c. neves teoria do direito i

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  • 8/2/2019 C. NEVES Teoria Do Direito I

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    A.CASTANHEIRA NEVES

    TEORIADODIREITO

    Lies Proferidas no ano lectivode 1998/1999

    UNIVERSIDADE DE COIMBRA1998

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    I. INTRODUO

    1.A actualidade da teoria do direito

    A) A Teoria do Direito pretende oferecer-se como uma disciplina diferenciada

    no universo global do pensamento jurdicodiferenciada no seu objecto especfico, no

    seu estatuto epistemolgico e na sua temtica. Todavia nem sempre vemos muito ntida

    essa diferenciao ao nvel das suas efectivas tentativas de realizao, o que contrastabem manifestamente com o objectivo que lhe foi originariamente intencional. H-de

    reconhecer-se, com efeito e em virtude dos seus mais recentes desenvolvimentos, que a

    Teoria do Direito hesita cada vez mais o seu lugar entre o regulativo normativo-jurdico

    e a filosofia do direito (v., desde j e como exemplo, A. KAUFMANN,Rechtsphilosophie,

    Rechtstheorie, Rechtsdogmatik, in Rechtsphilosophie und Rechtstheorie der Gegenwart,

    6. ed., 1994, 1-29), por um lado, entre a sociologia jurdica e a poltica do direito (v.

    infra, a propsito sobretudo da Teoria Crtica do Direito), por outro lado. No entanto,na sua inteno originria, a partir da segunda metade do sc. XIX, tratava-se de

    conferir um estatuto rigorosamente cientfico ao pensamento jurdico stricto sensui. ,

    ao estudo jurdico (que no filosfico, histrico, sociolgico, etc.) do jurdico ou

    considerao jurdica do direito que lograsse elev-lo ao nvel de uma teoria em

    sentido autntico, o sentido que o cientismo do sc. XIX identificara com a cincia, tal

    como esta tambm exclusivamente a entendia (o conhecimento teoreticamente objectivo

    e racionalmente sistemtico de um qualquer objecto) e na qual via o critrio decisivo da

    validade cultural. E isso por duas razes principais: porque tambm no pensamento

    jurdico se haveria de assumir a inteno, prpria daquele cientismo, de superar a

    filosofia pela cincia (o especulativo subjectivo ou arbitrrio pelo teortico objectivo)

    e porque se duvidava que o tradicional pensamento jurdico normativo-dogmtico ou

    jurisprudencial (visto ento apenas como prtico-tcnico) merecesse a qualificao de

    cincia, de teoria, naquele sentido rigoroso que se pretendia. Da a exigncia de

    uma teoria do direito se no necessariamente em substituio, decerto para alm

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    daquele pensamento jurdico-dogmtico no prprio mbito do estudo-conhecimento

    jurdico do direito.

    Decerto que no universo global do pensamento referido ao direito sempre se

    distinguira e diferenciara a filosofia do direito (durante sculos identificada com o

    direito natural e s no sc. XIX deste autonomizada) da dogmtica jurisprudencial

    especfica dos juristas e se viria depois, a partir dos fins do sc. XVIII, a distinguir e a

    diferenciar tambm a histria do direito e no final do sc. XIX ainda a sociologia

    jurdica. S que eram esses domnios de estudo e reflexo, respectivamente, estudos e

    reflexesfilosfica, histrica e sociolgica sobre o direito enquanto objecto, ou tendo o

    direito como objecto de pensamentos em si no jurdicos, e no como a teoria do direito

    se propunha ser, um estudo e reflexo teortico-jurdicos do direito qua tale ou na sua

    juridicidade, uma teoria jurdica do direito. Se a histria do direito e a sua sociologia do

    direito (ainda a antropologia jurdica, a psicologia jurdica, etc.), a prpria filosofia do

    direito, enquanto investigaes problemtica e racionalmente livres e assim com uma

    liberdade de juzo e de determinao que s a objectividade racional e metodolgica

    controlaria, se manifestavam por isso mesmo como investigaes zetticas, e o

    pensamento normativo-jurisprudencial tradicional e comum se mantinha numa ndole

    dogmtica (tal como a teologia), haveria que conferir um carcter tambm zettico ao

    pensamento jurdico que o elevasse, repita-se, ao nvel de uma verdadeira cincia e a

    isso seria chamada a teoria do direito.

    A distino acabada de aludir, entre dogmtica e zettica, paraque TH. VIEHWEG comeou por chamar a ateno, tornou-se umareferncia recorrente no domnio da teoria ou teorias do direito, e por isso oportuna a sua exacta caracterizao. O pensamento dogmtico podeser correctamente designado como pensamento segundo posies(Meinungsdenken: pensamento de posies ou referncias postuladas),

    diz-nos VIEHWEG, porque caracterizado pelo facto de, ao permanecernuma posio fixada (Dogma ou Dogmata), pe-na, por um lado,fora dequesto e consagra-a, por outro lado, numa multiplicidade de modos (derealizao). Por outras palavras, dir-se- que o dogmtico postula umqualquer sistema de referncias fixadas, segundo as valncias (valores,princpios, solues prvias de problemas, etc.) que a auctoritas dosistema sustentaria, e como tal define os sentidos e as possibilidadesconcretamente admissveis da sua realizao em coerncia com osdogmas definidos. No campo do direito acontece isto, voltam a serpalavras de VIEHWEG, com o fim de obter em grupos sociais mais oumenos amplos um comportamento jurdico o mais possvel livre deperturbaes assim como eliminar adequadamente as perturbaes dessecomportamento. Da que tenha o pensamento jurdico-dogmtico uma

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    funo social que pretende realizar, por um lado, fixando um ncleoestvel de pensamentos e referncias que no sero discutidos(Grunddogma ou Grunddogmata), por outro lado, admitindo umasuficiente flexibilidade da determinao desses sentidos nucleares nasdiversas situaes relevantes (interpretatibilidade, ponderabilidade). Pelo

    contrrio, o pensamento zettico tem primariamente uma funocognitiva, e esta funo estrutura e determina esse pensamento. Nopermanece em posies fixadas ou dogmaticamente fora de questo,abre-se antes ao problemtico que orientar a investigao eprescrevendo para ele solues que s a livre justificao racional emetodolgica ho-de sustentar. Pelo que actua em termos de tentativa desolues sempre susceptveis de serem postas em questo ou revisveis e,por isso, apenas com valor hipottico perante o desenvolvimentoproblemtico da investigao. Da que o essencial do pensamentodogmtico esteja no dever-ser regulativo dos seus dogma ou dogmata e asua ndole bsica seja interpretao, enquanto o essencial do pensamento

    zettico estar no problemtico, nos problemas que livremente suscita, ea sua ndole bsica seja investigao (sobre a distino, v. especialmenteTH. VIEHWEG, Systemprobleme in Rechtsdogmatik und Rechtsforschung,in Studien Wissenschaftstheorie, II; ID., Ideologie und Rechtsdogmatik,in W. MAIHOFER (Herg.),Ideologie und Recht, 85, ss.; TRCIO SAMPAIOFERRAZ JR., Direito, Retrica e Comunicao, 1973, 99, ss.; L.FERNANDO COELHO,Lgica Jurdica e Interpretao das leis, 1982, 241,ss., 272, ss.).

    Foi esta a origem e foram estes o objectivo e o sentido primeiros da Teoria do

    Direito nos termos que melhor ainda veremos. S que teoria (identificadora de

    cincia) com o seu sentido tradicional na cultura europeia (o sentido que lhe incutia a

    fundao da cincia moderna, galileico-cartesiana ou objectivo-emprica e abstracto-

    -sistemtico-demonstrativa, e que se reconstituiria em termos mais emprico-analticos e

    hipottico-explicatvos ao longo do sc. XIX particularmente com a epistemologia

    criticamente lgico-analtica dos vrios positivismos deste nosso sculo, desde o mais

    radical da epistemologia prpria do positivismo ou empirismo lgico do Crculo deViena at ao j nuanceado da epistemologia popperiana) viu-se submetida, na dcada

    de 30 e a partir da, a uma crtica profunda de inspirao marxista que repelia o

    sistemtico-dedutivo a favor do dialctico-reconstrutivo e o abstracto-lgico e analtico

    a favor do real histrico e holstico, fundando-se assim o que passou a designar-se por

    teoria crtica. Crtica agora dirigida no s epistemologia e cincia tradicionais e

    sua pretensa neutralidade objectivo-cientfica, como ainda realidade histrico-social

    existente, que essas epistemologia e cincia consideravam uma realidade estritamenteobjectiva nessa sua existncia e em que apenas seleccionariam os seus dados-objectos.

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    E isso com vista a um compromisso transformador que permitisse a construo de uma

    outra realidade histrico-social, de uma diferente comunidade humana. Foi assim que se

    abriu o debate teoria crtica vs. teoria tradicional (v., como texto fundador,

    HORKHEIMER, Traditionelle und kritische Theorie, I1 [1537], 137, ss.) que ainda hoje

    persiste, ainda que com modalidades diversas. Devendo observar-se, contudo, que os

    objectivos gerais do cientismo do sc. XIX e do nosso se mantinham: a identificao da

    cincia com a teoria e a superao da filosofia, entretanto identificada metafsica, pela

    cincia-teoria. S que o sentido e o conceito de teoria e, portanto, da cincia, seriam

    agora outros, no aqueles tradicionais, mas aqueles novos referidos, que se diziam e

    queriam crticos. Assim em geral e tambm no pensamento jurdico, pela recepo que

    nele no tardou a fazer-se das mesmas intenes epistemolgica e social (poltico-

    social) crticas. Da o aparecimento da teoria crtica (ou teorias crticas) do direito,

    com o objectivo igualmente de conferir quele pensamento uma ndole

    epistemologicamente crtica, convertendo o pensamento jurdico, e enquanto quisesse

    ele ascender a um estatuto cientfico (que no apenas prtico-tcnico elementar), numa

    cincia crtica do direito.

    Simplesmente, nem entendemos que uma actual dferenciao vlida da teoria

    do direito tenha de se propor, ou tenha de continuar a propor-se, o objectivo primeiro

    da sua originria diferenciao constituir o pensamento jurdico numa cincia,

    segundo o sentido epistemologicamente rigoroso desse conceito, e qualquer que ele

    seja , nem, e j por isso mesmo, consideramos como necessria a alternativa e,

    portanto, a opo entre uma teoria (cincia) do direito em sentido epistemolgico-

    -teoreticamente tradicional e uma teoria (cincia) do direito em sentido

    epistemlogico-dialecticamente crtico. Justifica-se uma teoria do direito que vise

    menos a cincia (ou fundar uma cincia) em sentido estrito do que o saber que

    permita compreenderque no se proponha fazer cincia do direito ou sobre o direito,seja em termos teorticos, e numa inteno s objectiva, seja em termos crticos, e

    numa inteno j militantemente engage, mas lograr compreender o direito que se nos

    oferece ou pode oferecer na nossa experincia cultural e prtico-histrica dele mesmo,

    nos seus pressupostos constitutivos, no pensamento que o assume e manifesta, no modo

    da sua realizao. teoria, porque tem uma intencionalidade meta-normativa, que no

    imediatamente prtico-normativa; e no deixa de assimilar uma especfica

    racionalidade, s que nem estritamente teortica, nem comprometida ou politicamentecrtica, e sim crtico-reflexiva i. , numa reflexividade que compreenda no direito o

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    que pressuponentemente e constitutivamente o determina na sua manifestao histrico-

    -cultural e permita atingir desse modo a possibilidade de uma crtica reviso

    reconstituinte. No que vai um duplo sentido de critica que s num dos seus aspectos,

    mas no j num outro, corresponde ao sentido da crtica prprio das teorias crticas.

    Tudo o que foi dito muito em geral. Pelo que se impe uma considerao mais

    detida, e com os pormenores indispensveis, dos vrios tpicos que foram aludidos.

    1)A teortica teoria do direito a teoria do direito de inteno estritamente

    teortica pretende assumir a razo teortica que autonomizou a cincia moderna, e

    moldou os seus desenvolvimentos posteriores, para se justificar tambm

    epistemologicamente desse modo como uma verdadeira teoria. Com o objectivo capital

    de dominar teoreticamente (em termos de teoria) o prtico (o prtico-normativo) do

    direitoe esse objectivo, que veremos padecer de uma contradio bsica, marcou o

    seu destino que, como tambm veremos, foi de fracasso: no teortico recusava-se o

    prtico (prtico-normativo), na sua especificidade e muito particular racionalidade, e no

    entanto era o prtico recusado o campo e a intencionalidade a assumir pelo teortico.

    )Teoria naquele sentido identificador de cincia pode definir-se como uma

    conexo de verdades (conexo sistemtica de proposies de verdade determinante)

    em que se exprime uma conexo de coisas aquela conexo ideal, pertence ao ser

    ideal do pensamento, e esta conexo seria real ou pertenceria realidade do ser, que

    tanto seria dizer que aquela primeira elaborada pelo sujeito do conhecimento e esta

    segunda oferece-se como objecto (dado-objecto) conhecido. Por isso as categorias

    estruturantes do conhecimento e assim da teoria em que ele se manifesta temo-las no

    dualismo de o sujeito e o objecto; depois, as conexes referidas do-se juntas uma e

    outra e so inseparveis a priori, posto que esta evidente inseparabilidade no

    identidade" (v., sobre tudo isto, E. HUSSERL,Investigaciones Lgicas, trad. esp., I, 232,ss.de quem so tambm as formulaes reproduzidas).

    Em termos epistemologicamente mais actuais e em que avulta o carcter

    metodologicamente construtivo das teorias, diremos que teoria um discurso

    sistemtico (um sistema) de enunciados racionais de universalidade explicativa onde

    cada elemento objectivo enunciativamente referenciado encontra a sua razo de ser ou

    fundamento explicativo em outros elementos objectivos tambm referenciados, segundo

    uma certa conexo e no todo da conexo que o sistema explicativo, conexo ou todode conexo sistemtica que se concebem universais e assim necessrios para todos os

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    elementos bjectivos da mesma natureza. E de uma validade que ter o seu critrio

    fundamentante numa experincia objectiva (num certo tipo de experincia inter-

    subjectiva) invocvel numa inteno de comprovao seja em termos positivos ou de

    fundamentao por verificao, seja em termos negativos ou de crtica por

    falsificao ou refutabilidade (POPPER)mediante determinadas regras ou processos

    metdicos definidos e aceites pela comunidade de investigadores (cfr. J. HABERMAS,

    Erkenntnis und Interesse, Suhrkamp, 116, ss.; K.-O. APEL, Transformation der

    Philosophie, Suhrkamp, Einleitung, 14, ss. ambos em referncia a PIERCE). este o

    zettico discurso teortico-explicativo de ndole emprico-analtica e procedimental da

    cincia moderna: as teorias so universais hipteses explicativas operatrio-

    -metodicamente comprovadas e a explicao ser a inferncia dedutiva dessas teorias,

    como explanans, para um concreto particular explanandum que se apresenta em certas

    condies de facto cfr. W. STEGMLLER, Probleme und Resultate der

    Wissenschaftstheorie und analytische Philosophie, I, in Wissenschaftliche Erklrung

    und Begrndung, 72, s.).

    ) Ora, a teortica teoria do direito, que pretender ser teoria neste sentido, ter de

    considerar-se o resultado evolutivo, e diferenciador, de outras teorias jurdicas que, a

    partir do sc. XIX e com a inteno que sabemos, se comearam ento a construir.

    Referimo-nos s teorias gerais do direito (Allgemeine Rechtstheorie) que, produto do

    positivismo jurdico de oitocentos, ainda hoje proliferam.

    A teoria geral do direito, neste ltimo sentido, prope-se a determinao

    terico-conceituaL e sistemtica da normatividade geral do direito o seu objecto

    fundamentalmente o direito-norma, e pretende participar de certo modo ou a um certo

    nvel (ao nvel j abstractamente generalizante, j analtica e criticamente formal-

    -estruturante) na determinao global dessa sua normatividade. Pelo que podemos

    consider-la como o ltimo estdio (o estdio justamente terico-conceitual ou formal--estrutural, a ultrapassar o estdio normativo-doutrinalmente material) da dogmtica

    jurdica. como que a dogmtica levada sua ltima abstraco e generalizao ou

    sua constitutiva forma estrutural. Foram duas, com efeito, as suas direces mais

    caractersticas e importantesainda que a exigir a segunda, por sua vez, a diferenciao

    dos dois sentidos diferentes que tambm assumiu. Assim, numa primeira direco, h

    que considerar a teoria geral do direito que levava sua ltima sistematizao as

    partes gerais vs. partes especiais dos diversos domnios jurdicos, em ordem aatingir tambm em geral os conceitos e os princpios dogmaticamente universais do

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    direito positivo pressuposto. Tratava-se de uma teoria geral, com este contedo e

    sentido, que se obteria por abstraco generalizante e indutiva do direito dogmtica e

    historicamente positivoe podemos referi-la , entre outros, a MERKEL, BERGBOHM, etc.

    Numa outra direco, no j uma teoria condicionada por uma pressuposio

    dogmtica, mas universalmente terica, tnhamos as teorias gerais do direito que

    visavam os conceitos jurdicos fundamentais enquanto as estruturas e os conceitos

    formais (as formas) de todo o direito possvel ou melhor, as estruturas conceitual-

    -formalmente constitutivas do direito em geral. S que agora ou segundo uma

    perspectiva analtica ou segundo uma perspectiva crtica (crtico-transcendental ou no

    sentido kantiano de crtica). Foram exemplares daquela primeira perspectiva a

    Analytical School inglesa, com JOHN AUSTIN (Lectures on Jurisprudence or the

    Philosophy of Positiv Law), e no continente a Juristische Grundlehre de SOML e a

    Juristische Prinzipienlehre de BIERLING. Pretenderam todas elas elaborar a sua analtica

    numa inteno positivo-emprica e a posteriori, quer a partir do direito positivo

    historicamente determinado (em AUSTIN), quer inclusivamente numa base psico-

    -sociolgica (em SOML e BIERLING). E isso as distinguia das teorias gerais crticas

    (transcendentalmente crticas), j que estas, orientadas que foram pelo neokantismo,

    procuraram definir transcendentalmente e mediante distines que se pretendiam

    reflexivamente justificadas desse modo (fosse a distino entre matria e forma em

    STAMMLER, fosse a distino entre ser e dever-ser em KELSEN), os conceitos

    puros e a priori do direito o prprio conceito a priori do direito e o sistema das

    formas conceituais puras do jurdico em geral. Era esse o sentido quer da Theorie der

    Rechtswissenschaftde STAMMLER, quer as Reine Rechtslehre eAllgemeine Staatslehre

    (na edio inglesa: General Theory of Law State) de KELSEN, e ainda a Allgemeine

    Rechtslehre als System der rechtslichen Grundbegriffe de H. NAWIASKY, etc. O

    objectivo comum de todas elas era o de garantirem um estatuto epistemologicamentecientfico o estatuto da cincia ao pensamento jurdico, constituindo-o assim em

    cincia do direito (quer num mediato intuito prtico, como era o caso da teoria geral

    dogmtica enquanto a expresso ltima daBegriffsjurisprudenz, quer antes num intuito

    estritamente terico) e para que desse modo ele se pudesse equiparar, ou pelo menos

    no se visse culturalmente diminudo j o dissemos , perante o paradigma da

    validade cultural que o cientismo do tempo via exclusivamente na cincia (na cincia

    positiva, decerto). Nesses termos, e em coerncia com o positivismo jurdico de ento,se propunha ainda a teoria geral do direito superar afilosofia do direito. Pretenso que

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    numa evoluo posterior deixou de alimentar, tendendo inclusivamente para um outro

    tipo de teoria geral de sentido epistemologicamente menos rigoroso, com uma ndole

    mista ou ecltica em que concorriam simultaneamente o tratamento das concepes

    filosficas do direito, a determinao dos conceitos fundamentais (do direito, da norma

    jurdica, do sistema jurdico, etc.), a teoria das fontes, mesmo a metodologia jurdica,

    etc., e considerada, no sem ironia, a filosofia do direito dos juristas (sejam exemplos

    as teorias gerais do direito de J. DABIN, de P. ROUBIER, de F. CARNELUTTI, de A.

    LEVY, de J. L. BERGEL, etc.) e que no espao da cultura jurdica anglo-saxnica

    tradicionalmente se designava por Jurisprudence. Como quer que seja, todas elas se

    tinham por teorias do direito, por tericas determinaes dele na perspectiva da sua

    imannciaou seja, explicitaes das estruturas e categorias, dos conceitos e dimenses

    constitutivos da prpria juridicidade.

    Com um outro sentido, mas retomando no menos radicalizada aquela pretenso

    de superao da filosofia do direito, h que considerar a diferente teoria do direito

    (Rechtstheorie) dos nossos dias. Teoria que no se nos oferece, todavia, de uma total

    univocidade, pois nem a vemos rigorosamente determinada no seu objecto formal,

    nem nica a perspectiva que a orienta (tanto se pretende analtica como dialctica,

    tanto teortico-sistemtica como crtico-reflexiva, tanto objectivo-terica como

    funcional-normativa), nem unvoco o seu sentido (estritamente teortica ou

    comprometidamente crtica?). No obstante, poder dizer-se que se caracteriza

    globalmente por um conjunto de estudos tematicamente muito diferenciados que se

    propem a investigao, quer metadogmtica, quer pr-normativa (rectius,

    protonormativa ou constitutiva), quer crtica do direito e assim considerado este ou

    como objecto ou como objectivo de um pensamento com um estatuto seja

    epistemolgica e funcionalmente terico, seja reflexiva e dialctico-ideologicamente

    crtico. Estudos e investigao para os quais, portanto, o direito j no interessa comonorma, mas como fenmeno-objecto, como objectivo prtico-social, como realidade

    humano-poltico-social.

    ) neste sentido que a teoria do direito consideramos agora s o seu

    sector definido por uma por uma inteno estritamente teortica, deixando para depois o

    seu sector de inteno dialctica e ideologicamente crtica se considera como an

    independent science with a pattern of problems entirely autonomous" (BRUSIIN), com o

    propsito fundamental de constituir a cincia bsica da cincia do direito e mesmo deassumir a tarefa de explicar e orientar os actos constitutivos do prprio direito, na sua

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    estrutura, na sua ndole e nos seus objectivos, de um modo cientificamente adequado.

    Ou seja, atravs dela seria concebvel e possvel uma teoria do direito justo como

    teoria cientfica. E da que, na linha geral da superao da filosofia pela cincia, se

    pudesse dizer tambm a filosofia do direito superada pela teoria do direito. Ter-se-ia

    finalmente logrado o positivstico philosophiam delenda (HGERSTRM) e haveria de

    proclamar-se, com DREIER: a filosofia do direito morreu, viva a teoria do direito!

    A mais elementar, e mesmo a historicamente primeira, atitude neste sentido

    encontramo-la na mera (e dogmtica) excluso da filosofia, querendo substituir-lhe uma

    atitude exclusivamente teortica. Foi a atitude que programaticamente tomou, p. ex., a

    Internationalen Zeitschrift fr Rechtstheorie, em que participaram KELSEN e DUGUIT (o

    positivismo crtico-neokantiano daquele e o positivismo emprico-naturalista deste). A

    teoria do direito deveria ser exclusivamente teoria (ou metateoria) do direito positivo.

    Tratava-se da concepo positivista da teoria do direito que tinha um paralelo ainda

    mais radical (ao nvel epistemolgico) no realismo escandinavo da Escola de Upsala,

    com base no prejuzo de um acrtico cientismo tambm positivista de todo anlogo ao

    do positivismo e empirismo lgicos do Crculo de Viena. Positivismo e cientismo

    acrticos j hoje decerto insustentveis, e excludos inclusivamente pela epistemologia

    dos nossos dias.

    Mais importante, no entanto, do que essa atitude ultrapassada, a que sustenta o

    projecto de uma teoria do direito naquele outro sentido j referido: os mais importantes

    problemas, inclusivamente os problemas prticos, que tradicionalmente tm sido

    remetidos para a filosofia do direitoassim oproblema do direito justo, o problema da

    adequao e justeza histrico-social do direito , podem e devem ser tratados

    cientificamente (como estritos problemas, pois, da teoria do direito), j que seria

    concebvel e possvel, repita-se, uma teoria do direito justo como teoria cientfica.

    Seria possvel esta teoria, porque a inteno constituenda daquele direito mostrar-se-iahoje susceptvel de se submeter exigncia da racionalidade ou cientificidade,

    mediante uma discusso lingustico-conceitualmente clarificada (i. , segundo um

    discurso intersubjectivamente livre, comunicativo e racional) e materialmente

    informada uma coisa e outra graas ao desenvolvimento das cincias relevantes,

    lingusticas e lgicas, sociais e polticas, antropolgicas e da informao-comunicao,

    etc. E essa teoria possvel devia ser a nica sede da resoluo do problema do direito

    justo, porque s a cientificidade-racionalidade, com a objectividade e aintersubjectividade que lhe so prprias, poderia justificar o vnculo jurdico em

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    sociedades plurais e em Estados democrticos que tanto dizer que unicamente a

    teoria (na sua cientificidade) poderia hoje fundar a prtica (a prtica jurdica) ao mesmo

    tempo que se desempenharia de uma eminente funo poltica.

    S que, dito isto, h que fazer vrias distines para eliminar um grave equvoco

    de que enferma esta posio, e do qual ela tira afinal a sua aparente concludncia. Pois o

    que a posio em causa sustenta no apenas que a prtica h-de encontrar os seus

    fundamentos numa reflexo racionalou, de outro modo, que a prtica no pode, nem

    dever dispensar a reflexo racional, se tiver de responder ao problema da validade.

    Ponto que hoje ningum discutir. Afirma sim, para alm disso, que a reflexo

    indispensvel prtica do direito se dever traduzir, e ser de obter, numa teoria,

    tomada esta no sentido epistemologicamente rigoroso do termo numa teoria do direito

    teortico-cientificamente conseguida. O equvoco reside na imediata associao (ou na

    acrtica identificao) entre cientificidade e racionalidade, partindo da para postular que

    aquilo que dever obter-se ao nvel da racionalidade (ao nvel da reflexo racional e

    cumprindo as condies formais do estatuto da racionalidade em geral) implica j por

    isso uma inteno e um pensamento que cumprem o estatuto especfico da cientificidade

    estrita (o estatuto prprio da cientificidade teortica)e se s a teoria do direito cumpre

    este ltimo estatuto, a ela competiriam os prprios fundamentos do direito (os princpios

    do direito justo), devendo assim resolver-se hoje cientificamente aquele antigo

    problema filosfico. O que no de modo algum exacto: a racionalidade e a

    cientificidade so categorias distintas; e se esta exige decerto aquela, aquela no se

    cumpre exclusivamente nesta.

    A racionalidade, como a expresso da argumentao discursivamente explicitada

    e intersubjectivamente comunicante, decerto o pressuposto e a condio necessria da

    validade de discursos diferenciados. Tanto do discurso dedutivo como do discurso

    dialctico; tanto do discurso teortico como do discurso prtico. Quanto a esta ltimadiferenciao aquela que a ns mais directamente importa , no pode hoje, com

    efeito, ignorar-se a recuperao da distino entre a cincia e a prudncia

    (PERELMAN, VIEHWEG, BALLWEG, HABERMAS, KRIELE, etc.), a especificar aprtica (na

    interaco) de significante comunicao relativamente tcnica ou s objectivas

    operatrias emprico-analticas (HABERMAS), e bem assim, paralelamente, o que

    distingue a hermenutica do puro teortico (GADAMER) distines que radicam, em

    ltimo e decisivo termo, na diferenciao e relativa autonomia, antropologicamenteverificada, da humana autodeterminao significante, a projectar-se prtico-

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    -normativamente, perante a tambm humana instrumentalidade estrutural-funcional

    referida ao mundo emprico.

    Ora, a teoria do direito, naquele seu sector que continuamos s a considerar,

    ao propor-se incutir cientificidade ao direito e ao pensamento jurdico, no lhes exige

    apenas racionalidade, tem-lhes como possvel e exige-lhes o estatuto do discurso

    teortico, em ordem a que o direito e a sua normatividade encontrem os fundamentos de

    inteligibilidade e constitutivos em conhecimentos e investigaes teortico-cientficos.

    , pois, sobre esta tese a inteligibilidade cientfica do jurdico possvel e tem a sua

    base fundamentante e constitutiva no domnio cientfico-teortico que importa

    reflectir.

    ) E se comearmos por perguntar o que efectivamente nos oferece a teoria do

    direito orientada por esse objectivo, temos de responder que h nela trs linhas

    principais. Em primeiro lugar, vemo-la a conjugar a pluralidade das disciplinas j

    referidasdesde a lgica sociologia, da lingustica antropologia e criminologia, da

    cincia poltica teoria dos sistemas, da informao ciberntica, etc. que, como

    conhecimentos de dimenses constitutivas do direito e do prprio direito como

    realidade social (dimenso lingustica, dimenso antropolgica, dimenso social, etc.),

    concorreriam para a cientificidade da cincia do direito em sentido estrito. O que, sem

    mais, j nos diz que nesse sentido no supera, nem reduz o pensamento da

    normatividade prtica especificamente jurdica. Basta atender a que esse modo de

    considerar aquelas dimenses, e o direito como a sua sntese objectivo-constituda,

    refere o mesmo direito j como factum socio-lgico, j como factum lgico e

    lingustico, j como factum poltico, j como factum sistmico, etc., e que assim nos

    oferece estudos-investigaes sociolgicas, lgicas, semiticas, polticas, etc., sobre o

    direito (ou considerado o direito como objecto), mas no do direito enquanto tal (i. , da

    sua normatividade enquanto normatividade e com um sentido especfico naintencionalidade da razo prtica) tendo, por isso, de todo razo H. P. SCHNEIDER

    quando, ao chamar a ateno para o que acaba de sublinhar-se, conclui estarmos afinal

    perante uma teoria do direito sem direito.

    Uma segunda linha da teoria do direito compreende-a sobretudo como uma

    metateoria (ou metalinguagem) da cincia do direitocomo a conscincia cientfica da

    cincia do direito, como a teoria do conhecimento do direito, etc. a sua orientao

    sobretudo analtica (lingustico-lgico-epistemologicamente analtica) e que apenas nospoder dar uma teoria da cincia do direito (ou uma lgica ou uma epistemologia

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    jurdicas, no fundo). Decerto que esta linha de orientao , no plano cultural geral,

    expresso tanto da analtica distino entre linguagem-objecto e metalinguagem em

    todos os domnios (no domnio prtico, p. ex., a distino entre tica e meta-tica) como

    um fenmeno mais daquele cientismo, dominante num amplo sector do pensamento

    deste sculo. S que no plano directamente jurdico, ao volver a ateno do direito,

    enquanto tal, para o pensamento jurdico ou a cincia do direito preocupa-se mais

    com o conhecimento do direito do que com o prprio direito (consequncia de que no

    estava imune e se pode mesmo considerar particular caracterstica da Teoria Pura do

    Direito). O que implicar um desvio grave, como que num seu efeito perverso, pois

    com ateno apenas para a verdade do conhecimento do direito e do pensamento

    jurdico como cincia, esquece-se da validade (da justia) do direito enquanto tal e da

    intencionalidade normativa do pensamento jurdico chamado a pensar a sua

    normatividade de direito. Ponto este e mesmo sem discutir a viabilidade de uma total

    autonomia, particularmente no domnio do pensamento prtico, entre a linguagem-

    objecto e a metalinguagem (p. ex., a pretensa neutralidade terica da meta-tica

    verdadeiramente oculta o compromisso intencional e uma prvia tomada de posio

    prtica quanto ao sentido da tica-objecto, numa cripto-tica ou criptofilosofia) que

    podemos de momento deixar de lado, j que suficiente considerar que para ns o que

    est em causa, como especfico objecto de referncia, o direito e no a cincia do

    direito, o jurdico no do ponto de vista do conhecer, mas do ponto de vista do agir

    (MAIHOFER), i. , o direito como princpio prtico e no domnio prtico-normativo da

    aco. Ou, querendo manter a referncia cincia, o que importa no o jurdico na

    epistemolgica perspectiva de uma cincia de conhecimento (do direito-objecto), e

    sim na prtica perspectiva de uma cincia de aco (do direito como normatividade):

    um pensamento, pretenda-se ele embora cientfico, do prprio direito (da intencional

    constituio do direito como direito, do direito como dimenso normativa da prtica, dodireito justo, etc.). Com efeito, o que se pergunta se o problema do direito, enquanto

    tal, susceptvel de ser resolvido cientificamente por uma teoria, e no em que termos

    teortica e epistemologicamente correctos dever entender-se a cincia do direito que se

    postula existente. neste sentido que W. KRAWIETZ sublinha, com razo, que a teoria

    do direito no teoria da cincia dogmtica do direito, mas teoria do direito

    querendo deste modo sustentar que o problema (postuladamente terico) desta teoria

    haver de ser o prprio problema do direito enquanto tal. Com o que somos postosperante uma terceira linha de orientao da teoria do direito.

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    Aquela sua orientao e aquele seu entendimento que so afinal os decisivos, e

    neste sentido: no se trata s de teortico-cientificamente estudar as dimenses

    constitutivas do direito ou de epistemologicamente fazer a teoria do pensamento

    jurdico como cincia (definindo a sua estrutura e as suas condies de cientificidade),

    mas de teortico-cientificamente dar soluo ao problema do direito, ao problema do

    prprio direito. S que nesta linha as perspectivas a considerar so vrias.

    Desde logo, atribui-se a teoria do direito a funo de uma teoria -quadro

    (Rahmentheorie) para o direito, e assim com o sentido de uma sua teoria fundamental

    j que seria nas coordenadas determinadas por essa teoria-quadro e tendo nelas a

    sua base que o direito se podia e devia elaborar. Se interrogarmos, porm, esta

    perspectiva quanto a saber de que teoria bsica do direito verdadeiramente se trata ou

    melhor, de que projecto de teoria, pois os seus defensores no deixam de reconhecer que

    ela ainda no existe , apenas se obtm como resposta que ser ela uma teoria da

    sociedade referida ao direito (Gesellschaftstheorie des Rechts), uma investigao

    sobre a estrutura e a funo do direito como fenmeno social, ou porventura uma

    considerao do direito com fundamento numa teoria material da sociedade. Em

    ltimo termo, portanto, uma teoria sociolgica do direito uma nova sociologizao do

    direito, ao fim e ao cabo. Desconsolador resultado este, pois h muito se sabe o que

    podem e valem essas sociologizaes: a socialidade do direito no permite s por si

    compreender, nem reduz a sua normatividade, ao postular esta uma especfica inteno

    de validade transpositiva ou socialmente contrafactual e regulativa que lhe seja

    normativamente constituinte. Se o social, na sua autonomia objectiva e referencial,

    condio estruturalmente constitutiva do direito, o normativo, na sua autonomia

    fundamentante e regulativa, a prpria dimenso intencionalmente constituinte.

    Estamos assim perante a diferena entre sociedade e direito, no obstante os seus

    mtuos condicionamentos e recprocas interferncias, perante aquela sociolgicadiferena entre norma e factum, justamente posta em relevo h muito e tambm, por

    ltimo e concludentemente, por MAIHOFER. Da a concepo deste Autor, de uma

    pluridimensional cincia do direito (cincia de aco e deciso) que, propondo-se ser

    uma teoria crtica do direito ou uma jurisprudncia realstica, vemos pensada

    todavia como teoria para a prtica (a prtica da constituio e da realizao do direito)

    chamada a garantir, numa particular articulao das suas dimenses sociolgica,

    dogmtica, racional-analtica e filosfica, a racionalidade e intersubjectividade dareflexo e argumentao materialmente jurdicas da jurisprudncia (do pensamento

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    jurdico) em ordem a um controle do direito com vista sua ltima justeza

    (Richtigkeit) humana. E se perguntarmos agora qual a dimenso fundamental, aquela

    em que se h-de procurar a ultima ratio da juridicidade assim constituda, no

    surpreende que a resposta aponte para as estruturas axiolgicas do direito, para a

    dimenso filosfica, enquanto aquela dimenso que chamada a assumir e a projectar

    criticamente o regulativo de humanidade no direito, i. , a orient-lo para o seu ltimo

    e fundamentante sentido humano. Quer dizer, no obstante continuar a falar-se aqui de

    teoria do direito, do que na verdade se trata de um pensamento jurdico que, ao

    procurar assimilar numa racional reflexo global a normativa inteno do direito,

    conduzido a reconhecer para este um fundamento ltimo, no objectivo-teortico, mas

    justamente prtico-regulativo s possvel a uma reflexo transobjectiva, i. ,

    filosfica.

    Uma outra perspectiva, aparentemente mais lograda, concebe

    interdisciplinarmente a teoria do direito, num sentido estrito da interdisciplinaridade

    (que est decerto j implcito na posio de MAIHOFER acabada de referir): como um

    conjunto de distintas disciplinas tericas no-jurdicas a integrar mediante uma

    dialctica orientada pelo objectivo especfico do direito (pelo objectivo da sua

    constituio e realizao social). Assim, de novo se convocariam a antropologia, a

    sociologia, a economia, a cincia poltica (e/ou filosofia poltica), a lingustica, a

    teoria da deciso e da comunicao, etc., em ordem a determinarem-se os elementos, e a

    funcional adequao deles, que a constituio do direito e a sua projeco humano-

    -social haveria de relevar e de que dependeria. Nesta utilizao das disciplinas no-

    -jurdicas, a teoria do direito no decide digamo-lo com M. v. HOECKE sobre

    (essas) teorias no-jurdicas, aproveita-as s como hipteses de trabalho, como um

    enriquecedor instrumentariam, com o qual o terico do direito pode chegar a uma

    compreenso da realidade jurdica mais profunda do que a que teria se o no tivesseutilizado podendo inclusive essa interdisciplinaridade traduzir-se numa colaborao

    entre juristas e especialistas das outras disciplinas. A teoria do direito, neste seu

    entendimento e atravs daquela dialctica integradora das diversas disciplinas tericas

    no-jurdicas, como que seria uma disciplina de funo fronteiria

    (Grenzpostendisziplin), um filtro selectivo. S que ento um problema capital se pe,

    o problema do critrio regulativo daquela interdisciplinar integrao ou desta seleco:

    o problema, como considera DREIER, do tratamento das informaes oferecidas pelasdisciplinas no-jurdicas com vista (e na) constituio do direito. Que o mesmo

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    perguntar: como converter o telos fctico (ELLSCHEID) das informaes no-jurdicas

    no telos normativo prprio do direito? E logo se reconhecer que teoria do direito,

    se quiser ela ser fiel a um estatuto estritamente teortico (teortico-cientfico), no lhe

    possvel uma resposta. Pois s de uma pressuposta compreenso do sentido do direito,

    do seu sentido prtico-normativo especfico, se lograr obter o exigvel critrio

    regulativo numa inteno como que protojurdica. Poder assim falar-se aqui de um

    caso particular da naturalistic fallacy, j que quaisquer que sejam os seus factores

    objectivos pressupostamente relevantes, antropolgicos, sociais, estruturais, analticos e

    funcionaisaqueles que a teoria do direito estudao direito nunca deixa de referir uma

    normatividade prpria, que aqueles factores sem dvida condicionam, mas no

    determinam, nem em si nem no seu sentido ltimo. Sendo certo que essa normatividade

    a expresso de uma prtica inteno regulativa que, como tal, no s transcende numa

    intencionalidade axiolgico-normativamente valoradora a objectividade cognitiva dos

    factores e das situaes relevantes (nos seus pressupostos e nas suas dimenses, assim

    como nos seus resultados funcionais), como s numa compreenso autnoma do seu

    prprio sentido se pode constitutivamente fundar. A normatividade do direito funo

    constitutiva do sentido do prprio direito daquele sentido que a poiesis reflexiva

    assume compreendendo-o e constituindo-o atravs desse mesmo sentido como direito.

    Pelo que o juzo global a proferir sobre esta linha da teoria do direito ser

    anlogo ao que a multiplicidade das cincias do homem, na sua pretenso igualmente

    redutivista, mereceu de K. JASPERS: cada uma delas estuda um aspecto limitado do

    homem e da realidade humana, mas todas elas no seu conjunto deixam intocado o

    problema fundamental do homem, pois conhecendo-o apenas como objecto ou

    analisando simplesmente os elementos objectivamente constitutivos que nele

    concorrem, abstrai do que ele essencialmente , aquele sujeito de excntrico ou

    extraponente transcender que auto-compreende o sentido de si e que s nessa auto-compreenso, no objectivante, de sentido verdadeiramente o homem sujeito da sua

    humanidade. Tambm o direito problema e tarefa que o homem poitico-

    -autonomamente se pe: se decerto na conscincia dos seus pressupostos, no

    conhecimento dos seus condicionantes e das suas dimenses e na ateno aos sesu

    efeitos, no menos certo que a considerao apenas desses pressupostos,

    condicionantes e dimenses e da responsabilidade funcional pelos efeitos no resolver

    s por si o problema especfico que o direito constitui no contexto geral da prticahumana. A prtica humana e o direito nessa prtica s encontram o seu sentido e os seus

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    fundamentos, especificamente compreensivos e constitutivos, na transobjectiva reflexo

    do homem sobre si prprio quando convocado prtica existncia comunitria

    enquanto sujeito criticamente reflexivo dessa prtica.

    Foi, alis, o reconhecimento do frustrante fracasso da teoria do direito, na

    direco que temos estado a referir e com aquele seu impossvel objectivo, que a leva j

    a substituir a inteno estritamente teortica (teortico-cientfica) por uma inteno

    normativa (prtico-normativa), em que o decisivo deixa de pr-se em analticos

    objectivos e na explicabilidade terica e passa a pr-se na compreenso do sentido da

    prtica e das suas axiologia e teleologia. neste sentido que se diz agora a teoria do

    direito como protojurdica (F. O. WOLF), se lhe atribui uma ndole normativo-

    funcional (H.-P. SCHNEIDER) de carcter ateoreticamente prtico e argumentativamente

    assumido numa utopia imanente (G. ELLSCHEID), se v pensada, sentido este j

    aludido, na complexidade de uma pluridimensionalidade constitutiva orientada

    decisivamente pela axiologia da autocompreenso pelo homem da sua prpria

    humanidade, enquanto uma utopia concreta (W. MAIHOFER), etc. Com efeito,

    transpondo para a teoria do direito o modelo da prolgica pensada por PAUL

    LORENZENenquanto o operar esquemtico ou a aco apoiada em calculi (formais

    factores modulares) que lograria justificar a validade das regras lgicas, as regras

    logicamente admissveis, mediante um processo de eliminao de regras ou

    desenvolvimentos lgicos desnecessrios para atingir a certeza conclusiva da inferncia

    que F. D. WOLFprope uma protojurdica, com o sentido de uma compreenso

    crtico-sistemtica dapraxisjurdica e que se traduziria na anlise e reconstruo dessa

    prtica com inteno crtica e justificantemente normativa (normativamente

    constitutiva) prtica como prtica de dilogo j que sobre uma prtica deste tipo se

    formaria toda a argumentao jurdica e cujo operar esquemtico mobilizaria

    argumentos lgicos, argumentos dogmticos e processuais e argumentos sociais numasituao de deliberao (Beratungssituation) a vrios nveis crticos e de justificao

    (construtivo-imanente, construtivo-transcendente e metdico-imanente). E se a este

    modelo simplesmente formal, posto tenha j a prtica jurdica e as suas exigncias

    normativas especficas como pressuposto referente, o quisermos enriquecer de

    dimenses materiais, a tanto servir a teoria do direito normativo-funcional sugerida por

    SCHNEIDER entendida igualmente como anlise sistemtica da global prtica do

    direito que se construiria sobre trs planos: um primeiro plano da investigaodos factos do direito (Rechtstatsachenforsung), a investigao desde HBER assim

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    designada sobre as aces e os acontecimentos juridicamente relevantes referidos s

    suas causas e bases sociais, polticas ou econmicas; um segundo plano da

    considerao axiolgico-jurdica (Rechtswertbetrachtung) ou o plano da ordenao

    sistemtica do material oferecido e simultaneamente da valorao filosfico-jurdica,

    segundo a inteno normativa do direito (a sua teleologia material, a garantia da paz, a

    justia social, etc.), tanto daquele acontecer prtico como das alternativas pensveis; e o

    terceiro plano de uma crtica jurdica concreta possibilitada pelos resultados obtidos no

    segundo plano, e dirigida quer normatividade quer funcionalidade e praticabilidade

    do direito, crtica que permitiria a definio de directivas e de orientaes prtico-

    -jurdicas. E uma proposta anloga, embora analtica e reflexivamente mais rica, a de

    MAIHOFER, com o sentido que j conhecemos e onde a perspectiva da utopia concreta

    de uma evolutiva e sempre aprofundada crtica assuno da humanidade do homem

    seria a base construtiva de uma cincia do direito, dirigida no somente reproduo

    do direito, mas sua produo cientificamente preparada e orientada, dirigida no

    verdade para trs, mas verdade para a frente, ou, por outras palavras, ao novum

    constituendo teoria do direito como uma realstica jurisprudncia voltada para a

    interpretao crtica do direito e da sociedade e a sua produtiva alterao para o melhor

    direito de uma sociedade humana.

    Simplesmente, se perante esta mudana de sentido da teoria do direito, de que as

    propostas referidas so apenas exemplos, perguntarmos se com ela no fica afinal

    logrado o que com o seu sentido estritamente teortico no era possvel, a resposta ter

    de ser negativae de uma dupla negatividade. Por um lado, tornou-se evidente a aporia

    bsica da teoria do direito e que desde o incio a condenava ao fracasso: a teortica

    teoria do direito s pode atingir o direito enquanto tal, e assumir a sua constitutivamente

    especfica normatividade prtica, convertendo o puramente teortico numa

    intencionalidade prtica, que tanto dizer anulando-se a si prpria como teortica,renunciando essncia teortica que era o seu objectivo. O teortico metanormativo que

    pretenda assumir o normativo ter, pois, que escolher entre o abandono do normativo e

    o abandono do teortico. Por outro lado, e como no ltimo evolutivo desenvolvimento

    referido da teoria do direito igualmente se manifesta, a teoria do direito s poder

    assumir a normatividade prtica do jurdico com mutao da prpria concepo da

    teoria. Ora, isto mesmo, como sabemos, que prope a teoria crtica do direito

    por que, alis, aquele referido evolutivo desenvolvimento se mostra j influenciado.

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    2) A teoria crtica do direito prope-se assumir uma bem diferente racionalidade

    cientfica, aquela que corresponderia razo crtica no muito especfco sentido que

    lhe define a teoria crtica e que, projectado no pensamento jurdico, converteria este

    justamente numa teoria crtica do direito.

    )A teoria crtica deve a sua origem Escola de Frankfurt (aos membros do

    Institut fr Sozialforschung: HORKHEIMER, ADORNO, F. POLLOCK, W. BENJAMIN, E.

    FROMM,MARCUSE,HABERMAS, etc.), Escola que, numa base marxista, teve uma forte

    repercusso no mundo intelectual europeu e americano, consequncia decerto de dois

    factores principais: a sua base proclamadamente marxista embora numa expresso e

    desenvolvimento neomarxistas, se no mesmo como uma variante dissidente do

    marxismo (F.COLOM GONZLEZ)e a circunstncia de os seus principais fundadores

    aparecerem como continuadores da grande tradio filosfica alem e como crticos

    intransigentes da cultura e da civilizao burguesas actuais (JEAN-MARIE VINCENT). O

    seu modelo de reflexo era, com efeito, a crtica da economia poltica de MARX e a

    sua consequncia na crtica das ideologias (sobre este ponto de importncia nuclear

    no pensamento moderno que referimos, v., quanto a MARX, WOLF PAUL, Marxistische

    Rechtstheorie als Kritik des Rechts, 1974, quanto crtica das ideologias em geral, K.

    MANNHEIM, Ideologie und Utopia, 5. ed.) crtica da realidade histrico-social pela

    denncia da ideologia, da falsa legitimao dos interesses da classe dominante, que

    simultaneamente constitua e ocultaria o verdadeiro sentido dessa realidade, Crtica

    ideolgica que a teoria crtica acabava tambm por ser e numa inteno de

    transformao dessa realidade, assim denunciada na sua injustia, no sentido de uma

    sociedade humanamente mais justa em que fosse possvel a emancipao (a libertao

    e realizao) de todos os homens, e assim uma vida humano-social isenta de dominao.

    E teoria, porque tambm ela reivindica e se define num estatuto ep istemolgico que

    lhe conferiria o carcter de cientificidade, que lhe garantiria o carcter de cincia quetambm se propunha ser. E crtica no j, como expressamente acentuava

    HORKHEIMER, no sentido da crtica idealstica da razo pura (crtica em sentido

    kantiano) e sim para designar uma qualidade essencial da teoria dialctica da

    sociedade.

    Quanto ao estatuto epistemolgico, reconhecem-se duas linhas, ou, melhor, duas

    acentuaes. A teoria crtica de expresso francesa e a por ela influenciada procuram

    apoio na epistemologia de BACHELARD (v. La formation de 1'esprit scientifique:contribution une psychanalyse de la connaissance objective, 1934, especialmente

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    quanto aos obstculos epistemolgicos, e ainda La philosophie du non: essai dune

    philosophie du nouvel esprit scientifique, 1940 h trad. port.): o conhecimento

    cientfico faz-se em ruptura com o conhecimento comum, na procura reconstrutiva do

    que este oculta, com denncia e superao dos obstculos epistemolgicos, que

    impeam esse saber, o que s seria possvel a um racionalismo integral ou, mais

    exactamente, a um racionalismo integrante de ndole dialctica (assim, para a teoria

    crtica do direito, M. MIAILLE, Une introduction critique au droit Introduction e pp.

    31, ss.; F. OST/M. v. de KERCHOVE,Jalons pour une thorie du droit, 13, 25, ss.; LUIZ

    FERNANDO COELHO, Une teoria critica del derecho, in Estudios de Filosofia del

    Derecho y Ciencia Jurdica, em Memoria e Homenaje al Catedrtico dom Luis Legaz y

    Lacambra, 11, 5, ss.).Nesses termos o objectivo seria de faire apparatre l'invisible (...)

    en suscitant ce qui n'est pas visible pour expliquer le visible, pelo que o pensamento

    crtico se refuse croire et dire que la realit est enferme dans le visible: elle sait

    que la realit est en mouvement, c'est--dire que toute chose ne peut tre saisie et

    analyse que dans son mouvement interne; il ne faut donc pas abusivement rduire le

    rel une de ses manifestations, une de ses phases (...) et spcialement dans les

    sciences qui se proposent ltude des hommes vivant en societ (M. MIAILLE, 17, ss.).

    Enquanto a teoria crtica de expresso alem, a verdadeiramente fundadora, como se

    viu, e ainda geralmente inspiradora, procura a sua directa inspirao epistemolgica em

    MARX, e por sua mediao decerto tambm em HEGEL, com a acentuao fulcral de

    quatro pontos.

    1) Um deles, que diremos material e se reconhecer como fundamental,

    considera que a realidade bsica a que toda a experincia humana, sem excluir nela a do

    pensamento e a da cincia em geral, iria refervel seria a realidade histrico-social, que

    s em funo dessa realidade lograramos a verdadeira inteligibilidade de tudo o que ao

    homem importa apenas no real processo constitutivo e evolutivo da sociedadehistrica o homem poderia compreender a realidade humanamente relevante e para

    todos os efeitos. O prprio logos, pensado eterno e absoluto pela cultura clssica,

    seria expresso, uma modalidade da construo racional, da praxis social, e esta a

    manifestao do histrico trabalho do homem. Assim como o homem, na sua existncia

    presente e na perspectiva do seu futuro, s na sociedade histrica e pela mediao do

    desenvolvimento da sua praxis econmico-social, que a poltica explicitamente

    assumiria, chegaria conscincia de si prprio. Realidade essa, e nessa sua prtica, quese deveria considerar aspecto muito a sublinhar , no como um qualquer acervo de

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    dados ou factos a objectivar externamente pelo sujeito cognoscente, tal como a

    entendia o positivismo e a sociologia tradicionais, mas como um todo de

    autosubsistncia histrica, a compreender na sua estrutura e na sua dinmica como

    constitutivamente global ou holstica. Seria este todo, este global holstico, no apenas o

    ltimo e decisivo objecto de todo o conhecimento como inclusive o autntico

    sujeito da histria.

    2) Um segundo ponto, que as prprias estrutura e dinmica deste todo holstico

    j em si implicariam, poder dizer-se lgico ou metdico e afirma o carcter dialctico

    dessa realidade e correlativamente do conhecimento que a pretenda assumir termos

    estes em que manifesta a influncia de HEGEL ainda que, de novo se diga, pela

    mediao de MARX. A realidade, a lgica e o pensamento seriam agora dialcticos, e

    assim estes dois ltimos haveriam de referir aquela primeira no somente no seu estado

    actual, mas na totalidade da sua existncia, e assim, tanto no que a tenha produzido

    como no seu devenir, num processo constante de foras contrrias e de contnua

    dinmica de realizao e compreenso globais e da que o prprio pensamento se

    houvesse de ver no s lgico, mas igualmente um processo histrico-concreto

    inserido no todo dialctico dapraxis histrica.

    3) Depois e o terceiro ponto, a dizer epistemolgico-crtico este

    pensamento que desse modo conhecia na sua imanncia dinmica a realidade histrico-

    -social e dela participava, no s revelava o que de humanamente inaceitvel (inumano

    e injusto) ela manifestasse na sua actualidade, nas condies da sua existncia actual,

    como seria simultaneamente um estimulante factor de transformao com o objectivo

    de uma sociedade futura enquanto a comunidade de homens livres. Da o sentido de

    crtica, na sua dupla valncia: crtica, porque teoria dialctica que atinge e assume a

    dinmica constitutiva e transformadora da prpria realidade humano-social; crtica,

    porque, ao ser teoria nesses termos, revela o repudivel e factor de superaotransformadora. Teoria crtica, portanto, e como agora melhor se compreende

    teoria, j que o pensamento crtico torna-se a lgica de uma teoria cientfica;

    crtica, j que ela como tal e nas categorias crticas que lhe correspondem (praxis,

    sociedade, ideologia, alienao) se mostra um instrumento terico com que se

    constri o futuro a partir do presente.

    4) O ltimo e quarto ponto negativo, de um confronto negativo com a teoria

    tradicional (a teortica teoria moderno-cientfica) e para a considerar superada atravsda recusa, que os pontos anteriores justificariam, de todos os seus dualismos: entre

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    pensar e sere em termos de se admitir que a realidade pensada seria um exterior ao

    pensamento que a refere, quando o prprio pensamento pertenceria afinal prpria

    realidade a pensar, e que no pensamento s viria racionalizada conscincia de si

    prpria; entre a dimenso ideal do pensar-conhecimento e a dimenso real-dada dos

    factos a conhecer se aquela dimenso seria expresso de uma praxis, os dados-

    -factos seriam resultados construdos por essa prtica ; entre saber e aco como iria

    implicado j nas duas superaes anteriores, no haveria saber sem as exigncias

    determinantes da aco, aco social, nos fins visados e nas relevncias procuradas

    ou, numa sntese global, entre sujeito e objecto e entre teoria e prtica o

    sujeito seria uma particular manifestao da realidade constitutiva do objecto e

    concorreria, por sua vez, a constitu-lo. A teoria e a prtica haveriam de reconhecer-se

    numa unidade fundamental, que seria a prpria unidade da praxis histrico-social. Pelo

    que de novo se diga, j que o ponto decisivo a realidade seria de uma global

    dialctica constitutiva e a pensar-conhecer dialecticamente: a realidade holstica e o

    pensamento dialctico (sobre tudo isto, v. especialmente HORKHEIMER, Traditionelle

    und kritische Theorie, cit.,passim).

    Tanto basta para uma compreenso essencial da teoria crtica, na sua

    especificidade e na sua diferena, prescindindo, quer de maiores desenvolvimentos

    certamente enriquecedores (nesse sentido, v., por todos, os estudos de MARTIN JAY,La

    imaginacin dialctica, Una histria de la Escuela de Frankfurt, 1974, reimpresso de

    1989; JEAN-MARIE VINCENT, La thorie critique de lcole de Francfort, 1976;

    FRANCISCO COLOM GONZLEZ, Las caras del Leviatn, Una lectura poltica de la

    teoria crtica, 1973), quer da polmica epistemolgica que se abriu entre ela e a

    epistemologia terica, especialmente na linha popperiana ou do racionalismo crtico e

    portanto j para alm do estrito positivismo emprico-analtico (v., a este propsito,

    HERMANN LEY/ THOMAS MLLER, Kritische Vernunft und Revolution, Zur KontroverseZwischen Hans Albert und Jrgen Habermas, 1971; TH. W. ADORNO e al., Der

    Positivismusstreit in der deutschen Soziologie, 6. ed., 1978 - h trad. francesa sob o

    ttulo De Vienne Francfort, La querelle allemande des sciences sociales), mesmo de

    um global juzo crtico que a tivesse por objecto (citar-se- com esse objectivo o ensaio

    de MICHEL THEUNISSEN, Gesellschaft und Geschichte, Zur Kritik der Kritische Theorie,

    1969), que nos obrigasse a uma considerao geral do marxismo, na sua particular

    concepo materialista da histria e da sociedade, da sua antropologia e da suagnoseologia (para uma reviso crtica de alguns destes pontos, ainda que numa

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    perspectiva criticamente neomarxista, v. J. HABERMAS, Erkenntnis und Interesse, Mit

    einem neuen Nachwort, 1979; v. ainda, para uma anlise crtica da antropologia

    marxista e a implicada concepo da cultura, CASTANHEIRA NEVES, A revoluo e o

    direito, inDigesta, I, 92-141).

    No prescindiremos, todavia, quanto a esse juzo global, desta observao

    crtica, a apontar para uma contradio iniludvel: a teoria crtica, no seu criticismo

    radical, postula acriticamente um conjunto decisivo de pressupostos que so a sua

    verdadeira base de sustentao, os pressupostos afinal do marxismo que ela, explcita ou

    implicitamente, faz sem mais ou dogmaticamente seus; o que impe se conclua que a

    possibilitar e a dar sentido, especfico sentido, sua crtica est manifestamente um

    dogma (aquele dogma que em tempos RAYMOND ARON pde dizer, no sem ironia

    justificada pela particular atitude da intelligentzia francesa do tempo, que era Lopium

    des intellectuels; cfr. tambm para a denncia de um dogmatismo na teoria crtica,

    M. THEUNISSEN, ob. cit., 28, ss.).

    De mais directo interesse para ns a considerao, tambm crtica, da

    projeco dessa teoria crtica no pensamento jurdico ou da sua pretenso de definir

    uma teoria crtica do direito.

    ) Prope-se ela trazer tambm para o universo jurdico, tanto no modo de ver e

    pensar o direito como na sua mobilizao transformadora e de concreta realizao, o

    sentido e o objectivo caractersticos da teoria crtica em geral. Da os seus pontos mais

    salientes e que sero sobretudo os seguintes.

    Uma crtica desmitificante ou desconstrutora, e em recusa epistemolgica, do

    pensamento jurdico e da cincia do direito tradicionais: pe-se em causa a sua

    pretensa axiologia e as suas categorias, que se traduziriam como que em frmulas

    mgicas (v. R. WIETHLTER,Rechtswissenschaft, 1970com trad. italiana sob o ttulo

    justamente Le formule magiche della scienza giuridica; MICHEL MIAILLE, Uneintroduction critique au droit, cit.; e ainda em geral o Critical Legal Studies Movement,

    a referir a seguir), denunciando em termos no menos radicais as suas pretenses de

    objectiva validade e de justia, e bem assim a falta de uma sustentvel racionalidade de

    fundamentao, a ilusria existncia de uma pressuposta ordem axiolgico-normativa

    legitimante e fundamentante assim como as contradies fundamentais do seu

    pseudo-sistema autnomo com as tcticas ideolgicas e as sempre variveis

    justificaes ad hoc, o que permitiria afirmar uma bsica irracionalidade do direito emgeral, dominado em todos os nveis pelo jogo apenas dos interesses e dos seus poderes -

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    tudo isto em que se poder ver a sntese da crtica do Critical Legal Studies Movement,

    de origem e expanso norte-americana e a que voltaremos. A insero do direito no todo

    da realidade histrico-social, globalmente considerada nos termos holstico-dialcticos

    (e metodologicamente de uma interdisciplinariedade integrante) que j sabemos, para

    ver nele uma expresso particular, mas de modo anlogo ao antes aludido quanto

    cincia e cultura em geral, da praxis histrico-social e que, por isso mesmo, s essa

    praxis permitiria entender, do mesmo passo que ofereceria a perspectiva unicamente

    vlida da sua crtica. Crtica que se orienta num sentido todo ele crtico-ideolgico, a

    partir da qual se assume um outro e expressamente proclamado compromisso

    ideolgico-poltico (repdio e superao da sociedade burguesa e defesa de uma

    ideologia progressista que tem o socialismo como modelo) e que apontaria o

    objectivo, prospectivo e transformador, a impor juridicidade, o objectivo da

    emancipao enquanto critrio da sociedade justa. O que implicaria j uma cincia

    do direito poltica e um jurista poltico (WIETHLTER), chamados a fazer assimilar

    aquele compromisso ideolgico-poltico na prpria dogmtica e no sistema jurdicos (v.,

    p. ex., THOMAS WILHELMSSON, Critical Studies in Private Law, A Treatise on Need-

    Rational Principles in Modern Law, 1972); j mesmo um juiz poltico, i. , um juiz

    que tomasse partido, que orientasse as decises concretas no sentido daquela justia

    emancipadora, servindo-se embora at onde fosse possvel das virtualidades e das

    indeterminaes da metodologia jurdica dominante este o expresso propsito de

    uma das linhas da teoria crtica do direito que a si mesma se designa por teoria do

    uso alternativo do direito.

    ) Tudo o que ser retomado e melhor analisado criticamente ao considerarmos

    o funcionalismo poltico, em todas as suas modalidades (teoria crtica do direito em

    geral, Critical Legal Studies, Uso alternativo do direito) enquanto uma das expresses

    do funcionalismo jurdico. Basta agora dizer-se porque no podemos fixar-nos nestaalternativa da teoria do direito, sem minimizar embora a importncia de alguns dos

    seus contributos. Com efeito, no objectivo principal de negar a autonomia do direito,

    fosse essa negada autonomia ontolgica, axiolgico-cultural ou outra, e assim de

    recusar o direito em si da dogmtica tradicional, para o ver de todo funcionalizado

    globalidade da praxis histrico-social, enquanto apenas, ou quando muito, na bem

    relativa autonomia da super-estrutura ideologicamente explicvel e gentico-

    -determinantemente redutvel, a teoria crtica oscila, desse modo, entre umsociologismo holstico (holismo de todo anlogo ao que vemos prprio da sociologia

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    global ou da sociologia de profundidade proposta, p. ex., por G. GURVITCH, La

    vocation actuelle de la sociologie, I, 66, ss., ao convocar o fenmeno social total; e

    que, entre ns, est tambm presente no projecto social global invocado por

    ORLANDO DE CARVALHO, Jus-quod justum?, 10, ss., na linha da teoria crtica) e uma

    politicizao radical na sua considerao do direito, com sacrifcio da compreenso da

    sua normatividade enquanto tal, no sentido constitutivamente especfico que lhe

    corresponde, acabando por v-lo to-s como implicao social ou factor e instrumento

    poltico. O que nos diz que a excessiva preocupao pelo todo integrante, e apenas

    globalmente pensado, dificilmente evita o resultado que diremos de dissoluo das

    essncias, i. , a indiferenciao no global todo da especificidade de tudo; assim como

    se reconhecer que, antes da gentica explicao e da final reduo, h que

    compreender primeiro na sua manifestao especfica o que se pretende explicar e

    reduzir depois. Pelo que indispensvel compreender o direito qua tale, ou seja na

    normatividade constitutiva dele como direitoe a essa normatividade nos seus tambm

    constitutivos pressupostos culturais, na sua intencionalidade normativa, no tipo da sua

    racionalidade e no seu modelo operatrio e de realizao: no seu corpus, no seu telos

    prtico, na sua ratio e no seu modus operandi. Uma tal compreenso ser

    metanormativa, embora vise atingir a constitutiva imanncia normativa; reflexiva,

    porque assim imanentemente reconstitutiva, e nessa reflexividade tambm crtica, num

    duplo sentido no sentido transcendental de crtica (explicitante das condies de

    possibilidade e constitutivas) que acaba por confundir-se com aquela reflexibilidade (e

    que nesses termos se distingue do sentido de crtica da teoria crtica, tal como se

    distingue o transcendental explicitante das condies do dialctico de uma dinmica

    integrante), e no sentido mais comum do juzo ponderador, que, alis, possibilitado

    pela prpria reflexividade, j que ao reconhecer-se, nos termos indicados, o que dar

    sentido constitutivo e operacional normatividade do direito, fica-se em condies deajuizar sobre o seu verdadeiro sentido e assim sobre o que nela ou no sustentvel,

    sobre o que a determinou e j no poder porventura determin-la, considerado que seja

    nesse seu sentido implcito e nas suas consequncias (sentido este de crtica que j se

    aproxima do tambm segundo sentido da crtica praticada pela teoria crtica).

    A esta metanormativa compreenso da normatividade por que se manifesta o

    direito, designamo-la teoria crtica-reflexiva do direito e ser ela o objecto deste

    curso.

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    b) Posto o que no dificil definir a topografia desta teoria do direito no

    universo das disciplinas jurdicas e com isso confirmar o seu interesse no sillabus

    cultural e universitrio referido ao direito.

    Assim, da dogmticajurdica (ou da comum cincia do direito, com todos os

    domnios nela diferenciados, do direito privado ao direito pblico, do direito penal ao

    direito processual, etc.), de uma intencionalidade prtico-normativa a normatividade

    jurdica, na especializao que lhe determinam os valores, os princpios e a teleologia de

    cada um daqueles domnios, e na sua caracterstica inteno hermenutica sistemtico-

    dogmtica, prtico-judicativa e prtico-realizanda, que a se assume distingue-se a

    teoria do direito, no sentido indicado, pela sua intencionalidade de metanormativa

    considerao da juridicidade em geral, assimilada directamente pela dogmtica, com o

    objectivo, j no imediatamente positivo-normativo que dogmtica corresponde, mas

    de crtico-reflexiva compreenso dessa juridicidade em referncia concepo ou

    concepes que lhe determinam o seu sentido e ao pensamento que a pensa sabendo-

    -se que so aquelas concepes que intencionalmente a constituem e este pensamento,

    como pensamento jurdico, que a projecta prtico-normativamente. Pelo que se poder

    dizer que a perspectiva de normativa juridicidade, que a pressuponente

    intencionalidade da dogmtica, se volve em objecto de crtica reflexibilidade na teoria

    do direito.

    Da teoria do direito se haver de distinguir, por outro lado, a j hoje

    autonomizada poltica do direito autonomizada tambm como uma disciplina

    particular e diferenciada por uma especfica intencionalidade, embora sem unanimidade

    quanto definio dessa especificidade. Por poltica do direito em geral, entende-se a

    inteno e a determinao do direito ideal ou do direito socialmente mais conveniente

    (seja mais justo, seja socialmente mais justificado, seja praticamente mais oportuno,

    etc.) e assim numa inteno prtico-regulativa e programtica a implicar tanto umacrtica reformadora do direito constituto como um projecto inovador de iure

    constituendo mediante a postulao dos objectivos prticos (valores e fins) que o

    direito se deveria propor e simultaneamente a determinao tcnica (tcnico-jurdica)

    para os realizar em termos normativa e institucionalmente adequados e eficazes. Ou,

    numa formulao mais sinttica, mas no menos ambiciosa, poltica do direito

    competiria o esforo para a criao de uma ordem jurdica nacional e internacional

    atravs de regulaes jurdicas ptimas (EIKE v. HIPPEL, Rechtspolitik, Ziele, Akteure,Schwerpunkte, 1972). Poltica do direito que no se identificar com a poltica tout

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    court, embora possa resultar, e resulta efectivamente as mais das vezes, da converso de

    um projecto ou programa poltico geral aos limites e aos esquemas jurdicos at

    porque a elaborao de uma poltica de direito, particularmente a sua elaborao

    sistemtica, pressupe e orienta-se sempre por um certo modelo de sociedade e tem

    presente uma ideia de posio e funo que o direito dever ter nela. Anotar-se- ainda

    que a poltica do direito pensada segundo diversas orientaes predominantes. Ou com

    uma ndole mais cientfico-tecnolgica, como uma tecnologia social ( concepo do

    prprio direito e do pensamento jurdico como tecnologias sociais teremos ocasio de

    voltar) de base psico-sociolgica -v., assim, MARIA BORUCKA-ARCTOWA, Die

    gesellschaftliche Wirkung das Rechts, I Teil, 20, ss.) ; ou, com uma ndole de forte

    dimenso axiolgica, num compromisso com uma tbua de valores poltico-jurdicos e

    poltico-sociais gerais a conjugar embora, numa perspectiva integrante, com particulares

    objectivos prticos e tcnicos (p. ex., uma tcnica da legislao que teria de optar entre

    o regulativo geral ou a casustica) v. assim, L. LOMBARDI VALLAURI, Corso di

    filosofia del diritto, 1981, 7 epassim, onde se discriminam a integrar uma poltica do

    direito cientificamente fundada, a) a elaborao crtica de uma tbua de valores

    tcnico-jurdicos gerais, i. , uma filosofia; b) a elaborao crtica de uma tbua de

    valores tcnico-jurdicos especficos, necessrios para a traduo do discurso poltico

    em discurso de poltica do direito; c) a anlise metdica do contedo social no qual

    iro actuar aqueles valores, i. , uma sociologia ; A. ROSS,Diritto e giustizia, trad. it.

    de G. GAVAZZI, 309, ss.; EIKEN v. HIPPEL, ob. cit., 18, ss., 44, ss. ; ou tambm de

    ndole crtica-ideolgica, que acaba por confundir-se com uma teoria crtica do direito.

    Por outro lado, no desconhece tambm uma tendncia de especializao , p. ex., de

    todos conhecida a actualmente insistente referncia poltica criminal ou penal.

    Nem poder deixar de referir-se ainda afilosofia do direito, a distinguir tanto da

    dogmtica e da teoria do direito como da poltica do direito embora se reconhea quemuitos dos modelos da teoria do direito, quer na perspectiva teortica, quer na

    perspectiva crtica, nem sempre claramente se diferenciem da filosofia do direito, ou

    melhor, o que esses modelos acabem verdadeiramente por ser so filosofias do direito.

    certo que a filosofia em geral, e decerto tambm a filosofia do direito, se tornou

    fortemente problemtica no nosso tempo, j quanto validade do seu sentido

    tradicional, j quanto sua temtica, j quanto ndole da sua reflexo, etc. da que o

    problema de o fim da filosofia (HEIDEGGER) e a exigncia de a transformao dafilosofia (K.-O. APEL), se no mesmo o seu sem-sentido (CARNAP) ou a sua

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    superao pela teraputica de anlise da linguagem (WITTGENSTEIN) tenham passado

    para a ordem do dia cultural. O que no invalida que se possa dizer, e para ns neste

    momento o que bastar, que a intencionalidade da filosofia do direito ser, no

    prtico-normativa como a da dogmtica jurdica ou prtico-regulativa e programtica

    como a da poltica do direito, to-pouco crtico-reflexiva como da teoria do direito, mas

    reflexivo-especulativa nem de uma imediata inteno prtico-normativa, nem a

    esgotar-se numa explicitao reflexiva da juridicidade que permita porventura um juzo

    crtico, nem marcada por uma inteno de crtica ideolgica ideologicamente orientada

    que culmina num projecto poltico, mas uma reflexo que interroga, na inteno de um

    ltimo esclarecimento cultural, sobre o sentido do direito no mundo humano e para o

    homem. Ou com o nico interesse prtico, mas fundamental, que resulta do

    conhecimento que o homem obtenha de si prprio e da sua existncia no mundo

    histrico, e de que afinal, tudo o mais depender. (Para uma considerao da distino-

    -conexo entre dogmtica jurdica, teoria do direito e filosofia do direito, posto que em

    termos no inteiramente coincidentes com os que foram enunciados, v. T. H. VIEHWEG,

    ber den Zusammenhang zwischen Rechtsphilosophie, Rechtstheorie und

    Rechtsdogmatik, in Estudios Jurdico-Sociales, Homenaje al Professor Luis Legaz y

    Lacambra, I, 211, ss.; e tambm o ensaio j citado de ARTUR KAUFMANN,

    Rechtsphilosophie, Rechtstheorie, Rechtsdogmatik, loc. cit.).

    Uma palavra tambm sobre a metodologia jurdica: se a teoria do direito

    resultou, como vimos, de uma certa disputa com a filosofia do direito numa tentativa de

    superao, a metodologia jurdica autonomizou-se tambm da filosofia do direito numa

    especializao anloga que se verificou com a lgica perante a filosofia em geral; e

    hoje pode considerar-se a metodologia jurdica como um ramo particular da teoria do

    direito, embora mais prxima do pensamento jurdico stricto sensu, pois aquela

    metodologia mais no do que a auto-reflexo que este pensamento, enquantopensamento chamado judicativa realizao do direito, faz de si prprio.

    E para sermos completos, no elenco das disciplinas do universo jurdico-cultural

    tero de considerar-se tambm decerto a histria do direito e a sociologia do direito. S

    que, quanto a elas, nada de particular h a convocar para o ponto que nos importa, a

    autonomizante definio da teoria do direito.

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    2.A opo e o objecto do Curso

    a) Justificado nos termos antes expostos, a uma teoria do direito

    compreendemo-la hoje sobretudo como a determinao crtico-reflexivamente

    metanormativa do direito, i. , das concepes e das prticas constitutivas da

    juridicidade, e do pensamento que o pensa. Sabendo-se que entre aquelas concepes e

    prticas e este pensamento h uma unidade de incindvel circularidade e que o direito,

    na sua realidade histrica, no seno a manifestao histrico-cultural dessa unidade:

    o direito, como fenmeno humano-cultural que , encontra como que a sua epifania na

    objectivao de uma certa concepo de juridicidade na prtica que a assume; e

    objectivao (o direito), na concepo que intencionalmente a constitui e na prtica

    que objectivamente a realiza, s se torna explcita, numa sua auto-conscincia, no

    pensamento jurdico, o pensamento que especificamente a pensa; alm de que nessa

    explicitao, ou no pensar do pensamento jurdico a juridicidade que a intencionalidade

    desta encontra afinal a sua ltima determinao constitutiva.

    Com o que fica tambm dito qual verdadeiramente o objecto desta teoria

    crtico-reflexiva do direito: o seu objecto no o direito, como que hipostasiado num

    em si e por si, mas as concepes prticas que o manifestam e os pensamentos que o

    pensam, pois s na unidade histrico-cultural entre aquelas e estes o direito vem sua

    existncia, sua objectivao real e pode, j por isso, ser objecto de uma reflexo

    terica que nessa objectivao o queira compreender.

    b) Na actual situao problemtica do direito e do contexto cultural geral, com

    toda a sua complexividade estrutural e a pluralidade das dimenses intencionais, so

    reconhecveis diversas perspectivas de considerao da juridicidade, com particularacento no compromisso prtico da sua realizao. Da que se nos imponha a

    diferenciao dessas diferentes perspectivas, numa analtica determinao

    compreensiva, atravs de uma sistemtica explicitao crtica dos respectivos sentidos

    constitutivos e dos seus modelos operatrios.

    S que, sabemos que o complexo uma pluralizao desenvolvida e uma

    articulao sobredeterminada do simples. Pelo que a reduo ao simples, sendo decerto

    condio de coerncia previnem-se as ambiguidades e so denunciveis asanfibiologias , no menos pressuposto de concludncia o resultado sempre

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    funo, na sua viabilidade e na sua validade, do fundamentalmente constitutivo. ainda

    isso elementar exigncia de propedutica clareza: importa saber do que exactamente se

    fala e como nisso de que se fala vai implicado o que se deve falar. o que se propem

    reduo ao simples, tentativa de clarezaas anlises que aqui se oferecem a diferenciar

    as perspectivas (o mimetismo intelectual levar-nos-ia a dizer paradigmas) pelas quais

    se oferece hoje a juridicidade. F-lo-emos referindo trs perguntas, as trs mesmas

    perguntas a cada uma dessas perspectivas possveis e diferentes, perguntas s quais elas

    respondem diversamente, e por isso mesmo se diferenciam. As perguntas so: 1) com

    que sentido ou de que modo intencionalmente constitutivo visam o direito e, em

    consequncia desse sentido e desse modus, em que termos fundamentalmente o

    objectivam e compreendem?; 2) com que categoria ou categorias de inteligibilidade o

    pensam e o determinam?; 3) como, em corolrio operativo das respostas dadas s duas

    perguntas anteriores, se estruturam metodologicamente, i. , segundo que modelo

    metdico o realizam e actuam?

    Essas perspectivas se quisermos considerar s as que no nosso tempo so

    verdadeiramente relevantes e efectivamente convocveis so trs: o normativismo, o

    funcionalismo e ojurisprudencialismo.

    Outras perspectivas diferentes tiveram a sua poca. Assim foramfamosos e todos recordam os trs tipos do pensamento jurdicocaracterizados por CARL SCHMITT, o normativismo, o decisionismoe o ordinalismo concreto (ber die drei Arten des

    Rechtswissenschaftlichen Denkens, 1934), e durante muito tempotambm os juristas se dividiram entre o normativismo e oinstitucionalismo (cabendo neste ltimo decerto a ordem concreta,mas ainda todo o pensamento do direito como instituio HAURIOU,G. RENARD, DELOS, mesmo FORSTHOFFe como ordenamentoSANTIROMANO). Assim como no so menos significativas as distines, quer

    de HERMANN

    KANTOROWICZ

    entre o formalismo e o finalismo ou aorientao finalista do pensamento jurdico (v. Die Epochen derRechttswissenschaft, reproduzido por G. RADBRUCH, in Vorschule derRechtsphilosophie, 3. ed., 63, ss.), quer de ALVARO DORS entre o tipodos juristas ordenancistas e o tipo de juristas judicialistas (v. inEscritos varios sobre el derecho en crisis, 1973, 35, ss.). Sem excluirainda a distino, que se oferece como o pano de fundo obrigatrio, entreo jusnaturalismo e o positivismo jurdico, a que ter de acrescentar--se j no nosso sculo o realismo jurdico. Decerto que todas estasdistines so justificadas e referem linhas de compreenso e deorientao do pensamento jurdico em toda a sua histria, mas propondo-

    -nos ns menos enunciar uma analtica completa do que ser actuais,estamos em crer que a distino em que nos fixmos aquela pela qual

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    hoje as opes sobretudo se definem e os efectivos compromissos deassuno e de realizao do direito ou de praxis da juridicidade seidentificam e se reconhecem. Iremos comprov-lo dizendo desde jque, p. ex., o institucionalismo, com a sua oposio ao normativismo etambm ao estadualismo, cedeu hoje o lugar ao funcionalismo, sem que

    com isso tenha decerto desaparecido o fenmeno e mesmo aindefectibilidade da institucionalizao, s que agora no em si ouafirmando-se a instituio como um subsistente e antes vendo-setambm ela funcionalmente compreendida; e que o jusnaturalismo,persistindo embora no quadro das reflexes da filosofia do direito, j no determinante e est mesmo definitivamente superado na prtica

    jurdica, e por uma razo ltima e decisiva: o essencialismo, qualquerforma ou modalidade de essencialismo, teoricamente insustentvel (errada em teoria) e praticamente negado ( incompatvel com o sentidoprprio dapraxis), mas sem que desta concluso se possam pensar mais

    justificados ou o positivismo ou o realismo jurdicos. Depois, no

    desenvolvimento explicitante da distino que iremos considerar nodeixam de cruzar-se e de serem convocados no relevo que importemuitas das distines que ficaram aludidas.

    J outras distines nos parecem menos relevantes, quer porqueno logram atingir o que de mais importante caracteriza a distino queenunciamos, quer porque esto longe de a poder substituir. Assim, p. ex.,a distino que MIGUEL REALE faz na sua considerao das fases que sehaveriam de reconhecer no direito moderno (Nova fase do direitomoderno, 1990, 93, ss.): uma primeira fase a corresponder concepoformal-exegtica e conceitual-sistemtica do direito que, todavia, suma das manifestaes do normativismo, e sem a possibilidade de bem ocaracterizar , uma segunda fase, que teria sido simultaneamente demarcada perspectivao sociolgica e de socializao do direito e queafinal mais no foi do que um momento percursor do funcionalismo, oqual, implicando decerto uma socializao, veremos ter ido muito almde um simples sociologismo, e uma terceira fase, que seria a actual, emque convergiriam a descodificao ideolgica, a electrnica eciberntica, a jurisprudncia da valorao o que, sendo exacto, certamente muito fragmentrio e insuficiente para uma acabadacompreenso das perspectivas que hoje concorrem no pensamento

    jurdico e que s a contraposio entre normativismo, funcionalismo e

    jurisprudencialismo susceptvel de acabadamente atingir. Assim comono ser muito diferente o que havemos de dizer da caracterizao de osmodelos da cincia do direito enunciada por TRCIO SAMPAIO FERRAZJR. (A Cincia do direito, 2. ed., 1986, 47, ss.), a distinguir umaconcepo analtica, uma concepo hermenutica e uma concepoemprica da cincia do direito ou do pensamento jurdico e quepressuporiam, respectivamente, tambm diversas concepesantropolgicas, um homem dotado de necessidades que revelariaminteresses e a exigir a sistematizao de regras para a obteno dedecises possveis, um homem referido ao sentido ou para o qual o agirtem significado e visa um sistema compreensivo do comportamento

    humano, um homem como um ser dotado de funes e que entenderiao pensamento jurdico como um sistema explicativo do comportamento

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    humano enquanto conformado por normas, concepes antropolgicasque implicariam assim, e ainda respectivamente, uma cincia do direitocomo teoria da norma, como teoria da interpretao e como teoriada deciso jurdica certo que a considerao dos pressupostosantropolgicos da maior importncia em qualquer entendimento da

    juridicidade, mas a concepo analtica no se entender seno no quadromais compreensivo do normativismo, a concepo hermenutica foisempre dimenso da dogmtica jurdico-normativa em qualquer tempo e tpico que se reconhece, embora com alguma nuance, tanto nonormativismo como no jurisprudencialismo e no capaz de distinguir ecaracterizar o que a diferenciao entre estes dois ltimos implica, e aconcepo emprica se convoca e funcional em geral, e remete deciso, em sentido prprio, no susceptvel s por isso de nos fazerentender o modo particular, de um muito especfico e complexocompromisso funcionalista, que depararemos no funcionalismo jurdicodos nossos dias.

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    CAPTULO I

    ONORMATIVISMO

    a) O normativismo uma das modalidades do objectivismo jurdico, e, dentro

    deste, do cognitivismo normativo jurdico, que se tornou particularmente explcita e

    dominante a partir do pensamento jurdico moderno, embora j insinuado, se que no

    ter mesmo obtido uma primeira expresso, no pensamento de legibus hermenutico-

    -lgico e abstracto-normativo e construtivista, dos juristas medievais e do direito

    comum (sobre este ponto, v. E. EHRLICH, Die juristiche Logik, in Arch. f. civ. Praxis,113, 172, ss.).

    Em todo o objectivismo jurdico o direito vai pressuposto como objecto. Como

    uma entidade objectivamente subsistente ou um ente (seja social, seja normativo-

    -cultural) e que, j por isso ou enquanto desse modo se postula como um em si

    pressuposto, admite a interrogao (e a discusso) sobre o seu ser ou o seu modo-de-ser

    a interrogao o que o direito? e exige uma determinao conceitual, uma

    denotao significante que se enuncie no seu conceito em resposta quela interrogao.

    Pode todavia especificar-se esse objectivismo, consoante a ndole intencional da

    sua referncia for normativa ou emprica. Teremos um cognitivismo normativo, se o

    direito-objecto for entendido segundo uma objectividade normativa, com uma

    pressuposta normatividade e no sentido especfico desta: um sentido de dever-serou

    regulativamente contra-factual. Teremos um cognitivismo emprico, se o direito-

    -objecto se postular num qualquer modo-de-ser emprico ou factual (Law as fact

    OLIVERCRONA): como uma factualidade psicolgica, sociolgica, inclusivamente

    lingustica (emprico-lingustica) embora esta ltima, atravs do prescritivismo que

    predominantemente d contedo a essa lingustica factualidade, no deixe de certo

    modo de pertencer tambm ao cognitivismo normativo-jurdico, pois se o dir