o serviço completo, seja lá
o que tenham feito — sugado toda a água do quarto, consertado a
janela quebrada ou jogado fora os móveis queimados. A verdade é
que não me importava. Quem um dia dormira lá, já não mais
existia.
Saí do banheiro e tomei o café que Crystal pedira. Estávamos
em silêncio e eu tinha certeza de que possuíam tanta vontade
quanto eu de começar as buscas. Entretanto, não tínhamos
escolha. Amaldiçoei mentalmente todas as criaturas vivas cujo
nome consegui me lembrar. Terminamos o café e abrimos o mapa
em cima da mesa.O jogo recomeçara.
A extensão do papel diferia daquilo que me recordava. Não era
mais a figura da floresta que rodeava a casa, mas sim de casas e
prédios que circundavam o hotel no qual estávamos hospedados.
Como aquilo era possível? De que forma, naquele pequeno porão,
esquecido pelo tempo e envelhecido pelas décadas, poderia haver
o mapa do local exato no qual viríamos a nos hospedar?
— Isso é muito estranho — balbuciei.
Crystal levantou os olhos para mim, depois olhou para Bronx.
— Não tivemos tempo para te explicar, Ari, mas esse mapa não
é um mapa comum. Existe um tipo de magia que o rege, fazendo
com que ele tome a forma dos contornos do local onde reside em
determinado momento. Agora está mostrando tudo o que nos
cerca, com altíssimo detalhamento. Não possui apenas os
desenhos do relevo e vegetação, mas também casas, prédios,
hotéis e qualquer comércio ao redor.
Encarei o pedaço de papel, que à primeira vista parecia tão
ordinário quanto qualquer outro.
— Existe também outro tipo de magia sobre ele — continuou
Crystal. — Mas ainda não a compreendemos totalmente. Mesmo
depois de ler o manual.
— Isso tem um manual? — perguntei, desviando o olhar da
folha.
Ela anuiu.
— Podemos localizar qualquer ser sobrenatural, desde que
reconheçamos a energia que ele emite. Você precisa se concentrar
naquilo que quer achar, por que é muito confuso e complexo. Sem
falar na dificuldade em controlar sua atenção quando existem
tantas outras espécies emitindo seus sinais, cada qual com sua
própria vibração.
— Cada espécie? Quantos tipos de vibrações diferentes você
conseguiu captar?
— Mais de quinhentas, mas não todas. Por isso é algo
complexo. Ainda não sei ao certo como localizar uma Invocadora.
Imagino que precisarei de muita prática.
Bronx deu um passo à frente, colocando uma mão sobre mesa.
Vestia uma camisa azul e parecia mais sério que de costume,
mesmo com as mangas arregaçadas até os cotovelos.
— Não podemos perder a esperança — disse ele, com ar solene.
— Pode até ser um tiro no escuro. Pode ser que passemos noites
em claro, tentando localizar algo para no fim toparmos com nada.
Mas temos que tentar. É nossa única chance.
Olhei para o mapa, ponderando suas palavras.
— Como vamos descobrir, exatamente, qual é a vibração de
uma Invocadora? — perguntei.
Crystal riu.
— Essa é a parte complexa.
No primeiro dia, passamos quase seis horas estudando o mapa,
tentando entender como funcionava e como controlá-lo. Crystal
não estava sendo pessimista ao descrevê-lo como algo
complicado. Era uma das coisas mais desgastantes que já fizera
em toda minha vida. Não por que me sentia cansada fisicamente,
mas por que não podíamos fazer nada além de repetir
incansavelmente o mesmo movimento. Focar em uma imagem
mental — no caso, de uma Invocadora, tentando fazer com que
sua essência fosse algo concreto, já que não a conhecíamos
fisicamente —, olhar para o mapa e nos concentrar, sentindo cada
pequeno ponto emitir sua vibração.
Mas mesmo depois de horas, continuávamos na estaca zero.
Como reconhecer a vibração de uma Invocadora que nunca
vimos?
Passei a noite em claro, tentando decifrar, com os olhos mal
abertos e as pálpebras pesando, qual era o segredo daquele
estranho pedaço de papel. Já era de se esperar que no dia seguinte
estivesse cansada. Porém, mesmo caindo de sono, levantei antes
dos outros, ansiosa por continuar o enigma do mapa mágico.
— Vamos, Ariana. Concentre-se — disse Crystal, forçando a
voz para não demonstrar a impaciência visível em seus olhos. Ela
andava de um lado para o outro do quarto, enquanto eu tentava,
inutilmente, caçar algo que não queria ser encontrado. Seus dedos
tamborilando em qualquer superfície capaz de gerar som criavam
uma melodia irritante que em nada me ajudava. — Não quero
admitir isso, mas talvez seja necessário para lhe dar algum tipo de
confiança — disse ela, olhando-me com certa admiração. — Sabe
que é a melhor de nós duas. Se existe alguém capaz de decifrar
esse mapa, é você.
Agradeci mentalmente pelas palavras de encorajamento, apesar
de saber que o sentimento que existia por trás não era aquele que
aparentava. Crystal nunca falara em aberto comigo, mas eu sabia
que alimentava certa inveja de mim, em alguns aspectos. Fosse
talvez pela facilidade com que eu aprendia coisas novas —
geralmente relacionadas a nós —, ou talvez por ter sido eu quem
descobriu sobre nossos poderes e suas variações. Mas, fosse o que
fosse, eu sabia que aquela inveja existia. Porém, também sabia
não valer a pena dar atenção a algo assim. Crystal era, no final das
contas, uma boa pessoa, e nem mesmo o melhor dos seres
humanos é isento de sentimentos.
— Você deve estar exausta — disse Bronx, passando os braços
por minha cintura e me ajudando a sentar após o segundo longo
dia de esforço. Sentia todo meu corpo doer, apesar de não ter feito
nenhum exercício. Toda a força necessária para o que tentava
alcançar vinha de minha mente. — Acho que podemos fazer uma
pausa. Não acha, Crystal? —perguntou ele, olhando para a figura
que me encarou uma última vez antes de dar de ombros e sair do
quarto.
Sentia o cômodo girar. A cama, as paredes, a porta. Tudo
parecia distorcido e pertencente à outra realidade. As luzes eram
ofuscantes e o escuro aconchegante. Precisava de um banho, mas
meus pés se recusavam a obedecer. E, se o faziam, era para darem
dois passos antes de me deixarem cair. Sabia que precisávamos
continuar as buscas, que tínhamos de encontrar as Invocadoras
restantes. Contudo, meu corpo começava a demonstrar cansaço
em menos de dois dias de volta à ativa. Como Crystal esperava
que eu encontrasse uma resposta sem sua ajuda?
— Não — disse Bronx, forçando-me a sentar novamente
quando tentei me levantar. — Não vê que precisa descansar?
Balancei a cabeça, já sentindo o esforço das pálpebras para
manterem-se abertas.
— Não temos tempo para isso. Crystal... — sentia o cansaço
ganhar peso em meus ombros. — ela foi dormir, mas logo... logo
estará aqui. E então continuaremos de onde deixamos — minha
cabeça agora parecia tão leve quanto uma nuvem, pairando no céu
gelado da manhã. — Que cheiro... isso é pinho...
Não sabia ao certo se estava sonhando ou não, mas senti braços
me envolverem e em poucos segundos o travesseiro macio com o
qual dormia todas as noites veio de encontro ao meu rosto. Outros
braços colocaram a coberta sobre mim, e pude ouvir a respiração
constante de quem estava lá, me observando. Porém, já perdera a
noção da realidade. Estava entregue ao mundo dos sonhos antes
mesmo dele deixar o quarto.
Capítulo 52
Ariana
Aquela manhã fora conturbada, e tudo se devia a ela, a esguia
figura que batera à nossa porta pouco antes do almoço. Seus
cabelos eram de um tom claro, mais claro que sua tez, descendo
até o meio de suas costas em um liso perfeito. Era curvilínea nos
lugares certos, e possuía lábios cheios e vermelhos, como as
amoras maduras ao caírem das árvores. Seus cílios eram longos,
cobertos com uma espessa camada preta que contornava seus
olhos azuis-piscina. Se fosse eu ao abrir a porta, certamente me
perguntaria o que uma figura exótica como aquela fazia ao bater
em meu quarto, onde estávamos reunidos. Mas não fui eu a fazer
isso, e sim Bronx. A expressão em seu rosto foi o que despertou
nossa atenção para algo novo. Estava completamente paralisado,
observando-a com os olhos arregalados. Pensei, primeiramente,
que era apenas a reação de um rapaz ao ver uma moça bonita.
Mas então, percebi que deveria ser algo mais.
A figura de cabelos brancos sorriu, mostrando dentes perfeitos
em meio aos lábios coloridos, e Bronx foi tomado por um êxtase
visível.
— Isabel? — ele mal conseguiu pronunciar as palavras. Os nós
de sua mão estavam brancos, tamanha era a força com que
segurava o batente.
A estranha figura fechou o sorriso, mantendo a expressão
delicada, porém, ainda assim, forte. Minha mente fazia mais
perguntas do que eu conseguia responder. Quem era aquela
garota? Por que estava batendo em nossa porta? Bronx a
conhecia? Se sim, como ela conseguira nosso endereço para
encontrá-lo?
— Oi, Bronx — disse ela, com a voz doce, sorrindo para ele
novamente.
Então ela sabe seu nome, pensei.
Bronx ficou mudo, como se um fantasma houvesse se projetado
à sua frente. Seu peito subia e descia rapidamente, enquanto a
pequena e esguia figura deliciava-se com a visão dele abalado,
seus olhos azuis o fitando com imperiosidade.
— O que você... — ele não conseguiu terminar a frase. Então
sorriu. Um sorriso que eu não via há muito tempo. Um sorriso
completo, preenchido de alegria.
Isabel balançou sobre os calcanhares, mordendo o lábio
inferior.
— Eu soube que você voltou. Precisava te ver — explicou ela,
torcendo a boca.
Crystal olhou para mim, arqueando uma das sobrancelhas,
como se perguntasse “quem é essa?”. Balancei a cabeça.
— Eu pensei que nunca mais a veria — disse Bronx, confuso.
— Por que está aqui? Quer dizer, como sabia que eu estava aqui?
— o torpor da chegada da garota parecia ter deixado seu corpo, e
ele a observava com cautela agora, como se houvesse perigo em
sua presença.
Eu continuava a observar a cena, sem entender nada. Esperava
que ele a convidasse para entrar, que explicasse a situação.
Parecia haver uma antiga história ali, porém, seria impossível ter
certeza sem que um dos dois confirmasse. Antes que eu pudesse
dizer qualquer coisa, Isabel se pronunciou:
— Talvez fosse mais fácil se me convidasse para entrar? — ela
o questionou, inclinando a cabeça num movimento sutil.
— É claro, desculpe-me —Bronx afastou-se da porta, dando
espaço para que ela passasse.
Isabel entrou no quarto, caminhando lentamente. Seus pés
tocavam o chão com leveza, e todos os seus movimentos eram
executados com graça. Parecia uma delicada flor em meio à um
mar de espinhos. Bronx seguia a bela figura de perto, como se
acompanhasse num show de mágica itinerante. Seus olhos
brilhavam ao fitá-la, e pareciam queimar ao cruzarem com os
dela. Os olhos de uma pessoa apaixonada.
— Perdoem-me.Sou Isabel, uma amiga de Bronx — disse ela,
aproximando-se.—Não pretendo perturbá-las. É que eu,
realmente, precisava vê-lo.
Coloquei o mapa de lado, me voltando para a inesperada visita.
— Posso dizer que Bronx ficou bem chocado ao se deparar com
você — comentei, forçando um sorriso. — Mas penso que
desconheço a razão.
Ela deu um risinho sem graça, focando o chão.
— Digamos que Bronx e eu tivemos... algo —olhou com pesar
para o rapaz que a admirava a alguns passos de distância. Bronx
desviou o olhar, esfregando a sola do sapato no chão,
desconfortável.
— Mas por que está aqui? — perguntou ele. — E como sabia
que eu estava vivo? — a olhava com um misto de confusão e
fascínio. — Isabel, você foi ao meu enterro. Viu aquele caixão ser
posto a mais palmos abaixo da terra do que qualquer criatura
gostaria de estar. Como soube que eu estava vivo?
Foi a vez dela de desviar o olhar, focando os sapatos por alguns
segundos. Quando voltou a falar, sua voz estava tão baixa que
precisamos nos esforçar para entender.
— Você nunca soube toda a verdade sobre mim, por que nunca
pude lhe contar — admitiu. — Mas agora posso, Bronx. E penso
que foi em grande parte para isso que vim.
Ele não respondeu, apenas a observou com curiosidade, seus
olhos parecendo estudar cada pedaço do corpo da jovem à sua
frente. Os finos pulsos. Os cabelos sedosos. A curvatura de seus
ombros e a maneira como seu maxilar afinava ao sorrir — algo
que continuava fazendo, sem demonstrar cansaço.
Imaginei Bronx tomando-a em seus braços, passando os longos
dedos pelos seus cabelos brancos e lisos. Os corpos dos dois
unidos em sintonia. Sua mão deslizando pela cintura dela,
enquanto sua cabeça pendia para trás. E, então, tentei pensar em
como se sentiam agora, parados frente a frente, com as memórias
a lhes tomarem todos os pensamentos e os sentimentos aflorando
mais uma vez, após uma longa hibernação.
— Nunca me contou toda a verdade? — questionou ele,
parecendo cada vez mais confuso.
Ela franziu a boca, parando de sorrir por um tempo.
— Você não teria acreditado em mim na época. E, ainda que eu
soubesse que o teria feito, nunca lhe contaria de um jeito ou de
outro. Guardei este segredo para sua própria segurança —fez uma
pausa, olhando-o nos olhos.
Esperei que ela continuasse. Já sentia o formigamento da
curiosidade a tomar conta da ponta de meus pés. Contudo, o
esperado não se concretizou, por que antes de Isabel continuar
aquilo que parecia mais um pedido de desculpas do que a
revelação de um segredo, Bronx pediu, com muita educação, para
Crystal e eu deixarmos o quarto, e respeitamos sua vontade.
Pensei que Crystal fosse pegar o mapa, puxar-me pela mão até
o outro cômodo e pedir para que continuasse. Ao contrário disso,
seguimos silenciosamente até o hall de entrada do hotel, que
parecia mais movimentado agora. Fiquei observando enquanto
uma mulher de cabelos escuros e pele morena entrava no saguão,
segurando com dificuldades suas sacolas de compras, ao mesmo
tempo em que tentava conter o “diabinho” em forma de cachorro
que trazia preso em uma coleira. O animal corria de um lado para
o outro, cheirando as pessoas enquanto abanava o rabo, feliz por
ter dado uma volta com sua dona. Ela acenou para o homem na
portaria e entrou no elevador, enquanto o animal posicionava-se
ao seu lado e as portas eram fechadas. Crystal suspirou, apoiando
os cotovelos nos apoios almofadados da cadeira de estofado
vermelha, colocando o rosto magro entre as mãos.
O hall era relativamente grande. As paredes pintadas de azul
claro davam ao lugar um aspecto ameno. As portas de entrada
eram límpidos pedaços de vidro, ambos com o símbolo do hotel.
Na frente delas, estava a recepção, um pequeno espaço com uma
mesa de madeira em forma de meia lua, onde um homem e uma
mulher atendiam as pessoas que entravam e saíam do lugar.
Algumas plantas, cujo nome desconhecia, se espalhavam pelo
ambiente, colorindo pontos estratégicos: em frente a uma parede
na qual a pintura se lascara, ao lado da porta onde o piso continha
uma mancha,em cima do tapete onde faltava um pedaço da peça.
Crystal e eu ficamos sentadas ali por um bom tempo. Tempo
demais, em minha opinião. Ora balançávamos os pés, impacientes
e entediadas. Ora trocávamos algumas palavras, comentando
sobre alguma roupa ou cabelo que achávamos estranhos. E
existiam momentos em que ficávamos em silêncio, apenas
observando o movimento à nossa frente, as pessoas que iam e
vinham. Já estava cansada de estudar os rostos que transitavam no
local quando algo chamou minha atenção.
Levantei o olhar para um jovem que cruzava o curto espaço da
recepção. Andava rapidamente e possuía os olhos vidrados, como
se não enxergasse o mundo ao seu redor. Ainda assim, seguia
com segurança seu caminho, um pé depois do outro.
O hall agora estava vazio. Era começo de tarde. Acompanhei
sua estranha figura, até que essa sumiu ao virar em um corredor.
Comprimi os olhos para enxergar o que estava escrito na porta
que o garoto empurrara — APENAS AUTORIZADOS. Não sei o
que me fez tomar tal decisão, mas me levantei e segui o caminho
dele, curiosa sobre o que haveria depois da porta. Não prestei
muita atenção ao que estava fazendo no momento. Apenas
obedeci ao pequeno comando em minha cabeça. Siga-o. Siga-o e
descubra.
Contornei com agilidade a mesa da recepção, pedindo
mentalmente para que não notassem a adolescente que estava
prestes a entrar em uma área restrita do prédio. Por favor. Por
favor continuem focados em seus papéis. Mas aquilo era tolice.
Eu avançava com rapidez e meu destino era visível a qualquer
um. Podia sentir o olhar do recepcionista a me acompanhar,
mesmo não olhando para ele, sabendo que, no instante em que
passasse por aquela porta, mandaria alguém atrás de mim.
Pensei em voltar. O que tinha de tão importante naquele garoto,
afinal? Por que sua presença me importava? Mas aquela voz
deixava claro que não existiam outras opções. Em frente. Apenas
em frente, repetia ela.
Uma pequena distração seria o suficiente para desviar os olhos
atentos. Bastou um pequeno meneio de minha mão e as folhas
voaram ao chão. Ouvi a risada de Crystal a alguns metros de mim,
mas não me virei para olhá-la, e ela também não sentiu
curiosidade em me seguir. Empurrei a porta com força, ouvindo
os gritos do casal, que agora corria de um lado para o outro atrás
das folhas que se espalhavam pelo chão.
No momento em que soltei a porta, ainda podia ouvir as vozes
abafadas vindas do hall. Porém, quando a fechadura encontrou o
batente, tudo se silenciou tão rápido que senti um baque mudo em
meu ouvido. Aquilo era muito estranho. Não existiam motivos
para aquela porta ter algum tipo de vedação. Coloquei a mão
sobre a maçaneta fria, sentindo um arrepio percorrer meu corpo.
A porta não queria abrir. Continuei com a mão sobre o ferro,
sentindo uma estranheza no ar. Forcei o trinco mais uma vez.
Nada. O silêncio era perturbador. Sentia-me como uma presa a ser
observada por seu caçador, temendo o mínimo ruído e a morte
iminente. Mas já havia me desligado de tal ideia. Qualquer morte
era iminente. Estivesse a pessoa sentada na lareira de sua casa ou
na beira de um abismo. As mãos gélidas chegariam com a mesma
velocidade, por que essas desconheciam o medo.
Forcei-me a virar, vendo que não conseguiria voltar pelo
mesmo local pelo qual entrara. Sentia que algo estranho me
cercava. Entretanto, não consegui identificar nada.
Vamos, ande menina. Ficará parada aí até quando? perguntou
a voz, então me pus a andar.
Algo estava errado. Aquele não era o corredor do hotel.
Tecnicamente era, mas não parecia o mesmo. As paredes eram
revestidas de um papel vermelho escuro, com desenhos intricados
de flores e padrões circulares. Pequenas luzes alaranjadas estavam
instaladas na parede, sobre ferros ornamentados que as
sustentavam, iluminando menos do que um metro ao seu redor.
Caminhava lentamente, pé ante pé, emitindo o mínimo de ruído
possível. Tinha uma má impressão sobre aquele lugar. Por que o
hotel teria um corredor tão mal iluminado e colorido de uma cor
que não somente não combinava com o resto da decoração, como
também deixava o ambiente denso? Tentei ignorar aquele
pensamento. Não deveria existir nada de errado com o lugar. Era,
provavelmente, uma sensação existente apenas em minha cabeça.
Mas não estava gostando daquilo.
De repente, uma movimentação do ar às minhas costas me
chamou a atenção. Virei o corpo rapidamente, tentando ver na
meia luz quem quer que estivesse atrás de mim.
— Crystal — chamei-a, imaginando que talvez houvesse
decidido me seguir. Mas nenhum som foi emitido de volta, e tudo
que ouvi foi o eco de minha própria voz, limpo e grave, soando
em minha direção.
Olhei para a frente do corredor novamente. Deve ter sido o
vento, pensei, mesmo sabendo que não havia passagem de ar
naquele lugar. Notei, então, a única e solitária porta naquela
parede, a alguns metros de mim. Não me lembrava de tê-la visto
antes. Mas ela teria de estar ali, certo? Não surgiria do nada. A
sensação de desconforto voltou. A porta era decorada com
pequenos entalhes que se repetiam, e parecia não combinar com o
resto da decoração do hotel, assim como a parede. Na verdade,
todo aquele corredor parecia fazer parte de uma ala única, com
seus desenhos e repetições.
Aproximei-me lentamente da porta, encostando a cabeça na
madeira. Podia ouvir uma conversa acontecendo por trás dela,
vozes tendo uma discussão acalorada. O corredor permanecia em
silêncio. Apoiei uma das mãos no batente e debrucei-me para
ouvir melhor.
— Mas o que ele estava fazendo lá, afinal? Pretendia enfrentar-
me? — bufou uma voz masculina.
— Certamente, senhor. Mas creio que o rapaz era tolo.
Qualquer um que seja digno de seu posto aqui sabe que é
impossível vencê-lo, mesmo em uma discussão — respondeu
outra voz, também masculina.
Fez-se silêncio por alguns instantes. O primeiro homem voltou
a falar:
— Pode me dar sua palavra de que o serviço foi bem feito?
Ninguém tem ideia do fim que levou o moleque?
— Sim, senhor. Ninguém.
— Ótimo. Cuide para que continue assim. Ninguém pode
descobrir sobre isso.
— Não descobrirão, senhor. Posso assegurar que meus homens
fizeram o trabalho direito.
— É bom mesmo. A última coisa de que preciso é que
encontrem o corpo dele.
Afastei-me da porta, o coração martelando no peito. Onde eu
estava? Aquele era o corredor do hotel, mas ao mesmo tempo não
era. Precisava sair de lá. Virei-me na direção pela qual viera e
apressei o passo, o carpete abafando o som sob meus pés. Minha
cabeça estava prestes a explodir. Mais essa. Terei de lidar com
um assassinato bem debaixo de meu nariz. Por que fui até
lá?Droga, Ariana. Você deveria ter ficado no hall, deixado
aquele garoto seguir seu caminho e ignorado o chamado mudo de
sua mente. Aquele garoto. Onde se metera, no fim das contas?
O maldito corredor não parecia chegar a lugar algum. Tinha
certeza de que já havia percorrido toda a distância pela qual viera.
Depois de alguns segundos, estava praticamente correndo,
tentando me afastar o mais rápido daquela porta. E se um dos
homens me encontrasse ali? E se soubessem que eu os escutara?
O que fariam comigo? Não queria ter o mesmo destino do pobre
rapaz sobre o qual falavam.
Foi quando a primeira lâmpada se apagou. Parei abruptamente.
Uma fenda escura agora se encontrava no lugar onde a lâmpada
antes iluminava a parede. Era coincidência. Só podia ser. Eu
estava com medo e minha mente inventando coisas. Mesmo
assim, recuei um passo.
Eis que as luzes começaram a apagar, uma a uma, vindo em
minha direção. Virei para o outro lado e saí correndo. Não havia
mais razões para tentar me manter em silêncio. Algo estava
acontecendo. Tinha certeza de que o hotel não desligaria as
lâmpadas aleatoriamente.Olhei para trás. Não havia ninguém.
Sentia o suor brotando em minha testa conforme tentava correr
mais rápido, forçando meus pés a me lançarem cada vez mais
para frente, enquanto as luzes continuavam a apagar atrás de mim.
A porta não chegava. Agora tinha certeza que já era para tê-la
passado.
De repente, tão rápido como começaram a apagar, as luzes
voltaram a acender. Parei mais uma vez, insegura, mas curiosa
sobre o que estava acontecendo. O processo era lento. Não
acendiam já de primeira, como se alguém ligasse um interruptor.
Era mais como acender um lampião, a luz aumentando
gradativamente conforme alguém desejava. Eu sabia que deveria
correr, aproveitar aquela chance para sair o mais rápido possível
do local. Mas não consegui. Fiquei observando as chamas
tremeluzirem —percebi, enfim, que não se tratavam de lâmpadas,
mas sim lamparinas — enquanto, uma a uma,se acendiam, as
cores alaranjadas tornando-se cada vez mais fortes. O breu foi se
iluminando e meu medo se dissipando. Tudo ficaria bem. Tudo...
Não tinha certeza se realmente vira aquilo. Pisquei algumas
vezes, comprimindo os olhos para enxergar melhor. Outra
lâmpada se acendeu e tive certeza. Alguém estava no fim do
corredor —se é que aquilo possuía um fim. Não consegui
identificar se era homem ou mulher, pois era apenas uma sombra,
misturada a tantas outras, onde a luz ainda não havia chegado.
Mas ela esperava. Ah, esperava. Parada, paciente, enquanto a
iluminação se movia em sua direção. Um frio percorreu minha
espinha. Mesmo sem ver seus olhos, sabia que olhava fixamente
para mim. Corra, gritou minha mente. Corra, agora.
Mas não consegui me mover, não até a última lâmpada começar
a acender. Aquela que estava bem à frente da figura que me
observava. A chama tremeluziu e a luz começou a lamber o chão,
encaminhando-se para os pés da criatura. Engoli em seco. Não
existiam pés. Não existia nada. A figura era simples e
completamente feita das sombras que a rodeavam.
É agora. Chegou o momento. Corra. Corra, menina burra.
Com o som de mil janelas se quebrando, as lâmpadas
explodiram todas ao mesmo momento, mergulhando todo o
corredor em completa escuridão. Gritei, jogando-me ao chão e
cobrindo a cabeça com as mãos. Pequenos pedaços de vidro
cortaram minha pele. Podia ouvir meu coração ressoar em meus
ouvidos. Eu vou morrer. Eu vou morrer.
Mantive os olhos fechados, ainda que não conseguisse enxergar
nada mesmo que quisesse. Se algo fosse me acertar naquela hora,
eu esperava que o fizesse rápido. Vamos, eu repetia, não é certo
deixar alguém esperando. Mas nada aconteceu. O corredor era
um completo silêncio. Ouvi passos se aproximando. E então mais
perto, mais perto... algo bateu em mim. Levantei com rapidez,
cambaleando para o lado, contendo um grito. A velha me olhou
com reprovação, torcendo a boca enquanto enfiava uma toalha
dentro da máquina.
Não conseguia pensar direito. Estava no meio de uma
lavanderia pintada de branco e azul, cercada de pessoas que
trajavam uniformes. Uma mulher de cabelos castanhos passou por
mim, lançando-me um sorriso afável, enquanto arrastava uma
pequena cesta de toalhas de mesa.
Como eu havia ido parar ali? O que estava acontecendo? Onde
estava o corredor de cor estranha? Ou mesmo a figura negra? Não
havia estilhaços de vidro pelo chão, mas minhas mãos ainda
possuíam os cortes. Não havia sido um sonho.
Senti outro empurrão em minhas costas.
— Oh, me desculpe, senhorita. Eu não a vi— disse a
funcionária do hotel, empurrando um carrinho de limpeza e
seguindo seu caminho.
Olhei ao redor. As paredes eram da mesma cor que as do hall, e
todo o salão era iluminado por luzes fluorescentes brancas.
Máquinas de lavar se remexiam aqui e acolá, e por toda a
extensão do local havia homens e mulheres passando, secando e
lavando: panos, toalhas e lençóis. Aquilo não fazia sentido.
Levantei as mãos novamente, agora tremendo, olhando para os
pequenos pontos que começavam a formar casquinhas. Aquilo
era real. Contudo, onde fora parar?
— Ariana — segui a voz de Bronx, sentindo minha visão
embaçar.
Isabel, Crystal e ele corriam em minha direção. Os rostos
preocupados.
— Onde você estava? Estamos te procurando há horas — disse
ele, parando à minha frente.
Eu não estava louca, disso tinha certeza. Então, por que havia
visto aquilo? A figura de sombras não podia ser verdadeira.
Entretanto, o medo que me causara fora tão sólido quanto meu
próprio corpo. Isso era inegável.
— Ariana — gritou Bronx, chacoalhando-me pelos braços.
— O quê?— ralhei em resposta.
— Faz três horas que você sumiu. Por que está aqui? — sua
respiração era acelerada, e seu olhar, penetrante.
Balancei a cabeça.
— Eu não tenho ideia de como cheguei aqui.
Uma mulher passou por nós, lançando-nos um olhar feio
enquanto carregava diversas toalhas encharcadas em um carrinho.
Atrás dela vinha outra, um pouco mais corpulenta que a anterior,
usando uma daquelas toucas pretas na cabeça. Ela parou quando
chegou ao nosso lado, levando ambas as mãos até o quadril
redondo.
— Crianças, não podem ficar aqui — disse em tom calmo,
porém repreensivo.
— Desculpe senhora, estávamos procurando toalhas — Isabel
se aprontou em responder, puxando Bronx e eu, enquanto Crystal
nos seguia.
Capítulo 53
Ariana
Minhas mãos tremiam ao lado do corpo. Eu encarava o teto
com tamanha intensidade que chegaram a se perguntar se eu
estava vendo coisas. Sei disso por que os ouvi. Bronx ficou
andando de um lado para o outro do quarto, parando, observando-
me por alguns segundos, e voltando a andar. Crystal estava
sentada na outra cama, e nem de longe era mais sutil que ele,
fitando-me sem sequer fazer pausas.As cortinas estavam abertas,
como eu pedira para que deixassem. Mas nem mesmo isso era
capaz de me acalmar. Continuava vendo a escura figura todas as
vezes em que fechava os olhos.
— Ela vai ficar bem, só está confusa — disse Isabel. Vi-a na
visão periférica, segurando o braço de Bronx, forçando-o a parar.
— Ariana só precisa falar comigo. Sei exatamente o que
aconteceu. Posso até dizer que foi traumatizante, mas não posso
fingir que não foi algo bom.
Ele franziu o cenho, irritado.
— Algo bom? Olhe para ela. Nunca a vi tão assustada. Como
pode afirmar que foi uma boa experiência?
Isabel desviou o olhar, não demonstrando mágoa diante do
comentário. Aproximou-se de minha cama da mesma maneira que
fazia tudo, com gestos lentos e delicados. Bronx pareceu se
acalmar, apesar da expressão ainda séria. Parou de andar e sentou
ao lado de Crystal, na beirada da cama.
— Ariana, preciso que me ouça, certo? Eu sei que está
pensando que delirou ou coisa do tipo, mas não foi bem isso que
ocorreu — seus olhos azuis transmitiam confiança. — Você já
nos contou o que viu, então não precisa repetir.
Eu contara toda a história, frisando a estranha criatura, ao
chegarmos ao quarto. Os três haviam me ouvido com atenção,
balançando as cabeças e arregalando os olhos. Crystal e Bronx tão
perturbados quanto eu, Isabel, passiva, como se minhas palavras
não carregassem temor algum, como se aquilo fosse algo que
estivesse acostumada a ouvir. Perguntei-me o porquê de sua
reação.
— Penso que o que você vivenciou tenha sido nada menos que
um resquício — disse ela, olhando-me nos olhos. Procurava em
minha expressão os sinais de que eu estava entendo. — Como já
sabe, possui muitos dons, e grande parte deles ainda desconhece.
A capacidade de ver certos fenômenos é apenas mais um.
Resquícios, assim como o nome já diz, são sombras do passado,
momentos que se ligaram a algum lugar. Às vezes são distintos,
às vezes não. Por exemplo: a conversa que você ouviu é uma
parte distinta, a história da morte de alguma alma que ficou
marcada naquelas paredes. Você viu e ouviu o que realmente
aconteceu naquela sala. Já a figura preta no final do corredor e as
lâmpadas explodindo são as partes irreais da experiência. Isso,
sim, foi uma alucinação causada pelo medo. Mas não se preocupe.
Logo se acostumará com isso e aprenderá a controlar esse dom
com facilidade. Tenho certeza —tomou fôlego, apontando para as
minhas mãos. — Sobre os machucados, é simples: você pertence
a todos os planos, material, astral e dos sonhos. Está ligada ao
passado e ao futuro. Pode se machucar em qualquer dimensão.
Abri a boca para falar algo, mas a fechei em seguida. Como ela
sabia tudo aquilo? Como parecia saber mais do que eu?
— Isabel é uma bruxa — informou Bronx, em tom acusativo,
lendo meus pensamentos.
Quase engasguei diante de tais palavras. Uma bruxa? O que ele
queria dizer com isso? Existiam pessoas encapuzadas com
caldeirões fervilhantes e bolas de cristal? Olhei para ela. Parecia
uma jovem normal que, provavelmente, levava uma vida normal.
Não conseguia visualizá-la lendo um grosso livro de capa de
couro e sibilando. Apesar de que, com o corpo esguio e cabelos
brancos, certamente poderia ser uma fada.
— Bruxa do tipo... poções e feitiçaria? — perguntei tímida.
Ela riu. Uma risada suave e melodiosa. Em nada lembrava as
malévolas gargalhadas das bruxas de meu imaginário.
— Sim, do tipo poções e feitiçaria — respondeu.
— E o que está fazendo aqui? Quero dizer, se você é algo desse
tipo, então... é uma das filhas de Hécate, não?
Ela parou de sorrir, levantando levemente os olhos na direção
de Bronx.
— Sim, Ariana. Sou uma filha de Hécate.
— E eu que pensei que você havia voltado por mim — zombou
ele, indo até o banheiro e deixando a porta bater atrás de si.
Fitei a figura de cabelos brancos à minha frente. O semblante
calmo não deixava transparecer a turbulência que acontecia nos
mares de seus olhos. Mas eu sabia o que sentia. Estava explícito
na maneira como os dois se olhavam.
— Você já deve ter entendido por que vim a essa altura. Não
estou certa? — perguntou ela.
— Veio para nos ajudar nas buscas.
Isabel concordou com a cabeça.
— E também por que grande parte de seu poder é magia,
Ariana. E isso é algo de que entendo.
— Imagino — respondi. — Só me diga algo: a mando de quem
está aqui? Por que tenho convicção de que não viria até nós, a
menos que alguém pedisse.
Ela arqueou uma das sobrancelhas, um traçado definido e forte.
Então deixou um sorriso malicioso tomar conta de seus lábios
escarlate.
— Ah, querida. Você não tem ideia de quantas pessoas cuidam
de você. Não mesmo.
Era inútil continuar tentando. Era o terceiro dia em que fazia
aquilo e não havia conseguido nem mesmo rastrear um rato, como
Bronx sugerira para treino. O mapa parecia ter vida própria, e
gritava comigo. Idiota, por que me tem se não sabe me usar?
Peça para a garota de cabelos bonitos, sim, essa que está ao seu
lado. Peça-a para te ajudar. E Isabel me ajudava, me explicando
que precisava me concentrar, que o mais importante de tudo não
era ver o mundo, mas senti-lo.
Porém, aquilo funcionava muito melhor na teoria do que na
prática.
— Já entendi por que ainda estão empacados depois de todo
esse tempo — disse Isabel, levantando os braços, como se
finalmente houvesse entendido o problema. — Você está
pensando no mapa como uma coisa municipal. Está vendo? — ela
apontou para a folha aberta sobre a mesa. Olhei para o papel,
franzindo a testa, pois sabia que a garota não estava enxergando
nada. O mapa mostrava-se apenas para pessoa que localizava algo
por meio dele. No caso, eu. Ainda assim, ela estava correta. Podia
ver os traçados da cidade que nos cercava detalhados na folha. —
Nunca parou para pensar que as Invocadoras têm mais de uma
nacionalidade?
Já havia, na verdade, pensado naquilo. Mas imaginei que, como
Crystal e eu éramos ambas brasileiras, as outras Invocadoras
também seriam. Quanto ao fato de ter reduzido nossa busca para
algo restrito ao nosso município, fora apenas falta de atenção, ou
algo que eu imaginava como sendo isso.
— Está me dizendo que preciso não me concentrar apenas nesta
cidade, mas também em outros países? — senti meu queixo cair.
— Como vamos bancar uma viagem dessas?
— Não olhem para mim. Existe um limite de dinheiro que um
homem acha correto roubar. E, acreditem, passei do meu há um
bom tempo — disse Bronx, sentado no chão a alguns metros de
nós.
Desde que Isabel chegara, ele havia começado a manter certa
distância, como se sua proximidade lhe causasse dor. Não era
mais o Bronx feliz que distribuía conselhos e ajudava todos a
cuidarem de suas vidas — por que ele mesmo estava ocupado
cuidando da sua. E eu sabia que seria assim até que ela nos
deixasse.
— Não sejam tolos. Eu sou uma bruxa. E um grande requisito
para isso é saber se transportar — ela se voltou para mim. —
Apesar de que pensei que já soubesse como fazer isso. É uma
arma poderosa em qualquer batalha, Ariana. Sugiro que comece a
tentar desvendá-la o quanto antes.
— Eu posso me transportar? — perguntei, sentindo meu queixo
cair pela segunda vez no dia. O que mais eu podia fazer que fugia
de meu conhecimento?
— Chega — gritou Crystal, com a voz trêmula.
Viramos para ela. Estava sentada na cama, encolhida, as mãos
abraçando as pernas, que trouxera até a barriga. Parecia muito
cansada, e possuía olheiras visíveis mesmo a metros de
distância.Afastei-me da mesa e fui em sua direção.
— O que aconteceu, Crystal? Está tudo bem? — sentei-me ao
seu lado.
Isabel continuou em pé ao lado da mesa, os olhos atentos à
cena.
— Eu estou cansada. Só isso — disse ela, passando a mão no
rosto para enxugá-lo. — E vocês, ao contrário de focarem no que
precisamos fazer, ficam se questionando com seus problemas. O
que você prefere, Ariana, saber quais dons mais possui, além dos
que já conhece, ou acabar logo com isso? Encontrar as garotas
que faltam, derrotá-las e, talvez, ganhar um pouco de paz? —
focou Bronx. — E você, então. Vai se lamentar pelo resto da vida
por que ela não voltou por você? O que esperava? Que ela
estivesse te esperando?
— Crystal — cortei-a. — Não seja insensível.
Ela suspirou, enfiando o rosto entre as mãos e sussurrando uma
desculpa molhada.
— Podemos, por favor, focar no mapa? — pediu, exasperada.
Era isso. Eu precisava decifrar aquele pedaço de papel. Crystal
estava certa. Por mais que estivesse curiosa sobre o que mais
estava reservado para mim, tinha um dever para com ela e toda
uma horda de almas. Precisava assumir meu lugar como
Invocadora e começar a tomar decisões que nos colocassem em
movimento em relação à missão.
Levantei, voltando para perto de Isabel, pensando que era
chegada a hora. As coisas precisavam começar a dar certo a partir
daquele momento. Passara muito tempo vivendo como a garota
que era, deixando-me levar por paixões e sentimentos
passageiros,permitindo minha sede de viver falar mais alto do que
minha sina. Faria dezessete anos em dois meses, e precisava me
tornar, agora, a mulher que esperavam que fosse no futuro.
— Como vou saber quando encontrá-la? — sussurrei para a
bruxa.
— Você vai saber. Confie em mim — respondeu ela, com a voz
doce. E eu confiava.
Fechei os olhos, mentalizando todos os países desenhados no
pedaço de papel. Imaginei seus contornos, da forma que me
lembrava, desejando que aquilo fosse o suficiente para o mapa
compreender o que eu queria. Abri os olhos. Era quase como se o
objeto tivesse vida. Os contornos surgiam sozinhos, traçando seus
caminhos pelo papel amarelado. Analisei os diversos países, cada
um emitindo tantos sinais diferentes que tinha a impressão de que
a folha era a superfície de um lago, onde alguém pingava tintas de
diversas cores por meio de um conta-gotas.
Cada pedaço do mapa emitia diferentes sensações — se é que
podia chamar assim. Sentimentos e sensações transitavam dele
para mim e vice-versa.Medo, fúria, amor.Eram tantas que ficava
difícil controlá-las em meu interior.
Tentei focar somente nas Invocadoras e não pensar nas
diferentes criaturas que poderia rastrear. Era algo difícil. Muitas
vezes as sensações me confundiam ou algumas mais fortes
desviavam minha atenção. Contudo, consegui me manter firme.
Fechei os olhos, tentando sentir a única coisa pela qual estávamos
todas ligadas: a morte. Segui seu rastro, o caminho que percorria
entre um país e outro. De repente, a sala parecia mais gelada. Abri
os olhos. Um dos sinais começou a ficar mais forte.
— Vocês estão sentindo isso? — perguntei.
— Não. Apenas você — respondeu Isabel, apesar dos olhos
fixos na folha.
E então ocorreu algo que eu não esperava. Quando um dos
sinais ficou extremamente forte, foi quase como se estivesse
ampliando a folha. A imagem foi aumentando, e aumentando, até
que consegui visualizar uma pequena cidade na Austrália. Meu
coração disparou. Era longe. Tão longe. Ainda que Isabel nos
ajudasse a chegar lá, estaríamos mais distantes de casa do que
jamais estivéramos. Não teríamos ninguém para quem pedir
ajuda, e isso me causava medo. Forcei-me, por fim, a admitir que
não era muito diferente daquilo que estávamos vivenciando.
— Puta merda — falei, quando o mapa ficou do tamanho de
uma cidade.
— O que foi, Ari? — Bronx levantou em um pulo, chegando ao
meu lado. Pouco tempo depois Crystal fez o mesmo. Os dois
olhavam com os olhos arregalados para o mapa, que eu sabia estar
em branco para eles. Ainda assim, olhavam fixamente, como se a
qualquer instante fosse se revelar.
— Vocês não vão acreditar se eu falar.
— Qual é o lugar, Ariana?
Fiz uma pausa para dar suspense.
— Newcastle, Austrália.
Capítulo 54
Ariana
— Newcastle? — gesticulou Bronx. — Não existe nenhuma
mais perto?
Dei de ombros.
— Sinto muito, querido — provoquei-o. — Foi o que consegui
encontrar. Se não está contente, então talvez...
— Pare — disse ele. — Não comece uma discussão boba.
Revirei os olhos.
O mapa ainda mostrava os contornos da cidade, as linhas curvas
que delimitavam o território. E, bem no centro, estava o ponto de
emissão da sensação. A cor lilás formando círculos, um após o
outro, fazendo todo o papel ondular. Era belo, não fosse a
sensação de morte que o rodeava.
— Precisamos de um plano — lembrei. — Não podemos
chegar lá atacando, podemos?
Bronx esboçou um sorriso, como se meu comentário o
divertisse.
— Claro que não. Seria estupidez. Não aprendeu nada durante
seu tempo na Tumba? — seu rosto se fechou de repente, como se
percebesse ter tocado em um assunto proibido. — Quero dizer,
precisamos antes de tudo observar essa garota, saber do que é
capaz. Quando tivermos todos os dados, decidimos qual a melhor
estratégia.
Atrás dele Isabel anuiu, seu rosto sereno concordando com uma
ação violenta.
— Mas não devemos perder tempo. Quanto antes formos até lá,
melhor — completou.
— Amanhã me parece um bom dia — disse Crystal, enrolando
uma mecha do cabelo entre os dedos. — Podemos nos preparar
hoje, com as horas que ainda nos restam, e amanhã partimos cedo
e voltamos antes de o sol se pôr.
— Eu concordo — disse Bronx. Então, se voltou para mim.—
Ariana?
Parecia uma boa ideia. Levantaríamos cedo, pegando o que
fosse necessário para a viagem, e então partiríamos com um
feitiço ou qualquer outra coisa que Isabel fizesse. Não parecia
arriscado, já que não teríamos que atacar a garota. Pelo menos,
não ainda. Poderíamos ter um ou dois dias antes de agir, e eu
usaria para colocar meus pensamentos em ordem. Não poderia
arriscar sentir o que senti com Alessandra. Aquilo precisaria ser
controlado. Para isso, eu teria que ter disciplina.
Olhei para eles e concordei com a cabeça, imaginando estar
fazendo a coisa certa.
Seis horas depois eu estava de banho tomado, bem alimentada,
descansando em minha cama. Havíamos passado a tarde
discutindo as medidas a serem tomadas, as ações que teríamos em
cada situação. Apesar de ser algo relativamente simples — obter
informações —, não queríamos arriscar. Sabíamos o preço de um
deslize. Precisávamos pensar em tudo que poderia dar errado, e
encontrar ações preventivas para tais coisas. Deveríamos nos
certificar de que, se algo não ocorresse como o planejado, que não
fosse por negligencia de nossa parte.
Sentei na cama, sentindo o cabelo úmido escorrer por minhas
costas, abraçada às minhas pernas, envolta em pensamentos e
sentindo o peso do silêncio no qual me encontrava. Com Ian na
cama ao lado havia, ao menos, o som de sua
respiração,evidenciando que eu não estava sozinha. Agora, tudo
que ouvia era a torneira da pia pingando, e isso servia para nada
além de me lembrar das pessoas que haviam partido.
Levantei da cama e fechei a cortina, sentindo meus ombros
enrijecidos devido ao cansaço. Não passava das onze da noite,
mas estava exausta. Porém, bastou eu me deitar para alguém bater
à porta. Remexi na cama, forçando as pernas a se moverem para
fora dela. O que mais queriam? Era impossível ficar sem
perturbações naquele lugar — ou em qualquer outro onde
estivessem.
Estava prestes a mandar quem quer que fosse embora, dizendo
para que dormisse, por que era exatamente isso que eu pretendia
fazer. Mas me calei ao abrir a porta. A expressão de Bronx era a
de um homem acabado, vencido pela vida. Naquele momento, era
difícil acreditar que tinha apenas dezessete anos. Seus olhos
verdes estavam fundos, como se alguém houvesse apagado o
brilho que antes dava cor e vida a eles.
— Está tudo bem? — questionei-o, analisando seu rosto pálido
na semiescuridão.
Ah sim, Ariana, ele parece ótimo. Não acha?
— Queria eu que estivesse — disse Bronx, com voz fria.
Ele ainda não havia olhado para mim, focava o chão à sua
frente com a expressão vazia. O que teria acontecido para que
estivesse daquele jeito? Não podia ser apenas por Isabel. Se fosse,
teria estado assim horas atrás. Estendi a mão para tocar seu
ombro. Ele se retesou por um segundo, como se detectasse perigo,
depois relaxou. Começou a falar:
— As coisas são inevitáveis, eu sei. Mas... mas é impossível
ficar indiferente quando acontecem com você. Passamos a vida
olhando para as desgraças, os acontecimentos das vidas alheias,
dizendo que sentimos muito. Mas nunca sentimos, Ari. Não até o
momento em que aquilo acontece conosco — fez uma pausa. —
Parece que Isabel é a porta voz das desgraças, afinal.
É claro que ela estava envolvida. Apertei minha mão que
estava em seu ombro em um sinal de segurança, um pequeno
gesto que dizia: você não está sozinho.
— O que aconteceu, Bronx? — perguntei, colocando a mão em
seu queixo e o levantando para que olhasse para mim.
Ele não respondeu. Ficou apenas me observando, como se eu
fosse algo de outro mundo, que despertava sua atenção e o fazia
esquecer momentaneamente do que estava acontecendo.
— Bronx — pressionei, olhando-o nos olhos. — Me diga: o
que está havendo?
Ele abriu a boca, mas não disse nada. Esperei, enquanto ele
abria e fechava os lábios, tentando forçar as palavras a saírem. Por
fim, conseguiu empurrar garganta acima o que estava sufocando-
o.
— Minha mãe morreu, Ari. Ela se foi. Para sempre.
Fiquei sem palavras. Não estava preparada para ouvir aquilo.
Não sabia como agir em tais situações. Era possível sentir sua
dor. Era possível vê-la no modo como seu corpo começava a
tremer e seus olhos piscavam sem foco. Puxei-o para mim,
abraçando-o fortemente, sabendo não existirem palavras que
expressassem o que queria lhe dizer de fato.
— Sinto tanto, Bronx — sussurrei em seu ouvido.
Ele se embrenhou em meus cabelos, passando as mãos pelos
fios e colocando o rosto no meio deles, chorando baixinho como
uma criança. Aninhei-o, sem conseguir evitar o pensamento de o
que seria caso fosse o contrário. Se fosse eu, e não ele, que
estivesse precisando daquela companhia.
Pensei que ficaríamos abraçados por mais algum tempo. Mas
ele se afastou, passando a mão no rosto. Em poucos segundos
havia se recomposto.
— Quero te pedir um... favor — disse, incerto.
— Pois bem, diga. Penso que não poderei negar, de qualquer
modo — respondi.
Ele suspirou.
— Quero que você vá até o túmulo de minha mãe comigo. Se
estiver confortável com a ideia, é claro.
Fitei-o.
— Eu? — perguntei, surpresa. — Por que não pediu para
Crystal? Certamente irá querer alguém mais próximo nesse
momento.
Ele mordeu a boca e percebi que o havia ofendido.
— Não sei o que te faz pensar que não a considero minha
amiga. E uma próxima, a propósito —parou de falar por alguns
segundos. — A verdade é que a pessoa que eu queria ao meu lado
nesse momento não está aqui. E você é o mais próximo que chego
dele.
Não respondi. Existia um pacto de silêncio. Não podíamos
tocar em certos nomes. E, ainda sim, ali estava ele, falando para
mim que eu era o mais perto que conseguiria chegar de seu
melhor amigo — que deveria, pelo seu próprio bem, ter
esquecido. Não sabia como responder. Queria ir com ele, mas
suas palavras haviam despertado algo em mim. Algo que me
custara noites para adormecer.
— Bronx — comecei, ainda sem saber qual seria a resposta. —
É claro que irei com você.
Fechei a porta do quarto e o segui até o de Isabel. Algumas
batidas leves e logo a porta se abriu. Pude sentir o momento em
que Bronx segurou a respiração. Mesmo de noite, a bruxa
continuava graciosa, como se o dia desgastante e a nova rotina
não fizessem mal algum a seu espírito.
— Ela concordou? — perguntou.
Bronx anuiu.
— Então, entrem. Não quero gastar mais tempo do que o
necessário. Bruxas também dormem.
Entramos no quarto, enquanto Isabel se dirigia até uma das
gavetas, tirando um medalhão de dentro dela e o colocando na
palma de minha mão. A joia era pesada, com uma grande pedra
vermelha envolta em um casulo de ouro velho. Seus detalhes
eram tão pequenos que meus olhos não conseguiram identificar
algum desenho significativo. Via apenas os contornos e as
pequenas saliências, mas não a figura completa. Com um sorriso
cansado nos lábios, ela explicou como tudo funcionaria.
— É simples, porém preciso. Não podemos nos enganar. Nem
eu aqui, nem vocês lá —disse ela, soltando a corrente e a
deixando deslizar para minha mão.
— Lá? Onde fica o cemitério Bronx? — perguntei, colocando o
medalhão no pescoço. Em um primeiro momento, pensei que a
fina corrente me cortaria a pele. Então o soltei, sentindo-o ficar
mais leve. Era questão de costume.
— Leeds— respondeu ele.
Arregalei os olhos. Como nunca passara por minha cabeça que
Bronx não era um nome usual?
— Qual é. Não vá dizer que pensou que eu era daqui!
Balancei a cabeça.
— Bem, eu encontrei com você aqui, então...
Ele riu.
— Eu sou um Renácito, Ari. Poderia ter vindo de qualquer
lugar.
— OK, chega de conversa — disse Isabel, entrando em nossa
frente. — Não se preocupem. Cuidarei de vocês. Agora, preste
atenção, Ariana. Quando houverem acabado por lá, precisarei que
segure este medalhão, feche os olhos e se concentre, me
chamando. Entendeu? Faça isso, caso contrário, não saberei
quando trazê-los de volta. E não o farei até amanhã de manhã.
Fechar os olhos, me concentrar e chamar. Não parecia
complicado. Concordei com a cabeça.
— Tenho certeza que precisarão de uma boa noite de sono para
amanhã, então sejam breves.
Senti as pontas dos dedos de Bronx alcançarem meu braço.
Coloquei minha mão sobre a sua, envolvendo-a.
— Podemos? — perguntou a bruxa.
Com um leve aceno de cabeça, Bronx e eu concordamos. Ela
fechou os olhos, e pediu para que fizéssemos o mesmo. De
repente, o quarto foi tomado por balbucios, frases sussurradas
sem sentido. Um vento gelado nos atravessou e arfei, abrindo os
olhos lentamente. Se não estivesse com tanto frio, teria gritado.
Estávamos no meio de um grande gramado, consumidos pelas
sombras. O vento era gelado. Mais gelado do que em qualquer
outro lugar. Não conseguia enxergar mais que dez metros à nossa
frente, mas a lua me permitia ver o contorno das árvores ao longe.
Apertei o braço de Bronx, subitamente sentindo medo. Fora uma
ideia estúpida. Por que aceitei fazer aquilo? Ir justamente para
aquele lugar?
— Bronx — sussurrei, sentindo meu corpo endurecer.
Mas ele não estava prestando atenção. Seus olhos eram fixos na
pequena plaquinha à nossa frente, um quadrado brilhante de
metal. Sua mão ainda me envolvia, apertando-me com força.
Peguei meu celular no bolso e abaixei, puxando-o comigo.
Levantei o aparelho na altura do objeto, iluminando-o para que
pudéssemos ler o que estava escrito. Em alto revelo, com letras
quadradas e perfeitas, estava o nome da mãe de Bronx. Lucy
Litheys. Senti seus dedos pressionarem ainda mais minha carne.
Então, ele me soltou, sentando-se ao chão e levando as mãos até a
terra sob nossos pés. Não emitia som algum, apenas alisava o solo
da sepultura, como se estivesse a acariciar a própria mãe.
Sua figura foi envolta pelo breu quando o celular apagou.
Bronx precisava daquele momento. Levantei-me, cambaleante, e
comecei a seguir em direção às árvores. A noite estava fria, mas
de um modo diferente. Não era um frio físico, causado por
temperaturas baixas, e sim um frio na alma, como se algo grande
e de outro mundo me cercasse.
Cheguei a um conjunto de construções, pintados todos do
mesmo tom neutro, sem qualquer coisa em sua anatomia que
remetesse a momentos felizes. Imaginei que os velórios
aconteciam ali, os corpos que ficavam expostos, enquanto os
parentes se despediam. O vento uivou em meio às folhagens e
tornei a andar. Segui mais um pouco pela lateral, sentindo os
pelos de meu corpo se eriçarem. Por que não pensara em trazer
uma blusa? Passei os braços ao meu redor, procurando um lugar
para me abrigar do frio.
Deparei-me com um banco em meio a um pátio. Sob um toldo,
ficava um pequeno jardim, provavelmente a parte mais colorida
do cemitério. Uma tentativa inútil de transmitir felicidade em
meio à tanta perda. Sentei-me, sentindo a pedra gelar minha pele
nos locais em que se encontravam. Agora, eu só precisava esperar
por Bronx. Aguardar que ele viesse até mim, e ajudá-lo da melhor
maneira possível.
Fechei os olhos, absorvendo o aconchego da noite e da
escuridão. Não era o melhor lugar para se estar naquele momento
— ou em qualquer outro —, mas era o mais perto que chegara da
natureza depois de ter deixado a casa na floresta. E aquilo era
maravilhoso. Poder sentir a brisa, ouvir o barulho dos animais
noturnos e o farfalhar das folhas novamente. Não havia percebido,
até aquele instante, como odiava ficar trancafiada naquele hotel.
Tentei focar nas coisas boas. Fiquei imaginando momentos
felizes que poderíamos ter daqui para frente, e recordar os que já
tivemos. O único problema das memórias é que precisavam ser
alteradas. Frases, nomes e rostos precisavam ser esquecidos, para
que outras lembranças pudessem perdurar.
Não sabia quanto tempo havia ficado ali, até que senti algo
macio me envolver. Abri os olhos. Bronx soltou sua blusa sobre
mim e sentou-se ao meu lado, ainda em silêncio. Apesar da pouca
luz, pude perceber que sua expressão havia suavizado.
— Obrigado — disse ele.
Ficamos mais um tempo em silêncio.
— Como você está? — perguntei.
— Melhor, acho.
Concordei, focando a terra plana sob meus pés. Pensei ter visto
algo passar por entre as árvores e virei o rosto na outra direção,
abaixando a cabeça e pedindo mentalmente para que aquilo
passasse. Era apenas minha imaginação.
— Eu... eu sabia que ela ia morrer, Ari. Eu soube disso pouco
antes de você aparecer. Mas é muito complicado — comentou
Bronx, fazendo-me esquecer da estranha sensação de poucos
segundos atrás.
O vento soprou mais forte, gelando minha pele mesmo sob o
casaco quente. Ele se aproximou e puxou um lado do tecido, que
agora protegia ambos do frio.
— Fico pensando em meu irmão, sabe? Ele ainda é apenas uma
criança. Como crescerá sem ela? — sua voz era carregada de
angústia. — Meu pai é um bom homem, e sei que o criará com
muito amor. Mas também estará abalado. Só queria estar lá para
ampará-los nessa hora.
Aconcheguei-me em seu ombro, procurando um pouco de
conforto.
— Quem sabe, quando isso tudo acabar, Crystal o deixe voltar
para casa.
Ele meneou a cabeça.
— Não funciona assim. Se ela me deixasse voltar, teria de
escolher outro Forti e, quando o fizesse, eu voltaria para o mundo
da Luz. Ainda não teria cumprido os vinte anos necessários para
ganhar liberdade. E se ela tentasse me deixar livre, mantendo
nossa ligação, coisas ruins aconteceriam, e eu não estaria lá para
ajudá-la.
Expirei.
—Pelo visto, estamos todos fadados ao mesmo fim solitário.
Ele se afastou um pouco, tentando focar meus olhos na
escuridão. Olhei em sua direção. Seus braços me envolveram e
apoiei a cabeça em seu peito, prometendo a mim mesma que não
deixaria aquela lágrima cair.
— E quanto a você e Isabel? — perguntei. — Você parece ter
sentimentos fortes por ela.
Seu peito subiu e desceu em um movimento lento, como se
minhas palavras o castigassem.
— Você está certa — respondeu ele. — Conheci Isabel quando
tinha catorze anos, e ela, dezesseis. Ouvia-a me chamando de
criança o tempo todo, dizendo que eu não passava de um moleque
que não sabia nem o que fazer com a própria vida ainda —riu. —
Ah, se ela soubesse, naquele tempo.
Fechei os olhos, sentindo-me calma e acolhida, esperando que
ele continuasse a história.
— Morávamos na mesma rua. Quase sempre a via andando de
bicicleta ou desenhando, deitada no telhado de sua casa, seus
cabelos loiros irradiando com a mesma luminosidade do sol. Foi
em um desses dias que decidi escalar a pequena escada que havia
na sua parede, chegando ao seu lado. Ela estava deitada sobre as
telhas, os braços erguidos, enquanto desenhava os contornos das
nuvens no ar. “Você não deveria estar aqui” disse, sem ao menos
olhar para mim. Mas eu era um menino, Ariana. Vi em sua
resistência um jogo do qual queria participar. Então eu
simplesmente a ignorei e sentei ao seu lado. Ela levantou o corpo,
apoiada nos cotovelos. “Você é muito bobo” falou, a primeira vez
de muitas.
“Apesar de seu claro desinteresse, não desisti. Continuei
subindo no telhado todos os dias, no mesmo horário em que ela se
deitava para observar as nuvens. Depois de um tempo, Isabel
acabou cedendo, dizendo que talvez não fosse mal conversar com
alguém tão inocente, no final das contas. E eu era feliz a
importunando.O tempo passou. Ficamos mais próximos. Em
poucas semanas, eu já não me lembrava de um dia em que ela não
houvesse deitado em meu peito para observar as nuvens, e eu
acariciado seus cabelos macios, imaginando quando teria coragem
para contar a ela. Então, um dia, dois anos depois que nos
conhecemos, finalmente consegui mostrar o que sentia. Graças a
Deus ela não recuou quando a beijei — ele riu, virando-se para
mim. — Tem ideia de como é ser rejeitado? Ainda mais na
adolescência?”
Ele ficou em silêncio e entendi que a história havia terminado.
Eles provavelmente começaram a namorar depois daquilo, mas
Bronx não precisava me dizer isso. Tudo o que queria libertar de
seu peito já havia sido dito.
— A bruxa e o morto — sussurrei, mais para mim do que para
ele. — É uma linda história, Bronx. Por que tem tanta raiva dela?
Ele olhou para mim, e em seus olhos vi refletido o mesmo
garoto do telhado. Ele não precisava de palavras para me mostrar
o porquê. Ambos já não eram mais as mesmas pessoas.
— O que existiu entre nós acabou, Ari. Foi algo lindo, inocente
e doce. E coisas desse tipo não pertencem ao meu mundo — ele
percebeu a pergunta em meus olhos e tratou de respondê-la. — É
claro que sua volta mexeu comigo, ainda mais o fato de descobrir
quem ela realmente é. Porém, não existe futuro para nós dois.
Somos completos estranhos. Mas não se engane achando que me
sinto mal por isso.
Concordei com a cabeça. De repente, lembrei-me do cordão
pendurado em meu pescoço. Levei a mão até a pedra,
perguntando-me se Isabel não nos podia ouvir. Esperava que não.
De qualquer forma, tudo que ele me disse esta noite já deveria ser
de seu conhecimento —imaginava eu.
Estávamos mais do que encrencados com nós mesmos por
nossas palavras. Havíamos tocado em mais assuntos proibidos em
alguns minutos do que queria ter feito em uma semana inteira.
Contudo, não conseguia controlar a dor que sentia. A perda estava
me consumindo. Pensei que não teria problema em falar mais
algumas palavras, libertar meus sentimentos, assim como Bronx o
fizera.
— Pouco depois da morte de Max eu... eu pensei que poderia
trazê-lo de volta. Como já havia feito isso, sabia que não seria
possível — admiti, sem levantar o olhar. Não conseguiria encarar
Bronx e sua posição repreensiva naquele momento.—Uma alma
só pode ser invocada uma vez a cada geração. Só que eu o
conheço, Bronx. Max sabe que pode nos encontrar, mas não irá
fazer isso. E eu ainda não tenho controle suficiente para encontrá-
lo.
— Não seja idiota, Ariana. Por que iria querer vê-lo
novamente? Para sofrer mais ainda? Crystal sabe quantas vezes
lhe disse o quanto temia que você tivesse esses pensamentos. Que
acordasse um dia com ideias malucas de ir atrás dele no mundo
das Trevas. Mas parece que você já pensou nessa possibilidade.
— Não acredito mais nisso.
—Assim espero. Conheço bem aquele cara. Não existe nada ao
seu redor que não consiga destruir. É melhor que permaneça onde
quer que esteja.
— Eu sei.
Ele olhou para mim, e vi que seu olhar era, na verdade, de
simpatia. Apenas acenou com a cabeça, demonstrando que
entendia o que eu estava querendo dizer, que sabia o quanto sentia
a falta de Max— e o quanto aquilo doía —, mas que também
sabia ser o melhor. Às vezes, esquecia-me que eram melhores
amigos, e que Bronx o perdera mais vezes do que era possível
contar.
— Prometa que não fará nada a respeito disso —acrescentou
ele, seu tom não deixando dúvidas quanto à sua opinião. — Por
favor, Ari.
Anuí, sem opções.
De repente, meus olhos se focaram no que estava além dele.
Meu sangue gelou. Nunca havia visto uma em minha frente,
apenas nos sonhos. Mas lá estava ela, passando seus dedos pelos
cabelos de Bronx, que parecia não sentir coisa alguma. Apertei
sua mão, minha respiração falhando enquanto observava a alta
figura. Os longos cabelos cor de mel, exatamente como os de
Bronx, que lhe desciam pelas costas eretas. O leve vestido branco
que balançava conforme ela se agitava.
Uma alma. E estava bem ao nosso lado.
— O que foi?
Não conseguia desviar o olhar. A mulher sorria, enquanto
alisava os cabelos dele e Bronx nem parecia notar. Queria que
pudesse ver, ou ao menos sentir. Mas sabia que nada disso seria
possível. E ela não era uma alma do lado das Trevas para ser
invocada por mim. De qualquer forma, duvidava que Bronx
quisesse invocar sua mãe, ainda que para lhe dizer adeus.
— Bronx... — comecei a dizer, mas a figura colocou um dos
dedos sobre os lábios e me calei.
— O que foi? O que você está vendo? — ele perguntou,
virando-se para trás, enquanto sua mãe alisava seu rosto.
Não consegui evitar sorrir.
— Nada. É só que... acho que devemos voltar.
Ele concordou. Apertei a pequena pedra entre as mãos,
sentindo-a esquentar com o calor de minha pele, e chamei Isabel,
torcendo para que não estivesse dormindo ainda. Olhei uma
última vez para o gramado, permitindo-me ver, agora, o que antes
queria ignorar. O cenário ao nosso redor tremeluziu, e antes de
tudo desaparecer, Lucy já havia ido embora.
Chegamos ao quarto arfando com a mudança repentina de
temperatura. A luz tornava tudo indistinto. Pisquei várias vezes
até conseguir enxergar a bruxa, pouco acima de nós.
— Isso poderia ser um pouco mais agradável — disse, pondo-
me de pé.
Ela sorriu.
— Acho melhor vocês irem. O dia de amanhã será longo.
Estava prestes a tirar o cordão do pescoço e devolvê-lo quando
Isabel me deteve. Seus dedos macios seguraram a pedra,
impedindo-me de puxá-la. Encarei-a.
— Pode ficar — disse ela, sorrindo calmamente. — Já sabe o
que fazer quando precisar de mim.
Capítulo 55
Ariana
O dia mal começara e lá estávamos novamente, a buscar e
conversar, a trabalhar e pesquisar. Parecia que não teríamos
descanso tão cedo. Não eram nem sete da manhã quando pisei
fora de minha cama, obrigando-me a levantar e abrir a janela. O
sol invadiu o quarto com raios fortes, iluminando até os cantos
mais escuros do cômodo. A tempestade, enfim, havia cessado.
Abaixo de minha janela, carros começavam a tomar as ruas,
lojas abriam as portas,pessoas transitavam de lá para cá com suas
sacolas. Lentamente, a cidade ganhava vida.
Não esperei que batessem à minha porta, pretendia tomar café
sozinha, de modo que troquei de roupa rapidamente e desci,
sabendo que os três — ou pelo menos Crystal e Bronx — só
acordariam dali a meia hora. Quando retornei ao quarto, percebi
que estava enganada. Não só haviam acordado mais cedo, como
também estavam pilhados com a viagem. Crystal revirava as
gavetas do armário, enquanto Bronx limpava sua faca. Engoli em
seco. Esperava não ter que usar aquilo.
— Por que tão cedo? Não vão tomar café? — perguntei, mas
nenhum dos dois parecia me ouvir. — Onde está Isabel?
Crystal fechou com força mais uma gaveta, levantando a mão e
afastando o cabelo do rosto.
— Onde está o Livro de Invocadoras? — perguntou ela.
— Eu não sei. Veja na quarta gaveta.
Ela foi até o local indicado, escancarando-o com raiva e o
varrendo com os olhos, de maneira superficial.
— Não, Ariana, não está aqui — sua voz era rude. — Onde
você o colocou?
— Não mexi no livro, Crystal. Pensei que estava com você. As
únicas vezes em que o peguei, guardei aí. Se não está nessa
gaveta, é por que não está comigo.
— Bem, comigo é que não está.
Bronx levantou, colocando a faca no quadril. Lançou um olhar
para Crystal e no mesmo instante ela ficou quieta. Ele sabia que
eu não estava mentindo.
— Terá tempo de sobra para achá-lo depois, Crystal. Mas agora
precisamos ir.
Ele pegou meu pulso com determinação, guiando-me em
direção à porta. Enquanto passávamos pelos extensos corredores,
não consegui evitar os flashbacks da tarde anterior. Fechei os
olhos, tentando esquecer aquilo. Sabia que demoraria até
conseguir tal feito, de modo que resolvi apenas fingir não me
lembrar de nada. Mesmo assim, olhei para trás, temendo avistar a
mesma figura negra se erguendo em meio às sombras. Mas tudo
que vi foi Crystal, correndo atrás de nós, enquanto apressávamos
o passo para chegar ao hall.
— Por que a pressa? — perguntei em meio à respiração
acelerada.
Bronx olhou ao redor, como se procurasse alguém. Seus olhos
eram atentos, e no mesmo instante percebi que algo estava
acontecendo.
— Invadiram meu quarto — disse ele, sem diminuir o ritmo.
— Como assim? — não esperava um ataque tão cedo. O último
tinha sido há o quê? Uma semana? Não era possível que outra
Invocadora já estivesse atrás de nós.
— Quando acordei hoje de manhã, todas as minhas coisas
estavam reviradas. Nem mesmo minhas roupas estavam nas
gavetas —franziu a testa. — Se fosse um Renácito ou outra
Invocadora, eu não estaria vivo.
Não gostei de suas palavras.
— Então o que foi?
Ele meneou a cabeça, diminuindo o passo ao chegarmos ao
saguão.
— Não sei.
Não demorou muito para encontrarmos Isabel, que vinha logo
atrás de nós. Ela colocara um tipo de feitiço-armadilha em nossos
quartos, de modo que ninguém conseguiria entrar neles — e, se
dentro, sair. Ao menos, se fosse um ladrão comum, não teríamos
nada furtado. Por outro lado, não conseguia entender aquilo. Se
alguém invadiu o quarto de Bronx para roubar algo, por que não o
fez? Ele disse que suas coisas estavam todas lá, ainda que não nos
mesmos lugares. Não fazia sentido. Seria um novo tipo de jogo?
Não. Não parecia o estilo dos Renácitos.
— Essa viagem será um pouco mais cansativa, já que a
distância é maior — disse Isabel, olhando para Bronx e eu. —
Lembrem-se de que o horário de lá é diferente. Que horas são?
Peguei meu celular.
— Oito.
— Então lá será oito da noite, ou algo próximo disso.
Enquanto ela continuava a explicar mais alguns pontos — o
modo como precisaríamos de uma lanterna; como teríamos de ser
mais cuidadosos, já que à noite os sons parecem tomar proporções
enormes — percebi que uma coisa não se encaixava. Eu tinha
rastreado a Invocadora até Newcastle, mas qual era seu endereço?
— Espere, Isabel — interrompi-a. Ela olhou para mim surpresa,
como se eu houvesse cometido um grande erro. —Como vamos
encontrar a garota?
Ela riu.
— Você é a rastreadora, querida. Não precisamos do endereço.
— Não entendi.
— Quando eu mandar vocês para lá, tudo o que precisarei é que
segure o mapa na mão e concentre-se no ponto de emissão da
energia. Não precisamos de nomes de rua ou números. Vocês irão
exatamente para onde precisam — arqueou as finas sobrancelhas.
— Se você não errar, é claro.
Saímos do hall e fomos em direção a uma área reservada. Com
sorte, as pessoas estariam ocupadas demais para perceberem os
três jovens que desapareciam no ar como fumaça. Quando Isabel
pediu, abri o mapa, olhando fixamente para o círculo lilás emitido
pelo leste da Austrália. Ela piscou para nós, sorrindo. Senti as
mãos de Crystal e Bronx me agarrarem, cada uma em um braço.
Isabel começou a sibilar e o mundo tremeluziu. Fechei os olhos,
concentrando-me na sensação emitida pelo mapa e nada mais.
Precisava estar certa. Não queria aparecer no meio da China por
acidente.Um vento torrencial passou por nós, balançando meus
cabelos e quase me derrubando. Abri os olhos, sentindo-me
zonza. Mas o que vi me deixou ainda mais confusa.
A grama era verde, mais verde do que qualquer grama que já
havia visto. O vento zunia forte em meus ouvidos, e o ar tinha um
cheiro salgado. Estávamos perto de uma praia. Era possível ouvir
as ondas se quebrando em algum lugar próximo, enquanto o mar
arrastava a areia ao chegar à costa. Respirei fundo.
— Não podemos viver aqui? — Crystal riu, levantando o
queixo, enquanto a brisa noturna acariciava seu rosto.
A ideia não era tão absurda. O lugar era simplesmente
maravilhoso.
Tirei meus sapatos, esquecendo-me do porquê de estar lá, e
corri até encontrar a praia. O vento soprou, jogando mechas de
meu cabelo no rosto, que afastei com um movimento rápido.
Quando meus dedos encontraram a água, era como se anjos
lambessem meus pés. A sensação era incrível. Eu ria, enquanto
chutava e molhava a barra de meu short. Crystal logo se juntou a
mim, inspirando e expirando profundamente. Até o ar parecia
diferente. Mais leve.
— Nem parece que viemos aqui para fazer o que precisamos—
Crystal estava ao meu lado, seu rosto tomado por uma expressão
de desapontamento. — É uma pena estarmos aqui e não podermos
aproveitar. Mas que seja. Venha, vamos logo — chamou,
caminhando de volta à praia.
Rápida como chegara, a sensação de liberdade foi embora,
deixando uma sede de viver no lugar. Olhei para as ondas,
desejando poder nadar para dentro delas, conhecer seus destinos
mais longínquos. Relutante, calcei meus tênis.
Seguimos em direção a uma pequena fileira de casas na orla da
praia. A noite estava fria. Não sabia ao certo o que esperar.
Nossos passos aumentavam e diminuíam de velocidade, como se
não soubéssemos o que estávamos fazendo — e realmente não
sabíamos. Ao nosso redor, pessoas começavam a surgir, casas
preenchiam nossa visão. Isabel estava errada sobre as lanternas.
Aquele lugar era bem iluminado. Se nossa busca fosse exatamente
na praia, talvez precisássemos de luz. Mas não era o caso.
— Nós vamos simplesmente invadir a casa? — perguntou
Crystal, apressando o passo. — Não seria mais fácil tocar a
campainha e tentar conversar? Ver se descobrimos algo?
— Talvez pudéssemos distraí-la, enquanto vasculhamos seu
quarto — disse.
Conforme nos aproximávamos, começava a perceber a mesma
emissão do mapa. As ondas pareciam sólidas ao atravessar meu
corpo. Uma após a outra, passavam por mim, revirando minhas
entranhas. Ficava ainda pior com a garota por perto. Era como se
sua essência me aplicasse um soco após o outro, vendo o líquido
em meu estômago subir.
— Está sentindo isso? — perguntei a Crystal, controlando a
náusea.
Ela me olhou, sem entender. Então seus olhos se estreitaram e
ela balançou a cabeça, desviando o olhar.
Caminhamos mais um tempo em silêncio, nossos pés
arrastando a areia, minha pele formigando com o contato. Atrás
de nós, o mar se distanciava, mas ainda era possível ouvir suas
ondas quebrando ao longe. Uma gaivota passou voando sobre
nós, suas penas brancas refletindo a luz da lua. Fiquei observando
enquanto desenhava um círculo no céu e voltava na direção da
água. Por um segundo, imaginei Azriel abrindo suas asas, o vento
as agitando de maneira suave. Por mais estranho que fosse, me
pegara diversas vezes imaginando a cena, pensando em como
seria observar seu corpo em voo, as penas balançando.
— Deveríamos mandar Isabel embora — disparou Crystal,
aproximando-se de mim.
Olhei para a frente. Bronx estava a alguns metros de nós. Eu
diminuíra o ritmo sem perceber, e Crystal aproveitara para ganhar
distância dele e tocar no assunto.
— Eu concordo — respondi baixinho, temendo que ele nos
ouvisse. — Mas não podemos simplesmente mandá-la embora,
não? Além de que, precisamos de sua ajuda. Sem ela não teríamos
chegado até aqui.
Crystal franziu a boca.
— Pouco me importa se ela nos ajudou. Detesto ver Bronx
assim, calado.
Concordei com a cabeça.
— E, de qualquer modo, tenho certeza de que podemos
encontrar outra bruxa facilmente — apesar de tentar disfarçar,
havia uma leve incerteza em sua fala. — Somos importantes, não?
Quer dizer, alguém deve se preocupar conosco a ponto de nos
ajudar.
Parei para pensar por um instante.
— Talvez os Anciãos, de quem Bronx tanto fala. Foram eles
que designaram Bronx e Max para as missões, não? Então, estão
envolvidos. Podem nos ajudar.
Ela deu de ombros.
— Talvez. Mas pelo que ele me conta, que não é muito, são
homens muito pouco confiáveis, e trabalham unicamente de
acordo com seus interesses. Não acho que seria a melhor opção.
— Ainda assim — falei, parando ao sentir que encontrara a
fonte do sinal. — É uma opção.
Levantei os olhos para a construção azul desbotada à nossa
frente. Não parecia muito maior que a casa de meus pais. O
jardim era tomado pela grama verde, e o único enfeite era uma
cerca de madeira envelhecida. Uma pequena escada levava à
varanda, onde estavam dispostas duas cadeiras coloridas, com
uma mesinha ao lado. Meus olhos focaram o copo com água que
se encontrava sobre ela.
— Alguém está na casa — disse, ainda olhando para o gelo que
boiava.
— Como pode ter certeza de que é essa a casa? — indagou
Bronx, seus olhos analisando os arredores.
— Não me pergunte como. Simplesmente sei. Agora, me ajude
a encontrar a entrada dos fundos.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Não fale comigo nesse tom.
— Por que vocês sempre escolhem as melhores horas para
começarem uma discussão? — Crystal entrou em nossa frente,
quebrando a troca de olhares. — Você vem comigo. Bronx pode
tentar encontrar a porta dos fundos sozinho. Nós vamos distrair a
garota.
Ela me observou, esperando uma objeção, mas apenas acenei
com a cabeça. Bronx foi em direção aos fundos, pulando a cerca e
certificando-se de que nenhum animal — racional ou irracional —
estava o observando. Em um movimento calculado, seu corpo
pousou do outro lado do terreno. Vimos apenas o topo de sua
cabeça enquanto virava para a esquerda e sumia de nosso campo
de visão.
Crystal e eu subimos rapidamente a escada de madeira, batendo
na porta, em seguida. Ali perto da casa, o ar parecia ainda mais
salgado. Olhei para ela. Estava tão nervosa quanto eu? E se algo
desse errado? E se mais alguém se ferisse? Pior, e se eu ferisse
alguém? As dúvidas brotavam em minha cabeça com uma rapidez
atordoante. Quase não percebi o momento em que a maçaneta
dourada girou e nos vimos de frente à garota. Ela vestia um mini
short azul e uma blusa rosa. Sua pele era bronzeada, chegando
quase a refletir certo tom de dourado. Seus braços estavam
adornados com pulseiras das mais diversas cores, que lhe subiam
até o cotovelo. O cabelo loiro estava preso em um grosso rabo de
cavalo, no topo da cabeça. Ela olhou para mim, e seus olhos eram
azuis, penetrantes. Mordi a boca, pensando no quanto se pareciam
com os de Giovane.
— Ei — disse Crystal, sorrindo. — Nós queríamos...
Segurei um leve riso.
— O que foi? — ela me fuzilou com o olhar, pensando que eu
estava prestes a estragar tudo.
— Ela não fala português, Crystal — disse, sorrindo para ela,
que encolheu os ombros.
Levantei as sobrancelhas, como se perguntasse se queria que eu
continuasse. Ela devolveu um pequeno gesto com a mão,
afastando-se da porta.
— Licença — dirigi-me a garota em sua língua, desejando que
meu conhecimento limitado fosse o suficiente para nos render
uma conversa. — Não queremos incomodar você, mas não
sabemos onde estamos —ri, tentando imitar a doçura presente na
risada de Isabel.
A australiana nos estudou por alguns segundos.
— De onde vocês são? — perguntou ela, segurando a porta
com força, como se estivesse com medo de que tentássemos
invadir sua casa. — Não consegui reconhecer o sotaque.
— Itália — respondi.
Atrás de mim, Crystal abafou um riso.
— Que maravilhoso! Sempre quis viajar para lá. É tão incrível
quanto imagino?
— Ah, sim. As construções são magníficas. E as massas,
então... — declarou Crystal, entrando no jogo, enquanto jogava o
corpo para o lado para que a garota a visse.
— Sim, imagino — concordou ela.
De repente, sua mão afrouxou o aperto sobre a porta, que
avançou alguns centímetros em aberto. Consegui ver o momento
em que Bronx passou — silenciosamente — de um cômodo para
outro. Ela deveria estar sozinha na casa, o que tornava tudo mais
fácil. Precisávamos apenas enganá-la por mais algum tempo, até
Bronx descobrir algo que pudéssemos usar a nosso favor. Então,
poderíamos voltar.
— Qual seu nome? — perguntei, apoiando-me na beirada da
varanda. Precisava dar o maior número de sinais possíveis de que
queria prolongar a conversa.
— Kylie — ela finalmente largou a porta, encostando-se ao
batente. Não havia nenhum movimento atrás de sua figura.
— Somos Bianca e Antonella — anunciou Crystal. Agradeci
por não ser nada que pudesse gerar dúvidas quanto à nossa
nacionalidade.
Sem saber o que dizer em seguida, varri os olhos pela
paisagem, esperando que algo surgisse em minha mente.
— O mar é muito revolto nessa região? — perguntei, olhando
na direção das ondas, que agora pareciam muito distantes.
— Depende do dia —respondeu a garota, desencostando-se da
porta e vindo em minha direção. Com a luz da lua alcançando-a,
sua imagem parecia cintilar. Ela apoiou os braços na grade,
focando o céu escuro ao longe.
Um pequeno estalo chamou minha atenção. Era Crystal,
abanando nervosamente as mãos em direção a algo dentro da
casa. Mas antes que eu pudesse ver o que era, Kylie se virou para
nós novamente. Crystal bateu ambos os braços contra o corpo,
rodando sobre os calcanhares enquanto desviava o olhar.
— Acho que ainda não respondi sua pergunta, não é mesmo?
— a Invocadora riu.
— Está tudo bem — disse Crystal, puxando-me pelo pulso. —
Encontraremos uma saída daqui.
— O quê?
— Não se preocupe — gritei, enquanto Crystal me puxava pela
pequena escada, guiando-me para fora do terreno. — Minha
prima nem sempre regula muito bem. Obrigada pela conversa.
Adeus.
Dito isso, pus-me a correr atrás de Crystal, deixando uma Kylie
um tanto confusa para trás. Estávamos rindo enquanto
contornávamos as casas, becos e pessoas que encontrávamos.
Tropecei numa pedra, caindo sobre um rapaz de olhos claros e
pele bronzeada. Ele sorriu, dizendo algo que não compreendi,
antes de começar a correr novamente. O vento batia em meus
cabelos e o ar brincava com minha pele. Quando chegamos à
praia, não hesitei em me jogar na areia. Respirei profundamente,
sentindo uma brisa suave passar por nós, ouvindo o som das
ondas se quebrando a alguns passos.
— Belos nomes — eu ri, descansando a cabeça sobre o braço.
Crystal deitou-se ao meu lado na praia.
— Eu era Antonella, sim? Eu gosto de Antonella.
Ela riu.
— Sim, pode ser a Antonella.
Meus dedos traçavam linhas na areia fina. Sentia os pequenos
grãos grudados em minhas costas suadas. Fechei os olhos,
tentando aproveitar ao máximo aquele momento, sem saber
quando haveria outro igual. Ficamos um tempo em silêncio,
contemplando o lugar. Esqueci-me até mesmo de perguntar sobre
Bronx, e por que Crystal me tirara de maneira tão rápida da casa.
Então, ela se sentou, observando-me com cautela.
— Por que você? — perguntou, estudando-me como se eu fosse
um pedaço de mármore brilhando à luz da lua.
— Por que eu o quê? — questionei-a.
— Por que justo você é a Invocadora das Trevas. Quero dizer, o
que existe de tão ruim em sua personalidade para ser associada a
tal palavra? — ela fitou o mar. — Trevas é uma palavra forte.
O que poderia responder? Fazia a mesma pergunta todos os
dias.
— O que há de tão bom em você para ser associada à Luz? —
devolvi.
Crystal olhou para mim, esboçando um sorriso. Passou os
braços ao redor do corpo e tornou a se deitar.
— Eu pensei que não iria gostar de você, sabe... Que seria uma
maníaca com sede de sangue. Ao menos, era isso que todos me
diziam.
— Todos?
— As pessoas com quem conversava. Sempre me
aconselhavam para tomar cuidado com a filha da noite — deu de
ombros. — Acho você mais legal que a maioria deles.
Segurei um riso nervoso. As almas da Luz fofocavam sobre
mim?
— Eu nunca... nunca falei sobre você com ninguém. Para ser
mais exata, a primeira vez que eu realmente soube algo sobre
você foi quando fui até sua casa, à procura de Bronx — algo
estalou no fundo de meu cérebro. Sentei-me, perscrutando a
paisagem. — Bronx. Onde ele está, Crystal? Por que me tirou
daquela maneira da casa?
Ela arregalou os olhos, colocando-se de pé.
— Merda — murmurou. — Merda. Merda. Merda!—
completou, mais alto.
— O que foi?
— Era para ele ter chegado aqui há um bom tempo. Quando te
puxei, ele já estava saindo pela janela. Para não estar aqui, alguma
coisa deu errado.
Minha mente estava funcionando rapidamente. Juntava
fragmentos de conversas e olhares, enquanto tentava associá-los a
Bronx. Crystal estava certa. Ele não nos mandaria sair de lá a
menos que nos quisesse longe da casa. Era para estarmos aqui.
Era para nos encontrarmos. A menos que não fosse essa sua
intenção. A menos que...
— Ah, não — disse, quando percebi o que realmente estava
acontecendo.
— O que foi? — perguntou ela, o rosto alarmado.
— Droga, Crystal. Ele não quer nos encontrar aqui. Ele queria
nos afastar da casa.
— O quê?— ela deu um gritinho. — Por que faria isso?
Comecei a me colocar de pé.
— Por que vai matá-la.
Capítulo 56
Ariana
Corríamos a toda velocidade o caminho de volta. Precisávamos
chegar a tempo, impedir Bronx de concretizar seus planos. Por
quantos minutos havíamos ficado na praia? Dez, talvez? Precisava
ser o suficiente. Contornei uma rua. As casas erguiam-se
timidamente à nossa frente. Um pouco ao longe, duas crianças
brincavam de pega-pega. Crystal vinha logo atrás de mim.
— Por que ele iria querer nos afastar da casa? — perguntou ela,
alcançando-me.
Forcei meus pés a irem mais rápido.
— Por que ele tem medo do que pode acontecer comigo —
disse, virando outra esquina.
Mesmo correndo, percebi que a expressão de Crystal mudou.
— Você quer dizer como quando o machucou? Ele tem medo
de que não consiga se controlar?
— Exato.
Estávamos quase chegando quando senti sua mão pousar em
meu ombro, o aperto forte. Crystal me puxou, forçando-me a
parar. Praguejei mentalmente.
— O que foi agora? — gritei.
— Não passou pela sua cabeça que ele pode estar certo?
— Não — respondi, resoluta. — Eu sei quem sou, Crystal. Não
preciso de Bronx me afastando de algo no qual estou envolvida
apenas por que pensa que sabe mais sobre mim do que eu mesma.
— Deixe de ser tola. Ele não quer te afastar. Quer te proteger.
— Bem, acho que isso ele não pode fazer. Ele é seu Forti,
Crystal, não o meu.
Desvencilhei-me de sua mão e saí em disparada até a casa,
subindo as escadas e empurrando a porta com força ao entrar.
Quando passei pelo batente, foi como se o tempo desacelerasse.
Um cheiro adocicado atingiu meu nariz, e o mundo pareceu se
diluir a sensações. A sala era uma confusão de cores. Uma estante
com livros aqui. Um sofá do outro lado. Uma cortina rosa tão
clara que quase me cegava. Mas nada sólido. A sala era líquida, e
parecia tremeluzir conforme eu a adentrava.
— Não respire — gritou alguém.
Levantei os olhos, procurando o emissor de tais palavras. A luz
era suave, e parecia querer me arrastar para longe. Tudo era
macio. Sentia que estava pisando em algodões. Meus olhos
focaram uma figura indistinta no chão, a alguns passos de mim.
— Bronx?
Joguei-me sobre ele, sentindo minhas pernas se transformarem
em concreto.
— O que é isso? Algum tipo de feitiço? — perguntei, sentando-
me duramente ao seu lado. Minhas pálpebras pesavam.
— Ervas. Ela espalhou algum tipo de erva por toda a casa —
sua voz era baixa. Perguntei-me o quanto ainda estava consciente.
— Erva?
— Algum tipo de sonífero — disse ele, lentamente, como se já
estivesse sendo tomado pelo sono forçado. — Tire-me daqui
antes...
Não conseguiu terminar a frase. As ervas fizeram efeito e ele
virou apenas uma massa de carne adormecida à minha frente. Os
olhos fechados, a boca em uma linha, enquanto fios do cabelo cor
de mel lhe caíam sobre a face. Se não soubesse as circunstâncias,
diria que estava dormindo em paz.
Coloquei-me de pé, arrastando-o para fora, puxando seu corpo
sobre o chão que agora parecia ondular sob meus pés. Um passo
depois do outro, ignorando a sensação de paz imposta que tentava
me dominar.Mas a porta parecia distante, e meu corpo pesava
cada vez mais.
Exatamente quando pensei que não conseguiria continuar,
quando meus olhos estavam prestes a ganhar a briga, fechando-se
em uma inexorável resposta ao ar à minha volta, Crystal adentrou
a casa. Gritei para que ela não respirasse antes mesmo de chegar
ao meu lado. E ela o fez, tapando o nariz com uma das mãos.
Balançou a cabeça, indicando para que eu fosse para fora.
Cambaleante, dirigi-me para o gramado da casa, respirando
profundamente ao encontrar ar puro. Aos poucos, a sensação de
sonolência foi substituída por uma queimação. Coloquei a mão
sobre o estômago, sentindo um enjoo me subir a garganta.
— Se ainda estiver acordada — gritou Crystal, saindo da casa,
arrastando Bronx por um dos braços, enquanto segurava o nariz
com a outra mão. Somente quando se viu nas escadas, com a
certeza de que o ar perigoso ficara para trás, é que libertou seu
nariz e levou a outra mão para auxiliar na tarefa. —, uma ajuda
seria útil.
Levantei o mais rápido que pude e fui em sua direção. Precisei
parar para me equilibrar três vezes durante o caminho. Minhas
pernas pareciam enroscar-se uma à outra. Peguei o outro braço de
Bronx, ajudando a carregá-lo até o meio do jardim. Não era
pesado — tampouco leve —, mas a dormência que sentira
segundos antes parecia drenar minhas forças. Soltei sua mão,
arfando, quando chegamos novamente ao portão.
— Como ela sabia que Bronx estava lá? — Crystal soltou-o no
chão. — Não tinha visto ele. Nós a distraímos. Havia tempo
suficiente para que ele saísse.
Balancei a cabeça.
— Ela deve ter visto quando ele voltou.
—De onde Bronx tirou que é ele quem dá as ordens?Não devia
ter voltado sem nós— Crystal estava mais do que alterada, estava
ensandecida. Seus olhos miravam o amigo no chão, e então
voltavam para a casa, como se quisesse queimá-la só de observar
— algo que, penso eu, devido à minha experiência no quarto de
Giovane, ela estava apta a fazer.
— Crystal — chamei-a, indo em sua direção. A grama parecia
mole, e eu me controlava para não cair. Ela não olhou para mim,
continuou a encarar a casa com os punhos fechados. — Crystal!—
gritei.
Ela se virou, olhando-me com os olhos vermelhos. O que estava
havendo? Bronx estava bem. Por que ela estava daquele jeito?
— O que foi?
Passou a mão no rosto.
— Não podemos perder outro amigo, Ariana — suspirou,
meneando avidamente a cabeça. — Não podemos.
— Não vamos perdê-lo, Crystal —afirmei, sentindo um nó em
minha garganta. Nem mesmo eu acreditava totalmente em minhas
palavras.
— Você acha que ela ainda está aqui? — perguntou, olhando-
me com cautela.
— A outra Invocadora?
Ela acenou.
— Não. Provavelmente fugiu.
— Também acho.
Ficamos mais um tempo em silêncio.
— Vamos embora. Precisamos acordá-lo antes de tomar
qualquer decisão sobre a infeliz. Apesar de não gostar nem um
pouco do que ele fez, não podemos privá-lo da discussão. Isso nos
arruinaria.
— O que eu fiz?
Olhei para trás. Bronx estava sentando com dificuldade, a mão
esquerda segurando a cabeça — que eu imaginava estar rodando
como a minha —, e a direita apoiando-se na terra, forçando o
corpo para cima. Sua blusa estava encharcada de suor, e pequenas
bolsas roxas coloriam a parte abaixo de seus olhos.
— Parece que alguém não sabe onde comprar suas ervas —
comentei. — Pensei que dormiria por mais algum tempo.
Ele apertou os olhos, abrindo-os depois, olhando em minha
direção.
— Cadê ela? — perguntou, a voz rouca. — Kylie. Onde está?
Crystal e eu nos entreolhamos.
— Ela não fugiu?
Bronx esboçou um sorriso.
— Você acha que dei chance para ela fazer isso? No momento
em que me viu e espalhou a erva pela casa, acertei-a com força
suficiente para fazê-la dormir por um bom tempo.
Seus olhos se arregalaram, como se ele houvesse percebido, só
então, o que falara. O vento balançou seu cabelo, e por baixo das
mechas caramelo vi seus olhos se estreitarem em minha direção.
— Nem pense nisso.
Mas era tarde, eu já estava correndo para dentro da casa. Ouvi
sua voz me chamando enquanto passava pela porta. Ele ainda
estava fraco demais para correr atrás de mim. Tapei o nariz com a
mão ao passar a soleira.
Sem o efeito do sonífero, conseguia observar bem o local. Era
um cômodo pequeno, com uma televisão no canto esquerdo, e em
sua frente um sofá, com o estofado de um marrom desbotado. Do
lado direito, estava o armário no qual me apoiara anteriormente.
Suas prateleiras cobertas por diferentes copos de vidro. Azuis,
pretos, vermelhos, amarelos. As diferentes taças divididas em
padrões de cores. A alguns metros, a cortina rosa bebê balançava
com o vento que entrava pela janela.
Continuei correndo, passando pelos quartos e observando-os
um por um, procurando pela garota. Minha mente explodia, e eu
nem sabia por que estava correndo daquela maneira, já que ela
estaria desacordada, de todo modo. Ouvi Crystal vindo ao meu
encontro, porém, não parei para esperá-la. Precisava encontrar a
Invocadora. Quando cheguei ao terceiro quarto, Kylie estava se
levantando. Uma figura colorida meneando o corpo enquanto
tentava encontrar equilíbrio. Aparentemente, ela também não
ficaria desacordada pelo tempo esperado.
Diferente do resto da casa, o cômodo parecia não estar sendo
afetado pelo sonífero. Talvez por que a janela estava aberta,
fazendo com que todo o ar no quarto circulasse, ou talvez por que
ela não espalhara a erva no local. O que quer que fosse, o
importante era que eu podia respirar normalmente. Tirei a mão do
nariz, inspirando devagar, ainda com receio de cair no sono.
O quarto era completamente ornamentado, pintado de um
branco gelo. Pequenas luzes contornavam o guarda roupa e a
penteadeira, serpenteavam pelo teto, onde se agarravam a
pequenos ganchos e caíam como nuvens coloridas sobre nossas
cabeças. Sobre a cama, no canto esquerdo do quarto, estava uma
colcha azul, refletindo a cor nas paredes, apesar da maior parte
delas estar coberta de fotos.
Avancei quarto adentro, enquanto Kylie ainda se recompunha.
Pensei ter feito algum barulho, pois ela se retesou, parando
ajoelhada, ainda de costas para mim. Sabia que eu estava ali. Se
controle Ariana. Não faça nada estúpido. Mas era mais fácil falar
do que fazer. Sentia a adrenalina que começava a se apossar de
minhas veias — e talvez, algo mais. Tudo ao redor parecia
insignificante. Ela era um alvo que cintilava.
Dei a volta em seu corpo, parando à sua frente. Os olhos azuis,
antes vibrantes, agora transpareciam medo. Seus cabelos loiros
grudavam na testa, e as mãos tremiam ao lado do corpo. Fixei
meu olhar na garota, que o evitava a qualquer custo. Crystal
chegou à porta, parando abruptamente.
— Por que estão fazendo isso? — perguntou Kylie. Apesar do
aparente medo, sua voz soava dura. — Eu fiz tudo que me
pediram. Eu invoquei dezenas. Eu entreguei o exército. E em
troca me prometeram paz. Por que estão fazendo isso agora?
— Não prometemos nada a você.
— Sim, prometeram! — ela explodiu.
Olhando-a dali, dava até para sentir pena de sua figura. Ela
sabia que a morte a esperava. Porém, não demonstrava qualquer
intenção de lutar contra seu destino. Lembrei-me de Alessandra,
agarrando-se a mim e à sua única chance de sobrevivência,
brandindo sua faca na minha direção, enquanto rugia como um
leão. A jovem à minha frente divergia de tudo que eu esperava.
Não parecia uma lutadora, muito menos uma líder. Se sacasse
minha faca naquele momento, cortaria sua garganta facilmente, e
então terminaríamos nosso trabalho ali. No entanto, havia algo
diferente nela. Uma inocência curiosa que me impediu de fazer o
que queria.
— Não prometemos nada a você — repeti, enquanto lágrimas
brotavam de seus olhos. Ela era uma Invocadora, como podia
estar chorando daquela maneira? Onde estavam suas forças? — E
se alguém o fez, certamente não sabia o que aconteceria com você
— ou sabia e não se importava.
Ela não respondeu. Suas lágrimas passaram a ser acompanhadas
por pequenos gemidos, como se alguém estivesse a alfinetá-la.
Queria parar com aquele barulho. Minha mão coçava em desejo
de sentir o toque leve de minha faca. Crystal pareceu pressentir o
que eu estava prestes a fazer, pois balançou levemente a cabeça,
entrando no quarto antes que eu pudesse fazer qualquer
movimento.
— Kylie — ela chamou a australiana, que continuava com o
rosto enterrado entre as mãos. — Não temos a mínima ideia de
quem lhe pediu um exército, mas podemos assegurar que não era
alguém confiável.
A Invocadora não respondeu. Crystal olhou para mim e dei de
ombros. Sabia tanto quanto ela sobre o que deveríamos fazer em
seguida. Estava realmente tentada a acertar a garota e acabar com
aquele musical lúgubre. Mas como poderia fazer isso sem que ela
lutasse? Me sentiria uma covarde por matar alguém em um estado
tão vulnerável. Ainda assim, havia uma voz ali que repetia
“acabe logo com isso”.
— Quem pediu um exército a você, Kylie? — perguntei.
Ela parou de soluçar.
— Um homem — disse, levantando a cabeça e enxugando os
olhos.
— Um homem?
— Sim.
— E por que esse homem queria um exército?
Balançou a cabeça.
— Não sei. Não me atrevi a perguntar.
Senti minha pele formigar de encontro ao metal em minha
cintura. Aquele sentimento estava crescendo em mim, inflando.
— Você está me dizendo que forneceu uma horda de mortos
para um homem sem saber,ao menos, para que a usaria? Como
pôde ser tão burra?
Ela se ofendeu, torcendo a boca.
— Não sou burra. Sou muito inteligente.
— Não é o que parece — rebateu Crystal. — Se não é burra,
então confia demais nessa pessoa. Era alguém que conhecia?
Algum amigo seu?
— Não. Nenhum amigo meu é capaz de ver o que vejo. Como
alguém assim poderia encomendar Renácitos?
Encomendar. Estávamos tratando de vidas como se tratam de
objetos.
— Vocês não estão entendendo — ela balançou a cabeça,
enquanto mais lágrimas umedeciam seu rosto. — Eu não podia
dizer não a ele.
— E por que não?
— Por que ele era um anjo.
Fiquei sem fala. Olhei para Crystal, em busca de ajuda, mas ela
parecia tão surpresa quanto eu. Anjos? Por que anjos estariam
encomendando Renácitos? Estava acontecendo alguma guerra?
Não, se fosse isso, já teríamos as informações.
— Esse anjo, ele disse seu nome? — questionei-a.
A Invocadora olhou para mim, e então respondeu,
pronunciando a palavra com a mesma leveza com que a água
contorna as rochas:
— Azriel.
Capítulo 57
Ariana
— Isso é impossível — bufei.
Kylie olhou em minha direção e, por um segundo, pensei que
voltaria a chorar, seus olhos ficando vermelhos novamente. Ela
moveu a perna que estava abaixo do corpo, sentando-se ao chão,
como se o perigo em que se encontrava segundos atrás houvesse
passado. Bem, ainda estou aqui, pensei.
— O quê? Pensa que estou mentindo? —fungou. — Pois não
estou. É verdade. Ele veio até mim, dizendo que eu precisava
cumprir uma missão. E que, se não o fizesse, sofreria as
consequências.
— Ele esqueceu de mencionar que, caso você cumprisse a
missão, também haveria consequências — declarou Crystal,
aproximando-se da garota.
— Vocês vão me matar, não vão? — perguntou ela, com voz
baixa.
A essa altura, qualquer tipo de compaixão pela criatura sentada
no chão acabara. Ela dera de presente uma horda de almas para
um anjo, sem saber seus objetivos ou razões para querer tal coisa,
e fora inconsequente demais para acreditar que nada lhe
aconteceria por ter feito isso. Não consegui deixar de me
perguntar em quais outros tipos de pessoas as essências restantes
haviam se instalado — por que estava óbvio que não se tratava de
um grupo seleto, para minha decepção.
— Crystal, não é melhor chamarmos Bronx? Ele conhece o
anjo melhor do que nós. Talvez saiba a razão para Azriel ter feito
o que fez.
— Eu acho que sim — concordou ela. Então se virou para a
Invocadora. — Você nem ao menos se perguntou o porquê de ele
estar pedindo isso a você?
Kylie balançou a cabeça. Os fios loiros dançaram ao redor de
seu rosto.
— Vocês falam comigo como se eu fosse uma idiota —
reclamou, indignada.
— Apenas por que você é — retorqui.
Crystal saiu do quarto, marchando rapidamente. Kylie tossiu,
rastejando para perto de sua cama e encolhendo-se. Com as
pernas pressionadas contra o torso, parecia uma criança com
medo do escuro.
Eu não conseguia pensar em uma explicação plausível para o
ato de Azriel. Como um anjo da Luz poderia ter coagido alguém a
cumprir seus desejos? Esses que, por sinal, envolviam almas não
pertencentes ao seu lado? Possuía em minhas mãos um quebra-
cabeças que não sabia como montar. Lembrava-me bem de sua
figura, austera e imponente, reluzindo na sala da Tumba. Como
poderíamos estar falando do mesmo ser?
Caminhei lentamente até o painel de fotos, dando as costas para
Kylie. Fiquei um pouco insegura ao fazer isso, mas duvidava que
ela tentaria fazer qualquer coisa. Não tinha estômago nem para
sair correndo, quanto mais me apunhalar pelas costas.
As fotos cobriam toda a parede direita, e continham imagens
variadas da Invocadora tomando sorvete com os amigos,
caminhando na praia, andando de bicicleta. As cores vibrantes das
imagens preenchiam o pequeno espaço do quarto, fazendo-o
parecer ainda menor. Todas as fotos tinham algo em comum: ela
nunca estava sozinha. Sempre existia alguém rindo com ela, ou
apenas a observando ao seu lado, na garupa de sua bicicleta,
colocando sorvete na ponta de seu nariz. Não sabia, ao certo, o
que pensava até então. Nunca parara para refletir se Alessandra
possuía uma família. Isso é algo bobo, eu sei. Todos têm alguma
família. A questão é que nunca havia me questionado se alguém
viria a sentir sua falta. Para mim, ambas não passavam de alvos
que andavam e respiravam, sem vida — imagine então ideais,
sonhos, ou qualquer outra coisa que os torne humanos e os defina.
Virei-me para olhá-la. Kylie continuava na mesma posição, que
lembrava um pouco a de Giovane quando fora atacado. Estava
prestes a perguntar a ela se possuía irmãos quando Crystal voltou
com Bronx.
— Você parece bem — disse a ele.
— Eu poderia ter entrado, apenas não quis — respondeu Bronx,
encostando na parede em frente à Invocadora.
— E por que isso?
— Por que eu estava aproveitando a noite. Sabia que é muito
bom ficar sob o luar, tentando enxergar as constelações?
— Certo, Bronx. Ninguém se importa. Podemos nos concentrar
naquilo que estamos aqui para fazer? — cortou Crystal.
— Você quer dizer matar a garota? — perguntou ele, irônico.
Perto da cama, Kylie tremeu e arregalou os olhos em sua
direção. O medo voltara à sua face.
— Não — Crystal lançou-lhe um olhar repreensivo. — Quero
dizer descobrir o que o seu amigo anda fazendo.
Ele a encarou.
— Vocês realmente acham que ele teria feito isso? Qual é,
vocês o conheceram. Azriel não é a definição de simpatia, mas
nunca faria algo assim. Posso assegurar.
— Como? — questionei-o.
— Ele é um anjo da Luz, Ariana. Que diabos faria com almas
das Trevas? Certamente, há algum engano aqui.
— Não há engano nenhum — protestou Kylie. — Sei muito
bem o nome do homem. É Azriel. Não existe outro.
— Então alguém está usando seu nome.
— Por que está tão relutante em aceitar a hipótese?
— Não é isso que faz quando ofendem seus amigos? Não os
defende? —apesar de calma, sua voz exibia certa hesitação.
— Sim, mas... esse não é o caso, Bronx. Por mais que o
considere seu amigo, Azriel não é realmente isso.
Ele sugou o ar, ofendido. Por que ele não podia simplesmente
aceitar que Azriel pudesse ter feito tal coisa? Precisávamos de sua
ajuda para entender o que estava acontecendo, mas ele parecia
não se importar. Passei a mão na nuca, sentindo o suor que se
formava devido ao contato com o cabelo. O que se seguiram
foram alguns minutos de silêncio, enquanto meus olhos
contornavam as três figuras à minha frente, tentando desvendar o
que se passava em suas cabeças. Ser capaz de ler mentes parecia
um ótimo poder naquele momento. Contudo, não precisei esperar
muito até que Bronx dissesse o que estava remoendo.
— Matem ela— ordenou ele, trotando para longe da parede.
Congelei perante a frieza de suas palavras.
— O quê?
— Eu disse — repetiu ele, lentamente.— Matem ela.
Crystal veio como um raio em sua direção, colocando a mão em
seu peito e o empurrando contra a parede. Os olhos dele eram
serenos ao observá-la, e não fez menção de tentar resistir. Crystal
colocou a outra mão sobre o braço do rapaz, segurando-o da
melhor maneira possível.
— Quem você pensa que é para dar ordens dessa maneira?
Ainda mais um absurdo desses!— gritou ela.
— Me solte, Crystal.
— Não. Não vou te soltar se você for pular em cima de Kylie.
Ele levantou a mão e tocou o pulso dela, envolvendo-o com
firmeza. Crystal pareceu hesitar por um instante, diminuindo a
pressão sobre ele, sem retirar a mão de seu peito.
— Bronx... — comecei, mas ele me interrompeu antes que eu
pudesse dizer qualquer coisa.
— Vamos, Ariana. Pegue sua linda faca e acabe com essa
menina. Quero ver em seu rosto o mesmo sorriso imbecil que eu
via no de Max.
Meu sangue ferveu.
— Não sou Max —ralhei, sentindo dificuldade em me
controlar.
Ele balançou a cabeça.
— Tem razão. Está destinada a ser algo bem pior.
Estava cansada de ouvir aquilo. Ele se referia a mim como se eu
estivesse prestes a me tornar um monstro — algo que eu sabia,
com convicção, que não viria a acontecer. Porém, estava, de fato,
mais negligente quanto às mortes que ocorriam ao meu redor. Não
sentia mais culpa pelo garoto do estacionamento, nem pelo da
casa de Crystal. Sentia menos culpa ainda por Alessandra, que
fora, talvez, a única vida na qual senti prazer em tirar. Mas isso
era apenas por que ela nos causara mal— não que os outros não
houvessem tido a mesma intenção. Era apenas uma sensação de
algo justo. Por que, no fim das contas, era ela ou eu.
— Você fala como se eu quisesse matá-la — esbravejei.
Ele riu.
— Vai me dizer que, desde o momento em que entrou aqui, não
espera a hora de sacar sua magnífica faca para colocar no pescoço
dela?
— Não — respondi com firmeza, apesar de saber não ser
verdade.
— Então deixe que eu faça isso.
Em um movimento rápido, Bronx se livrou da mão de Crystal,
que cambaleou para o lado com a súbita perda de apoio. Ele
desembainhou sua faca, indo em direção à garota. Senti um
tremor atravessar meu corpo, jogando-me ao chão. Caí como uma
pedra sobre o tapete fofo, fechando os olhos para a cena que se
desenrolou em seguida. Apenas quando Crystal gritou,
anunciando que o erro já fora cometido, foi que me permiti olhar.
— Por que fez isso? — arquejei, sentando-me.
— Tirar a vida de alguém para salvar a sua é uma coisa, Ariana.
Isso — disse ele, virando-se para mim. — é algo completamente
diferente.
Sentia a raiva me consumir. Por que ele se achava tão melhor?
Por que pensava estar na posição de dar lições sobre como deveria
me comportar? Avancei em sua direção, sacando minha faca preta
e observando sua expressão de espanto ao me jogar sobre ele.
Bronx caiu como um saco de batatas no chão — muito
provavelmente pela surpresa,não por minha força. Sentei sobre
seu tronco, posicionando minha lâmina em seu pescoço. Crystal
segurou a respiração.
— O que vai fazer? Matar a única pessoa que ainda se importa
com você? — perguntou ele, desafiando-me com o olhar.
Queria pressionar mais a faca, mostrá-lo que era capaz daquilo,
mas minha mão se recusava a fazer o que eu pedia.
— Ariana, saia de cima dele — gritou Crystal.
— Vocês não vão poder mandar em mim para sempre, sabiam?
— olhei para ela, depois para ele. — Assim como não mandam
agora. O que te faz pensar que tem algum controle sobre mim,
Bronx?
Ele franziu a testa.
— Não tenho nenhum controle sobre você, sua imbecil. Se
tivesse, pensa que ainda estaria em cima de mim?
— Ariana, saia de cima dele, pelo amor de Deus. Essa não é
você.
Emoções conflitantes se chocavam em meu peito. Ele é meu
amigo, como posso estar apontando uma faca para ele? Por que
essa é quem você é. Não. Sim. Solte a faca. Aperte mais a lâmina.
Não posso. Você consegue. Eu não quero. Não tem escolha. Isso
é seu sangue. Isso é você. A faca avançou mais alguns
centímetros e senti-a pressionar a pele de seu pescoço. Os olhos
verdes de Bronx me encararam com tristeza e... compreensão.
Uma lágrima brotou em meu olho esquerdo e o fechei com
agressividade. Eu não podia fazer aquilo. Eu não queria fazer
aquilo. Então, por que ainda ouvia uma pequena voz a sussurrar
“faça”?
Deixei a lâmina escorregar de minha mão, e ela encontrou o
piso do quarto. Meu coração batia descompassadamente sob meu
peito. Bronx sentou, envolvendo-me em seus braços, respirando
em meus cabelos. Fechei os olhos, escondendo o rosto em sua
blusa.
— Me desculpe, Ari — sussurrou.
— Por que está pedindo desculpas? — disse, levantando o
rosto.
— Por que continuo dizendo que vai se tornar um monstro,
quando não temos nenhuma razão para acreditar nisso. Está claro
que algo em você mudou, algo grande. Mas também é visível que
está lutando contra. Tudo que lhe disse só serviu para magoar, e
eu sinto muito por isso.
— Bronx...
— Não. É verdade.
Balancei a cabeça, abraçando-o novamente, apertando-o com
mais força do que antes.
— O momento acabou? Por que estou ouvindo passos e tenho
certeza de que estamos na cena de um crime — as palavras de
Crystal nos despertaram.
Olhei para o corpo a alguns metros de nós com um misto de
enjoo e fascínio. Kylie continuava sentada, mas agora seus olhos
se encontravam opacos. Os cabelos ainda caíam em uma cascata
dourada por sua face, e os lábios ainda estavam rosados devido ao
batom. Mas tudo vivo nela — seus olhos, sua pele — estava
perdendo a cor em uma velocidade absurda. Era estranho olhá-la,
sabendo não haver nada que pudesse ser feito. Nenhum pedido de
desculpas que pudesse ser ouvido. Aquilo era nossa culpa, ao
mesmo tempo em que não era. Nossa culpa por que fomos nós
que fizemos, e não nossa por que teria acontecido de um jeito ou
de outro. Por que a qualquer momento bateriam em sua porta.
Bronx era uma pessoa controlada, mas bastou a garota falar
algo de errado para ele perder a compostura. Não sabia o que
pensar. Ele estava tentando proteger Azriel. Mas e se o anjo não
devesse ser protegido? Se a Invocadora falara a verdade, então ele
teria muito a explicar. Anjo ou não, não tinha o direito de
encomendar almas sem apresentar uma razão. Ele sabia sobre
Kylie. Mas não havia alegado estar estudando a razão de tantas
almas estarem sendo invocadas?
Aquela história ficava mais confusa a cada peça descoberta.
Apertei a pedra, chamando por Isabel.
Capítulo 58
Ariana
Tudo parecia importante. A temperatura da maçaneta. A parede
branca com detalhes azuis se descascando. A água que
ricocheteava fortemente em minhas costas. Tudo tinha que
parecer importante, caso contrário, as verdadeiras coisas
importantes me levariam à loucura.
Ainda não havíamos parado para discutir sobre Azriel.
Também, como poderíamos? Estávamos desgastados demais para
fazer qualquer coisa que não fosse dormir. Entretanto, ainda era
dia, e isso significava que, durante as próximas horas, nos
reuniríamos para jantar. E eu duvidava que qualquer um de nós
conseguisse sentar à mesa sem tocar no assunto,sem dizer o que
pensava sobre os últimos acontecimentos.
Para mim, não existia opinião que pudesse mudar os fatos.
Azriel era um traidor. Ele havia mentido para nós, ameaçado uma
Invocadora e tomado posse de uma horda de almas. As provas
eram irrefutáveis. Porém, eu sabia que seria difícil convencer
Bronx disso. Aquele garoto possuía mais fé em seu anjo do que
muitos possuíam em seu deus.
Abri meu armário, olhando para o amontoado de roupas.
Blusas, calças e moletons amassados uns contra os outros. Senti
uma súbita vontade de colocar um vestido e sair para um
piquenique, tomar sol e caminhar. Não havia percebido, até então,
o que Giovane fizera por mim naquele dia. Não havíamos apenas
caminhado e conversado. Ele me oferecera um dia especial. Isso
por que era um dia completamente diferente, sem treinos, brigas,
lutas ou facas. Por que era um dia que não aconteceria novamente.
Mais do que nunca, fiquei tentada a ligar para ele. Talvez para
pedir desculpas. Talvez para dar um oi. Queria ouvir sua voz.
Queria saber se estava tudo bem. Apesar do súbito desejo,
continuei parada, olhando para as blusas à minha frente, pensando
que, onde quer que ele estivesse, estaria melhor do que se
houvesse continuado ao meu lado. Giovane tinha toda razão ao ir
embora. Essa não era a sua jornada.
Fui até o espelho, observando minha pequena forma no vestido
azul que colocara. A pessoa refletida não parecia forte, nem
durona, nem má. Parecia apenas uma jovem normal, de dezesseis
anos, em um vestido azul. Tão ordinária quanto qualquer outra
que colocasse a mesma roupa. Levantei a mão, afastando uma
mecha de cabelo do rosto pálido pelo cansaço. Aquilo era
estranho. Por fora, eu parecia a mesma, mas não era assim que me
sentia por dentro. Era como se uma nova pessoa houvesse se
apoderado de minha carne, se instalado em meus pensamentos.
Como se um desconhecido agora sussurrasse em minha mente,
me guiando. Eu não me conhecia mais.
Conseguia lembrar, ainda que vagamente, dos meus dias em
casa. Parecia ter sido há tanto tempo. Não tentava me enganar
dizendo que não sentia falta de minha família ou amigos, por que
sentia, mais do que seria possível expressar. Era apenas uma regra
silenciosa que criara para mim mesma: se você não lembra, então
não dói. Era minha maneira de lidar com aquilo — ou de fugir.
Apenas não percebera que, com o tempo, passaria a não me
lembrar de coisa alguma.
Afastei-me do espelho, as mãos sobre o peito e a vontade
incontrolável de encontrar algo que ainda me ligasse à minha
antiga vida. Encolhi-me na cama, puxando o cobertor por sobre
minha cabeça. Aos poucos, o cansaço começou a vencer. E
acompanhado dele, veio o sono. Não sei por quanto tempo fiquei
ali, se foram minutos ou horas. Lembro-me apenas de ter ouvido
uma voz, pouco antes de cair no abismo, entregue ao merecido
descanso.
Pare de lutar, minha criança. Para que continuar a sentir tanta
dor? Entregue-se. Deixe que as Trevas curem as feridas e
amenizem as perdas. Deixe que ela a envolva, que a carregue
para longe. Deixe-a entrar.
Capítulo 59
Ariana
O vento era fresco. Sentia-o beijar minha pele e arrepiar os
pelos de meus braços. As árvores eram altas, mais altas do que
conseguia lembrar-me. Seus galhos, cheios com suas folhas
verdes, traçavam seus caminhos pelos espaços abertos, como se
tentassem se tocar, uma incessante busca pelo o outro. Pequenos
feixes de luz entravam pelas frestas das copas, iluminando a
floresta e derramando um ar mágico à paisagem.
Eu estava deitada na grama, observando os passarinhos que
cantavam a alguns galhos de distância, seus pequenos bicos se
abrindo e fechando, enquanto criavam uma melodia que lembrava
dias de verão. Permanecia imóvel. Não ousaria espantá-los. Um
pintassilgo veio voando em minha direção, parando a poucos
metros. Sua pequena cabeça balançou, encarando a grande figura
à sua frente, que o observava fascinada. Sua cabecinha ficou ereta
novamente e ele levantou voo mais uma vez, indo parar em uma
árvore ao longe. Eu ainda conseguia ouvir seu canto, mas seu
pequeno contorno amarelo já havia se perdido em meio às cores
da vegetação.
Uma sombra se moveu ao meu lado e me virei, vendo o jovem
que me observava com um meio sorriso no canto da boca. Max.
Seu cabelo escuro contornava o belo rosto, onde as maçãs coradas
me diziam que ele estava envergonhado por ter sido pego. Abri
um sorriso para ele, meu coração transbordando de alegria.
Com um movimento leve, como se seu corpo fosse feito de
penas, Max deitou-se ao meu lado. Seus olhos ainda possuíam
aquele brilho típico. A chama que parecia queimar em suas
órbitas. Sua mão envolveu a minha em um toque carinhoso, e em
poucos segundos eu já estava sobre ele, beijando seu pescoço,
seus lábios. Afastei-me sorrindo, enquanto sentava para observá-
lo.
— O que está fazendo aqui? — perguntei.
De repente, algo pareceu completamente errado.
— Max? —chamei-o, incrédula. — O que... Como...
Meu olhar foi para as árvores. O vento cessara, assim como o
canto dos pássaros. A floresta se encontrava, agora, tão silenciosa
quanto um túmulo. Olhei para ele novamente. Aquele sorriso
ainda coloria seu rosto. Mas como era possível? Ele... Aquele
lugar... Ambos estavam tão distantes.
— Como você está aqui? — sussurrei.
Seu sorriso se intensificou. Queria beijá-lo novamente. Queria
muito fazer isso. Queria ter certeza de que estava aqui, que não
era uma visão. Desejava suas mãos em meu corpo outra vez,
aproximando-me. Contudo, algo me detinha. Eu precisava ouvir
sua resposta.
O ar parecia pesado, como se estivéssemos afundando, mais e
mais. Esperava encontrar o chão. Esperava bater em algo sólido.
— Eu não estou aqui — ele franziu o cenho, como se minha
pergunta fosse óbvia. Então sorriu novamente. — Ao menos, não
ainda.
Uma dor aguda atravessou minha testa. Levei a mão ao local
dolorido, piscando algumas vezes, vendo as luzes rodarem à
minha frente. Sentia a blusa colada às minhas costas. Estava
suando. Um inchaço aqui. Um grunhido lá. Meu coração batia
descompassado no peito. Não existiria sonho pior do que este,
pensei. Se é que poderia chamá-lo de sonho — estava mais para
pesadelo.
A dor em minha testa passou. Bronx estava sentando na cama
ao lado, uma das mãos posicionada sobre o queixo. Sua expressão
não era das melhores — não que eu esperava que fosse.
— Você está chorando — disse ele, abaixando a mão.
Pisquei com força, sentindo os cílios encharcados. Passei a mão
no rosto.
— Por que estava chorando?
— Eu não estava chorando.
— E eu não levei uma testada.
Ele me fitou, esperando minha reação.
— Eu não queria estar chorando — falei, certa de que não lhe
contaria sobre o sonho.
— Ninguém que chora gostaria de estar chorando — rebateu
ele.
Bronx desviou o olhar, focando a cidade pela janela. Era
engraçado aquilo, a maneira como estávamos hospedados naquele
hotel, dentro de uma cidade que não era a nossa, sem nunca ter
saído, sem nunca ter visitado algum ponto turístico ou mesmo ido
às compras. Passáramos os últimos dias em total confinamento.
Saíamos do quarto apenas para comer ou fazer algo estritamente
necessário, e voltávamos logo depois, sem olhar para os lados,
sem desviar a atenção. Não era como se nos sentíssemos
obrigados a fazer isso, como se olhássemos no espelho e nos
impuséssemos regras para garantir o sucesso de nossa missão. Era
somente que não conseguíamos pensar em nada agora. Não via a
necessidade de sair e explorar a cidade. Em outro momento,
talvez me sentisse feliz em fazer isso, entrar nas pequenas lojas do
centro para observar os produtos que compraria apenas por serem
bonitinhos. Mas não era esse o caso.
— Você não desceu ontem — apontou Bronx, depois de um
tempo.Não parecia muito preocupado com a resposta. Seu olhar
voltou para os prédios ao longe. Quem sabe, diferente do que eu
imaginava, ele quisesse sair, no final das contas.
— Estava cansada. Deitei para cochilar e acabei dormindo a
noite toda — respondi, enrolando meus cabelos, uma massa
quente de fios e suor, no alto da cabeça.
— Imaginei — comentou ele.
Ficamos mais um tempo em silêncio, e me perguntei se ele
pensava em Azriel. Se acreditava que seu amigo poderia ser um
traidor, ou se ainda calaria o próximo que difamasse seu nome.
Lembrei-me do fervor em seus olhos, da rapidez em seus
movimentos. Nunca vira Bronx agir com tamanha impulsividade.
— Estou com fome — disse, saindo da cama.
— Peça algo para comer, então —respondeu ele, sem olhar para
mim.
— O que foi?— perguntei, voltando-me para a figura
desanimada que me fazia companhia.
Seu olhar tornou lentamente em minha direção, como se
esperasse por aquela pergunta.
— Nada — disse Bronx, parecendo conter algo que esmurrava
sua garganta para sair.—Posso usar seu banheiro?
Ele se levantou, mas continuou no mesmo lugar, esperando
meu consentimento.
— Você está com essa cara por que está constipado?
— O quê? Não. Quero usar seu chuveiro.
— O que tem de errado com o seu?
— Isabel está nele.
Arqueei as sobrancelhas, em tom inquisidor. Seus olhos se
arregalaram e ele quase tropeçou ao tentar dar um passo para trás.
—Por que Crystal está no dela, OK? Meu Deus. Vocês nunca
pensam na melhor opção ao ouvir algo que pode ser interpretado
de muitas maneiras.
Dei de ombros, e com isso ele saiu para tomar banho. Esperei
até ouvir o chuveiro ligando para tirar minha roupa, agradecendo
por poder me livrar daquele pedaço de pano úmido no qual se
tornara meu pijama. Queria tomar um banho para me livrar do
suor — e também do sonho—, mas já que isso não seria possível,
contentei-me em colocar uma roupa limpa.
Inconscientemente, meus olhos começaram a varrer a cidade.
Os picos elevados dos prédios, os contornos baixos das casas. O
verde de algumas árvores ao longe e os carros que transitavam
pela rua,parecendo contínuas fileiras de formigas. Sem perceber,
pressionava o vidro, desejando estar do outro lado.
— Uma tempestade está a caminho.
A voz me tirou dos pensamentos e quase bati com a cara na
janela.
— Pensei que demoraria mais — disse.
Bronx secava o cabelo com a toalha, enquanto vinha em minha
direção. Ele ainda não havia colocado a blusa, de modo que seu
torso definido estava à mostra. E isso era algo — com muito
respeito a meu amigo — do qual eu não conseguia desviar o
olhar.
— Demorei o tempo necessário — disse ele.
Quando voltei a olhá-lo nos olhos, ele sorriu. Senti meu rosto
esquentar, como se houvesse sido pega fazendo algo do qual
queria sair impune.
— Não se preocupe, Ariana.Também olho para você — um
súbito sorriso malicioso tomou conta de seus lábios. Então ele
percebeu minha expressão, que pensava eu, ser de completa
vergonha. — Ei — abaixou a toalha, tocando meu ombro. — Eu
estou brincando.
O quarto foi preenchido por sua risada.
— Não me olhe desse jeito —advertiu-me.
— Que jeito?
— Como se estivesse com medo de mim.
— Desculpe, mas você me deixou desconfortável — minha voz
saiu esganiçada.
Mas estávamos rindo. Ele me puxou para perto, envolvendo-me
em um abraço.
— Além do mais, você é como uma irmã para mim.
Aquelas palavras calaram fundo, por que eram exatamente o
que eu queria ouvir. Por que era como ele fazia eu me sentir:
protegida, acolhida. Como eu imaginava que seria ter um irmão.
Passei minhas mãos ao redor de sua cintura, afastando o temor
que sentia por ele — por todos nós. Quando me virei para a
janela, consegui ver as nuvens de que falava. Bem ao longe, onde
o céu encontrava a terra, nuvens negras coloriam a paisagem,
dando a ela um tom acinzentado lúgubre. Estremeci de frio,
imaginando, por um segundo, que elas estavam dentro do quarto,
pairando sobre nossas cabeças.
— Ela vai demorar para chegar aqui — constatou Bronx. — A
tempestade.
— Mas vai chegar — falei baixinho.
Ele suspirou.
— Sempre chega.
De repente, não tinha mais tanta certeza de que estávamos
falando sobre as nuvens.
Queria discutir sobre Azriel. Se conseguisse extrair de Bronx o
que ele realmente pensava sobre o assunto, talvez fosse capaz de
entender a maneira como agira, como não quisera acreditar nas
palavras de Kylie. A verdade era que o compreendia, até certo
ponto. Se alguém me dissesse que ele ou Crystal eram traidores,
eu certamente não acreditaria de primeira. Porém, apesar do
momento ser crítico e o tópico de extrema importância, decidi por
não perturbar nossa efêmera paz.
— Você ainda tem sonhos? — perguntou Bronx, passando a
blusa pela cabeça.
— Não. Desde que saímos da Tumba nenhuma alma me
visitou. Por quê? Acha que posso ter perdido meu poder?
— Dom, Ariana. Você não é uma personagem de quadrinhos —
ele riu.
Sentei na cama, batendo freneticamente os pés no chão.
— Talvez você tenha aprendido a controlar.
Olhei para ele.
— Mas eu não estava tentando. Eu nem tenho ideia de como o
fiz. Se é que é isso mesmo.
— Não foi assim com a faca?
Abanei a cabeça. Ele estava certo. Meus poderes pareciam se
manifestar sozinhos, de uma hora para a outra, mesmo sem meu
consentimento.
— Para que existem os livros, então? — perguntei, agora
estressada por me lembrar de como ficara nervosa ao roubar a
biblioteca, como as luzes pareciam denunciar minha presença.
— Tenho dó de quem escreveu aquilo — disse Bronx. — Já li
algumas linhas, e garanto a você que quem quer que tenha escrito,
com certeza tinha uma visão muito limitada da humanidade. Falo
sério. Tem muita bobagem escrita lá.
Dei de ombros.
— Somos bobos às vezes.
Ele pegou uma bolacha amanhecida de cima da mesa,
analisando-a enquanto a passava entre os dedos.
— Que seja. Apenas pensei que a corja sobrenatural fosse capaz
de coisas mais inteligentes.
Era difícil dizer o que esperar daquele dia. Em muitos aspectos,
parecia que ficaríamos vendo televisão e comendo, esperando as
energias voltarem para continuarmos as buscas. Porém, até
mesmo isso parecia desagradável agora. Não queria descansar.
Preferia ir à cidade, visitar alguns pontos turísticos, antes que a
tempestade chegasse e arrastasse carros e árvores. Fui até a janela
novamente, posicionando meus dedos contra o vidro frio. Se ao
menos um deles concordasse em sair comigo, poderíamos dar
uma volta.
O quarto estava silencioso, de modo que não foi difícil notar o
barulho que parecia ecoar por entre as paredes, a batida constante
que vinha do quarto ao lado — que, por sinal, era de Crystal.
Olhei para Bronx, mas ele parecia absorto demais para ter notado
qualquer som. Estalei os dedos e se ele virou para mim. Por meio
de um sinal, pedi que prestasse atenção. Era como se alguém
estivesse batendo contra o concreto, o vidro e a porta. O que ela
estaria fazendo? Bronx arregalou os olhos e meneei a cabeça,
como se dissesse “ainda não”. Segundos depois, um estrondo
grande demais para ser ignorado foi ouvido. Parecia que ela
estava derrubando o quarto. Em pouco tempo alguém iria ver o
que estava ocorrendo.
Um arrepio percorreu meu corpo ao me lembrar dos
sucumbidores, do rosto pálido de Crystal, agachada contra a
parede, seus olhos vidrados na porta, como se conseguisse
enxergar a criatura através da madeira. A última vez que saíra
correndo ao encontro de alguém, Giovane estava morrendo. Podia
sentir a presença gélida do monstro novamente, se espreitando no
corredor, esperando a hora certa para nos atacar.
Segui para o quarto de Crystal, com Bronx logo atrás. Abri a
porta, esperando topar com alguma criatura horrenda. Minha boca
se torceu de deslumbre ao ver aquelas penas, o contorno suave
das asas. Azriel estava parado no meio do quarto, olhando para
Crystal com uma raiva ardente nos olhos. À sua direita se
encontrava Isabel, a expressão cansada. Não consegui me mover.
Havia algo de estranho naquilo tudo. O modo como Azriel parecia
alterado, diferente de como o vira semanas antes. O olhar de
Isabel, que parecia tudo, exceto surpresa. Foi Bronx quem se
pronunciou primeiro:
— O que está acontecendo aqui? — perguntou, com voz
austera, os olhos focados em Crystal, temendo que estivesse em
perigo.
Ela se virou para nós, arregalando os olhos ao nos mirar.
Parecia hesitante.
— Bronx... — foi tudo que conseguiu dizer, antes de Azriel
cortá-la.
— Olá, velho amigo — disse o anjo, sem sorrir. Havia algo
mortal em seu olhar.
Bronx ficou ereto, porém, não se moveu um centímetro para
dentro do quarto. Pressentia o perigo.
— Vou repetir mais uma vez, e espero não receber saudações
agora. O que está havendo aqui? — perguntou, lentamente, como
se cada palavra fosse uma ameaça.
Senti-me outra vez sob a água, pressionada para baixo cada vez
mais. Estávamos nos afogando.
— Bronx...
— O que você está fazendo parada aí, em primeiro lugar,
Isabel?
A garota ficou em silêncio. Seu cabelo branco estava preso em
um rabo de cavalo no alto da cabeça, e ela usava um simples
vestido preto. Mas nem por isso deixava de estar estonteante. O
que parecia tornar impossível a tarefa de sentir raiva de sua
pessoa.
— Podemos explicar — disse Azriel.
Era um pouco engraçado ver a maneira como contorcia as asas
para que coubessem no pequeno espaço do quarto. O anjo se
aprumou, passando a língua sobre os lábios, esperando que Bronx
se pronunciasse.
— Isso seria de muito bom grado — respondeu o rapaz,
completando em seguida, em tom de escárnio: — Velho amigo.
De repente, a sala estava tomada por uma excitação estranha,
cada um esperando pelo movimento da pessoa à sua frente. Bronx
se retesou ao meu lado, e pude notar que estava mais receoso do
que eu imaginara. Seu punho cerrado. O olhar fixo no anjo, que o
encarava de volta.
— Vamos Azriel — ele riu, sem felicidade. — Me explique.
Estou muito interessado em saber por que está aqui. Não o
chamei. Tenho certeza de que ela também não — gesticulou para
Crystal.
Azriel respirou profundamente, endireitando a coluna e
voltando-se para nós. Suas asas se elevaram alguns centímetros e
ele pareceu crescer. Era como um daqueles animais que possuem
artifícios para enganar suas presas, transmitindo medo com sua
imagem. Alguns usam cores, pele, espinhos. Azriel utilizava suas
asas. E aquilo funcionava. Ah, funcionava. Bastou as finas penas
tocarem o teto para eu sentir meu coração gelar diante da
poderosa criatura que se erguia à nossa frente.
— Não vim por você — declarou o anjo.
— Isso eu sei. Quero saber a razão para você estar aqui —
retrucou Bronx.
— Precisava falar com Crystal.
— Você mal conhece Crystal. O que teria para tratar com ela?
Azriel sorriu.
— Mais do que imagina.
— Aí é que você se engana, pois não tenho nada para imaginar
— fez uma pausa, fuzilando o anjo com o olhar. — Você o
deixou entrar, Crystal?
Ela mal balançou a cabeça.
— Deixou? — perguntou ele, forçando-a a responder em voz
alta.
— Não!
Meu coração disparou. Mesmo sem saber o porquê, queria
gritar para que ela saísse dali, para que se afastasse das duas
criaturas que a estudavam como se quisessem devorá-la. As
palavras de Kylie nunca pareceram tão verdadeiras quanto
naquele momento.
— Então, como está aqui dentro? Você não entraria sem ser
convidado, suponho.
— Eu já estava aqui quando ela acordou, Bronx — explicou
Azriel.
— Por quê?
— Já disse. Tenho assuntos a tratar com ela.
O olhar de Crystal era uma súplica. Faltou pouco para eu
avançar quarto adentro e arrastá-la para fora. Isabel, que até então
observava a tudo calada, tomou frente sobre o assunto, andando
até chegar ao centro do quarto.
— Eu o chamei, Bronx.
Ele pareceu momentaneamente aturdido.
— Por que razão faria isso? Como o conhece?
— É uma história longa.
— Estou com tempo.
— Não, você não está. Tempo é exatamente o que falta para
você.
— O que quer dizer com isso?
— Quero dizer que já gastamos dias demais com tolices.
Sem que percebêssemos, Crystal havia pegado sua faca. Rápida
como uma raposa, se jogou sobre a bruxa, imobilizando-a.
— Crystal — gritei, entrando no quarto e parando acima das
duas. Isabel não parecia surpresa com o ataque repentino. Estava
com as mãos ao lado do corpo, olhando calmamente para a garota
sentada em sua barriga.
— Vá direto ao ponto, ou juro que acabo com você — disse
Crystal.
Fiquei apenas ali, em pé, observando um dos momentos mais
estranhos de minha vida se desenrolar, sem saber se deveria
deixar Crystal onde estava, ou tirá-la de cima de Isabel. Bronx
entrou no quarto, fechando a porta atrás de si.
— Crystal — disse ele, se aproximando. — Abaixe isso. Não é
preciso tanto.
Ela se virou para o amigo.
— Você diz isso por que não sabe a verdade.
— E você sabe?
Ela assentiu.
— Ouvi os dois conversando.
Ele parou a uma distância segura de todos, fitando a protegida,
que ainda segurava sua antiga amada.
— Então me diga — pediu.
Crystal sugou o ar, saindo de cima da bruxa, que arfou ao
respirar novamente.
— Mais uma vez fomos enganados — disse, com ar de tristeza.
— Você foi enganado.
— O que quer dizer?
— Você não os conheceu por acaso. Isabel não apareceu na sua
rua por que encontrou uma casa bonitinha. Ela apareceu por você.
— O que está dizendo, Crystal?
— Estou dizendo que essas duas pessoas, pelas quais você tem
grande apreço, não fizeram nada além de te enganar durante todo
esse tempo. Azriel nunca quis te ajudar por outra razão que não
fosse ganhar sua confiança. E o mesmo serve para essa metida.
Ela parou de falar, deixando as palavras flutuarem no ar, serem
absorvidas por todos. O rosto de Bronx estava lívido. Ele olhou
para Isabel, toda a mágoa guardada transmutada em desprezo. A
bruxa recuou um passo ao sentir aqueles olhos sobre sua pele,
mas retornou à posição austera em questão de segundos. Se
recusava a ficar abalada por aquilo.
— É verdade, Isabel? — perguntou Bronx.
Ela abriu a boca para responder, mas se deteve. Seus olhos
ficaram marejados e ela desviou o olhar. Estava tentando —
inutilmente — continuar com a mesma pose impassível.
— Desculpe-me— disse ela. E apesar de tudo, sua voz soava
séria. Fitou-o. — Crystal está falando a verdade. Fui mandada
para vigiá-lo.
Bronx bufou, incrédulo.
— A mando de quem? —franziu a testa. — Dos Anciãos?
Ela riu, esquecendo-se momentaneamente da tensão que havia
entre eles.
— Não seja estúpido. Não trabalho para eles, muito pelo
contrário. Trabalho para as pessoas que estão tentando derrotá-
los.
Ele balançou a cabeça.
— Para as Invocadoras?
— Mais ou menos.
— Para quem então, diabos?
— Para a Ordem. Eu trabalho para a Ordem.
Minha mente deu um nó. Do que estávamos falando? Ainda não
haviam respondido o que estavam fazendo ao invadir o quarto de
Crystal, e agora a bruxa dizia estar trabalhando para algum tipo de
ordem. Eu possuía perguntas demais, e nenhuma disposição para
fazê-las.
—A Ordem do Renascimento— disse Azriel, vendo nossas
expressões de completa ignorância. — Uma sociedade antiga.
Pensávamos que estavam extintos depois dos massacres, alguns
dos quais eu mesmo participei, mas está claro que isso não é
verdade.
Crystal colocou-se de pé, vendo a chance de se afastar, e se
posicionou ao lado de Bronx.
— E o que é essa Ordem? — perguntou ela. Aparentemente,
ouvira só parte da conversa.
—A Ordem do Renascimento — respondeu Isabel. —é o fim
da humanidade.
Capítulo 60
Ariana
A primeira coisa que me veio à cabeça foram os homens e
mulheres que via na rua, gritando sobre o apocalipse que estava
por vir, sobre como o Todo Poderoso estava prestes a nos
exterminar. Sua raiva cairia sobre nós. Sofreríamos por nossos
pecados e os de nossa raça. Lembrei-me de ver documentários,
filmes e todo o tipo de coisa que se ocupava em retratar o
acontecimento. Aquilo tudo sempre parecera bobagem para mim.
Assim como anjos.
Porém, uma coisa era acreditar em uma criatura, vê-la em sua
frente e ser capaz de tocá-la. Acreditar em toda a extinção de uma
raça por uma força superior, essa qual ainda era questionada e
modificada, era algo completamente diferente. Algo no qual eu
achava difícil de acreditar. É claro que possuía convicção de que,
de uma hora para outra, talvez lentamente, a raça humana seria
extinta, como todas as outras coisas vivas. Mas pensar daquela
maneira, como uma coisa programada por alguém e não o
resultado de variáveis e acontecimentos incontroláveis era, para
mim, senão impossível, algo que estava fora de nossa
compreensão.
— O que quer dizer? Que o fim está próximo? — perguntei,
notando apenas depois o tom de zombaria em minha voz, que foi
recebido com um olhar repreensivo por parte de Azriel.
— Para eles o fim sempre está próximo — disse Isabel. — Não
são mandados por Deus, ou coisa parecida. Nem mesmo eu sei se
acredito em tal coisa. É apenas um grupo de homens e mulheres
que defendem a aniquilação da própria raça.
Contorci os lábios, tanto em desgosto por aquelas pessoas,
quanto por dúvida sobre a veracidade das informações.
— Como assim, você quer dizer que eles fazem planos para
tipo... destruir o mundo?
— Sim — concordou ela.
Eu ri.
— Por que não aproveitamos e chamamos alguma liga de
heróis para nos ajudar? Penso que seriam um pouco mais úteis
nesse momento.
Todos os olhares se voltaram para mim, e me arrependi de ter
dito aquilo. Mas estava começando a soar irritantemente
impossível que tudo o que ela dizia fosse verdade. O fim do
mundo? Ah, por favor.
— Você não pode estar falando sério — provoquei.
— Peço um pouco de respeito de sua parte, Ariana —
repreendeu-me, novamente, Azriel.
Fiquei quieta. Começava a nutrir certa aversão pelo anjo.
— Continue, Isabel— pediu Crystal. — Sobre essa tal Ordem,
o que mais pode nos contar?
A garota voltou-se para ela, concordando,tornando a falar:
— Estão envolvidos em tudo. Infiltrados em todos os lugares.
—Estavam— corrigiu Azriel.
A bruxa arqueou as sobrancelhas.
— Ah. Realmente acha que os massacres adiantaram?
— Talvez.
— Se houvessem funcionado, estaríamos aqui?
— Talvez.
Ela revirou os olhos.
— Como eu estava dizendo, eles estão em todos os lugares. E
geralmente grandes acontecimentos, aqueles que ceifam a vida de
milhares, têm a sua mão. Primeira e Segunda Guerra Mundial.
Ataques terroristas. Desenvolvimento de armamentos. Tudo que
pode acabar com o mundo, ou é criado, ou financiado, ou
incentivado por eles.
— Mas sabíamos o risco que eram — começou Azriel. —
Tanto o lado da Luz quanto o das Trevas. Por isso executamos os
massacres, nos quais matamos centenas deles, enquanto se
reuniam em conselhos. Colocamos lugares abaixo por meio do
fogo, soterrando líderes e seguidores. Travamos diversas lutas.
Tanto na terra quanto nos outros mundos.
— Ambos os lados se juntaram contra eles? — inquiriu Bronx.
— Então não pertencem a nenhum?
— Não — respondeu o anjo. — A causa deles não é apoiada
por nenhum dos lados.
— É claro que não. Eles querem brincar de Deus — ralhou
Crystal, indignada.
Azriel confirmou com um gesto de cabeça.
— Mas vocês os apoiam — disse, olhando para as duas figuras
à minha frente, a bruxa e o anjo. —Caso contrário, não estariam
trabalhando para eles.
— Eu não trabalho para eles— retorquiu Azriel. — Como disse
anteriormente, ainda acredito que seus líderes foram mortos. Sei
também que alguns seguidores ficaram vivos, mas não possuem
mais força.
— Ele apenas me ajudou — disse Isabel, tentando proteger o
rapaz ao seu lado. — O procurei e pedi que fizesse algo para mim.
Ela desviou o olhar, momentaneamente envergonhada.
— Então você está os ajudando — acusou Bronx.
— Sim. Eu os estou ajudando — admitiu o anjo, sem se deixar
intimidar pela decepção na voz do garoto.
— Por quê? —quis saber Crystal.
O anjo sorriu, mas, naquela situação, pareceu mais que sua boca
fizera um movimento estranho.
— Já viu a destruição que sua raça causa? Quantas vidas
aceitam arriscar num campo de batalha, por um desejo
ridículo,quase sempre motivado pelo próprio ego? Por ambição?
—fez uma pausa, olhando para a cidade atrás de nós. O sol agora
estava no ápice, porém, encoberto pelas nuvens, de modo que
apenas a claridade ultrapassava. A tempestade estava a caminho.
— Houve um tempo em que eu acreditava que vocês mudariam,
que se salvariam. Talvez percebessem o que estavam fazendo.
Talvez conseguissem tomar as medidas certas a tempo — outra
pausa. Desta vez, quando voltou a olhar para nós, seus olhos
estavam cheios de compaixão. — Mas isso não aconteceu, é claro.
Vocês pioraram. Tornaram-se mais ferozes, ainda que não no
sentido convencional. Tornaram-se mais egoístas. Se é que isso é
possível.
Fitei-o, incrédula.
— Então você simplesmente optou por aniquilar a raça
humana?
— O que queria que eu fizesse? — perguntou Azriel, em tom
calmo, como se não compreendesse a raiva que era direcionada a
ele.
— Que tentasse nos ajudar, não apoiar um grupo macabro de
destruição em escala global. Você é um anjo. Não deveria,
supostamente, estar do nosso lado?
— Você quer mudar a mentalidade de sete bilhões de pessoas?
Boa sorte com isso.
— Não quero mudar a mentalidade de ninguém. Nem todas as
pessoas são assim como você descreve.
Ele franziu os lábios.
— Mas a maioria é. Então, o que importa? O mundo é feito de
massas, não de indivíduos.
Eu não acreditava no que estava ouvindo. Ele não podia estar
me dizendo que a única maneira de salvar a humanidade era
aniquilando-a. E tudo o que havíamos conquistado e criado? Tudo
o que fizéramos iria apenas se perder no tempo? Se transformar
em pó, assim como queriam fazer conosco? Não aceitaria isso.
— Você acredita nisso, Isabel? — perguntou Bronx, o desgosto
estampado em sua voz.
Ela o fitou com os olhos vermelhos, abraçando a si mesma. É
claro que ela acreditava. Por que outra razão estaria ajudando? Ele
se aproximou, parando a poucos centímetros dela. Não tinha
certeza se Isabel estava realmente tremendo, ou se era apenas
impressão minha. De qualquer maneira, ela não conseguia encará-
lo. Foram necessários alguns segundos até que finalmente
levantasse a cabeça.
Uma parte de mim sentia-se mal por ela. Por ter de passar por
isso. Tinha quase certeza — quase — de que era tão vítima da
situação quanto nós. Que sua parcela de culpa na história era, se
não algo forjado, forçado sobre sua pessoa, até que não houvesse
alternativa a não ser ceder. Mas a outra parte, essa sentia nojo.
Desprezo pela criatura que aceitara tamanha bestialidade como
solução, transformando-a na causa pela qual lutava.
— Você alguma vez me amou? —a voz de Bronx era baixa,
amargurada.
Ele ainda a amava. Mesmo depois de tudo, o morto ainda
amava a bruxa.
Uma lágrima escorreu pela face dela, e fiquei esperando que ele
a secasse. Bronx continuou imóvel, assim como Isabel. Crystal,
Azriel e eu havíamos parado de conversar para observar o que se
desenrolava à nossa frente. Aquela cena perduraria em minha
memória. Apenas não sabia disso ainda.
— Eu sempre o amei. Sempre — respondeu ela, em um tom tão
temeroso que o quarto pareceu diminuir, empurrando-nos em sua
direção. — Cada vez que nos tocávamos, cada vez que eu
sussurrava algo em seu ouvido, estava sendo completamente
sincera.
A expressão no rosto de Bronx abrandou, mas seu peito subia e
descia em um ritmo acelerado. Seus olhos perscrutaram o rosto da
bruxa, estudando cada pedaço. Esperei que a tomasse em seus
braços, que a beijasse. Ele ainda a amava, e ela estava em sua
frente, dizendo que sempre fora recíproco. Então, por que
continuava parado? O que o impedia?
Lentamente, ele se afastou.
— Ariana — disse Isabel, passando a mão no rosto e se
recompondo. De repente, a bruxa estava de volta, e não havia
vestígios da moça apaixonada de segundos atrás. — Há mais uma
coisa que você deve saber. E peço que não se zangue. Nem tenha
raiva dele.
Meu estômago se revirou.
— Raiva de quem? — perguntei.
— Giovane — respondeu ela.
Todos os presentes se voltaram em sua direção. Ela não estava
dizendo o que eu pensava. Giovane, não... isso não podia ser
verdade. Ele era meu amigo. E primo de Lucas. Foi por meio dele
que o conheci. Não seria possível que...
— Não —senti minha voz embargada. A negação.
— Sinto muito, Ariana. Ele era um de nós.
Balancei a cabeça.
— Não, não.
— Por que pensa que cheguei exatamente após sua ida? Tudo
que fazemos é meticulosamente planejado.
Não podia ser verdade. Giovane era meu amigo, porém, mais
do que isso, era o único que restara dos antigos. O único que não
havia me abandonado na primeira oportunidade. Um choque
percorreu meu corpo ao me lembrar de como fora rígido quanto
ao fato de nos acompanhar. Como sua voz soara convicta. Ele não
podia perder o alvo de vista. Ele não podia me perder de vista.
— Isabel, ele era meu amigo. Uma das poucas pessoas em
quem eu confiava. Como pode me dizer que isso foi uma mentira?
— Giovane realmente foi seu amigo, Ariana. Pode não acreditar
nisso agora, mas eventualmente perceberá ser verdade. Ele nunca
quis seu mal. Não pense que foi fácil para ele abandoná-la.
— Por quê? Por que precisavam se aproximar de nós? Não
bastava nos observar à distância? Tinham que entrar em nossas
vidas?
— Sinto muito se isso te faz sofrer. Precisávamos ter certeza de
que as Invocadoras seriam exterminadas. E também estar
envolvidos para intervir quando necessário.
— Invocadoras essas com as quais vocês dizem estar lutando
— objetou Crystal. — Isso é um pouco confuso. E um tanto
desleal, se me permite dizer. Por que iriam querer se certificar de
que as mataríamos, se vocês estavam lutando ao lado delas o
tempo todo?
— É complicado. Não...
Um baque alto soou na porta. Tudo aconteceu rápido demais.
Em um segundo, estávamos todos reunidos, no seguinte, a porta
estourava quarto adentro, enquanto Azriel se jogava contra o
vidro da janela, partindo-o em milhares de pedaços, a fim de
encontrar liberdade. Estilhaços voaram para todos os lados,
parecendo pequenos pedaços de cristais, iluminados por uma cor
cinzenta que emanava do céu. Abaixei-me, tentando me proteger
dos cacos que choviam sobre nós. Senti alguns deles cortarem
minha pele, mas não havia tempo para reparar nisso. Os homens
que invadiram o quarto já se recuperavam da surpresa.
Olhei para trás. Nenhum sinal do anjo. Os pedaços de vidro
ainda presos na borda da janela pareciam dentes de uma boca
gigante, prestes a nos engolir. Recuei instintivamente, batendo em
um dos homens sem perceber. Soquei-o enquanto me virava, já
me preparando para a defesa, quando percebi que era Bronx.
Sussurrei uma desculpa, que foi encoberta pelos gritos de
comando, vindos de alguém em meio ao grupo que invadia o
quarto. Cinco policias estavam à nossa frente, olhando-nos de
cima a baixo, analisando o que poderíamos ou não fazer — e
fazíamos o mesmo com eles. O mais alto, que eu pensava ser o
capitão, gritava algo que não consegui interpretar. Possuía o
cabelo cinza ralo, e o rosto marcado pela idade. Quando falava,
suas bochechas se mexiam convulsivamente, como se tivessem
vida própria.
O que estava dizendo? O que estava acontecendo? Minha
cabeça girava. A cacofonia ensurdecedora encobria tudo que a
acompanhava. Abaixo de nós, a uns dez metros, automóveis
passavam zunindo na rua, buzinas eram pressionadas, carros
propaganda enchiam o ar com seus anúncios. Os homens se
moviam em nossa direção como leões famintos, enquanto
gritavam uns com os outros, brandindo suas garras. Consegui
compreender três palavras e, para mim, eram de longe as mais
preocupantes.
“Prendam esses jovens”
Antes que pudesse tomar qualquer atitude, Bronx segurou meu
pulso com firmeza, como se dissesse não se mova. E eu obedeci.
O que mais poderia fazer? Claro que queria sair correndo, mas
para onde? Os policiais, agora muito próximos, bloqueavam a
porta e, atrás, depois da janela, tudo o que existia era uma queda
de dez metros em direção ao solo, com a garantia de uma coluna
quebrada como bônus. Não gostava de nenhuma das opções.
Olhei para ele, perguntando-me se não era a hora de usar meus
poderes. Seu olhar era resoluto, e possuía um inquestionável não
estampado nele. Os homens se aproximaram mais. O que parou à
nossa frente aparentava uns quarenta anos. O cabelo, de um loiro
mal tingido, caía atrás da orelha e era falho acima da testa. Os
olhos castanhos nos encaravam com um ar de desafio, como se
fôssemos animais que necessitavam de adestramento. Percebi a
arma em seu cinto, e gostei por ela não estar em sua mão. Não
sabia o que havíamos feito, mas estava feliz por não precisarem
disparar contra o grupo de adolescentes que estavam abordando.
Eles avançavam rapidamente. Em pouco tempo estariam sobre
nós, e então não teríamos mais chance. Chance do que, afinal? O
que poderíamos fazer naquela situação que não envolvesse meus
poderes para paralisá-los? Lutar corpo a corpo não era uma opção,
muito menos matá-los. Precisávamos fugir. Correr para o mais
longe possível.
Algo interrompeu meus pensamentos de fuga. Alguém estava
engasgando. Não sabia ao certo de onde vinha o som. Meus olhos
percorreram o pequeno espaço no qual nos encontrávamos, e
quando pousaram em Isabel, soltei algo parecido com um gemido
de dor misturado à um grito de desespero. Seus olhos pareciam
saltar das órbitas, e as veias estavam salientes sob a pele
transparente. De repente, seu frágil corpo foi assolado por uma
tosse escabrosa. Ela tossiu uma vez. E outra. Em pouco tempo
suas mãos estavam cobertas de sangue, e ela fraquejou sobre as
pernas. Antes que Bronx, Crystal ou eu pudéssemos fazer algo,
seu corpo tombou para trás, lentamente, mais devagar do que uma
pena ao cair no chão. Suas costas atingiram o piso, e então, sua
cabeça, ricocheteando contra o ladrilho duro.
Isabel estava morta.
Epílogo
Max
Sabe como você possui um pesadelo constante? Uma história
que o persegue mesmo quando está acordado? Sempre penso
nisso. Na maneira como algumas pessoas têm medo de vampiros,
demônios, fantasmas e outras criaturas. Sempre achei uma
besteira. Não acho que esses medos sejam justificáveis. A menos,
é claro, que já tenha tido seu sangue sugado, ou seu corpo
possuído — não discutirei sobre os termos dos fantasmas, parece
um tanto desnecessário para mim.
Do que eu tenho medo?
Tenho medo deles.
Ainda me lembro da primeira vez em que estive no inferno. Da
maneira como me estudaram para se certificarem de que estava
apto para fazer o que quisessem. Enfiavam varas em meu rosto e
apontavam todos os defeitos que eu sequer possuía. Caso fizesse
tudo certo, passava o dia na cela, de uma forma que comecei a
pensar como sendo feliz. Caso fizesse algo errado, bem, aí era o
que eu costumava chamar de dias ruins. Privação de água e
comida era apenas o começo. Ainda que os velhotes não fizessem
o trabalho sujo, alguém o fazia. Quase sempre passava as noites
chorando, encolhido no canto da cela, tentando ignorar a dor
latejante dos cortes feitos por cordas em minhas costas.
Na época, eu conhecia apenas uma palavra. E essa, era medo.
Ainda hoje, meu corpo se retesa quando me lembro dos dias
que passei enclausurado naquele lugar. Do cheiro de podridão que
exalava das pedras frias que me cercavam. Aquilo não era o
Inferno em si. Mas certamente era um pedaço dele.
Aradolm ocupava seu trono, aquele que denotava maior poder
no Salão Principal, entre os outros seis. Todo o encosto da pedra
— por que o assento era um grande bloco maciço de mármore
branco – era revestido com uma generosa camada do melhor
algodão, com uma fina peça de veludo vermelha por cima. Seu
cabelo grisalho continuava do mesmo tamanho, pouco acima dos
ombros. E os olhos azuis ainda eram gélidos como duas espadas
afiadas.
Do lado direito, se encontravam outros três Anciãos. No
primeiro trono estava Reinhold, de longe o mais jovem. Seus
cabelos negros caíam como a noite em torno de sua face,
contornando as orelhas pontudas. Trajava a mesma capa negra da
qual me recordava do dia em que havia ido embora. Quero dizer,
havia sido mandado embora. Lembro-me de certa vez quando ele
quase fora punido por me dar um pedaço a mais de pão. Se existia
alguém de bom coração no meio daqueles homens, o que eu
achava difícil, esse era Reinhold.
No trono seguinte estava o ranzinza Elmerich, a quem eu
costumeiramente chamava de “velhote idiota”, quando ninguém
estava ouvindo. Passara muitas noites a rogar pragas em todos os
Anciãos— até mesmo em Reinhold. Mas por nenhum deles nutria
um ódio tão profundo quanto por Elmerich. Aquele espécime
rechonchudo era simplesmente a personificação do desgosto.
Chutava-me sem razões aparentes e se referia a mim por diversos
nomes, para sempre ter algo novo com o que me ofender.
Ao seu lado estava Decimus, cuja pele me lembrava duma lasca
de carvão. Contra ele não tinha nada, exceto talvez pela sua
compulsão em filosofar sobre a vida. Até que gostava de suas
aulas — nas quais iria de qualquer maneira, já que era obrigado
—, mas sua língua parecia estar ligada a uma tomada.
Simplesmente não conseguia fechar a boca. E já que silêncio era
algo apreciado pelos Anciãos das Trevas, eu não era o único
incomodado com seu falatório desregulado.
Do lado esquerdo se encontravam os outros Anciãos, tão ruins
quanto os primeiros, senão piores.
O primeiro trono era ocupado por um velho barbudo do qual me
lembrava muito bem. Todas as minhas técnicas de ataque e defesa
provinham daquele homem. E,precisava admitir, com certa
relutância, que ele havia sido um ótimo professor. Não havia um
combate do qual eu participasse em que não me lembrasse de suas
aulas, dos olhos repreensivos em minha direção, das mãos
ajeitando minhas pernas ou braços até os movimentos saírem
perfeitos. Era ele, também, o Ancião que me dera o pior apelido
— pior ainda que os de Elmerich. Pequeno Sacrifício. Era disso
que me chamava. Era isso que considerava o ato de salvar minha
família. Não havia um momento em minha vida em que não me
lembrasse de Aimon.
Seguido dele, Nikandros. Os olhos verdes, quase sempre
semicerrados, e o cabelo branco, que falhava em várias partes de
sua cabeça, lhe conferiam o aspecto de um avô. Dentre todos, o
mais cruel. Também, o mais calado. Penso que o ouvi cinco ou
seis vezes dirigindo algumas palavras a mim, todas ameaçadoras.
Agradeço agora não conseguir me lembrar delas, ou do que fiz
para merecê-las. Se é que merecia.
No último trono da esquerda estava Petronius. Sua estatura alta
e cabelo ruivo faziam-no parecer um grande palito de fósforo. O
qual, sem muito orgulho, por vezes já quisera acender. Não era
bom nem mau. Era apenas um Ancião. O mais submisso, pelo que
havia notado. Obedecia a todas as ordens, sem questionar ou
argumentar. É claro que suas opiniões sobre meu desempenho
eram levadas em conta, afinal, era um dos sete. Contudo, eu
nunca soube muito sobre ele, se possuía algo em que se
destacava, ou se era Ancião simplesmente por que nascera um.
Existiam histórias — as quais ouvira apenas ao visitar a Cidade
— de como os Anciãos nasciam. Uma pior que a outra, e todas
tão verdadeiras que seria impossível provar o contrário. Lembro-
me de uma mulher me contando que os Anciãos eram
cruzamentos entre humanas e anjos caídos, e que seus pais eram
demônios tão horrendos que até mesmo o Inferno os expulsara.
Quando a perguntei como aquilo seria possível, a mulher se calou.
E, para mim, esse fora o sinal de que a informação não provinha
de fontes confiáveis. Outra vez, indaguei um menino que
perambulava pela rua a mesma coisa. Ele apenas balançou a
cabeça, lançando-me um sorriso horrível ao dizer que existiam
mulheres que passavam a vida trancafiadas naquela prisão de
pedra, cujo único dever era procriar, para que a linhagem de
sangue dos Anciãos jamais se extinguisse. Fosse como fosse, até
hoje eu não sabia a verdade.
Aradolm debruçou-se de maneira cansada no apoio de braço,
encarando-me com olhos atentos.
— Então, você está pedindo para sair?
— Sim — respondi, fazendo minha voz soar o mais firme
possível. Pedir algo aos Anciãos ainda era uma novidade para
mim. Mesmo tendo mais coragem agora, minhas pernas tremiam
e eu me esforçava em mantê-las paradas.
O Ancião olhou-me de cima a baixo. Tentei me visualizar à
minha frente. O cabelo preto bagunçado e grudado em minha
nuca e testa; a blusa rasgada, suja e molhada; a calça preta, que
agora possuía um corte em toda a lateral da batata da perna; e, por
fim, minha pele, banhada em terra, sangue e suor. Eu certamente
parecia um guerreiro, mas nem de longe um ser humano. Tal qual
as criaturas da noite de quem ouvira falar, andando em trapos e
sujeira por entre os becos do mundo.
— Estou curioso, Foster. Por que gostaria de retornar àquele
lugar? Já cumpriu sua missão. Não existe necessidade de sair do
Mundo das Trevas.
— Desculpe-me, senhor, mas o garoto ainda está vivo. Penso
que pode entrar e sair do Mundo das Trevas sem nossa permissão.
— Cale a boca, Reinhold — replicou Aradolm, sem olhar para
o homem.
Os olhos de Reinhold se arregalaram por um segundo.
— Qual era minha missão, exatamente, meu senhor? —
perguntei, dirigindo-me ao velho Ancião na cadeira central. Ele
ficou em silêncio, como se ponderasse responder ou não. Sentia-
me um completo idiota em sua presença.
— Como eu lhe explicara anos atrás, sua missão era corromper
a menina, mostrá-la como era boa a sensação de poder até que ela
aceitasse o que de fato era.
— Até o ponto em que aceitasse as Trevas — repeti o que ele
me dissera pouco antes de me mandar na missão. — Por que ela
tinha luz demais?
— Por ela tem luz demais, meu jovem.
Vi ali minha chance.
— Mas então minha missão não está completa. Ela ainda possui
luz em seu coração. Deixe-me voltar para acabar com o que resta.
Deixe-me ir até ela e acabar o que comecei. Encerrar minha
missão.
— Sua missão acabou — relinchou Elmerich, e fiquei
esperando ele completar a frase com seu bostinha.
— Não. Se o que o Grande Senhor Aradolm — referir-me a um
Ancião para outro era algo ainda mais complicado. Todos
gostavam de respeito, mas, para mim, aquilo já era exagero. —
está dizendo é verdade, então ainda há algo a ser feito. Ela ainda
não está pronta.
— Ela está pronta, sim — disse Aimon. — Não como
queríamos. Porém, pronta.
— Ela já assumiu seu lugar? — questionei.
— Assumiu no momento em que começou a auxiliar as almas
em seus sonhos. No momento em que teve a primeira conversa
com um deles. Esperávamos que pudesse apenas transformá-la em
uma versão mais cruel de si mesma, mais fria. Você fez o que
pôde, Foster. Não lhe julgaremos pelos resultados.
Aquilo era um verdadeiro elogio, mas não o suficiente para me
fazer desistir.
— Isso não pode acabar assim — minha voz subiu um tom, o
que, para eles, era uma ofensa. Abaixei a cabeça quando sete
pares de olhos me fuzilaram. — Desculpem-me. É só que...
— Por que se preocupa tanto com a Invocadora? — perguntou
Decimus, e, por sua voz, parecia genuinamente confuso.
Senti que aquele era um terreno perigoso. Havia demonstrado
meus interesses. Estava colocando em risco todas as mentiras que
contara como sendo as razões para querer voltar. Entretanto,
temia que agora já soubessem minhas verdadeiras intenções.
— Não me preocupo com ela. Preocupo-me com o bem de
minha missão — menti.
Aimon riu. A mesma risada. A mesma bola de pelos entalada
em sua garganta asquerosa. Eles não haviam mudado nada.
— Você está diante da Corte das Trevas, Foster. Se estamos lhe
dizendo que sua missão foi bem-sucedida, não é por que
queremos que questione isso, e sim por que desejamos que receba
essas palavras como uma ordem, abanando a cabeça e nos
agradecendo — disse Aradolm.
De repente, uma lembrança veio à minha mente, límpida como
água cristalina. Estava conversando com Aradolm, pouco depois
de ter chegado. Ele me explicava como funcionavam as coisas,
como cada um possuía seu lugar, e como isso era imutável.
Lembro-me de ter reparado na maneira como se referiam a certos
locais. Em especial, à cidade e à Corte. Os dois pertenciam ao
mesmo lado, e, ainda assim, levavam nomes diferentes. A cidade,
onde a maioria das almas vivia, era chamada de Penumbra. Já a
corte, era referida como sendo das Trevas. Perguntei-o o porquê
daquilo, por que não chamar a cidade de Cidade das Trevas, já
que era a esse lado que ela pertencia. Aradolm respondeu “Trevas
são escuras, como as sombras, Foster. Porém, divergem das
sombras em uma característica: nunca recebem luz. Por isso
chamamos a cidade de Penumbra. Uma sombra iluminada, em
meio a um mar de trevas. Vez ou outra, uma alma é tocada pelo
bem que existe no universo, mesmo dentro daquele lugar, onde as
alegrias só podem partir das tristezas. E então sai de lá, como se
as trevas nunca houvessem estado em seu coração. Por que, de
fato, nunca estiveram. O que havia ali eram sombras, e essas são
mutáveis. Já a Corte, Foster, essa não recebe luz. Nunca.”
E agora eles provavam isso para mim, mostrando-me que
mesmo depois de tudo que fizera por eles, ainda não existia uma
gratidão a ser recebida. Um desejo a ser cumprido como forma de
pagamento.
Não consegui dormir naquela noite. Tampouco parar de pensar
em Ariana. Precisava sair daquele lugar, chegar até ela. Caso
contrário, nunca saberiam o que realmente acontecera. Que eu
estava aqui novamente, no lugar que mais odiava em todo o
universo, cercado pelas outras sete criaturas que mais detestava
em todo o universo. Não tinha certeza se minha sede por fuga era
apenas por meus amigos ou também por me ver livre. Penso que
ambos.
Mas não tinha como sair. O portal era protegido, e eu não
poderia ultrapassá-lo a menos que Aradolm ou qualquer outro
Ancião me desse um passe livre. Por essa razão, antes das sete da
manhã do dia seguinte, coloquei-me de pé, sentindo o peso da
noite mal dormida em meus ombros, e segui para a Sala Principal.
Os corredores — que compunham grande parte da construção
magnífica que era o Palácio das Trevas — eram sempre
compridos, com o teto tão alto que causava vertigem apenas de
olhá-lo. As paredes, assim como o restante, eram feitas de pedra
fria, decoradas com grandes quadros dos antigos Anciãos. O
lugar, sempre tão gelado, tornava necessário estar agasalhado para
cruzar uma área muito extensa da edificação — o que ocorria
frequentemente.
O palácio possuía duzentos quartos, uma cozinha equivalente a
quarenta deles, uma sala tão grande que era impossível estimar
sua área, e tantos outros tipos de cômodos que jamais me
lembraria de todos de uma só vez. Um deles era a sala de
Aradolm. Parei em frente à majestosa porta. Madeira de carvalho
com pequenas inscrições entalhadas na borda. Até os objetos
daquele lugar pareciam possuir um ego maior do que lhes cabia.
Por meses meus olhos percorreram aquelas gravuras, tentando
entender seu significado. Mas tal conhecimento estava fora de
meu alcance, e nenhum dos Anciãos se dispôs a sanar minhas
dúvidas, não importando as inúmeras vezes em que pedira.
Bati.
O velho Ancião olhou para mim, soltando um suspiro ao abrir
um pouco mais a porta. Com um movimento de cabeça, indicou a
cadeira de estofado marrom em frente à uma grande mesa de
pedra preta. Sentei-me.
— Pensei que não desistiria facilmente — disse ele, sentando-
se em sua cadeira.
— Pensou corretamente — respondi, sentindo-me triunfante.
— Pensei, também, que você está um pouco atrevido desde que
voltou — apesar das palavras repreensivas, seu olhar continuava
neutro. Aquilo era perigoso. Os Anciãos nunca demonstravam o
que estavam pensando, muito menos suas opiniões. Não sabia se
minhas palavras me levariam para a liberdade ou para o fosso.
— Desculpe-me, senhor — respondi, deslizando as costas pelo
encosto frio.
— Não há de que se desculpar —cruzou as mãos, pousando-as
sobre o tampo da mesa. — O amor nos torna escravos de nossos
sentimentos. Muitas vezes não pensamos ao agir.
— Perdão?
Ele sorriu com escárnio.
— Estamos apenas você e eu aqui, Foster. Não há por que
fingir que se importa com o... como disse? Bem de sua missão?
Então. Não há por que fingir que se importa com o bem de sua
missão. Ambos sabemos que não dá a mínima para nós, quanto
mais para nossos interesses. No dia em que possuirmos objetivos
iguais, posso lhe assegurar que algo estará errado.
Não respondi. Sentia-me pequeno e indefeso. O velho se
recostou na cadeira, observando-me com cautela. Quando voltou
a falar, não havia zombaria em sua voz.
— Diga-me a verdadeira razão para querer sair daqui e lhe darei
minha resposta.
— O Senhor não havia dito que essa era não?
— Neguei sua proposta anterior, que claramente era uma farsa.
Ainda não me ofertou um novo pedido.
— Não possuo nenhum.
— Disso eu discordo.
— Pois estou lhe dizendo. Não possuo outra posposta ou
pedido.
Houve um breve silêncio.
— Bem, então não será possível sua saída do Palácio, Foster.
Peço que se retire agora.
Congelei. Não podia aceitar aquilo. Não podia permanecer ali.
— Não — falei.
— Não?
Aquela simples palavra era um ameaça, mas precisava me
manter firme.
— Não posso aceitar seu não, senhor.
— Não posso aceitar sua oferta, Foster.
Ele me encarava com intensidade, e eu sabia bem o que queria
que eu dissesse. Ele sabia sobre Ariana. Sobre nós. A única coisa
que não entendia, era por que queria ouvir aquilo de mim.
Não conseguia fazer as palavras saírem. Meus sentimentos
pareciam cacos de vidro ao se transformarem em palavras,
cortando minha garganta cada vez que tentava pronunciá-los.
Fechei os olhos, procurando encontrar forças para proferir aquilo.
Sob minhas pálpebras, estava tudo que não conseguia esquecer.
Em meus ouvidos, ecoava a mesma frase melódica, como uma
nota tocada repetidamente: não vou te deixar.
— Quero voltar por ela — admiti, abrindo os olhos.
Eu estava explodindo por dentro. E me arrependia agora das
palavras que deixara escapar. Aradolm ainda me olhava com a
mesma expressão neutra, fazendo a inquietação em meu estômago
aumentar. Depois do que pareceram anos, ele esticou a mão até
uma gaveta em sua mesa, tirando um pedaço de papel de dentro
dela e entregando-o para mim. Meus dedos tocaram a folha com
uma sensação estranha, como se a reconhecesse, ao mesmo tempo
em que a desconhecia totalmente. Havia algo escrito, e datava da
noite em que sofrêramos o ataque.
Ao terminar de ler o texto, minha boca estava seca. Ariana
estava tão confusa quanto eu estava arrependido. Não sabia o que
pensar. Ela queria que eu voltasse? Eu queria voltar? Se antes
tinha convicção de minhas respostas, agora já não tinha mais
certeza nem sobre as perguntas. Soltei o papel, como se estivesse
tocando em algo infectado. Levantei os olhos para o Ancião.
Aradolm continuava impassível.
— O que é isso? — perguntei.
— Ariana nunca teve um diário, isso você já deve saber — ele
dizia as palavras com tanta fluidez que me perguntei quanto
tempo passara formulando sua resposta, já que eu parecia ter feito
a pergunta certa. — O que você não sabe, é que ela escreveu
algumas linhas pouco antes de deixar a casa. As mesmas que você
acabou de ler — debruçou sobre a mesa, aproximando-se. —
Agora, posso ser apenas um velho, mas já fui moço um dia, e
posso dizer que toda essa chama primaveril acabará por queimar
sua amiga.
— Talvez — respondi, encarando-o da mesma maneira neutra
com que me encarava. Isso era algo que eu havia aprendido em
meus tempos no palácio. Como parecer não sentir nada quando
você, na verdade, está sentindo tudo.
Uma pequena pausa se seguiu.
— Por que está me mostrando isso? — quebrei o silêncio.
— Queria que soubesse exatamente o que ela sentia pouco
depois de seu sumiço, para entender a gravidade do que está por
vir. Você precisará tomar uma decisão ao final de meu discurso, e
espero que pense bem no que acabou de ler, na quantidade de
raiva que Ariana demonstra possuir dentro de si, e como isso pode
ser letal para todos nós.
— Decisão?
— Sobre sua nova missão.
O chão pareceu falhar sob meus pés. Outra missão? Que merda
era aquela?
— Não há missão alguma — esbravejei. — Vocês fizeram um
juramento. Eu ia com vocês, fazia o que me pediam, e então
recebia liberdade. Disseram que não haveria nenhuma outra
missão. Não podem fazer isso comigo.
— Peço que me ouça com atenção, Foster. Pode se arrepender
de suas palavras se não ouvir minha proposta.
Cruzei os braços, bufando de raiva, e me joguei contra o
encosto macio da cadeira. Aradolm suspirou, focando longe antes
de voltar a falar.
— Você já ouviu falar do Círculo do Arrebatamento? —
começou ele.
Balancei a cabeça.
— Imaginei que não — anuiu.
Ele se levantou e começou a andar de um lado para o outro.
— Penso que saiba, meu jovem, que nosso mundo é muito
diversificado. Temos pessoas brancas, negras, pardas, albinas. De
diversas compleições físicas. E, em meio a tudo isso, existe algo
ainda mais profundo sob nossa pele: nossas crenças. Talvez já
tenha ouvido falar de diferentes grupos ocultos que trabalham nas
sombras, sem serem percebidos ou reconhecidos. Alguns deles
são reais, outros apenas história. De qualquer forma, precisamos
nos preocupar somente com um deles: A Ordem do
Renascimento.
“Eles são completamente insanos. E, para nossa infelicidade,
poderosos. Os seguidores da Ordem creem em um novo mundo,
na destruição de sua raça e na criação de uma superior. São tão
antigos quanto qualquer outra seita, mas devido à suas crenças,
pouco queridos. O que tornou a busca por seus ideais algo
complicado.
Contudo, ao longo do tempo, cresceram e se fortificaram, ao
ponto de nos chamar a atenção. Por volta dos séculos quinze e
dezesseis, invadimos seus conselhos e erradicamos a maior parte
de seus fiéis. Pensamos ter acabado com seus líderes,
enfraquecendo-os por um bom tempo. Mas parece que voltaram,
ainda mais ambiciosos. Pretendem usar o poder de nossas
Invocadoras para finalmente atingirem seus objetivos. E isso, meu
caro, é o Círculo do Arrebatamento. Nove Invocadoras que
utilizarão seus dons para trazer destruição, dor e extinção à sua
raça.
É aí que Ariana entra. Os Arrebatadores, como são chamados
os seguidores da Ordem, tramaram um plano meticuloso para
conseguir envolver ela e Crystal nisso tudo. As Invocadoras a
mais, criadas a partir de uma magia tão antiga que não fomos
capazes de interpretar, não são, nem de longe, tão poderosas
quanto as genuínas. Eles precisam das duas. Por essa razão,
criaram uma teia de contatos tão grande as envolvendo que ambas
acabaram sendo pegas por mentiras, acreditando estar cumprindo
nosso plano ao matar aquelas garotas, e não os da Ordem.
Acontece que nenhum círculo é perfeito a menos que possua
nove integrantes. E nossas Invocadoras retiraram duas do jogo. O
que implica em algo que não poderão negar. Não depois do que
fizeram.”
— O que você quer dizer? — a verdade era que queria apenas
ganhar tempo com a pergunta. Sabia o que ele iria responder, e
não queria ouvir. Sabia o que ele diria, mas não queria acreditar.
— Quero dizer que alguém precisa substituir as garotas que
participavam do Círculo. Que a Ordem irá atrás delas, e parará
apenas quando aceitarem, de bom grado ou não, juntarem-se a
eles.
AGRADECIMENTOS
Preciso dizer, antes de tudo, que sou grata a mais pessoas do
que poderia enumerar aqui. Cada personalidade com a qual tive o
prazer de me relacionar me marcou de alguma forma – tenha sido
ela positiva ou negativa. E, eventualmente, ainda que eu não
perceba, deixou – ou deixará – sua marca em minha narrativa.
Quero agradecer aos meus pais, Marcelo e Érika, por terem me
dado tamanho suporte, não desacreditando quando eu disse, para a
surpresa de todos: quero ser escritora; a Maria Leão, minha
“boadrasta”, por ter lido e relido as primeiras versões do texto,
bem como por ter dado sua opinião e tempo em prol de torná-lo
melhor; aos meus avós e tios,por terem ouvido minhas ideias, sem
nunca ter proferido uma palavra que não fosse de encorajamento.
Agradeço às duas primeiras pessoas que ouviram sobre a história
de Ariana, Camila Palladino e Tamiris Borges. Por fim, agradeço
a você, leitor, por ter me acompanhado durante essas páginas.