cadernos de psicologia social do trabalho usp 9.1 2006

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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho ISSN 1516-3717 Volume 9, número 1, 2006 Sumário Summary Editorial ........................................................................................ v Editorial Onde a autogestão acontece: revelações a partir do cotidiano ....... 1 Cris Fernández Andrada Where self-management happens: revelations from everyday practice Trabalho no hospital: ritmos frenéticos, rotinas entediantes .......... 15 Claudia Osorio Hospital work: frenzied rhythms, tedious routines Desemprego: discurso e silenciamento – um estudo com clientes de um serviço de aconselhamento psicológico ................ 33 Carolina Passos Terra, Joari Aparecido Soares de Carvalho, José Eduardo Assunção Azevedo, Luciana de Albuquerque Venezian e Sérgio Bacchi Machado Unemployment: speech and silencing – a research with clients of a counseling service Autogestão em construção: uma cooperativa de construção civil do Rio de Janeiro ................................................. 53 Elaine Araújo Busnardo Development of self-management: a cooperative of civil building in Rio de Janeiro O juiz de água: uma forma tradicional de organização de trabalhadores agrícolas para a distribuição de água de irrigação ... 73 Jesús Eduardo Canelón Pérez The judge of water: a tradicional way of rural workers’ organization for the distribution of water Trabalho, organização e pessoas com transtornos mentais graves .............................................................................. 91 Paulo César Zambroni-de-Souza Labor, organization and people with severe mental ill Entrevista: Josep Maria Blanch ................................................... 107 Interview: Josep Maria Blanch Instruções para colaboradores .................................................... 125 Directions for contributors

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Cadernos de Psicologia Social do TrabalhoISSN 1516-3717

Volume 9, número 1, 2006

SumárioSummary

Editorial ........................................................................................ v Editorial

Onde a autogestão acontece: revelações a partir do cotidiano ....... 1Cris Fernández Andrada Where self-management happens: revelations from everyday practice

Trabalho no hospital: ritmos frenéticos, rotinas entediantes .......... 15Claudia Osorio Hospital work: frenzied rhythms, tedious routines

Desemprego: discurso e silenciamento – um estudo com clientes de um serviço de aconselhamento psicológico ................ 33Carolina Passos Terra, Joari Aparecido Soares de Carvalho, José Eduardo Assunção Azevedo, Luciana de Albuquerque Venezian e Sérgio Bacchi Machado Unemployment: speech and silencing – a research with clients of a counseling service

Autogestão em construção: uma cooperativa de construção civil do Rio de Janeiro ................................................. 53Elaine Araújo Busnardo Development of self-management: a cooperative of civil building in Rio de Janeiro

O juiz de água: uma forma tradicional de organização de trabalhadores agrícolas para a distribuição de água de irrigação ... 73Jesús Eduardo Canelón Pérez The judge of water: a tradicional way of rural workers’ organization for the distribution of water

Trabalho, organização e pessoas com transtornos mentais graves .............................................................................. 91Paulo César Zambroni-de-Souza Labor, organization and people with severe mental ill

Entrevista: Josep Maria Blanch ................................................... 107 Interview: Josep Maria Blanch

Instruções para colaboradores .................................................... 125 Directions for contributors

Os Cadernos de Psicologia Social do Trabalho são uma publicação periódica do Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho que visa difundir a produção científica na área da psicologia do trabalho e dos processos organizativos a partir da leitura da psicologia social, compreendida como um campo interdisciplinar.A revista conta com a colaboração de consultores ad hoc. Tiragem: 400 exemplares.

Indexação no Index Psi Periódicos (BVS-Psi) http://www.bvs-psi.org.br

Disponível nas bibliotecas da Rede Brasileira de Bibliotecas da Área de Psicologia (ReBAP) http://www.bvs-psi.org.br/rebap/

Disponível online no portal Periódicos Eletrônicos em Psicologia (PePSIC) http://pepsic.bvs-psi.org.br/

Cadernos de Psicologia Social do Trabalho / Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho (CPAT) do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.– Vol. 1, nº 1 (1998) – São Paulo: Instituto de Psicologia da USP, 1998 –

ISSN 1516-3717

1. Psicologia do Trabalho; 2. Psicologia Social. I. Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia. Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho.

CDD 150LC HF5548.8 / HM251

Endereço para envio de manuscritos, compra, permuta e assinatura:

Centro de Psicologia Aplicada ao TrabalhoAv. Prof. Mello Moraes, 1721, bloco D, sala 163, Cidade Universitária, São Paulo-SP, Brasil, 05508-030Telefone: +55 11 3091 4188, fac-símile: +55 11 3091 4174Correio eletrônico: [email protected]ágina eletrônica: http://www.usp.br/ip

Consultores ad hoc das últimas edições

Alexandre Bonetti Lima (UEL)Ana Magnolia Bezerra Mendes (UnB)

Eda Terezinha de Oliveira Tassara (USP)Francisco Antonio de Castro lacaz (Unifesp)

Maria da Graça Jacques (UFRGS)Henrique Caetano Nardi (UFRGS)

Ildeberto Muniz de Almeida (UNESP)Jorge Machado (Fiocruz)

Leonora Figueiredo Corsini (UFRJ)Maria Luiza Sandoval Schmidt (USP)

Maria Maeno (Fundacentro)Peter Kevin Spink (PUC-SP)Sylvia Leser de Mello (USP)

Thaís Helena de Carvalho Barreira (Fundacentro)Vera Lúcia Navarro (USP)

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Cadernos de Psicologia Social do TrabalhoISSN 1516-3717

Volume 9, número 1, 2006

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOReitora Vice-Reitor Suely Vilela Franco Maria Lajolo

INSTITUTO DE PSICOLOGIADiretora Vice-Diretora Maria Helena Souza Patto Edwiges Ferreira de Mattos Silvares

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA SOCIAL E DO TRABALHOChefe de Departamento Maria Inês Assumpção Fernandes

CENTRO DE PSICOLOGIA APLICADA AO TRABALHODocentes Psicólogos SecretáriaMarcelo Afonso Ribeiro (coordenador) Anete de Souza Farina Tania M. F. de A. Silva

Leny Sato Fábio de Oliveira Flavio Ribeiro Tatiana Freitas Stockler das Neves

CADERNOS DE PSICOLOGIA SOCIAL DO TRABALHOEditores Leny Sato Fábio de Oliveira

Conselho Editorial Alexandre Bonetti Lima (Universidade Estadual de Londrina, Paraná) Fábio de Oliveira (Universidade de São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Francisco Antonio de Castro Lacaz (Universidade Federal de São Paulo – EPM) Iram Jácome Rodrigues (Universidade de São Paulo) Isaac Prilleltensky (Universidade Wilfrid Laurier, Canadá) Jorge Vala (Universidade de Lisboa, Portugal) José Miguel Sabucedo (Universidade Autônoma de Santiago de Compostela, Espanha) José Moura Gonçalves-Filho (Universidade de São Paulo) Josep Maria Blanch (Universidade Autônoma de Barcelona, Espanha) Leny Sato (Universidade de São Paulo) Maria Elizabeth Antunes Lima (Universidade Federal de Minas Gerais) Maristela Dalbello de Araújo (Universidade Federal do Espírito Santo) Peter Kevin Spink (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) Sigmar Malvezzi (Universidade de São Paulo) Sylvia Leser de Mello (Universidade de São Paulo)

Colaboradores Flavio Ribeiro

Revisão e diagramação Fábio de Oliveira

Capa Flavio Ribeiro Alexandre Teixeira Martinez

Foto da Capa “Quando não tem a peça, ele faz”, Sr. José Nascimento de Jesus, feriante da feira da Caixa D'Água, Vila Mariana, São Paulo, por Leny Sato

Idealização do padrão da capa Sandro A. Mazzio

AgradecimentosAndré Serradas, Maria Helena Souza Patto, Juliana Breschigliari, Ari Edson Dario Ferreira, Gerson da Silva Mercês, Tânia M. F. de A. Silva, Marinalva A. S. Gil, Maria Cecília Rodrigues de Freitas, Coordenação da Área de Concentração do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do IPUSP.

iii

Editorial

om satisfação, apresentamos aos leitores mais um volume dos Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, periódico que trata de alguns dos principais temas que se

apresentam na realidade social sobre o trabalho e os processos cotidianos na atualidade. Todos os artigos aqui apresentados debruçam-se sobre problemas sociais relevantes em contextos diversos. A leitura da psicologia social, segundo diversos aportes teóricos e metodológicos conformam e iluminam focos de reflexão que, certamente, possibilitam a ampliação de sua contribuição para o debate interdisciplinar.

C

O tema da autogestão, reavivado na última década no Brasil, é o objeto de preocupação do ensaio de Cris Fernández Andrada, que toma o âmbito do cotidiano para olhar como se faz a autogestão, uma exigência contínua para as mulheres que construíram a cooperativa de artesanato. É também na autogestão que Elaine Araújo Busnardo vai buscar compreender mudanças nas condições de vida e trabalho, mas agora num setor em que acidentes de trabalho e outros problemas de saúde são freqüentes, a construção civil.

O trabalho no setor de saúde, pesquisado por Cláudia Osório, é focalizado de modo a elucidar a fragmentação do trabalho num hospital, como ele é vivenciado pelos trabalhadores e como eles buscam resolver os problemas decorrentes da organização “real”, por meio de relações de coleguismo e solidariedade. Cláudia aponta para o hiato entre o trabalho tal qual concebido e o que efetivamente é conduzido.

Refletir sobre o trabalho de pessoas com transtornos mentais graves é o foco tomado por Paulo César Zambroni-de-Souza. Em seu artigo, Paulo apresenta uma série de questões que nos convidam a pensar sobre os limites e o alcance ao se promover iniciativas de trabalho no âmbito das políticas públicas de saúde. A historicidade do trabalho e da loucura não deixam de ser abordadas, além de outros temas.

Compreender os modos por meio dos quais o sofrimento se comunica com o desemprego foi a busca de um grupo de jovens pesquisadores: Carolina P. Terra, Joari A. S. de Carvalho, José Eduardo A. Azevedo, Luciana de A. Venezian e Sérgio B. Machado. A partir de demanda por aconselhamento psicológico, o desemprego aparece no imaginário e se articula com o sofrimento de múltiplas formas e se insinuando em pessoas de diversos estratos sociais.

Jésus Eduardo Canelon Pérez investiga um caso em que a gestão de um recurso importante – a água numa região de semi-árido – é localmente definida, baseada na tradição e na história do lugar. Regras e formas de gerenciar a vida, como mostra Jésus, só podem ser compreendidas em cada contexto, em cada local.

O convite para conceder a entrevista foi dirigido a Josep Maria Blanch, professor de psicologia social da Universidade Autônoma de Barcelona. Trajetória profissional, linhas de pesquisa e problemas pesquisados estão articulados à vida política e aos problemas sociais de seu país.

São Paulo, junho de 2006.

Leny Sato

Fábio de Oliveira

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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2006, vol. 9, n. 1, pp. 1-14

Onde a autogestão acontece: revelações a partir do cotidiano1

Cris Fernández Andrada2

Instituto de Psicologia da Universidade de São PauloVerso Cooperativa de Psicologia

Este ensaio versa sobre o cotidiano das relações autogestionárias de trabalho, práticas que vêm sendo muito desenvolvidas e incentivadas no contexto atual brasileiro. Para tanto, justifica a escolha do olhar adotado – o cotidiano – e propõe ressignificações do que venham a ser impasses, conflitos e escolhas organizacionais nessas relações de trabalho. Para isso, apresenta e discute a experiência de uma cooperativa de artesanato, com o intuito de reposicionar a importância e o sentido do replanejamento cotidiano do trabalho e das negociações micropolíticas nesse contexto.

Palavras-chave: Economia solidária, Cooperativismo, Autogestão, Cotidiano, Conflito, Negociação micropolítica.

Where self-management happens: revelations from everyday practice

This essay focuses on the everyday in self-management work relations, a type of social practice which has been developed and very much encouraged within the current brazilian context. The essay seeks to justify the perspective adopted – the everyday – and proposes the re-signification of that which has been characterized as “impasse”, “conflict” and “organizational choices” in this type of work relations. To this end, the experience of an artisans cooperative is presented and discussed, with the objective of re-positioning the importance and meaning of everyday re-planning of work and of the micro-political negotiations characteristic of this context.

Keywords: Social economics, Co-operatives, Self-management, Everyday practice, Conflict, Micro-political negotiation

A cooperativa é o barco da sobrevivência.Nós juntas vamos remando o barco.

Tem hora que a maré é alta, tem hora que acalma.Dificuldades tem sempre.

Cooperada da Itacooperarte

1. O surgimento da Economia Solidária na atualidade brasileira

ara conceitualizar o movimento da Economia Solidária, vale recorrer à obra de Paul Singer, quem principalmente concedeu nome e solidez teórica a esse movimento no

Brasil. Ele assim o descreve: P

A Economia Solidária é outro modo de produção, cujos princípios básicos são a propriedade coletiva ou associada do capital e o direito à liberdade individual. A aplicação desses princípios une todos os que produzem numa única classe de

1 Este texto foi elaborado como trabalho final para a disciplina de pós-graduação “Trabalho, saúde e subjetividade: uma abordagem psicossocial” (IP/USP), ministrada pela Prof. Dra. Leny Sato, no primeiro semestre de 2003.

2 Psicóloga e mestranda em psicologia social. Cooperada da Verso Cooperativa de Psicologia.

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Onde a autogestão acontece: revelações a partir do cotidiano

trabalhadores que são possuidores de capital por igual em cada cooperativa ou sociedade econômica (Singer, 2002, p. 10).

A Economia Solidária atual revisita o socialismo utópico – principalmente as obras de Owen, Proudhon, Fourier – e recoloca hoje, na ordem do possível, princípios como a igualdade e a democracia no trabalho, eixos norteadores de inúmeras lutas de trabalhadores nos últimos dois séculos por todo o mundo (Singer, 2002), ainda que descontínuas e pulverizadas. Esse movimento está baseado na união entre a posse e o uso dos meios de produção nas mãos dos sócios-trabalhadores, aliada a uma gestão participativa e democrática dos empreendimentos.

O cooperativismo se viu alavancado ao longo de sua história pelos próprios feitos contraditórios e injustos do modo de produção capitalista. Se em suas origens tinha como contexto a expansão do incipiente capitalismo industrial, gerador do brutal empobrecimento dos artesãos e da exploração ilimitada dos operários (Singer, 2002), hoje ressurge como contraponto aos efeitos do modo de produção capitalista, tal como o desemprego crescente, a superexploração do trabalho, a ampliação de vínculos informais e precários de emprego, entre outras mazelas (Pochmann, 2001).

Diante desse quadro desolador, muitas iniciativas têm sido tomadas por vários setores da sociedade devido à inviabilidade de políticas públicas que, uma vez dirigidas a questões macroestruturais, pudessem conter a avanço dos efeitos dessa crise (Dowbor, 2002). Nesse sentido, a Economia Solidária faz ressurgir fortemente o cooperativismo em vários países, como um dos caminhos possíveis de combate ao desemprego, mas com vistas a ultrapassar esse objetivo, considerando seu poder de contestação de relações subordinadas de trabalho. Muitos vislumbram a possibilidade de construir uma almejada rede de produção e distribuição não-capitalista, ainda que inseridas em uma economia de mercado.

Para Paul Singer, mais que um ressurgimento, trata-se de uma reinvenção, ainda que inspirada nos primeiros movimentos da Escola Associativista do século XIX:

O que distingue este “novo cooperativismo” é a volta aos princípios, o grande valor atribuído à democracia e à igualdade dentro dos empreendimentos, a insistência na autogestão e o repúdio ao assalariamento (Singer, 2002, p. 111).

O incentivo e o financiamento de ações no campo da Economia Solidária têm sido realizados tanto por instituições públicas, quanto por organizações não-governamentais, principalmente nos últimos dez anos. Tais ações são forjadas tanto no cerne de instituições político-partidárias, como também religiosas, sindicais e universitárias3, envolvendo um número crescente de trabalhadores4.

A Economia Solidária encontra-se na atualidade em franco processo de desenvolvimento, caracterizado por uma dinâmica própria dos movimentos de resistência. Para sobreviver e se desenvolver nesta sociedade, faz-se necessário o confronto dinâmico e permanente de seus princípios socialistas com os vigentes na realidade econômica atual. Embora saibamos que a Economia Solidária surge das injustiças do capitalismo e se orienta de

3 Como exemplos desse movimento ressaltam-se os trabalhos da ADS (Agência de Desenvolvimento Solidário ligada à Central Única dos Trabalhadores), da ANTEAG (Associação Nacional de Trabalhadores de Empresas de Autogestão e de Participação Acionária), da UNISOL (União e Solidariedade das Cooperativas do Estado de São Paulo ligada ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC Paulista), entre tantas outras. Merecem destaque também as Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (ITCP), instituições de extensão universitária (organizadas em uma rede nacional) que têm como principal objetivo a geração de trabalho e renda junto a populações pobres, através da formação de cooperativas autogestionárias. Para saber mais, ver: Guimarães (2000) e Singer (2000).

4 Em obra recente sobre experiências autogestionárias no país, Souza (2000) afirma: “Os empreendimentos relatados nesta obra agregam por volta de 100 mil trabalhadores. Esse conjunto é ínfimo no quadro ocupacional brasileiro, mas está em evidente expansão e é extremamente promissor (...)” (p. 7).

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modo a superá-las, é em seu seio que os trabalhadores produzem, comercializam e calculam seus custos e retiradas. Essa situação tende a manter-se por bastante tempo, até que possam transcender o campo das utopias, modos também socialistas de comercialização, de crédito, enfim, que possa existir de modo sólido toda uma viva teia econômica necessária para dar sustentabilidade a esse modo de produção.

É justamente em meio a esses embates constantes que surgem expostas as várias contradições basais com o modo de produção hegemônico vigente e elas certamente acarretam difíceis desafios a serem enfrentados por seus sujeitos cotidianamente. Em relação a isso, deve-se levar em conta um agravante importante: esses trabalhadores nasceram e se desenvolveram para o trabalho sob a égide de uma organização social capitalista, pautada pelo assalariamento, pela subordinação, pela divisão capital-trabalho, pela competitividade, enfim, por uma ordem francamente diferente daquela proposta pela Economia Solidária – a partir da qual, agora, assumiram o desafio de viver e trabalhar, ainda que “lá fora” a situação não tenha passado pelo mesmo processo de reorientação (Verardo, 1999).

Tudo isso inevitavelmente complexifica os desafios vislumbrados acima e, se vistos ainda mais de perto, certamente guardam minúcias igualmente ricas e pungentes. Por outro lado, esse panorama alveja pesquisadores com demandas crescentes por maiores estudos e pesquisas dessa realidade, exigindo olhares cada vez mais apurados para o cotidiano das práticas autogestionárias e para o contexto no qual elas se vêem inseridas.

2. O olhar sobre o cotidiano

A proposta deste artigo é olhar e refletir sobre o cotidiano das práticas autogestionárias de trabalho, como meio para alcançar uma melhor compreensão dos fenômenos ali vividos por seus sujeitos, pessoas que tornam real a autogestão, suas características, seus meandros, seus desafios, sempre permeados de particularidades e interstícios capazes de passarem desapercebidos a um olhar mais apressado ou entretido apenas com as determinações e os limites macrossociais.

A escolha do cotidiano como foco apóia-se em uma das perspectivas que surge a partir de um profundo debate travado nas ciências sociais, especialmente na sociologia. José de Souza Martins é um dos autores que elucida claramente essa discussão, desenvolvida entre leituras sociológicas positivistas e as chamadas sociologias fenomenológicas. E é em torno desse embate que estas últimas propõem o estudo do senso comum e da vida cotidiana (Martins, 2000).

Para Martins (2000), “é no pequeno mundo de todos os dias que está também o tempo e o lugar das eficácias das vontades individuais, daquilo que faz a força da sociedade civil, dos movimentos sociais” (p. 57). Essa afirmação nos leva a pensar que é no cotidiano que a vida acontece, que a autogestão acontece, que o mundo se faz. O que não significa, obviamente, que devamos desconsiderar a importância dos momentos solenes de encontro e de reunião. Todos eles também compõem a malha do cotidiano, de certa forma.

E, uma vez sendo o cotidiano o lugar da eficácia política, temos como derivação aquilo que também nos diz Martins sobre o senso comum. Para o autor, este não seria apenas ferramenta de repetições, tampouco é tido como comum por ser banal, mas por se tratar de conhecimento compartilhado pelos sujeitos de determinada situação social (Martins, 2000).

Michel de Certeau (1996), ao ler Vigiar e Punir, de Foucault, também se perguntava que forças humanas eram essas, capazes de resistir a tamanha dominação e vigilância generalizada. “Se é verdade que por toda parte se estende e se precisa a rede de ‘vigilância’,

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mais urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que procedimentos populares (também minúsculos e cotidianos) jogam com os mecanismos da disciplina (...)” (p. 41). Assim, através de seus interrogantes, esse autor aponta para a tremenda força das práticas cotidianas de resistência e conformação de determinadas realidades sociais, ainda quando estão sob o jugo de fortíssimos mecanismos assimétricos de determinação, controle e poder.

Certeau (1996) também nos fala dos modos de proceder da criatividade cotidiana, das inúmeras maneiras de fazer que cada pessoa se utiliza para reapropriar-se do espaço social que freqüenta e vive. Esses modos de fazer certamente se fazem presentes nas empresas autogestionárias, muito embora não estejam prescritos ou supostos em seus estatutos sociais ou mesmo nos chamados regimentos internos. Assim como cada pessoa tem seu modo singular de agir, de ler ou de cozinhar, cada trabalhador faz escolhas cotidianas sobre sua maneira de cooperar, terá seu modo peculiar de interpretar uma decisão tomada em assembléia ali, no seu dia-a-dia de trabalho, sem que isso venha necessariamente a acarretar um “desvio de sentido” ou, ainda, uma subversão da ordem democrática autogestionária.

Assim como Certeau, Leny Sato (2001) também aponta para a necessidade de olhar para o cotidiano para compreender os processos organizativos, a partir de uma psicologia social do trabalho, utilizando como referencial a etnometodologia5. Para ela, esse referencial “possibilita ver as organizações em ação, ultrapassando os papéis sociais e a estrutura formal, os quais, à luz dessa compreensão, passam a ser abstrações” (Sato, 2001, p. 8). Parte dessa autora também um alerta relevante: todas as interações dadas em contextos de trabalho devem considerar que ali também estão presentes as determinações técnicas, não apenas as sociais.

Uma tese importante levantada por Garfinkel (citado por Sato, 2001) afirma que o cotidiano é também sempre organizado. Essa afirmação corrobora com outra de Certeau (1996), que aponta para a existência de regras, de uma lógica entre as práticas cotidianas e corriqueiras. Afinal, não parece possível qualquer ação humana desprovida de um propósito, de um sentido que, por sua vez, necessariamente advém de uma interpretação que o sujeito faz, momento a momento, de sua realidade e de seus interesses, também sempre presentes.

A noção de interpretação que todo sujeito faz, necessariamente, de sua realidade é fundamental para os estudos do cotidiano, e ela vem sempre acompanhada da idéia de circunstância. Como diz Clegg, “todo membro de uma organização é um ser de palavra, um trabalhador e uma individualidade” (Clegg, 1992, p. 54). Segundo ele, ainda no mesmo texto, as identidades dos membros estariam baseadas em diversos fatores, tais como sexo, etnia, e em fenômenos próprios da sua cultura e de seus estilos de vida. Assim, nenhuma pessoa interpretará o mesmo fenômeno, a mesma reunião, por exemplo, do mesmo modo que o fazem seus colegas, por mais afinados que estejam os seus interesses ou por mais fundos que sejam seus vínculos afetivos. Para cada individualidade sempre haverá também uma gama intangível de interesses, própria da sua experiência pessoal e das circunstâncias ali desenhadas. Já Martins aborda essa questão resgatando um dos pilares da teoria marxista, aquele que fala que “os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem, e sim sob as circunstâncias que encontram” (Martins, 2000, p. 58).

Para Sato (2001), a noção de circunstância de Garfinkel também é rica para pensar as contradições e as mediações entre cada sujeito e a estrutura social. É ela que traz a novidade, o inusitado, segundo a autora, o que exige das pessoas uma criatividade constante, processos de criação e recriação de modos de manejo das situações e de suas complexidades. Ao analisar esse fenômeno, Martins (2000) refere-se ao caráter de instabilidade permanente

5 Segundo Garfinkel (citado por Sato 2001) “os estudos etnometodológicos analisam as atividades cotidianas como os métodos dos membros que fazem essas mesmas atividades visíveis-racionais-e-reportáveis-para-todos-os-propósitos-práticos, isto é, ‘accountable’, como organizações de atividades cotidianas corriqueiras” (p. 10). Ver a esse respeito: Garfinkel (1994).

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da vida cotidiana, sujeita aos choques com o novo que cada circunstância carrega, demandando dos sujeitos um estado de atenção e vigília permanente, além de habilidades próprias da ousadia ou do atrevimento.

Segundo Giddens (citado por Sato, 2001), outro importante fenômeno que ocorre no interior das práticas cotidianas é a compreensão do significado das ações e das comunicações dos outros que cada sujeito precisa realizar. Trata-se de uma prática qualificada que, nas palavras de Giddens, “constitui um elemento integrante das capacidades de rotina de atores sociais competentes, e é essa competência que os fazem ser membros6. A hermenêutica não é apenas um recurso privilegiado do investigador social profissional, mas é praticada por todos” (Giddens citado por Sato, 2001, p. 11). Leny Sato (2001) ainda nos coloca que ocorrem “contínuos processos interpretativos” que todos nós realizamos cotidianamente.

Com isso, já se pode ter uma primeira impressão da complexidade do universo do cotidiano, desse modo de compreensão da vida do dia-a-dia e do senso comum como “a vida em si”. Cabe agora pensar o cotidiano de cooperativas autogestionárias à luz dessa discussão, considerando o leque de desafios enfrentado por seus sujeitos, seja pelas razões macroeconômicas supracitadas, seja pelas outras tantas relacionadas com a inexperiência de administrar coletivamente o próprio trabalho, modo democrático, por quem nunca pensou que poderia um dia fazê-lo.

3. A autogestão no cotidiano

Leny Sato (1998, 2002), em sua pesquisa de doutorado, estudou e conceituou as condições simbólicas em que ocorre o replanejamento negociado do trabalho em uma empresa de produção capitalista. Nesse trabalho, a autora demonstra que os trabalhadores buscam constantemente melhorar suas condições de trabalho, ainda que em um contexto de forte controle técnico e gerencial. Individual ou coletivamente, eles exercem uma resistência à organização imposta, buscando replanejá-la no cotidiano, processo de negociação que se dá incessantemente, mas não de modo linear e aproblemático, já que opera permeado por diversas ambigüidades.

À luz dessa reflexão, podemos pensar que, seja qual for o tipo de organização do trabalho, ela será inevitavelmente revista, redimensionada, testada e contestada por seus sujeitos no cotidiano. Se em uma empresa heterogerida tais processos são “arrancados à força” pelos operários, como nos diz Leny Sato, é de se esperar que na autogestão isso também se dê, ainda que de outras maneiras.

Embora o replanejamento cotidiano do trabalho autogestionário não se dê sempre nos “porões da fábrica”, nos interstícios da organização, as experiências demonstram que tampouco esses processos são assépticos, limpos, sempre certeiros e harmônicos, mesmo considerando que eles partem de discussões e de decisões travadas democraticamente por seus agentes.

A tarefa de pensar e definir coletivamente os modos de se trabalhar não é, definitivamente, simples, ainda que se desenvolva apoiada em princípios democráticos. Recordo neste momento uma fala aflita de uma das cooperadas da Itacooperarte7, em um

6 Este é outro conceito importante para o estudo do cotidiano, já que informa os limites em que ocorrem as interações em que a compreensão é possível. Ainda conforme Sato (2001), as interações são sempre referentes a um determinado grupo – além de a uma determinada situação – que por sua vez dominam determinada linguagem.

7 Cooperativa de artesanato posteriormente citada e descrita neste texto.

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Onde a autogestão acontece: revelações a partir do cotidiano

momento de franco conflito pelo qual passava o grupo, debruçado na discussão de como partilhar o dinheiro gerado em uma das feiras de artesanato: “Como é difícil não ter patrão!”.

Conflitos no cotidiano autogestionário

A própria concepção de conflito parece exigir revisão por parte dos cooperadores, uma vez que divergências jamais deixarão de existir em seus cotidianos. Porém, elas não serão mais indicativos de tensões entre patrão e empregados, mas sim de dinâmicas cotidianas e democráticas de pessoas com interesses, histórias e opiniões diferentes entre si, ainda mais quando expostas à construção de um projeto que guarda tantos desafios e ambigüidades.

Essas demandas por ressignificações advêm, em grande medida, das diferenças de referenciais, de valores existentes entre ambas realidades – entre trabalhar em uma empresa heterogerida ou autogerida – que acabam encerrando compreensões e modos cotidianos de agir diversos e por vezes contraditórios. Concepções anteriores acerca de trabalho, divisão de tarefas, remuneração, planejamento e coordenação das atividades produtivas, são alguns poucos exemplos de questões que trabalhadores envolvidos com empreendimentos autogestionários vêem-se impelidos a rever em seus novos cotidianos de trabalho (Pedrini, 2000; Holzmann, 2001).

Luigi Verardo, representante da ANTEAG8, trata este tema:

Quase todos os trabalhadores vieram de uma situação anterior, em que trabalhavam numa empresa com característica taylorista-fordista9, herdaram aquela cultura, visão fragmentária e parcializada do processo de produção que tanto criticamos. (...) Eu trabalhei antes no movimento sindical e sempre achava que os trabalhadores, em seu aspecto subjetivo, teriam facilidade de assumir a gestão das empresas em que trabalhavam. Essa foi uma das minhas desilusões. É impressionante como o taylorismo e o fordismo “fizeram e fazem a cabeça” dos trabalhadores. Como é difícil, esses trabalhadores assumirem, de fato, a gestão da empresa! (Verardo, 1999, p. 71).

Uma das causas sempre levantadas para explicar os conflitos em empresas autogeridas é esta que trata da forte presença da concepção de trabalho capitalista em nossa cultura (Sato & Esteves, 2002; Pedrini, 2000; Holzmann, 2001). Entretanto, cabe colocar outras questões neste debate. A grosso modo, pode-se dizer que onde há pessoas, há também conflitos, por mais liberdade de expressão ou solidariedade que possa ali existir, ou justamente por isso. Sato e Esteves comentam essa questão: “O conflito é a demonstração de que há possibilidade do debate público das questões que permanentemente acometem o empreendimento. O conflito demonstra que há vida política ativa no grupo” (Sato & Esteves, 2002, p. 42).

Como em todo processo organizativo, as cooperativas autogestionárias são feitas por pessoas e essas só podem ser assim compreendidas se resguardadas suas subjetividades, suas singularidades. Postas lado a lado, as singularidades aparecem como diferenças de interesses, ora convergentes, ora divergentes. A organização cooperativa de trabalho pressupõe a expressão dessas diferenças e, assim, elas passam a servir a todos se solidarizadas, se disponibilizadas para o coletivo. Mas essa dinâmica pressupõe debates, embates, conflitos. Há todo um processo de destruição e reconstrução no meio do caminho, do momento da emergência de diferenças acerca de uma questão, até a chegada a uma decisão coletiva que

8 Associação Nacional dos Trabalhadores de Empresas de Autogestão e de Participação Acionária. Em 2000, a entidade congregava 103 empreendimentos, totalizando aproximadamente 25 mil trabalhadores.

9 O autor refere-se a uma expressão muito utilizada pela engenharia de produção e, por suas conseqüências, também pela economia e pela sociologia, para nomear as formas de produção dominantes desde o século passado. Ver a esse respeito: Antunes (1999).

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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2006, vol. 9, n. 1, pp. 1-14

possa ter se servido dessa pluralidade e que, de certa forma, também venha para dar sentido a ela.

Leny Sato (1999), ao se referir às organizações cooperativas como processos sociais, adverte:

[...] por serem processos movidos por pessoas, grande diversidade de interesses estará presente. São interesses subjetivos, sociais, econômicos e políticos. Chamo de interesses aquilo que importa às pessoas (Morgan, 1986). E esses interesses conformam os objetivos e informam a direção e o sentido das práticas.

Em função disso pode-se pensar que esses processos sociais são movidos pelo conflito (pois interesses diferentes e até mesmo contraditórios são colocados frente a frente) e pela harmonia (pois interesses semelhantes e comuns também são compartilhados). Com isso, o motor nuclear dessas interações será o binômio cooperação-confrontação (Sato, 1999, p. 221).

Ao pensar o trabalho autogestionário, cabe ressaltar as considerações de Martins sobre o caráter de instabilidade permanente da vida cotidiana. Analisemos agora alguns processos tipicamente autogestionários, tomando como exemplo a experiência de uma cooperativa de artesanato do município de Itapevi, Grande São Paulo.

4. A experiência das artesãs de Itapevi

Passo a relatar e analisar brevemente aqui uma experiência vivida junto a uma cooperativa de artesanato de Itapevi, a Itacooperarte10. Essas artesãs, que tanto nos ensinaram sobre a condição feminina, sobre trabalho, sobre vida, enfim, novamente vêm nos auxiliar nesta discussão acerca da autogestão no cotidiano.

Tratava-se de um grupo inicialmente de vinte mulheres que lutou incessantemente durante dois anos para constituir uma organização de trabalho que lhes fizesse sentido, que viesse ao encontro não somente de suas necessidades, o que em si já não seria pouco, mas também que ancorasse parte de seus desejos.

A grande maioria dessas trabalhadoras havia passado pela experiência da migração. Em companhia de suas famílias, saíram de seus estados de origem, na região nordestina, em busca de melhores condições de vida. Bairro novo daquela cidade, Santa Cecília atraiu seus moradores através de anúncios de lotes baratos, mais tarde revelados ilegais. Dificuldades de toda índole encontravam-se ali: esgoto a céu aberto, violência urbana e o temido desemprego. A maioria delas sobrevivia da renda dos maridos, que, por sua vez, não encontravam empregos estáveis. Como eles, algumas delas realizavam trabalhos esporádicos e mal-remunerados, os chamados “bicos”. A faixa de oscilação das rendas familiares ilustra em parte a realidade desses trabalhadores e trabalhadoras, em geral, as rendas variavam de um a quatro salários mínimos, ainda considerando que muitos dos filhos também contribuíam economicamente para o sustento de suas casas.

Grande parte do grupo já se conhecia há anos de outras experiências coletivas. Haviam sido companheiras em lutas por melhorias do bairro, em grupos de orações e em outras tantas atividades junto à igreja católica local. Encontravam-se em grupos de culinária, de corte e costura, de mães, de discussões sobre sexualidade feminina. Em meio a tantas

10 Entre os anos de 1999 e 2001, tive a singular oportunidade de acompanhar o processo de formação desta cooperativa como membro da equipe de formadores da ITCP-USP (Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP). A esse respeito, ver Andrada, Esteves e Silva (2001).

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partilhas, acabaram também por compartilhar as dificuldades de sobrevivência, próprias de suas condições de pobreza e de instabilidade. Nesse ímpeto, algumas delas aprenderam a fazer cestaria com jornal (objetos feitos com canudos de papel-jornal trançados e pintados ou envernizados), a partir de um programa de televisão. Com essa atividade econômica em mãos, passaram a realizar as primeiras vendas e, logo em seguida, procuraram a ITCP-USP11

para ajudá-las a se constituir como uma cooperativa autogestionária.

Para exemplificar o tema do cotidiano da autogestão, inúmeros recortes poderiam ser feitos, baseados na experiência da Itacooperarte. Os processos de replanejamento cotidiano do trabalho foram sempre ricos e constantes nesse contexto, bem como os conflitos, os impasses, as tomadas de decisão, as tantas escolhas e reescolhas. Freqüentemente um novo fato emergia da realidade mutante, somava-se a outros tantos próprios daquele momento, colocando as artesãs frente a mais um impasse ou conflito. Como conseqüência, elas se viam impelidas à negociação imediata e cotidiana.

Poderia ser o sabor do café que, num só tempo, agradava a umas e desagradava a outras. Isso, que à distância pode soar desimportante, ali assumia múltiplos sentidos, mesclava-se a outras questões do dia-a-dia e, por si só, levava as artesãs a desenvolver estratégias de negociação e de ação micropolítica, aprendizados que certamente poderiam ser considerados em novas situações, inspirando outros processos de replanejamento cotidiano do trabalho.

Outro exemplo era a escala da equipe de pintura da cestaria, que volta e meia retornava como questão problemática, já que havia a exigência de uma atenção permanente para as condições climáticas a fim de não comprometer a qualidade das peças. Assim, a comissão responsável deveria estar de prontidão, observando se havia risco de chuvas, de aumento de umidade ou, ainda, caso contrário, em dias de tempo bom, deveria correr para o ateliê para “adiantar o serviço”. A exigência de tamanha sincronicidade – entre o processo de produção e as condições climáticas – para algumas trabalhadoras era exagerada. Para outras, era inevitável e deveria sempre ser cumprida a contento. Localizado o conflito, e mesmo antes disso, muitas tentativas de replanejamento foram engendradas, maneiras diversas de compor a comissão e, inclusive, de proceder com a atividade da pintura.

Pode-sedizer que temas como esses ocorriam justapostos, imbricados, emaranhados. Embora extremamente interessante, trata-se de uma trama por demais complexa para ser transposta e analisada com toda sua riqueza neste artigo. Assim, opta-se aqui por relatar os processos de discussão em torno de dois temas muito trabalhados pelas cooperadas, quais sejam, o cotidiano da produção e a definição do regime de remuneração ou, nas palavras das próprias cooperadas, “a questão do dinheiro”.

A produção cotidiana da cestaria: diferenças, conflitos e constantes replanejamentos

A questão da qualidade das peças produzidas frente às desigualdades de habilidades entre as cooperadas, nas várias etapas do processo produtivo, era outro grande núcleo gerador de negociações micropolíticas e cotidianas.

Quase todas as cooperadas sabiam fazer o canudo de papel-jornal, que servia como fibra no trabalho de cestaria do grupo. Ainda assim, à medida que a cooperativa foi aumentando suas vendas e, conseqüentemente, sua visibilidade, surgia uma preocupação também crescente quanto à qualidade das peças. Muitas defendiam critérios mínimos de qualidade, ainda que não usassem essa expressão. O canudo, por exemplo, a fim de conferir maior firmeza e durabilidade à peça, deveria ser o mais fino e rígido possível. O trabalho de

11 Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da Universidade de São Paulo.

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trançado das peças era muito respeitado, nem todas se sentiam aptas para tamanha expressão artística. A pintura também guardava seus segredos e acabou sendo a principal marca do trabalho da cooperativa: os inesquecíveis tons mesclados, matizes que iam e vinham entrelaçados sem começo ou fim.

Se, na prática de enrolar o canudo, já nem todas chegavam à fibra fina e dura, tal desigualdade crescia nos terrenos do trançado e da pintura. As cooperadas falavam muito dessa questão. Diziam que ali na cooperativa as pessoas deveriam se sentir à vontade para fazer e aprender o que quisessem, afinal, não havia patrão. Mas também diziam que o ideal era que todo o grupo soubesse realizar todas as etapas da produção, que todas ganhariam com isso, a produção aumentaria, o rodízio de funções seria mais possível. Importante frisar que comentários como esses nem sempre chegam assim, ordenados, puros. Muitas vezes, surgiam acompanhados de desolação, quando uma delas se via diante de seus canudos frouxos, recusados para o trançado. Ou, ainda, vinham impacientes, preocupados com o sucesso da cooperativa.

Conflitos, bem como diversas estratégias de replanejamento do trabalho, brotavam diariamente. Os primeiros eram evidenciados sob a forma de breves comentários, “indiretas”, ou mesmo a partir de um olhar triste ou desgostoso. As estratégias de replanejamento para tentar lidar com o problema eram fartas: ora pequenos grupos se reuniam para treinar a confecção do canudo em torno das colegas mais hábeis no ofício. O mesmo ocorria com o trançado e a pintura. Ora também ocorriam gestos individuais, na forma de uma bronca ou de uma aula.

Fora do espaço das reuniões, ali mesmo, debruçadas sobre a bancada comum de trabalho, uma idéia surgiu e entusiasmou o grupo: fariam “oficinas de criatividade”. Eram reuniões periódicas, aos sábados, para o aprendizado e o aprimoramento das práticas da produção, bem como para o desenvolvimento de novos produtos. O resultado disso foi surpreendente: muitas delas aos poucos ousaram incursões em áreas antes pouco dominadas. Dessas manhãs de sábado começaram a surgir também luminárias, porta-retratos e até pequenos móveis trançados em jornal. Mas esse tema e tantos outros vividos pelo grupo não terminam com finais felizes, coroados pela chegada ao “modo certo de fazer”. As desigualdades diminuíram, mas nunca deixaram de existir, nem tampouco os conflitos cessaram em torno das oficinas. Constantemente elas retomavam o assunto, mas já não da mesma forma, já era possível partir de outro ponto.

Outro exemplo: a escolha do regime de remuneração da cooperativa

A primeira forma de organização do trabalho nesse ponto consistiu em não dividir o fundo comum que possuíam. Advindo das primeiras vendas, ele serviria como capital social e de giro da cooperativa. Entretanto, em função de uma mudança nas circunstâncias – o aumento das vendas de seus produtos –, o grupo decidiu rever a deliberação anterior e iniciar o processo de remuneração.

Reunidas em sua primeira assembléia, as artesãs decidiram, a partir de um rápido consenso, dividir de modo igualitário a renda gerada, algo que lhes parecia casar perfeitamente com a sua história e com suas concepções.

Anteriormente essas decisões eram tomadas durante a execução do trabalho, ou seja, não havia espaços formais de decisão. Saídas do momento de “suspensão da realidade”, próprio das reuniões, elas se depararam com os impasses gerados no cotidiano por essa suspensão. Surgiam diferenças de opiniões, conflitos, enfim. Conversas informais no horário de trabalho e outras reuniões vieram posteriormente revelar que nem todas as cooperadas estavam dedicando o mesmo tempo de trabalho para a cooperativa, não porque não desejassem, mas porque outros compromissos as impediam. Algumas delas exerciam trabalhos

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informais, necessários para complementar a renda familiar, outras se deparavam com problemas de saúde ou enfrentavam outras limitações familiares.

Em função disso, as artesãs se sentiram inclinadas a rever a última decisão e propor outra política de remuneração. Elas optaram por fixar um horário comum de trabalho e, para isso, olharam cuidadosamente para seus compromissos familiares, de modo a contemplá-los. Já que a cooperativa existia para servir a seus interesses e não o contrário, deveria haver tempo e espaço para preparar o almoço da família e levar os filhos para a escola, por exemplo. Além disso, pensaram um mecanismo de reposição de eventuais faltas, ocasionadas pelos “bicos” ou por questões de saúde. Essas preocupações e iniciativas demonstram que o grupo buscava contemplar outras esferas da vida, o mundo além-trabalho. Talvez mais do que isso, já que para elas a consagrada divisão tempo de trabalho/tempo de não-trabalho – e suas outras versões, trabalho/lazer/vida pessoal – não parecia gozar do sentido comum atribuído na organização do trabalho capitalista.

Isso feito. Novamente elas se depararam com a inadequação da escolha no dia-a-dia, já que a adoção do horário fixo apenas diminuiu, mas não eliminou por si só, as dedicações desiguais em termos de horas de trabalho. As diferenças permaneciam e, com elas, os conflitos.

Medidas intermediárias foram pensadas e adotadas pelo grupo. As discussões sobre como deveria ser o regime de remuneração não cessavam, tanto nas pautas das reuniões, quanto no cotidiano de trabalho. Cada uma tinha suas hipóteses para explicar o problema e sugestões de como resolvê-lo, mas foi somente em nova reunião que outra decisão a esse respeito se configurou.

As artesãs foram levadas a rever novamente a escolha feita, por força da realidade cotidiana. Decidiram nesse momento adotar o regime de remuneração por horas trabalhadas, o que exigiu delas o estabelecimento de todo um mecanismo de controle das mesmas. A partir daí, novos conflitos e problemas surgiram, algumas de início se recusaram a utilizar um caderno que registrasse os horários de entrada e saída. Uma delas disse a esse respeito: “Eu não quero ter patrão, ter que marcar horário”. A semelhança com o temido “livro de ponto” era aversiva, assustadora.

Muitas discussões em todos os âmbitos da cooperativa se deram a partir daí. Nesses debates, pôde-se notar todo um processo de ressignificação das formalizações e dos mecanismos de controle, como o “livro das horas”. Eles deveriam vir somente quando necessário, para servir às necessidades do grupo, para tornar viáveis, por exemplo, a implementação de suas escolhas, não mais para coagi-las ou para exigir índices impossíveis de produtividade.

O grupo passou a adotar esse sistema e, formalmente, esaa política de remuneração foi a que prevaleceu. Entretanto, acompanhando a história cotidiana do grupo, foi possível perceber que vários ajustes foram necessários, como a formação de uma comissão que cuidasse dos registros e dos cálculos realizados mensalmente. Além disso, de início surgiram atitudes preocupantes. Notou-se um acréscimo considerável na quantidade de horas trabalhadas, ou mesmo alguns registros de horários que não condiziam com a realidade, mas que seguiam um padrão bastante conhecido: “Entrada 8 h; Saída 18 h”, todos os dias. A comissão foi tomada por um grande mal-estar, mas soube manejar a questão de maneira surpreendente, conversando com as pessoas envolvidas, esclarecendo dúvidas e, posteriormente, levando com cuidado o tema para a reunião geral.

Após esse processo, o sistema de remuneração adotado pelas artesãs foi mantido, muito embora sempre houvesse a necessidade de uma revisão constante entre as decisões tomadas, suas implementações e pequenas mudanças da realidade. Essa dinâmica, própria dos

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replanejamentos cotidianos, também pôde ser observada em outras questões da cooperativa, não apenas no tocante à remuneração.

O grupo posteriormente se desfez em um processo de lenta e sofrida agonia. Embora as trabalhadoras se mantivessem unidas, muitas delas tiveram que deixar o grupo pela necessidade imediata de gerar renda suficiente para o seu sustento e o de sua família, já que a cooperativa nunca chegou a atingir níveis de faturamento que possibilitassem isso a todas. Um pequeno grupo ainda lutou por mais tempo, aguerridas na luta pelo “sonho da cooperativa”. Entretanto, as dificuldades foram mais fortes: a falta de canais de comercialização, os limites da atividade econômica escolhida, além da ausência de uma política de crédito viável para elas naquele momento impediram que a luta delas pudesse continuar.

5. Algumas considerações à luz do caso relatado

Ao analisar a experiência das artesãs da Itacooperarte, emergem questões que poderiam abrir diversas frentes de debate sobre o cotidiano autogestionário. Algumas delas seguem expostas abaixo.

A autogestão no cotidiano: reescolhas e replanejamentos constantes

A experiência relatada nos possibilita pensar acerca dos inevitáveis processos de revisão das decisões coletivas que ocorrem no seio de todo empreendimento econômico. Em verdade, trata-se de uma dinâmica típica de todo cotidiano, conforme colocado anteriormente, mas que na situação autogestionária, guarda singularidades. Muitos podem pensar que isso ocorre porque não são tomadas as “melhores decisões” ou que elas não se dão “da melhor forma” ou, pior, que isso reflete a inabilidade dos trabalhadores em administrar uma empresa. Está claro que não se tem por objetivo aqui chegar a conclusões gerais e aplicáveis a toda situação autogestionária, mas sim analisar algumas de suas características e dinâmicas.

Segundo Leny Sato (2002), planejar é uma atividade dialógico-discursiva. Ou seja, é um processo micropolítico de negociação em que diferentes pontos de vista e interesses são postos lado a lado, confrontados com argumentos diferentes. E, de fato, assim ocorria na Itacooperarte. Naturalmente, esse processo ocorre quando há o que decidir, ou seja, diante de um impasse que dispara um processo de negociação, como a desigualdade de aptidões diante do processo produtivo ou, ainda, a inadequação do regime de remuneração frente aos desejos e às necessidades do grupo.

Interessante pensar que os conflitos e os impasses podem ser vistos como sinalizadores, como verdadeiras pistas de que há um trabalho de negociação micropolítico a ser feito. A partir daí, em meio a possíveis conflitos, é que se chega às chamadas escolhas organizacionais (Kelly citado por Sato, 2002).

Tais escolhas são as próprias decisões do grupo, que podem ser frutos de negociações ocorridas em espaços formais de decisão (como reuniões e assembléias) ou não, já que elas também se dão informalmente em meio às interações cotidianas (Sato, 2002; Andrada, Esteves & Silva, 2001), como ilustrou acima o caso das “oficinas de criatividade”.

Uma vez considerado o fato de que cada processo de negociação e de escolha organizacional ocorre embasado em uma determinada demanda e em um determinado contexto, compreende-se que, alteradas as circunstâncias, esse processo deva ser refeito, já

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que a decisão anterior pode se apresentar insuficiente ou inadequada a partir de então, conforme bem ilustra o caso da Itacooperarte.

Vale resgatar aqui as palavras de Melucci sobre os processos de negociação: “A negociação se torna, então, uma relação processual, uma tentativa de percorrer juntos, cada um do seu lado, a estrada difícil de reconhecermo-nos unidos e diversos” (Melucci citado por Pedrini, 2000, p. 41).

Necessidades e limites das formalizações de procedimentos na autogestão

Há ainda outro complicador, se considerarmos que muitas das escolhas organizacionais são realizadas nos espaços formais de decisão. Em si, isso não representa necessariamente um problema; faz-se necessário, de certa forma, que isso ocorra, mas exige cuidados. Esses momentos são inevitavelmente situações de “suspensão do cotidiano” em que cada cooperado precisa fazer um exercício de abstração acerca de como seria tal decisão vivida dia a dia, no tempo e no espaço de trabalho.

Observa-se que em muitas cooperativas, como no caso da Itacooperarte, são tomadas decisões que, no plano abstrato, parecem ótimas, seriam saídas criativas para o problema enfrentado, contemplariam as diferenças existentes e parecem ainda estar embasadas em teses muito consistentes. Porém, posteriormente, revelam-se falhas, às vezes, por motivos intangíveis. Interessante notar que espaços formais de discussão nos liberam para a criação, a abstração, a reflexão livre. São os lugares por excelência para tudo isso, mas suas deliberações vão servir a outro cenário, o do cotidiano, envolto em determinações das mais diversas e inconstantes, conforme vimos anteriormente.

A discussão sobre as formalizações nas práticas autogestionárias se faz presente de modo constante e transversal, tanto nas experiências de cooperados, como nas dos formadores e dos estudiosos da Economia Solidária. Ao que tudo indica, parece se tratar de um dilema, na medida em que surgem delineados consensos aparentemente contraditórios a respeito do tema.

Por um lado, reconhece-se a importância do estabelecimento de procedimentos, de mecanismos de controle e de registro, de distribuição de tarefas, entre tantos outros, como necessários e importantes para a sobrevivência de todo empreendimento econômico. Além disso, eles também são fundamentais para propiciar uma boa dinâmica interna e, conseqüentemente, a participação dos cooperados nas instâncias da cooperativa. É claro que tudo isso estará condicionado ao uso que se fará de tais instrumentos.

Entretanto, teme-se que um excesso de formalização amarre as cooperativas nas tramas da burocracia, o que, paradoxalmente, poderia dificultar o exercício cotidiano da autogestão, correndo-se o risco, com o passar do tempo, de virem a se reproduzir processos capitalistas de gestão e de organização.

A tarefa de constituir e gerir uma empresa autogestionária neste contexto sócio-histórico carrega muitas ambigüidades, como já foi dito. Sabe-se de início e o tempo todo o que não se quer em uma cooperativa autogestionária: hierarquia, subordinação, burocratização alienante, cisão planejamento-execução, competição interna, entre tantas outras marcas das práticas administrativas e gerenciais do modo de produção capitalista.

Entretanto, por mais que haja clareza e consenso acerca dos princípios autogestionários capazes de se contrapor a todo esse arcabouço, não se tem disponíveis de antemão as maneiras de implementá-los, talvez por suas próprias características. Ora, não se trata de reivindicar um “manual de autogestão”, pois sabemos, por princípio e coerência, que cada cooperativa autogestionária existe para servir a seus sócios-trabalhadores, que obviamente formam um grupo singular, com necessidades e projetos igualmente únicos.

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Assim sendo, caberá a cada grupo o estabelecimento de regras e princípios de gestão que mais façam sentido a todo seu espectro de singularidades. Porém, o que aparentemente parece claro e simples no âmbito das considerações teóricas, é vivido com muita tensão cotidiana por seus sujeitos, como bem nos mostram as artesãs de Itapevi.

Nas palavras de Dalila Pedrini (2000), em artigo sobre o seu estudo junto à empresa autogestionária Bruscor12:

Em se tratando de analisar uma empresa autogestionária, é necessário reconhecer que a burocracia e o controle têm dimensão dupla e contraditória. Nas empresas mercantis tradicionais o controle é exercido para extrair o máximo de produtividade, está a serviço da exploração e é intrinsecamente distinto do controle coletivo da autogestão. Digamos assim, que pode haver um modo de controle e de burocracia que venha a defender os direitos dos trabalhadores, no caso do controle que os favoreça e da normatização que proteja a autogestão (p. 38-39).

6. Considerações Finais

As reflexões aqui traçadas apontam para o caráter fundamental das negociações micropolíticas no cotidiano do trabalho autogestionário, consideração compartilhada com Sato e Esteves (2002). Ainda que estejam livres dos embates em torno da tensão capital-trabalho e de todas as suas mazelas, os trabalhadores das cooperativas autogestionárias estarão sempre inevitavelmente expostos a outra espécie de conflitos. Conflitos esses que advém de suas próprias singularidades, de suas histórias e interesses pessoais e das circunstâncias mutantes em que vivem. E mais, os mesmos conflitos, por vezes angustiantes e penosos, podem servir como importantes ferramentas em suas lidas diárias para manter viva e sólida essa maneira democrática de viver o trabalho, na medida em que sinalizam as tarefas micropolíticas que pedem negociação e replanejamento, salvaguardando, paradoxalmente, as possibilidades revolucionárias de adaptar o trabalho à suas condições psicossociais de vida, não mais o contrário.

Referências

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12 Ver a esse respeito também: Pedrini (1998).

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Endereço para correspondência: [email protected]

Recebido em: 02/12/2004Envio de pareceres em: 09/05/2005

Aprovado em: 10/06/2005

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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 2006, vol. 9, n. 1, pp. 15-32

Trabalho no hospital: ritmos frenéticos, rotinas entediantes

Claudia Osorio1

Universidade Federal Fluminense

O artigo apresenta o cotidiano do trabalho realizado nas enfermarias de um hospital geral público na cidade do Rio de Janeiro. A descrição e análise dessa atividade foram construídas em colaboração com os trabalhadores de saúde, através de observação direta, entrevistas abertas e grupos de discussão. A análise focalizou as relações estabelecidas, na equipe de saúde, entre os diversos grupos de trabalhadores, bem como as relações destes com seu trabalho, as cargas de trabalho e a relação entre trabalho prescrito e trabalho real. Observou-se uma grande distância entre o prescrito e o realizado, e uma contradição aguda entre o ideal de trabalho de equipe em prol do paciente e o trabalho real, que resulta fragmentado e realizado em um ambiente de falta de cooperação entre grupos e categorias profissionais, gerando sofrimento para diversos participantes dessa rede de relações.

Palavras chave: Processo de trabalho, Carga de trabalho, Trabalho prescrito, Trabalho real, Hospital.

Hospital work: frenzied rhythms, tedious routines

The article presents the infirmaries daily work in a public general hospital in Rio de Janeiro. The activities description and analysis were developed with the health workers participation, by direct observation, open interviews and discussion groups. Aspects of the work process are analyzed, highlighting: the relationships established in the health team, considering the several groups of workers among themselves and with their work, the workloads and the relations between prescribed and real work. The study shows a great distance between the prescribed and the real work, and an acute contradiction between the ideal of a team work developed for the benefit of the patient and the real situation: an environment of lack of cooperation between groups and professional categories, which creates suffering to participants of this net of relationship.

Keywords: Work process, Workload, Prescribed work, Real work, Hospital.

Introdução

a década de 1990, os profissionais do Programa de Saúde do Trabalhador da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro receberam de um hospital da rede pública uma

demanda de apoio e assessoria a seu Núcleo de Saúde do Trabalhador. Uma das preocupações apresentadas dizia respeito ao desgaste sofrido pelo pessoal de enfermagem, que desenvolvia suas atividades no cuidado aos pacientes internados. Considerava-se que essa atividade era muito penosa, com cargas excessivas geradas pela deficiência quantitativa de pessoal. Os exames médicos realizados apontavam alta prevalência de doenças hipertensivas, queixas de cansaço e dores lombares.

N

Uma primeira análise da solicitação recebida resultou no mapeamento de riscos em alguns ambientes do Hospital (Araújo, 1992) e na análise epidemiológica do sofrimento psíquico vivido pelos servidores, relacionando-o ao processo de trabalho hospitalar (Rego, 1993). Foi avaliado que o pessoal de enfermagem lotado nas enfermarias clínicas apresentava acentuado sofrimento. Os estudos seguintes tiveram como objeto o processo de trabalho hospitalar e suas conexões com processos de subjetivação produzidos no dia-a-dia dessas enfermarias (Santos, 1995; Osorio, 1994). Foram feitas observações e entrevistas que tinham como foco as atividades dos auxiliares de enfermagem e suas relações com aquelas dos demais participantes do atendimento aos pacientes. Observou-se que as queixas da enfermagem vinham de longa data, não tendo deixado de existir quando o quantitativo era maior.

1 Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense.

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Trabalho no hospital: ritmos frenéticos, rotinas entediantes

Colocou-se então a hipótese de que as cargas excessivas fossem resultado da dinâmica institucionalizada de funcionamento, em que a falta de pessoal contribuía para evidenciar problemas que há muito eram ignorados.

Neste artigo são apresentados o desenvolvimento e alguns resultados de um dos estudos acima mencionados (Osorio, 1994). Naquele, buscava-se produzir e identificar modos de superar o sofrimento dos servidores, em especial os do setor clínico de internação, através da construção coletiva do conhecimento acerca dos modos de trabalhar desenvolvidos no Hospital2.

São analisadas a organização e as cargas de trabalho e seus desdobramentos na relação que o trabalhador tem com seu trabalho. Por carga de trabalho entendemos as exigências postas aos profissionais pelo processo de trabalho, levando em conta os modos como os próprios trabalhadores as vivenciam. O conceito de carga não tem necessariamente a conotação de peso ou dificuldade: a carga de trabalho pode dar sentido ao trabalho e tanto a sobrecarga, quanto a subcarga podem propiciar desordens somáticas e acidentes, além de eventuais efeitos negativos sobre a produção (Brito, 1991).

Começaremos apresentando os métodos de abordagem adotados, passando a seguir à descrição de vinte e quatro horas vividas nas enfermarias e a algumas análises do trabalho no hospital, buscando a contribuição de diversos autores que desenvolveram o tema. Na análise da organização do trabalho, destacam-se as defasagens entre o prescrito e o realizado, bem como as cargas mentais e psíquicas da atividade.

A análise da divisão do trabalho e das estratégias adotadas para redução das cargas excessivas sugere que as relações que se tecem nas equipes estão marcadas pela contradição entre o ideal do trabalho solidário em prol do doente e o alto grau de competição entre grupos e categorias profissionais.

A observação das enfermarias

O setor clínico de internação do Hospital estudado dividia-se em duas alas, localizadas no mesmo andar de um velho prédio, cada uma com um posto de enfermagem. De um lado estavam as enfermarias femininas e de outro as masculinas. Aí eram internados pacientes de pneumologia, nefrologia, cardiologia, oncologia, hematologia e clínica médica. Durante três semanas foram observadas as atividades de atendimento aos pacientes, realizadas entrevistas com a enfermagem e consultados prontuários, escalas de plantão, livros de ocorrência, rotinas e informações afixadas nas paredes do posto de enfermagem. A seguir, foram entrevistados assistentes sociais, nutricionistas e médicos, bem como a chefia de enfermagem, a Comissão de Controle da Infecção Hospitalar (CCIH) e a direção do hospital. O texto originado descrevia em detalhes as atividades e foi apresentado à enfermagem, propondo-se a busca conjunta de alternativas para o trabalho cotidiano.

Seguindo uma metodologia participativa, convidamos os profissionais de enfermagem para uma reunião em que o processo de trabalho descrito, as dificuldades apontadas e suas possíveis soluções seriam tema de debate. Ao convidá-los, ouvimos ponderações de que “isto não vai dar certo”; alegava-se que as pessoas não poderiam abandonar o trabalho para a reunião e que aqueles que não estivessem de plantão não poderiam comparecer por falta de dinheiro para passagem, de alguém com quem deixar os filhos, tarefas domésticas a cumprir, cansaço, outro emprego e falta de crédito nos resultados. Dizia-se que “são sempre as mesmas

2 Embora a dissertação de mestrado que gerou este artigo tenha sido apresentada em 1994, acreditamos que hoje vivemos situação bastante semelhante à que o leitor irá se deparar.

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pessoas que comparecem enquanto as demais nem se importam, isso não é justo e não leva a nada”. Insistimos, mas ninguém compareceu. Provocamos então, indo a cada plantão, reuniões curtas, que chamamos “grupos-relâmpago” (Osorio, 1994). Foram postas em discussão a fidelidade do texto produzido ao cotidiano nas enfermarias e sugestões de mudança a fim de solucionar problemas. Autorizados pela enfermagem, discutimos o texto final com a chefia de enfermagem. O material que se segue foi construído nesse processo de observações e debates.

As enfermarias

Havia no setor 26 leitos ocupados na ala feminina e outros 26 na masculina. Além desses, havia leitos desativados devido à insuficiência de enfermeiros e auxiliares, o que vinha se agravando com a aposentadoria de muitos servidores. Os pacientes, na sua maioria, eram idosos eou tinham pouca autonomia, necessitando banho no leito, ajuda para alimentação e observação constante. Havia, em cada ala, um enfermeiro pela manhã, outro à tarde, dois ou três auxiliares de enfermagem (AE) e um auxiliar de serviços operacionais (AOSD)3. A maior parte do serviço burocrático e de comunicação com outros setores era feito pela secretária, contratada por uma empresa na função de servente. O trabalho da enfermagem com os pacientes mais graves era em parte aliviado pela presença de acompanhantes. Mas essa organização gerava outra sobrecarga, devida à demanda de atenção dos próprios acompanhantes e aos conflitos quanto às tarefas que lhes deveriam ser repassadas.

Enfermeiros e auxiliares queixavam-se de cansaço, lombalgias e hipertensão arterial. Existiam freqüentes faltas e licenças por agravos à saúde, com aumento da carga de trabalho para os que compareciam ao trabalho. Os trabalhadores de outros setores não aceitavam facilmente substituir colegas deste setor, considerado o de maior carga. A enfermeira chefe visitava diariamente o posto e, em um determinado dia, constatou que na ala masculina a equipe de plantão consistia em um único auxiliar de enfermagem, que havia chegado queixando-se de “bursite” e de não ter dormido bem por causa da dor. A chefe resolveu o problema, de forma centralizada e solitária, deslocando um AE do setor de siálise e assumindo ela mesma a organização das prescrições.

24 horas de cuidados prestados

No primeiro horário da manhã (às 7 horas) realizava-se a passagem do plantão, com o relato de uma equipe a outra das principais ocorrências do período noturno, de modo pouco formal, em cerca de 20 minutos. Falava-se sobre os pacientes mais graves e sobre as situações consideradas fora da rotina. A conferência do material e a leitura do livro de plantão, que deveriam ser feitas pelo enfermeiro, nem sempre eram realizadas. No ritmo apressado essas eram tomadas como atividades “menos urgentes”. Os atrasos eram constantes, principalmente na ala masculina. Eles suscitavam ansiedade e irritação em quem esperava substituição, mas também provocavam sentimentos de solidariedade: “acho que ele não consegue mais despertar como antes só de pensar em enfrentar tudo de novo”.

O desjejum dos pacientes deveria ser servido entre 7 e 8 horas. O ritmo de trabalho era frenético no período das 8 às 11 horas, quando se concentravam a quase totalidade das

3 Essa função encontra-se em extinção, mas ainda restam servidores que foram contratados dessa forma.

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tarefas. Por volta das 8 horas o enfermeiro4 percorria os leitos e cumprimentava os pacientes, inteirando-se da situação de cada um; avaliava os cuidados que cada um necessitava, os que estavam mais ou menos prostrados, ouvia reclamações e queixas; anotava os banhos de leito, cadeira ou ajuda. Os banhos de leito eram considerados tarefas pesadas. Cada banho demandava cerca de vinte minutos, sendo em geral seguido de curativos, já que diversos pacientes apresentavam escaras. Num dia observado foram registrados, na ala feminina, seis banhos no leito, um de cadeira e dois de ajuda. Dentre aqueles de leito, dois eram em mulheres idosas, obesas, em estado de extrema prostração, prestados por duas AEs que se queixavam de dores nas costas. Uma das pacientes gritava sempre que moviam seu corpo e a expressão facial das auxiliares revelava a tristeza e o mal-estar que isso provocava. Os comentários no corredor, feitos pela equipe médica, indicavam que “a ortopedia havia sido chamada há um mês e não vinha ver a paciente”. Outras pacientes, infectadas por microorganismos resistentes aos antibióticos habituais, implicavam risco de contaminação ocupacional. Foram usados luvas e capotes leves, usando-se capotes maiores e máscaras para as contaminadas por stafilococos. Dois dos banhos no leito foram feitos por um AOSD auxiliado por uma acompanhante, que auxiliou também o banho da paciente do leito vizinho. Dentre nove banhos de leito realizados na ala masculina, três eram de pacientes soropositivos para AIDS. No último foram retiradas as luvas no momento de recolocar a sonda vesical no paciente. Os auxiliares queixavam-se de alergia às máscaras. Após os banhos eram trocados os lençóis. Devido à escassez de roupa, recorria-se, por vezes, ao uso de lençóis pediátricos, o que demandava mais tempo e maior esforço físico. Segundo médicos antigos no hospital, “os lençóis sumiam na passagem pela lavanderia”. Essas tarefas encerravam-se por volta de 10 ou 11 horas da manhã.

Durante o período dos banhos, o enfermeiro atendia a situações de maior complexidade, providenciava materiais que faltavam e auxiliava médicos quando solicitado. Os enfermeiros comentaram a grande responsabilidade que lhes era atribuída, acompanhada de dificuldades pela falta de pessoal. Os auxiliares eram poucos, a maioria mulheres com mais de 40 anos, com dificuldades para realizar as tarefas necessárias. Essa situação gerava tensão e cansaço. Ainda se agravava, segundo os relatos, com o hábito da equipe médica de tudo solicitar ao enfermeiro, mesmo materiais que se encontravam ao alcance de toda a equipe, e não sob sua guarda. Essa questão originava conflitos: parte dos enfermeiros e auxiliares fazia a crítica aqui apresentada, mas outros consideravam o posto e tudo que ele continha como território da equipe de enfermagem, considerando qualquer interferência nesse espaço como intromissão.

Durante o período da manhã, preferencialmente após os banhos, os médicos visitavam os pacientes; os internos de medicina anotavam as prescrições e faziam pedidos de exames, que seriam encaminhados pela secretaria aos destinos devidos. Os médicos circulavam com a atenção dirigida a seus pacientes. Ao aproximarem-se do balcão do posto de enfermagem, para leitura e anotações em prontuários, nem sempre se davam conta da presença de outros profissionais não médicos. Em um dado momento, uma enfermeira interpelou um médico, seu companheiro na direção do centro de estudos: “Não fala mais comigo...”, iniciando um diálogo amigável. De modo geral, os diálogos diziam respeito apenas às tarefas assistenciais. Pessoas estranhas que se encontrassem no posto, nos corredores ou enfermarias (com no caso das pesquisadoras) raramente eram percebidas e cumprimentadas.

Após o banho era iniciada a limpeza, feita por funcionários de uma empresa contratada. A partir das 11 horas o ambiente se transformava, diminuindo o ritmo intenso observado desde as 8 horas. O almoço era servido e às 13 horas o plantão era então passado ao enfermeiro da tarde.

4 Isso ocorria na ala feminina. Na masculina, a enfermeira realizava essa tarefa através das folhas de evolução dos doentes, avaliando-os pessoalmente apenas em caso de dúvida.

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Entre 13 e 15 horas eram feitas tarefas não realizadas pela manhã “por falta de tempo ou qualquer outro motivo”. Após esse horário iniciava-se o período de visita dos familiares.

O plantão da noite iniciava-se às 19 horas, com a passagem dos casos da equipe diurna para a noturna. Aí também existiam queixas de atraso, implicando a extensão do horário da equipe do dia. Em geral apenas um funcionário (enfermeiro ou auxiliar) aguardava o primeiro a chegar para o plantão seguinte. Após diversas tentativas de solução administrativa, o problema dos atrasos foi considerado sem solução. No período da noite não havia banhos de rotina e os auxiliares estavam menos atarefados. Mesmo assim, foi adotado procedimento idêntico ao da manhã: a tarefa de preparo da medicação foi dividida, fazendo um a oral, outro a injetável mais os soros. A ceia era servida ao mesmo tempo em que iam sendo feitas medicações, nebulizações, aspirações e verificações de pressão arterial e temperatura. A administração da ceia a um paciente grave durou 20 minutos. A administração de cuidados e medicação foi feita por um AE, enquanto outro fazia algumas trocas de roupas e lençóis. Ele levou 20 minutos para trocar, sozinho, a roupa de uma paciente prostrada e queixou-se de problemas na coluna. A falta de material era freqüente nos plantões noturnos, quando a farmácia e o almoxarifado estavam fechados, gerando ansiedade nos auxiliares. Outro motivo de ansiedade era a manutenção precária dos equipamentos, como a ausência de grades nos leitos, o que já havia propiciado acidentes.

No trabalho diurno existiam poucos momentos de descanso. Eles ocorriam no horário da visita dos familiares, ao final do plantão, ou nas fugas ocasionais do andar. As refeições eram corridas, para possibilitar a saída do colega, uma vez que o horário de funcionamento do refeitório era limitado. No período noturno, em especial após a meia-noite, havia revezamento para descanso de três em três horas, ficando sempre um AE no posto.

A equipe de enfermagem trabalhava no limite máximo de suas possibilidades: qualquer contratempo gerava o caos. O agravamento súbito de um paciente fazia com que outros atendimentos fossem feitos de forma precária. Comentava-se que ninguém poderia ficar doente, tirar licença ou férias, sob pena de sobrecarregar violentamente os colegas. Foram observadas pessoas trabalhando sob o efeito de injeções sedativas da dor lombar, com fortes gripes e com férias vencidas. Alguns auxiliares referiram-se com críticas à “folga prêmio”, artifício que visava reduzir o número de licenças médicas, premiando aqueles que não faltassem nem pedissem licença. Havia acusações de favoritismos na equipe. Confrontados, nessa época, com a possibilidade de reabertura de leitos desativados, os auxiliares reagiram comentando que teriam que “escolher entre dar banho, comida ou remédios”. De acordo com os relatos, essa situação já ocorrera, a escolha tendo recaído na medicação: vários pacientes graves não se alimentaram naquele plantão. Existiam queixas da equipe médica de que, com alguma freqüência, os pacientes deixavam de receber a medicação prescrita. Essa queixa era veementemente contestada pela enfermeira chefe. Os médicos insistiam, usando como confirmação depoimentos de pacientes. Não parecia difícil, a quem observava o ritmo intenso do trabalho, sua fragmentação e o estado de ânimo da enfermagem, imaginar que erros ocorressem com freqüência. Ficava claro que a equipe médica atribuía tais erros à falta de responsabilidade ou empenho da enfermagem, em uma sempre presente busca de culpados pelo caos vigente.

O espaço e as condições de trabalho

As enfermarias tinham janelas amplas, voltadas para áreas verdes. Desembocavam num longo corredor com uma janela ao fundo. No lado oposto às enfermarias, pouco ventilado, estavam os postos de enfermagem, os banheiros de pacientes, dois quartos

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individuais e os expurgos (local onde são lavados equipamentos que dispensam esterilização). Em frente a cada um dos postos havia um ventilador barulhento, numa tentativa mal sucedida de minorar o calor. O espaço de circulação nas enfermarias era restrito: quando eram utilizados biombos para isolamento visual de algum leito, eles ficavam encostados aos leitos vizinhos. Nos corredores, a circulação era prejudicada pela permanência de macas, carrinhos e aparelhos. Os banheiros eram distantes dos leitos, gerando maior carga no atendimento àqueles com dificuldades de locomoção.

A enfermagem da ala feminina dispunha de um repouso onde o pessoal guardava seus pertences, fazia lanches rápidos e descansava durante o plantão noturno. Tratava-se de um espaço exíguo, com beliches e armários de metal, sem janelas ou qualquer outra ventilação. Era aí que, quando necessário, os enfermeiros conversavam reservadamente com os auxiliares. A entrevista com um enfermeiro, com uma hora de duração, foi realizada nesse espaço. Sentados durante todo o tempo em camas-beliches, ao final estávamos bastante doloridos! Todos afirmaram que as precárias instalações eram conquista de luta, obtidas por ocasião de campanha para eleição da direção e eram “melhor que nada”. Antes já haviam dormido muitas vezes no chão ou em cima de mesas, quando o cansaço se tornava insuportável. Na ala masculina existia outro repouso menos precário. Existiam, no andar, espaços ociosos que haviam sido oficialmente requisitados para esse fim. Um desses, com uma ampla janela, boa ventilação e banheiro privativo, ao lado do serviço de diálise, estaria reservado para futura ampliação desse serviço.

Os enfermeiros eram responsáveis pela autorização da presença de acompanhantes para pacientes graves, mas não dispunham de salas de consulta em que pudessem orientar os pacientes e seus acompanhantes quanto a sua estada na enfermaria. As entrevistas ocorriam ao lado do leito do paciente, no corredor ou no balcão do posto de enfermagem.

Os plantonistas da enfermagem faziam, no refeitório, uma refeição e um lanche por plantão de 12 horas. Caso algum deles decidisse tomar o desjejum, não teria direito ao lanche da tarde. Essa determinação não considerava a distância a percorrer de casa ao trabalho. Caso resolvessem trazer um lanche de casa, não teriam lugar adequado para guardá-lo, nem para consumi-lo: lanchavam sentados nas camas do quarto de repouso ou no posto da UI (para onde haviam “escapado”). As refeições eram servidas num horário restrito e a equipe queixava-se de não poder “reservar” a refeição, como faziam as unidades fechadas, quando “o plantão está pegando fogo”. Beber água também parecia ser uma tarefa árdua. Existiam bebedouros nos corredores, mas eram considerados sujos e pouco confiáveis. As garrafas de água eram distribuídas apenas aos pacientes, tampadas com plásticos que, uma vez retirados, não aderiam novamente. Ir ao refeitório para beber água obrigaria a interromper as tarefas e o refeitório era fechado às 22 horas.

Os postos de enfermagem eram pequenos, com bancadas de trabalho também pequenas. Toda sua área, a exceção do depósito de roupa, estava exposta à visão de quem circulava no corredor. Os banheiros exigiam verdadeiro contorcionismo para entrar, fechar a porta e fazer uso das instalações sanitárias.

Para as demais categorias profissionais, as condições pareciam um pouco menos precárias, dada a liberdade maior de horários e de organização das tarefas, com menos divisões hierárquicas internas e menor tempo total de permanência no local de trabalho.

O serviços social dispunha de uma pequena sala para entrevistas, além de instalações no prédio vizinho, onde ficava o ambulatório. As assistentes sociais não dispunham de telefone externo próximo às enfermarias, o que as fazia percorrer muitos quilômetros por dia: “isso mantém a forma delas, não precisa dieta, vai e volta, vai e volta, mais de 30 vezes... prá convocar família, chamar empregador, tentar recursos... fora a alta, que a gente acaba informando à família. E vai e vem, vai e vem, 365 dias do ano”. De acordo com os relatos, “as condições de trabalho das assistentes sociais no segundo andar são terríveis: uma cadeira e um banquinho para

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quatro [profissionais], uma sala que é um pedaço do corredor para quatro, e todas as famílias de todos os pacientes do segundo andar. Fora a assistente social do terceiro andar, que também desce quando precisa de privacidade [já que não há sala de entrevista no andar cirúrgico]”.

A equipe médica dispunha de quatro salas com amplas janelas voltadas para áreas verdes, sendo uma para trabalho individual e reuniões, uma para a chefia e duas para consultas e exames físicos. Os médicos anestesistas, vinculados à clínica cirúrgica, que funcionava no andar superior, dispunham de uma ampla sala no andar clínico, quase sempre fechada.

A distribuição de espaço dava, portanto, indicações claras da hierarquia produzida pela divisão do trabalho e pelo prestígio alcançado por cada grupo profissional. A enfermagem, responsável pela execução, recebia espaços menores e menos ventilados, não sendo contemplada com alguns confortos, como consultórios e espaços para reuniões. Os grupos intermediários, como os assistentes sociais, estavam no meio termo na distribuição dos espaços. A falta de espaço para distribuição eqüitativa às diversas categorias poderia gerar a criação de espaços compartilhados, multiprofissionais. Questionados, nenhum dos grupos considerou tal solução viável.

A organização do trabalho: o trabalho prescrito e o trabalho real

A psicologia ergonômica define a tarefa como aquilo que deve ser feito e a atividade como aquilo que se faz (Leplat & Hoc, 1983). A atividade é entendida como a intenção momentânea do operador, protegida de outras intenções que competem com ela. Na distância existente entre o prescrito e o realizado é que se pode produzir o sentido do trabalho, um trabalho de que fazem parte os conflitos, as dúvidas, as paixões, e não um trabalho concebido como uma seqüência de gestos operacionais regidos por uma inteligência desencarnada.

O trabalho aqui descrito, embora fruto de uma observação local e datada, pode ser considerado característico do cotidiano de muitos hospitais. De acordo com o prescrito, o trabalho nas enfermarias tem por finalidade o tratamento do paciente até que este possa ser realizado no domicílio. O tratamento é dividido e atribuído a diversas categorias profissionais, contando cada uma com uma chefia, que é ocupada por profissional da mesma formação, subordinados todos à divisão médica. Os médicos prescrevem os procedimentos de diagnóstico e o tratamento, determinando o trajeto que o paciente desenvolverá dentro do hospital. As decisões quanto à terapêutica prescrita são inteiramente suas. Questões administrativas, tais como haver ou não seringas suficientes para a administração dos medicamentos do dia, não constituem preocupação dos médicos, mas sim dos enfermeiros. Os nutricionistas prescrevem as dietas com base no que os médicos solicitam; fazem a dosagem e acompanham o preparo de alimentação enteral; têm seus vínculos empregatícios com uma firma contratada. O serviço de nutrição do próprio hospital é responsável pelo controle e pela fiscalização do trabalho dessa empresa, pelo atendimento ambulatorial e pela administração do setor. Os assistentes sociais atuam nas relações entre o paciente, sua família e seu mundo, visando sanar as dificuldades que a situação de internação pode trazer à vida social do paciente. O enfermeiro organiza o posto de enfermagem, determina a divisão das tarefas entre os auxiliares e realiza alguns procedimentos terapêuticos. As secretárias auxiliam na organização de prontuários, marcação de exames, transcrição e encaminhamento das prescrições ao setor de farmácia. Existem ainda os maqueiros terceirizados, contratados como serventes e sem formação na área de saúde.

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A equipe de enfermagem tem horários de trabalho bem definidos, o que não ocorre com os demais profissionais. A equipe médica é a que sofre menor controle de horário, devendo trabalhar 20 horas semanais. Os enfermeiros do período diurno são diaristas: entram às 7 horas e são rendidos às 13 horas por outra turma, que trabalha até as 19 horas. Durante o dia, há um enfermeiro em cada posto. Durante a noite, a quantidade de enfermeiros é menor e eles, assim como os auxiliares, são plantonistas. São três equipes de plantão noturno, cada uma com um supervisor e pelo menos um enfermeiro por andar. Os AEs estão em contato direto com os pacientes, administrando a terapêutica prescrita pelo médico e organizada pelo enfermeiro. Aos operacionais (AOSDs) cabe um papel de apoio. Os auxiliares estão distribuídos em três equipes que fazem plantões de 12 horas seguidas por 60 horas de descanso (12/60), tanto durante o dia, quanto durante a noite e estão subordinados ao enfermeiro da ala ou do setor onde atuam.

A organização do trabalho prescrita, de modo mais ou menos formalizado, define a divisão do trabalho, de acordo com o posto de trabalho ou a função de cada um. Essa divisão, não sendo apenas técnica, distribui desigualmente as tarefas tanto do ponto de vista das quantidades, como das qualidades. Aos socialmente mais favorecidos, são atribuídas as tarefas qualificadas, em geral menos arriscadas e menos danosas à saúde; aos menos favorecidos, aquelas que exigem menor qualificação e, em geral, oferecem maiores riscos de acidentes e doenças.

A divisão do trabalho na equipe de enfermagem é clara. Os enfermeiros coordenam, orientam e supervisionam a assistência aos pacientes, que consiste na administração das prescrições médicas e dos cuidados gerais. Executam procedimentos de maior complexidade, muitos dos quais podem ser realizados pela equipe médica. A maior parte das tarefas, principalmente as que exigem grande esforço físico e pouco preparo técnico, são executadas pelos auxiliares. Há uma bem estruturada justificativa técnica que torna determinadas tarefas privativas do enfermeiro ou do auxiliar de enfermagem. Do ponto de vista técnico, nada impediria que cada um se ocupasse de tarefas menos complexas que aquelas privativas da função; mas, segundo os comentários dos auxiliares, é raro que os enfermeiros auxiliem nos banhos e outras tarefas que representam grande carga – “é ruim eles pegarem no pesado, heim!”. Já entre os AEs e os AOSDs, embora as normas estabeleçam diferenças, elas pouco aparecem.

A leitura do livro de ocorrências, a passagem de plantão e a visita aos pacientes são atividades importantes para o planejamento do trabalho, mas muitas vezes “por falta de tempo” não são cumpridas. Dessa forma, o trabalho do enfermeiro, e mesmo da sua equipe, perde parte do significado, passando a ser desenvolvido de modo mecânico ou emergencial. As anotações da enfermagem e da equipe médica sobre a evolução dos pacientes e as prescrições dos médicos são vias de comunicação que quase nunca podiam ser utilizadas satisfatoriamente. Também em função da “falta de tempo” não há leitura dos prontuários por parte da enfermagem. Pode-se observar mais claramente a importância da participação do enfermeiro, nas visitas aos doentes e na leitura e no uso dos prontuários, quando comparamos as enfermarias com as unidades fechadas, onde essas tarefas são habitualmente observadas.

Após receber o plantão e se desembaraçar das primeiras tarefas, o enfermeiro organizava as prescrições, anotando nas papeletas o horário de cada medicamento ou procedimento. O preparo da medicação era tarefa dos auxiliares, a ser feita após o banho e a arrumação dos leitos. Os itens da medicação – frascos de soro, ampolas e comprimidos – eram separados, preparados e arrumados em bandejas com divisões; o preparo do soro implicava na confecção de rótulos nos quais constavam o número do leito do paciente, o conteúdo do frasco e a etapa correspondente. Essa era uma tarefa atribuída ao AE, mas com a carência de pessoal passava a ser desenvolvida também por AOSDs. Os sinais vitais deveriam ser verificados pelos AEs. Cada AE deveria ficar responsável por um certo número de pacientes.

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Na prática, os auxiliares parcelavam a tarefa: um preenchia rótulos, outro separava comprimidos etc. Explicavam que da forma prescrita não haveria tempo suficiente para todas as tarefas. Assim, o tempo de preparação dos medicamentos era reduzido, mas o trabalho perdia muito do significado que poderia ter com o atendimento integral a cada paciente por um mesmo auxiliar. Perdia-se a possibilidade de conhecimento do caso, da forma escolhida de tratamento, de revisão e controle pela compreensão do processo como um todo. Esse modo de organizar o trabalho aumentava o risco de falhas tais como uma medicação eventualmente esquecida ou a inobservância de um frasco soro que acaba. Num dado momento um médico reclamou ao enfermeiro que sua paciente estava recebendo um soro diferente do prescrito. O enfermeiro se constituía no alvo preferencial para cobranças. Mas todos, e também ele, ficavam parcialmente protegidos pelo parcelamento e pelas más condições gerais do trabalho. Diversas possibilidades de colaboração e participação eram anuladas. Os auxiliares perdiam a possibilidade de opinar sobre o trabalho desenvolvido e sobre a assistência prestada.

A informação acerca das rotinas foi fornecida pelos enfermeiros de maneira precisa, não havendo, nos depoimentos, dúvidas sobre o que deveria ser feito, embora existissem poucas rotinas escritas a serem observadas. Existe uma rígida separação, no trabalho prescrito, entre concepção e execução, o que leva a uma concentração do poder nas mãos dos responsáveis pelo planejamento. Mas a precariedade geral subverte esta ordem. Temos ao final uma falta generalizada de poder ou de potência. Esse esquema, que pode ter aspectos defensivos, era apontado como fonte de insatisfação. Muitos se queixavam por “não poder dar maior atenção a cada doente”, de não haver “tempo de dar assistência emocional ao doente”; dizendo ainda que “se ocorre um agravamento, é preciso escolher entre dar comida ou remédio”.

Nos debates feitos em pequenos grupos, alguns enfermeiros discordaram da afirmativa, oriunda das entrevistas com a hierarquia, de que aos AEs estivesse atribuída a simples execução, afirmando que o trabalho daquele segmento implicava no uso de significativo conhecimento técnico, sendo o profissional responsável pelo que faz. Ele seria capaz inclusive de questionar prescrições médicas, o que ocorria “com alguma freqüência”; poderia, nesse caso, dirigir-se ao enfermeiro ou, na ausência deste, diretamente ao médico. Parece haver uma desvalorização, por parte do discurso oficial, de um trabalho que é mais intelectual do que se quer reconhecer. A favor da visão da enfermagem, há a queixa médica de “boicote”, de que “a enfermagem é cruel...” e que “voa muito”. Ou seja, no trabalho real, a possibilidade de interferência da enfermagem aparece na forma de recusas a realizar mais que o prescrito ou mesmo o prescrito. Os auxiliares demonstravam, pela falta, o valor que tem o seu trabalho.

Outras defasagens podem ser observadas, por exemplo, nas diferentes orientações sobre como lidar com os riscos biológicos. O banho no leito, seguido de curativos e troca de sondas, é um momento que oferece riscos de contaminação. Entre um e outro banho nem sempre os capotes eram trocados; questionados, os auxiliares alegaram que os pacientes apresentavam o mesmo tipo de infecção e que não haveria tempo para trocar as roupas a cada banho prestado. Um enfermeiro afirmou que o risco de doenças infecto-contagiosas era grande, e “como não são tomadas providências pelas hierarquias superiores”, sua orientação aos auxiliares era de “não se aproximarem muito dos doentes que representam risco de contaminação” (nesse caso estavam os pacientes HIV positivos). Esses tipos de reações extremas às dificuldades e de medos produzidos no processo de trabalho (abandono dos pacientes) não são considerados freqüentes e dão a dimensão dos sentimentos que atravessavam a equipe.

Um acontecimento revelador do que pode ocorrer, como conseqüência de rotinas fragmentadas ou não cumpridas, está no “sumiço” de pacientes da enfermaria. Durante a observação das atividades, ouvimos um relato de um fato curioso: uma família teria procurado seu parente no horário da visita e, tendo encontrado o leito ocupado por outra pessoa, procurou informações com um auxiliar. Este não sabia informar e o esclarecimento foi

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dado por um servente: o paciente havia sido transferido para o andar cirúrgico. Ao buscar uma melhor compreensão do acontecimento obtivemos as seguintes explicações: “alguns pacientes levantam e saem, na portaria não são parados e vão embora”; “os pacientes são levados para exames”, “têm uma licença social”, “são transferidos para outros setores do hospital ou para outras unidades e a enfermagem não anota imediatamente a saída”. Assoberbado por muitas tarefas, o enfermeiro deixa as anotações de prontuário “para uma hora mais calma”. Assim, nem todos da equipe ficam informados e não podem responder aos questionamentos. Ou ainda, como as rotinas prescritas são muito longas e burocratizadas, as providências são tomadas informalmente, aproveitando os contatos pessoais e a boa vontade de um ou outro.

O relacionamento entre os membros da equipe multiprofissional de saúde foi descrito como “cordial, mas com problemas”. A distribuição das tarefas é desigual tanto no tempo, quanto na divisão entre os diversos profissionais. A tão propalada equipe de saúde parece ser uma colcha de retalhos mal costurada.

As relações com os médicos são marcadas hierarquicamente. enfermeiros referiam-se, de forma crítica, a uma relação de subordinação que ultrapassava claramente a divisão técnica do trabalho. Ao mesmo tempo, a enfermeira chefe fez questão de afirmar sua autonomia dizendo que “em outros lugares isso até deve acontecer, aqui não, a enfermagem aqui não se subordina ao médico”.

O serviço de nutrição foi considerado, pela enfermagem, essencial na rotina do setor. Foram relatadas visitas pela manhã e na hora do almoço a fim de verificar, junto aos pacientes, a aceitação das prescrições dietéticas. Entre esses dois grupos existiam conflitos, com a explicitação de críticas relativas a efeitos da diminuição do quadro de pessoal, como um distanciamento do acompanhamento ao paciente e da interação com a enfermagem, além da passagem de tarefas do primeiro para o segundo grupo. Um exemplo pode ser o dos esquemas de alimentação enteral. Foi relatado pelos nutricionistas que “passar sonda para alimentação foi, durante algum tempo, tarefa da nutrição, mas com a redução do quadro da nutrição, essa tarefa passou a caber a enfermeiros”. Houve época em que “para ajudar, os nutricionistas passavam as sondas e auxiliavam na administração da enteral, mas isso passou a ser visto como obrigação da nutrição, e não é”. “Quando o trabalho aumentava e essa ajuda não era possível, a enfermagem se recusava a passar as sondas e os pacientes ficavam sem alimentação”. Existiam queixas dos nutricionistas quanto ao acompanhamento feito pela enfermagem: “tem que correr bem devagar, e eles apressam para não ter que ficar tomando conta”; “tem que lavar a sonda a cada esquema, e isso nem sempre é feito, aí entope”. Um outro exemplo de conflito está na relação entre médicos e nutricionistas. Segundo estes, alguns médicos, “especialmente os mais idosos”, “não gostam que a prescrição de dieta seja feita pelo nutricionista”.

Com a falta de pessoal e o excesso de trabalho, algumas tarefas eram empurradas de um lado para outro. A argumentação para reservar a tarefa para si ou repassá-la a outrem era freqüentemente da ordem da técnica, da competência ou da legalidade. Observou-se que a tentativa de repassar tarefas para a equipe médica ocorria com menor freqüência, sendo mais freqüente solicitar e disputar tarefas que eram consideradas de competência médica.

O trabalho do serviços social foi descrito pela enfermagem como associado à resolução de situações envolvendo alta ou óbito. Já segundo o serviços social, era necessário esclarecimento constante de suas funções e, mesmo assim, “entra residente, sai residente, sempre um vira prá gente e diz: 'Fulana, avisa a família que ele está de alta... Os médicos do staff sabem que isso não é nossa função, mas...'. Isso é estressante!”. Os problemas relativos ao aviso de alta às famílias eram causados, em parte, por um descompasso entre a rotina estabelecida e a realidade enfrentada. De acordo com o prescrito, as altas deveriam ser informadas pela secretaria das enfermarias com 24 horas de antecedência ao setor de internação e alta, que então avisaria à família para que viesse buscar o paciente. Mas, com a escassez de leitos, era consenso entre médicos que eles deveriam ser liberados assim que um paciente melhorasse,

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para que outro, que estivesse na emergência, pudesse por sua vez liberar o espaço para o próximo caso grave. Assim, se pela manhã o médico encontrasse uma melhora no paciente, seria desejável que ele desocupasse o leito no mesmo dia, o que era incompatível com o longo caminho que a informação deveria percorrer para chegar à família. O serviços social descreveu assim suas atividades no setor: “a gente atende o paciente no leito, atende a família, vê em que a doença interfere, os problemas que vêm de casa e estão interferindo no tratamento, o próprio problema de saúde do paciente interferindo no contexto familiar, como o chefe de família que para de produzir... surgem problemas, você é intermediador”.

Entre os enfermeiros e o serviços social ocorriam conflitos relativos aos direitos do paciente, atribuídos pelo segundo à “falta de comunicação na equipe”. Foi citado o direito dos adolescentes a ter acompanhantes. O acompanhante era autorizado para menores de 14 anos. Com o novo Estatuto dos Direitos da Criança e do Adolescente, o serviços social argumentou pelo direito até 17 anos, mas percebeu resistência frente ao que seria “interferência”: “Até ela [a enfermeira] entender, ela vai dizer 'não, aqui quem manda sou eu', aí fica uma confusão”.

Os técnicos de laboratório também mantinham contato com o setor, colhendo materiais e entregando resultados. De acordo com a enfermagem, o técnico, ao entregar sangue para transfusão, deveria “instalar o equipo e pegar a veia do paciente com um escalpo apropriado [de maior calibre]”, não fornecido às enfermarias. Muitas vezes o técnico levava a bolsa de sangue, mas não “pegava a veia”; a enfermagem tentava fazê-lo com o material de que dispunha; assim “a veia entope a toda hora, o paciente sofre mais e a enfermagem trabalha dobrado”. Ocorria também, de acordo com os depoimentos, que o técnico do laboratório pusesse o sangue para correr num acesso que antes recebia soro e, “como o calibre não era apropriado, entupia tudo”.

A comunicação era uma fonte constante de problemas. Existiam queixas da nutrição quanto à falta de informação acerca de exames que exigiriam preparos relativos à alimentação, transferência de pacientes de um leito para outro sem que o setor fosse avisado (“a comida vai trocada”), altas e admissões não informadas. Os fluxos de informações eram muito precários, gerando queixas generalizadas e confusões diversas. A grande fragmentação das atividades contribuía para dificultar a gerência das informações. Os procedimentos de complementação diagnóstica nem sempre eram informados à enfermagem; ocorriam transferências de paciente (de leito, enfermaria ou andar) sobre as quais a enfermagem não sabia informar. Os médicos passavam, entravam e saiam, muitas vezes sem ter dado bom dia a qualquer um que não pertencesse à sua própria equipe.

A fragmentação do trabalho gera monotonia. Na pesquisa realizada acerca do sofrimento psíquico (Rego, 1993), foi encontrado que 24,4% do pessoal considerava que as tarefas que realizava eram sempre as mesmas, sendo esse o grupo com maior freqüência de sofrimento psíquico (35,1%). A fragmentação era justificada como respeito à autonomia de cada categoria profissional ou por uma pretendida liberação da enfermagem de algumas tarefas, como na passagem para secretárias e maqueiros. Nesse caso, a suposta solução, que parcela e desqualifica o trabalho, gera outras tarefas tais como recolocar soros em “veias entupidas” durante o deslocamento do paciente.

Outro exemplo de fragmentação é o caminho prescrito de um exame, desde o seu pedido até o retorno do resultado ao médico: o médico decidia, o interno fazia o pedido num formulário próprio e o colocava numa caixa; a secretária recolhia os formulários, protocolava os pedidos, entregava-os aos setores correspondentes (radiologia, laboratório, ultra-som etc.). Esses setores registravam as solicitações e mandavam o formulário de volta com marcação de horários, frascos necessários, o que fosse indicado a cada caso; a secretária recebia e registrava o recebimento. Mas o caminho do exame não acabava aí. Vejamos o caso de um exame de urina: a secretária recebeu o pedido de volta com o frasco esterilizado; esse frasco deveria ser entregue à enfermagem para que orientasse o paciente quanto ao modo correto de colher o

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material, recolhesse o frasco cheio e o devolvesse à secretária, que deveria repassá-lo ao laboratório. Até chegar o resultado existiam, nas palavras de um médico, “inúmeras possibilidades de erro”. No intuito de diminuir o percurso, foi proposto que a secretária entregasse o frasco diretamente ao paciente, mas como ela não poderia orientá-lo para colher corretamente o material, os exames tornavam-se pouco confiáveis. No caso de um exame que exigisse o transporte do paciente teríamos a inclusão do maqueiro; em outros, o técnico do laboratório viria colher o material necessário. Questionado sobre a forma e a instância de determinação dessas rotinas, o médico entrevistado não soube dizer quem as determinava. Certamente a chefia da divisão médica assinava ordens de serviço sobre as rotinas, mas não necessariamente teria planejado todos os seus pontos. A organização do trabalho semelhante à da fábrica entra no hospital como se fosse naturalmente a melhor forma de atingir os fins propostos.

Para exemplificar um caso em que o trabalho real reduz a fragmentação, pode-se apresentar a rotina de encaminhamento de um paciente ao serviços social, no prédio anexo: “[para] receber um parente menor [criança] fora da enfermaria: a gente teria que acionar a enfermagem, a enfermagem acionar o maqueiro, dizer para trazer o paciente à sala do serviços social e ele traria o paciente; só que isso não acontece. Então a assistente social também faz esse serviço, vai lá, pega o paciente, traz o paciente, deixa aqui com a família. A assistente social não solicita porque acha que a enfermagem não dá conta”.

O comentário aborrecido do serviços social e outros é que “as rotinas existem para serem descumpridas”. Vários relatos apontam esse fato como gerador de atritos e de maior carga de trabalho para alguns. Vejamos algumas situações já relatadas: as rotinas de comunicação de altas são ignoradas e a secretaria não avisa às famílias; os técnicos de laboratório põem o sangue com escalpes de calibre inadequado para “aproveitar a veia” ou deixam o serviço para a enfermagem; os médicos, precisando do leito para nova internação, não consideram o prazo prescrito de 24 horas; os médicos plantonistas não permanecem no setor; os enfermeiros, por falta de tempo, não acompanham a visita médica aos pacientes.

Observa-se uma enorme distância entre o prescrito e o real, com conseqüências que variam a cada caso. Mas, quando o prescrito não responde às necessidades do momento, o trabalhador inventa uma nova forma. O médico pede diretamente ao colega para “fazer agora a ultra-sonografia que é urgente”; o auxiliar de enfermagem, sem pausas, em 12 horas de trabalho, “voa”; a alta é dada e a família que vem para visitar deve encontrar um meio de levar o paciente para liberar a vaga. A defasagem entre o trabalho real e prescrito gera o sentimento de que falta ordem, ou disciplina. Seria necessário o debate constante para que se pudesse distinguir onde há disfunção, ou falta de prescrição, e onde há flexibilidade indicando capacidade de resolver problemas.

O trabalho hospitalar, como já foi dito acima, exige a participação de várias categorias profissionais numa divisão não apenas técnica, mas também social do trabalho. A assistência ao paciente tem o controle do médico, que define o diagnóstico, a conduta terapêutica, a internação ou a alta. Na maior parte dos hospitais públicos brasileiros, o médico dispõe de canais diversos de participação, formais ou não. Discute casos em reuniões clínicas e influi na definição da organização do trabalho (distribuição dos horários dos médicos pelas diferentes atividades, por exemplo). No hospital observado, ele poderia entrar no gabinete do diretor e discutir desde os rumos do hospital, até a falta de gaze para os curativos na emergência. Já a participação da enfermagem nas decisões é mais restrita. No caso observado, muitas vezes a única decisão a ser tomada pela equipe dizia respeito ao que deixar de fazer frente à falta de pessoal ou material. Na eventualidade de falta grave de pessoal, a chefia decidia o que fazer e remanejava pessoal consultando ou informando aos enfermeiros; os auxiliares apenas recebiam a ordem final. A organização de horários para exames ou quaisquer procedimentos não envolvia a participação dos enfermeiros, o que, segundo a chefia de enfermagem, ocorreria se os enfermeiros acompanhassem as visitas

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médicas. O enfermeiro da ala feminina acompanhava eventualmente a visita médica, mas na ala masculina a enfermeira considerava que não havia tempo disponível para isso. A participação nas decisões de internação e planejamento de alta era mínima e não havia participação nas reuniões clínicas. Apesar disso, as solicitações dos familiares de informações sobre a situação dos pacientes eram dirigidas à enfermagem, que se defrontava diariamente com a impossibilidade de respondê-las. O plantão noturno se ressentia mais desse alijamento do que o pessoal diurno. Em vários depoimentos, os AEs queixaram-se de desconhecimento em relação à vida do hospital devido à “falta de comunicação”. Não existiam reuniões ordinárias de equipes multidisciplinares, e as que reuniam a enfermagem eram caracterizadas por conteúdo normativo.

Há uma concordância geral, aparentemente sustentada por critérios técnicos, de que o trabalho na área é determinado pelo médico, coordenado pelos enfermeiros, executado pelos técnicos e auxiliares de enfermagem. Nenhum grupo, além dos médicos, fez referência a discussões clínicas regulares. Essa organização está naturalizada. As hierarquias são rígidas e relacionadas às divisões por áreas de saber ou categorias profissionais. Foi ouvido de um médico que ele se relaciona com a chefia de enfermagem “de capitão para sargento”; nessa linha de pensamento, os enfermeiros seriam os cabos e os auxiliares, os soldados... E costuma-se afirmar que soldados não pensam, obedecem! Nas discussões em grupo, essa passagem, incluída no texto de descrição do trabalho, criou reações intensas, sempre de negação; mas os comentários vinham carregados de mágoas. Um enfermeiro observou: “provavelmente esse médico desejaria que fosse assim...”. Ao mesmo tempo, ao serem questionados sobre as soluções que poderiam sugerir para diversos problemas, os auxiliares respondiam: “mas se eles, que estudaram, não resolvem...”.

A possibilidade de participação está intimamente relacionada com os tempos e os ritmos do trabalho. Para a enfermagem, o tempo é dado pelas rotinas prescritas, pela alta intensidade do trabalho, pela constante “falta de tempo”. Essa expressão surgia sempre que sugeríamos uma conversa sobre o trabalho ou a participação na pesquisa; também aparecia ao sugerimos a implantação de reuniões clínicas, específicas ou multidisciplinares. Já para os médicos, os fins de semana e os feriados estão preservados, o tempo é gerido a partir de uma conjugação entre as necessidades dos pacientes assistidos e as possibilidades dos médicos. Embora eles se considerem pressionados pela intensidade do trabalho, suas rotinas são mais flexíveis.

Existe uma clara opção por uma organização do trabalho que reforça quantitativamente o grupo médico e o pessoal de enfermagem de nível médio e elementar. Poucos comentários foram ouvidos quanto à falta de assistentes sociais, de psicólogos, fisioterapeutas e de outros personagens que idealmente fazem parte da equipe. A necessidade de enfermeiros é considerada secundária face à premente necessidade de auxiliares. Os trabalhadores do hospital naturalizam a atual organização, baseada nessas proporções. A divisão do trabalho no hospital é complexa, tanto quando consideramos as diversas categorias profissionais, quanto como na distribuição de tarefas internamente à mesma categoria e entre serviços. Na hierarquia dos serviços, as enfermarias de clínica eram apelidadas a “Coréia”, por serem aquinhoadas com o trabalho mais “duro” e menos valorizado.

As cargas psíquicas e cognitivas no trabalho hospitalar

Uma vez que havia uma encomenda de intervenção nas enfermarias, tendo como ponto de apoio a queixa de “cargas excessivas de trabalho”, buscamos delimitar o que os trabalhadores do hospital destacavam como tal, dando relevo às cargas cognitivas e psíquicas.

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Por carga cognitiva, ou mental, entende-se os recursos mentais que o trabalhador deve dedicar à tarefa, ou seja, a quantidade de informações que ele deve considerar na sua realização, seu grau de complexidade, os recursos de memória de que deverá lançar mão, entre outros aspectos. Já a carga psíquica diz respeito aos recursos afetivos, estando relacionados ao sentido atribuído à tarefa e outros aspectos da relação que os trabalhadores, individual e coletivamente, mantém com seu trabalho. O conceito de carga é capaz de “ressaltar na análise do processo de trabalho os elementos deste que interatuam dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador, gerando aqueles processos de adaptação que se traduzem em desgaste, entendido como perda da capacidade potencial e/ou efetiva corporal e psíquica” (Laurell, 1989, p. 110).

Como vimos na descrição do processo e da divisão do trabalho observado, a maior parte das tarefas, em especial as que exigem mais esforço físico e menos preparo técnico, são executadas pelos auxiliares. Eles se queixam de serem pouco ajudados pelos enfermeiros, que reservariam para si as tarefas consideradas menos pesadas. Talvez os enfermeiros estejam expostos a uma menor carga física, mas certamente sua carga psíquica e cognitiva é grande e pouco reconhecida.

O trabalho nas enfermarias exigia percepção e elaboração de informações complexas, em quantidades consideradas excessivas por todos. A intensidade da carga cognitiva depende do número de fontes e freqüência das informações, da sua quantidade e densidade, sendo importante avaliar o tempo atribuído ao processamento de cada informação até o recebimento da próxima. Se a informação é muito breve exige maior atenção e memória. Quando o tempo é limitado deve-se evitar passar muitas informações de uma só vez. Nas enfermarias, em especial no período da manhã, o tempo era sempre insuficiente e as informações, muitas. Estas deveriam ser anotadas nos prontuários, livros de plantão e outros documentos. Por falta de tempo, as anotações se acumulavam e, se feitas, adiante não eram lidas.

De acordo com Neffa (1988), a comunicação pode ser perturbada pelas condições do meio ambiente, pela multiplicidade de funções dos trabalhadores envolvidos e pela inadequação do tempo reservado a receber e processar a informação.

Além das cargas cognitivas, havia uma sobrecarga psíquica advinda do reconhecimento da impossibilidade de atender às demandas.

Dissemos acima que o trabalho da enfermagem era, em parte, aliviado pela existência de acompanhantes para os pacientes mais graves. Mas isso gerava sobrecarga devido à ansiedade e à necessidade de atenção trazida pelos acompanhantes. Num plantão noturno, um auxiliar foi interrompido diversas vezes durante o preparo da medicação para atender a chamados de acompanhantes. O auxiliar deve então avaliar a gravidade da situação, decidir se deve chamar o médico plantonista, e, se for o caso, chamá-lo. Essas interrupções propiciam erros tais como a troca de medicação, duplicação ou falta de algum item, risco agravado pela intensidade do trabalho e pela falta de significado decorrente do parcelamento da atividade.

A adoção de decisões é um dos componentes da carga de trabalho. Nas entrevistas ficou evidente que essa equipe, em especial os enfermeiros, toma decisões a cada passo do trabalho, algumas vezes sem disporem de todas as informações necessárias, ou de suporte organizacional adequado. O enfermeiro relata assim a rotina da noite: “Assim como falta enfermagem, falta médico de especialidade; o residente de uma especialidade fica inseguro com a outra. Se o residente ficar inseguro, você tem que decidir; ele volta pro repouso e você fica com o doente”. “Num caso de decidir se troca ou não uma sonda vesical, o médico pode dizer que você contaminou o paciente, mas ele está sangrando, entupiu, você tem que liderar e tomar uma posição. Não dá para esperar o dia seguinte”. Na ausência ou insuficiência de enfermeiros, a decisão acaba por ficar a cargo dos auxiliares: “vocês dizem aqui [no texto de descrição das atividades] que o grau de influência dos auxiliares é mínimo; não é tão mínimo assim não, eles ficam sozinhos na

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ala aos sábados, domingos, feriados, quando temos apenas um enfermeiro por andar; eles detectam problemas, solicitam o médico, questionam prescrições médicas; mesmo pela rotina ele não é um mero executor, tem uma formação, tem obrigação de saber o que está fazendo”.

As relações com usuários constituem freqüentemente um requerimento do posto de trabalho para quem o ocupa (Neffa, 1988). Nas atividades em que, pela pouca dotação de pessoal, formam-se filas de espera, a proliferação de queixas e reclamações por parte de pessoas com graves dificuldades provoca, entre os que os atendem, ora estados depressivos, ora uma certa agressividade. Essa manifestação dos efeitos da carga psíquica é mais freqüente entre os trabalhadores a quem se atribui a função de “barreira” entre grupos diversos (Neffa, 1988, p. 113). Identifica-se no hospital o papel de barreira na enfermagem e uma situação típica é o contato com acompanhantes e visitas. Os auxiliares, em especial, ficam expostos a um grande número de demandas e queixas, podendo responder muito pouco. Os familiares buscavam na enfermagem ouvintes para queixas, soluções para problemas, esclarecimentos sobre a evolução do paciente etc.; como a maior parte das demandas não podia ser atendida pelos auxiliares, e nem mesmo pelo enfermeiro, eles ficavam impacientes, queixando-se da ansiedade das famílias. A resposta mais comum era “procure o médico pela manhã”, que era considerada adequada pelos demais profissionais. Além de informações, os visitantes solicitavam a troca de lençóis, de soro, o fornecimento de água para beber, remédios, abertura ou impedimento ao ingresso de outros. A enfermagem evitava deixar qualquer procedimento relativo aos pacientes para esse horário. Evitava, por um lado, incomodar os visitantes ou permitir interferências em tarefas de cunho técnico. Por outro lado, esse era um momento de pausa, sempre interrompida pelas solicitações de pacientes, acompanhantes e visitas.

As cargas psíquicas estão fortemente relacionadas ao conteúdo do trabalho e às (im)possibilidades de atribuir a ele um sentido positivo. No hospital, lida-se com a vida e a morte. O trabalho é freqüentemente qualificado como uma missão, o cuidar permitindo sentir-se importante socialmente e para cada paciente. Além da falta de tempo para registrar e ler informações, as más condições dos equipamentos (por exemplo, as camas sem grades), a falta de medicamentos e os aspectos impeditivos provenientes da organização do trabalho, tais como a farmácia fechada a noite, contribuem para a insatisfação com a qualidade do cuidado prestado.

Mas vários aspectos da vida são ativamente excluídos das relações hospitalares. Como exemplo, mencionamos a sexualidade. Nas anotações de um plantão noturno havia, num certo dia, treze pacientes em uso de medicação ansiolítica. Segundo um depoimento médico, a administração de tranqüilizantes nessa intensidade é habitual na internação hospitalar e tem como objetivo inibir a excitação sexual dos pacientes. Não nos deteremos aqui nas questões relativas às relações com os doentes, mas certamente a subtração desses aspectos da vida humana exige um gasto de energia psíquica por parte dos profissionais envolvidos.

A ansiedade da equipe de enfermagem era visível quando havia a possibilidade de um óbito antes do término do plantão. Essa situação foi observada com a transferência de um paciente do CTI para a clínica médica autorizada, segundo os médicos residentes, por um “acadêmico”. A conduta estava sendo considerada inadequada pelos residentes. A enfermagem, com base na experiência, previa que o paciente não resistiria e um AE dizia que eles teriam que “fazer o pacote” (as providências após o óbito), pois nenhuma equipe recebe o plantão sem esse procedimento cumprido, o que atrasaria sua saída. Enquanto aguardava a decisão dos médicos, a enfermagem comentava os transtornos práticos que uma morte causaria, bem como o sentimento de pesar daí advindo. Só houve alívio quando o paciente retornou ao CTI.

A atividade cognitiva dos trabalhadores dá lugar a um saber produtivo, um conhecimento prático, geralmente de natureza coletiva, que pode amenizar a carga de trabalho mental (Neffa, 1988). Os trabalhadores da enfermagem afirmam que após a

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passagem pela “Coréia” são capazes de trabalhar em qualquer setor no hospital. Amenizam a afirmativa excluindo o centro cirúrgico. Por outro lado, pessoas deslocadas de outros setores para compensar faltas “não dão conta” das exigências.

Enfim, identificamos que as cargas são muitas, estreitamente relacionadas à organização do trabalho, freqüentemente cargas físicas e psíquicas, confirmando a adequação das queixas à realidade e ao conhecimento teórico.

As tentativas de amenizar tais cargas referiam-se ao repasse de tarefas indesejadas para grupos menos qualificados. Boa parte das resistências são tecidas como defesas corporativas, sem que tenham sido observadas experiências de compartilhamento multiprofissional de decisões, tarefas ou mesmo de espaços.

Comentários finais

O hospital estudado vive paralisias que se nos afiguram estruturais. A organização do trabalho, que fragmenta as tarefas e os trabalhadores, reafirma as características da subjetividade moderna, individualista (ou corporativa) e competitiva que atravessam a rede de relações no hospital. Produzir mudanças nesse cenário é algo difícil, mas necessário a fim de permitir que o trabalho aí realizado possa ser desenvolvido, ampliando suas possibilidades de trabalho em equipe e seu sentido de cuidado do outro.

Certamente podemos falar numa ética ligada ao “bom atendimento do paciente”, noção que ora prioriza a ciência e a técnica, ora o tratamento humano, atencioso, capaz de dar suporte às angústias e às dores do doente e de sua família. Mas as estratégias adotadas pelos próprios trabalhadores para fazer frente à sobrecarga, repassando tarefas pesadas para quem tem menos poder, evitando o enfrentamento de tudo que possa ser postergado – como controlar o “sumiço” dos lençóis ou ler o livro de ocorrências – acabam por prejudicar essa possibilidade de atribuição de sentido e prazer no trabalho. Essas estratégias são de alto custo psíquico e não colaboram em nada para a formação de equipes coesas nem para a produção de novos modos de atuar.

Sem ignorar as dificuldades de transporte ou de múltiplos empregos (não discutidas no escopo deste trabalho), podemos pensar nos freqüentes atrasos como um exemplo de “solução” para o cansaço adotada individualmente e parcialmente suportada pelas equipes de uma mesma categoria – lembremos o misto de irritação e compreensão dos colegas frente aos atrasos. Nesses atrasos: evidencia-se a valorização insuficiente do aspecto coletivo da tarefa de “passagem do plantão”, momento raro em que está prescrita a discussão dos casos por profissionais não médicos, possibilitando a distribuição negociada das tarefas. Com os atrasos, colegas são obrigados a permanecer mais horas, ao fim de plantões já longos, por vezes atrasando-se para outros compromissos. Um outro exemplo de estratégia de defesa está nas “escapadas” do espaço de trabalho, nem sempre negociadas.

Como vimos, são muitos os depoimentos de falta de comunicação no hospital. A cooperação entre os grupos já foi maior, hoje ela é percebida mais freqüentemente dentro de uma mesma categoria. Ocorre também a cooperação – ou pelo menos a manifestação de preocupação – atravessada pelas relações pessoais, por sentimentos de coleguismo construídos por longo tempo de trabalho no mesmo plantão. Em serviços como o estudado, essa forma de construção de solidariedade é prejudicada pela maior rotatividade do pessoal, bem como pelo caráter de castigo que a lotação na chamada “Coréia” pode assumir. As atitudes de cuidado com os colegas existem, como no caso de um trabalhador fazer sua refeição mais rapidamente para liberar um colega, ou mesmo não faltar, ainda que indisposto, para não sobrecarregar os

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demais. Mas estas atitudes se mesclam com sentimentos de injustiça frente à ausência de soluções institucionais para os problemas. Essas estratégias de redução de cargas são ora compreendidas como inevitáveis, ora deflagradoras de reações de irritação entre colegas, que pedem regras claras e punições para os transgressores. As estratégias de gestão não se baseavam na produção de melhores formas de organização coletiva do trabalho, mas em formas de pressão individualizada, como aquela da “folga-prêmio” para os que jamais faltam ou se licenciam.

A divisão do trabalho observada, mais clara e menos flexível no serviço de enfermagem, cria problemas e insatisfações. A idéia de “trabalhar coeso” era vista como ideal poucas vezes atingido. Os diversos segmentos que integravam a força de trabalho no setor exerciam tarefas interligadas com a enfermagem, porém a fragmentação do trabalho dificultava a percepção da totalidade do processo. Os enfermeiros reconhecem que a fragmentação tem sido origem de diversas confusões. No entanto, não surge da equipe mais do que a queixa de uma situação a que parece estar “grudada”. A organização naturalizada do trabalho não tem sido posta em questão. A estratégia, acima descrita, de passar aos menos qualificados parte das tarefas é compatível com a estratégia governamental de terceirização das atividades consideradas estranhas à finalidade do hospital. As empresas terceirizadas são contratadas, em geral, para os serviços de limpeza e de alimentação e vão se estendendo no fornecimento de trabalhadores para postos administrativos e para outros mais próximos da assistência, como o dos responsáveis pelo transporte interno de pacientes.

No cotidiano, as limitações salariais são pouco comentadas, são mais freqüentes as referências às condições gerais de trabalho, às relações intra ou inter-equipes, às relações com os pacientes e suas famílias, aos sentimentos que essas condições e relações suscitam.

Em nossa pesquisa deparamo-nos com a dificuldade de produzir momentos de reflexão coletiva sobre o trabalho, tendo adotado como caminho possível o que chamamos de “grupos-relâmpago”. A concentração em alguns poucos do esforço por produzir melhores condições de trabalho (expressa na queixa de que “são sempre os mesmos que participam”) acaba por gerar cansaço e ressentimento.

A prática corrente, especialmente visível na enfermagem, de tomada centralizada de decisões gera reações ambíguas: reclama-se da impropriedade dessa falta de participação coletiva, mas não há nenhum movimento no sentido de ampliação rotineira da participação, sendo os chamados nesse sentido considerados como propostas de aumento da carga de trabalho já excessiva.

Tentativas de produzir cooperação interdisciplinar ou interprofissional são recebidas com reserva, tendendo a prevalecer a atitude defensiva de cada um naquilo que tradicionalmente lhe cabe. A chamada “equipe multidisciplinar” é palco de disputas corporativas de toda ordem, numa tentativa de saída do mal estar pela estratégia do “cada um por si”. O pouco espaço de participação nas decisões relativas à assistência aos pacientes é disputado dentro de uma organização do trabalho que não permite nenhuma elasticidade. As decisões de ordem geral se dão num espaço-tempo que se espalha fora e dentro do hospital, que também são atravessadas pelas características dos corporativismos e dos interesses privados de diversas ordens. Intervir nesse campo exigiria dos profissionais um alto nível de organização e de clareza de objetivos.

O trabalho que originou o que aqui está relatado foi interrompido antes que a devolução de seus resultados pudesse ser feita de modo satisfatório, principalmente em função de mudanças na direção do hospital, com a conseqüente modificação de prioridades e desmonte da equipe que constituía o Núcleo de Saúde do Trabalhador, apoio indispensável para a face de intervenção que o projeto pretendia desenvolver. A dissertação originada (Osorio, 1994) foi entregue aos trabalhadores, mas isso não pode ser, de modo algum, considerado suficiente. Este artigo poderá, talvez, constituir-se num dispositivo a mais, ainda

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que insuficiente, que pode contribuir para movimentos de transformação que eram desejados e ensejaram a demanda que iniciou a pesquisa.

Referências

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Laurell, A. C. & Noriega, M. (1989). Processo de produção e saúde. São Paulo: Hucitec.

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Rego, M. P. da C. e M. de A. (1993). Trabalho hospitalar e saúde mental: o caso de um hospital geral e público no município do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

Santos, M. L. (1995). O trabalho dos anjos de branco: um estudo em hospital geral público. Dissertação de Mestrado, Coordenação dos Programas de Pós-Graduação de Engenharia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

Endereço para correspondência: [email protected]

Recebido em: 15/12/2004Pareceres enviados em: 15/06/2005

Aprovado em: 22/08/2005

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Desemprego: discurso e silenciamento – um estudo com clientes de um serviço de

aconselhamento psicológico1

Carolina Passos Terra, Joari Aparecido Soares de Carvalho, José Eduardo Assunção Azevedo, Luciana de Albuquerque Venezian e

Sérgio Bacchi Machado

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

O objetivo desta pesquisa foi discutir a relação entre o fenômeno do desemprego e o sofrimento psíquico na atualidade. A pesquisa teve caráter qualitativo e se baseou na análise de entrevistas semidirigidas. Foram entrevistados clientes do Serviço de Aconselhamento Psicológico (SAP) do Instituto de Psicologia da USP. A quantidade de pessoas interessadas em falar sobre a questão e a diversidade de suas origens sociais surpreenderam os pesquisadores. No processo de análise das entrevistas, observamos uma recorrente queixa de impossibilidade de se falar sobre a experiência pessoal do desemprego. Sobre essas queixas, analisamos dois aspectos em tensão: a heterogeneidade das significações da experiência do desemprego e a ideologia homogeneizante sobre a expressão do emprego/desemprego. Construímos três hipóteses para problematizar esses aspectos e para ampliar as possibilidades de exercício de uma psicologia que compreenda a singularidade da experiência psicossocial no âmbito da clínica e da psicologia social do trabalho.

Palavras-chave: Desemprego, Psicologia social, Psicologia do trabalho, Psicologia clínica, Aconselhamento psicológico, Sofrimento psíquico.

Unemployment: speech and silencing – a research with clients of a counseling service

The aim of this research was to discuss the relation between unemployment and psychic suffering nowadays. This research has qualitative approach and was based on semi-directive interviews. The interviewed people were clients from a Counseling Service (Psychology Institute, USP). The number of interested people to talk about unemployment and their several social backgrounds were both outstanding surprises. In the analyze process of interview, different expressed claims about of the social impossibility to talk about personal experience of unemployment were dethetabled. From these expressions, two aspects in tension were analyzed: the different meanings of unemployment experience, and the effects of a homogeneous ideology over the employment questions. This research shows three hypotheses to problematizing these aspects and to broadening the exercise of a psychology that leads to understand the specific psychosocial experience at fields of the clinic and of the social sychology of work.

Keywords: Unemployment, Social psychology, Work psychology, Clinical psychology, Counseling, Psychic suffering.

Até então, pelo menos ele se calava, entregue a esse desespero em que uma condição, mesmo quando julgada injusta, é aceita. Calar-se é deixar que acreditem que não se

julga nem que se deseja nada, e em certos casos é, na realidade, nada desejar.

Albert Camus

Apresentação

recorrência da temática do desemprego nos atendimentos de um serviço de aconselhamento psicológico motivou a realização de pesquisas que pudessem trazer A

1 Pesquisa desenvolvida como estágio sob a supervisão da professora Leny Sato. A proposta inicial do projeto incluía a professora Maria Luísa Sandoval Schmidt. Além dos autores, a equipe de estagiários contava com Marcos Gatti e Mariana Ali Mies. Agradecemos às professoras, aos colegas da equipe e também: à Tânia, à Odete, ao Flávio e ao Samir.

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Desemprego: discurso e silenciamento – um estudo com clientes de um serviço de aconselhamento psicológico

novas perspectivas sobre o assunto. Baseando-nos numa pesquisa desenvolvida por Menezes Júnior et al. (1999) e na nossa própria experiência como estagiários nesse serviço, constatamos que no âmbito dos atendimentos psicológicos a questão do desemprego aparecia como fenômeno que não participava da conformação dos objetos próprios de atenção na prática clínica em psicologia, apresentando-se como fenômeno externo à esfera psíquica. Essas constatações e o processo de familiarização com o tema mobilizaram-nos na direção de refletir sobre a seguinte questão: como o desemprego se comunica com o sofrimento psíquico?

A realização deste trabalho compreendeu três momentos diferentes: num primeiro, mergulhamos no tema e amadurecemos a questão da pesquisa, por meio de leituras de textos e discussões semanais; num segundo, partimos para a pesquisa de campo, na qual entrevistamos clientes do Serviço de Atendimento Psicológico do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (SAP)2 e, num terceiro momento, analisamos os dados.

O mergulho

O primeiro momento da pesquisa foi constituído por leituras, discussões e reflexões. Isso nos permitiu situar a superfície do fenômeno sobre o qual nos debruçávamos e, a cada nova leitura, discussão e reflexão, avançar nesse mergulho.

O ponto de partida foi constituído pelas considerações de Jahoda (1987), no campo da psicologia social, acerca da definição e dos usos comuns das idéias de trabalho e de emprego na sociedade. Reconhecemos aqui uma diferenciação conceitual entre as idéias. O trabalho refere-se a um conceito quase generalizado como uma ação com vistas à satisfação, numa vertente de pensamento, ou como conservação econômica, noutra vertente. O emprego refere-se a uma modalidade de trabalho regulada por uma relação contratual formal, que define direitos e deveres de empregados e de empregadores. Comparativamente com outras modalidades de trabalho, o empregado goza de maior prestígio social por causa de suas garantias legais. Há também uma idéia complexa a respeito de modalidades de trabalho organizadas por outras lógicas, como o trabalho informal e o autônomo, que vêm ocupando maior espaço no mundo do trabalho em face da crise da sociedade industrializada. Esses conceitos e idéias, consciente ou inconscientemente, vem sendo fundamentados por distintos valores e princípios ideológicos.

Essa complexidade dos conceitos alertou-nos para a necessidade de compreender algumas implicações das definições, particularmente nas estatísticas e nos índices de desemprego no Brasil. Recorremos aos dados de dois tradicionais índices de desemprego, a PME3 e a PED4, e notamos que havia uma diferença relevante nos conceitos de desemprego, que se desdobravam em índices muito diferentes, os quais geralmente são divulgados para a opinião pública e sustentam várias estratégias de políticas públicas articuladas a interesses diversos5.

2 O SAP é um serviço de atendimento feito em forma de plantão psicológico. Foi criado em 1968 no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e é oferecido ao público em geral desde então. Ver: Rosenberg (1987) e Eisenlohr (1999).

3 Pesquisa Mensal de Emprego do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) formulada com base na Taxa de Desemprego Aberto da População Economicamente Ativa (PEA), que é uma relação entre “o número de pessoas desocupadas (procurando trabalho) e o número de pessoas economicamente ativas num determinado período de referência” (IBGE, 2002).

4 Pesquisa de Emprego e Desemprego do convênio da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE) e do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE) formulada com base na soma das taxas de desemprego aberto, oculto pelo trabalho precário e oculto pelo desalento na População em Idade Ativa, PIA (DIEESE, 2002b).

5 A respeito das implicações desses conceitos sobre os índices de desemprego no Brasil, conferir o texto A posição do DIEESE sobre a controvérsia das taxas de desemprego no Brasil (DIEESE, 2002a).

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Adiante, com a contribuição de Mattoso (1994), alcançamos as explicações macro-sociais para o fenômeno do desemprego. O problema objetivo é situado numa perspectiva histórica, focalizando a transição entre as macropolíticas do Estado de Bem Estar Social (Welfare State) e da reforma conservadora ou neoliberal. A estrutura de garantias de direitos sociais construída após a Segunda Guerra Mundial, principalmente na Europa e nos EUA, estaria sendo solapada por uma tendência de perda das garantias sociais, individuais e coletivas, nas últimas três décadas recentes, em geral, nos países que aderiram à onda econômica do mercado livre globalizado. Um desdobramento dessas mudanças seria o aumento brutal dos índices de desemprego, em função da alta competitividade internacional e do abandono do caráter sócio-inclusivo da economia.

Continuando o mergulho, alcançamos a dimensão psicossocial por meio das idéias de Seligmann-Silva (1999), que situa o problema do desemprego no campo da saúde do trabalhador. Vimos, então, algumas implicações atuais da reestruturação produtiva do trabalho sobre a saúde do trabalhador, sobretudo os seus resultados psicopatológicos decorrentes da deterioração proporcionada pelo desemprego à sociabilidade.

Tivemos também contato com as idéias da romancista e ensaísta Viviane Forrester (1997), quem aponta enfaticamente a impossibilidade da exigência de trabalho e de emprego, considerando o último um disfarce perverso do primeiro, uma vez que esse trabalho deixou de existir e de ser amplamente oferecido no mundo atual. Um desdobramento dessa realidade para a subjetividade seria uma identidade social fraturada, já que sua constituição historicamente tem dependido da experiência do trabalho.

Nosso mergulho foi concluído com as considerações de Castel (2001), com base no campo da sociologia do trabalho. Ele explora a questão por meio da idéia de que, em uma sociedade salarial, os indivíduos se situariam em zonas de maior ou menor vulnerabilidade ou segurança, considerando o grau de inserção/isolamento social e o de integração/exclusão no emprego. Assim, com a crise atual do trabalho, haveria uma significativa vulnerabilização das condições sociais dos indivíduos.

De volta à tona

Com o mergulho, pudemos perceber que o fenômeno do desemprego aparecia como tema configurado para diversas áreas de conhecimento, tais como a política, a economia, a sociologia, a história. Além disso, percebemos como esse fenômeno, ainda que de maneira restrita, tem interessado também à psicologia.

A psicologia social tem abordado o assunto de forma veemente. Além disso, notamos que cada vez mais se problematiza a postura predominante na psicologia clínica, que, por vezes, tem se colocado à margem das questões sociais, centrando seu olhar no indivíduo isolado da cultura ou restringindo-se a apenas alguns de seus aspectos6.

Se, até recentemente, o desemprego tinha pouco espaço no debate da psicologia clínica, agora, a manifestação cada vez mais intensa e freqüente do fenômeno nos atendimentos clínicos sugere a urgente e necessária revisão da atuação da psicologia, em particular de seus dispositivos teórico-metodológicos. A presente pesquisa pretende contribuir com a comunicação entre psicologia clínica e psicologia social do trabalho, buscando trazer à luz a repercussão da questão do desemprego na dinâmica das relações sociais e intersubjetivas, sobretudo atualmente.

6 Quanto às críticas à abordagem de uma psicologia que disciplina e fragmenta o fenômeno humano ver Schmidt (2004).

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Para tanto, procuramos questionar relações entre a subjetividade e o desemprego que atualmente têm aparecido com grande freqüência nos meios de comunicação e no discurso da população sob diferentes formas, como a idéia de que o desemprego gera necessariamente sofrimento psíquico, especificamente a depressão.

O encontro

Melhor situados quanto ao fenômeno do desemprego, pudemos definir a condução do trabalho de campo. Desde a formação do grupo de pesquisadores no primeiro semestre de 2002, a pesquisa passou por reformulações de objetivos e pelo desafio de constituir uma metodologia apropriada.

Discutimos as possíveis implicações de solicitar que as pessoas falassem, em uma entrevista semidirigida, sobre seus sofrimentos. Cogitamos se que esses encontros poderiam provocar uma indiscriminação com o próprio atendimento prestado pelo SAP, tanto pelos entrevistados quanto pelos entrevistadores, uma vez que alguns entrevistadores eram plantonistas e os entrevistados seriam convidados entre os clientes do plantão.

Para Hermann (1997) e Luna (2001), pesquisa e atendimento psicológico podem caminhar juntos considerando as respectivas implicações da relação. Mas, mesmo assim, nossa opção metodológica foi a de nos restringir à realização de entrevistas sem pretensão psicoterapêutica. Esse recorte metodológico fundamenta a compreensão do procedimento adotado na condução das entrevistas e das análises. Procuramos, assim, garantir que o terapeuta e o entrevistador dos clientes do serviço não fossem a mesma pessoa.

A partir do momento em que a diferenciação metodológica tornou-se efetiva, surgiu-nos outro problema: Como a deixar clara para nossos entrevistados? Como os convidar a participar de uma pesquisa que não interferisse diretamente em seus respectivos atendimentos? O simples fato de os entrevistadores e os psicoterapeutas serem pessoas diferentes não garantia essa diferenciação. Concluímos que o contato inicial deveria ser esclarecedor em relação ao objetivo da pesquisa e o menos invasivo possível.

Optamos pela realização de entrevistas semidirigidas a fim de possibilitar depoimentos pessoais, ricos em narrativas, de modo a expressar a comunicação do entrevistado com sua experiência, convidando-o a um trabalho de memória que envolvesse construção ativa de sentidos (Bosi, 1998). Para isso, formulamos questões simples, que provocaram a reflexão encarnada em narrativas durante as entrevistas; na medida da necessidade de restringir o campo da entrevista e orientar a produção narrativa, sem a intenção de encerrar os objetivos da entrevista por eles, foram propostos temas referentes gerais da pesquisa (Gonçalves Filho, s. d.), compreendidos por: família, história de vida e de trabalho, a questão do desemprego atual e o papel da psicologia e de outras instituições no trato com a questão.7

Nos dias de plantão psicológico do SAP8, deixamos disponíveis fichas aos clientes na secretaria do serviço, no ato da inscrição, contendo o seguinte texto:

Está interessado em participar de uma pesquisa na USP?

7 Nem todos os referentes estão presentes na conclusão deste trabalho, pois houve uma escolha no foco de desenvolvimento da análise que priorizou aspectos destacados das várias entrevistas na coleta de depoimentos.

8 O plantão de aconselhamento psicológico do SAP, na ocasião, era oferecido às quartas-feiras, nos períodos da manhã e da tarde.

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Queremos saber como o desemprego afeta a vida das pessoas. Se você tem alguma coisa a dizer sobre esse assunto e quer dividir conosco, anote o seu nome e telefone nesta ficha e devolva no guichê onde esta lhe foi entregue, sem compromisso. Em breve entraremos em contato.

Estudantes do Centro de Psicologia Aplicada ao Trabalho e do Serviço de Aconselhamento Psicológico.

Não tivemos como critério inicial restringir nossos entrevistados a pessoas em situação de desemprego. Assim, abrimos a possibilidade de contato com aqueles que de alguma forma se sentiam afetados pelo desemprego e quisessem e pudessem se manifestar.

Nossa primeira surpresa se deu justamente quando obtivemos o resultado da distribuição das fichas em três períodos de plantão do SAP: das 50 distribuídas, 11 homens e 27 mulheres ofereceram-se para participar da pesquisa (o que corresponde a aproximadamente três quartos do total distribuído) deixando telefone para contato. O número de pessoas dispostas a participar superou nossas expectativas. Inferimos que há demanda das pessoas para falar sobre o desemprego, de suas experiências pessoais e concretas a respeito do fenômeno, ou seja, falar sobre como o desemprego atravessa suas vidas.

Com as fichas preenchidas em mãos, fizemos contatos telefônicos com os interessados. Esclarecemos o objetivo da pesquisa e a dissociamos do possível atendimento psicológico oferecido à pessoa. Esclarecemos ainda que, caso houvesse permissão, gravaríamos a entrevista para posterior transcrição e análise, visando a publicação de artigo sobre o assunto9. Quando houve concordância da pessoa com essas condições, telefonamos uma segunda vez a fim de marcar data e local10 para a realização das entrevistas.

Norteados apenas pelos temas referentes, realizamos as entrevistas sem um roteiro rígido preestabelecido. Nossa preocupação era possibilitar que a pessoa configurasse o campo da entrevista (Bleger, 1985) a fim de termos acesso ao maior número possível de informações, sempre tendo como norte nosso objeto de investigação. Evidentemente, não nos excluímos desse campo, pelo contrário, a pretensa neutralidade do entrevistador impossibilitaria a configuração do campo por parte do entrevistado. Dessa forma, não apenas o discurso transcrito foi material de análise, mas a entrevista como um todo.

As entrevistas ganharam contornos imprevistos, variando imensamente em forma e conteúdo. Dar conta da diversidade dos assuntos tornou-se um desafio. Para tanto, aproximamo-nos do pensamento de Hannah Arendt (1997), quando ela articula política e identidade social, uma vez que sem a política, compreendida como campo de confrontação de opiniões em presença dos homens, desconheceríamos a:

...recompensadora alegria que surge de estar na companhia de nossos semelhantes, de agir conjuntamente e aparecer em público; de nos inserirmos no mundo pela palavra e pelas ações, adquirindo e sustentando assim nossa identidade pessoal e iniciando algo inteiramente novo (p. 325).

O Olhar

A partir das transcrições das entrevistas, demos início a um ciclo de discussões e reflexões. Por exemplo, revimos uma espécie de “perfil esperado” de pessoas dispostas a

9 Posteriormente, foram atribuídos nomes fictícios aos entrevistados para garantir o sigilo de suas identidades.

10 As entrevistas foram realizadas no próprio Centro de Antendimento Psicológico do Instituto de Psicologia da USP.

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relatar como o desemprego se comunica com o sofrimento psíquico, que não se confirmou, uma vez que pessoas situadas em distintos segmentos do espaço social se dispuseram a ceder seus depoimentos. Tivemos, entre os entrevistados, pessoas empregadas e desempregadas, ex-empresário, ex-gerente, estudantes de curso universitário, ex-operária, profissional de recursos humanos, dentre outros. Podemos dizer que poucas das entrevistas corresponderam a um perfil esperado de alguém de meia-idade, com baixo nível escolar e que perdera ou que tivera dificuldade de se manter em um posto de trabalho11. Alguns de nós terminamos as entrevistas com a sensação de que algo não havia “dado certo”. Comentários como: “Acho que minha entrevista não vai servir...”; e questões como: “Por que essa pessoa quis dar entrevista?”, expressavam uma sensação de desconforto no grupo de pesquisa.

Se levássemos em conta os índices de desemprego do IBGE (2002) e do DIEESE (2002b) constataríamos que esse é um fenômeno generalizado e, portanto, não deveria causar-nos espanto a variedade de pessoas dispostas a serem entrevistadas. Porém, nos surpreendemos. E por que isso? Não imaginávamos haver tanta demanda em se falar sobre o desemprego em uma população tão variada como a que se apresentou. Surpreendeu-nos, também, aparecer essa demanda entre os clientes do SAP, o que corrobora as idéias de Schmidt (2004) a respeito de uma visão estratigráfica corrente na psicologia.

Diante de tal diversidade, a compreensão sobre as formas por meio das quais o desemprego se comunica com o sofrimento só pôde dar-se ao considerarmos os valores, as expectativas, o projeto de vida e os sentimentos de cada um em seu contexto de vida: sua posição relativa no espaço social (Bourdieu, 1996). Por esse motivo, optamos por apresentar os dados das entrevistas caso a caso, e não através de uma leitura temática que incorporasse em cada tema os achados dos diversos casos.

Apresentaremos cinco análises de entrevistas de um conjunto de treze realizadas. Cada entrevista possibilitou-nos entrar em contato com uma vivência peculiar do desemprego. Diante de um material de pesquisa tão rico e extenso, deparamo-nos com a necessidade de nos restringir aos temas predominantes em cada entrevista. Escolhemos das entrevistas, as cinco que nos “impactaram” por sua marca singular na relação com desemprego, permitindo-nos dirigir a pesquisa para a heterogeneidade da questão, embora tenha sido o conjunto das entrevistas que nos direcionou para a formulação de hipóteses no presente trabalho.

Luísa: o trabalho na vida e a vida sem trabalho

Luísa tem 32 anos, é casada, mãe de um filho de cinco anos e está grávida. Ela considera interessante uma pesquisa sobre desemprego, situação que está vivendo, e, por isso, concedeu a entrevista. A sua própria procura pelo atendimento do SAP deveu-se à busca de apoio para lidar com o que ela chama de “depressão” e de “desânimo” provocados pelo seu atual desemprego e pela falta de esperança em conseguir outro emprego satisfatório. “Depois de você tanto procurar e não achar nada, você acaba aceitando que você não consegue nada mesmo, então, pra que eu vou tentar?”.

Dos 13 aos 32 anos ela passou por treze empregos, em áreas e funções diferentes. Nessa trajetória, várias decisões em sua vida foram guiadas pela possibilidade de manter o emprego ou de mudar para outro: “...como eu morava sozinha, né, eu tinha que conseguir emprego rápido porque pagava aluguel, tudo”; “...eu também saí de lá [empresa multinacional de autopeças], né, porque eu tinha entrado na faculdade, tava morando em São Paulo, tinha casado e ficava meio difícil trabalhar em Cotia e aí... eu acabei saindo de lá”.

11 Em certa medida, esperávamos encontrar principalmente pessoas como nas condições de Luísa, cuja análise da entrevista será apresentada adiante.

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Depois de ter o primeiro filho, tornou-se cada vez mais difícil encontrar um novo emprego, ainda mais um que lhe fosse agradável. Essa situação, segundo ela, é fruto de discriminação contra as mulheres no trabalho, sobretudo contra as mulheres que são mães, o que se manifesta tanto por preterimentos em seleções, quanto no próprio trabalho desvalorizado: “...a outra moça que teve filho também, logo depois que ela teve filho, ela voltou, mas... diminuíram as responsabilidades dela. Ela ficou numa posição que teve que acabar saindo”. Luísa se reconhece nessa condição bastante incômoda e fragilizada de vítima de preconceitos.

Com base em experiências pessoais, Luísa critica veementemente também outros abusos contra os candidatos a empregos e os empregados. Ela destaca, por exemplo, baseada nas suas experiências: consultorias de recolocação falaciosas, que oferecem e garantem novos empregos e não cumprem o prometido; seleções capciosas que, além de demasiadamente extensas, com enormes questionários psicológicos, às vezes invadem a vida privada dos candidatos, questionando-os constrangedoramente sobre a vida sexual; exigências exorbitantes e descabidas de formação, que tendem a priorizar o diploma, mesmo “forjado”, em detrimento da experiência de trabalho; empregos em condições precárias, com extensa jornada, sem benefícios, direitos nem perspectiva de melhoria profissional. Segundo ela, “falta consideração” com os desempregados por parte de quem oferece os empregos e, mais grave, “tem gente ganhando dinheiro em cima da desgraça dos outros, né”.

Como grande parcela da população, ela não só tem o emprego como forma de subsistência, o que representa um lugar econômico na cadeia produtiva, mas também como forma de conviver e se relacionar com outras pessoas, o que representaria um espaço de sociabilidade. E, atualmente, diante da desestabilização da certeza do emprego, ela se vê excluída e expropriada da vida em suas várias esferas, não só econômica, mas também psicossocial.

Ela descreve várias das relações sociais que o desemprego afetou drasticamente, referindo-se a um sentimento de profundo “isolamento”. Na família, Luísa e seu marido compunham a renda juntos e com o seu desemprego há uma grande perda para todos: seus planos de estudo foram adiados ou mesmo abandonados; encontros com os parentes são evitados porque o custo, mesmo que em cifras baixas, interfere no balanço econômico da família. Na comunidade, sair com amigos tornou-se inviável, já que não pode pagar as despesas, por exemplo, dividir o custo de uma “pizza”. Essas convivências tornaram-se constrangedoras e motivo de vergonha, o que é agravado porque suas relações pessoais mais intensas eram justamente com os companheiros de trabalho. Cabe pensar se os sentimentos de “depressão” e de “desespero”, relatados por ela, seriam implicações evidentes (sintomáticas) da própria dissolução de vínculos sociais constituintes de sua identidade.

A gente [família] não tem um convívio social com as pessoas do bairro. E, no fim, você acaba sentindo falta desse contato social que você tem no trabalho. Que o trabalho acaba virando uma espécie assim de família, sei lá, né.

E quando você tá desempregado, você perde isso [convívio social], né. Você... eu, por exemplo, às vezes eu não gosto de ligar pras pessoas que estão no trabalho, que são meus amigos, você fala: “ah, mas vou ligar, tá ocupada, tô fazendo isso, e eu tô aqui sem fazer nada”, né. Você acaba perdendo, né, o contato com as pessoas. E pelo fato de você também não tá bem, eu acho que afeta também um pouco o orgulho das pessoas, né. Fala assim: “É, eu também não vou ter nada pra contar, né”.

As perspectivas de trabalho e de vida representam, para ela, um dilema entre o passado, aparentemente seguro e confiável, e um presente que se mostra incerto, caótico e opressor. Mesmo considerando realizar algum trabalho informal para obter renda, ela se interessa ainda em recuperar um emprego bom e bem pago. O seu parâmetro de referência

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para uma possível nova ocupação é, mesmo reconhecidamente raro, o emprego assalariado. O trabalho informal adquire um sentido indesejado, como se fosse uma alternativa sem escolha, paradoxalmente, em uma condição de quase absoluta submissão a empregos precários. Assim, ela sustenta a fantasia de que reencontrar um bom emprego pode significar o reencontro de si mesma.

...você acaba falando: “Ah, agora eu vou qualquer coisa”. E esse qualquer coisa é horrível porque quando você vai trabalhar em uma coisa que você não escolheu, que você não queria, você vai trabalhar só pelo dinheiro porque você precisa, isso é horrível.

Eu não vejo perspectiva de arrumar emprego, não nesse cenário atual, que tão... nesse cenário que os empregadores colocam. Eu não vejo nenhuma perspectiva, mesmo tendo curso, mesmo sabendo informática, eu não vejo perspectiva alguma. Acho que a minha única perspectiva é trabalhar em algum negócio informal, por conta própria, coisa assim.

As questões suscitadas por Luísa revelaram um tom nostálgico e resignado, de quem experimentou um mundo do trabalho constituído de outra forma, por exemplo, tendo até certa facilidade para se deslocar de um emprego para outro durante vários anos, mas que se vê diante de uma série de obstáculos (idade, maternidade, formação, gênero, crise econômica e produtiva etc.) e não encontra espaço para se inserir neste “abominável mundo novo”. Assim, dentre as pessoas entrevistadas nesta pesquisa, sua situação é a que mais se aproxima da idéia propalada no senso comum de como o desempregado estaria se sentindo atualmente.

Maria: o sofrimento e a entrada no mundo do trabalho

Maria tem 23 anos e está cursando o quarto ano do curso de arquitetura. Disse estar muito angustiada com o fato de, em sua idade, não poder trabalhar, pois seus estudos requerem dedicação em tempo integral. Ela acha muito importante ter alguma experiência prática antes de se formar, por acreditar que isso irá ajudá-la a conseguir um emprego no futuro. Maria não considera os “bicos” que faz como experiências de trabalho, sentindo-se em desvantagem em relação aos amigos empregados.

Então, eu pego assim uns servicinhos que são meio bico assim, né, que faz em casa. Eu desenho algumas plantas de arquitetura no computador, mas é coisa que não é sempre que tem, e quando tem é pra ontem, assim. É uma pilha de coisa que eu tenho que passar a madrugada desenhando e tenho que entregar logo... Aí eu, eu... fico me sentindo assim... muito atrasada porque eu tenho muito amigo e amiga que fazem [nome de uma faculdade], que fazem outras faculdades que são meio período, e eles conseguem trabalhar e estudar... E aí eles já são efetivados, ganham relativamente bem, assim, e eu não, assim. Eu fico até preocupada, sabe, quando eu me formar eu não vou ter tido experiência... Mas também, também tem gente na [nome da faculdade em que estuda] que, apesar de ser integral, diz que consegue se virar, assim, diz que consegue um trabalho de noite. Também tem gente que não se importa em trancar a faculdade, mas... Pra mim me incomoda, assim, não poder trabalhar, eu fico ansiosa, assim, pra poder trabalhar.

Essa ansiedade que ela disse sentir parece-nos relativa a um medo do desemprego projetado no futuro como uma realidade possível. Já saiu à procura de estágios, porém, quando conseguia a vaga, acabava desistindo. Essa procura pode ser vista como uma maneira que Maria encontrou para lidar com esse medo, uma maneira de “testar” sua empregabilidade. Parece-nos que ela não quer começar a trabalhar agora, mas sim saber se consegue empregar-se ou não, saber se tem as qualidades necessárias ditadas pelo chamado discurso da competência, o qual lista uma série de características e atitudes que o candidato a uma vaga de emprego deve ter e tomar para caracterizar-se como alguém competente para a

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vaga e, portanto, capaz de preenchê-la. Ela teme ser empregada, também, em função de uma experiência ruim de estágio quando fez curso técnico de edificações, no qual se sentiu massacrada e ficou muito decepcionada.

Tanto que eu não corro muito atrás porque eu sei que quem faz lá na [nome da faculdade em que estuda] e quem sabe mexer no computador... Eu não tenho dificuldade de arranjar emprego, eu acho que eu não tenho dificuldade. Então eu não vou muito atrás, porque eu já fui algumas vezes atrás e a pessoa falou: “Então tá, cê começa”. Aí, eu parei pra pensar que não valia muito a pena trancar [a matrícula na faculdade]. Então eu já não vou muito procurar porque... Eu sei que eu não tenho dificuldade. Então fica assim: “Ah, então por que você veio fazer a entrevista, então?” (...) Mas é minha curiosidade, para ver se eu consigo, se eu vou... E aí eu não acho que eu tenha dificuldades, assim, de encontrar.

Parece-nos que, articulada a essa questão, surge ainda a angústia que sente frente à iminente inserção no mundo do trabalho. Maria disse que não lida bem com mudanças. Pelo que nos contou, sua vida, especialmente no âmbito familiar, foi marcada por muitas mudanças provocadas pela instabilidade com relação ao emprego. Ela contou como a rotina da casa e da família mudou quando, há dez anos, seu pai ficou desempregado durante um período muito difícil, logo após a morte da mãe de Maria.

E aí tinha... Meu pai não gostava que a gente acordava tarde; acordava cedo, então não podia dormir até mais tarde. E eu tinha que levantar, já tinha que arrumar meu quarto, não sei o quê. Então eu não gostava muito não, assim, e ele ficava... Aí ele ficava lendo uns livros, dando uns telefonemas, às vezes ele saía, tal, sempre meio tenso assim, né... Aí tinha que ir no mercado, tinha que fazer compra, essas coisas e ele ficava sempre de olho no preço de tudo, assim.

Outra mudança deu-se quando seu pai viu-se obrigado a mudar de cidade em função do emprego e ela passou a morar com um parente. Contou também um outro episódio marcante, quando seu pai, visando ocupar um cargo melhor em uma empresa, começou a cursar uma outra faculdade; porém, mudanças na organização da empresa inviabilizaram seus planos. Tais acontecimentos parecem ter despertado questionamentos em relação à representação de emprego: ora visto como algo estabilizador e seguro, ora visto como fonte de insegurança e ansiedade diante da imprevisibilidade do amanhã.

Um outro motivo que leva Maria a procurar emprego é a busca do estímulo que não vem encontrando na faculdade. Para ela, o trabalho seria algo que estimula a vida, nesse sentido, o reconhecimento é de extrema importância e é dele que vem sentindo falta.

Notamos que, se por um lado, ela quer trabalhar logo e conquistar sua independência, sair da faculdade que está desinteressante, por outro, vem o medo de não conseguir emprego e de ter que fazer algo de que não goste e de tudo de novo que isso traz. Uma contradição semelhante reside no fato de que, ao mesmo tempo em que diz sentir-se ansiosa para ter alguma ocupação diária, coloca uma série de condições e restrições ao emprego: não gosta de regras, horários, chefe... Como solução para todos esses conflitos, Maria sonha com um trabalho em situação descontraída, oposta às regras e obrigações próprias dos vínculos empregatícios, e que também garanta estabilidade e segurança.

Tem eu e mais dois amigos que a gente trabalha com esses trabalhos que aparecem de repente. Daí a gente trabalha em casa, todo mundo junto, de madrugada, eles ficam tomando cerveja, desenhando... Que não é nada que... E eu acho muito mais legal do que ter que acordar às oito, ir trabalhar, a gente gosta de trabalhar... Então, se eu pudesse, assim, eu acho muito mais... A questão não é assim, estar empregado ou desempregado, de, de... segurança, tal; a questão é eu saber que eu estou trabalhando, assim, tanto que... tanto que quando eu tô trabalhando eu me sinto melhor, mesmo que eu não tenha prova, que eu tô trabalhando, assim, eu sei que eu tô trabalhando.

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A representação de trabalho mais comum é o emprego, representação que permeia o processo de socialização de vários segmentos sociais. O conflito de Maria, apresentado no parágrafo acima, parece surgir na medida em que ela percebe que sua vontade não corresponde a essa representação comum de que o ideal de trabalho é o emprego. Tal representação acaba se colocando como uma imposição sem sucesso, pois dela Maria não se apropria totalmente, permanecendo o conflito. Além disso, ela se vê angustiada diante do quadro de diminuição das ofertas de emprego. Entretanto, essa mesma situação angustiante parece não só abarcar, mas também possibilitar um sentimento de esperança de Maria em realizar seus sonhos:

Outra também, eu, eu não tenho... É que na verdade é assim, se eu tivesse grana, eu trabalharia com... objetos de decoração, assim, faria uma loja dessa, desse tipo, que precisa de casa, precisa ter máquina, ter não sei o quê... Então, eu acho que se um dia eu não conseguisse emprego, nada, eu já tenho vários desenhos, vários projetinhos, eu ia tentar construir, fazer, desenvolver, assim... sozinha mesmo, não sei, que isso é uma coisa que me entusiasma mais, se eu... passaria a madrugada, o dia inteiro fazendo, mas daí ia depender de ter dinheiro também.

Portanto, no caso de Maria, o sofrimento parece comunicar-se com o desemprego na medida em que este último é sentido como uma forte possibilidade para o futuro. Falamos em futuro pois, no presente, Maria acaba não se dispondo realmente a se empregar quando consegue uma vaga de emprego. Isso nos leva a pensar que Maria está sob pressão do já citado discurso da competência, parecendo-nos que, quando busca por um emprego, seu objetivo é apenas saber se conseguiria a vaga, se encaixa-se no perfil do “empregado perfeito”, e não se empregar de fato; e, ao mesmo tempo em que se preocupa com a possibilidade de vir a não conseguir um emprego, Maria parece angustiar-se quando sente que o trabalho que a realizaria profissionalmente e a deixaria feliz não seria nos moldes do emprego, mas sim, o trabalho que realizaria através de um negócio próprio, tendo nesse momento que abrir mão de uma idéia de estabilidade e de segurança ainda contida no vínculo empregatício, idéia que ao mesmo tempo foi e é muitas vezes colocada em xeque na vida de Maria.

Madalena: o descompasso entre a capa e a pessoa

Madalena tem 30 anos e trabalha como técnica de recursos humanos em uma instituição pública. Começou a trabalhar para conseguir atender as suas “vaidades” e conquistar independência financeira. Já trabalhou como babá, recepcionista, secretária, atendente de telemarketing e auxiliar de recursos humanos. Notamos, ao longo da entrevista, que inicialmente o trabalho representava para Madalena uma maneira de ganhar dinheiro e aos poucos foi se tornando uma possibilidade de conquista de um status que lhe conferisse dignidade. Ela conta que passou por altos e baixos, sempre na busca de um emprego em que sentisse segurança e a possibilidade de crescer e passar “...de um estágio de só obedecer a colocar as... idéias em prática”.

Para atingir esse lugar que ela almeja, acredita que é preciso conhecer bem a situação social, o funcionamento do mercado de trabalho e demonstrar, em uma entrevista de seleção, ser aquilo que o selecionador quer, mesmo não sendo. Madalena parece ter desenvolvido a capacidade de ser a entrevistada perfeita, a trabalhadora perfeita dos dias atuais: polivalente, pró-ativa e capaz de suportar as ambigüidades e pressões psicológicas da empresa flexível. Podemos dizer que “vestir essa capa” a despeito do que sente é a estratégia de sobrevivência. É a sua estratégia contra o desemprego. A disparidade entre a “capa” e o que Madalena sente pôde ser percebida durante a entrevista no descompasso entre seu discurso, bastante racional, e sua voz (apenas a voz), sempre em tom de choro contido.

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...mais do que o problema social que a gente vive hoje é a falta de preparo das pessoas que vivem num mesmo país sabendo dessas dificuldades sociais, é não estarem preparados para isso...

...mas o que era percebido é que essas pessoas que estavam assim: tudo, tudo por um emprego, dois meses depois já eram aquelas pessoas que amotinavam, que tinha aquele sentimento meio que grevista, entendeu? [emociona-se] E as empresas têm aversão por estas pessoas, elas preferem aquele pacato cidadão, que tudo está bom. Não tem aumento: “Ah, Maravilha!”. Tem que trabalhar, fazer hora extra: “Ah, Maravilha!” E deixam de reivindicar os direitos. E é esse o tipo... é esse o tipo de profissional que o mercado quer hoje, o não excluído.

Então eu tive escalas crescentes e decrescentes e assumi tudo isso como se fosse uma coisa que eu gostaria que acontecesse na minha vida. Pode ser que foi regressão? Não sei, mas essa é a única forma que eu encontrei de subsistência...

O desemprego representa humilhação para Madalena. É o lugar do “não qualificado”, o que não tem utilidade; é um não-lugar. Ela sofre mais pela idéia de não poder ter algo do que por não ter de fato. Ela descreve a angústia e o esgotamento das entrevistas na busca pelo emprego; são situações marcadas por humilhação, submissão e alteração dos valores de caráter pela competitividade. Tais situações levariam à baixa auto-estima e à dificuldade de desempenhar aquele papel necessário para conseguir um emprego; dificuldade de vestir a “capa” do entrevistado perfeito, do qualificado, do herói sem rosto que as empresas “flexíveis” buscam.

Nossa! Uma angústia fenomenal, apesar de serem períodos pequenos, eu acho que o período que mais me torturou foi o período em que eu estive aqui em São Paulo mesmo. Que foi... Que tinha o dinheiro regrado pra ir, tinha que saber chegar ao lugar e ter um vale transporte pra ir, um pra voltar [emociona-se] e se acontecesse qualquer imprevisto, nossa, eu tava completamente perdida... saber que eu não tenho dinheiro pra comprar um lanche ou saber que não tenho dinheiro pra ajudar nas despesas da casa onde eu estava, que era do meu irmão, todas essas situações realmente afetam psicologicamente. Sem contar que, se você está trabalhando, você tem, consegue manter a sua auto-estima porque você está produzindo alguma coisa; se você perde isso, automaticamente e psicologicamente você já acha que não serve, que você não está no mercado, que você não é qualificado e aí você já vai pra entrevista totalmente negativo... pra desempenhar o seu papel de entrevistado numa entrevista.

É neste âmbito que Madalena vê a importância da psicologia: aquela que irá fortalecer o sujeito para que ele possa “vestir a capa” e conseguir um emprego.

Se todos esses desempregados, mesmo os não qualificados, pudessem ter uma orientação psicológica pra retornar ao mercado de trabalho, eu acredito que pra eles como pessoa e pra eles enquanto trabalhador procurando emprego é assim de suma importância, porque ele vai mais tranqüilo sabendo que ele tem um lugarzinho, mesmo que pequeno, mesmo o gari sabendo que ele pode desempenhar bem a função, que o grande medo é: “será que eu vou conseguir fazer com que eles me arrumem este emprego?”. É essa a neurose que todo desempregado tem: “será que eu vou mostrar?” e aí vem desde a questão estética, né, que algumas se armam feito uma árvore de natal e vão toda enfeitada, outras vão com um decote até aqui e outros vão mostrando o que tem de melhor.

Diferenciando-se desses procedimentos que critica, Madalena apresenta sua própria estratégia de sobrevivência: ser o que o mundo do trabalho demanda, a despeito do que sente que é. Tal estratégia parece-nos marcada pela idéia da determinação pessoal como peça fundamental; tudo depende da determinação, do sujeito, ou melhor, da confiança do sujeito que será avaliada pelo entrevistador.

Que nós somos o que acreditamos ser, eu acredito fielmente nisso, eu acredito que posso, eu poderei. Mas se nem eu acho que eu posso, quem vai achar que eu posso fazer? É tudo tão

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complicado e poucas pessoas conseguem se sobressair, enfim, e crescer o padrão de vida, aumentar o padrão de vida, ou comprar, adquirir bens, enfim. Eu ainda não estou nesse estágio. E eu também não sou essa pessoa bem sucedida, eu também tenho todas as minhas fraquezas e todas as minhas neuras.

Primeiro, a falta de qualificação. Hoje fala-se de desempregados, mas os desempregados não têm qualificação alguma para desempenhar função alguma, estes vão continuar sendo desempregados, mas não considero culpa deles ou talvez sim, ou talvez não. Eu também sou de origem humilde e nem por isso eu tapei os olhos e quis me autoflagelar: “Eu sou pobre, eu sou... coitadinha de mim”.

Se eu vejo que uma pessoa está sendo massacrada e eu tenho como fazer alguma coisa, eu faço e coloco a minha cara a tapa, coloco e seja o que Deus quiser. Mas eu acredito que ela tenha que fazer a parte dela e não eu levantar uma bandeira e ninguém mais fazer nada, isso é como uma pessoa se queima.

Porém, essa estratégia evidencia um conflito que culmina numa falta de reconhecimento de si mesma que ela traduz como “perda dos valores de caráter”. Por um lado, ela critica a necessidade de uma “capa”, critica os critérios dos entrevistadores, mas, por outro, adapta-se por não vislumbrar outra solução.

Entrevistadora: É por causa disso que você veio procurar o plantão?

Maria: Oitenta por cento disso. Eu estava totalmente desiludida, porque eu estava perdendo os meus valores de caráter e isso é uma coisa muito ruim.

E: Como assim, valores de caráter?

M: Porque eu estava me tornando uma pessoa tão mesquinha quanto a pessoa que me fazia mal [chefe] e eu comecei a desejar mal a ela assim como ela desejava a mim. E, na verdade, eu não... Ela não tem que mudar a mim nem eu a ela; ela pode ser ela com todas as suas maldades e eu posso me defender.

Então, eu sempre questionei os critérios, como eles podem, não basta uma pessoa ser maravilhosa e pode ter estudado lá na faculdade, fundação “rintintim-rontontom” e ela é estupenda, maravilhosa ou um coitadinho que manca de uma perna, que tem um problema físico e estudou na Universidade de São Paulo, se o entrevistador quiser a sua estética, ele vai ficar com aquela. E isso é muito triste porque você não vale o que você já aprendeu e eu questiono isso.

Marcelo: estigma e sacrifício

Marcelo tem 33 anos, mora com a mãe e cursa a graduação de uma faculdade pública. Trabalhava em uma agência publicitária como desenhista há oito anos atrás, quando foi despedido em virtude da incorporação de novas tecnologias em programas de computação que reduziram a necessidade de desenhistas por parte das agências. O motivo de sua participação na pesquisa foi, segundo ele, a vontade de contribuir com seu depoimento para um estudo que enfocasse um tema relevante.

Segundo Marcelo, falar de questões como o sofrimento ligado ao trabalho causa desconforto, o que é evitado pelas pessoas. Levantamos a hipótese de que a possibilidade de falar sobre um assunto marginalizado em muitos ambientes tenha influenciado sua decisão de participar. O entrevistado afirma ser discriminado freqüentemente em função de sua condição de desempregado. Seu discurso denota uma vivência de estigma e de sacrifício:

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O desempregado é sempre um rejeitado, ele fica sempre marginalizado. Tem uma estrutura perversa sim, que condiciona o desempregado. Moralmente ele é um cara acusado de várias coisas. É como se fosse uma doença, uma chaga que ele tem, estampada assim na testa. Então, ele é desempregado. Então, os olhares que se dirigem a ele são sempre os olhares para um rejeitado, para um marginal, para uma pessoa com uma doença incurável, como se pegasse aquilo, entendeu? É uma coisa que todo desempregado sofre isso, de todas as camadas. Enfim, é isso... E eu sofri isso muito assim...

Marcelo associa o trabalho na atualidade com dinheiro e sobrevivência. A isso ele contrapõe um espaço de realização pessoal, uma espécie de zona de atividade desvinculada do trabalho onde seria possível a felicidade. Para poder circular nessa área, entretanto, seria necessário um ganho financeiro. Sendo assim, o trabalho se mostra para ele como responsável indireto da realização pessoal, através de uma dissociação prazer-obrigação. Sua falta necessariamente acarreta estagnação da vida.

Com o desemprego, segundo ele, seus amigos se afastaram ou permaneceram “de um jeito estranho”. O constrangimento tornou-se marca desses relacionamentos. Criou-se, assim, uma mescla de abatimento financeiro e moral que atravessou essas relações, que passaram a se estruturar de outra forma. Diante disso, o entrevistado “opta” pela reclusão:

Eu tenho uma grande amiga chamada [nome da amiga]. E ela... A gente sempre sai. Mas, assim, como as minhas condições financeiras não são as melhores, ela sempre acaba tendo que cobrir alguma coisa na despesa que a gente tem, e essa coisa. Isso gera uma situação meio constrangedora porque embora sejamos bastante amigos... e embora na situação dela eu faria a mesma coisa, eu fizesse a mesma coisa... Pra mim fica uma situação constrangedora porque é engraçado, rapaz, você se sente meio impotente, você se sente meio... entendeu? É... como se fosse um peso pra turma, entendeu? Você não se sente livre. Porque, por exemplo, se você está numa situação interessante, você tá trabalhando, você tá tendo uma remuneração razoável mensal, você pode sugerir programas, você pode marcar um churrasco na sua casa, você pode propor programas, você pode... você está num lugar, você pode querer sair pra outro lugar etc. etc. Essa liberdade, assim, você acaba ficando sem liberdade, coisa louca. Sair, então, é uma coisa... Por exemplo, você tem que ficar dando desculpas. Por exemplo, eu queria, mas eu tô sem grana. Eu queria fazer isso, mas eu tô sem grana. Aí começa toda aquela história do outro lado: “não, não tem problema, não tem problema”. Você sabe que isso não é problema, “depois você me paga, depois você me paga”. E a conta vai aumentando e isso gera uma situação desagradável, pra pessoa, não é. Não é muito agradável você ficar nas costas dos outros. Eu pessoalmente não gosto mesmo e até evito muito sair.

Para Marcelo, o trabalho é um campo opressivo. Ao mesmo tempo, ele é necessário a fim de custear outras atividades que, estas sim, corresponderiam à realização pessoal. Há vislumbres de um trabalho vinculado à satisfação, mas ele não é associado a ganhos financeiros. A falta dele é vivida como estigma, que lhe é imposto, e sacrifício, que lhe cabe.

Ermínio: sustentando seu lugar simbólico

Ermínio tem 54 anos, é casado e pai de dois filhos já adultos, ambos com graduação no ensino superior. Todos moram juntos. Durante a entrevista, exprime uma imagem de si: “fui um empresário”. Sua vida profissional começou aos 14 anos, trabalhando como office-boy. Depois, sucessivamente, trabalhou em uma empresa jornalística da família, em uma empresa bancária e em uma empresa de holding. Posteriormente, tornou-se empresário na construtora de seu sogro, quando essa passou a ser administrada por uma sociedade entre Ermínio e dois parentes, lugar que ocupou por vinte e dois anos. Desfeita a sociedade, passou a ser o único

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proprietário da empresa, que faliu após alguns anos. Atualmente, trabalha, na condição de empregado, como vendedor de fixador de próteses dentárias para drogarias. Em sua jornada, enfrentou o problema do alcoolismo, que foi agravado pela falência. Atualmente, o vício está controlado e, segundo ele, marcou-o significativamente.

Ele destacou o desdobramento da mudança de sua condição de trabalho na relação com seus familiares. Ermínio teceu uma crítica à família, referindo-se à época na qual foi empresário. Contou-nos que, quando administrava a construtora, seus familiares esperavam dele algo acima do que ele considerava como suas possibilidades e que se desdobrou para conseguir satisfazer a tais demandas. E é justamente aí, em relação à família, que Ermínio viu alterações importantes após as mudanças vividas. Se antes a vida familiar parecia pautada por uma relação de trocas materiais (viagens, presentes, festas, carros), esses relacionamentos tornaram-se mais afetivos e, em sua avaliação, a família ficou “mais unida”. Atualmente seus dois filhos ajudam a pagar as contas da casa. Ermínio apontou, além dessa, outras mudanças. Uma se deu em sua maneira de ser e se relacionar consigo mesmo:

Existiam muitas barreiras que eu não ultrapassava. Hoje eu sou um cara que... Tô disposto a me tratar de peito aberto, entendeu? Disposto a me despir na frente do analista e falar com ele... Mas isso custou a vida, né? Durante a vida toda sofrendo bastante para poder aprender, essa é a verdade.

Ermínio nos contou como se sente em relação à sua forma de ocupação, que, segundo ele, é de “emprego” e não de “trabalho”. A diferença entre emprego e trabalho, para Ermínio, é que o primeiro se referiria estritamente a um vínculo salarial e o segundo seria “...o mais importante que tem para o desenvolvimento do sujeito”. Sua representação de emprego parece estar ligada diretamente com um fazer que possibilita a manutenção econômica; por sua vez, o trabalho teria a função de “ocupar” e garantir estabilidade de ordem psicológica às pessoas. Essa espécie de “destrabalho” parece estar associado a um tipo de “seqüestro” de seus papéis sociais (marido, pai e empresário), ou seja, a uma suspensão dos papéis com os quais se definia no social.

Apesar de lhe ser penoso ver-se na condição de “empregado” e não de empresário que “trabalha”, Ermínio desabafou drasticamente sobre como uma possível situação de desemprego afetaria seria sua vida:

Eu não gosto do que faço [vendedor]. Eu costumo dizer que eu não nasci para fazer isso, eu nasci programado para ser outro tipo de sujeito, mas eu sou obrigado a fazer.

Eu acho que vocês [da psicologia] são o amparo básico pra o sujeito quando tá no desespero, e o desemprego é um desespero. Eu acho que o desemprego é um grande desespero. Eu não sei o que eu faria hoje se eu perdesse o meu emprego; realmente não posso te dizer. Eu acho que seria o caos total. (grifo nosso)

Ao mesmo tempo, para Ermínio, o desemprego não é um problema social, mas um problema de ordem pessoal, relacionado à postura dos indivíduos em relação às escolhas de trabalho ou emprego, segundo a distinção que ele mesmo faz. Percebemos, assim, como é ambígua a significação que “desemprego” tem para Ermínio:

Eu vejo muita gente querendo ingressar no mercado de emprego por cima, muita gente querendo buscar status logo no primeiro... é aquela brincadeira que a gente ouve: “eu queria muito arranjar um emprego de gerente pra cima”, nunca queria arranjar um emprego de peão pra baixo, né. Então eu sou meio descrente dessas teorias [que explicam o desemprego por causas sociais] que se pregam por aí.

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O emprego, mesmo se configurando como o que chamamos de “destrabalho”, tem sido o único sustentáculo no seu esforço em manter-se materialmente e evitar, ao máximo, “despencar” para segmentos inferiores do espaço social. O entrevistado afirmou que tem mantido um padrão de vida acima daquele possibilitado por seus ganhos, o que pode corroborar essa idéia de uma constante busca pela manutenção de sua identidade de empresário. Mas, ao mesmo tempo em que parece querer sustentar uma posição sem queda de status, ele assume à sua maneira as mudanças ocorridas.

Eu, durante anos e anos, que a minha situação financeira me permitia, eu fiz pra esse... pros meus dois filhos e pra minha mulher tudo que era possível e o impossível, sempre acima das minhas possibilidades.

O que eu ganho dá pra uma família sobreviver, não dá pra manter a minha vida, que apesar de ter baixado a níveis bem... baixo, baixo, ainda continua acima dos parâmetros do que eu tô ganhando, por causa do defeito dos vinte e tantos anos, não é verdade? Então, hoje, eu moro... eu moro de aluguel, mas pago aluguel alto. Eu podia pagar, se eu morasse na periferia, eu poderia morar nas mesmas condições com um aluguel pela metade do preço, tá certo. Eu tenho algumas, alguns... algumas coisas que eu faço, que eu gasto dinheiro e... eu, hum, poderia evitar. Então, na realidade, o seguinte: eu poderia estar sobrevivendo muito melhor hoje, se eu tivesse baixado mais ainda o meu nível de vida. Só que é muito duro você despencar do nível [de empresário] que eu comecei falar pra você do nível que eu tô hoje, tá certo.

O discurso de Ermínio mostrou-se mais organizado ao discorrer sobre seu passado, quando “trabalhava” – momento em que vivia uma “vida de nababo”, que lhe permitia, e à sua família, desfrutar de viagens e confortos materiais diversos –, do que ao comentar sua situação atual. Já quando falou sobre o presente, seu discurso foi fragmentado e confuso. Pareceu-nos que, em alguns momentos da entrevista, tinha por referência a antiga posição, algo que chamamos de “discurso do empresário”. Nesses momentos, a fala de Ermínio pareceu tentar resgatar o status perdido. Seu discurso ganhava um tom objetivista no qual as idéias apareciam em uma perspectiva de ganhos e perdas, como um cálculo de utilidade ou uma negociação. Pareceu-nos que se sentir “útil” proporcionava uma certa satisfação, como se sentisse mais à vontade para se relacionar. Por exemplo, justificando sua atitude pelo pressuposto de que “...uma mão lava a outra”, ele decidiu colaborar nesta pesquisa, como demonstração de gratidão ao atendimento que recebera no SAP.

A ambigüidade no discurso apareceu também, por exemplo, em relação à posição ocupada frente ao entrevistador, que teve dificuldade para definir uma posição clara de onde Ermínio falava. Essa ambigüidade vivida por ele parece estar articulada à dificuldade de situar-se atualmente em algum papel social; uma hipótese é de que muito embora tenha perdido o capital econômico – o que o forçaria a se deslocar para um outro segmento do espaço social –, há o capital simbólico (Bourdieu, 2003) que vem pressionando-o a se manter no “campo empresarial”.

Pudemos perceber que, para ele, essa mobilidade (ou “seqüestro”) de papéis sociais tem trazido espaço para reflexão e mudança da qualidade de suas relações humanas. Parece-nos que mesmo que Ermínio lute para sustentar seu lugar simbólico, o desalojamento provocado pelas mudanças materiais – e dos lugares sociais que ocupa – a que foi submetido abriu-lhe novas perspectivas de questionamento dos seus modos de ser, com os outros e consigo.

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(Des)fecho

A diversidade dos discursos atesta a impossibilidade de homogeneização: como num jogo de xadrez, diferentes posições se entrecruzam e se separam em uma intrincada rede de significações que só podem ser compreendidas mediante a confrontação recíproca. Desse embate de pontos de vista, a singularidade se dá não como dado, mas como possibilidade que se atualiza e pede uma apreensão não substancialista e sim relacional. Um olhar que, usando a metáfora de Frayze-Pereira (1995), exige um “olho d’água” que siga a fuga do peixe em seu próprio elemento. Deixamos que esses discursos nos interrogassem, sendo nossas análises não uma resposta, mas um “diálogo com” essas interrogações.

...às vezes com uma pessoa da área, assim de psicologia, ela tem os métodos que levam a gente a conversar, e isso traz alívio porque é uma coisa que tava guardada só pra você, e aquilo tava te machucando, te ressentindo (Luísa).

Pudemos “dialogar com” Marcelo uma experiência de “aplainamento”, em que vínculos se esgarçam e se dissolvem. Nesse caso, o desemprego torna-se ausência de lugar ou lugar de acusado: quando percebido, o desempregado não escapa ao crivo moral. “Dialogamos com” Madalena, que, por seu turno, traz a experiência de ser uma migrante em busca de emprego que se mistura com o “caos” da cidade de São Paulo e se angustia com os dilemas da disparidade social.

Estranha armadilha desses discursos, que nos falam e calam em um só movimento. Não pretendemos com esse “(des)fecho” desarmar tais falas e as tornar transparentes a alguma teoria qualquer que as “explique”.

Levamos em conta os depoimentos nos quais alguns entrevistados afirmaram sentirem-se impossibilitados de conversar nos mais diferentes ambientes sobre o seu próprio desemprego, real ou potencial. Optamos por puxar alguns fios e, no rastro dos discursos, levantamos três hipóteses.

Uma primeira hipótese: há repressão do discurso sobre desemprego, mas não seria qualquer discurso a ser reprimido. O da mídia, apoiado em números estatísticos, os da economia, da sociologia e mesmo da psicologia encontram-se legitimados, uma vez que remetem a uma cientificidade considerada racional e universal. O que vem sendo freqüentemente tolhido, mesmo nos círculos de amigos e parentes, seria justamente o caráter singular dos discursos dos atores sociais concretos. Dessa forma, o desemprego torna-se, para a pessoa, uma espécie de estigma a ser ocultado devido à falta de espaço em que possa tomar lugar.

Aproximando-nos das considerações de Roudinesco (2000), podemos afirmar que vivemos em uma sociedade “depressiva”, pois a expressão emergente do sofrimento contemporâneo é diagnosticada como depressão e remediada como tal. A subjetividade é relegada a um segundo plano, uma vez que a intervenção profilática visa eliminar os sintomas orgânicos e tem caráter funcional. Se considerarmos que vivemos uma época em que êxito e sucesso são os critérios predominantes de reconhecimento social e até mesmo de (des)humanidade, os discursos “desadaptados” terão de ser excluídos, já que existem apenas em oposição àquilo que é, existindo/resistindo portanto, paradoxalmente, como ausência.

...às vezes eu não gosto de ligar pras pessoas que estão no trabalho, que são meus amigos, você fala: “Ah, mas vou ligar, tá ocupada, tô fazendo isso, e eu tô aqui sem fazer nada, né”. Você acaba perdendo, né, o contato com as pessoas (Luísa).

Ainda sobre a impossibilidade de se falar sobre o próprio desemprego, uma segunda hipótese: uma denegação da experiência dos desempregados como condição da sociedade

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contemporânea. Para tanto, pensamos sobre o conceito de pacto denegativo12 de Kaës (1989), segundo o qual uma formação grupal funda-se na denegação de determinados aspectos seus. Formam-se, assim, zonas de silenciamento e de estranhamento da história, pessoal e social.

Eu não tenho opinião mais. Não tenho opinião nenhuma, sobre alguma coisa, porque pra mim tanto faz (André).13

Uma terceira hipótese: diferentemente de outros papéis socialmente legitimados, o que há de próprio no discurso do desempregado aparece como silêncio. O que quer dizer isso? Considerando que cada diferente papel social instituído possui sua linguagem14, que essa linguagem mantém relação com a atuação desse papel e que o desemprego tem como característica o não exercício do trabalhar (o desemprego visto como uma não-função), pudemos construir a hipótese de que não há construção social de uma linguagem própria do desempregado. Isso quer dizer que não há uma linguagem que dê os contornos para esse fenômeno no que ele tem de pessoal, o que o mantém, muitas vezes, no lugar do não-dito. Fica a pergunta: como falar do exercício desse papel na forma de um discurso reconhecido?

O desempregado é sempre um rejeitado, ele fica sempre marginalizado (Marcelo).

Diante dessa pergunta, uma questão se impõe: será o desemprego, atualmente, um lugar social reconhecido? Por um lado, sim, uma vez que a interrogação acerca do fenômeno há muito deixou de ser se há desemprego para se tornar: “qual o índice de desemprego deste mês?”. Por outro, não, uma vez que constatamos em algumas entrevistas uma restrição ao discurso dos desempregados em alguns círculos. Nessa perspectiva, o emprego está ligado ao lugar social ocupado pelas pessoas e o desemprego poderia ser tomado como um não-lugar15. Mas o desemprego é um não-lugar?

Sem contar que se você está trabalhando, você tem, consegue manter a sua auto-estima porque você está produzindo alguma coisa, se você perde isso automaticamente e psicologicamente você já acha que não serve (Madalena).

Sob a hipótese de que há uma restrição do discurso a partir do lugar do desempregado, algumas questões já se apresentam sem possibilidade de resposta: o que se espera do desempregado? O que essa sua condição demanda? É possível, atualmente, encontrar respostas para essas perguntas (livros de auto-ajuda ou empresas de recolocação profissional, por exemplo), porém, seus formuladores reconhecem o desempregado como consumidor de produtos16 num mercado de “saúde social”, apontando o desemprego como sociopatia e localizando-o no indivíduo. O exercício dessas práticas geralmente não prioriza

12 Kaës (1989) comenta o pacto denegativo: “O agrupamento humano não pode se formar senão mantendo zonas de obscuridade profunda... Chamo de pacto denegativo a formação intermediária genérica que, em qualquer vínculo – quer se trate de um casal, de um grupo, de uma família ou instituição –, conduz irremediavelmente ao recalque, à recusa, ou à reprovação, ou então, mantém no irrepresentado e no imperceptível, o que pudesse questionar a formação e manutenção desse vínculo e dos investimentos de que é objeto” (p. 27).

13 André é um dos entrevistados cuja análise não consta deste artigo.

14 Berger e Luckmann (1973) comentam a construção do discurso: “A linguagem da cavalaria tornar-se-á diferente da que é usada pela infantaria... A cavalaria usará também uma linguagem diferente mais do que no sentido instrumental. Um soldado de infantaria encolerizado pragueja fazendo referência à dor nos pés, enquanto o cavaleiro mencionará as costas do cavalo. Em outras palavras, um corpo de imagens e alegorias é construído tendo por base instrumental a linguagem da cavalaria. Esta linguagem específica de uma função é interiorizada in toto pelo indivíduo, à medida que vai se exercitando para o combate montado. Torna-se um cavalariano não somente por adquirir as habilidades exigidas, mas por ser capaz de compreender e usar esta linguagem” (p. 185-6).

15 Aqui, remeteria a uma posição à margem, lugar de não reconhecimento, não legitimação e não interlocução. Pretendemos, assim, realizar um deslizamento do termo cunhado por Marc Auge (2003), na sua obra Não-Lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.

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uma reflexão crítica, aliena o sujeito de sua experiência concreta e são míopes ou refratárias quanto ao sentido ético e político de sua atuação, sendo muitas vezes apenas um corolário de comportamentos possíveis para aqueles que são definidos por uma falta. O que leva, então, a outra questão: como atuar uma condição cujo caráter central é o não-exercício?

Você não pode... ter uma voz ativa, né... (André).

Em nossa pesquisa, encontramos os mais diversos afetos e significações frente à experiência do desemprego ou à sua iminente possibilidade. Essa diversidade se deu não apenas entre uma e outra entrevista, mas também dentro de uma mesma entrevista. Ficar desempregado pode significar não só uma suspensão da estabilidade econômica, mas também uma exposição de cada um e de todos nós diante de si e da sociedade, colocando certezas em xeque. Entretanto, a ideologia que vem se construindo acerca do fenômeno “espera”17 a depressão como reação natural ao desemprego. Sob a égide de tal ideologia, só vem sendo legitimado o aspecto depressivo da experiência. Mas... e os outros aspectos que tão fartamente encontramos?

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16 É incrível que hoje em dia até os desempregados sejam explorados como segmento de mercado consumidor para o qual há uma produção específica. Isso corrobora mais uma vez a idéia de legitimação dessa expressão, só que pela sua conformação no papel de doente ou deficitário.

17 A questão da esperança traz consigo um elemento de ambigüidade, pois se trata de um estado de motivação para operar a realidade ou de um estado de estagnação e passividade em relação à mesma realidade. Essa questão poderia ser objeto de um aprofundamento dos estudos sobre a questão do desemprego e do sofrimento psíquico.

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Endereço para correspondência: [email protected]

Recebido em: 02/02/2005Pareceres enviados em: 06/06/2005

Aprovado em: 27/06/2005

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Autogestão em construção: uma cooperativa de construção civil do Rio de Janeiro

Elaine Araújo Busnardo1

União Capixaba de Ensino Superior (Faesa)

Buscou-se compreender mudanças nas condições de vida e trabalho possibilitadas a trabalhadores de uma cooperativa de construção civil. Identificou-se, além da busca pela viabilidade econômica frente às limitações do mercado, o significado que essa forma de trabalho adquire. Analisamos os processos de subjetivação representados pelos indivíduos sobre sua realidade ocupacional, a organização do trabalho, as práticas cooperativas, a distribuição dos rendimentos financeiros, além de aspectos relacionados à saúde e à participação social. Apesar das dificuldades em ultrapassar uma cultura do assalariamento, submissão e naturalização dos riscos ocupacionais, foram constatadas mudanças sociais significativas e novas formas de se promover e produzir saúde, do ponto de vista psicossocial. Os resultados mostram que a experiência, além de constituir um meio viável de sobrevivência e de melhoria da qualidade de vida, possibilita o aperfeiçoamento profissional e o exercício da autonomia, da cooperação, da solidariedade e um envolvimento crescente com as questões sociais, políticas e comunitárias.

Palavras chave: Economia solidária, Saúde do trabalhador, Cooperativismo, Economia social.

Development of self-management: a cooperative of civil building in Rio de Janeiro

In this assignment, we tried to understand the changes on life and work conditions that was possible thanks to a enterprise based on the ideals spread by economy of solidarity. We identified, beyond the route ran to guarantee the economic viability, that work becomes with a new mean based on another views of being, of thinking, of doing, of living on/about work. We analyzed the social representations of those workers about their occupational reality, work organization, cooperative practices and the distribution of financial incomes – also about health and social participation. It was detected that, in spite of the difficulties on overcome all the submissive culture and the usual way of understand occupational risks as normal, this alternative has made possible significant social changes and another ways of promote and produce health, particularly on psychosocial point of view. The obtained results shows that this experience beyond constitute a feasible way of surviving and a way of improving life quality, makes possible the professional improvement and the exercise of autonomy, freedom with responsibility, cooperation and solidarity. It was too noticed that there was a growing involvement with socials, political and communities issues.

Keywords: Economy of solidarity, Worker’s health, Cooperative movement, Social economics.

Introdução

s estatísticas do IBGE2 mostram que, nos anos 90 e início da década posterior, houve queda crescente do emprego e um aumento da sub-contratação de trabalhadores

temporários. Cada vez mais, grande número de empresas tende a reduzir sua força de trabalho ou a precarizar suas formas de contratação. Ao mesmo tempo, forma-se um núcleo mais estável de mão-de-obra com exigências de maior qualificação, flexibilidade e polivalência, surgindo um número crescente de trabalhos precarizados. Muitas empresas vêm adotando, inclusive, formas de trabalho informal e mal pago, ressaltando-se o trabalho em domicílio, muitas vezes realizado por mulheres, com ajuda de crianças.

A

1 Psicóloga pela Universidade Federal do Espírito Santo. Especialista em Psicologia Jurídica pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Mestre em Saúde Pública (subárea Saúde, Trabalho e Ambiente) pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz. Professora do curso de Administração do Campus III da União Capixaba de Ensino Superior (Faesa).

2 IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. www.ibge.org.br. Acesso em janeiro de 2004.

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Aliada a todos esses fatores, coloca-se uma crise das políticas sociais, na qual o Estado, em sua dificuldade para atuar na intermediação dos mercados, também não consegue dar conta das conseqüências dos processos de empobrecimento e desemprego estrutural, limitando-se a ações pontuais, assistencialistas e paliativas que não são suficientes para atender à grande parte dos indivíduos que delas necessitam.

Concordamos com Lisboa (1999) ao afirmar que hoje vivemos em uma sociedade de trabalhadores sem trabalho. Diz-se isso porque somos construídos em torno da ética do trabalho, porque o temos como princípio fundamental e organizador da vida – vivemos para trabalhar. É pelo exercício de uma profissão que as pessoas adquirem identidade social. Entretanto, esse mercado se encolhe como resultado tanto do surgimento de novos padrões de organização produtiva (terceirização, flexibilização, com a conseqüente precarização das relações de trabalho), quanto do advento de novas tecnologias e conseqüente redução na quantidade do trabalho socialmente necessário (Lisboa, 1999).

Em geral, esse contexto tem levado ao desenvolvimento de formas alternativas de geração de emprego e renda: algumas individuais, outras coletivas, muitas sendo empurradas para a informalidade ou para a ilegalidade; outras assumindo formas de organização que divergem da lógica exploratória e autoritária, ainda predominante no mundo do trabalho. Uma dessas formas coletivas é conhecida como economia solidária.

O termo economia solidária designa atividades econômicas centradas sobre a necessidade de atender às demandas locais. É uma tentativa de autogerar riquezas para suprir os problemas sociais (França Filho, 2002). A forma mais representativa de economia solidária é o cooperativismo, cuja doutrina é regida por sete princípios básicos: adesão livre e voluntária; controle democrático; participação econômica dos sócios; autonomia e independência; educação, treinamento e informação; cooperação entre cooperativas; preocupação com a comunidade.

De todos esses princípios, a característica que fica mais marcante no cooperativismo é a idéia de autogestão que, segundo Albuquerque (2003), pode ser definida como o conjunto de práticas sociais que se caracteriza pela natureza democrática da tomada de decisões que propiciam a autonomia de um coletivo. Isso significa dizer que uma empresa autogerida é uma organização produtiva na qual o poder de decisão, formalmente, pertence igualmente a todo o coletivo de trabalhadores. Também o ganho líquido é dividido entre os trabalhadores segundo regras estatutárias ou acordadas em assembléias gerais.

Neste artigo, apresentamos uma pesquisa realizada junto à cooperativa Constrói Fácil, empreendimento escolhido em função de sua trajetória e participação junto a movimentos e mobilizações locais e regionais em favor da economia solidária. Trata-se de uma cooperativa de prestação de serviços em construção civil localizada na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Sua forma de trabalho consiste em parcerias junto a investidores externos para a construção de casas ou outros tipos de instalações prediais. Em seus acordos, cabe ao investidor a aplicação de capital para a compra do terreno e do material de construção e para remuneração da mão-de-obra; à cooperativa cabe a elaboração do projeto de construção, o fornecimento de mão de obra e a execução do trabalho. Ao final da obra, os lucros decorrentes da venda do imóvel são de direito do investidor, cabendo a ele prover o saldo combinado para a remuneração dos trabalhadores.

A construção civil é, sem dúvida, uma categoria caracterizada por um processo de trabalho altamente desgastante, em geral formado por mão-de-obra abundante, mal paga e com baixo grau de instrução. Nos canteiros de obra, é comum a ocorrência de acidentes, inclusive fatais. Pesa sobre esses trabalhadores o constante medo do desemprego, já que a grande maioria é constituída por mão-de-obra terceirizada. Muitos deles não possuem contrato formal, ficando sem proteção social, submetidos a condições deploráveis de trabalho, em total desrespeito às cláusulas elementares da convenção coletiva da categoria. Dentro

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dessas condições de precariedade, destacam-se a irresponsabilidade e a omissão das empreiteiras, a alta rotatividade, o uso de alojamentos precários e improvisados, condições insalubres de alimentação e de trabalho e horários excessivamente estendidos, sem um acompanhamento salarial compatível.

Em função de todas essas variáveis, julgamos ser essa cooperativa, a Constrói Fácil, um campo fértil para a produção de estudos sobre economia solidária e saúde do trabalhador, já que a relação entre construção civil e economia solidária é carregada de desafios. Se o setor de construção civil caracteriza-se por todas as precariedades acima citadas, o referencial da economia solidária prega exatamente o seu oposto: pressupõe-se que os trabalhadores tenham controle sobre o seu próprio processo de trabalho, influenciando nas decisões a ele relativas; também não há o medo constante de ser demitido, já que esses trabalhadores são donos do seu próprio negócio; em relação aos direitos trabalhistas, a lei estabelece que esses indivíduos devem se registrar e pagar INSS como autônomos, fazendo jus a algumas garantias previdenciárias. Por outro lado, há um aumento das responsabilidades, já que caberá a todos a responsabilidade tanto pela execução, quanto pelo planejamento e pelas decisões referentes à cooperativa.

Percorrendo uma cooperativa de construção civil: a condução do processo investigativo

Inseridos no cotidiano da cooperativa Constrói Fácil, buscamos investigar o que havia de novidade: o que uma experiência de economia solidária podia trazer de diferente para a organização do trabalho e como esse diferencial poderia possibilitar e promover a saúde desses trabalhadores em questão, do ponto de vista psicossocial. Ao falar em transformações da organização do trabalho, falamos de um redimensionamento das formas de estar no trabalho e também da possibilidade de agregar outras habilidades e de outras formas de ser, pensar, dialogar e comportar-se no trabalho e nas outras esferas da vida social. Acreditamos que essas transformações podem transcender a esfera individual e instituir novas relações com o coletivo, que se expressam através de uma mudança de atitudes junto à família e aos diversos processos decisórios e criativos do trabalho, da comunidade e da vida política em geral.

Nesse sentido, a nossa hipótese era a de que os referenciais da economia solidária poderiam apontar para uma desejada emancipação social dos sujeitos cooperados. Por emancipação social designamos o processo ideológico e histórico de liberação de comunidades políticas ou de grupos sociais, da dependência, da tutela e da dominação nas esferas econômicas, sociais e culturais. Emancipar-se significa livrar-se do poder exercido por outros, conquistando, ao mesmo tempo, a plena capacidade civil e de cidadania no Estado democrático de direito.

Em nosso percurso, trabalhamos com os conceitos de produção de subjetividades e singularização, além do conceito de emancipação social, já especificado anteriormente. Quando dizemos produção de subjetividades, estamos querendo apontar para o seu caráter não natural, isto é, para os processos históricos de montagem das formas subjetivas. Nessa perspectiva, a subjetividade não se confunde com algo transcendente, algo já-dado. Referimo-nos à maneira pela qual, a cada momento da história, prevalecem certas relações de poder-saber que produzem objetos, sujeitos, necessidades e desejos (Barros, 1999).

Em nossa pesquisa, estivemos constantemente nos remetendo às diferentes possibilidades de organização do trabalho que podem ser efetivadas através da economia solidária. Assim, entendemos que o mundo atual institui uma forma de ser sujeito que

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captura modos de existir, tornando-os quase homogêneos. Contudo, nossos corpos, quase que invisivelmente, estão sempre instituindo modalidades de singularização à revelia dessa homogeneidade. Nesse sentido, a singularização constitui-se como um movimento que, através do desejo, não nos deixa em paz; são movimentos de protesto do inconsciente contra esse processo de homogeneização. Trata-se da afirmação de novas possibilidades de existência.

Competição, isolamento, solidão, exploração e passividade dos indivíduos são características disseminadas pelo capitalismo ocidental. Tais características influenciam os indivíduos, mas não determinam uma “natureza” ou “essência” que assim o configure. Tais características são produzidas historicamente dessa forma. Isto é, houve uma série de situações que convergiram para a construção desse modo de ser indivíduo, desse modo de subjetivação. Porém, se esse indivíduo é produzido historicamente e não a priori, é possível que ele se diferencie e, de fato, impomos resistências a esse modo dominante. E são essas resistências que caracterizam os movimentos de singularização.

Partimos da hipótese inicial de que a economia solidária abre caminho para um possível processo de singularização dos indivíduos através da conformação de novos processos de subjetivação. Através dela afirmam-se outros valores e, conseqüentemente, outros sujeitos. Acreditamos que há algo que se passa nesse meio de convivência que permite o despertar de novas idéias e de novos discursos. Essa dinâmica é o que chamamos de processos de subjetivação.

Para este trabalho, os interesses foram guiados no intuito de entender como funciona o processo de trabalho em empreendimentos de economia solidária, o que é diferente, o que é novidade e, principalmente, o que pode ser encarado como uma ruptura capaz de instituir resistências à conformação de indivíduos generalizados e de promover a emancipação social desses trabalhadores, produzindo saúde em seus aspectos mais amplos.

Este estudo partiu da perspectiva do campo da saúde do trabalhador, cujo objeto de estudo é o processo saúde-doença dos grupos humanos, tendo o trabalho como organizador da vida social, espaço de dominação e submissão dos trabalhadores pelo capital, mas, igualmente, espaço de resistência, de constituição e do fazer histórico. A saúde do trabalhador busca a explicação sobre a relação saúde-doença nos trabalhadores, por meio do estudo dos processos de trabalho, de forma articulada com o conjunto de valores, crenças, idéias, as representações sociais e a possibilidade do consumo de bens e de serviços na moderna civilização urbano-industrial (Mendes & Dias, 1991).

Partindo do histórico narrado pelos trabalhadores da cooperativa Constrói Fácil, interessamo-nos por sua origem, pelos passos que vêm sendo dados, pelas dificuldades enfrentadas, pelos obstáculos ultrapassados, por suas expectativas futuras e pela forma como têm se constituído enquanto um empreendimento autogestionário. Entendendo ser esse um difícil processo de construção e que existem barreiras ligadas a uma cultura de assalariamento e submissão, utilizamos o discurso desses sujeitos – que é uma amostra de como percebem essa experiência que vivenciam – para chegar ao foco dos nossos questionamentos. Nesse percurso, temos plena ciência de que esses indivíduos são diferentes e que elaboram percepções distintas, que variam conforme suas histórias de vida, os contatos que tiveram, o tempo que possuem na cooperativa, a forma como encaram as diversas situações etc.

Como instrumento de coleta, utilizamos entrevistas individuais ou coletivas semi-estruturadas, marcadas conforme interesse e disponibilidade dos cooperados, e a observação participante do cotidiano do trabalho. Todas as entrevistas foram gravadas e realizadas dentro de seu próprio ambiente de trabalho, tendo sido dificultadas pelo alto nível de ruídos presente nas obras.

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Encontros e desencontros no processo cooperativo: resultados e análise

Em sua maioria, os entrevistados são pessoas que nunca tiveram qualquer experiência anterior com o cooperativismo, estando ainda num processo de construção desse entendimento e dessa forma de ser trabalhador. A maioria do grupo é formada por pessoas com baixa escolaridade que trabalharam quase que exclusivamente no campo da construção civil. Muitos deles afirmam gostar do que fazem, embora poucos formulem planos de continuar trabalhando em obras por muitos anos.

O grupo Constrói Fácil tem um regimento interno, que foi escrito ao longo de dois anos de discussões e de deliberações até sua efetiva aprovação em assembléia geral. Esse regimento determina os objetivos da cooperativa, suas normas gerais de funcionamento, regras para controle de gastos, entrada e saída de associados, formas de pagamento dos associados, regras de administração, dentre outras normatizações. De acordo com esse documento, todas as funções de planejamento da cooperativa devem ser realizadas por comissões, sendo obrigatória a participação de todos em pelo menos um desses grupos de trabalho. São três os grupos: comissão de obra e segurança, comissão de formação e mobilização e comissão de finanças.

O regimento interno também prevê a composição de um conselho deliberativo, responsável pela tomada de decisões, pelas providências previstas no documento e pela representação dos cooperados junto aos investidores, às outras cooperativas e às demais associações ou movimentos com os quais mantém relações. Em caso de decisões não previstas no regimento, devem ser convocadas assembléias gerais. O conselho deliberativo é eleito em assembléia, podendo qualquer membro associado convocar uma reunião extraordinária para contestar alguma decisão ou propor novas sugestões. O conselho deliberativo exerce sua função sem autoritarismo, incentivando a participação e a responsabilidade. Não há relações hierárquicas no grupo, posto que todos são donos da cooperativa. Há, entretanto, divisão de funções – o que diferencia a atividade e o pagamento semanal dos membros. Tal pagamento é denominado retirada e é calculado de acordo com a função exercida e com o número de horas trabalhadas no período.

As funções desempenhadas são: coordenador, profissional (pedreiro, eletricista, bombeiro etc.), meio-oficial, aprendiz ou ajudante. Em geral, existe a possibilidade de aprendizagem de novos ofícios, com chances de troca de função. Os próprios colegas se ajudam e ensinam uns aos outros, contribuindo para uma maior aprendizagem no trabalho. Também existe a possibilidade de ascensão dentro da cooperativa. Há uma espécie de plano de carreira, que começa com a função de ajudante de pedreiro e pode terminar no papel de coordenador de obra. À medida que se cresce nesse patamar, aumenta o valor das retiradas financeiras. Os colegas ensinam aos outros suas atribuições e, conforme aparecem oportunidades, as pessoas vão assumindo novas funções. O critério para ascensão baseia-se na capacitação e na necessidade do trabalhador. A necessidade é avaliada pelos seguintes fatores: número de integrantes da família, situação domiciliar, caso de doença em família etc.

É interessante notar que, nessa cooperativa, convivem duas formas de organização social: uma antiga, proveniente das corporações de ofício (a especialização e a aprendizagem das funções, a ascensão conforme aprendizagem, o apoio mútuo e a não utilização de máquinas etc.) e outra moderna, advinda da revolução industrial e da revolução francesa (o cooperativismo). A primeira forma de organização, predominante até meados do século XV tinha por objetivo assegurar o “justo preço” por seus produtos e o status social de seus membros. A sustentação desse preço era, entretanto, incompatível com a busca incessante do aumento da produtividade, característica do capitalismo. A fidelidade às tradições, a conservação dos hábitos e costumes, a manutenção da hierarquia social eram valores

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supremos nas corporações de ofícios, aos quais se procurava adaptar a prática. Esse mundo foi rudemente abalado no século XV pela descoberta das vias marítimas da Europa à América e ao Extremo Oriente, que deu enorme impulso ao comércio mundial, abrindo ao capital comercial perspectivas até então inimagináveis de desenvolvimento.

A outra forma de organização que coexiste nessa cooperativa é moderna, advinda da revolução industrial e da revolução francesa: o cooperativismo, no qual se estende o poder de decisão a todos os trabalhadores, aumentando o seu grau de liberdade em relação ao trabalho. A organização semelhante à corporação de ofício organiza o trabalho, a outra organiza a política interna e a gestão.

Valorização do trabalho

Uma das formas que utilizamos para entender os valores atribuídos ao trabalho na cooperativa foi pedir aos cooperados que comparassem sua situação atual de trabalho com a que teriam se estivessem trabalhando para uma empresa. Apresentamos abaixo as principais constatações por eles declaradas.

O aspecto positivo mais apontado pelos cooperados foi a liberdade, a possibilidade de auto-regular seus horários e de faltar quando necessário. Segundo os entrevistados, essa liberdade não compromete a produtividade e até ajuda a aumentá-la, já que quanto mais se trabalha, maior é a retirada de cada trabalhador.

Não tem dinheiro que pague essa liberdade que a gente tem de trabalhar. Não tem que aturar patrão. Na empresa, se você faz uma coisa errada, você está ferrado. Aqui a gente tem o direito de errar e de consertar o erro (...) Quem já sentiu o gostinho de tomar decisão, de ter liberdade, é difícil acostumar com outra coisa (tesoureiro, membro do conselho deliberativo).

A essa maior liberdade alia-se a um conseqüente aumento das responsabilidades, conforme mostrado na fala abaixo:

Quando contratado por uma empresa você está realmente livre de trabalho no final do expediente; acaba o seu horário e não precisa mais pensar em trabalho. Na cooperativa não: as preocupações são levadas para casa, pois há decisões a serem tomadas todos os dias (tesoureiro, membro do conselho deliberativo).

A ausência da relação de subordinação a uma chefia também foi apontada como fator positivo, mesmo com o aumento da responsabilidade que essa situação impõe. Por outro lado, a falta de controle hierárquico possibilita alguns desperdícios e abusos por parte de determinados colegas que deixam o tempo passar trabalhando pouco e comprometendo a produtividade do grupo.

Aqui o patrão é você mesmo. Aí você experimenta a sua norma (coordenador de obra).

Entre alguns membros mais antigos da cooperativa, apareceu uma associação do trabalho com o termo criatividade, um descobrir-se criativo. Essa criatividade, segundo eles, torna-se especialmente necessária no momento de organizar reuniões de formação e de explicar certos assuntos durante as assembléias e reuniões deliberativas.

O que o cooperativismo significa para a minha vida? (...) Criatividade. Isso porque toda hora eu tenho que buscar uma coisa nova para melhorar, pra explicar melhor para os outros, para

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ajudar a crescer a cooperativa (membro do conselho deliberativo e da comissão de formação).

Dentro desse mesmo grupo de trabalhadores, predominou o discurso da mudança, por exemplo:

O trabalho mudou a minha vida (...) Eu hoje sou uma pessoa melhor (pedreiro).

Outros trabalhadores comparam sua vivência laboral com o emprego numa empresa privada e mencionam a restrição de direitos e o valor das retiradas financeiras. Segundo eles, a retirada financeira pela cooperativa é mais alta do que aquela que teriam acesso caso estivessem vinculados a um emprego formal. Por outro lado, na cooperativa, perdem alguns direitos oferecidos quando se registra uma carteira de trabalho. Esse fato, porém, não é por todos considerado como um fator de perda, já que muitas das empresas da construção, mesmo quando contratam, não assinam a carteira do operário.

Para alguns trabalhadores, as comparações parecem se concentrar em percepções materiais e ligadas à estabilidade ocupacional, com ênfase para o seu potencial de sustento, ganhos financeiros e sobrevivência. Nesse sentido, não vêem grandes diferenças entre estar na cooperativa ou em outro local de trabalho.

Aqui a gente ganha mais do que numa firma. Também aqui não falta trabalho (...) Não ter patrão é bom porque tem mais liberdade. Mas é também ruim porque não tem vale transporte nem refeição. Mas no final do ano é melhor por causa da divisão do dinheiro (meio-oficial).

Alguns trabalhadores apontam como diferencial da cooperativa o contato tido com os colegas em momentos distintos do horário de trabalho, como durante as reuniões e assembléias ou durante os eventos de confraternização eventualmente organizados pelo grupo. Também foi vivamente apontada a ênfase na solidariedade priorizada pela cooperativa, através de suporte a projetos sociais e de contribuições financeiras a um fundo de solidariedade, que serve aos próprios cooperados em caso de necessidade.

Numa empresa, tiram o couro todo dia. Se você fica doente ninguém ajuda e te mandam embora. Aqui a gente paga o dia de quem tá parado. Tem solidariedade (servente).

Em geral, a principal vantagem que eles realçam é que são os donos da cooperativa, sentindo-se responsáveis por ela. É interessante notar que, em nenhum momento, houve reclamações sobre a organização do trabalho – fator indispensável a ser considerado nos estudos sobre satisfação no trabalho e saúde do trabalhador.

Entre alguns cooperados, ao compararem seu trabalho na cooperativa com uma experiência de trabalho assalariado, foi freqüente a associação entre assalariamento e escravidão, perceptível claramente no discurso abaixo:

Você deixa de ser um boneco para ser alguém (...) O pessoal que não toma decisão não é ele mesmo. Acha que tem que imitar o outro para ser alguém (servente).

Em todos os entrevistados foi visível o discurso orgulhoso sobre a qualidade do serviço que prestam, constantemente reconhecida pelos proprietários das obras concluídas. Acreditam em seu potencial (enquanto um grupo de trabalhadores que se esforça por fazer um bom serviço) e na possibilidade de um grande crescimento e de desenvolvimento da cooperativa. É perceptível também uma forte relação de pertencimento e posse. Eles percebem que a cooperativa é uma conquista e que essa conquista é fruto do seu trabalho.

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Você veio pesquisar a gente porque a gente é bom, né? (eletricista).

É um orgulho ter essa cooperativa em pé (coordenador de obra).

Cabe uma ressalva percebida em todas as entrevistas. A grande maioria dos cooperados diz que gosta do trabalho que exerce, mas são poucos aqueles que pretendem continuar no ramo da construção civil por mais alguns anos de sua vida. Foi grande o número de associados que expressou desejo de mudar de área, migrando principalmente para o comércio. Dentre os motivos de desgosto com a construção civil, destaca-se o tipo de trabalho, que é pesado e arriscado, além de pouco valorizado, haja visto os baixos salários pagos a essa categoria pelo mercado formal.

O gari ganha igual ao salário de um coordenador. Obra é um trabalho muito pesado e não é valorizado. Tem trabalho leve que tem melhor salário (coordenador).

Predomina também uma romantização das possibilidades de constituição de um negócio próprio. Sem conhecer as altas estatísticas de quebra e endividamento da grande maioria dos empreendimentos individuais recentes, eles acreditam no enriquecimento rápido se investirem em um empreendimento individual, especialmente um bar, um restaurante ou uma pequena loja de artigos gerais.

Vale frisar que esse sonho de conseguir montar um comércio é contraditório com o próprio discurso do cooperativismo. Por um lado, o trabalhador diz que está tudo bom, que está satisfeito na cooperativa, que aprova a liberdade e a autonomia no trabalho; por outro, ele quer ser dono de um empreendimento onde sujeitará e subordinará outros trabalhadores, onde deverá se guiar por princípios do mercado competitivo capitalista. Porém, mesmo diante dessa contradição, mostram-se algumas dimensões da busca pela emancipação social, do desejo de se autogerir, de não necessitar de qualquer tipo tutela ou dominação nas esferas econômicas, sociais e culturais.

Mudanças

Muitos acreditam que a experiência do cooperativismo possibilitou mudanças diversas em suas vidas. Alguns relatam que a influência do grupo ajudou a efetivar melhorias no trato individual com a família e com outras pessoas, pois aprenderam a ser mais pacientes, a ouvir o outro e a colocar-se em seu lugar. Isso é explicitado na fala abaixo:

Aprendi a me relacionar melhor com as pessoas. Essa liberdade ajuda. (...) As pessoas acreditam no potencial e ensinam quando a gente pergunta (meio-oficial).

Outros relatam que passaram a demonstrar maior interesse por assuntos coletivos, sociais, políticos e alguns, inclusive, filiaram-se a partidos políticos após um contato maior com a cooperativa.

Acho que a formação e as comissões ampliaram minha mente (pedreiro).

Eu participo. É legal. (...) Gosto das reuniões sobre política. Agora estou me interessando mais. (...) A gente vai sabendo das coisas... (servente).

Entretanto, a maioria afirma que qualquer mudança só ocorre se houver iniciativa e interesse individual. Criticam alguns colegas por não se interessarem pelos assuntos da cooperativa e por limitarem suas preocupações a questões puramente financeiras.

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Para quem quer, a vida muda. Mas tem gente que não enxerga que é uma cooperativa que é nossa, acham que é uma firma. Quando você leva a sério, muita coisa muda (carpinteiro).

Nas entrevistas, foram ouvidos relatos interessantíssimos de mudanças propiciadas pela atitude paciente e tolerante do grupo, como abandono do alcoolismo e o estabelecimento de melhores relações familiares e profissionais. Também são visíveis as demonstrações positivas de auto-estima desenvolvidas com o auxílio do grupo.

A realidade lá era oitenta por cento de alcoólatras, totalmente sem controle. Tinha pai de criança que era alcoólatra, que batia muito nos filhos e que, quando ganhava comida escondia, para não dividir com eles (Arnóbio, coordenador geral e membro do conselho deliberativo).

A gente aqui começa a ter a idéia de ajudar os outros (...) A gente conhece gente interessante, outras histórias. Isso envolve (...) Fico mais solidário. Isso é bom e importante (pedreiro).

Já fui bebedor. Hoje parei. Acho que o trabalho ajudou (pedreiro).

Arnóbio, fundador da cooperativa, considera que, do ponto de vista financeiro, perdeu muito ao optar pela cooperativa. Isso porque, se tivesse mantido sua sub-empreiteira, estaria ganhando muito mais dinheiro hoje. Entretanto, ele acredita que fez a escolha correta, pois viu transformações fantásticas ocorrerem ao longo desses anos, referindo-se a mudanças de atitudes e modos de vida que, segundo ele, foram possibilitadas pela solidariedade, pela tolerância e pela compreensão do grupo.

Eu diria que na parte financeira foi um fracasso total. Eu tinha uma sub-empreiteira desde 1976 e hoje eu estaria ganhando muito mais. (...) Aí vem a grande riqueza, o grande patrimônio. Apesar de viver numa sociedade egoísta, você conhece pessoas maravilhosas. A gente viu acontecer transformações incríveis nas pessoas. Este é um patrimônio que ninguém tira (...) Tudo o que eu vi acontecer é fantástico. É uma minoria, infelizmente, mas cada história é de uma riqueza imensa (Arnóbio).

Grande parte dos cooperados acredita que a nova experiência proporcionou uma mudança de atitudes e pensamentos através de discussões em grupo e do contato com lideranças fortes. Contam que passaram a assumir uma postura mais crítica e cooperativa diante dos problemas sociais, além de desenvolver maior autonomia e autoconfiança para a tomada de decisões.

Acho que amadureci (...) Mudei totalmente. Aprendi a chegar na hora, a produzir mais... (pedreiro).

Hoje não fico parado em casa. Eu tenho até vergonha de ficar parado. Não gosto de preguiça (coordenador de obra).

Percebe-se que os processos autogestionários da cooperativa possibilitaram também uma atitude menos submissa perante os outros grupos com os quais esses trabalhadores convivem.

Quem já sentiu o gostinho de tomar decisão, de ter liberdade, é difícil acostumar com outra coisa. (...) Eu acho que a cooperativa já tem uma base de mais ou menos doze pessoas que não aceitaria outra coisa, porque valoriza e que acredita nessa proposta (tesoureiro).

Para todos, a presença e a atitude paciente e persistente de seu líder foi fundamental para a constituição de movimentos de solidariedade e de ajuda mútua dentro da cooperativa. Também destacam a confiança do grupo e a disponibilidade para ensinar, possibilitando que um auxiliar de pedreiro possa um dia se tornar um coordenador de obra. Dentre aqueles que

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participam das reuniões de formação, a grande maioria acredita na sua importância ao fazer refletir sobre as idéias de solidariedade e de cooperação, podendo influenciar modificações individuais e coletivas.

A cooperativa me ajudou a pensar assim. Tudo ajuda: as conversas, as ações, as reuniões, o contato com as pessoas, a observação do cotidiano, a afinidade com o pensamento, participar... (servente).

Aprendi aqui que tem que ajudar os outros e cooperar, compartilhar (servente).

Também, diferentemente do que é comum no ramo da construção civil, há preocupação com o aperfeiçoamento profissional e com o oferecimento de oportunidades para a ascensão dentro da estrutura de cargos e funções da cooperativa. Além do incentivo ao ensino passado pelos colegas no dia-a-dia, há reuniões onde se procura aperfeiçoar e adquirir novos conhecimentos.

Ações solidárias e abertura para a comunidade

Uma andorinha só não faz verão. Todo mundo se uniu para construir a Constrói Fácil (ajudante).

Há inúmeros movimentos de solidariedade que ocorrem por iniciativa da Constrói Fácil. A própria origem da cooperativa, está ligada a uma ação de solidariedade, o Projeto Shangri-lá3. De lá para cá muita coisa mudou na comunidade Shangri-lá. Muitos moradores aderiram à cooperativa e ainda hoje estão lá trabalhando. Outros encontraram emprego em diferentes lugares. Alguns outros continuam parados, sem solução a vista, embora tenham a cooperativa como possibilidade permanente de auxílio às suas necessidades.

Fruto da cooperativa Constrói Fácil é também o projeto Casa & Cidadania4, que surgiu da percepção de uma contradição entre os próprios trabalhadores: “eu construo casa, mas não tenho casa”. É interessante observar que a realização desse projeto aponta para um princípio de desalienação do trabalhador, pois ele se inclui como responsável pelo conteúdo e pelo produto final de sua tarefa, passando a interagir de forma criadora, introduzindo mudanças que afetarão não só o seu cotidiano de trabalho, mas as próprias condições de vida além jornada.

Além de Shangri-lá e do Casa & Cidadania, o grupo contribui financeiramente para projetos sociais, como o Ação da Cidadania, além de participações individuais em grupos comunitários e religiosos. Há também um fundo de solidariedade com o qual contribui a cooperativa. Esse fundo é utilizado em caso de necessidade por parte de algum cooperado (médico, remédios, outras situações de necessidade), devendo ser ressarcido após uso. Adicionalmente, há uma contribuição semanal de cada cooperado que se destina a prover o

3 O projeto Shangri-lá foi uma iniciativa de membros da Igreja Católica, que promoveram mutirões para construção de casas para famílias de uma comunidade carente do Rio de Janeiro. Após a construção das casas, a pequena comunidade passou a ser conhecida como Shangri-lá. Ali também foi percebida a necessidade de se gerar renda e subsistência para essas pessoas. Daí surgiu a idéia de uma cooperativa, encabeçada pelo Sr. Arnóbio que, na época, era um pequeno empresário local. Ele acreditou na idéia e trouxe sua experiência de empreendedor para auxiliar na construção da cooperativa Constrói Fácil.

4 O Projeto Casa & Cidadania foi criado pelos trabalhadores da Constrói Fácil com o objetivo de construir casas para os membros da cooperativa a partir de mutirões com os próprios associados. Esse projeto surgiu ao constatarem a imensa contradição que envolvia suas profissões e suas condições de moradia, pois construíam casas grandes e bonitas, com acabamentos admiráveis e, ao mesmo tempo, muitos pagavam aluguel ou moravam em casas pequenas, feias, mal conservadas e mal construídas, mesmo podendo e sabendo como melhorar suas condições de moradia. Os mutirões são voluntários e acontecem aos sábados, domingos e feriados.

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sustento de alguns associados que estão parados em virtude da ausência de obras suficientes para agregar todo o grupo.

A cooperativa ajuda um grupo com alimentos e colabora sempre que alguém necessita. Você sabe, né... os que foram dispensados. Cada um dá dez reais para pagar a semana daqueles que estão parados por falta de obra (ajudante).

Em épocas de eleição, é comum que a cooperativa promova reuniões para decisão de votos. A maioria dos cooperados baseia-se na opinião do grupo para decidir suas opções eleitorais. Nessas situações, são convocados candidatos políticos e outros interessados, que discursam e ajudam na decisão dos votos do grupo. A grande maioria dos associados participa dessas reuniões. Nem todos se interessam pelas discussões, mas relatam tirar dali o nome dos candidatos em quem vão votar.

Uma coisa que eu acho importante falar é que, aqui, a gente não abre mão do voto consciente. Por isso fazemos muita reunião para discutir política. (...) A cooperativa também tem o grupo de cidadania ativa. Nós participamos da fundação do Fórum de Cooperativismo Popular (coordenador, membro do conselho deliberativo).

No entanto, há alguns cooperados que não se interessam pelas discussões coletivas, rejeitando quaisquer movimentos sociais ou participações políticas. Dizem detestar reuniões, associando-as a perda de tempo e à ineficácia das decisões. Outros, que de nada participam, justificam-se pela pesada carga de trabalho ou por não terem sido direta ou oficialmente convidados pelos colegas. Outros, ainda, dizem que não se interessam porque não entendem, embora a falta de interesse possa ser um dos fatores que dificultem e descontinuem o seu entendimento. Tal constatação é confirmada pelos membros da comissão de formação, que se queixam da pouca participação quando da proposição de palestras, cursos e treinamentos sobre cooperativismo, política, participação social e formas de gestão. Em geral, contudo, o interesse é bem maior do que o constatado em outros trabalhadores da mesma categoria.

Muitos afirmam que começaram a se interessar após o contato com o Sr. Arnóbio e com as reuniões da cooperativa.

Acho que tinham que chamar uma reunião para explicar. Mas acho que o pessoal não vai comparecer, só se fosse junto com a assembléia. Não é culpa deles. Tem muito assunto pra discutir. Na dá tempo de explicar. Acho que com o correr do tempo a gente vai entender melhor (servente).

Percebe-se entre muitos desses trabalhadores a preocupação, o comprometimento e o orgulho pela participação em movimentos políticos e sociais. A quantidade de cooperados engajados é surpreendente.

A gente participa do Ação & Cidadania, do Shangri-lá, do Casa e Cidadania. (...) Tem também a GT, que é a associação de grupos de produção comunitária do Rio de Janeiro. Eu faço parte da direção (pedreiro).

Tem o Fórum de Economia Solidária (FCP-RJ), sou suplente do delegado estadual no Fórum Brasileiro de economia solidária. Sou também militante do PT (pedreiro).

Participo com alguns colegas de um movimento político chamado Imputecer” [reuniões com políticos e partidários, onde discutem questões políticas e sociais], (meio-oficial).

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Perspectivas futuras, dificuldades e limitações

Uma das principais frustrações narradas pelos trabalhadores é o fato de dependerem financeiramente de um investidor externo para manter o seu funcionamento. Percebem que só dessa forma conseguem garantir sua subsistência, mas crescem pouco e contribuem para a concentração de renda – discussão muito veiculada entre os grupos de trabalho e de discussões mantidos com as ONGs e com movimentos da Igreja Católica.

Porém, maior que a frustração com a dependência financeira, é a esperança que esses trabalhadores depositam na cooperativa. Os membros mais antigos demonstram preocupações com o preparo dos mais novos para assumirem posições de liderança. Os mais jovens possuem diferentes planos: uns querem ver a cooperativa crescer e continuar trabalhando nela; outros pensam em mudar de função, alcançando algum cargo mais qualificado dentro da cooperativa; outros pensam em preparar-se para assumir um empreendimento próprio (não vinculado à construção civil); há poucos que pensam em encontrar uma vaga em uma outra empresa. Outros ainda relatam gratidão em função de um grande sonho conquistado: o sonho de ter uma casa própria, realizado através dos projetos Shangri-lá ou Casa & Cidadania.

Entre os que pensam em permanecer na cooperativa, há novamente um desejo de vê-la crescer e se desenvolver, de entender melhor sobre política e cooperativismo, de ter um capital próprio para não depender do investimento de terceiros.

O que eu espero é trabalhar mais para fazer subir a cooperativa (...) Se eu puder eu fico sempre aqui, por muitos anos (pedreiro).

Paralelo a tudo o que já foi narrado, há muitas dificuldades e preocupações que ocupam os cooperados, expressas em quase todas as falas. Algumas se referem ao excesso de cobranças e encargos burocráticos para o processo de regularização da cooperativa e à falta de apoio do governo. Outros relatam preocupações com as falsas cooperativas que desacreditam aquelas que colocam em prática os ideais do cooperativismo.

Existe um monte de falsas cooperativas que queimam o filme do movimento, que exploram o trabalhador só para ter mais lucro (meio-oficial).

O governo não apóia. Só apóia aquelas cooperativinhas de artesanato, porque é besteira. Só apóia quando não rende nada (...) Tem que dar crédito. Os impostos não deixam. Não tem quem se responsabilize (coordenador).

Deveria ter apoio do governo para a gente ter mais trabalho – algo para baixar os preços da concorrência, algo que ajudasse a aumentar o salário (coordenador).

Os trabalhadores relatam também inquietações generalizadas com a situação de desigualdade social no país e com a função social do cooperativismo. Preocupam-se em ajudar os colegas em dificuldades e em intervir nos problemas da comunidade. Houve narrativas sobre a sensação de estar na “contramão” da sociedade, em seus ideais de solidariedade e de autogestão, agravada por uma percepção da incompreensão da comunidade e dos próprios familiares.

Tem muita desigualdade social. Isso me desanima. O homem só quer dinheiro e não pensa que, ao contribuir para a desigualdade social, ele está formando o ladrão. Depois ele é assaltado e pensa que não fez nada para sofrer aquilo. Mas ele fez. Ele fez ter a desigualdade que criou o ladrão (servente).

Queremos ajudar. Aí falam que a gente quer ser estrela, que é muita fantasia (servente).

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Às vezes fico desacreditado – não no grupo, mas na sociedade. Tem muito egoísmo. Parece que a gente age na contramão da sociedade. Recebemos muitas críticas dos outros (ajudante).

Às vezes, essa sensação de estar na contramão provoca desânimo, principalmente pela falta de reconhecimento por parte dos colegas, com oscilantes vontades de desistir do empreendimento.

Às vezes dá vontade de largar tudo porque ninguém quer nada. Mas, quando a gente se envolve com o cooperativismo, é um vício. A gente não consegue sair (ajudante).

Há outras dificuldades relativas à viabilidade econômica, como o alto preço dos terrenos, o retraimento do mercado de construção civil, a concorrência no mercado cada vez mais competitivo, a falta de apoio do governo, as limitações impostas pelo desconhecimento e pela falta de “malícia” em questões administrativas, jurídicas, burocráticas e negociais.

O problema é o mercado hoje em dia. Nós não estamos conseguindo achar terreno. Quando consegue, o pessoal bota o preço lá em cima (coordenador).

Nesse quesito, deve ficar claro que não são dificuldades peculiares dessa cooperativa, mas empecilhos pelos quais passam muitos dos pequenos negociantes sem experiência, sem suporte técnico, sem prévia formação acadêmica ou profissional. Entretanto, são obstáculos que esses trabalhadores se esforçam diariamente por vencer; e conseguem, à medida que se mantêm no mercado competitivo e que crescem, conquistando a confiança dos seus clientes e ganhando visibilidade no seu ramo de atuação.

Um grande obstáculo se refere à dificuldade dos cooperados em assumir a liberdade que lhes é atribuída. Autores diversos (Fromm, 1968; Winnicott, 1999; Freud, 1930; Stuart Mill, 1972; Berlin, 1981) advertem-nos sobre a dificuldade humana para assumir as liberdades que lhes são conferidas. Afirmam (os homens) uma luta constante e um anseio interminável pela liberdade; entretanto, quando têm a oportunidade de exercê-la, são poucos os que a assumem. Quando recebem a tão desejada liberdade, percebem que ela não pode vir separada da responsabilidade; que ela não tem nada a ver como mera independência para fazer tudo o que se deseja; que há uma necessidade de freio sobre nossas ações; que é preciso pensar antes de agir; que teremos que assumir as conseqüências trazidas por ela.

Entre outros fatores, há a influência da cultura de submissão com a qual somos acostumados, mas isso não significa que nos falte capacidade para sermos autônomos. A construção da autogestão é um processo lento, que requer enorme esforço e paciência. Há muitas dificuldades em assumir essa liberdade conjugada à responsabilidade. Segundo os cooperados, alguns a tomam de forma isolada e aproveitam-se da falta de controle interno para trabalhar menos ou “morcegar no serviço”, como eles mesmos dizem. Também o excesso de tolerância é apontado pelos trabalhadores como algo que propicia abusos, como esses mesmos indicados abaixo.

Tem muita gente que não leva a sério. Tem gente que faz o horário todo, mas enrola no serviço (...) Às vezes até tem problema: alguém que falta muito. Aí é afastado para não empatar o grupo (coordenador).

Há também apontamentos à falta de interesse dos cooperados, deixando grande parte das decisões importantes sob responsabilidade de alguns poucos, sobrecarregando-os e acomodando outros. Em nossa cultura, somos mais ensinados para delegar ou obedecer, e

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menos para assumir responsabilidades5. Entretanto, é preciso ter clareza de que a conquista da liberdade inclui a participação e o compromisso.

Tem também a falta de interesse pela reunião. Tem gente que vai forçado, de má vontade. Não sabe o que fazer. Todo mundo tem que ter responsabilidade (pedreiro).

Um outro obstáculo é a tendência ao imediatismo e a dificuldade de previsão. É difícil prever e planejar a longo prazo quando acostumados a muitas faltas e carências. Mesmo com uma grande possibilidade de acerto, prevalecem as soluções imediatistas. Essa falta de preocupação com o planejamento de longo prazo é claramente expressa na fala abaixo, emitida por um dos representantes do conselho deliberativo:

Eu não faço planos não. Na verdade, nunca gostei muito de planos.(...) Quero que a família melhore, ter uma estabilidade. Mas eu não consigo planejar para daqui a um mês, por exemplo. Eu vou vivendo o dia-a-dia. É uma coisa que eu não esquento a cabeça. (...) Eu vou de acordo com a conjuntura do momento (tesoureiro, membro do conselho deliberativo).

Há outras dificuldades que eles mesmos apontam como, por exemplo, a defasagem do grupo em relação à tecnologia e a algumas regras ou leis referentes ao ambiente de trabalho. Quanto à tecnologia, apontam a falta de conhecimento técnico, de poder aquisitivo e de apoio coletivo para investir na modernização do grupo. Também há alguns que negam qualquer tentativa de modernização ou de introdução de máquinas no trabalho, considerando que isso contribuiria para a redução de postos de trabalho.

Recebemos muitas críticas dos outros. Minha irmã mesmo: ela faz faculdade e diz que a gente é burro e limitado, que não sabe usar tecnologia e que não quer aprender (ajudante).

Dizem que a gente, peão, é tudo ignorante, mas eu não sou. Tecnologia não é para qualquer um. Não tem acesso (ajudante).

Se a gente compra máquina, a gente tira o trabalho do colega. Não pode um pai de família ficar sem trabalho (servente).

Como forma de suprir essa defasagem e, na tentativa de atender um dos princípios inspirados pelo cooperativismo internacional (princípio de educação, treinamento e informação), pelo menos uma vez por mês ocorrem reuniões de formação: momentos de troca de idéias sobre cooperativismo, solidariedade, trabalho e de aprendizagem sobre os ofícios. Discutem-se também questões políticas e sociais. É um momento de integração e de contato dos membros da cooperativa com entidades de suporte, como algumas ONGs e instituições religiosas e sociais.

O investimento em formação e a possibilidade de crescimento profissional dentro da cooperativa estão na contracorrente da realidade da construção civil em nosso país. Nesse campo de trabalho, em geral, não há ascensão profissional. A maioria dos trabalhadores da construção civil, quando não se tornam eternos profissionais autônomos, passam o resto de suas vidas assumindo a mesma função ao longo dos anos, com poucas possibilidades de mudanças. Nesse sentido, como já dissemos, a organização dessa cooperativa aproxima-se da organização das corporações de ofícios, nas quais as funções eram pacientemente ensinadas e passava-se de aprendiz para meio-oficial, de meio-oficial para artesão e assim sucessivamente.

Também há restrições em relação ao ambiente de trabalho – questões concernentes a todo o campo da construção civil. São, em geral, ambientes sujos, com muita poeira e alto nível de ruído, além de serem propícios a ocorrência de acidentes diversos. A cooperativa não

5 Segundo Vianna (1996), na história do Brasil, construiu-se uma noção de democracia e de direito como concessão, cuja regra passa a se dar a partir de favores e de apadrinhamentos. O brasileiro não se reconhece em seu papel ativo: reclama com o vizinho, mas não cobra; aceita a promessa do político, mas a esquece; espera sempre que se faça e que se decida por ele.

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possui um técnico ou um engenheiro de segurança do trabalho, embora exista uma comissão responsável por possibilitar a redução e a prevenção de acidentes nas obras. Essa comissão atua através de orientações e de recomendações nas reuniões e no dia-a-dia, no ambiente de trabalho.

Semanalmente, os cooperados contribuem para um fundo de reserva, destinado à cobertura das despesas em caso de acidentes e adoecimentos. Em caso de necessidade de medicamentos não fornecidos pelo SUS (Sistema Único de Saúde), o fundo de solidariedade compra o remédio, não sendo necessária a devolução de seu valor à cooperativa. Outros destinos dados a esse fundo são: compra de material para as reuniões de formação, auxílio a movimentos populares e suporte a atividades de integração do grupo entre si e de suas famílias.

Entre os trabalhadores que estão há mais tempo na cooperativa, há grande preocupação quanto à aposentadoria. Muitos já possuem idade e tempo de serviço suficiente para se aposentarem, mas adiam essa decisão por dois motivos: temem pelo futuro da cooperativa sem sua participação; preocupam-se com o baixo valor que receberiam pelo INSS, que é de apenas um salário mínimo, enquanto na cooperativa retiram pelo menos o triplo desse valor.

Também há preocupações com o fato de não terem proteção social. Sabem que o trabalho que exercem impõe-lhes riscos diários e gostariam de ter um seguro ou um plano de saúde, pois não confiam na assistência pública. Isso é para eles um grande problema, pois não há seguradoras ou agências de saúde que aceitem fazer planos para trabalhadores dessa área de atuação. Essa preocupação é demonstrada pela fala abaixo:

A cooperativa podia ter um plano de saúde, cesta básica. Eles estão até tentando ver convênios, mas ninguém quer dar plano de saúde para a construção civil. A gente tem que fazer um seguro de vida, mas a mensalidade é muito alta e o valor recebido é só oito mil reais. Ninguém quer fazer seguro ou plano de saúde para a construção civil (coordenador de obra).

Conclusão e considerações finais

Durante o período de entrevistas, muitas pessoas foram ouvidas – a maior parte dos cooperados –, embora tenhamos tido que entrevistar mais detidamente as lideranças e os membros mais antigos do grupo para que pudéssemos reconstituir sua história. Nesse percurso, observamos entre os trabalhadores percepções muito distintas, que vão do empenho constante em fortalecer o espírito da cooperativa à visão daquele espaço como uma mera oportunidade de trabalho. Tais diferenças revelam, além do maior ou menor grau de envolvimento na construção do processo autogestionário, decorrente das histórias individuais de vida e da passagem por vários coletivos, a persistência de uma cultura própria da condição de assalariado, difícil de ser superada.

Enfim, limitações existem, e formas de superá-las estão sendo cotidianamente tentadas por esses trabalhadores. Até o presente momento, apesar de todas as dificuldades de compreensão sobre o cooperativismo e para assumir efetivamente esse papel de autonomia, o que está claro para eles é a existência de um espaço de liberdade onde podem opinar e divergir. Está claro para eles o esforço do grupo em incentivar essa participação e a dimensão social que tem ganhado suas iniciativas. Referimo-nos à enorme força que têm demonstrado ter os empreendimentos solidários no sentido de possibilitar a segmentos desprivilegiados a chance de vislumbrar uma oportunidade no mercado de trabalho. Esses trabalhadores sentem

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orgulho de fazer parte desse grupo de cooperados, principalmente pelo alto reconhecimento que dizem haver em relação à qualidade do seu trabalho.

Muitos gostariam de ser mais eficientes ao “vestir a camisa da cooperativa” e encontram grandes empecilhos, como a falta ou carência de suporte técnico, a dificuldade de traduzir idéias em ações e a pouca compreensão dos discursos que ouvem quando orientados por outros profissionais ou entidades. Entretanto, defendem a cooperativa como o seu espaço de trabalho e reconhecem sua propriedade como coletiva, incluindo a si próprios nessa coletividade. Sabem que, mesmo quando calados, votam e suas opiniões têm peso sobre o grupo. Sabem também que quando votam em prol da maioria fortalecem posições dominantes. Mas, nesses casos, só contam com a confiança naqueles em cujos votos se apoiaram.

Mais uma vez, apontamos para um longo caminho de construção do processo autogestionário – um caminho tortuoso que tropeça em inúmeros obstáculos. Apesar disso, a força de vontade desses grupos e a constatação da necessidade de sobrevivência não os deixa desistir. Sofrem altos e baixos, mas continuam firmes e fortes. No percurso, vão aprendendo a cada momento que trabalhar dá trabalho, mas apostam nos benefícios desse esforço, alguns dos quais já puderam ser vislumbrados em nas descrições acima.

Apontamos algumas características que são peculiares à cooperativa Constrói Fácil: forte busca por autonomia e incentivo à participação, incentivo ao conhecimento e à capacitação, estabilidade que reduz a insegurança no trabalho, retiradas acima da média salarial da categoria, possibilidade de ascensão, igualdade de direitos, auxílio coletivo em caso de adoecimento ou acidentes, uso de equipamentos – não por obrigatoriedade, mas a partir de um reconhecimento de sua necessidade –, incentivo à participação e influência nas decisões da cooperativa. Não podemos deixar de colocar aqui também a melhoria das condições de vida desses trabalhadores, propiciada por um maior ganho financeiro e pela própria casa que puderam ou poderão construir graças ao incentivo e à cooperação dos colegas de trabalho. Trata-se de uma quebra da precariedade em um campo de imensa e histórica precariedade social.

Quanto à busca do ideal de emancipação social, consideramos que a economia solidária é o próprio resultado do começo de uma experiência de emancipação. Ao tomarem iniciativas, ao se autoperceberem como capazes de assumirem o rumo de suas próprias vidas; e mais: quando se propõem a interferir em outras vidas, no sentido de melhorá-las, através de ações de solidariedade diversas, estão nada mais do que buscando emancipar-se, assumindo sua liberdade e libertando outros.

Na qualidade de alternativa a situações de exclusão social, os empreendimentos cooperativos não se apresentam apenas como uma alternativa econômica, mas como parte de um movimento social. É um processo que acontece à medida que a população supera as saídas individuais e recorre a alternativas coletivas. O movimento nasce a partir de um problema local e imediato, mas seu desenvolvimento tende a aumentar as reivindicações para as esferas mais amplas da realidade social. A sua grande importância está no exercício de organização e enfrentamento que se dá a partir das dificuldades percebidas. Seu campo de atuação amplia-se à medida que outros problemas vão sendo percebidos e que se reconhecem na necessidade de atuar coletivamente em sua resolução. E assim o fazem, aos poucos e cotidianamente.

Atualmente, destaca-se a articulação e as mobilizações realizadas pelos fóruns de cooperativismo popular nos níveis locais, regionais e nacional, promovendo e estendendo discussões e levando questões locais a âmbitos maiores, contribuindo para o fortalecimento e para a maior abrangência do movimento.

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Os principais resultados da iniciativa dizem respeito ao aumento da mobilização coletiva, ao envolvimento progressivo em atividades junto à comunidade, que resulta no estabelecimento de uma maior autonomia de seus membros, no que se refere à participação e organização em ações locais. Os cooperados participam ativamente de atividades políticas, sociais, cooperativas e comunitárias, superando o imobilismo e avançando na consolidação de uma organização social mais fortalecida. Registram-se momentos altos como a implementação do projeto Casa & Cidadania, a organização de reuniões específicas de formação, a relevância dada às assembléias deliberativas, a filiação a partidos políticos e a destinação de recursos para fins sociais e comunitários e fundos de reserva para cuidados à saúde dos cooperados. Vale citar o questionamento dos valores capitalistas e a instituição de atitudes e movimentos que contestam a submissão ao trabalho, o desemprego e as desigualdades sociais.

Como iniciativa governamental, a recente criação da Senaes (Secretaria Nacional de Economia Solidária) contribui para o avanço, aumentando a visibilidade do movimento e fortalecendo as mesas de discussões. Prova dessa maior visibilidade é a inclusão desse do tema da economia solidária na agenda de discussões de movimentos como o Fórum Social, a Associação Brasileira de Psicologia Social, a Cáritas do Brasil, algumas universidades públicas e privadas, diversas outras instituições não governamentais, além da presença do tema no planejamento social de diversos municípios e estados brasileiros.

No que tange à saúde, já se percebem na Constrói Fácil intervenções no sentido de propiciar melhores condições de segurança e saúde, através da compra de equipamentos, da realização de reuniões de formação para melhor informar e qualificar os trabalhadores, além da adoção de uma perspectiva do trabalho não focada no lucro, mas na melhoria da qualidade de vida dos indivíduos.

Destacamos algumas importantes perspectivas do movimento cooperativista: a continuidade das ações de mobilização local e comunitária e o fortalecimento e a organização dessa e de outras iniciativas ligadas a processos de autonomia individual e coletiva; ações destinadas à geração local de renda, buscando o envolvimento das comunidades, o aumento da visibilidade de suas ações e, de forma abrangente e em longo prazo, a redução do desemprego, da precarização do trabalho e das desigualdades sociais.

Cabe destacar também a necessidade de uma maior inclusão das discussões sobre saúde e sobre a utilização de tecnologias produtivas nas pautas de trabalho dos fóruns regionais e nacional de economia solidária. Existem algumas iniciativas isoladas, mas não são assuntos contemplados, por exemplo, pelos princípios da economia solidária. Sabemos, no que se refere às tecnologias produtivas, que há dificuldades relacionadas à escassez de recursos financeiros, pois demandam um alto investimento. Porém, é uma discussão importante a ser incluída na pauta de reivindicações dos movimentos cooperativistas solidários do país.

Em relação à promoção da saúde, é pertinente à discussão o fato dos cooperados estudados se preocuparem com a constituição de uma comissão de segurança e com a divulgação de normas e de procedimentos de proteção em suas reuniões. É interessante o quanto os membros dessa comissão se preocupam em organizar o ambiente de trabalho e em transmitir informações sobre saúde e segurança a todos os colegas. Há questionamentos quanto aos seus direitos enquanto trabalhadores, demonstrados através das críticas ao Sistema Único de Saúde e das preocupações quanto a ter um seguro de vida – freqüentemente negado pelas seguradoras – ou um plano de saúde, além de receios em relação à sua aposentadoria.

O zelo e a dedicação pela cooperativa são repetidamente demonstrados em suas atitudes de incentivo aos colegas, de defesa aos princípios do cooperativismo e na abdicação revelada por alguns cooperados que, segundo suas falas, já poderiam ter se aposentado, mas

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adiam a decisão por se sentirem responsáveis pela cooperativa, por receio de atrapalhar o seu progresso e pela necessidade que sentem de preparar sucessores com os mesmos ideais em relação à doutrina do cooperativismo e com o mesmo comprometimento que afirmam ter.

Cabe enfatizar que a expectativa desta pesquisa não foi a de descrever, por si só, e no curto prazo, mudanças de porte e impactos mensuráveis em resultados quantificáveis e de grande significação, mas registrar os avanços da experiência investigada por esse processo, colocando-se a seu serviço para tornar inteligíveis os seus movimentos no sentido do desenvolvimento. Sabe-se que as mudanças macro dependem de um contexto social profundamente mais amplo e complexo. Como afirma Pivetta (2002), “não existirá... uma ilha da fantasia sem a sinergia de um projeto de Estado e Nação que garanta a sustentabilidade social, ambiental e econômica do todo”. No entanto, como Koga (2003), citando Ladislau Dowbor, afirma que uma das mais significativas riquezas do desenvolvimento local reside no fato de poder-se adequar as ações às condições diferenciadas que as populações enfrentam. Isso não implica, naturalmente, que as políticas sociais possam se resumir à ação local, mas seriam fundamentais para se estabelecerem, de fato, políticas universais que garantam ao mesmo tempo igualdade e eqüidade.

Da forma como têm se constituído, muitas dessas alternativas podem colocar-se como um exemplo, como um caminho a ser seguido por outras tentativas, como movimento a ser valorizado e apoiado por entidades diversas (pesquisadores, instituições, poder público, ONGs). É também o princípio e a contribuição essencial para a construção de uma sociedade mais justa, mais humana e mais igualitária. Não podemos mudar o todo, mas podemos ir mudando aos poucos.

Cada vez mais, a forma como tem se constituído nossa sociedade mostra-nos o quanto é difícil agir sozinho e o quanto a experiência da coletividade pode tornar possível alternativas que seriam impensáveis no âmbito individual. E é na realização dessas tarefas que a coletividade faz mais falta. Mas é também a partir delas que tal coletividade pode se realizar. Se vier a existir uma comunidade solidária no mundo dos indivíduos, só poderá ser (e precisa sê-lo) uma comunidade tecida em conjunto a partir do compartilhamento e do cuidado mútuo; haverá de ser uma comunidade de interesse e responsabilidade em relação aos direitos iguais de sermos humanos e à igual capacidade de agirmos em defesa de direitos fundamentais e de melhorias da qualidade de vida.

Referências

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França Filho, G. C. (2002). Terceiro setor, Economia Social, Economia Solidária e Economia Popular: traçando fronteiras conceituais. Bahia Análise & Dados, 12 (1), 9-19.

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Fromm, E. (1968) O medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar.

Koga, D. (2003). Cidades entre territórios de vida e territórios vividos. Serviços Social e Sociedade, 72.

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Lisboa, A. de M. (1999). A emergência das redes de economia popular no Brasil. In N. M. Dal Ri (Org.) Economia solidária: o desafio da democratização das relações de trabalho. São Paulo: Arte Ciência.

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Mills, C. W. (1972). Da razão à liberdade. In A imaginação simbólica. Rio de Janeiro: Zahar.

Pivetta, F. (2002). Laboratório territorial como instância para a promoção da saúde – contribuição para as discussões acerca do programa DLIS Manguinhos. In L. Zancan, R. Bodstein & W. B. Marcondes (Orgs.) Promoção da Saúde como caminho para o Desenvolvimento Local (pp. 247-271). Rio de Janeiro: Abrasco.

Vianna, L. W. (1996). Caminhos e descaminhos da revolução passiva à brasileira. Dados, 39 (3).

Winnicott, D. W. (1999). A liberdade. In Tudo começa em casa (pp. 237-248). São Paulo: Martins Fontes.

Endereços para correspondência:[email protected], [email protected]

Recebido em: 05/05/2005Pareceres enviados em: 23/06/2005

Aprovado em: 09/07/2005

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O juiz de água: uma forma tradicional de organização de trabalhadores agrícolas para a

distribuição de água de irrigação1

Jesús Eduardo Canelón Pérez2

Universidad Centroccidental Lisandro Alvarado, Barquisimeto, Venezuela

O trabalho tenta mostrar como as pessoas têm se organizado para a distribuição de água de irrigação numa região do semi-árido ocidental da Venezuela. Apresenta parte da história da legislação na área e particularmente como, por meio da eleição de um juiz de água, com uma tradição de mais de 150 anos, distribui-se a água no Vale de Quíbor. Como arcabouço teórico e metodológico, utilizo várias noções (todas elas baseadas na perspectiva do construcionismo social) – campo-tema, matriz, interface social e práticas discursivas – para a compreensão, por meio do discurso, de formas não institucionalizadas de organização da irrigação de água. O trabalho visa contribuir com os estudos da psicologia social sobre problemas localizados em zonas rurais.

Palavras-chave: Juiz de água, Água de irrigação, Organização tradicional, Interfaces sociais, Construcionismo social.

The judge of water: a tradicional way of rural workers’ organization for the distribution of water

This paper explores the ways in wich rural workers get organized in order to distribute water irrigation in a semi arid region of Venezuela. It is based on a theoretical as well as a methodological social constructionist aproach. To do so it presents a historical review of water legislation and aparticularly dicusses the rol of water juris figure, elected by agricultural workers, as part of a 150 year tradition in the Quibor’s Valley of Venezuela. This work aims to constribute to the studies in social psychology within rural areas.

Keywords: Water juri, Water irrigation, Traditional organization, Social interfaces, Social constructionism.

Introdução

O Vale de Quíbor é uma das regiões agrícolas mais produtivas da Venezuela. São inúmeros os estudos feitos sobre o cotidiano do Vale, entre eles, trabalhos sobre a produção agrícola, seus solos, seu clima, sua fauna e flora, seus habitantes e, muito especialmente, seus problemas com o uso e distribuição da água de irrigação nessa região semi-árida. Há mais de trinta anos iniciou-se a construção de uma represa para aliviar essa problemática e aumentar a capacidade produtiva de seus solos. Porém, poucos são os estudos que a partir da psicologia social, ou de outras ciências sociais, têm tentado dar voz às pessoas que vivem nesse Vale. O que pretendo neste artigo é apresentar uma das versões possíveis sobre a gestão da água de irrigação na região, focando uma das fontes de água mais importantes, o riacho Atarigua, especialmente no que diz respeito à figura do juiz de água na dinâmica produtiva do lugar.

Faço um pouco de história sobre as características do Vale para nos localizarmos nesse espaço. Continuo com uma apresentação sobre as leis e regulamentos que desde Espanha vieram com os “colonizadores” e que foram e são a base para o que hoje temos como

1 O artigo é produto de minha tese de doutorado em psicologia social na PUC-SP. Foi possível graças ao financiamento de uma bolsa de estudo pela Universidad Centroccidental Lisandro Alvarado, de Barquisimeto, Venezuela.

2 Antropólogo. Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP.

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O juiz de água: uma forma tradicional de organização de trabalhadores agrícolas para a distribuição de água de irrigação

leis (municipais e nacionais), regulamentos e normas para o manejo das águas no Vale, entre elas as do riacho Atarigua, com uma tradição de mais de 150 anos. Em seguida, faço alguns comentários sobre a gestão de água, sua significação como problema e as bases teóricas e metodológicas com os quais sustento minha pesquisa.

Escolhi para este texto as práticas discursivas (M. J. Spink, 1999) de duas pessoas que têm a ver com o uso da água do riacho. Um juiz de água e um agricultor com muitos anos de trabalho e usuário dessa água. Por meio dos diálogos que mantive com eles, vou construindo os sentidos atribuídos, tanto à gestão da água de irrigação, como aos conflitos que surgiram na distribuição e no uso coletivo do riacho. Como arcabouço teórico e metodológico, utilizo também três noções – todas elas baseadas na perspectiva do construcionismo social: campo-tema (Spink, 2003a), matriz (Hacking, 1999) e interface social (Long, 2001) – para a compreensão, por meio do discurso, de formas não institucionalizadas de organização da irrigação de água. O trabalho visa contribuir com os estudos da psicologia social sobre problemas localizados em zonas rurais.

Mostro que a gestão tradicional da água é uma forma “não formal” de distribuição de água, de uso coletivo que existe desde tempos imemoriais. Além disso, mostro que, utilizando algumas estratégias metodológicas da psicologia social, pode-se compreender como as pessoas dão sentidos ao cotidiano, negociando esses sentidos como uma forma de chegar a acordos que lhes permitam sobreviver em condições problemáticas, como a da escassez de água.

Concluo também que as pessoas no Vale de Quíbor preferem, quase sempre, resolver de boa maneira seus problemas, apesar de existirem conflitos com graves conseqüências.

Por outro lado, é importante reconhecer que a simples escassez de água não é geradora de conflitos e que a presença de uma figura como a do juiz pode contribuir, e muito, para que os desacordos se resolvam, utilizando tanto antigas e novas leis, como a capacidade e habilidade do juiz, e que é fundamental, aliás, tomar em conta esse tipo de gestão tradicional na implantação de novas formas de distribuição de água, a partir do funcionamento da represa Yacambú-Quíbor e seu futuro sistema de irrigação.

Sobre o Vale de Quíbor

Segundo o historiador Cañizales (1996), a ocupação das terras hoje conhecidas como Vale de Quíbor, no ocidente da Venezuela, foi empreendida pelos espanhóis em meados do século XVI, iniciando-se, assim, a conformação do que veio a ser uma das áreas mais produtivas para a agricultura na Venezuela.

O Vale de Quíbor ou Quibure, como também é mencionado nas antigas escrituras, foi ocupado pelos conquistadores espanhóis entre 1548 e 1560. Constitui um amplo espaço, não muito complexo, entre as montanhas andinas e a meseta de Barquisimeto. É sulcado por vários riachos que afluem no riacho Las Raíces e este último no Río Tocuyo (Cañizales, 1996, p. 100).

Porém, esse Vale já era habitado por grupos indígenas há centenas de anos, uma amostra disto pode-se apreciar no Museu Arqueológico de Quíbor, onde são estudados e preservados alguns dos restos dos antigos habitantes dessas terras. Como comenta Barreto (1996), sobre a variedade de culturas indígenas na região:

Os cronistas que têm-se ocupado em indagar parte da história da população da era pré-colombina, no que se refere ao Vale de Quíbor, especialmente Frey Francisco de Villafaña, dão ênfase à existência de seis gêneros de línguas: “Caquetios, Camagos, Gayones, Bichites, Agaguas e Cayones” (p. 17).

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A cidade principal do Vale chama-se Quíbor, é a capital do município Florencio Jiménez, e sua fundação, feita pelo Governador Francisco de la Hoz Berrio, remonta ao mês de maio de 1620 (Cañizales, 1996). É uma região localizada a 30 km ao sudoeste da cidade de Barquisimeto, capital do estado Lara. Geograficamente limita-se entre os 9° 50’ e 10° 05’ de latitude norte e 69° 30’ e 69° 45’ de longitude oeste (Dugarte, 1998). É caracterizada como zona semi-árida, com pouca nebulosidade e muito pouca chuva. A precipitação média anual oscila entre 400 e 500 mm, com chuvas curtas e concentradas, que lhe conferem caráter torrencial (Sandia & cols.). A estação de estiagem ocorre principalmente entre os meses de janeiro e abril, quando se apresentam as menores precipitações do ano. A partir das cifras do censo de 1990, a projeção sobre a população do município Jiménez para o ano 2000 era estimada em aproximadamente 76.450 habitantes, 38.868 (50,84%) desses habitantes moravam em casarios ou disseminados em áreas de cultivo que servem também como moradias, os outros 37.582 (49,16%) habitavam o único centro urbano do Vale, a capital do município (SHYQ, 1998)3.

O problema da escassez de água no Vale de Quíbor é relatado pelos colonizadores espanhóis. Já nas primeiras descrições dos viajantes pode-se ler acerca das situações problemáticas, especialmente na época da estiagem (Salazar, 1996). Essa crônica escassez de água, que desde muito tempo castiga sem parar o Vale de Quíbor, e a imperiosa necessidade de dispensar adequada irrigação a grandes extensões de cultivos de trigo, que se produziam dentro de ótimas condições, foram as razões que levaram à construção do açude, primeira obra de engenharia de irrigação construída na região, com uma finalidade específica, que se conhece pelo nome de Calicanto de Poa Poa. Dessa obra hidráulica, que tem como data de construção o ano de 1750, só resta seu muro principal coberto de mata.

A condição de semi-árido do Vale de Quíbor determina a impossibilidade de realizar atividades agrícolas intensivas sem um sistema de irrigação integral. Por isso, o desenvolvimento agrícola do Vale está associado diretamente às possibilidades de irrigação.

Dadas as condições agroclimáticas do Vale, a atividade agrícola se realiza exclusivamente sob irrigação e se desenvolve em aproximadamente umas 1.500 unidades de produção de vários tipos: pequenas, médias e grandes. As grandes unidades produtivas superiores a 200 hectares são as que aportam os maiores volumes de produção aos mercados, devido a disporem de grandes reservatórios de água, equipamentos para irrigação, além de outros recursos. Os grandes produtores se localizam fundamentalmente na zona norte do Vale, onde, nas décadas de 50 e 60, iniciou-se a atividade agrícola intensiva, juntamente com a exploração das águas subterrâneas. Ao sul do Vale localiza-se a maior parte dos proprietários das pequenas e médias unidades de produção, formadas por terrenos herdados de antigos agricultores da região que baseavam seus cultivos na irrigação feita a partir da água disponível no local. Grande parte da produção agrícola do vale realiza-se mediante a intervenção de colonos que são arrendatários de terrenos. Eles têm capital, mas carecem de terra para produzir, ou dispõem de alguma terra, mas não contam com a água suficiente para sua produção (Dugarte, 2002).

Hoje, os agricultores têm três fontes principais de água para irrigação na estiagem e várias alternativas menores de abastecimento: o riacho Atarigua; a água proveniente da represa Dos Cerritos, através de canais e tubulações; e as águas subterrâneas. Os produtores do Vale têm também outras fontes menores de água para irrigação: a água que escorre pelo Portal de Saída do túnel de vasão da represa Yacambú-Quíbor; a água que sobra da limpeza de filtros da estação de tratamento da cidade de Quíbor; e as lagoas artificiais de águas residuais. Este trabalho concentra-se na zona sul do Vale, sobretudo nos povoados de Cuara, El Hato, Los Ortices, Campo Lindo, La Vigia e áreas que ficam nos arredores, lugares onde os agricultores utilizam várias dessas fontes de água para irrigação.

3 A sigla SHYQ é utilizada várias vezes neste trabalho em subtituição de Sistema Hidráulico Yacambú-Quíbor.

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Apesar da escassez, os produtores do Vale (principalmente os grandes produtores) têm desenvolvido tecnologias de aproveitamento da água para fins produtivos, tornando a região um dos principais pólos de produção de alimento do país. O Vale de Quíbor tem uma grande quantidade de terra produtiva que, sob condições de irrigação apropriadas, pode gerar produtos agrícolas de excelente qualidade.

Outra questão importante é que os produtores espanhóis (originários das Ilhas Canárias), que chegaram à região a partir de meados de 1940, levaram vantagens em relação aos produtores tradicionais, ao pôr em prática tecnologias e sistemas de irrigação agrícolas mais modernos e produtivos que os usados no Vale, entre eles as lagoas para armazenamento de água na época de estiagem. Isso tem propiciado a concentração produtiva em grandes fazendas controladas por esses imigrantes, pois essas inovações têm-lhes permitido uma maior quantidade de colheitas ao ano e a introdução de culturas não tradicionais na Venezuela antes dos anos 1940, como o tomate e a cebola, de rápida aceitação nos costumes gastronômicos do venezuelano. Aos poucos, os produtores tradicionais do Vale foram sendo deslocados, tendo de vender suas terras, ou tornando-se assalariados dos grandes produtores.

Na atualidade, a cena produtiva apresenta uma diversidade de produtores que convivem na mesma região, predominando a concentração de terra em grandes fazendas. Apesar de terem surgido diversos tipos de organizações de pequenos, médios e grandes produtores, alguns dos diagnósticos realizados no Vale se referem à existência de maiores dificuldades para se associar, de maneira formal, entre os pequenos produtores, o que tem motivado o estabelecimento de algumas estratégias por parte da empresa Sistema Hidráulico Yacambú-Quíbor (SHYQ) para propiciar a organização desses produtores como pré-requisito fundamental para as negociações na distribuição, na comercialização e no uso da água após a construção da represa.

Segundo a classificação elaborada pela empresa SHYQ, os pequenos produtores são aqueles que possuem propriedades com até 50 hectares de terra, e representam 81,2% do total de produtores. Os produtores médios constituem 5% do total e possuem entre 50 e 200 hectares. Os grandes, somam 3,8% do total e se caracterizam por possuir mais de 200 hectares por produtor (SHYQ, 1998). Além disso, existem agricultores que alugam pedaços de terra para plantar, sobretudo na época de chuvas, e outros que vendem sua mão-de-obra, cobrando geralmente uns 3 mil bolívares4 por dia de trabalho.

A legislação venezuelana sobre o uso da água na agricultura

Na América Latina, a legislação sobre o uso da água tem uma grande influência das legislações trazidas da Europa pelos colonizadores. Valderrama (1997) destaca que na Espanha a definição do caráter da água como bem público é uma problemática de longa data. O autor aponta que desde a Idade Média, produto das lacunas na legislação dos Códigos Castelhanos, era necessário recorrer ao Direito Romano. Isso produziu uma mistura de leis, herdadas pelas leis que se implantaram na América Latina. Essa situação fez com que o Código das Sete Partidas5 viesse a preencher um vazio deixado por tal confusão e que por meio dele se fizesse o “ordenamento espanhol a respeito das águas, tanto na Península como na sua posterior influência sobre as Índias” (Valderrama, 1997, p. 1). Hoje em dia ainda se pode notar a influência de algumas das antigas leis nas novas leis municipais e nos regulamentos de gestão das fontes de água em Quíbor.

4 Hoje o tipo de câmbio na Venezuela está controlado e o bolívar é cotado em 1.920 por dólar.

5 Série de leis compiladas por Alfonso X (o Sábio) no fim do século XIII, e que entraram em vigor na Espanha em meados do século XIV.

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O Tribunal das Águas de Valença, na Espanha, é reconhecido como a instituição de justiça mais antiga da Europa. Sua origem remonta pelo menos ao ano 1238 e, apesar de se reconhecer sua influência romana, seu estado atual, segundo alguns historiadores, deve-se aos árabes.

... tal e como chegou para nós foi um legado do povo árabe, e, se seguimos aos melhores tratadistas, foi nos dias gloriosos dos califas de Córdoba, Abderramán III e Alhakem II, por volta do ano 960 da era Cristã, que ficou organizado na forma que tem até hoje, e sem variação alguma tem estado funcionando (Giner, 1969, p. 8).

Muitos dos elementos presentes em Quíbor no manejo da água são encontrados na Espanha, que, por sua vez, recebeu a influência de romanos e árabes no decorrer das invasões no que hoje conhecemos como Península Ibérica. É certo que há desacordos entre historiadores sobre quem teve a maior influência, romanos ou árabes. Também é certo que depois de oito séculos de sua presença na Espanha, os aportes da cultura árabe, provenientes de diversos povos (sírios, marroquinos etc.), são uma realidade que se manifesta não só na construção de sistemas de irrigação, como nas toponímias, nas formas de administração de tais sistemas e nas leis que os sustentam.

Glick (1970) mostra a diversidade de elementos que, no período medieval, tinham suas raízes na dominação árabe sobre a Espanha. As diversas formas de organização social que existiam em Valença, durante esse período, são tanto um reflexo dessa influência, como sua posterior incorporação aos sistemas construídos na América Latina, e, no caso específico, da Venezuela. Isso se pode verificar, também, no uso de palavras de origem árabe, como acequia6, ainda usada tanto na Espanha como na Venezuela, e que significa canal de irrigação.

A existência de comunidades de irrigadores, de sistemas de turnos na distribuição da água, da existência da figura dos juízes de água para obter acordos e dirimir conflitos (aporte romano)7, entre muitas outras coisas, disse-nos muito das semelhanças entre formas de gestão na Espanha e na Venezuela, sem esquecer da permanência de formas provenientes das culturas indígenas da região.

Na Venezuela, a lei mais antiga que regulamenta o uso das águas, ainda vigente, é a Ley Forestal de Suelos y Aguas, de 1966. Nela, declara-se de utilidade pública “a proteção das bacias hidrográficas e das correntes e quedas-d'água que pudessem gerar força hidráulica” (Marnr, 1966). Na lei, determina-se que suas disposições se aplicam às águas públicas e privadas, e apresentam-se algumas normas para dar concessões ao aproveitamento das águas de domínio público. No artigo 93, decreta-se que “o Executivo Nacional poderá criar, com caráter permanente ou temporário, tribunais de águas nos rios que achar conveniente” (Marnr, 1966). A lei também estabelece que serão criadas as normas que guiarão os tribunais.

O Código Civil (1982) estabelece as normas para a administração das águas de irrigação. A partir do artigo 647, e até o 666, faz-se referência aos direitos dos proprietários de terras agrícolas de usarem as águas de corredeiras e os rios que passam pelas suas terras. O artigo 682 regulamenta o referente às concessões que o Estado pode fazer para o aproveitamento das águas públicas.

A Constitución de la República Bolivariana de Venezuela, em seu Artigo 304, declara que:

Todas as águas são bens de domínio público da nação, insubstituíveis para a vida e o desenvolvimento. A lei estabelecerá as disposições necessárias com a finalidade de

6 Do árabe hispânico assáqya, e este do árabe clássico s qiā yah (Diccionário de la Real Academia Española).

7 Segundo Glick (1970), não existe no mundo islâmico forma de justiça comparável aos “tribunais de água”, que têm se mantido na Espanha para agir em situações de disputas pela água de irrigação.

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garantir sua proteção, aproveitamento e recuperação, respeitando as fases do ciclo hidrológico e os critérios de ordenação do território (Asamblea Nacional de la República Bolivariana de Venezuela, 2000).

Na Ley de Tierras y Desarrollo Agrário, no seu capítulo II, de 2001, sobre o Regime de Uso de Águas (Asamblea Nacional de la República Bolivariana de Venezuela, 2001a), legisla-se em relação às águas suscetíveis de serem usadas para fins de irrigação agrícola, mas deixa-se para o Regulamento do Decreto Lei a criação, a forma e o funcionamento dos tipos de organização locais que deverão ser estabelecidos para a utilização comum das águas.

Formas de regulamentar o uso da água para irrigação em Quíbor

No Vale de Quíbor, conforme o que ocorre em todo o país, comprova-se a influência dos princípios compartilhados tanto pelos espanhóis, nas suas normas e regulamentações medievais, como pelos árabes, nas suas leis, o Código de Hamurabi (Glick, 1970). Entre esses princípios temos: 1) o conceito de distribuição proporcional da irrigação conforme as terras que o agricultor trabalha, que tem se modificado no Vale de Quíbor pela construção de lagoas, a partir da migração oriunda das Ilhas Canárias; 2) o conceito de responsabilidade individual, que requer a participação e o compromisso de todos os envolvidos na manutenção do sistema de irrigação; e 3) a idéia de que a partilha da água e as políticas sobre a organização da irrigação, dentro de um dado sistema, são responsabilidade do coletivo dos irrigadores é fundamental no Vale, pois os juízes e distribuidores são eleitos por votação popular, com a participação de todos os agricultores que compartilham do sistema de irrigação.

No Vale existe uma legislação municipal que regulamenta o uso da água do riacho Atarigua8, tendo sido modificada ao longo da história. Antigamente, a água desse riacho era dividida entre o consumo humano e a agricultura, mas nas últimas décadas passou a ser utilizada apenas para uso agrícola. As antigas leis municipais consideravam águas públicas todas aquelas “que pertencem a todos em comum” (Pérez, s. d., p. 593), também reconhecem a existência de águas privadas ou particulares, mas não esclarecem as características de cada uma.

A primeira regulamentação do uso da água do riacho Atarigua da qual se tem documentação, é datada de 1852. Nela se decreta o fim da lei de 13 de maio de 1850, por isso é possível que seja esta última a de maior antiguidade registrada, mas sem descartar que possa haver leis municipais anteriores das quais não se tem o registro escrito.

A lei municipal foi promulgada devido a uma situação histórica de falta de chuva durante a estiagem e de pouca quantidade de água que flui dos riachos da região:

Que pela freqüente falta de chuvas e pela pouca quantidade de águas dos riachos Acarigua e Maguace, a extensa vizinhança da vila de Quíbor sofre atrasos e calamidades nas grandes secas, sendo algumas famílias obrigadas a abandonar suas casas e indústrias (Pérez, s. d., 640).

A lei cria normas para a distribuição das águas, estabelecendo a figura dos juízes de água para exercer sua administração. Os juízes deviam ser eleitos pelos agricultores e sua função principal era administrar a pouca água existente para os diversos usos, servindo de

8 O riacho Atarigua (ou Acarigua) é uma das fontes de águas constantes mais importantes do Vale e forma parte de um complexo de riachos que descem das montanhas e que em época de seca são aproveitados ao máximo pelos agricultores.

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mediador entre os vários usuários. Por outro lado, a lei determinava os direitos e deveres dos cidadãos e os castigos e punições estabelecidos para quem desobedecesse a sua normativa, assim como estabelecia o pagamento pelo uso da água.

1º) Para a distribuição das águas da vila de Quíbor haverá dois juízes de água que serão nomeados pelos próprios lavradores vizinhos interessados na irrigação. Um desses juízes distribuirá as águas do riacho Acarigua, e o outro, as do riacho Maguace, sendo que ambos prestarão contas ante o chefe político e sob juramento de cumprir fielmente seus deveres (Pérez, s. d., 640).

Alguns dos antigos deveres dos juízes ainda se conservam na região, por exemplo:

2º) Não permitir que pessoa alguma aumente ou diminua a porção de água que tem destinada à irrigação ou ao enchimento de poços em cada lugar.

3º) Zelar e fazer com que os leitos dos canais principais, pontes e tampas se conservem em bom estado.

4º) Impedir e denunciar ao chefe político, ou juiz de paz, conforme o caso, os abusos, fraudes ou faltas dos lavradores, contrárias ao regulamento (Pérez, s. d., 641).

Estava previsto na lei que o juiz cobraria aos agricultores pelos serviços realizados, mas também teria uma série de deveres que, se não forem cumpridos, implicariam o pagamento de multas e até a perda do emprego. “Art. 9º) O chefe político da região conhecerá os abusos que cometam os juízes de água no exercício das suas funções e determinará a responsabilidade devida” (Pérez, s. d., 642).

A lei também determinava formas de distribuição da água para os vizinhos da região, como a seguir: “ordem de cima para baixo e encher os poços a cada 12 dias” (Pérez, s. d., 641). “O juiz de água criará um registro, no dia 2 de janeiro de cada ano, das culturas que tenham direito à irrigação em cada canal principal e segundo esse registro fará a distribuição das águas” (Pérez, s. d., 643).

Determina-se que, em casos de emergência pela perda de uma cultura, o juiz decida distribuir água para um agricultor sem ter que seguir a ordem estabelecida, sempre que isso não gerar danos ao outro produtor.

Art. 39º) O juiz de água, com prévia avaliação de técnicos, pode pular de um ponto de irrigação a outro, sempre que possa fazê-lo sem danos para quem perde o seu turno, sabendo da urgência de quem que vai ser beneficiado, já que sua cultura corre perigo. (Pérez, s. d., 646).

Os agricultores também tinham deveres e penas estabelecidos na lei, dentre eles:

1º) Pagar sem demora ao juiz de água a quantidade que se aponta neste regulamento.

2º) Ter limpado seus canais particulares e disposto o pessoal para receber a água na hora que o juiz tenha determinado (Pérez, s. d., 643).

O juiz devia informar sobre as faltas cometidas pelos lavradores ao chefe político e aos juízes de paz, para que esses agissem na imposição e execução das penas respectivas.

Ainda que a figura do juiz esteja institucionalizada pelas leis, as pessoas que cumprem essa função no Vale geralmente não agem da forma como mandam as normas e os regulamentos. O cotidiano da irrigação em Quíbor não está condicionado por essa institucionalização; embora os juízes ou distribuidores usem as leis e regulamentos para se orientar na tomada de decisões, a experiência e conhecimento do lugar e a tradição de usos e

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costumes pesam muito, tanto nas questões da distribuição da água, quanto para exercer a pouca autoridade que têm para resolver algum problema.

Em março de 1996, foi feita uma reforma parcial da lei municipal de 1984, em vigência atualmente, que regula o uso para irrigação das águas do riacho Atarigua. No artigo segundo dessa lei declara-se que “as águas mencionadas no artigo anterior9 pertencem em comum, desde tempo imemorial, aos habitantes deste município capital” (Concejo Municipal del Distrito Jiménez, 1996, p. 1). Dita lei trata da administração e da distribuição das águas e mantém a figura tradicional do juiz de águas e seus ajudantes, chamados de distribuidores e encarregados. Todos eles devem ser eleitos pelos agricultores, cadastrados como usuários do riacho. No artigo terceiro, decreta-se que “para atender à administração e ao serviço das águas do riacho Acarigua [Atarigua]10, haverá um juiz de águas com seus respectivos suplentes” (p. 1). A reforma parcial só modifica o artigo quarto do regulamento, que se refere aos detalhes da eleição do juiz de águas. A lei, como instrumento jurídico, mantém o espírito das leis de anos anteriores através de 9 seções e 44 artigos que dão conta de como devem ser distribuídas ditas águas, dos deveres e direitos do juiz e dos usuários, dos pagamentos e das multas e sanções a que podem ser submetidos os infratores da lei.

Ao estudar, portanto, a gestão da água de irrigação na Venezuela, tem-se que reconhecer suas raízes tanto nos sistemas indígenas como nas técnicas levadas pelos espanhóis ao longo da colonização e, posteriormente, com as migrações acontecidas no século XX. Portanto, as leis, regulamentos e os usos e costumes convivem em Quíbor na hora de administrar de forma tradicional a distribuição para irrigação do líquido fundamental para a vida, a água.

Foi a partir de conversas com uma funcionária da Gerencia de Desarrollo y Conservación da empresa Sistema Hidráulico Yacambú-Quíbor (SHYQ) que o problema da falta de água e as expectativas sobre o que aconteceria quando a represa começasse a funcionar, introduzindo novas formas de gestão da água, que tive uma visão mais clara dos atores que poderiam participar da pesquisa. Surgiram questões acerca dos modos de organização dos agricultores. No discurso de funcionários do SHYQ, dizia-se que as pessoas, e especialmente os agricultores do Vale, têm problemas para se organizar em associações para “lutar” pelos seus direitos ou para coordenar suas atividades, porém reconheciam que há formas organizativas tradicionais no manejo da água que consideram elemento importante para o futuro sistema de irrigação que a empresa construirá. Isso não me parecia lógico e sim contraditório, pois, como era então que essas pessoas tinham feito para lidar com a estiagem e com a distribuição da água por tantos anos se não tivessem tido uma organização efetiva nas suas relações cotidianas?

De modo geral, no Vale de Quíbor não existe um sistema organizativo dos produtores que lhes permita abordar coletivamente a busca de soluções aos problemas que os afetam, assim como a coesão necessária para se relacionar vantajosamente com os outros setores da economia. O sistema de produção tem se conformado sobre a base da individualidade-autonomia do sítio; cada produtor se propõe, e de fato consegue, em graus maiores ou menores, a alcançar suas aspirações econômicas e produtivas sem recorrer a uma organização que o apóie (SHYQ, 1998, p. 50).

Foram essas questões que me levaram a buscar informação sobre as formas de obtenção, distribuição e controle da água para irrigação utilizadas no Vale. Os funcionários do SHYQ apresentaram-me a alguns usuários das várias fontes de água no Vale, que me contaram sobre as diversas formas de distribuir as águas e a forma tradicional de gestão, e

9 Inclui as águas do riacho Atarigua.

10 Correção do autor.

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comecei a estabelecer um diálogo com eles sobre diferentes aspectos do cotidiano do trabalho na agricultura e da falta de água durante a estiagem.

Para realizar a pesquisa original utilizei como referencial epistemológico e metodológico as noções de: campo-tema11 de Peter Spink e a sua proposta de “lugar”, assim como seu trabalho sobre documentos de domínio público (1999, 2003a, 2003b, 2003c, 2004), localizando este estudo como parte de uma temática que ocorre em lugares determinados, nos quais eu me situo, mesmo não estando fisicamente presente; de matriz12 de Ian Hacking (1999), que me subsidia na compreensão de situações complexas como a da água de irrigação; a de análise de interface centrada no ator13, de Norman Long (1997, 1999, 2001), que me permite compreender como e onde se entrecruzam, ou não, os diferentes sentidos atribuídos à água (de irrigação) e sua gestão; e de práticas discursivas14, consideradas linguagem em uso (ação), na proposta de Mary Jane Spink (1999, 2002, 2003a, 2003b). Utilizando essas noções, analizo a organização tradicional para a distribuição da água de irrigação no Vale de Quíbor. Neste trabalho só discuto a distribuição tradicional da água do riacho Atarigua.

Situando os atores

A associação Aproagro V. Q., integrada por trinta produtores que, juntamente com outros usuários, utiliza como fonte a Quebrada Atarigua, um riacho cujas águas fluem de forma quase permanente a partir das montanhas de Sanare, seguem em direção ao Vale e são desviadas do percurso por meio de bucos (canais maiores) e acequias (canais menores), feitos de forma natural ou construídos pelos agricultores. Na época de chuvas esse riacho fornece água de irrigação para mais ou menos três mil usuários em todo o Vale mas, na área em questão, só ficam os trinta pequenos produtores já mencionados, além de alguns outros agricultores não associados. A distribuição e a administração da água dependem da abundância ou da escassez do recurso. As pessoas entrevistadas foram: o juiz de água do riacho Atarigua e um membro fundador da Aproagro V. Q.

Sanare é a capital do município Andrés Eloy Blanco e é nas suas montanhas que está o manancial do riacho. Antigamente pertencia ao município Florencio Jiménez, cuja capital é Quíbor. Uma vez separada e convertida em capital do município Andrés Eloy Blanco, passou a gerar novas formas de relacionamento entre os agricultores de ambas as populações a respeito dessa água. Isso significou o estabelecimento de turnos de água para cada povoado na época da estiagem. Assim, de janeiro a abril, os vinte agricultores de Sanare, registrados pelo Ministério do Ambiente como usuários do riacho, compartilham da água com os agricultores de Quíbor em turnos de doze horas diárias, de dia ou de noite, e três vezes por semana. Como exemplo temos que no mês de janeiro, entre segunda e quarta, os agricultores de Sanare recebem a água, em grupos de quatro, por doze horas contínuas, e quinta, sexta e sábado, a

11 “o campo é o método e não o lugar; o foco está na compreensão da construção de sentidos no espaço de vida do indivíduo, grupo, instituição e comunidade” (Spink, 2003a, p. 35).

12 Quanto à noção de matriz, Ian Hacking (1999) a utiliza para nomear o cenário social em que as idéias, as noções e os sentidos são socialmente construídos. Assim, os sentidos atribuídos à água são construídos numa matriz de relações muito complexa que é constituída por instituições, agricultores, mediadores (como os distribuidores e os juízes de água), leis sobre uso e distribuição da água e também pelas materialidades, represas, lagoas, canais, etc., que ora possibilitam, ora obstaculizam determinadas relações sociais no campo-tema da gestão da água de irrigação, das diversas fontes, no Vale de Quíbor.

13 Long (2001) define a interface como: um ponto crítico de interseção entre os mundos de vida, entre os campos sociais ou entre os níveis de organização social no qual as descontinuidades sociais, baseadas em discrepâncias de valores, interesses, conhecimento e poder, têm maior chance de ser localizadas (p. 243).

14 M. J. Spink (1999), na sua proposta teórico-metodológica que considera as práticas discursivas como linguagem em uso, ou em ação, e as define como “as maneiras a partir das quais as pessoas produzem sentidos e se posicionam em relações sociais cotidianas” (p. 45).

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água é disponibilizada para os agricultores de Quíbor. Aos domingos não se distribui a água, e só a utiliza quem quer. Esses turnos são determinados pelos próprios agricultores no mês de dezembro de comum acordo e o chefe do Ministério é o responsável pela realização do quadro de turnos e de sua distribuição entre todos os agricultores

Pode-se dizer que Isidro, o atual juiz do riacho, quase herdou essa função do seu pai, que se chamava Periples. O pai foi muito famoso e respeitado por ter organizado a distribuição da água e ter controlado a maioria das brigas causadas pelos roubos de água entre os produtores vizinhos. Após mais de vinte e cinco anos como juiz, aposentou-se e deixou a atividade para o filho, que ocupa o cargo atualmente. Sua eleição teve um importante apoio, baseado na conduta correta do pai por tantos anos. Como já vimos, a figura do juiz está estabelecida nas leis municipais do Vale, conhecidas pelo menos desde meados do século XIX.

Isidro apresentou-se como uma pessoa justa e compreensiva nos casos em que teve de decidir a quem distribuir a água, principalmente quando se tratou de risco de perda da colheita. Ele afirma fazer o possível para levar a água aos que mais precisam, mesmo tendo de descumprir os turnos. Percorre o riacho várias vezes durante o dia procurando desvios ilegais e dialogando com os produtores de Sanare para tentar evitar os conflitos. Conversamos duas vezes: a primeira, num terreno que ele havia alugado para cultivar e, a outra, durante um percurso que fizemos juntos por sete quilômetros ao longo do riacho Atarigua. O riacho é a fonte de água mais importante da região devido ao volume de água que corre pelo leito e ao número de agricultores que se beneficiam dele.

Uma outra pessoa indicada pelo pessoal do SHYQ como conhecedor da gestão de água do riacho foi o Andrés, com quem me encontrei à beira de uma estrada, onde ele estava descascando feijão preto com mais dois empregados. Definiu-se como agricultor, beneficiário das águas do riacho e comentou que trabalhava na agricultura desde os treze anos. Foi fundador e líder da associação Aproagro V. Q., criada em fins da década de oitenta, para organizar a distribuição da água do riacho, devido a uma série de conflitos ocorridos entre os produtores do Vale e os de Sanare.

Segundo Andrés, o processo de formação da associação Aproagro V. Q. foi produto do interesse de mais de oitenta produtores em solucionar as pendências acerca da distribuição da água entre os agricultores do Vale e os de Sanare,. Para isso, reuniu-se com pessoas do Ministério do Ambiente e da Guarda Nacional, com as quais foi estabelecido um acordo de distribuição da água pelo sistema de turnos.

O riacho Atarigua: as terras que ele percorre e as pessoas que podem usá-lo

Na parte superior do riacho Atarigua ou Acarigua como também é conhecido, origina-se uma corredeira importante (quase permanente) durante o ano todo, utilizada, junto com as águas que afluem de outros riachos da região, para irrigação, tanto na zona alta (arredores de Sanare) como na zona baixa (Vale de Quíbor), mediante irrigação direta ou pela armazenagem de água em lagoas de diferentes tamanhos (SHYQ, 1995).

Quando as águas não são permanentes, como no caso de riacho Atarigua, existe a tradição de irrigar primeiro quem está mais perto das nascentes, e na seqüência, conforme a organização dos usuários água abaixo, isso se conhece no lugar como “ordem de tapas15” (Esteves, 1999, p. 28).

15 A “tapa” é uma medida usada na região para saber a quantidade de água que flui por um determinado canal.

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A limitação do uso dessa importante fonte de aproveitamento reside no fato de que ela não ocorre de forma permanente, já que a água dos leitos utilizada após as chuvas se esgota durante o período da seca. Devido aos custos e ao tipo de tecnologia requerida para a armazenagem da água, as lagoas construídas pelos pequenos produtores não apresentam boas condições técnicas e não contribuem para boa qualidade da água armazenada. No Vale de Quíbor as lagoas têm se tornado um investimento próprio da atividade produtiva de grandes fazendas, incrementando-se, nos últimos anos, a ocupação da área com lagoas de grande porte, passando de 450 hectares em 1972 para 1.933 hectares em 1990 (SHYQ, 1998).

Isidro, o juiz de água do riacho na região do Vale, é a pessoa encarregada pela distribuição regulamentada da água de irrigação no riacho Atarigua, mas também toma decisões no local seguindo a sua experiência de muitos anos quando necessário. A presença da figura do juiz no Vale está prevista nas leis municipais que ditam as normativas desde pelo menos 1850. O juiz não julga nem penaliza, mas informa às autoridades competentes, à polícia, à guarda nacional, à prefeitura, ao Ministério do Ambiente etc., sobre as violações dessas normativas e resolve os problemas cotidianos através do diálogo com os envolvidos nos desacordos. Sua escolha é feita pelos próprios agricultores em eleições que se realizam a cada um ou dois anos, ou dependendo da dinâmica do lugar; por exemplo, quando há uma estação muito chuvosa ou o trabalho do juiz é considerado muito bom ou não há candidatos para o cargo, as eleições não são realizadas e o juiz atual se mantém no cargo. Ele é considerado uma pessoa muito importante para falar sobre os direitos e o gerenciamento das águas do riacho, pela sua importância no cotidiano da distribuição da água nesse lugar.

Isidro menciona os principais canais que levam a água do riacho e os direitos que alguns dos agricultores têm sobre essa água. Ele faz questão de dizer que esses direitos são legítimos, mostrando seu respeito pelas leis e pela tradição. Ele diz que os produtores do Vale têm que lutar pelo que é, e sempre tem sido, deles: uma parte da água do riacho, contrapondo-se à idéia sustentada pelos agricultores de Sanare de que como o riacho nasce nos cumes de suas montanhas, no seu município, a água é deles:

Ellos están arriba, se atienen a eso “nosotros estamos arriba y no podemos perder, el agua es de nosotros” (…) ellos son ya municipio y el agua ‘y que es de ellos’, dicen ellos, hasta ahí nosotros peleamos por lo que nos toca y siempre nos toca algo (Isidro).

Esteves (1999) confirma a prioridade que teriam os agricultores localizados nas zonas altas para desviar a água para suas terras:

Ao passar do tempo o riacho Atarigua diminui seu caudal como conseqüência das prolongadas secas, o desmatamento indiscriminado na sua bacia e o incremento considerável de irrigadores nas zonas altas de El Molino, Quebrada Seca e Cuara, que têm prioridade para derivar a água para os seus sítios por estarem mais pertos da ladeira da montanha, águas acima nas tomadas de água (p. 63).

Logo, Isidro refere-se aos direitos que têm os produtores de Sanare sobre as águas do riacho, os quais foram adquiridos pela tradição de usos e costumes e conhecidos no jargão do direito como consuetudinários e, a partir do uso que os agricultores fazem de canais, geralmente naturais16, legalmente estabelecidos, e que descem seguindo o fluxo da gravidade da água. Ele também justifica o uso atual de bombas de motor para a coleta de água e seu armazenamento em lagoas para sua utilização em um grande número de áreas de cultivo e que tem aumentado nos últimos anos nessa região. O juiz faz uma descrição dos principais canais por onde passa a água e algumas das separações construídas, até chegar ao lugar

16 A maior parte das águas do riacho flui por canais naturais, mas os agricultores também fazem canais artificiais para levar a água até seus plantios.

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chamado de Quebrada Seca. Por fim, Isidro argumenta sobre os direitos dos agricultores do Vale e menciona os canais principais de água na região.

Sanare tiene dos derechos ahí que son: uno es de Hugo, creo que ese lo tiene Abilio, que ese se murió, que esos son bucos legales, bucos que están de gravedad, que esos no bombean con bomba de achique, bueno, ahorita sí porque están sembrando más pero tienen su derecho y el otro es Diogo, que ese lo tiene el otro Patricio que es Armando, de ahí viene Majá Vieja que es de Livio, después viene el Buco de La Caja, que llaman, que se llama el buco de El Totumo que es de Henrique, de ahí sigue El Hiscanero, a mano izquierda bajando, tiene sus ramales, eso tiene bastante tierras para regar, después viene El Rafaelero, que es uno que atraviesa Cuara, pero arriba, o sea de Quebrada Seca ahí se ve donde pasa él, eso riega por ahí legalmente, de ahí pasa son cuarenta tareas que riega nada más, ese es el derecho (Isidro).

A distribuição das águas do riacho se realiza baseada nas leis nacionais e municipais, as quais estabelecem turnos para a distribuição de mútuo acordo entre os agricultores de Sanare e de Quíbor. No início do período da estiagem, geralmente durante o mês de janeiro, o Ministério do Ambiente entrega aos agricultores um impresso que estabelece a forma como deverá ser organizada a distribuição desses turnos entre os meses de janeiro e abril17. O sistema de irrigação do riacho abrange grande parte das áreas de plantio ao redor dos povoados de Cuara, El Molino, San Antonio, El Tunal, Morón, El Hato, El Cerro, Chaimare, El Jagüey e outros menores (Esteves, 1999, p. 64).

No terreno, Isidro organiza o trabalho com seus ajudantes18, quando os tem, e o faz orientando-se pelos turnos, e não pela antiga lei municipal como era o costume, porque agora existem as lagoas e alguns dos agricultores podem armazenar água. Isso modifica as decisões que o juiz deve tomar de acordo com as circunstâncias do dia-a-dia. Por exemplo, quando Isidro comenta que tem de levar água para quem tenha mais necessidade, mesmo que esteja localizado mais abaixo que aquele que tem o turno nesse momento.

Bueno, el trabajo es, mira, distribuirles a los agricultores, o sea que se va llevando, cuando la Ordenanza vieja era tapa por tapa, pero, eso se eliminó porque eso era cuando no había lagunas, no había depósitos, ahora con esto no. Usted por lo menos está del lado abajo, yo estoy regando aquí por lo menos, y usted está seco, yo tengo una cuestión, uno o dos riegos yo el agua se la llevo a usted, porque usted está más necesitado que yo, así esté yo arriba, esa es la cuestión aquí, el trabajo (Isidro).

Seu serviço começa todos os dias num lugar chamado Vila Rosa. Ali, todos os agricultores, que nesse momento têm plantações, reúnem-se e, tomando em conta os direitos de água que possuem pela tradição ou pela compra de alguma terra e dos turnos, negociam a entrega da água e tomam decisões sobre a distribuição, baseadas na quantidade de produtores com cultivos, os tipos e tamanhos dos cultivos, a quantidade de água disponível e outras situações que ele destaca. Geralmente a água é levada de cima para baixo, mas pode haver exceções.

Bueno mira, el reparto se hace ahí de Villa Rosa para abajo [Ajá]. Ahí la gente, ellos agarran una porción de agua todos los días y yo los turneo, cuando está el agua poca, yo los turneo, les doy dos días tres días, a que Helcio, de ahí vengo trayendo el agua de pa´bajo (Isidro).

Nas suas palavras, temos a descrição de como ele faz o trabalho e as diferentes decisões que toma, dependendo da situação: excesso de água, escassez extrema, perda de uma cultura ou possibilidade de morte de animais, não cumprimento do turno por algum

17 Isso vai depender da quantidade de chuva nesse período, pois se houver água suficiente, os turnos não são mantidos.

18 Os ajudantes podem ser dois distribuidores e mais alguns encarregados, que devem percorrer todo o riacho e ficar atentos ao cumprimento dos turnos ou aos problemas que possam ocorrer.

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agricultor ou o roubo de água. Para isso ele tem a ajuda de distribuidores e encarregados que o acompanham nessa vigília, fazendo percursos várias vezes ao dia na época da estiagem. De acordo com seu relato, existem épocas nas quais ele tem de trabalhar sem ajuda nenhuma, porque ninguém quer trabalhar pela falta de pagamento ou pelo pouco que podem ganhar com esse trabalho.

Sobre a quantidade de dinheiro que recolhe e a falta de pagamento de um salário por parte da Prefeitura, ele afirma que tem de dar 50% do valor cobrado aos agricultores para a Prefeitura, os 50% restantes ele divide com os ajudantes. Segundo Isidro, ele não tem salário, sustentando-se com o que recebe dos agricultores, e o juiz não ganha nada quando não há água.

[Cuánto les pagan a ustedes por eso?] Mire aquí no le pagan, el Concejo Municipal no le paga a nadie, siempre, el Concejo Municipal hay que, yo recojo tanto, pongámosle 100 mil bolívares en el mes y yo tengo que darle 50% a ellos. Ellos no le tienen sueldo a nadie, o sea que uno se mantiene de los agricultores, ahí cuando no hay agua el juez de agua no gana nada, es así de simple (Isidro).

Continuando com o tema do pagamento, as normativas estabelecem que os produtores que recebem água do riacho devem pagar ao juiz uma quantidade já acordada e que ele deve repartir esse dinheiro com seus empregados e entregar uma parte à Prefeitura. Porém, segundo ele, e após uma experiência de doze anos no cargo, aponta que a maior parte dos agricultores não paga, ou paga menos do que deve ou com retardo, mas ele não deixa de distribuir-lhes água por isso. Umas das razões que apresenta para continuar distribuindo-lhes água, ainda que não paguem por ela, é a necessidade que existe da passagem da água pelas terras desses agricultores. Por isso, nesse caso, o pagamento é um poder do produtor que contribui para a continuidade do trabalho do juiz e da tradição.

Mire aquí hay personas, ya yo voy para doce años ya, ahorita los cumplo en enero, bueno, aquí hay tipos que no me han dado ni medio, en doce años de trabajo, pero bueno, yo tampoco estoy con eso [¿Y usted le da el agua?] Sí, de todas maneras le doy su turno normal y... [¿Por qué le dicen que no le van a pagar?] Son carajos que los primeros días, “no, yo estoy quebrado, yo no tengo”, y yo no, para sacarlos, porque siempre hay alguna persona más abajo que ellos, hay que darle a ellos, para pasar el agua para abajo (Isidro).

Sobre os conflitos

Isidro dá sua versão dos conflitos que ocorrem na distribuição da água. Ele é quem realiza a maioria das interfaces entre os produtores de Sanare e de Quíbor, sendo essas, aliás, as mais problemáticas, por envolverem agricultores que dividem o riacho, ficando um grupo deles na parte de cima, o que lhes dá uma certa vantagem, e os outros, na parte de baixo. Em primeiro lugar, fala do descumprimento de turnos estabelecidos pelo Ministério do Ambiente. Argumenta que a Guarda Nacional tenta controlar um pouco os roubos e a falta de cumprimento dos turnos. No entanto, os agricultores de Sanare, pelo fato de estarem riacho acima, afirmam ser os donos da água, embora as pessoas do Vale continuem a lutar pelo que consideram seu direito. Ele utiliza a expressão, “sempre a gente recebe algo” para se referir ao fato de que, ainda que pouca, eles sempre recebem água, resignado a que os de cima “tenham mais direito” do que ele, que faz parte do grupo dos que estão riacho abaixo.

…eso es una cuestión que la ha turneado el ambiente, pero eso en veces no se respeta, esa es una de las cuestiones [¿O sea que ustedes a veces tienen problemas con el agua porque los de arriba no les paran?] Sí los tenemos, vamos a la Guardia y la Guardia medio controla pero

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no es igual, ellos están arriba, se atienen a eso “nosotros estamos arriba y no podemos perder, el agua es de nosotros”, eso era cuando Quíbor pertenecía a... Andrés Eloy pertenecía a Jiménez, era más distinto, pero ahorita no, porque ellos son ya municipio y el agua y que es de ellos, dicen ellos, hasta ahí nosotros, peleamos los que nos toca y siempre nos toca algo (Isidro).

Nas interfaces com pessoas que não são usuárias da água, mas que tiram areia do riacho para vender nas construções de prédios e casas, ele conta que apenas alguns deles se juntam a ele para fazer o trabalho. Comenta um episódio em que quase teve de brigar com vários operários de Barquisimeto (que afirmou estarem drogados) porque não gostaram que lhes dissessem o que tinham que fazer para não prejudicar a passagem da água pelo riacho. Os trabalhadores o chamaram para se bater com as mãos, mas ele respondeu que não estava ali para brigar e sim para trabalhar e organizar a extração da areia. Porém, menciona que, se tivesse um revólver, ele o teria usado. Comenta que teve de ir à procura da polícia, que os obrigou a esvaziar os caminhões. No final, disse a eles que isso havia ocorrido por não terem seguido suas instruções e que perderam o trabalho.

Hay unos que son muy buenos y otros que se pasan de vivos, como hay gente que, yo el otro día a unos carajos de Barquisimeto, llegaron allí, si he tenido un revólver te digo que lo fuera cargado, palabra chico, les digo “aquí no vayan a acabar con esto, por esto”, unos carajos endrogados ahí, andaban como cinco, “ah, vamos pa allí, para que nos echemos”, (sonríe nervioso), “yo no ando, yo ando es trabajando, yo no ando peleando”, les dije, “los estoy es ubicando para que no, ni ustedes sean molestados ni yo tampoco, los que llevan el agua y tal”, entonces tuve que venirme, tuve que buscar a la Policía, después que habían hecho el trabajo completo, llenado los volteos, tuvieron que vaciar la arena otra vez, perdieron el trabajo, “eso pasa por ustedes, por que yo los estoy es ubicando para que hagan su trabajo”, les dije, “entonces, ustedes a cuenta de guapos”, no, la cosa aquí se ha trabajado más o menos (Isidro).

Ele aponta que antigamente surgiam mais conflitos e com conseqüências muito piores. Acrescenta não “ter colocado ninguém para brigar”, o que quer dizer que suas decisões na distribuição da água não têm levado a brigas nem confusões, porque, aliás, as pessoas têm melhorado seu comportamento. Refere-se, também, ao homicídio de um agricultor pelo roubo do turno de água. Isidro vai-se posicionando e mostrando as diversas arenas de encontros nas quais as interfaces sociais têm resultados diversos, entre eles, a morte, ferimentos com armas de fogo, facão ou discussões agressivas, todos causados, entre outras razões, pela má distribuição da água.

No diálogo que mantive com Isidro aparecem várias questões interessantes sobre os conflitos pelo uso da água. Ele parte da idéia de que as pessoas têm de ter palavra e manter as decisões que foram tomadas. No conflito narrado abaixo, a partir da minha pergunta sobre se as pessoas brigavam antigamente pela água, ele comenta que acha que um agricultor, Carlos, agiu legalmente quando matou um tio de Isidro, Antonio, com um facão, pois este sempre tirava o turno de água daquele, até que Antonio se cansou e botou o corpo, atravessado, no canal, tingindo-o de sangue.

Hasta hoy no he tenido problema que no he echado a pelear a nadie, porque aquí la gente se han acomodado, aquí lo que hay que tener es palabra [¿Antes se peleaban?] Sí, aquí han matado gente por cuestiones del agua [¿A quién por ejemplo?] Aquí mataron a un carajo que era hasta tío mío, se llamaba Antonio, el papá de Alberto y todos esos carajos, lo mató un señor que él era, por cierto de El Hato era ese carajo, Carlos, pero te digo, él lo mató legalmente porque el hombre se la tenía aplicada, él tenía su, le daban su turno a él y el hombre, el otro se burlaba de él, se la quitaba y el hombre se obstinó, lo mató, lo mató en el buco (Isidro).

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Isidro conta outro conflito pela água quando Amado (que tinha assasinado Mario) esfaqueou Cristiano por problemas de água. Ele não explica como não houve conseqüências fatais. Ambas as pessoas envolvidas nessa briga já morreram.

…en El Molino hubo otro carajo, Cristiano, los dos están muertos ya, un tipo que lo mató un carajo de Playa Bonita, que mató a Mario, en esa curvita que está jodida ahí, ese lo mató, cómo se llama él, Amado, debe ser ese carajo, ese carajo macheteó, por un agua también a Cristiano, le cruzó el machete, yo no sé como no lo mató (Isidro).

Segundo Isidro, o último conflito aconteceu há quinze anos. Foi quando Luciano e Pedro brigaram por uma água mal distribuída, pois, Cirilo, o distribuidor, deu o turno a Luciano, e Hernam, o encarregado, deu o mesmo para Pedro, que, por sua vez, atirou em Luciano, achando que o turno fosse dele. Isidro comenta que Pedro é muito bravo e que embora o turno não fosse dele e que o encarregado tenha cometido um erro, pois Luciano estava antes na distribuição, sacou o revólver e atirou. Para ele, os dois homens não quiseram ceder e por isso começaram a briga.

…y el lío que hubo últimamente ahí, que fue allí por el buco este, Luciano con el Pedro, por cuestiones de un agua, mal repartida porque Cirilo le dio el agua a uno y Hernam se la dio al otro y después no se entendieron ninguno y ellos en la tabla, Luciano está primero y Pedro no quería que se la quitara y le dio un tiro al otro, por agua [¿Hace cuánto fue eso?] No, eso fue hacen ya creo, más de 15 años, fue por eso, por esa agua que se la dieron a los dos, entonces, ninguno se querían dejar y se vinieron a discusiones [¿Eran dos repartidores?] No, había el juez de agua y un repartidor, el juez dijo uno y el repartidor dijo otro, entonces los muchachos se entendieron mal ahí, que no era porque si tú estás primero yo tengo que respetarte que tú estás primero, pero ellos no, porque Pedro se la da de más jodido, peló por el revólver y le dio un tiro al otro.

Considerações gerais

O roubo de água do riacho é uma das problemáticas que mais aparecem nas narrativas e conversas dos juízes e agricultores do Vale e é a situação que tem causado os maiores conflitos entre eles e os produtores de Sanare. Por outro lado, parece ser uma das principais razões para que pagarem o juiz que controla a distribuição, apoiando-se, é claro, nas normas e regulamentos estabelecidos.

Os turnos de distribuição são elaborados pelo Ministério do Ambiente e se baseiam na tradição e nos conhecimentos acumulados pelos produtores sobre a melhor forma de se organizar a respeito. Ambos os grupos se comprometem a respeitar o que é decidido a cada ano, durante as épocas de estiagem e o verão.

Os sentidos negociados podem mudar, e de fato mudam ao longo do tempo, e as práticas discursivas dos atores do Vale mostram essas modificações, ao se posicionarem uns com os outros e em suas diversas formas de reagir. Embora existindo leis, ordenanças e normas escritas e mantidas por tradição, essas pessoas evidenciam, nas suas falas, formas próprias de se relacionar não estabelecidas nesses documentos, negociando cotidianamente e se organizando para o manejo da água de irrigação.

Esta pesquisa permite-nos refletir sobre os diferentes tipos de agência (Long, 2001) dos atores do Vale: as habilidades e capacidades para negociar seus pontos de vista, os vários jeitos de olhar o mundo e dar sentidos a um cotidiano em que a violência é uma das alternativas possíveis, mas em que negociações e acordos também são perfeitamente viáveis

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como resposta às interfaces complexas. Do mesmo modo, mostra como, a partir da psicologia social, podemos entender alguns dos processos e mecanismos que se estabelecem na co-construção de “mundos de vida”19 ou projetos pessoais, às vezes confluentes entre as várias pessoas, mas contraditórios em outros casos, em situações como a da gestão de água de irrigação no semi-árido venezuelano.

Apesar da generalizada crença de que as pessoas no Vale de Quíbor apresentam dificuldades de pensar e agir de forma coletiva, entendo que a sua real dificuldade é de se organizar seguindo padrões externos e pré-estabelecidos de organização, baseados no pressuposto de alguns funcionários ou especialistas que acreditam que essas formas são as únicas ou as válidas para que se consiga o entendimento e a ação conjunta de pessoas num lugar determinado, no que se refere a um bem como a água. Há muitas experiências de negociações e acordos entre os produtores do Vale que podem servir para orientar questões novas que surgem, como, por exemplo, a venda de uma fazenda a um produtor externo, não acostumado com as normas e procedimentos estabelecidos e aceitos pelo grupo de usuários de determinada fonte de água, o que contribuiu para gerar conflitos e alterações na dinâmica cotidiana.

Neste estudo, pode-se observar que existe organização, que as pessoas conversam, negociam, chegam a acordos e que também, às vezes, brigam. Mas que elas podem fazê-lo, e geralmente o fazem, sem a tutela de pessoas ou entidades externas às suas comunidades. Essa tutela pode muito bem ajudar, mas não condicionar a forma de lidar com o cotidiano da distribuição da água.

Personagem central nesse mundo da gestão tradicional da água é o juiz de água. É ele que tem de negociar no dia-a-dia, em primeira instância, como vai ser distribuída a água entre os agricultores. Ele tem, também, nas interfaces com as autoridades, o poder de agir (tomando decisões muitas vezes não estabelecidas nos regulamentos e nas leis) pela agência, o conhecimento e o poder que lhe é dado, na sua condição de eleito pelos próprios produtores, ainda que isso não garanta que ele represente a todos. Mais ainda, os juízes ou distribuidores têm de tentar resolver os conflitos que surgem constantemente, ainda que em menor quantidade em comparação com épocas passadas, em meio a uma questão tão delicada como a distribuição eqüitativa da água em situações de escassez.

A gestão de água do riacho Atarigua serve de exemplo, como forma tradicional de gestão, para as outras fontes coletivas de água de irrigação no Vale. A figura do juiz, sustentada nas antigas leis, constitui na região uma experiência fundamental, valorizada por todos os interlocutores. O sistema de distribuição por turnos é utilizado para estabelecer acordos e evitar que surjam conflitos ou que esses tragam conseqüências graves para os agricultores. O juiz do riacho deve se relacionar com todos os usuários dessa água, mas, também, com os funcionários do Ministério do Ambiente, da empresa SHYQ, quando é preciso, e com pessoas alheias ao sistema de irrigação. Nessas interfaces ele tem de demonstrar capacidade para negociar e chegar a acordos ou utilizar sua autoridade e poder para fazer cumprir as normativas que ele conhece muito bem (Long, 2001). Nas suas práticas discursivas, ele utiliza argumentos sobre a importância do papel do juiz na distribuição da água para justificar e dar sentido ao cotidiano que compartilha com todos esses outros atores do Vale, principalmente na época de estiagem, quando os interesses particulares entram em conflito com os interesses coletivos. Embora não pareça existir nos agricultores uma idéia de trabalho coletivo, como alguns funcionários e técnicos apontaram, fica muitas vezes evidente que quando se fala sobre qual é o interesse maior, a idéia do coletivo prevalece sobre o individual, o que mostra um certo senso de união entre os usuários dessa água.

19 Segundo Long (2001), os “Mundos de vida é o termo usado por Schutz, para descrever os mundos “vivenciados” (lived-in) e “tidos como óbvios” (take it for granted) dos atores sociais. Eles envolvem a moldagem da ação prática que passa pelas intencionalidades e pelos valores e são essencialmente definidos pelo ator” (p. 54).

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Endereço para correspondência: [email protected]

Recebido em: 02/05/2005Pareceres enviados em: 04/07/2005

Aprovado em: 26/07/2005

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Trabalho, organização e pessoas com transtornos mentais graves

Paulo César Zambroni-de-Souza1

Universidade Estadual do Rio de Janeiro

Este artigo aborda o trabalho, em especial o trabalho de pessoas com transtornos mentais graves. Encontra-se socialmente predominante a visão construída na história da psiquiatria de que essas pessoas não podem trabalhar, que são incapazes de adequar-se às exigências presentes em qualquer meio de produção ou serviço. Esse julgamento de incapacidade acabou por aumentar o isolamento e impedir uma aproximação maior dessas pessoas com o trabalho. A ergologia, abordagem desenvolvida para compreender e transformar o trabalho, foi tomada aqui como ferramenta principal para pensá-lo em sua relação com pessoas que sofrem de transtornos mentais graves, considerando a realidade dos mundos do trabalho e da reforma psiquiátrica no Brasil hoje.

Palavras-chave: Trabalho, Transtorno mental, Ergologia, Competência, Reforma psiquiátrica.

Labor, organization and people with severe mental ill

This paper deals with labor, particulary the labor of people with severe mental ill. It has been widely spread in the point of view proposed in the history of psychiatry, according to which these people may not work and are incapable to address the demands from the production and service means. It helped to increase the isolation of these people, wiping them away from the work environment. In this work the ergology, developed approach to understand and transform the labor, has been taken as the main tool to think it in to relation with these people, taking into consideration the reality of the worlds labor and the psychiatric reform in Brazil.

Keywords: Labor, Mental illness, Ergology, Competence, Psychiatrical reform.

ste artigo pretende pensar questões relativas ao lugar do trabalho na vida de pessoas com transtornos mentais graves. Sabemos que essa expressão – pessoas com transtornos mentais

graves – não designa uma categoria única, ou seja, a partir dela pode-se pensar em pessoas e situações muito diversas. Sabemos também que quando utilizam-se categorias abstratas, que não se referem a nenhum grupo ou situação específicos, corre-se o risco de cair em generalizações vazias. Entretanto, pensamos não ser satisfatório o uso de entidades nosológicas como as da CID-10 (Organização Mundial de Saúde) ou as da revisão do DSM-IV (Associação Psiquiátrica Americana), que procuram classificar o sofrimento psíquico em parâmetros clínicos supostamente representativos de uma neutralidade científica, mas que acabam por empobrecer seu objeto, reduzindo pessoas a transtornos mentais, e podem trazer consigo a tradição de uma psiquiatria que, desde Pinel, acabou por isolar pessoas do trabalho e do convívio social aberto. Por outro lado, pensamos que a noção de “existência-sofrimento do sujeito em relação com o corpo social” (Rotelli & Amarante, 1992, p. 52), proposta por Basaglia, que busca superar os diagnósticos propostos pela psiquiatria por reconhecer que estes assumem “(...) o valor de um rótulo que codifica uma passividade dada como irreversível” (Basaglia, 1985, p. 108), é por demais genérica e não dá conta de situações de vidas singulares.

E

Apesar dessa dificuldade inicial de conceituação, estamos admitindo a existência de pessoas que em determinados momentos de suas vidas experimentam alterações psíquicas,

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com estágio de doutoramento na Université de Provence, França, fomentado pelo programa PDEE/CAPES. Psicólogo e mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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ocasiões em que não conseguem estabelecer uma boa relação consigo mesmas nem com quem está ao seu redor, condições que podem dificultar a cooperação que a atividade de trabalho exige. Na tentativa de classificação desses fenômenos, Pinel escreve sua nosografia (Bercherie, 1989, p. 34), a CID apresenta diversas categorias, Basaglia fala em existência-sofrimento, as pessoas não iniciadas em psiquiatria ou saúde mental, por sua vez, utilizam várias expressões. Não é nossa intenção neste artigo propor possíveis desembaraços a essa questão classificatória.

Vamos nos contentar, no momento, em admitir que pessoas apresentam sofrimento psíquico em diferentes graus e em situações diversas durante suas vidas. Algumas são freqüentemente enquadradas em categorias diagnósticas e recebem tratamentos. Vamos tomar como ponto de partida que, ao defrontarem-se com algumas dessas crises, elas geralmente afastam-se ou são afastadas do trabalho. Aquelas que tinham emprego freqüentemente o perdem, as que tinham trabalho informal deixam de tê-lo, por vezes, perdem o direito de realizar até trabalhos domésticos em suas próprias casas. Optamos por utilizar neste artigo a expressão “transtornos mentais graves” na medida em que podemos nos valer de conhecimentos produzidos no campo da psiquiatria, cuidando para que eles não correspondam “(...) a uma etiquetagem e a uma estigmatização do doente (...)” (Basaglia, 1977, p. 13). Vamos guardar o termo “grave” por entender que as pessoas tomadas como foco de reflexão neste texto vivenciam situações em que os transtornos mentais podem trazer grande sofrimento. Não pretendemos, no entanto, estabelecer critérios de gravidade como a CID-10 ou o DSM-IV fazem. Por outro lado, entendemos que esses mesmos fenômenos, as peculiaridades vividas em uma situação de trabalho e a própria vida não se limitam ao que a psiquiatria ou qualquer outro saber pode produzir.

Sabemos, com a ergologia, que o trabalho está sempre inserido na história (da espécie, da sociedade, do sujeito) e nela intervém, de modo que tentar compreendê-lo supõe também considerar as condições conceituais e históricas nas quais cada pessoa é confrontada (Schwartz, 1995a, p. 418), de maneira que faz-se necessário de início tratar da relação das pessoas com os transtornos mentais com o trabalho e com a psiquiatria.

A ergologia é uma abordagem que tem como principal centro de desenvolvimento o Departamento de Ergologia, na Université de Provence, França, cujo diretor científico é o professor Yves Schwartz, que tem a atividade como ponto de partida e de chegada para compreender o humano, especificamente no trabalho. Por ter como objetivo compreender e transformar o trabalho, essa abordagem será tomada como principal fonte de inspiração teórica neste artigo.

Trabalho, psiquiatria e transtornos mentais

Desde o início da psiquiatria, trabalho e loucura andam, paradoxalmente, ao mesmo tempo juntos e separados. A psiquiatria nasceu trazendo a loucura para o campo de cuidados da medicina. Pinel inaugurou o alienismo fundando o asilo, no mesmo momento que Tuke fundou o retiro. Às pessoas confinadas nesses espaços era atribuída uma “incapacidade de trabalhar”, que confirmava a necessidade de sua reclusão para tratamento, conforme mostra Foucault (1987, p. 78): “(...) o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo (...)”. Esse julgamento de incapacidade para trabalhar coincide com um momento histórico em que os próprios trabalhadores eram considerados também incapazes de conduzir suas próprias vidas e de pensar por si mesmos (Castel, 2001, p. 305). De uma certa forma, então, pesava sobre o operário e sobre o louco um julgamento de incapacidade.

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Para que os operários se libertassem desse julgamento – ainda que parcialmente, uma vez que esse preconceito não está totalmente superado – foi necessário um longo processo, que passou também pela luta para ter sua voz ouvida e seus direitos garantidos. Encontramos exemplos dessa luta no movimento dos trabalhadores, com os operários franceses, anos mais tarde, na década de 1940, reivindicando uma medicina do trabalho que não estivesse apenas a serviço da empresa, como mostra Billiard (2001, p. 55), ou ainda com os próprios operários buscando ocupar um lugar de importância na detecção e controle da nocividade do trabalho, evidenciando seu papel na construção dos conhecimentos sobre sua própria saúde no trabalho, o que ficou conhecido como Movimento Operário Italiano de luta pela saúde (Oddone, 1981). No Brasil, a era Getúlio Vargas desenvolveu um sindicalismo atrelado ao Estado no momento em que o presidente da república intitulava-se “pai dos pobres”. Um amplo questionamento do lugar dos sindicatos frente ao poder do governo federal, sobretudo durante os anos da ditadura militar, contribuiu para a construção de outra relação dos trabalhadores com os governantes e empresários, contrariando a visão de incapacidade do operário para pensar, a qual , aliás, foi um dos sustentáculos do taylorismo2.

O desenvolvimento do modo de produção capitalista e a ascensão da burguesia trouxeram, durante o século XVIII na Europa, a necessidade do “trabalho livre” em contraposição ao trabalho de servos e escravos (Castel, 2001, p. 232). No entanto, essa liberdade não se tornou direito de todos. Como havia a necessidade de acumulação e reprodução ampliada de capital através da produção de bens materiais, aos operários foi possível viver, e freqüentemente morrer, nesse tipo de liberdade para vender sua força de trabalho no mercado capitalista. Enquanto isso, o louco foi trancado no hospício, não podendo sequer reivindicar sua entrada no circuito da produção.

No manicômio o trabalho aparece por dois ângulos: aquele designado louco, se por um lado foi julgado incapaz de trabalhar, por outro, no tratamento que a medicina lhe dispensou, o trabalho foi utilizado como elemento fundamental no chamado “tratamento moral” (Sousa, 2001, p. 60). Supunha-se não haver no louco a capacidade de gerir-se na vida social e no trabalho. Em seu caso, o trabalho deveria ter função corretiva – a de reintroduzi-lo no reino dos normais –, pois a indicação rigorosa do trabalho era o principal elemento do tratamento moral. No Brasil essa lógica se reproduziu com o esforço de Teixeira Brandão em constituir, no final do século XIX, asilos identificados no modelo de colônias (Amarante, 1982). Marca-se, dessa forma, que somente se autorizaria o trabalho para essas pessoas com uma única significação: como tratamento. Podemos supor que aqueles internos atribuíam às atividades que realizavam sentidos diversos – muito além daquele suposto pela equipe profissional em sua ação prescritiva –, mas esses sentidos não ganharam visibilidade. Notamos também que hoje, duzentos anos mais tarde, quando se propõe para essas pessoas a realização de tarefas nas chamadas “oficinas terapêuticas”, elas desejam dessa experiência muito mais que o “terapêutico”, remetendo a questões ligadas à possibilidade de autonomia, reconhecimento via remuneração etc.

As tentativas de transformação da psiquiatria ocorridas no século XX designaram um importante lugar para o trabalho dos usuários3. Marca-se o grande alcance que a obra de Hermann Simon – conhecida, sobretudo, através do livro de 1929, Por uma terapêutica mais ativa no hospital psiquiátrico (Billiard, 2001, p. 104) – alcançou, de modo que a ergoterapia por ele proposta teve grande influência nas reformas psiquiátricas, em especial na França, no

2 É o próprio Taylor (1911/1990, p. 34) quem afirma: “(...) em quase todas as artes mecânicas, a ciência que estuda a ação dos trabalhadores é tão vasta e complicada que o operário, ainda o mais competente, é incapaz de compreender esta ciência (...)”.

3 Utilizamos aqui o termo “usuário”, coerente com o esforço da psiquiatria democrática italiana de romper com uma tradição psiquiátrica geradora de aprisionamento e de objetivação da pessoa, que os próprios italianos chamaram de “paradigma clínico” (Rotelli, Leonardis & Mauri, 1990, p. 30). O termo “paciente” pode, no entanto, ser encontrado mais facilmente em textos dos expoentes da Psicoterapia Institucional francesa, como, por exemplo, Tosquelles (Gallio & Constantino, 1994, p. 95). No Brasil, em serviços que procuram trabalhar de maneira coerente com a reforma psiquiátrica, utiliza-se freqüentemente a palavra “usuário”, embora também se fale “paciente”, “cliente” e outras.

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movimento da psicoterapia institucional. Cabe ressaltar, ainda, que o trabalho e o seu questionamento tiveram nos hospitais psiquiátricos franceses uma importância tão grande que o nascimento da psicopatologia do trabalho teve seu começo ali, como mostra Billiard (2001). A autora destaca a participação de Sivadon e Le Guillant, considerados pioneiros daquela disciplina, além de Veil, dentre outros.

Mais tarde, o que ficou conhecido como psiquiatria democrática italiana também buscou ressaltar e valorizar o trabalho dos usuários, criando a idéia da empresa social, na qual o seu trabalho é tomado, não como terapia, mas principalmente como forma de garantia de remuneração e de inserção social (Leonardis, Mauri & Rotelli, 1995). Não pretendemos neste texto estabelecer pontos de concordância ou de divergência entre os diversos movimentos de reforma psiquiátrica, tampouco no que diz respeito à maneira como procuravam ver o trabalho dos usuários4. Sabemos que entender o trabalho como terapia ou não e, portanto, atribuir ou não uma remuneração a ele é uma discussão necessária, assim como determinar com maior precisão a importância que as alterações psicopatológicas podem exercer na atividade de trabalho de uma pessoa. Estamos, por enquanto, marcando apenas que o que se entendia por trabalho e a psiquiatria caminharam lado a lado desde o início desse ramo da medicina e, no entanto, compreendemos ainda hoje muito pouco o que o trabalho (e sua organização) pode trazer de positivo ou de negativo para as pessoas com transtornos mentais graves. Além disso, como dissemos, sabemos que elas têm tido pouquíssimas oportunidades de trabalhar, sendo por vezes impedidas de realizar até mesmo atividades domésticas em suas próprias casas. Assim, já que o trabalho “(...) nunca é neutro em relação à saúde e favorece seja a doença, seja a saúde” (Dejours, 1998, p. 164), cabe hoje conhecer melhor o que o trabalho, ou a sua ausência, tem trazido para os usuários dos serviços de saúde mental.

Reflexões a respeito do trabalho

Por ser nossa intenção pensar o trabalho na sua relação com as pessoas com transtornos mentais graves cabe, agora, indagar sobre seu significado. Como dissemos anteriormente, tomamos a ergologia como fornecedora das principais ferramentas para compreender e transformar o trabalho. Para indagar seu significado e seu lugar na vida dos seres humanos, apontaremos a seguir uma discussão iluminada por reflexões da ergologia, a ser retomada no item subseqüente.

Via de regra, tende-se a pensar no trabalho em um sentido estrito, isto é, tendo a significação de prestação remunerada em uma sociedade mercantil e de direito. Consideramos que essa definição diz respeito a situações que um certo número de pessoas vivencia, mas que é por demais estreita e que é necessário levar em conta complexidades que a noção que acabamos de evocar não dá conta e não engloba.

Schwartz (1995a, p. 419), ao fazer uma breve análise histórica e antropológica do trabalho, deixa claro que ele é inserido nas condições de uma época. Assim, podemos pensar em trabalho na confecção de ferramentas pelo homo habilis há dois ou cinco milhões de anos atrás, ou nas organizações sociais no neolítico relacionadas com a produção agrícola, ou, mais recentemente, na instituição do salariato com a emergência do capitalismo. Em cada um

4 Certamente, esse não é um campo sem contradições mesmo dentro de cada um de seus movimentos. No caso da psicoterapia institucional, por exemplo, embora ela reconheça a inspiração na ergoterapia, encontramos textos de seus expoentes, como Oury e Le Guillant, que lhe dirigem severas críticas. Da mesma forma, os italianos não negam a necessidade da terapêutica, mas admitem que novas estruturas precisam ser inventadas e que a terapêutica no asilo leva provavelmente à produção de mais exclusão.

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desses momentos pode-se considerar o trabalho de maneiras diferentes. Desse modo, pensar o trabalho sem levar em conta suas condições históricas é argumentar sobre o abstrato.

Nesse sentido, vários textos mostraram como certas concepções sobre o trabalho em uma época específica foram, por um lado, determinadas por circunstâncias históricas e, por outro, produziram um sentido para o trabalho das pessoas com transtornos mentais. Conforme dissemos, Foucault (1987, p. 73), por exemplo, mostra como a idéia de que os loucos tinham “(...) incapacidade para o trabalho e incapacidade de seguir os ritmos da vida coletiva” foi fundamental para justificar a invenção do hospício por Pinel. Neste artigo levantamos algumas questões que surgem na contemporaneidade, quando se pensa o trabalho em relação a pessoas com sofrimento mental grave e a necessidade de compreender e transformar essa realidade.

A noção de trabalho que adotamos tem como ponto de partida que ele tem sempre participação do ser humano. Em função disso, há no trabalho características relativas ao humano todo o tempo, trazendo aspectos histórico-culturais e aspectos singulares de cada pessoa. Ao considerar assim o trabalho, não podemos nos furtar a admitir que nele há complexidades que nenhuma simplificação pode dar conta. Tomar o trabalho como prestação remunerada em uma sociedade mercantil de direito é possível apenas pontuando-se que essa definição insere uma das possibilidades do que se apresenta em nossos dias, fruto de transformações históricas que, a partir do século XVIII, passam a tomar o trabalho como fonte de riqueza (Castel, 2001, p. 213). Não podemos nos esquecer que, mesmo sendo hoje o salariato a forma hegemônica, ao seu lado subsistem diversas outras. Além disso, histórica e antropologicamente outras modalidades de trabalho existiram, de modo que podemos dizer que essa forma atual não será eterna.

A ergonomia da atividade, também chamada de ergonomia francofônica, afirma que “(...) não é a atividade em si, mas sua finalidade, que caracteriza o trabalho” (Guérin, Laville, Daniellou, Duraffourg & Kerguelen, 2001, p. 16). Ela acentua que se deve considerar sempre os elementos presentes em um dado momento (singular, mas atravessado por elementos histórico-sociais) durante a realização do trabalho. Sendo as circunstâncias histórico-sociais, por definição, mutáveis, o trabalho é sempre inserido em um determinado momento da história e com ela muda. Como afirma Schwartz, “nada do que se joga ao nível das atividades industriosas é sem pertinência, via entidades hesitantes historicamente engendradas, para os níveis visíveis da vida social, e vice-versa” (1995b, p. 594).

Em função dessa injunção problemática entre o social e cada pessoa, ambos com suas variabilidades, Schwartz (1989, p. 280) faz uma afirmação que, diferentemente dos ergonomistas, não coloca o social como determinante na situação de trabalho. Na medida em que toma o trabalho como usos de si, pelos outros e por si mesmo, afirma que cada um – em qualquer momento e lugar que seja – há que negociar esses usos para realizar a atividade de trabalho e atribuir importância à atividade. Como dissemos, a definição dos ergonomistas remete à tentativa de definir o trabalho, marcando a separação entre o que pode ou não ser assim nomeado. Considerando que no trabalho há sempre atividade, situam o centro da análise não na atividade ela mesma, mas na finalidade.

O problema que se coloca, neste caso, é do reconhecimento do trabalho de pessoas historicamente ditas incapazes de trabalhar, para quem o trabalho se coloca freqüentemente apenas como terapia, conforme pontuamos anteriormente. A atividade, sempre presente em todo trabalho, ganha em uma determinada época e lugar significado de trabalho ou apenas de atividade sem o sentido de trabalho, seja ela lúdica ou outra. Ao analisar-se a relação entre o trabalho e as pessoas com transtornos mentais, percebe-se que elas historicamente têm sido colocadas à margem dos regimes hegemônicos. No hospício, geralmente, quando há atividade de pacientes – freqüentemente há pouca, visto que a maioria das pessoas fica ociosa –, ela raramente é considerada trabalho ou é remunerada.

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Como o trabalho é sempre atividade, há sempre circulação entre o que é assim considerado e uma outra atividade não reconhecida socialmente como tal. Afirmamos, desse modo, que é impossível definir precisamente o que é o trabalho – aquilo que pode ou não ser enquadrado nesta categoria – sem deixá-lo circunscrito em uma definição submetida a um determinado contexto social, histórico ou econômico e sem excluir as pessoas que não se adequam àquele modelo sócio-econômico.

Inspiração na ergologia: trabalho e pessoas com transtornos mentais graves

Neste item apresentaremos a maneira como, a partir de nossa compreensão de conceitos da ergologia, podemos pensar o trabalho em relação às pessoas com transtornos mentais graves. A abordagem ergológica situa-se na tradição de Canguilhem, para quem a vida é entendida “(...) como atividade de oposição à inércia e à indiferença” (Canguilhem, 1999, p. 173). A atividade é considerada um élan de vida e de saúde, característico de todo ser vivente, que atravessa o corpo e a mente, o coletivo e o individual, sem limite preciso e impossível de se definir. Sendo ela algo próprio do vivente, é impossível ao humano ficar passivo frente ao que lhe é prescrito. Assim, há sempre algo que o humano cria frente ao que lhe é pedido, o que abre um caminho para se pensar em trabalho de pessoas que historicamente foram consideradas incapazes de trabalhar, já que a maneira como uma pessoa insere-se no trabalho, seja ela quem for, nunca será dada previamente, pois “se a vida é um trabalho no qual o vivente experimenta e se experimenta, então, se ela é ‘improvisação’, concebe-se que as ‘tentativas’ de vida são numerosas” (Nouroudine, 2001, p. 88).

Se, como dissemos, para compreender o trabalho há que se considerar as condições conceituais e históricas nas quais cada pessoa é confrontada (Schwartz, 1995a, p. 418), como pensar o trabalho de homens e mulheres portadores de transtornos mentais graves sem considerar o fato de que sobre eles pesam duzentos anos de história da psiquiatria? A psiquiatria, a seu modo, concedeu um caráter de cientificidade ao julgamento acerca da relação dessas pessoas com o trabalho enquanto incapacidade, pessoas para quem o trabalho somente se prestaria como terapia. Esse julgamento, hegemônico em nossa sociedade, exerce influência sobre essas pessoas? Pensamos que sim, pois sabemos que os saberes psi criaram uma série de idéias, daí tomadas como verdadeiras e que precisam ser questionadas para que essas pessoas possam viver – e bem – em sociedade (Basaglia, 1985, p. 104).

Cada situação específica de trabalho apresenta como uma de suas características a presença de normas antecedentes, no sentido que as entende Schwartz. Elas “(...) reenviam, por um lado, no nosso universo social a nós, a isto que é da ordem das relações de poder ou das relações de propriedade. Dito de outra forma, há uma dimensão (...) que reenvia à edição de princípios, ao colocar em funcionamento estratégias decididas em outro lugar e que se pede às pessoas para executar” (Schwartz & Durrive, 2003, p. 70), isto é, ao enquadramento de uma situação antes da realização de uma atividade. E ainda: “estas normas antecedentes cristalizam sob uma forma tendencialmente codificada, ‘autorizada’, (...) as aquisições da inteligência e da experiência coletiva – deste modo mais ou menos recebidas como um bem ‘de todos’(...)” (Schwartz, 1995b, p. 598), por mais que o considerado “bem de todos” suporte toda uma ambivalência a propósito de quem compõe esse “todos”. Telles (2002, pp. 22-23), ressalta que pelo menos três elementos devem ser considerados com relação às normas antecedentes: elas representam restrições heterodeterminadas à execução; são construções históricas; indicam valores. Cada situação de trabalho, então, apresenta, da parte daquele que o solicita, uma série de formalizações, prescrições, determinações hierárquicas, acordos entre os diversos níveis daquela organização e da sociedade na qual ela está inserida, elementos que

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se constituem em normas antecedentes. Frente a isso, cabe a cada trabalhador gerir essas normas a partir de suas próprias características e valores a fim de realizar o trabalho.

Em cada situação de trabalho há ressingularizações que o humano, por ser vivente e por ser humano, realiza, visto ser impossível a uma pessoa fazer o que lhe pedem sem que algo de pessoal se coloque naquela situação, sem que ela tente fazer aquele meio de vida e trabalho como seu (Canguilhem, 1947), de modo que “(...) o trabalho real não é a estrita aplicação do trabalho prescrito (...)” (Schwartz, 1988, p. 41).

Quando a pessoa com transtorno mental defronta-se com as situações de trabalho, cabe a ela compreender e negociar com as normas antecedentes e renormalizar, como qualquer outra pessoa. Mas entendemos que no seu caso é necessário, ainda, lidar com as eventuais dificuldades que as alterações psicopatológicas podem trazer. Além disso, o que já não seria pouco, a história dos saberes psi criaram uma série de saberes socialmente difundidos, como dissemos, que tendem a despotencializar essa pessoa frente a uma situação de trabalho.

Podemos perguntar: quais são as construções históricas sobre a capacidade de trabalhar e de conviver em sociedade da pessoa com transtorno mental grave? Quais são os valores socialmente compartilhados quanto a isso? Como dissemos, a psiquiatria nasce isolando o louco do convívio social, decretando sua incapacidade para o convívio e, portanto, para atividades coletivas. O hospício constituiu-se como lugar de administração das figuras de miséria, periculosidade social, marginalidade e improdutividade (Barros, 1994). A noção de “doença mental” estabeleceu socialmente os valores de que o “doente” é incapaz de responsabilizar-se pelos atos da vida civil, de trabalhar e de gerir a si mesmo no trabalho. Embora a expressão “demência precoce” (Bercherie, 1989, p. 172), que Kraepelin tomou emprestada de Morel, não seja conhecida da maioria das pessoas, a idéia de que o sujeito que enlouquece torna-se demente, incapaz, improdutivo é amplamente difundida.

Na descrição que a CID-10 apresenta da esquizofrenia, semelhante ao que traz o DSM–IV, encontra-se o seguinte texto:

Os transtornos esquizofrênicos se caracterizam em geral por distorções fundamentais e características do pensamento e da percepção, e por afetos inapropriados ou embotados. Usualmente mantem-se clara a capacidade intelectual, embora certos déficits cognitivos possam evoluir no curso do tempo. Os fenômenos psicopatológicos mais importantes incluem o eco do pensamento, a imposição ou o roubo do pensamento, a divulgação do pensamento, a percepção delirante, idéias delirantes de controle, de influência ou de passividade, vozes alucinatórias que comentam ou discutem com o paciente na terceira pessoa, transtornos do pensamento ou sintomas negativos5 (Organização Mundial de Saúde, 1993, p. 85).

Esse é o primeiro parágrafo da referida descrição. Embora a CID-10 diga que o curso evolutivo deteriorante não ocorre todas as vezes, vemos que das três frases que compõem esse pequeno texto, todas terminam com afirmativas que anunciam o curso degradante, ou seja: “afetos (...) embotados”, “déficits cognitivos (...) no curso do tempo”, “sintomas negativos”. Nessa tríade: o embotamento afetivo é a crescente incapacidade de sentir e expressar os sentimentos, os déficits cognitivos reduzem a inteligência e os sintomas negativos são o empobrecimento geral do funcionamento psicomotor. Vemos que tal fragmento de texto (que se pretende cientificamente neutro) traz logo de início, finalizando cada uma de suas frases, a descrição (não seria “prescrição”?) da baixa significativa do funcionamento pessoal. Não estamos negando aqui que a esquizofrenia e outras entidades nosológicas descritas no capítulo cinco da CID-10, que aborda os transtornos mentais e comportamentais, existam de fato. Não pretendemos negar toda a tradição dos saberes psi no que eles têm de reconhecimento

5 Os grifos em itálico são nossos.

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das disfunções e das possibilidades de intervenção em favor do humano que daí derivam. No entanto, afirmamos que tais conhecimentos trazem muitas vezes um conteúdo que acaba por tornar ainda mais difícil a vida dessas pessoas.

O julgamento de incapacidade dessas pessoas, então, tende a participar o tempo todo no trabalho. Mas é exatamente na atividade que se criam condições de transformar as normas antecedentes e mesmo os limites pessoais de cada ser humano, ampliando sua capacidade produtiva, entendemos que o trabalho pode ser lugar de desenvolvimento pessoal dos portadores de transtornos mentais graves, na medida em que negociam com aquele julgamento social que supõe sua incapacidade e buscam recursos pessoais para dar conta de realizar a atividade, cuidando para se apropriar daquele meio de vida como seu, desenvolvendo, assim, potencialidades que nem elas mesmas sabiam possuir.

Como dissemos, entendemos com a ergologia que trabalhar envolve sempre, de algum modo, mesmo que no infinitamente pequeno, ressingularizar, criar suas próprias normas, colocar à prova as normas antecedentes, pois todo trabalho é lugar onde se joga uma dramática, ali é a pessoa inteira que se coloca, havendo sempre no trabalho formas de gestão de si mesmo. Assim, trabalhar é gerir, expressão que mostra as escolhas que se há de fazer (Schwartz, 1994, p. 434).

Seguimos Schwartz quando afirma que podemos tomar todo trabalho como lugar de uma dramática singular onde serão negociados para cada um a articulação dos usos de si pelos “outros” e “por si”. Assim, toda atividade de trabalho “(...) é lugar e ocasião de ‘dramáticas do uso de si’” (Schwartz, 1996, p. 78) na qual estão o tempo todo em jogo valores, debates de normas, onde o infinitesimal comunica-se com os níveis mais globais da vida histórica e social, ou seja, onde interagem o histórico coletivo com a história pessoal. Desse modo, cabe a cada pessoa, e nesse caso àquela com transtorno mental grave, interagir com esses elementos sócio-culturais e realizar o trabalho a fim de desenvolver sua competência e sua saúde.

Schwartz (1987) diz que, no trabalho, é o indivíduo no seu ser que é convocado, ou seja, a chamada “mão-de-obra” não é apenas “mão”, pois ali é a pessoa como um todo que se apresenta. Cada pessoa emprega sua capacidade produtiva a fim de realizar uma atividade, usa sua força de trabalho para produzir algo que se dirige a outrem. Para alcançar esse objetivo, usa seus recursos, suas capacidades, escolhe uma determinada maneira para realizar a atividade. Ou seja, ao receber uma prescrição, há uma reconcepção, uma maneira pessoal de reestruturar aquela prescrição e realizar a atividade. Além disso, o sentido que a pessoa dá à atividade, ou seja, o que esta significa singularmente, e as conseqüências que o trabalho pode ter para ela mudam de acordo com seus desejos e possibilidades em um dado momento. Ocorre, então, no trabalho, o “uso de si por outrem” e o “uso de si por si”, visto ser o trabalho algo que se realiza dirigido a um outro, mas há também ali gestão de si, ressingularização, construindo dessa maneira, sua competência, sua saúde, sua identidade. Em função disso, acreditamos que no trabalho a pessoa com transtorno mental grave pode desenvolver novas competências, abandonar a identidade historicamente produzida de pessoa incapaz, construindo sua saúde.

Schwartz (2000, p. 703), ao falar da imprevisibilidade das transformações futuras do espaço social frente ao trabalho, diz que a atividade é sempre fonte de “reservas de alternativas” que podem dar origem a diversas realidades, de modo que na atividade se abrem caminhos que possibilitam transformação social. Entendemos que uma maior visibilidade do trabalho de um grupo, que tradicionalmente foi considerado incapaz de trabalhar, torna possível pensar em formas de organizar o trabalho diferentes daquelas que conhecemos, trazendo ganhos não só para essa população, mas também para a sociedade como um todo.

Podemos dizer, então, que cada vez que uma pessoa com transtorno mental grave se coloca em situação de trabalho – seja em cooperativas, no trabalho doméstico nos lares

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abrigados ou mesmo nos meios ordinários de trabalho, os ditos formal ou informal – criam-se condições para se produzir mudanças, ou seja, criam-se possibilidades de trabalho onde podem ocorrer renormalizações, novas maneiras de trabalhar. Para Schwartz (1995b, p. 594), renormalização é o processo de retrabalho das normas antecedentes que acontece em todas as situações de trabalho, nas quais, frente às variabilidades, as pessoas sempre arbitram os meios para atingir os objetivos fixados.

Neste momento pergunta-se: que uso a pessoa com transtorno mental grave pode fazer de si no trabalho, isto é, que benefícios ela pode ter ao inserir-se em um processo de trabalho? Que uso pode ser feito pelo outro (empresas, cooperativas etc.) da força de trabalho dessas pessoas? Sabemos que elas pessoas raramente têm conseguido se colocar em trabalho, sobretudo no trabalho dito formal, no qual o mercado tão pouco respeita o ser humano. Além disso, diversas iniciativas de cooperativa de trabalho, criadas muitas vezes no próprio seio da reforma psiquiátrica, têm, de modo geral, conseguido se constituir apenas enquanto forma de trabalho protegido, isto é, recebendo facilidades oferecidas pelo Estado, mostrando-se pouco lucrativas e conseqüentemente seus integrantes, via de regra, ganhando nessas estruturas menos do que desejam e do que precisam. Continuam, assim, dependendo do dinheiro da família ou de benefícios da previdência social. Parece-nos, portanto, que ainda é necessário o surgimento de novas formas de possibilidade de inserção dessas pessoas nos mundos do trabalho.

A relação de serviço e o modelo da competência

Alguns autores identificam desde a década de 1980 a emergência de novas formas de produção no seio do capitalismo. Estamos nos referindo à lógica de produção de serviço e ao modelo da competência. Segundo o economista, sociólogo e consultor de empresas francês Philippe Zarifian, o trabalho industrial assalariado apresenta historicamente três características principais, a saber: a cisão entre trabalho e trabalhador, o fluxo e a produtividade de operações de trabalho como predominantes e a necessidade de co-presença (Zarifian, 2001a, p. 40). Por outro lado, os novos processos de produção de serviço, que superam aquele modelo de trabalho assalariado industrial clássico, requisitam a competência, que “(...) é sobretudo uma abertura e uma transformação interna dos ofícios já existentes” (Zarifian, 2001b, p. 89). Na produção de serviço, o tempo todo o trabalhador realiza suas atividades levando em conta as necessidades e os benefícios aos destinatários. O autor propõe a seguinte definição de competência: “(...) é a faculdade de mobilizar rede de atores em torno das mesmas situações, é a faculdade de fazer com que esses atores compartilhem as implicações de suas ações, é fazê-los assumir áreas de responsabilidades” (Zarifian, 2001a, p. 74). Dessa definição destacamos três elementos: a mobilização, a co-responsabilidade e a preocupação com as implicações.

Quanto à mobilização, ela é da própria pessoa, diz respeito aos usos que ela faz de si por si, isto é, o quanto e como ela investe de si naquele trabalho. É também a maneira pela qual ela se coloca naquela rede de atores, isto é, o quanto ela oferece da sua capacidade produtiva para trabalhar em grupo, ou seja, oferece um uso de si aos outros, o que remete ao elemento da co-responsabilidade.

Quanto à co-responsabilidade, a pessoa coloca-se junto às outras em uma situação de trabalho. Há aqui preocupações legítimas relativas à necessidade de cooperar e às vezes até de procurar impedir que a outra se coloque em uma situação de risco. Há também cuidado com a qualidade do resultado do seu trabalho, que será oferecido ao destinatário, o que remete às implicações daquele trabalho.

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No que diz respeito à implicação, fica evidente a necessidade do trabalhador comprometer-se tanto com o processo de trabalho, quanto com seu funcionamento, evitando as disfunções e o desperdício. Trata-se também do compromisso com os companheiros de trabalho e com a qualidade do produto ou do serviço, considerando que estes últimos deverão ser utilizados por um destinatário.

Como dissemos, desde a década de 1980, cada vez mais aspectos do trabalho industrial clássico e a visão que se tinha do lugar do trabalhador vão perdendo terreno e a necessidade desse trabalhador desenvolver suas competências vai tornando-se evidente. Essas competências desenvolvem-se e são utilizadas com a automobilização. “Em outras palavras, existe, na lógica da competência, uma dimensão do indivíduo que é inelutável” (Zarifian, 2001a, p. 121).

Esse é um modelo de competência desenvolvido no seio do próprio capitalismo. Não devemos pensar que o sistema tornou-se benevolente, que adequa-se perfeitamente às idiossincrasias que as pessoas com transtornos mentais graves experimentam vez por outra, que deste momento em diante devemos elaborar projetos cujos objetivos não sejam outro senão inserir essas pessoas nas organizações capitalistas. É claro que todo projeto como esse está condenado a ser uma ortopedia sócio-mental, uma tentativa de moldar as pessoas ao que o capitalismo espera delas. Essa seria, certamente, uma maneira de produzir mais e mais sofrimento.

Sabemos que as novas formas de organização do trabalho vieram acompanhadas de novas formas de desfiliação, no sentido em que fala Castel (2001, p. 536), isto é, “ausência de inscrição do sujeito em estruturas portadoras de um sentido, sociabilidades demasiado inconsistentes”. De fato, a lógica atual do mercado de trabalho é marcada por um modelo econômico que desde os anos 1980 reavivou a idéia do mercado como sendo algo que “(...) faz parte da ‘ordem natural’” (Di Ruzza & Halevi, 2003, p. 36), que se coloca como guia para a vida das pessoas. Com relação a isso concordamos com os autores que acabamos de citar, para quem é necessário bater contra esse consenso, por ser “(...) logicamente inconsistente, teoricamente falso, socialmente perverso e politicamente perigoso”.

Nesse contexto, aquelas novas formas de organização do trabalho coincidiram com um enfraquecimento das funções sociais do Estado e dos movimentos sociais, aumento do desemprego, precarização dos vínculos de trabalho, entre outras desgraças. Esse quadro é fonte de muito sofrimento de trabalhadores, desempregados ou não, de quem se exige esforços e capacidades sobre-humanos (Seligmann-Silva, 1997). Não é nossa proposta adotar uma postura ingênua, exaltando as glórias das novas formas de organização do trabalho, esquecendo os danos que as acompanham. No entanto, pensamos que há pelo menos um aspecto positivo nessas novas organizações do trabalho, em especial para as pessoas com transtornos mentais, que é exatamente requisitar uma mobilização no sujeito que trabalha, ou seja, solicita-se a mobilização de conhecimentos adquiridos e a compreensão da singularidade da situação para agirem adequadamente. Pede-se mobilização, co-responsabilidade, preocupação com as implicações, solicita-se algo que é próprio do humano. Diante de uma tarefa, a pessoa mobiliza-se para dar conta daquela situação de acordo com suas próprias capacidades, com suas próprias normas, desenvolvendo habilidades que antes ignorava possuir, ou que ainda não haviam surgido. É exatamente o que acontece ao colocarem-se em situações de trabalho que desenvolvem capacidades. Tratam-se de capacidades relativas tanto à tarefa propriamente dita, quanto ao convívio com os outros, na medida em que o trabalho tem sempre uma dimensão coletiva e supõe sempre um cliente direta ou indiretamente implicado.

Nas décadas anteriores existia maior chance de se conseguir um emprego estável com direitos trabalhistas, o que, claro, é ótimo e desejável! Os trabalhadores devem ter sempre os direitos respeitados. É fato que as pessoas têm sofrido pressões terríveis com a instabilidade

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crescente ligada à organização do trabalho, fazendo aparecer diversas formas de sofrimento. Por outro lado, todos esses infortúnios parecem por vezes fazer esquecer que o trabalho taylorizado pedia um modelo desumano do humano, na medida em que solicitava um sujeito mecanizado, como ilustra o próprio Taylor (1911/1990, p. 42) quando fala a propósito do posto de trabalho:

(...) o trabalho de cada operário é completamente planejado pela direção, pelo menos com um dia de antecedência e cada homem recebe, na maioria dos casos, instruções escritas completas que minudenciam a tarefa de que é encarregado e também os meios usados para realizá-la.

Entendemos que esse modelo de trabalho e de trabalhador capaz de teoricamente – e apenas teoricamente, já que isso seria impossível de ser vivido para o ser humano – adequar-se totalmente a uma tarefa prescrita por outro, exclui a pessoa com transtorno mental dos mundos do trabalho por ser demais rígido e não suportar suas singularidades. Se as novas formas de organizar o trabalho, então, trazem muito de sofrimento, o modelo anterior, taylorizado, também era desumano e tendia a excluir totalmente todos aqueles que não se dispunham ou não conseguiam entrar em um molde prêt à porter.

Trabalho e reforma psiquiátrica no Brasil

Os manuais de psiquiatria procuram mostrar que as alterações mentais freqüentemente impedem a pessoa de mobilizar suas capacidades. A descrição da CID-10, por exemplo, diz que a esquizofrenia pode trazer alterações fundamentais e características do pensamento, da sensopercepção, do afeto e da consciência do eu (Organização Mundial de Saúde, 1993, p. 85), acarretando grandes dificuldades à pessoa para entender a si mesma, o mundo a seu redor e para comunicar-se. Considerando esses critérios, estaria fora de possibilidade sua inserção nos mundos do trabalho, mesmo no caso do trabalho doméstico. Por outro lado, diversas experiências de trabalho com pessoas com sofrimento mental grave mostram o quanto o trabalho permite-lhes desenvolver suas competências, preocupando-se com o produto e com o cliente, comunicando-se melhor, aumentando sua capacidade de cooperação.

As pessoas que passam por crises decorrentes de transtornos mentais graves, sobretudo as que são hospitalizadas, freqüentemente após recuperarem-se estabelecem pouco contato social, mantêm-se muito dentro de casa e diminuem sua capacidade de cooperação. No entanto, lembramos que é justamente em situações profissionais que as competências se desenvolvem, de modo que, fora do trabalho, sentindo-se inútil em casa, a pessoa dificilmente conseguirá desenvolvê-las. O trabalho funciona, então, como elemento fundamental para a saúde mental de todos, inclusive da pessoa com sofrimento mental grave. Trabalhando ela pode desenvolver sua capacidade empreendedora frente ao que a vida lhe apresenta.

Sabemos que os neurolépticos foram inventados há cinco décadas e que os avanços da psicofarmacologia permitem aos portadores de transtornos mentais grande controle sobre as alterações das funções psíquicas, tanto nas crises, quanto fora delas. Igualmente, diversas psicoterapias desenvolveram-se de modo a permitir que as pessoas possam viver melhor apesar dos próprios transtornos. Não nos deparamos mais com os limites que Pinel e Kraepelin encontraram no que diz respeito àquelas alterações. No entanto, oito décadas após a invenção da Ergoterapia por Simon, com todas as críticas que as diversas correntes da reforma psiquiátrica fizeram a ela, até que ponto as iniciativas de trabalho que temos criado

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no seio da reforma psiquiátrica no Brasil têm de fato possibilitado o crescimento da autonomia dos usuários ou têm sido apenas novas formas (nem tão novas assim) de oferecer “terapia pelo trabalho”?

Quando alguém está desestabilizado, em qualquer esfera da vida, determinadas exigências mercadológicas podem ser muito mais fonte de sofrimento do que abertura de possibilidades de saúde, pois

(...) exigir dos indivíduos mais desestabilizados que se conduzam como sujeitos autônomos? Porque montar um projeto profissional, ou, mais ainda, construir um itinerário de vida, não é uma coisa evidente quando se está, por exemplo, desempregado ou ameaçado de ser expulso da moradia. (...) É verdade que esse tipo de contrato em geral é fictício, porque o impetrante dificilmente está à altura de semelhante exigência (Castel, 2001, pp. 605-606).

Da mesma forma, exigir que uma pessoa com transtorno mental grave se adéqüe às regras do mercado é algo fadado ao fracasso e à frustração, que podem ser vividos tanto ao nível de angústia e desilusão, como também ao nível de problemas financeiros graves, pois uma pessoa licenciada pela previdência social, ao conseguir um trabalho formalmente reconhecido, deve abrir mão de sua licença e possivelmente terá dificuldades para reavê-la ao perder tal emprego.

Para pensar o que o trabalho pode trazer de positivo para a pessoa com transtorno mental, há que se considerar, por um lado, os modos como o trabalho vem sendo organizado na contemporaneidade e, por outro, como têm sido colocadas as oportunidades de trabalho para essas pessoas. Diante disso, perguntamos: o quanto as iniciativas de trabalho propostas pela reforma psiquiátrica têm possibilitado o desenvolvimento da competência dos usuários, isto é, sua mobilização, co-responsabilidade, preocupação com as implicações? As oficinas e cooperativas têm se colocado, de fato, como lugares de “usos de si” que contribuem para que aquela pessoa crie seu meio de trabalho e de vida segundo suas próprias normas? O quanto as experiências de trabalho criadas a partir de unidades de saúde mental têm sido ocasião de reprodução de uma relação técnico/usuário que, por sua vez, reproduz um lugar de submissão? Se no trabalho a pessoa com transtorno mental grave pode renormalizar, contribuindo para a transformação da norma antecedente segundo a qual ela é incapaz, as iniciativas que a Reforma têm criado são, afinal, locais de produção de qualidade e desenvolvimento pessoal dos usuários?

As cooperativas de trabalho podem servir como formas de inserção nos mundos do trabalho em um híbrido dentro-e-fora do mercado formal. No entanto, são usadas muitas vezes, infelizmente dentro dos próprios serviços, como forma de explorar a força de trabalho das pessoas, como tem ocorrido com os chamados técnicos de saúde mental, que comumente trabalham sem ter seus direitos assegurados. Diante disso, podemos perguntar: as formas de organização do trabalho de usuários, com freqüência no modelo de cooperativas, têm de fato contribuído para possibilitar um lugar de reconhecimento social ou tem sido mais uma forma de exploração de mão-de-obra à margem dos direitos trabalhistas e previdenciários?

Em função dos avanços da reforma psiquiátrica no Brasil houve uma significativa redução de leitos em manicômios. Como nesses estabelecimentos havia um grande número de pessoas sem contato com suas famílias ou que, por circunstâncias diversas, seus familiares não teriam condições ou não seria desejável voltar a morar com eles, colocou-se a questão de como fazer para que essas pessoas pudessem viver fora do hospício. Para dar conta dessa problemática, têm sido criadas “residências terapêuticas” para que possam ter onde morar (Portaria nº 106, Ministério da Saúde, 11/02/2000). Nessas residências há a necessidade de realizar tarefas do dia-a-dia da casa, de autocuidado, de negociar as relações com os outros, por isso chamamos atenção para a presença de atividades de trabalho doméstico sendo aí

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realizadas. Podemos perguntar: como os residentes dessas estruturas têm se colocado no trabalho doméstico que realizam? Em que sentido esse trabalho traz possibilidades de autovalorização? Em que medida as negociações feitas com os outros no dia-a-dia, no convívio e durante a divisão/realização das tarefas domésticas são fonte de desenvolvimento pessoal e de promoção da sua própria saúde?

Em que medida, por fim, dar maior visibilidade à atividade de trabalho que essas pessoas realizam nas unidades de saúde mental, nas cooperativas e nas residências terapêuticas pode servir como “reserva de alternativas”, permitindo pensar em formas de organização do trabalho que respeitem mais a todos os humanos?

Conclusão

Procuramos aqui pensar algumas questões com relação à pessoa com transtorno mental grave e o trabalho. Apenas colocamos o problema e sabemos que é necessário ouvir mais o que essas pessoas têm a dizer sobre si no trabalho e vê-las trabalhando mais.

Encontra-se como socialmente predominante a visão construída na história da psiquiatria de que essas pessoas não podem produzir, não se adequam às situações de trabalho, o que acabou por impedir uma aproximação maior dessas pessoas com o trabalho.

Estamos ainda muito longe de poder falar que as pessoas com transtornos mentais graves conseguem se colocar no trabalho de maneira satisfatória para elas, mas as tentativas de transformação da organização do trabalho e da assistência em saúde mental estão ainda em curso, afinal de contas, “no que diz respeito aos sujeitos humanos, ninguém conhece e nem conhecerá integralmente as condições iniciais de seu objeto de estudo, como também ninguém conhece as suas próprias condições. É por isso que a história sempre nos reserva surpresas” (Schwartz, 1987, p. 64).

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Endereço para correspondência: [email protected]

Recebido em: 31/03/2005Pareceres enviados em: 20/07/2005

Aprovado em: 07/08/2005

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Entrevista: Josep Maria Blanch

Nesta edição dos Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, apresentamos a entrevista com Josep Maria Blanch, professor Catedrático do Departamento de Psicologia Social, da Faculdade de Psicologia da Universidade Autônoma de Barcelona. Aproveitamos sua estada no Brasil, como professor visitante, quando esteve vinculado a programas de pós-graduação em diversas regiões do país (Brasília, João Pessoa, Natal, Porto Alegre, São Paulo). Em São Paulo, trabalhou nos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Social da PUC-SP e do Instituto de Psicologia da USP. Nesta entrevista, Blanch fala sobre sua trajetória acadêmica e sobre Psicologia Social do Trabalho. A entrevista foi concedida a Leny Sato em junho de 2005, no Instituto de Psicologia da USP.

Leny: Blanch, de início, gostaria que você nos falasse sobre sua formação.

Blanch: Minha formação vem basicamente da psicologia e da sociologia (ciências sociais), porque foram dois campos que me interessaram desde o princípio. Além disso, minha dedicação profissional também teve relação com isso. Tenho dado aulas de psicologia para estudantes de sociologia, aulas de sociologia para estudantes de psicologia e aulas das duas disciplinas para estudantes de serviço social, que são os que se ligam mais com as práticas, com a intervenção social concreta. Isso tem colaborado na formação de minha visão e na minha compreensão do que é a psicologia social e de que maneira a entendo: como uma disciplina que precisa de “duas pernas para andar”, que são a sociologia e a psicologia. Ainda que tenha uma maneira de olhar específica e toda uma caixa de ferramentas própria, a psicologia social necessita olhar em direção à psicologia, por um lado, e em direção à sociologia, por outro. Comecei a graduação nos anos sessenta e a terminei nos anos setenta. Uma faculdade terminei em 1972 e a outra em 1973. Depois fiz o doutorado em psicologia.

Leny: E o que você estudou no doutorado?

Blanch: Eu comecei uma tese de doutorado e quando estava por terminar – foi numa época, nos anos setenta, de pleno domínio do positivismo na sociologia e na psicologia – eu tinha começado um tema relacionado com a clássica Psicologia dos Povos, que exigia um trabalho qualitativo com entrevistas. Buscava os auto-estereótipos regionais através do discurso das pessoas bêbadas.

Leny: Que interessante!

Blanch: Então, o trabalho de campo eu fazia de noite em cervejarias e bares. Eu o fazia na Espanha, ia pelas diferentes regiões. Eu buscava a alma do povo, como ela se expressava através desse discurso. Os catalães falavam de negócios, os castelhanos falavam de um passado épico, nobre, enfim, de sua família. Na Andaluzia, simplificando, existem basicamente duas Andaluzias: a Andaluzia do queixume, que é de angústia, de um “flamenco” puro que sai do coração, falavam dessa alma de dor e de angústia. Por outro lado, existe a Andaluzia que é de alegria e, com esses, passávamos a noite falando e cantando. Mas quando a tese estava bem avançada, meu orientador disse que eu teria que procurar outro porque ele não queria apostar no tema. Não era um tema politicamente correto na época. Então decidi fazer uma tese puramente literária, de ensaio, de leitura, pois já tinha feito suficiente trabalho de campo. Escolhi um tema que me possibilitasse trabalhar sozinho e que me obrigasse a ler coisas que até então tinha deixado de lado, como a psicanálise sócio-cultural. Escolhi um dos temas que essa tradição da psicanálise trabalhou mais, que é a religião e a moral, e me obriguei a ler as obras completas de Freud, Jung, Reich e Fromm e todas as conexões do freudismo com o culturalismo, com o marxismo etc. E sai um pouco

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Entrevista: Josep Maria Blanch

com a idéia de que a religião não é apenas um fator do passado, mas que tinha um potencial de futuro. Mas também não teve muito êxito, a tese. Foi aprovada, mas também os comentários que a banca me fez foram os de perguntar como uma pessoa jovem como eu tinha escolhido um tema tão arqueológico? Alguns anos mais tarde, Khomeini e o islamismo me deram, por desgraça, a razão de que a religião continuava pesando e continuava sendo uma força histórica.

Leny: Então, no primeiro trabalho para o doutorado, em que você entrevistava pessoas bêbadas, você estava construindo uma articulação com a Psicologia dos Povos do Wundt?

Blanch: Sim, o segundo Wundt. O psicólogo que depois de seus experimentos de laboratório, dedicou boa parte de sua obra a Völkerpsychologie, à Psicologia dos Povos. A mim interessava, naquela época, a etnopsicologia, no aspecto relacionado com os estereótipos locais e nacionais. Eu estava muito conectado com o tema da democracia, o pluralismo, a auto e a heteropercepção. A Espanha saia de uma longa, longuíssima ditadura, que tinha alimentado os estereótipos regionais e, de certo modo, inclusive os conflitos inter-regionais. Para desarticulá-los era preciso antes conhecê-los e confirmá-los. E reconheço que foi um tema com o qual me diverti e aprendi muito fazendo, ainda que reconheça que algumas vezes acabava eu explicando minha vida [risos] às pessoas entrevistadas, porque algumas delas, até entrarem na fase expansiva de falar, podiam passar três horas e em três horas, se eu os acompanhasse no ritmo de beber, chegava um momento em que era eu quem lhes contava meus auto-estereótipos.

Leny: [risos] Isso foi em que época?

Blanch: Em meados dos anos setenta. Conclui o doutorado em 1978.

Leny: Você me falou outro dia da importância que teve para você a sua vivência em 68. Você poderia falar disso?

Blanch: Minha juventude aconteceu nos anos sessenta, e nos setenta foi um pouco uma juventude tardia, mas sempre tive a impressão de ir contra a corrente de minha geração. Durante um tempo partilhei com minha geração certo idealismo e a ilusão de mudar o mundo facilmente (quase que bastava desejá-lo). Eu estava me preparando para ir a Nanterre, na França, para estudar sociologia, negociando com o governo espanhol para ver se me davam o passaporte (eram tempos de ditadura...). Então, estourou “maio”... Quando reabriram as fronteiras eu me instalei na França (eu tinha companheiros em Nanterre), um pouco com a idéia de tocar o futuro. Quer dizer, os primeiros momentos davam a impressão de que algo estava mudando e parecia que mudava pelo simples fato de que muita gente junta dizia que o mundo estava mudando, com a imaginação ao poder e todas aquelas coisas... E eu estive na França também em junho e em julho. Quando nos apresentam uma determinada geração como “geração de 68”, eu me sinto de 68, mas quando falam de maio, eu digo que não, que eu sou de julho.

Leny O que ocorreu entre maio e julho?

Blanch: Passaram-se dois meses, mas em dois meses houve uma mudança de experiência, de sentido, de tendência histórica. Maio é uma época de retórica criativa... Parecia que paralisando um país já se estava em condições objetivas de levantar uma nova ordem histórica e mundial. Mas conforme foram passando as semanas de intensa agitação social, política e cultural, com mercados desabastecidos, hospitais e transportes coletivos em marcha lenta, escolas fechadas, as crianças em casa, muitas empresas com manifestações, greves ou assembléias diárias, também nas universidades... Vão se acumulando semanas, já passou um pouco a novidade e as pessoas começam a esperar que as promessas e as palavras se convertam em algo visível e palpável! Junho é um mês de transição, é um mês em que a primavera (no norte) já muda de cor, passa do verde a uma cor mais queimada, do trigo que deve ser recolhido. Junho é uma época de colheita e julho é um mês de fechar o balanço.

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Cheguei até julho e, para mim, um dia chave foi o dia 14 de julho, o dia da festa nacional francesa, ocasião em que alguns de meus companheiros de maio já estavam nas praias. É uma festa que tradicionalmente reúne muita gente nas ruas de Paris: figuram protagonistas e resistentes da Segunda Guerra Mundial, patriotismos e reacionarismos diversos. Então, no dia 14 de julho, lá pelo final da tarde, houve a maior manifestação da história da cidade depois da que aconteceu no dia da sua liberação pelas tropas aliadas. Naquele dia eu estava nas ruas de Paris com alguns colegas: um sueco, um americano, um italiano, uma moça holandesa e outra espanhola. Estávamos em Paris um pouco com a mesma idéia. Tínhamos nos instalado no Quartier Latin e estávamos ali para observar bem de perto o futuro. Mas em julho já estávamos um pouco mais perplexos e desconcertados: as pessoas que estavam naquela impressionante manifestação estavam pedindo ordem e funcionamento das instituições (o mercado, as escolas, os hospitais, o transporte...). E diziam-no com um tom que se subentendia que pediam que o viesse a organizar a direita, que estava há dois meses retirada, vendo e esperando, deixando o terreno aos movimentos alternativos, que em dois meses não programaram nada de concreto sobre como gerir um país no dia seguinte àquele que saíram às ruas e o paralisaram. Quando passou o grosso da manifestação, com aqueles colegas bastante deprimidos, fomos fumar um cigarro americano, que acendemos na chama do monumento ao soldado desconhecido, debaixo do Arco do Triunfo, que tinha ficado sozinho. E aí, esse gesto simbolizava um pouco o futuro que estávamos tocando. Quer dizer, todos estávamos desencantados, com a impressão de haver perdido a inocência ideológica. Eu regressei a meu país um pouco com a idéia de que as palavras sozinhas servem para encantar serpentes, mas não para transformar o mundo e que qualquer proposta alternativa exige um programa concreto, um plano de viabilidade e uma gestão avaliável. Se não, tratam-se de música celestial e palavras levadas pelo vento. Alguns anos antes de minha decepção com certa maneira de praticar a ideologia política, eu já tinha entrado em crise com o sistema religioso católico, em Roma, em 1963. Estive lá como um jovem idealista recrutado pelo cristianismo e percebi que o catolicismo romano, que estava em pleno Concílio do Vaticano, parecia saído de um filme de Fellini, mais que do Evangelho. Depois dessa experiência, cinco anos mais tarde, em Paris – tinha que ser –, perdi a fé numa certa maneira de conceber e de fazer política, baseada em algo que me parecia um discurso verborrágico, com pouca ligação com a realidade e pouco operativa. Desde aquela noite parisiense de 14 de julho, na vida social e em meus posicionamentos acadêmicos, tenho seguido ativamente comprometido (à minha maneira) com a crítica utópica “anti-sistema”, mas, ao mesmo tempo, sou profundamente cético, inconformista e crítico com respeito aos múltiplos discursos alternativos esquerdistas “neomodernos” e “pós-modernos”. Nenhum deles explica de modo convincente – porque a promessa de mudança estava saturada de determinismo idealista – o motivo pelo qual a revolução não aconteceu, nem porque o fracasso da sua estratégia não tinha sido adequadamente previsto e não o haviam prevenido. O esquerdismo neomoderno racionalizou a sua incompetência teórica e a sua inoperância prática invocando o capital e seus poderosos dispositivos de produção de sujeitos submissos. A justificativa do esquerdismo pós-moderno para si próprio foi mais atrevida: a revolução não aconteceu, não porque tenha sido mal planejada e executada, mas porque ela era “impossível”, era uma pura quimera “moderna”, um simples reflexo idealista. O “poder”, com seus tentáculos onipresentes e onipotentes, abarca, encobre e penetra tudo, de modo que não há possibilidade de “emancipação”, mas tão somente uma mínima “resistência”, o que não é grave, pois tampouco existe realmente um “sujeito” a quem “liberar”, nem propriamente “historia”, nem “passado”, nem “futuro”, mas um pouco mais que jogos de linguagem e retórica vaporosa. Durante alguns anos, em minhas aulas de sociologia e de psicologia social, pus a dialogar Marx e Durkheim, o anarquismo clássico e as novas formas de radicalismo com os funcionalismos sociológico e psicológico, porque entendia que uns tinham muito o que aprender e a criticar com os outros. E consegui que os alunos não me expulsassem das aulas, mas que entrassem um pouco nessa lógica. Eu mesmo me converti em uma pessoa menos à “esquerda” que a maioria dos meus colegas, também não estava à “direita”, mas sempre

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entendi que o discurso tem que pactuar com algo da realidade, se não é simples ilusão, pura semântica do desejo, como dizia Paul Ricouer, que agora nos deixou. Essas duas experiências juvenis – a desilusão religiosa em Roma e a política em Paris – marcaram-me pessoalmente e influenciaram minha maneira de entender a psicologia, a sociologia e a psicologia social: a necessidade de articular teoria e prática, de refletir, mas ao mesmo tempo atuar... Prefiro uma má solução para uma boa definição de um problema, do que uma pura retórica abstrata, que não serve para pensar nem fazer nada.

Leny: E que significa, nesse contexto, a sua opção no doutorado de fazer finalmente um estudo da psicanálise, no âmbito da psicanálise sócio-cultural, tomando a religião como tema?

Blanch: A religião canalizava parte das utopias em meu país quando estávamos em plena ditadura. Tinha que canalizar o idealismo pela religião porque era a única expressão ideológica tolerável. E graças às instituições religiosas, as pessoas podiam pensar e fazer a política. Importantes sindicatos e movimentos políticos alternativos na Espanha franquista se forjaram nas sacristias ou nas igrejas.

Leny: Tendo você essa formação em psicologia e sociologia, tendo entrado pela temática da Psicologia dos Povos, tendo transitado e se aprofundado efetivamente, no doutorado, na psicanálise sócio-cultural, como você passa a se dedicar ao quê você denomina de psicologia social do trabalho, presente fortemente no seu currículo?

Blanch: No princípio dos anos oitenta, em meu departamento trabalhava com meu colega e amigo Tomás Ibáñez que, como eu, é catedrático. Com ele procuramos fazer uma divisão de funções. Entramos em acordo que ele iria até a estratosfera e eu desceria à terra. Ele estruturou, e muito bem, uma maneira de enfocar as coisas e de pensá-las. Ele pode ir até os problemas imediatos a partir do que ele sabe fazer melhor, que é a metateoria, a teoria, a epistemologia e, a partir daí, pode-se iluminar todo o concreto que se queira. Eu tratei de partir de problemas concretos, mas sempre com uma idéia de investigação e intervenção guiada pela teoria e não por simples demandas etéreas. Minha tese de doutorado foi, por um lado, um pretexto para entrar em contato sistemático com a psicanálise sócio-cultural e, por outro, serviu um pouco como um ajuste de contas epistemológicas e teóricas com meu passado, com meu passado de idealismo e de ilusão, fosse de promessas religiosas ou políticas. O tema do trabalho é o futuro ao qual me dirigi.

Leny: E como você voltou-se para o campo temático do trabalho?

Blanch: Após registrar meus passos num livro publicado em 1982, intitulado Psicologías Sociales. Aproximación histórica, editado pela Hora, em Barcelona, eu entrei no tema do trabalho como poderia ter entrado no da saúde ou no do bem-estar, os quais, de fato, formam um triângulo no qual tenho estado me movimentando. A idéia, quando em 1980 e 1981 fizemos com Ibáñez aquela espécie de bifurcação, o que eu fiz foi o seguinte: por um lado, me propus a investigar “problemas sociais” e “qualidades de vida”, que era o que mais me atraía da psicologia social e a fazê-lo em campos em que eu não estabelecesse uma competição desleal com os psicólogos que começavam honradamente a ganhar sua vida como profissionais. Portanto, deixei de lado todo o campo dos recursos humanos, comunicação, publicidade e todos esses temas nos quais as pessoas já iam abrindo caminho. Para entrar no tema dos problemas sociais, eu fiz o seguinte: comecei escrevendo cartas a responsáveis políticos pela gestão das respostas práticas a determinados problemas sociais, como os de saúde mental, dependência de drogas, delinqüência, desemprego, pobreza etc. Eu lhes oferecia um acordo bem simples: eu trabalharia de graça as informações que eles geravam e, em troca, essa informação teria um duplo uso: eles, a partir de suas organizações, a utilizariam para seus fins e eu tiraria algo que servisse para a construção teórica e metodológica, para que meus estudantes de pós-graduação pudessem aprender teoria e metodologia e para que

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pudéssemos devolver algo à sociedade, porque, a princípio, o Estado me paga para pensar e para fazer algo. Então, foi um jogo de circunstâncias.

Leny: E como foram seus primeiros passos nesta orientação “aplicada”?

Blanch: No campo da saúde e trabalho, comecei uma experiência que continuo até hoje com uma equipe liderada por um colega latino-americano. Eu fui o “promotor” e neste momento sou o presidente de uma ONG, de uma fundação de reabilitação biopsicossocial de pessoas que no início dos anos oitenta encarnavam o que era o protótipo do viciado em heroína. Além disso, o perfil das pessoas com as quais trabalhávamos era o de pessoas que tinham fracassado em outros programas, os que tinham problemas orgânicos associados (AIDS, por exemplo), problemas com a justiça, famílias desestruturadas, problemas pendentes com a polícia etc. Propusemos um desenho que é uma espécie de mistura entre cooperativa de trabalho e comunidade terapêutica. O objetivo inicial era mostrar que o recurso público nesse campo da reabilitação podia ser utilizado de maneira melhor, no modelo que propúnhamos, do que nos modelos convencionais, nos quais se instalavam as pessoas em equipamentos já bem acabados e as pessoas que lá estavam internadas não tinham outra coisa a fazer durante o dia, além de tomar sol, fumar e beber. Nós nos dedicamos a recuperar patrimônios arquitetônicos com recursos públicos, com a idéia de que, enquanto os recuperávamos, as pessoas viveriam nesses espaços que iam se construindo e se reconstruindo e, quando os tivéssemos bem restaurados, seriam devolvidos à sociedade. E assim dedicamos vários anos a restaurar um balneário modernista, que estava há oitenta anos em desuso, um balneário de quatro andares, com cento e vinte quartos, teatros etc. Pegamos o balneário em ruínas, com árvores que cresciam por dentro e o devolvemos em plenas condições. Posteriormente, o perfil das pessoas assistidas pela fundação se modificou. Atualmente predominam pessoas com “síndrome de exclusão social”, com patologia mental subjacente e sintomas associados à dependência de drogas.

Leny: E vocês o fazem com apóio técnico de alguém?

Blanch: Incorporamos à nossa fundação alguns políticos do campo da saúde, do bem-estar social e do trabalho; mobilizamos alguns arquitetos e engenheiros amigos para trabalhar voluntariamente, que nos elaboram planos e, quando não temos recursos, buscamos ajuda com pessoas físicas para financiar um projeto sustentável. Essa instituição tem vinte anos de funcionamento e acreditamos que é uma modesta contribuição no campo desse triângulo saúde-trabalho-bem-estar. Por meio do trabalho e de práticas ativas, as pessoas se reabilitam melhor do que se forem deixadas simplesmente assistindo televisão. Aprendem e desenvolvem a convivência cooperativa. É um ambiente facilitador e enriquecedor de processos psicológicos e sociais positivos. As pessoas sentem-se hábeis, sentem-se úteis, comunicam-se por necessidade, porque precisam fazê-lo e não por obrigação, não porque se lhes diga que precisam se comunicar, que precisam avaliar, que precisam se expressar e se interessar pelos demais. Tudo isso seria uma aproximação muito teórica e muito prescritiva, terapêutica tradicional. No entanto, se você os põem a trabalhar, eles precisam se comunicar espontaneamente e se ajudar mutuamente, valorizam a si mesmos e valorizam o resultado de seu trabalho.

Leny: E foi por esse caminho que você se interessou e focalizou mais o tema do trabalho?

Blanch: Não exatamente. Simplesmente, apenas por cartas, fizemos um primeiro contato com responsáveis de hospitais psiquiátricos, com chefes da polícia e de penitenciárias, com responsáveis pela gestão de políticas de emprego e desemprego, que na Espanha chama-se INEM (Instituto Nacional de Empleo). Houve instituições que não responderam à minha proposta, algumas outras me procuraram, apresentei projetos e, ao fim, decidiram que os realizariam eles mesmos, o que me pareceu muito bom, e outras me procuraram e me deixaram trabalhar. Um dos lugares que me deixou trabalhar foi o INEM de Barcelona, que

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naquele momento gerenciava de 350 a 400 mil desempregados e muitas outras coisas, num mundo que estava mudando muito rapidamente...

Leny: Em que ano?

Blanch: Isto era 1983/84. Fazia pouco tempo que os socialistas estavam no poder central na Espanha. Em Barcelona já estavam há seis anos no governo municipal. Na Europa também havia uma atmosfera positiva de mudança, no sentido de que era necessário estudar a nova problemática social do desemprego – que era vista como caldo de cultivo de muitos outros problemas sociais – orientar e avaliar políticas concretas. Então, o diretor geral do INEM de Barcelona simplesmente deixou-me trabalhar e depois avaliar o que eles faziam. Acredito que eles gostaram do trabalho que eu fazia e eu mesmo me senti muito bem, então, comecei a estender meu campo de investigação à medida que outras instituições públicas me pediam informações e que eu desenvolvesse as investigações para elas. Isso foi uma espiral virtuosa: Eles me faziam pedidos e eu lhes propunha condições e lhes exigia meios. Eu disponibilizava equipes de estudantes dos últimos anos de graduação (quase profissionais), doávamos nosso trabalho e eles tinham que nos fornecer os meios. Depois de um ano de investigação, felizmente, chegávamos com propostas concretas de melhorias de suas organizações ou de seus programas. Eu mesmo lhes propunha que as pessoas que podiam gerir, dirigir ou assumir a responsabilidade desses novos serviços ou programas eram as pessoas que tinham feito a própria investigação: recém-formadas. Com isso, eu ia permanentemente inserindo técnicos num campo emergente. Nesses dez anos foram muitos que se inseriram em postos-chave das administrações públicas, dos órgãos das áreas de trabalho, de bem-estar, indiretamente da saúde etc. Foi um processo quase não pensado, mas que encontrei pesquisando o desemprego. O desemprego como fonte de problemas e o emprego como via necessária de soluções de problemas. Na Espanha houve duas ou três etapas bastante claras. Quando eu comecei esse trabalho era um período de profunda crise (de 1982 a 1986), o mundo estava em crise, mas a Espanha estava mais e Barcelona, ainda mais. Lá existe uma economia muito interdependente: quando o mundo vai bem, lá vai melhor, e quando a coisa vai mal, lá vai pior. Tentei relacionar estes campos: trabalho, bem-estar e saúde. A princípio tentei estudar a relação entre desemprego e patologia: depressão, mal-estar, auto-estima negativa etc. Introduzíamos variáveis psicossociais intervenientes, como o que hoje se chama centralidade do trabalho, valores, ideologias, representação social do trabalho. E esse trabalho permitiu desenvolver algumas coisas no terreno teórico e metodológico. Desse trabalho resultaram publicações1. Com esse trabalho constatamos que cerca de 40% das pessoas desempregadas oficialmente não se ajustavam perfeitamente ao perfil de “desempregados” segundo as normas internacionais da OIT e da Eurostat, pois encontramos um tipo de irregularidade e um perfil um pouco híbrido. Com esses achados, propusemos um plano de melhoria de dados e de re-categorização de desempregados. Consegui, modestamente, que alguns políticos, juristas e sindicalistas com responsabilidades de gestão sobre o problema do desemprego, assumissem a idéia de que os desempregados não são um número abstrato, não são mutuamente intercambiáveis, mas que existem perfis e perfis de desempregados.

Leny: Que quer dizer exatamente?

Blanch: Que uma coisa é conceber que juridicamente são todos sujeitos com os mesmos direitos, e outra é pensar que não exista variabilidade psicossocial entre os sujeitos. Então, inicialmente, tentei estudar essa variabilidade e esse perfil psicossocial como variável interveniente entre o desemprego e a depressão. Existiam desempregados que se deprimiam e existiam desempregados que estavam bem e isso tinha a ver com a maneira como viviam o trabalho e também com a maneira pela qual enfrentavam a vida, organizavam seus valores etc. Depois começamos a procurar variáveis que fizessem a mediação entre o desemprego e

1 Dentre as publicações, destaca-se o livro: J. M. Blanch (1986). Desempleo juvenil e salud psicosocial. Bellaterra: UAB.

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esse perfil psicossocial. Algumas dessas variáveis eram: representação social do trabalho, valores, estilos de vida etc. Mas essa linha de pesquisa foi concluída.

Leny: Mudaram as circunstâncias?

Blanch: Exatamente. Entre 1986 e 1990, dá-se um novo ciclo econômico e social: do desemprego estrutural massivo entrou-se num circulo virtuoso de alta taxa de criação de empregos. Nesse contexto, minhas preocupações mudaram. Tratei de observar quais eram as variáveis psicossociais que facilitavam o acesso ao emprego. Se num lugar onde se criam muitíssimos postos de trabalho existem pessoas que passam dois anos sem encontrar emprego, isso significa que não sabem, não podem ou não querem encontrá-lo; quer dizer, ou falta-lhes ou sobra-lhes algo. Então aí começamos a estudar mais detalhadamente os componentes de um perfil psicossocial. Construímos um modelo que culminou na publicação de um livro2, nos anos noventa, que teve certo impacto nas esferas de decisão política. Nessa pesquisa (um estudo transversal e longitudinal) analisamos, em janeiro de 1998, cerca de mil pessoas oficialmente desempregadas e que, por isso, deviam se apresentar a cada três meses em uma agência do INEM e outras mil pessoas que eram desempregadas e conseguiram emprego. Todas responderam um amplo questionário com perguntas relativas ao que hoje chamaríamos de centralidade do trabalho, uma escala de valência do emprego (para averiguar para que se quer o emprego: para obter dinheiro, para servir à família, para sentir-se útil, para sentir-se uma pessoa realizada etc.), outra de estilo de atribuição do emprego/desemprego (a causas externas ou internas, a variáveis controláveis ou incontroláveis etc.), uma escala de atitudes em relação à disponibilidade ao emprego (o quão dispostas as pessoas estão para encontrar um trabalho com determinadas características, com condições determinadas de espaço e de tempo, de responsabilidade, de risco, de exigência, de aprendizagem etc.) e uma escala de atividade (a fim de verificar quão ativas ou quão passivas as pessoas estavam no momento de procurar emprego). Em uma comparação transversal, observamos certas diferenças de perfil entre pessoas “desempregadas” e “empregadas”. Posteriormente, em dezembro de 1988, fizemos um seguimento longitudinal das mesmas pessoas que em janeiro estavam desempregadas mediante um duplo controle: informático (através da base de dados do próprio INEM, que reflete suas trajetória laboral durante o ano) e telefônico (entrevistas em que se buscou conhecer a situação atual de trabalho). Com os dados obtidos nessa segunda fase de dezembro de 1988, classificamos as pessoas em três categorias: os que estavam empregados num emprego formal e regular, os que tinham emprego informal e irregular e os que estavam absolutamente desempregados. Mediante regressão logística, buscamos identificar se haveria um perfil psicossocial das respostas que nos deram em janeiro que permitia predizer a situação ocupacional em dezembro, um ano mais tarde. Constatamos o seguinte: as pessoas que um ano mais tarde encontraram emprego tinham um perfil de empregabilidade algo significativamente diferente dos que não tinham encontrado. Deixe-me fazer um parênteses: eu trabalhei muito com o tema da empregabilidade e por isso estou, acredito, qualificado para dizer que em épocas de desemprego massivo não se pode utilizar esse conceito, mas em épocas de intensa criação de emprego, se existem pessoas que arrumam trabalho em dez dias e pessoas que demoram três anos, aí pode-se aplicar conceitos como esse. Voltando à pesquisa: constatamos que as pessoas que arrumaram emprego em dezembro de 1988 (T-2) haviam valorizado mais o trabalho em janeiro de 1988 (T-1) do que as outras. As que tinham emprego em dezembro haviam se mostrado, em janeiro, com maior disponibilidade para aceitar as condições do emprego, e mais ativas no momento de ir buscá-lo: levavam currículos, saíam de casa, olhavam os classificados de jornais, informavam aos amigos que procuravam emprego etc. No que se refere às atribuições ao desemprego, ainda que todos tivessem a mesma tendência geral (todas davam muita importância às causas externas), as pessoas que haviam encontrado trabalho em T-2, um ano antes (T-1) valorizavam um pouco menos as variáveis externas (a “crise”, o mercado, os empresários etc.) que explicavam o desemprego e um pouco

2 Blanch, J. M. (1990). Del viejo al nuevo paro. Un análisis psicológico e social. Barcelona: PPU.

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mais as variáveis internas (esforço, formação, especialização etc.). Os resultados dessa pesquisa foram comentados e discutidos. Mais tarde foram realizadas réplicas dessa investigação em outros lugares. Na Andaluzia realizou-se essa pesquisa com jovens e chegou-se ao mesmo resultado. Em resumo, esse modelo permitia predizer a possibilidade de se conseguir emprego em épocas de criação de empregos para o contexto espanhol de economia expansiva ao final da era fordista. A partir daí eu dediquei um tempo ao desenho e à avaliação de programas de orientação e inserção laboral baseados no reforçamento de variáveis e competências que faziam as pessoas mais empregáveis naquele contexto determinado.

Leny: Programas públicos na área de trabalho e emprego?

Blanch: Sim. Havia programas que se chamavam planos de ocupação, que eram empregos públicos, remunerados pelo Estado, em que se contratavam pessoas desempregadas para trabalhar por um salário mínimo e, ao mesmo tempo, adquirir experiência e especialização profissional que aumentariam sua empregabilidade. Outros programas públicos se dedicavam à formação ocupacional de pessoal desempregado para torná-lo mais empregável, outros de formação e inserção ocupacional com o mesmo objetivo. Naquela época, eu lutei muito, pois os políticos responsáveis por administrar os recursos públicos valorizavam menos os recursos que eram dados para formação do que os que se convertiam em empregos subsidiados puros. A moda daquele tempo era construir obras públicas com o trabalho dos desempregados. Eram trabalhos que os prefeitos agradeciam muito: quando chegavam as eleições, todos os municípios queriam recurso público, então eles ficavam solidários com os desempregados porque nos anos seguintes podiam mostrar esses troféus. Minhas pesquisas dessa época mostravam que o recurso público investido nesses trabalhos servia muito para os prefeitos e para os municípios mas servia pouco para os desempregados, pois os convertia em crônicos, em dependentes dos contratos do Estado. Os políticos eram pouco favoráveis ao investimento em educação e formação ocupacional, mas o que modestamente demonstrei naquele contexto – primeiro em teoria e, depois, pela experiência – foi que os programas de formação ocupacional aumentam a empregabilidade e, além disso, aumentavam, naquele contexto social e histórico especifico, a inserção efetiva no emprego.

Leny: Num contexto em que existe oferta de emprego...

Blanch: Efetivamente. Naquele contexto de forte expansão de emprego, muitas pessoas que em 1986 tinham feito cursos de formação ocupacional, em 1989 estavam quase todas inseridas no mercado de trabalho em empregos regulares, formais. Enquanto isso, os que em 1986 estavam fazendo trabalho por contrato público, arrumando estradas, ruas, cemitérios, essas coisas que se gosta de exibir nas eleições, no ano de 1989 continuavam desempregados, esperando que o Estado os contratassem. Isso alimentou também debates ideológicos entre políticos. Naquela época comecei a trabalhar também pelo governo espanhol, em Madrid, e também em Bruxelas, que é a sede do governo central da União Européia, a partir de onde se estabeleciam políticas públicas para serem aplicadas no conjunto dos países da União. Concretamente era a DG 5 (Direção Geral 5), que trata de assuntos de igualdade. Ali comecei a trabalhar com esse tema, sempre com a idéia de que as políticas ativas são preferíveis às políticas passivas (as políticas ativas são as de formar, acompanhar, orientar, incentivar o auto-emprego, ou as cooperativas, a se movimentarem; as passivas são as que subsidiam simplesmente, ou contratam em determinado período). Então, nessa época intervim bastante ativamente no planejamento e na avaliação de programas desse tipo. Entrei por essa via também ao entrar em contato sobretudo com o núcleo duro do desemprego na época, o desemprego feminino, principalmente numa determinada idade, de 30 a 45 anos – a época em que muitas mulheres, na Espanha, têm filhos pequenos, quando trocam parte de seus esquemas, de seus valores, de suas autopercepções, de suas prioridades, porque são incorporados elementos novos...

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Leny: E isso em que ano?

Blanch: Isto era desde o ano de 1988. Já nos anos de 1987 e 1988, nesse período mesmo, o que eu já encontrava era que, por exemplo, em perfis de empregabilidade, havia homens e mulheres jovens que formavam um perfil, e mulheres de meia idade que formavam outro perfil. Portanto, aqui, a variável chave foi “sexo-gênero” combinada com “idade”, o que naquela época soava como uma heresia muito grave em certos círculos feministas que se ocupavam em apontar a igualdade. No início da década de noventa também colaborei com o Instituto de la Mujer espanhol. Desde aquela época tenho sustentado teses que hoje soam menos estranhas, como a de que o gênero ajuda a explicar muitas coisas, mas às vezes atua como obstáculo epistemológico. O patriarcado e o machismo podem explicar muitas coisas, mas não explicam tudo. Eu fazia entrevistas com mulheres de meia idade que me diziam que não trabalhavam fora de casa porque não queriam, porque preferiam estar com seus filhos enquanto eram pequenos, acreditavam que esse era um papel que haviam eleito e não porque suas mães ou suas ideologias as tivessem obrigado. Eu via que certo feminismo da época tratavam-nos com o mesmo estilo pelo qual certo marxismo-leninismo tratava os operários que queriam eletrodomésticos ao lhes dizer que tinham a “consciência alienada”. Eu entendia que essas mulheres não estavam alienadas, mas que tinham um determinado perfil que a perspectiva de gênero impedia reconhecer para ser atendido politicamente.

Leny: Então, nos temas que você foi tratando, você tem uma articulação contínua nesse período com órgãos públicos. E hoje, você continua desenvolvendo avaliações de programas, desenvolvendo pesquisas a partir desses órgãos públicos e assessorando a proposição de políticas públicas sobre trabalho e emprego?

Blanch: Trabalhei intensamente nesses campos numa época de emergência dos socialismos na Europa. E me desvinculei desse tema num contexto de crise do socialismo em meu país e na Europa em geral. O ponto final da posição mais socialista do governo europeu é marcada pelo governo de Jacques Delors, um filósofo humanista, socialista francês, intelectual inteligente, que finalizou seu mandato em 1994 e que deixou como testamento político um livro branco de política econômica e um de política social. Justo naquela mesma época, também na Espanha, mudou o ciclo e entrou a direita. E os governos de direita, na Europa e na Espanha, tendem a ver o problema do desemprego como um problema quase-individual: se existem vinte milhões de desempregados, são vinte milhões de problemas individuais, e menos um problema social que necessite de uma abordagem por meio de políticas públicas. E a psicologia em que esse governo estava interessado em aplicar era mais de perfil clínico, orientada a curar e fazer terapia individual com desempregados, o que não era meu estilo.

Leny: Isso aconteceu?

Blanch: Não só na Espanha. Nos Estados Unidos, por exemplo, se alguma vez os republicanos se servem de profissionais da psicologia para lidar com problemas sociais (como pobreza, desemprego ou exclusão social), favorecem perspectivas que minimizam os fatores sociais e maximizam os psicológicos, inclusive em contextos nos quais é difícil questionar o papel determinante de variáveis estruturais. Na minha avaliação, esse é um uso perverso das potencialidades da clínica, cuja aplicação não discuto quando tem por objeto problemas estritamente psicológicos. Na Espanha, em meados dos anos noventa, houve uma debandada geral de políticos e gestores comprometidos com a abordagem interdisciplinar de questões sociais e eu me retirei um pouco dessa esfera. Coincidiu com uma época em que eu era decano e tinha sido diretor de departamento. Dediquei-me alguns anos à gestão acadêmica e a refletir, de forma mais geral, sobre as mudanças no mundo do trabalho em suas implicações teóricas e práticas. Escrevi capítulos de manuais e, nestes últimos anos, coordenei três manuais de psicologia do trabalho e relações de trabalho3. Aí estão os resultados dos temas

3 Blanch, J. M.(Org.). (2003). Teoria de las Relaciones Laborales (vol. 1: Fundamentos. Vol. 2: Desafios). Barcelona: UOC. Blanch, J. M.(Org.). (2005). Psicología del trabalho e de las Relaciones Laborales. Barcelona: UOC.

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que mais me preocupam neste momento. Estou um pouco desligado pontualmente da “rua”, por assim dizer, e me coloquei num nível (não é que seja mais confortável, mas simplesmente uma face) que é de voltar a pensar as coisas em abstrato. Em compensação, estou agora mesmo implementando, como diretor, um master em reabilitação psicossocial em saúde mental na minha universidade.

Leny: Você está coordenando uma pesquisa multicêntrica que se chama O novo significado do trabalho e o subemprego, implicações psicossociais, políticas e de gênero. Eu li o resumo dessa pesquisa e o que parece ser algo importante é repensar as diferenças em termos da experiência do trabalho em um contexto que você chama de pós-fordismo e pós-keynesianismo, diferenciando-a da que se dá em um modelo fordista-keynesiano de estrutura laboral e social. Quer dizer, essa sua opção, neste momento, de se dedicar a uma pesquisa focalizando esse tema se dá a partir dessas reflexões que você tem feito mais recentemente? Eu queria que você falasse então o que o conduziu a pensar num tema como esse, focalizando essas diferenças e, se tiver condições, que falasse um pouco desse projeto multicêntrico, sua conformação, seu objetivo e quais países estão envolvidos.

Blanch: Sim. Esse tema foi suscitado por um duplo interesse. Por um lado, é um interesse teórico e epistemológico e, por outro, um interesse empírico e político. Quer dizer, boa parte da linguagem na qual se articulam as políticas públicas de emprego continua utilizando termos e categorias analíticas e operativas dos anos oitenta, que podem ser considerados próprios do final do fordismo como modelo laboral hegemônico e das crises do keynesianismo como modelo de política econômica e social. E assim corre-se o risco de se utilizar conceitos obsoletos, o que o sociólogo Beck chama de conceitos “zumbis”, ou seja, que já estão mortos, mas não estão totalmente e, eu acredito, estão presentes também em boa parte do que se escreve nos manuais de psicologia do trabalho. Esse é um tema clássico nas ciências sociais e que já se discutiu muito dentro e fora do marxismo: se as estruturas mudam, mudam também as consciências? E o papel da linguagem nesse sentido? Stalin (espécie de analfabeto funcional em filosofia) dizia que a linguagem é uma superestrutura e que ela muda quando mudam as estruturas. Alguém lhe fez observar que ele falava a mesma linguagem dos Czares, a linguagem da Rússia pré-revolucionária. Se a linguagem não tinha mudado, ela formaria parte da estrutura? Sem entrar nessa discussão, em um tom menor, podemos assumir que a carga semântica associada aos significantes que estamos usando para significar as coisas pode ter “data de validade”, como os iogurtes, e tornar-se obsoleta. Marcuse já falava da obsolescência da psicanálise nos anos 1950, ele dizia: agora não vamos sair pela Los Angeles liberal procurando pessoas histéricas (por repressão sexual) como as que Freud encontrava nos anos 1890 na Viena puritana, pois encontraremos outro tipo de sintomas e, portanto, é preciso armar-se de novas categorias analíticas. Então, no Ocidente, a linguagem normalizada sobre o trabalho está referida ao emprego moderno, industrial, numa organização fordista, numa sociedade com componentes keynesianos. Refere-se a um emprego para toda a vida, na mesma empresa, no mesmo ofício, numa carreira laboral contínua, previsível e planificável, numa sociedade marcada por retóricas políticas empreguistas, que propõem o pleno emprego como panacéia social. Essa linguagem continua operando em um mundo “pós”, no qual a categoria laboral mais emergente é o subemprego, um trabalho descontínuo, fragmentado, instável, muitas vezes informal, um contexto em que os empregos extintos são fordistas e os que se criam são flexíveis, nos quais muitas pessoas trabalham em postos de categoria inferior em relação à sua própria qualificação, em empresas nas quais sabe-se que se tem os dias contados, em um mundo em que muitas pessoas não podem fazer planos de futuro porque o trabalho só existe no presente. Disso decorre que as atividades de formação para o trabalho, orientação profissional, acompanhamento no emprego, dentre outras, devam ser pensadas hoje de modo diferente das que se fazia há algumas décadas atrás, pois trabalhar nas condições atuais talvez não signifique o mesmo do que naquele tempo.

Leny: E vocês querem estudar essas mudanças.

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Blanch: Queremos, modestamente, estudar no plano empírico até que ponto interfere na vivência do trabalho a transição de um mundo dominado por um modelo de organização fordista para outro em que predomina uma organização flexível, que muda sua flexibilidade para o campo das condições contratuais, salariais e temporais de trabalho. Estamos interessados em saber se vive-se o trabalho da mesma maneira que se vivia há cinqüenta ou há vinte e cinco anos atrás. Isso pode nos responder à seguinte questão: de onde se deve partir para preparar as pessoas para este mundo atual, para enfrentá-lo, para compreendê-lo, para resistir a ele, para mudá-lo? De onde estávamos há vinte e cinco anos ou de onde estamos agora? E a opção é tentar ver como se traduzem, no plano da subjetividade, as mudanças objetivas. Esse estudo se desenvolve em cinco cidades de países ibero-americanos: Argentina (Buenos Aires), Brasil (Porto Alegre e Criciúma), Colômbia (Bogotá), Espanha (Barcelona) e México (Puebla). O projeto inicial surgiu de uma rede de teses de doutorado “precárias” que eu oriento, ou seja, é também um caso típico de transformação das estruturas universitárias, do novo mundo da precariedade de bolsas de estudo que são dadas para um ano mas só cobrem um mês; são estudantes que começam um projeto mas ficam sem dinheiro. Tentamos criar sinergias entre esses projetos. Criamos uma espécie de marco teórico comum, uma ferramenta de trabalho comum e cada qual deverá criar seus marcos específicos e trabalhar seus dados específicos, mas também temos os conjuntos. Nesse sentido, o que estamos tentando é, em primeiro lugar, explorar o alcance das mudanças em três níveis: um diz respeito ao significado (representação, valores, centralidade etc.) do trabalho, o segundo aos efeitos percebidos da própria situação de trabalho na qualidade pessoal de vida e o terceiro diz respeito ao futuro percebido num duplo aspecto: a visualização do futuro (como eu o vejo) e a ação em direção ao futuro (como eu o enfrento, passivamente, ativamente, com perplexidade, com planos etc). Para tanto, propusemos perguntas como: “quando você fala de trabalhar, no que está pensando?”, “como você vê o seu próprio futuro no plano do trabalho?”. Abordamos tópicos que nos anos oitenta não se mostravam relevantes porque já havia suficiente evidência acumulada sobre eles. Por exemplo, no MOW de 19874, um macro-estudo transcultural, desenvolvido com muitos milhares de sujeitos e realizado em 14 países de três continentes, utilizaram-se instrumentos com perguntas fechadas porque do mundo investigado existia um conhecimento preciso. Nessa nossa pesquisa estamos vendo como alguns elementos clássicos se repetem, outros desaparecem e outros se reconfiguram.

Leny: Por exemplo?

Blanch: Em todos os países, identificamos que o dinheiro continua sendo importante, mas agora é ainda muito mais. Abarca uma parte central importantíssima e amplíssima do campo semântico do trabalho e quase todo o resto é periférico. O trabalho continua sendo um valor central, mas num sentido diferente. Para os empregados clássicos de tipo fordista, que ainda existem hoje, continua sendo um valor instrumental e também um valor expressivo. Essas pessoas trabalham sentindo-se hábeis, úteis, realizadas e também trabalham para ganhar dinheiro. No entanto, para a maioria das pessoas subempregadas – com emprego instável, em condições contratuais, salariais e temporais precárias e, entre estas, a maioria composta por jovens – o valor expressivo é procurado no ócio, no final de semana ou no consumo e trabalham apenas pelo dinheiro. Mas o trabalho continua sendo importantíssimo para elas, porque é a única forma que têm de aceder ao dinheiro, que é mais importante que nunca para sobreviver e levar uma vida “normal”. Portanto, o dinheiro vai se re-situando, ampliando, reforçando sua posição no centro do espectro. Há vinte e cinco anos, as “pessoas fordistas” pensavam o trabalho em termos de direitos e deveres. Hoje, entre as pessoas com menos de trinta anos de nossa amostra, o componente “direito” está praticamente extinto. Outro componente do significado do trabalhar (meaning of working) nos anos oitenta era o trabalho como base para pensar e projetar o próprio futuro, como referência de expectativas (conseqüências esperadas) e de metas (projetos no plano do trabalho). Há vinte e cinco anos,

4 MOW (1987). The Meaning of Working. Londres: Academic Press.

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as pessoas mais velhas esperavam e planejavam a aposentadoria e as pessoas jovens esperavam e planejavam sua carreira. Hoje, o que constatamos é que no entorno do subemprego, o futuro é nebuloso e isso impede a montagem de estratégias pessoais e de trabalho coerentes a longo prazo. Portanto, tudo isso com certeza tem claras implicações para a identidade social, para a orientação profissional e para o planejamento da estratégica pessoal. Como se pode inserir alguém num mercado volátil ou orientar alguém se não se sabe onde está o norte ou se o futuro existe? Como alguém pode fazer um investimento em formação na sua carreira se não sabe se o mês que vem trabalhará como mecânico de automóveis, como professor ou como entregador de pizza? Esse é um campo onde encontramos novidades mais radicais. O futuro é visto de forma nebulosa e isso dificulta uma série de funções que antes dávamos como certas e que permitiam levar uma vida de qualidade, psicológica, inclusive. Quando não se pode fazer planos nem delinear estratégias porque faltam referências claras sobre o futuro, as pessoas funcionam, no mínimo, perplexas, sentido-se sem recursos nesse terreno; quer dizer, refugiam-se no presente e deixam de realizar-se perguntas que não estão em condições de responder.

Leny: E nessa pesquisa vocês têm como sujeitos pessoas de diversas faixas etárias, sexo e diversos níveis de qualificação e escolarização?

Blanch: Sim. Tentamos compor amostras aleatórias, mas estratificadas e selecionadas com uma certa intenção, no que fracassamos em certo grau. Queríamos e conseguimos encontrar um número parecido de mulheres e de homens e, dentro do possível, encontrar mais jovens do que pessoas mais velhas. Isso porque o tema do futuro, a partir dos cinqüenta e poucos anos, já se dá em termos de aposentadoria, enquanto nos interessava muito saber como as pessoas jovens de hoje enfrentavam o futuro. Então temos mais ou menos a seguinte distribuição: 50% de pessoas com menos de trinta anos, aproximadamente 25% de pessoas entre trinta e quarenta anos, e o restante de pessoas com mais de quarenta. Focalizavamos os jovens e também queríamos encontrar o que fosse mais próximo dos tipos “puros”, quer dizer, procurávamos “empregados puros”, “subempregados puros” (com trabalhos precários em termos contratual, salarial e temporal), “desempregados puros”. E o que temos encontrado é que todos são híbridos! Isso porque o mundo mudou e porque nós estávamos desorientados em relação a este mundo. Hoje, muitos empregados vêem também como incerto seu futuro profissional, estudam ou têm dois empregos, um que é um emprego um pouco bom e outro que é um emprego um pouco ruim, mas que ajuda. Muitos subempregados são estudantes ou são multi-empregados e não existem desempregados “puros”, que vivam do “ar”. O que temos são pessoas cadastradas como desempregadas, mas que sobrevivem como podem, fazendo trabalhos na economia informal, estudando um pouco. Com as respostas textuais dos pesquisados, descobrimos que deveríamos reconstruir uma variável muito importante. Nós tínhamos criado sete ou oito categorias ocupacionais, mas os entrevistados assinalavam cinco ou seis categorias: todos tinham algo de estudante, algo de desempregado, algo de empregado, algo de subempregado, em diferentes aspectos. Quando nos explicam suas vidas, temos mais elementos para dizer: este é acima de tudo estudante, que trabalha só para pagar seus estudos, ou este outro é um chefe de família que trabalha como um condenado porque precisa trazer dinheiro para casa, e que, quando pode, estuda um pouco. Então tivemos que reconstruir as coisas assim.

Leny: E porque vocês escolheram estudar amostras de população daqueles países?

Blanch: Estudamos países de cultura “latina” porque acreditamos que nos diferenciamos qualitativamente dos países anglo-saxões, que nos exportam saberes sobre a experiência do trabalho. Em geral, na Argentina, no Brasil, na Colômbia, na Espanha e no México, as pessoas não restringem o espaço de sociabilidade aos círculos da família e do trabalho, mas têm uma rede estável de relações sociais mais ampla. Numa situação de transição para uma nova era de trabalho instável, acreditamos que, talvez, não se deva misturar o que acontece em países como os nossos, com essa característica cultural, com aquilo que ocorre com países

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mais individualistas. Queremos estudar estes ambientes latinos com suas especificidades e suas diferenças. Atualmente temos processados somente os dados da primeira fase do trabalho empírico. Nessa primeira fase aplicamos o questionário em 700 pessoas (somando quatro cidades). Na segunda fase, estamos perto de superar 1500 novas aplicações acrescentando ao conjunto as cidades de Bogotá e de Criciúma. Nesses dados encontramos uma coisa curiosa que nos impactou: as pessoas de Barcelona e de Buenos Aires funcionam quase como se fossem da mesma cidade e o mesmo ocorre entre as pessoas de Puebla e de Porto Alegre, que também funcionam com um perfil muito similar. Uma primeira hipótese explicativa dessas simetrias poderia ser de que Barcelona e Buenos Aires conheceram uma situação social em que o emprego fordista tinha chegado a ser uma norma social e estatística, enquanto que em Puebla e em Porto Alegre, essa situação sempre coexistiu com uma alta taxa de trabalho informal e com um Estado que, se chegou a implementar políticas públicas, sociais e trabalhistas, não tinha chegado a desenvolver um sistema de bem-estar fortemente arraigado. Então, provavelmente, em Barcelona e em Buenos Aires, a situação atual é vivida com especial tensão, preocupação e angústia, porque é ir de algo bom para algo pior, ou de algo que talvez naquele momento não se vivesse como bom, mas que hoje se vive com nostalgia. Por sua vez, em Porto Alegre e em Puebla (não me atrevo a falar de Brasil e de México), a situação de hoje é pior do que a de ontem em alguns aspectos, mas não tanto, pois, naqueles contextos sempre houve pobres nas ruas, pessoas fora do sistema de proteção social e do emprego formal, na economia informal.

Leny: Pessoas que nunca conheceram o mercado formal de trabalho...

Blanch: Exato. Então, se isso é assim, não vivem a situação atual como especialmente aflitiva em comparação com o passado e isso talvez as prepare melhor para o futuro, para o neoliberalismo. Isso as converte em sujeitos a observar, para ver como enfrentam uma situação de instabilidade que parece ter sido bastante normal para elas. É o que tratamos de ver.

Leny: Aqui no Brasil nós temos tido há alguns anos, acredito que há cerca de dez anos, talvez um pouco mais, o crescimento e o ressurgimento da autogestão e de empresas cooperativas dentro do que se denomina movimento da economia solidária. Num certo sentido, essas iniciativas vieram como uma necessidade posta pelo crescimento do desemprego. Entre nós, a experiência de Mondragón, na Espanha, é muito conhecida, muito comentada e muitas vezes até tomada como parâmetro em alguns aspectos. Teria algo que você ache relevante ser comentado, porque é um complexo cooperativo existente há muitos anos...

Blanch: Mondragón, desde a sua constituição, há meio século, até hoje, mudou. Começou como uma pequena cooperativa de produtores associados e atualmente é um conglomerado de empresas que abarca os setores financeiro, industrial e de distribuição e se alimenta de seus próprios serviços de educação, formação e de pesquisa. Hoje formam parte dessa “corporação cooperativa” mais de setenta mil pessoas empregadas dentro de Espanha e de quase dez mil no exterior. Trata de coordenar seus valores fundacionais (tais como participação, autogestão, cooperação, justiça, equidade e solidariedade) com imperativos funcionais do capitalismo flexível e global (como os de produtividade, eficiência, competitividade, flexibilidade, inovação tecnológica, organizativa e social). Inclui pequenas e grandes empresas, centros de trabalho nos quais existe pouca divisão do trabalho e outros com uma organização muito sofisticada. Tudo isso faz de Mondragón uma organização complexa e fascinante. Transformou-se numa espécie de “multinacional sem capitalistas”, mas que tem que competir num mercado com outras multinacionais e, portanto, com critérios de management equiparáveis aos que funcionam em outras organizações. Isso a torna uma instituição muito especial, que funciona numa escala diferente em comparação com outras empresas cooperativas de tamanho menor. Eu acredito que os processos organizacionais que tornam essa macro-empresa cooperativa interessante são o próprio funcionamento da autogestão, a organização do trabalho, a identidade do pessoal, a planificação, a participação, a disciplina, o

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poder, o controle, a flexibilização em todos os terrenos (em relação a salários, horários, contratos, competências profissionais, careira, retiradas etc.), a tomada de decisões (no que se refere à redistribuição dos benefícios, à escala salarial, ao re-investimento em capital etc.), a comunicação (horizontal e vertical), a qualidade de vida no trabalho, dentre outras coisas. Eu diria que todo o inventário de tópicos de um manual convencional de psicologia do trabalho e das organizações, deveria dedicar um sub-capítulo especial a esse tipo de complexo cooperativo como Mondragón, porque esses manuais tratam exclusivamente da organização capitalista de trabalho e das relações de trabalho capitalistas em sentido estrito. Mondragón é um bom modelo de referência para as novas empresas autogestionárias que estão surgindo no Brasil e na América do Sul em geral, primeiro por trazer-nos a idéia de que uma empresa como ela tenha sobrevivido e se desenvolvido por todo esse tempo e, além disso, goza de boa saúde. Isso, por um lado, significa que existe um modelo alternativo de organização do trabalho ao capitalismo tradicional. De outro lado, significa que alguns processos que, de modo simplista, consideramos subprodutos das condições e das relações capitalistas de produção, transcendem esse sistema. Esse é o caso da flexibilidade. A flexibilização (salarial, de horários etc.) pode ser vivida de forma mais o menos diferente numa empresa capitalista e numa empresa não capitalista ou não propriamente capitalista. Também pode se falar dos temas da saúde ocupacional. Em Mondragón também existe gente que se estressa pelo trabalho. Portanto, não podemos jogar a culpa de tudo no capitalismo abstrato, mas sim em determinadas características do entorno, ao tipo de trabalho, às exigências (poderíamos dizer auto-exigências) de produção, de rentabilidade, de benefícios. O que me seduz mais no caso Mondragón é, em primeiro lugar, que é possível e viável, o que é um motivo permanente de reflexão. Cada salto qualitativo que fazem para se expandir fora de sua localidade e de funcionar como uma corporação pode ser visto como uma traição a suas origens – ou como competir com o capitalismo em seu próprio terreno –, mas também outra leitura é possível, qual seja, a de que ou fazem isto ou fecham. Talvez, num mundo como o atual, o menos viável seja permanecer num lugar sem se mover. Pode ser que o segredo seja esse. Nesse sentido, vejo Mondragón como uma experiência sugestiva e relevante em termos teóricos e sociais.

Leny: Aqui no Brasil tivemos, a partir da década de oitenta, uma articulação importante do movimento sindical e de alguns setores dos serviços de saúde pública, que construiu o movimento de Saúde do Trabalhador. Era o momento do ressurgimento dos movimentos sociais na cena pública, momento de abertura política, e os sindicatos, vários sindicatos de trabalhadores, tomaram alguns temas que comporiam a sua agenda de atuação. Isso não significa que esse tema, dentre vários outros, não fossem problemas sentidos pelos trabalhadores, mas o fato é que, com a abertura política eles puderam tornar-se públicos. A compreensão que se forjou é a de compreender o processo saúde-doença como socialmente determinado, a qual conta com o aporte da Saúde Coletiva e da Medicina Social Latinoamericana, que conta com importantes autores mexicanos, argentinos, equatorianos e brasileiros. Para essa leitura, toma-se como categoria central o processo de trabalho e ela tem na leitura materialista-dialética sua sustentação. Por tomar o materialismo-histórico como referência privilegiada, tal leitura compreende que pensar na melhoria de condições de trabalho e saúde implica que os próprios trabalhadores sejam atores na definição de problemas e na definição do que deve ser melhorado. Tem como foco a busca da prevenção, mas a busca da prevenção não através de uma adaptação melhor do trabalhador ao trabalho, mas da mudança nas condições e na organização do trabalho, de modo que as pessoas consigam trabalhar de um jeito mais adequado para elas. E eu acredito que esse movimento da Saúde do Trabalhador tenha também sido um mote, um tema, que canalizou diversas outras questões relativas à dignidade do trabalho. Na Espanha há, ou houve, em algum momento da história uma preocupação específica dos sindicatos com esse tema? Você conhece como se deu ou como se dá, se existe alguma vinculação com órgãos públicos, órgãos de saúde?

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Blanch: Sim. Algo parecido, mas não como resultado de um movimento muito concreto e identificável ou de uma determinada orientação filosófica ou ideológica, mas como efeito de um processo histórico complexo em que se combinam várias coisas. Até agora, em praticamente todo o mundo, a profissão médica teve o monopólio da gestão da saúde individual e coletiva e essa corporaçao apenas foi “convidando” a colaborar com ela outras especializações e perspectivas, quase entrando pela porta de trás e em conta-gotas. Apesar desse condicionante, atualmente há um desenvolvimento em direção a uma nova divisão de responsabilidades entre disciplinas e profissionais no campo da saúde no trabalho: entram cientistas do trabalho, de relações de trabalho e da administração, da psicologia, da assistência social, da ergonomia, da terapia ocupacional etc. que facilitam uma abertura interdisciplinar e uma leitura não exclusivamente patologista da relação saúde-trabalho. Os profissionais da medicina e da enfermagem continuam monopolizando o que seja o tratamento de sintomas físicos e a prevenção desses aspectos na higiene e na salubridade do trabalho e também se deixa aos engenheiros a prevenção do riscos que sejam mais de estruturas físicas. Mas, nos últimos dez anos, na Europa em geral e na Espanha em particular, emergiu com muita força a questão dos fatores de risco psicossocial. Risco remete a um campo multidisciplinar no qual figuram saúde (física, mental, social) e acidentes que não só causam problemas às pessoas, mas que também envolvem custos monetários para as companhias seguradoras. Assim, a prevenção de riscos já não é um capricho de sindicatos, de pessoas isoladas ou de disciplinas que buscam um espaço para a intervenção. Hoje, a vertente médica e somática do que são os riscos do trabalho continua ocupando um espaço importante, mas a investigação indica o caráter emergente dos fatores psicossociais do risco no trabalho. Nos estudos dos últimos anos, esses fatores aparecem como importantes para as doenças no trabalho. De acordo como o terceiro e último informe quinqüenal, o European Survey on Working Conditions, elaborado pela European Foundation5, 28% da amostra declara trabalhar sob efeito do estresse, que atribuem principalmente à intensificação do ritmo e à flexibilização das condições de trabalho. Somente as dores nas costas alcança níveis mais elevados (29%), mas essas dores nas costas em geral, das cervicalgias até as lombalgias, podem ser consideradas doenças puramente físicas ou somatizações de tensões psicosociais no trabalho. O burnout alcança 23%. E ainda temos a fadiga geral, dores de cabeça, depressão e a variedade de problemas psicossociais associadas a circunstancias de assédio moral ou sexual ou de discriminação de gênero ou de raça. Frente a essas evidências reiteradas e aos desafios que comportam, a medicina e os enfoques meramente “clínicos” em geral estão tão desamparados quanto a engenharia e aparece muito claramente a necessidade de conhecer melhor o assunto e de abrir o campo da saúde no trabalho para outras disciplinas e para enfoques mais “sociais”. Nos últimos anos, eu mesmo ministrei cursos de formação para dirigentes sindicais sobre prevenção de riscos psicossociais e atualmente sou orientador de uma tese de doutorado, sobre essa questão, de um médico responsável do departamento de prevenção de riscos laborais num grande hospital geral. Uma das instituições que estão entrando na moda na Europa são os observatórios de qualidade de vida no trabalho dentro das organizações, nas quais participam o pessoal técnico do serviço de prevenção de riscos, o pessoal dos sindicatos e outros. Dentre eles, pode-se incluir, segundo a cultura de cada centro, profissionais da medicina, da assistência social, da psicologia, da sociologia etc. Portanto, já se adota um enfoque muito mais interdisciplinar, de maneira que, provavelmente, chegamos ao mesmo ponto por caminhos diferentes. Hoje, na Espanha, o discurso e a prática da prevenção de riscos no trabalho vão sendo referidos à saúde de coletivos mais do que à individual, mais na prevenção do que na cura e na reabilitação. Acredito que nós chegamos por esse outro caminho, mas a nossa preocupação dominante é um pouco a mesma que a de vocês.

Leny: Blanch, você está no Brasil na condição de professor visitante e o seu programa possibilitou que trabalhasse em diversas regiões do Brasil. Você esteve no Nordeste, em João

5 European Foundation (2001). Diez años de Condiciones de Trabajo en a Unión Europea. Luxemburgo: OPOCE.

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Entrevista: Josep Maria Blanch

Pessoa e em Natal, no Sul, em Porto Alegre, no Planalto Central, em Brasília, e agora você está no Sudeste, em São Paulo. Neste período que você está no Brasil, o que você pôde aprender sobre o trabalho num país como o nosso, tendo essa diversidade de aberturas e janelas.

Blanch: Aprendi muitas coisas. Existem sociólogos que percebem o Brasil como uma espécie de laboratório de ensaio social do que está acontecendo no mundo sob muitos aspectos. Por isso eu vim. Nos anos noventa, estive aqui um mês como turista e pensei que para alguém que estuda fenômenos e processos sociais este era um bom país para voltar e para vir, e vim acima de tudo para estudar. O Brasil encarna uma questão que é global e que aqui é alarmante, escandalosa e, atrevo-me a dizer, que “clama a justiça divina”. Aprendi, sobrevoando o território em avião, que o Brasil é um país com possibilidades para que todos os seus habitantes (e também potenciais imigrantes de outros países) vivam muito dignamente. Também aprendi, caminhando pelas ruas das cidades e de algumas das suas favelas, que isso não acontece para uma parte significativa de brasileiros. Neste pais existe gente que vive com uma qualidade de vida invejável e muita gente que vive muito mal. No Brasil, as riquezas e todos os recursos que a natureza oferece não produzem efeitos automáticos no bem-estar coletivo da sua população. E aprendi que essas desigualdades e contradições sociais que comportam a pobreza e a exclusão se refletem e se condensam na estrutura social do trabalho. A situação sócio-laboral do Brasil é uma espécie de síntese entre o passado, o presente e o futuro; quer dizer, tem muitos elementos do passado social e neofeudal ou neocolonialista, da fase que uma das minhas doutorandas6 chama de “portuguezação” do Brasil, pois tem componentes da “norte-americanização” do Brasil da época fordista e é isto que lhe dá uma imagem presente de certa modernidade e de país normal. Existe também muito do futuro, no sentido que a flexibilidade que está irrompendo no mercado do trabalho global, aqui é algo crônico, mas talvez esteja se intensificando, embora aqui seja normal sob muitos aspectos. Portanto, o interessante como pesquisador, é ver (e lamentar como ser humano) que aqui se desenvolveram de uma maneira aparentemente “espontânea” e “quase natural”, mas motivadas por estruturas sociais, algumas formas históricas de enfrentar essa situação. Formas de procurar a sobrevivência ante um sistema que não a situa de forma fácil. O Brasil é um país com pouco Estado, com a estrutura política e os personagens políticos que tem e com demasiadas promessas não cumpridas e oportunidades não aproveitadas, mas com muitos movimentos sociais, dos quais algumas vezes emergem experiências sugestivas e interessantes, como os movimento dos sem-terra, da economia solidária em geral e das empresas recuperadas em particular. Eu tinha notícias de empresas recuperadas na Argentina e no Uruguai, mas vejo que aqui existe uma boa tradição nessa área. Além disso, o Brasil tem alguma coisa que apenas podemos “descobrir” os que o vemos de fora. O fato singular e paradoxal de um pais tristemente sub-campeão mundial em desigualdade e discriminação social que é, ao mesmo tempo, acredito, candidato ao pódio em capital social. Talvez facilitado pelo clima, que permite desenvolver um caráter forjado a partir de muita vida na rua, todo o ano e todos os anos da vida. Este país de grandes distâncias entre ricos e pobres parece ter ao mesmo tempo um bom tecido de redes sociais. Os mais ricos quase não são vistos – em São Paulo, vão de helicópteros [risos] –, mas os “do meio” e os “de baixo” compartilham desde a paixão pelo futebol até coisas mais sérias. Na rua se vê um ambiente aparentemente melhor do que seria esperável numa sociedade com tantas tensões sociais. Em todo esse tempo vi pouca gente discutindo ou brigando, demorou quatro meses para que eu visse um brasileiro levantando a voz e falando agressivamente (isso para algumas coisas é bom e para outras talvez não). Então, eu penso que essa característica social é uma variável muito importante para pensar nas possibilidades de um modelo (exportável) de gerenciar a saída da crise ocasionada pela política neoliberal do trabalho. Há uns anos,

6 Patrícia Martins Goulart.

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depois de uma estada no Brasil como a que eu realizo agora, Ulrich Beck7 criou a imaginativa e discutida expressão “brasilização do Ocidente” para referir-se a uma injeção de informalidade na estrutura laboral pós-fordista e a uma lógica do processo implacável de precarização das condições e das relações de trabalho que se produz em escala mundial. Esse sociólogo alemão pensa que o Brasil está se convertendo no modelo geral de referência para o desenvolvimento europeu e norte-americano. Trata-se, disse ele, de uma involução histórica do velho ideal “europeu” de sociedade do trabalho e do bem-estar, baseado no pleno emprego estável como fundamento do progresso econômico, social e político. Constitui, sem duvida, uma metáfora sugestiva, mas que inevitavelmente simplifica a visão do processo referido: o passado europeu e o presente do Brasil não podem ser equiparados ao presente nos Estados Unidos, que é extremamente individualista e socialmente desvertebrado. O presente brasileiro mostra uma sociedade, malgré tout, menos esgarçada e, eu acho, com mais capital social. Por isso, neste aspecto social, talvez melhor equipada para enfrentar o futuro de incerteza e de insegurança que caracteriza a irrupção da sociedade do risco global. A sociedade norte-americana terá um exército mais potente e uma polícia talvez mais onipresente, mas os indivíduos vivem sua vida e seus problemas mais individualmente. Acredito que viver os problemas individualmente é muito mais duro, difícil e complicado do que fazê-lo num país como este, que, apesar de ter uma sociedade extremamente desigual e discriminatória, tem redes de solidariedade mais visíveis. Tudo o que a sociologia e a psicologia social dizem da anomia, das depressões, do isolamento, foram estudados inicialmente, por exemplo, na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos. Eu gostaria mais de ver aqui como se produzem e como funcionam e se metabolizam individual e socialmente esses processos. Com certeza não é bom nem divertido ser pobre e não ter emprego no Brasil, mas acho que, nos Estados Unidos, ser pobre e não ter emprego é viver psicosocialmente pior.

Leny: Quando você fala em capital social você está se referindo ao conceito de Pierre Bourdieu?

Blanch: Estou me referindo em geral a um construto emergente em diversas ciências sociais, que fazem pontuações interessantes, por exemplo, o cientista político norte-americano James Putnam8. O capital social é o conjunto de recursos sociais de que dispõe cada individuo, num momento dado, aquele conjunto de pessoas que todos temos em nossa agenda e que sabemos que podemos ligar e que ajudarão se necessitarmos. Portanto, formam um círculo que ultrapassa o da família.

Leny: Uma rede.

Blanch: Uma rede informal que só existe se a cultivamos, quer dizer, são as pessoas com quem nos relacionamos quase cotidianamente, que vemos no trabalho, no bar da esquina, na rua, falando de futebol, falando da saúde dos filhos. Isso requer um tempo para cultivá-la e mantê-la. É um tempo que nos países anglo-saxões quase não existe. E, ao não existir, não se cultiva e ao não se cultivar, extingue-se. Ao extinguir-se, os indivíduos estão absolutamente sozinhos e, ao estarem sozinhos, as crises são vividas de outra maneira, de forma muito mais profunda e o risco de isolamento em relação a todo o sistema político, social e cultural é mais forte. Trata-se do risco do que a sociologia clássica chama de anomia e do efeito psicológico da depressão, que é uma espécie de reação individual a essa situação social de anomia. Tudo o que sabemos dessas sociedades do norte, provavelmente e afortunadamente, não se pode aplicar automaticamente e da mesma maneira a países como Brasil. E, por mim, tenho vontade de voltar outra vez para explorar mais esse potencial. Os visitantes, que viemos de outra galáxia, vemos e valorizamos, mais do que vocês, a sua estereotípica “amabilidade”. É como se vocês tivessem minas de carvão que permitem pegar o minério próximo ao chão e

7 Beck, U. (1999). Um nuevo mundo feliz. La precariedad del trabajo en la era de la globalización. Barcelona: Paidós. Beck, U. (2002). La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo XXI.

8 Putnam, R. D. (2001). The dynamics of Social Capital. Princeton: Princeton University Press.

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Entrevista: Josep Maria Blanch

estivéssemos pensando no carvão das minas de outros países, que é preciso ir a muitos metros de profundidade para pegá-lo. Vocês têm “minas sociais” muito boas e não as exploram intensivamente, provavelmente porque ninguém lhes disse que isso é muito bom e que em outros lugares isso é muito útil e muito caro. Eu acredito que se algum dia vocês acertarem em ter um governo e elites à altura do povo, que lhes gerenciem bem as políticas de trabalho e outras políticas sociais, será possível que encontrem um país melhor equipado para enfrentar estes desafios do futuro. Essa é a imagem que para mim é a mais forte. Acredito que o Brasil, se me permitem, não quero ser indelicado, não tem o melhor Estado do mundo, mas tem uma das sociedades com maior potencial do mundo. E isso, acredito, é bom.

Leny: Ok, Blanch, obrigada pela entrevista. Você traz uma vasta experiência em diversas dimensões. Acredito que os leitores dos Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, terão muito a aprender e sobre o que refletir com o seu depoimento.

Blanch: Obrigado!

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1)Os Cadernos de Psicologia Social do Trabalho adotam as normas da APA1 na apresentação das citações no texto e das referências. As referências dos autores citados devem ser apresentadas no final do texto e não em notas de rodapé. Constarão apenas as obras a que são feitas alusões ao longo do texto.

2)Os autores devem ser apresentados pelo sobrenome e seguidos pelo ano da publicação. Nas citações com dois autores os sobrenomes quando citados entre parênteses devem ser ligados por “&”; quando citados no texto devem ser ligados por “e”: (Lima & Oliveira, 1995) ou Lima e Oliveira (1993).

3)No caso de citações com três a cinco autores, a primeira vez em que aparecem no texto são citados todos os autores; nas citações seguintes cita-se o sobrenome do primeiro autor seguido da expressão latina “et al.”.. Já em citações com seis ou mais autores, cita-se sempre o sobrenome do primeiro autor seguido da expressão “et al.”. (nas referências, ao final do texto, devem aparecer os nomes de todos os autores, sejam quantos forem): (Silva, Santos & Gomes, 1997) ou Silva, Santos e Gomes, 1997; Nas citações seguintes: (Silva et al., 1997) ou Silva et al. (1997).

4)Em citações de vários autores e uma mesma idéia, deve-se obedecer à ordem alfabética de seus sobrenomes e não à ordem cronológica: (Lacaz, 1997; Minayo-Gomez, 1997; Rego, 1993) ou Lacaz (1997), Minayo-Gomez (1997), Rego (1993).

5)No caso de citações de autores com mesmo sobrenome indicar as iniciais dos prenomes abreviados: (A. M. Rodrigues, 1992; L. M. Rodrigues, 1990) ou A. M. Rodrigues (1992) e L. M. Rodrigues (1990).

6)No caso de documentos com diferentes datas de publicação e um mesmo autor, citam-se o sobrenome do autor e os anos de publicação em ordem cronológica. Quando se tratam de publicações diferentes com a mesma data, acrescentam-se letras minúsculas após o ano de publicação: (Gergen, 1973, 1985a, 1985b, 1985c, 1989) ou Gergen (1973, 1985a, 1985b, 1985c, 1989).

7)Documentos cujo autor é uma entidade coletiva, devem ser citados pelo nome da entidade por extenso, seguido do ano de publicação: (Associação Brasileira de Psicologia Social, 1995) ou Associação Brasileira de Psicologia Social (1995).

8)Para citações de informações obtidas através de canais informais (aula, conferência, comunicação pessoal, e-mail etc.), acrescenta-se a informação entre parênteses após a citação: (Comunicação pessoal, 1o de maio de 1999).

9)Obras antigas e reeditadas: citar a data da publicação original seguida da data da edição consultada quando isso for importante de ser informado ao leitor: Goffman (1959/1985) ou (Goffman, 1959/1985).

10)No caso de transcrição literal de um trecho de um texto, esta deve ser delimitada por aspas duplas, seguida do sobrenome do autor, data e página citada: (Ibáñez, 1992, p. 22) ou Billig (1994, pp. 12-13). No caso de citação de trecho com 40 ou mais palavras, este deve ser apresentado em parágrafo próprio sem aspas, iniciando com a linha avançada (equivalente a cinco toques de máquina) e terminando com a margem direita igualmente recuada.

11)Na citação indireta, ou seja, aquela cuja idéia é extraída de outra fonte, utilizar a expressão “citado por”: Vico (1965, citado por Shotter, 1993) ou Vico (1965) citado por Shotter (1993). Nas referências mencionar apenas a obra consultada, no caso: Shotter, J. (1993).

1 American Psychological Association (2001). Publication manual of the American Psychological Association. Washington, DC: APA. Os editores entendem que para a maioria dos casos as orientações aqui constantes são suficientes. Recomendamos, no entanto, a consulta à excelente adaptação para o português elaborada pelo Serviço de Biblioteca e Documentação do Instituto de Psicologia da USP: http://www.usp.br/ip/biblioteca/pdf/pdf.htm

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Normas para referências

1) As referências deverão ser apresentadas no final do artigo. Sua disposição deve ser em ordem alfabética do último sobrenome do autor. No caso de mais de uma obra de um mesmo autor, as referências deverão ser dispostas em ordem cronológica de publicação. Para cada referência, mencionar todos os autores, independentemente de quantos sejam, na ordem em que aparecem na publicação original.

2) Livros com um ou mais autores:

Mello, S. L. M. (1988). Cotidiano e sobrevivência: mulheres do campo e da periferia de São Paulo. São Paulo: Ática.

Henriques, J., Holloway, W., Urwin, C., Venn, C. & Walkerdine, V. (1984). Changing the subject: psychology, social regulation and subjectivity. London: Methuen.

3) Com autoria institucional:

Grupo Krisis (1999). Manifesto contra o trabalho (H. D. Heidemann, trad.). São Paulo: Labur.

4) Com entrada pelo título sem autoria específica:

Consolidação das Leis do Trabalho (1977). (46a ed. atualizada). São Paulo: Atlas.

5) Com indicação de edição ou tradutor:

Bosi, E. (1994). Memória e sociedade: lembranças de velhos (4a ed.). São Paulo: Companhia das Letras.

Orstman, O. (1984). Mudar o trabalho: as experiências, os métodos, as condições de experimentação social (H. Domingos, trad.). Lisboa, Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian.

6) Com indicação de data ou título da edição original ou título traduzido:

Lafargue, P. (1999). O direito à preguiça. São Paulo: Hucitec-Unesp. (Originalmente publicado em 1880)

Marx, K. & Engels, F. (1993). A ideologia alemã (9a ed.). São Paulo: Hucitec. (Originalmente publicado em 1932. Título original: Die deutsche ideologie)

Oddone, I., Re, A. & Briante, G. (1977). Esperienza operaia, coscienza di classe e psicologia del lavoro [Experiência operária, consciência de classe e psicologia do trabalho]. Turim, Itália: Giulio Einaudi.

7) Capítulo de livro:

Sato, L. (1993). A representação social do trabalho penoso. In M. J. P. Spink (Org.), O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na perspectiva da psicologia social (pp. 188-211). São Paulo: Brasiliense.

Deetz, S. (1992). Disciplinary power in modern corporation. In M. Alvesson & H. Willmott (Eds.), Critical Management Studies (pp. 21-45). London: Sage.

Marcuse, H. (1998). Sobre os fundamentos filosóficos do conceito de trabalho da ciência econômica. In Cultura e Sociedade (vol. 2, pp. 7-50). São Paulo: Paz e Terra.

8) Artigo de revista científica:

Spink, P. K. (1996). A organização como fenômeno psicossocial: notas para uma redefinição da psicologia do trabalho. Psicologia e Sociedade, 8 (1), 174-192.

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9) Artigo de jornal:

Chaui, M. (1999, 9 de maio). A universidade operacional. A atual reforma do estado ameaça esvaziar a instituição universitária com sua lógica de mercado. Folha de São Paulo, São Paulo, Caderno Mais!, 5, 3.

Malvezzi, S. (1995). A psicometria está superada. Jornal do CRP 6a Região, São Paulo, 15 (92), 3-5.

10) Trabalho de evento publicado em resumos ou anais:

Seligmann-Silva, E. (1999). Desemprego: a dimensão psicossocial. In La psicología al fin del siglo: conferencias magistrales del XVII Congreso Interamericano de Psicología (pp. 337-359). Caracas, Venezuela: Sociedad Interamericana de Psicología.

Neves, T. F. S., Ortega, C. A., Kim, C., Müller, E., Costa, F. B., Massola, G. M. M., Dadico, L., Barros, L. H., Lopes, P. S., Amêndola, M. F., Barreto, R. A. & Pires, T. A. A. (1998). Desemprego e ideologia: explicações das causas do desemprego utilizadas por trabalhadores metalúrgicos. In Anais do VII Encontro Regional da Associação Brasileira de Psicologia Social: neoliberalismo e os desafios para a psicologia social (p. 139). Bauru, SP: Associação Brasileira de Psicologia Social.

11) Dissertação ou tese:

Carvalho, M. C. R. G. (1981). Fábrica: aspectos psicológicos do trabalho na linha de montagem. Dissertação de Mestrado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.

Heloani, J. R. (1991). Modernidade e identidade: os bastidores das novas formas de exercício do poder sobre os trabalhadores. Tese de Doutorado, Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo.

12) Texto da internet:

Marazzi, C. (s. d.). Linguagem e pós-fordismo. Lugar Comum: Estudos de mídia, cultura e democracia, 1. Artigo disponível na Internet: http://www.cfch.ufrj.br/lugarcomum/no1.html [19 novembro 1999]

13) Trabalho em vias de publicação:

Salvitti, A., Viégas, L. S., Mortada, S. P. & Tavares, D. S. (no prelo). O trabalho do camelô: trajetória profissional e cotidiano. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho.

14) Texto não publicado (mimeografado, datilografado, digitado etc.):

Oliveira, F. (1999). Desemprego e psicologia. São Paulo. [digitado]

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Sumários dos volumes anteriores

Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

Volume 1, 1998

Desemprego e ideologia: as explicações das causas do desemprego utilizadas por trabalhadores metalúrgicos

As estratégias de sobrevivência e de busca de emprego adotadas pelos desempregados

Etiologia do senso comum: as Lesões por Esforços Repetitivos na visão dos portadores

Entrevista: Sylvia Leser de Mello

Volume 2, 1999

O trabalho do camelô: trajetória profissional e cotidiano

De elemento a cidadão: transformações no cotidiano do trabalho do policial militar

Mesa redonda – Reestruturação produtiva: o que há de novo para a psicologia no mundo do trabalho?

Panorama da reestruturação produtiva – Luís Paulo Bresciani

Reestruturação produtiva, sindicalismo e solidariedade – Remígio Todeschini

A identidade do psicólogo do trabalho em tempos de globalização – Roberto Heloani

Sobre a comemoração do primeiro de maio – Sylvia Leser de Mello

Mesa redonda – Mercado informal, empregabilidade e cooperativismo: as transformações das relações de trabalho no mundo contemporâneo

O mundo precarizado do trabalho e seus significados – Ricardo Antunes

Transformações nas relações de trabalho e na política pública – Maria Cristina Cacciamali

Empregabilidade e carreira – Sigmar Malvezzi

Desemprego e autogestão – Luigi H. Verardo

Entrevista: Arakcy Martins Rodrigues

Volume 3/4, 2000/2001

Cooperativa: política de Estado ou cotidiano? O caso de Cabo Verde

O cotidiano conjugal de trabalhadoras com Lesões por Esforços Repetitivos

Homens de pedra? Pesquisando o processo de trabalho e saúde na extração e no beneficiamento do mármore – relato de uma experiência

O vocabulário da habilidade e da competência: algumas considerações neopragmáticas

Entrevista: Peter Kevin Spink

129

Volume 5, 2002

Representações dos trabalhadores sobre os riscos em uma usina química

Privatização, reestruturação e mudanças nas condições de trabalho: o caso do setor de energia elétrica

Formas de produzir saúde no trabalho hospitalar: uma intervenção em psicologia

Emprego versus trabalho associado: despotismo e política na atividade humana de trabalho

Cooperar para competir ou competir para cooperar?

Entrevista: Herval Pina Ribeiro, Francisco Antonio de Castro Lacaz, Carlos Aparício Clemente e Pérsio Dutra falam sobre a história do DIESAT

Volume 6, 2003

Trabalho e utopia na modernidade

Transformações no trabalho, luta operária e desenraizamento: a reestruturação produtiva no cotidiano e nas representações de trabalhadores metalúrgicos de uma empresa da região do ABC

As intervenções em estresse organizacional: considerações teóricas, metodológicas e práticas

Satisfação e saúde no trabalho –aspectos conceituais e metodológicos

Trabalho e subjetividade: o olhar da Psicodinâmica do Trabalho

Cooperação e autonomia: desafios das cooperativas populares

Entrevista: Paul Singer

Volume 7, 2004

Clínica psicológica, trabalho e desemprego: considerações teóricas

Controle social do trabalho no setor sucroalcooleiro: reflexões sobre o comportamento das empresas, do Estado e dos movimentos sociais organizados

Uma proposta em Saúde do Trabalhador com portadores de LER/DORT: Grupos de Ação Solidária

Trabalho e gestão de si – para além dos “recursos humanos”

Condições de trabalho de auxiliares de enfermagem de um instituto de ortopedia e traumatologia de um hospital público de São Paulo

Um estudo sobre as representações sociais de mulheres executivas: estilo de comportamento e de gestão

Entrevista: Marcio Pochmann

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Volume 8, 2005

O desemprego do tempo: narrativas de trabalhadores desempregados em diferentes ambientes sociais

Valores individuais e organizacionais: estudo com dirigentes de organizações pública, privada e cooperativa em Goiás

Trabajo, no trabajo y neo/postfordismo

Trabalho e utopia na modernidade II: o trabalho na Cidade do Sol de Tommaso

Quem se beneficia dos programas de ginástica laboral?

Análise coletiva de acidentes de trabalho: dispositivo de intervenção e formação no trabalho

Trabalho e juventude: entrevista com Maria Carla Corrochano

131

Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

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