carl sagan - einstein

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  • 8/14/2019 Carl Sagan - Einstein

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    ESSE MUNDO QUE ACENA COMO UMA LIBERTAO

    Para me castigar pelo meu desprezo pela autoridade, o destinofez de mim mesmo uma autoridade.

    Einstein

    Albert Einstein nasceu em Ulm, na Alemanha, exactamente h um sculo.Era uma dessas raras pessoas que em qualquer poca reformulam o mundo atravsde um dom especial, um talento de compreender coisas antigas de novas formas, depropor profundos desafios sabedoria convencional. Durante muitas dcadas,Einstein foi admirado e venerado por todo o mundo, sendo o nico cientista quetoda a gente conhecia, atravs no s das suas descobertas cientficas, conhecidaspelo menos vagamente pelo pblico, mas tambm das posies frontais que tomavaperante os assuntos sociais e da sua benevolncia. Para pessoas com eu, filhos de

    pais emigrantes com inclinao cientfica, ou que cresceram durante a Depresso,esta venerao por Einstein demonstrou que existiram pessoas que eram de factocientistas e que a carreira cientfica no era totalmente impossvel. Ele desem-penhou, sem querer, a funo de servir de modelo cientfico. Sem ele, muitos dos jovens que se tornaram cientistas aps 1920 poderiam nunca ter ouvido falar daexistncia da empresa cientfica. O raciocnio que serviu de suporte teoria darelatividade restrita, de Einstein, poderia ter sido desenvolvido um sculo maiscedo, mas, embora tivesse havido algumas investigaes premonitrias feitas poroutros, a relatividade teve de esperar por Einstein.

    Fundamentalmente, a fsica da relatividade restrita muito simples e muitos

    dos resultados essenciais podem ser deduzidos com a lgebra do liceu ou com aobservao de um barco que rema rio acima e rio abaixo.

    Toda a vida de Einstein teve a riqueza do gnio e da ironia, foi a paixo pelosassuntos do seu tempo - a interveno na educao, a ligao entre a cincia e apoltica - e a demonstrao de que indivduos podem, de facto, modificar o mundo.

    Enquanto criana, Einstein deu poucos sinais do que viria a ser. Os meuspais, disse um dia, preocupavam-se porque comecei a falar relativamente tarde.Consultaram um mdico por causa disso. Eu devia ter na altura talvez uns 3 anos,no menos que isso. Foi um aluno desinteressado na escola primria, onde diziaque os professores lhe faziam lembrar sargentos instrutores. Durante a sua juven-tude, as directrizes mximas da educao europia eram o nacionalismo bombs-tico e a rigidez intelectual. Revoltou-se contra os mtodos de ensino mecanizados eenfadonhos - Preferia suportar qualquer espcie de castigo a ter de papaguear ascoisas aprendidas. Einstein continuaria sempre a detestar os autoritarismosrgidos na educao, na cincia e na poltica.

    Aos 5 anos sentiu-se atrado pelo mistrio do funcionamento de uma bssola.Mais tarde escreveu: Aos 12 anos experimentei uma segunda sensao maravi-lhosa, de uma natureza completamente diferente, ao ler um pequeno livro sobregeometria euclidiana simples. Havia concluses, como, por exemplo, a intersecodas trs alturas de um tringulo num ponto, que, embora no fossem evidentes, po-diam ser provadas com tal clareza que qualquer dvida parecia estar fora de ques-to. Esta lucidez e segurana provocaram em mim uma impresso indescritvel.

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    A escolaridade formal era, para Einstein, apenas uma interrupo fastidiosade tais contemplaes. Escreveu depois sobre a sua auto-educao: Dos 12 aos 16anos familiarizei-me com elementos de matemtica e com os princpios do clculodiferencial e integral. Ao faz-lo, tive a sorte de encontrar livros que no eramdemasiado insistentes no seu rigor lgico, mas que, em compensao, apresenta-

    vam as ideias principais de uma forma bastante clara. Tive a sorte de comear aconhecer os resultados e os mtodos do campo global das cincias naturais atravsde uma excelente exposio de divulgao que se restringia quase s aos aspectosqualitativos... um trabalho que li apaixonadamente. Os actuais divulgadores dacincia devem sentir-se reconfortados com estas palavras.

    Nenhum dos professores de Einstein parece ter reconhecido as suas potencia-lidades. No Gymnasium de Munique, a principal escola superior da cidade, um dosprofessores disse-lhe: Nunca hs-de ser algum, Einstein. Aos 15 anos foi acon-selhado a abandonar a escola: A sua presena prejudica o respeito que os alunostm por mim, disse-lhe um dos professores. Aceitou esta sugesto com satisfao e

    passou vrios meses passeando pelo Norte de Itlia, deixando o liceu na dcada de1890.

    Sempre preferiu o estilo informal na forma de estar e de se vestir. Se tivessevivido a sua juventude nos anos 60 ou 70, teria sido considerado um hippiepelasociedade convencional.

    O seu desagrado pela educao formal foi, no entanto, rapidamente ultrapas-sado pela curiosidade em relao fsica e pela atraco pelo universo natural.Inscreveu-se, por isso, e apesar de no ter ainda o diploma do ensino secundrio,no Instituto Federal de Tecnologia em Zurique, na Sua. Tendo reprovado no examede admisso ao Instituto, inscreveu-se num liceu suo para corrigir as suas falhas

    e foi admitido, passado um ano, no Instituto Federal.

    Continuava, no entanto, a ser um estudante medocre. Estudava apenas aqui-lo a que era obrigado, o que estava estipulado, no comparecia s aulas e dedicava-se ao que o interessava. Mais tarde escreveu: O grande problema disto que eu eraobrigado a meter tudo aquilo na cabea, quer quisesse quer no, para conseguirpassar no exame.

    S conseguiu licenciar-se porque um grande amigo, Marcel Grossmann, iaregularmente s aulas e partilhava os seus apontamentos com Einstein. Escreveu,muitos anos depois, a respeito da morte desse amigo: Lembro-me dos nossos tem-pos de estudantes. Ele era um aluno irrepreensvel e eu um incorrigvel sonhador.Ele, sempre de boas relaes com os professores, percebendo sempre tudo; eu, umpria insatisfeito e pouco querido por todos, completamente perdido no limiar davida.

    Conseguiu a sua graduao atravs da concentrao absoluta nos aponta-mentos de Grossmann, mas, recorda mais tarde, estudar para os exames finaisteve um efeito to terrvel em mim que durante um ano inteiro me foi completamen-te insuportvel a concentrao em qualquer problema cientfico [...]

    S por milagre estes mtodos pedaggicos no estrangularam ainda porcompleto a sagrada curiosidade para investigar, porque o que esta planta mais ne-

    cessita, para alm da estimulao inicial, de liberdade. Sem isso de certezadestruda. Acredito que qualquer animal saudavelmente voraz perca completamente

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    o apetite se for obrigado a comer continuamente, quer tenha fome, quer no. Estasobservaes de Einstein deveriam servir de pontos de reflexo aos responsveis pelaeducao cientfica avanada. s vezes penso em quantos potenciais Einsteins terosido sistematicamente desencorajados pela competitividade dos exames e pelaalimentao forada dos curricula.

    Depois de viver custa de diversos empregos e de ter sido recusado paraposies que desejava, Einstein aceitou uma proposta de emprego para verificar osrequerimentos no Departamento de Patentes Suas, em Berna. Esta oportunidadesurgiu-lhe por influncia do pai de Marcel Grossmann. Nesta altura rejeitou anacionalidade alem e tornou-se cidado suo. Em 1903, trs anos mais tarde,casou com a namorada dos tempos da faculdade. Sabe-se pouco sobre os pedidosde patentes que teriam sido aprovados ou rejeitados por Einstein. Seria interessantesaber at que ponto essas propostas estimularam os seus pensamentos na fsica.

    Um dos seus bigrafos, Banesh Hoffman, descreve como Einstein aprendeurapidamente a desempenhar as suas tarefas e isto permitiu-lhe furtar tempos livresno Departamento, tempos que dedicava sub-repticiamente aos seus clculos, queescondia culposamente numa gaveta sempre que ouvia o som de passos aproxi-mando-se. Foi nestas circunstncias que nasceu a clebre teoria da relatividade.Einstein recordaria mais tarde, nostalgicamente, o Departamento de Patentes comoo claustro secular onde amadureceram as minhas ideias mais belas.

    Disse vrias vezes a colegas seus que a profisso de faroleiro seria a idealpara um cientista - porque um trabalho relativamente fcil e, ao mesmo tempo,permite a contemplao necessria investigao cientfica. Leopold Infeld, um co-lega seu, disse um dia: Para Einstein, a solido da vida num farol seria decertoestimulante, libert-lo-ia de muitas das obrigaes que ele detesta. Seria para ele a

    vida ideal. No entanto, quase todos os cientistas pensam o contrrio. A maldio daminha vida foi ter passado muito tempo fora do ambiente cientfico, sem ningumcom quem falar sobre fsica.

    Einstein acreditava que era algo desonesto ganhar dinheiro a ensinar fsica.Defendia que era muito melhor para um fsico sustentar-se atravs de um outro tipode trabalho simples e honesto e trabalhar em fsica nos tempos livres. Alguns anosmais tarde, nos Estados Unidos, disse por graa que gostaria de ter sido canalizadore foi imediatamente tornado membro honorrio do sindicato dos canalizadores.

    Em 1905, Einstein publicou quatro artigos de investigao na principalrevista de fsica da altura, a Annalen der Physik. Estes artigos eram fruto do seutrabalho durante as horas vagas no Departamento de Patentes Suas. O primeiroartigo demonstrava que a luz tem propriedades de partculas e de ondas e explicavao estranho efeito fotelctrico, segundo o qual os electres so emitidos por slidosquando irradiados pela luz. O segundo explorava a natureza das molculas, expli-cando o movimento browniano estatstico de pequenas partculas em suspenso.O terceiro e o quarto introduziam a teoria da relatividade restrita e, pela primeiravez, foi escrita a famosa equao E= mc2, to amplamente citada e to raramentecompreendida.

    A equao expressa a possibilidade de a matria se converter em energia evice-versa. Amplia a lei da conservao da energia para a lei da conservao da

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    energia e da massa, afirmando que a energia e a massa no podem ser criadas nemdestrudas embora uma forma de energia ou de matria possa ser convertida nou-tra. Na equao, o Erepresenta a energia equivalente massa, m. A quantidade deenergia que poderia, em circunstncias ideais, ser extrada da massa mc2, onde c a velocidade da luz = 30 bilies de centmetros por segundo. (A velocidade da luz

    sempre escrita em letra minscula, e nunca em letra maiscula.) Se medirmos mem gramas e cem centmetros por segundo, Eser medido numa unidade de ener-gia chamada erg. A converso completa de 1g de massa em energia liberta1 (3 l010)2 = 9 x l020 ergs, o que seria mais ou menos equivalente exploso de1000t de TNT. Estas imensas fontes de energia esto contidas em quantidadesmnimas de matria. Imagine-se o que seria se soubssemos como extra-la. Asarmas e as centrais nucleares so hoje exemplos corriqueiros das nossas tentativaseticamente ambguas de extrair a energia que Einstein demonstrou estar presenteem toda a matria. Uma arma termonuclear, uma bomba de hidrognio, umainveno com um poder aterrorizador, mas nem mesmo assim representa mais de1% de mc2 da massa mde hidrognio.

    Os quatro artigos de Einstein publicados em 1905 poderiam ter sido o resul-tado impressionante de um trabalho de investigao feito a tempo inteiro durantetoda uma vida; terem sido o resultado do trabalho feito nas horas vagas de umempregado do Departamento de Patentes com 26 anos de idade algo completa-mente espantoso.

    Muitos historiadores da cincia chamaram ao ano de 1905 Annus Mirabilis, oano dos milagres. S tinha existido um ano ligeiramente semelhante a este nahistria da fsica -1666, ano em que Isaac Newton, de 24 anos, num isolamentorural forado por uma epidemia de peste bubnica, produziu uma explicao para a

    natureza espectral da luz do Sol, inventou o clculo diferencial e integral e criou ateoria da gravitao universal. Os artigos de 1905 e a teoria da relatividadegeneralizada, formulada pela primeira vez em 1915, foram as principais criaes davida cientfica de Einstein.

    Antes de Einstein defendia-se que existiam sistemas de referncia privilegia-dos e coisas tais como o espao absoluto e o tempo absoluto. O ponto de partida deEinstein foi que, qualquer que fossem os sistemas de referncia, todos os observa-dores (fosse qual fosse a sua localizao, velocidade ou acelerao) veriam as leisfundamentais da natureza da mesma forma. provvel que esta forma de encararos sistemas de referncia tenha sido influenciada pelas atitudes sociais e polticas

    de Einstein e pela sua resistncia ao chauvinismo estridente da Alemanha dosfinais do sculo XIX. A ideia de relatividade neste sentido tornou-se j um lugar-comum da antropologia e os cientistas sociais j h muito adoptaram a ideia dorelativismo cultural: h uma validade comparvel nas vrias formas de encarar oscontextos sociais e de expressar, nas diferentes sociedades, os conceitos ticos ereligiosos.

    A relatividade estrita no foi inicialmente bem aceite. Tentando iniciar, denovo, uma carreira acadmica, Einstein submeteu os seus artigos apreciao daUniversidade de Berna, apresentando-os como exemplo do seu trabalho. Consi-derava-os evidentemente como algo de importncia. Foram rejeitados por serem

    incompreensveis e ele manteve-se, assim, no Departamento de Patentes at 1909.O trabalho publicado no passou, no entanto, completamente despercebido e

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    alguns dos mais importantes fsicos da Europa comeavam lentamente a perceberque Einstein poderia ser um dos maiores cientistas de todos os tempos. Mas o seutrabalho sobre a relatividade continuava a ser altamente controverso.

    Numa carta de recomendao para que Einstein ingressasse na Universidadede Berlim, um importante cientista alemo sugeria que a relatividade era umadivagao hipottica, uma aberrao momentnea, mas que, apesar disso, Einsteinera, de facto, um pensador de alta craveira. (O Prmio Nobel que Einstein ganhou, ede que teve conhecimento durante uma visita ao Oriente em 1921, foi-lhe atribudopelo artigo sobre o efeito fotelctrico e outras contribuies para a fsica terica. Arelatividade era ainda tida como demasiado controversa para poder ser mencionadaexplicitamente.)

    As formas de Einstein encarar a religio e a poltica esto interligadas. Ospais, de origem judaica, no praticavam os rituais judaicos. Einstein acabou por ter,apesar disso, uma educao religiosa convencional, dada pela mquina tradicionalda educao, o estado e as escolas. Este tipo de educao teve um final repentinoaos 12 anos: A leitura de livros cientficos de divulgao levou-me rapidamente concluso de que muitas das histrias da Bblia no podiam ser verdadeiras. Aconseqncia disto foi um fanatismo positivo pela liberdade de pensamento, a quese juntou a impresso de que a juventude estava a ser intencionalmente enganadapelo estado com as suas mentiras; era uma sensao chocante. Desta experincianasceu a desconfiana em relao a qualquer tipo de autoridade, a atitude cpticaem relao s convices defendidas em qualquer ambiente social especfico ati-tude que no mais me abandonou, embora mais tarde, atravs do conhecimentoprofundo das ligaes causais, tenha perdido a sua rigidez inicial.

    Exactamente antes de rebentar a primeira guerra mundial, Einstein aceitou

    um lugar de professor no clebre Instituto Kaiser Wilhelm, em Berlim. O profundodesejo de estar no principal centro de fsica terica foi momentaneamente mais fortedo que a sua antipatia pelo militarismo alemo.

    O incio da guerra impediu a mulher e os dois filhos de Einstein de voltaremda Sua para a Alemanha. Esta separao forada acabaria em divrcio algunsanos depois. Apesar de estar de novo casado, Einstein doou o valor total do PrmioNobel que lhe foi atribudo em 1921, 30 000 dlares, sua primeira mulher e aosfilhos. O filho mais velho viria a ser uma figura importante da engenharia civil, pro-fessor na Universidade da Califrnia. O segundo filho, que idolatrava o pai, acusou-o anos mais tarde, e com grande angstia para Einstein, de ter sido ignorado

    durante a sua juventude.Einstein, que se dizia socialista, defendia que a primeira guerra mundial era,

    em grande parte, resultado das intrigas e da incompetncia das classes dominantes,concluso com que muitos dos historiadores contemporneos esto de acordo.Tornou-se ento um pacifista. Enquanto muitos outros cientistas alemes apoiavamentusiasticamente as proezas militares da sua nao, Einstein condenava publica-mente a guerra, chamando-lhe iluso epidmica. A cidadania sua impediu a suapriso, o que no aconteceu com o seu amigo e filsofo Bertrand Russell emInglaterra, na mesma altura e pelos mesmos motivos.

    Esta forma de Einstein encarar a guerra no aumentou a sua fama naAlemanha. A guerra teve, no entanto, uma influncia indirecta na divulgao do seunome.

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    Na teoria da relatividade generalizada, Einstein explorava a afirmao - umaideia ainda hoje admirvel pela sua simplicidade, beleza e poder - de que a atracogravitacional entre duas massas aparece porque essas massas distorcem ou defor-mam o espao euclidiano vizinho. A teoria quantitativa reproduzia, com a precisocom que tinha sido testada, a lei da gravitao universal, de Newton. Olhando mais

    de perto, no entanto, possvel ver que a relatividade generalizada prev diferenassignificativas em relao teoria de Newton. Isto est na tradio clssica dacincia, onde as novas teorias retm os resultados verificados das antigas, masavanam um conjunto de novas previses que permite uma distino decisiva entreas duas perspectivas.

    As trs provas da relatividade geral propostas por Einstein diziam respeito sanomalias do movimento da rbita do planeta Mercrio, ao desvio para o vermelhodas linhas espectrais da luz emitida por uma estrela macia e ao desvio da luz dasestrelas quando passa perto do Sol.

    Antes de ter sido assinado o Armistcio em 1919 foram mandadas expediesbritnicas ao Brasil e ilha do Prncipe, na frica ocidental, para verificar, duranteum eclipse total do Sol, se o desvio da luz das estrelas estava de acordo com asprevisoes da relatividade generalizada. Ficou, assim, demonstrado o ponto de vistade Einstein. O simbolismo de uma expedio britnica, confirmando o trabalho deum cientista alemo, quando os dois pases estavam ainda tecnicamente em guerra,foi bem acolhido pelo pblico.

    Mas, ao mesmo tempo, era lanada na Alemanha uma campanha pblicabem financiada contra Einstein. Em Berlim e noutros locais reuniam-se massascom sentimentos anti-semitas para denunciar a teoria da relatividade. Os colegas deEinstein mostravam-se chocados, mas a sua maioria, que era demasiado tmida em

    questes polticas, nada fez contra tais manifestaes.

    Com o aparecimento dos nazis, nos anos 20 e no princpio dos anos 30,Einstein viu-se, contra a sua natureza silenciosamente contemplativa, a discursarem pblico, vrias vezes e de forma frontal. Testemunhou nos tribunais alemes afavor dos estudantes em julgamento pelas suas posies polticas. Pediu amnistiaspara os presos polticos na Alemanha e no estrangeiro (incluindo Sacco, Vanzetti eos Scottsboro boys nos Estados Unidos). Quando Hitler se tornou chanceler, em1933, Einstein e a mulher fugiram da Alemanha.

    Os nazis queimaram as obras cientficas de Einstein em piras pblicas, junta-mente com outras obras de autores antifascistas. Foi lanado um outro ataque figura cientfica de Einstein, liderado pelo fsico Philipp Lenard, que recebera oPrmio Nobel. Lenard denunciava aquilo a que chamava as teorias matematica-mente adulteradas de Einstein e o esprito asitico na cincia. Continuava assim:O nosso Fhrer eliminou este mesmo esprito na poltica e na economia nacional,onde conhecido por marxismo. Mas ele mantm-se nas cincias naturais, nanfase que se dedica a Einstein. Temos de reconhecer que no digno de umalemo ser seguidor intelectual de um judeu. A verdadeira cincia natural deorigem puramente ariana... Heil Hitler !

    Juntaram-se ento muitos intelectuais nazis prevenindo as pessoas contra afsica judaica e bolchevista de Einstein. Ironicamente, na Unio Sovitica, mais oumenos simultaneamente, alguns importantes intelectuais estalinistas classificavama relatividade como a fsica burguesa. O facto de o contedo da teoria em causa

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    ser verdadeiro ou falso no era, obviamente, considerado em nenhum dessesataques.

    A identificao do prprio Einstein como judeu, apesar do seu profundodistanciamento das religies tradicionais, foi inteiramente determinada pelo apa-recimento do anti-semitismo na Alemanha dos anos 20. Foi tambm por este motivoque se tornou sionista. Segundo o seu bigrafo Philipp Frank, nem todos ossionistas o aceitavam bem, porque Einstein pedia que os Judeus fizessem umesforo para ajudar os rabes, tentando perceber o seu modo de vida. Esta devooao relativismo cultural tornava-se ainda mais marcante pelos complexos aspectosemocionais envolvidos. De qualquer forma, ele continuou a apoiar o sionismo,especialmente medida em que ia sendo conhecido o desespero dos Judeus naEuropa no fim da dcada de 30. (Em 1948, Einstein foi convidado para presidentede Israel, mas recusou delicadamente. interessante especular sobre as diferenasque poderiam existir, se que haveria algumas, na poltica do Prximo Oriente seAlbert Einstein tivesse aceite ser presidente de Israel.)

    Depois de ter abandonado a Alemanha, Einstein soube que os nazis tinhamposto a sua cabea a prmio por 20.000 marcos. (Eu no sabia que ela valia assimtanto !) Aceitou ento um emprego no Instituto de Estudos Avanados, recente-mente fundado em Princeton, Nova Jrsia, onde ficaria o resto da vida. Quando lheperguntaram que salrio pensava ser justo para si, respondeu 3.000 dlares.Percebendo o olhar de espanto do representante do Instituto, pensou que teriapedido de mais e props uma quantia mais baixa. O seu salrio foi fixado em16.000 dlares, o que era uma quantia considervel nos anos 30.

    O prestgio de Einstein era to grande que no de estranhar que outrosfsicos europeus emigrados nos Estados Unidos o tenham abordado, em 1939, para

    escrever uma carta ao presidente Franklin D. Roosevelt propondo o estudo e odesenvolvimento de uma bomba atmica, tentativa de ultrapassar os provveisesforos para conseguir armas nucleares por parte dos Alemes. Embora Einsteinno estivesse a trabalhar em fsica nuclear, nem tivesse tido, mais tarde, qualquerparticipao no desenvolvimento deste projecto, escreveu a carta que levou reali-zao do Projecto Manhattan. provvel, no entanto, que a bomba atmica tivessesido criada nos Estados Unidos independentemente desta participao de Einstein.Mesmo sem o E= mc2, a descoberta da radiactividade por Antoine Becquerel e ainvestigao dos ncleos atmicos por Ernest Rutherford - ambos trabalhandoindependentemente de Einstein teriam sempre conduzido ao desenvolvimento das

    armas nucleares. O horror de Einstein Alemanha nazi j h muito o tinha levado aabandonar, para seu grande desgosto, as ideias pacifistas. Quando, mais tarde, seveio a saber que os nazis no tinham conseguido adquirir armas nucleares, Einsteinexpressou o seu remorso: Se tivesse sabido que os Alemes no iam conseguir umabomba atmica, nada teria feito para que a consegussemos aqui.

    Em 1945, Einstein incitou os Estados Unidos ao corte de relaes com aEspanha de Franco, que apoiara os nazis na segunda guerra mundial. JohnRankin, um congressista conservador do Mississpi, atacou Einstein num discursofeito na Cmara dos Representantes, declarando que este agitador estrangeiro vaiacabar por fazer-nos mergulhar numa nova guerra s para propagar o comunismopelo mundo [...) J tempo de o povo americano se precaver contra Einstein.

    Einstein era um poderoso defensor das liberdades civis nos Estados Unidos,

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    mesmo durante o perodo mais negro do macartismo no final dos anos 40 e inciodos anos 50. Observando a mar crescente de histeria, experimentava a sensaoassustadora de ter assistido a algo de semelhante na Alemanha dos anos 30.Incentivava os rus a recusarem-se a depor perante a Comisso das ActividadesAntiamericanas da Cmara, dizendo que qualquer pessoa deveria estar preparada

    para a priso ou para a runa econmica [...] para sacrificar o seu bem-estar pessoalaos interesses [...) do seu pas. Defendia que as pessoas tm o dever de se recusara participar em qualquer iniciativa que viole os direitos constitucionais do indivduo.Isto diz respeito, em particular, a todos os inquritos relacionados com a vidaprivada e as filiaes polticas dos cidados [...).

    Esta tomada de posio foi fortemente criticada pela imprensa. O senadorJoseph MaCarthy afirmou, em 1953, que qualquer pessoa que tivesse este tipo deopinio era ela prpria um inimigo da Amrica. Por tudo isto, tornou-se modaassociar o reconhecimento do gnio cientfico de Einstein a um certo menosprezocondescendente pelo seu posicionamento poltico, considerado nave.

    Os tempos mudaram. Pergunto-me hoje se no ser mais razovel ver ascoisas de uma outra forma: num campo como a fsica, onde as ideias podem serquantificadas e comprovadas com grande preciso, as descobertas de Einstein soinquestionveis e espantosa a sua clareza em assuntos onde outros se perdiam naconfuso; valer talvez a pena pensar se as suas opinies no tero tambm algumavalidade no campo mais subjectivo da poltica.

    Durante os anos que passou em Princeton, a paixo de Einstein continuou aser, como sempre, a vida da mente. Trabalhou longa e duramente numa teoria docampo unificado, que combinaria a gravitao, a electricidade e o magnetismonuma base comum. Esta tentativa foi, no entanto, considerada fracassada. Ainda

    assistiu incorporao da teoria da relatividade generalizada como instrumentoprincipal da compreenso da estrutura e da evoluo do universo em larga escala.Ter-lhe-ia sido agradvel, decerto, testemunhar a aplicao vigorosa da relatividadegeneralizada astrofsica actual. Nunca percebeu a reverncia com que era tratadoe queixava-se mesmo de que os seus colegas e os estudantes graduados dePrinceton nunca o visitavam sem se fazer anunciar, com medo de o incomodar. Masescreveu: O meu interesse apaixonado pela justia e pela responsabilidade socialcontrastou sempre, curiosamente, com uma notvel falta de interesse pelaassociao prxima com homens e mulheres. No fui feito para o trabalho deequipa. Nunca pertenci sinceramente a nenhum pas nem a nenhum estado, ao

    meu crculo de amigos e mesmo minha prpria famlia. Estes laos sempre forampouco estreitos e o desejo de refgio em mim prprio tem aumentado com os anos.Este isolamento por vezes doloroso, mas no lamento no ter a compreenso nema simpatia das outras pessoas. Perco certamente alguma coisa com isso, mas soucompensado pela independncia em relao aos hbitos, s opinies e aos precon-ceitos dos outros e no me sinto tentado a construir a minha paz de esprito embases to mutveis como essas. Os seus principais divertimentos na vida eramtocar violino e velejar. Nos seus ltimos anos, Einstein parecia, e em certos aspectosera de facto, um hippie a envelhecer. Deixou crescer os cabelos j brancos e preferiausar uma camisola e um bluso a vestir fato e gravata, mesmo quando recebiapessoas importantes. Era totalmente despretensioso e explicava simplesmente:

    Falo a toda a gente da mesma forma, seja ao homem do lixo ou ao reitor daUniversidade. Estava quase sempre disposio do pblico e s vezes tambm

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    disposto a ajudar os alunos da Faculdade nos problemas de Geometria nem semprecom xito.

    Seguindo a tradio cientfica mais correcta, estava sempre aberto a ideiasnovas, mas exigia que fossem rigorosamente comprovadas. Era uma pessoa deesprito aberto, mas muito cptico em relao evidncia de catstrofe planetriana histria recente da Terra e s experincias de percepo extra-sensorial. A suaresistncia a este ltimo aspecto baseava-se nos argumentos que defendiam que ascapacidades telepticas no diminuem medida que aumenta a distncia entreemissor e receptor.

    Einstein pensava muito mais profundamente nas questes religiosas do que amaioria das pessoas, mas era sistematicamente mal interpretado. Quando visitoupela primeira vez a Amrica, o cardeal O'Connell, de Bston, alertou as pessoaspara o facto de a teoria da relatividade esconder a apario assustadora doatesmo. Este aviso alarmou um rabi de Nova Iorque, que perguntou a Einstein:Acredita em Deus?, ao que Einstein respondeu: Acredito no Deus de Spinoza, quese revelou na harmonia de todos os seres. No no Deus que se preocupa com odestino e as aces dos homens. Esta resposta corresponde a um posicionamentoreligioso mais subtil, hoje defendido por vrios telogos.

    As crenas religiosas de Einstein eram muito genunas. Nos anos 20 e 30expressou srias dvidas acerca do preceito bsico dos mecanismos qunticos: aonvel essencial da matria, as partculas comportam-se de um modo imprevisvel, talcomo foi expresso no princpio da incerteza, de Heisenberg. Deus no joga aosdados com o cosmo, dizia Einstein. Deus subtil, mas no malicioso. Einsteinutilizava tanto estes aforismas que, um dia, um fsico dinamarqus, Niels Bohr, lhedisse, irritado: Pare de dizer a Deus o que deve fazer! Mas havia muita gente na

    fsica que sentia que, se algum sabia alguma coisa acerca das intenes de Deus,esse algum era Einstein.

    Uma das bases da relatividade especial era o princpio de que nenhum objectomaterial se pode mover to depressa como a luz. Esta barreira da luz tornava-seincmoda para as pessoas que gostariam que no existisse limite para a capacidadede realizao humana. Mas o limite da luz permite-nos compreender uma parte domundo, que antes nos parecia misteriosa, duma forma simples e elegante. E,sempre que Einstein tirava alguma coisa, dava qualquer outra coisa em troca: hmuitas conseqncias da relatividade restrita que vo contra a intuio e contra anossa experincia de todos os dias, mas que se tornam claras e facilmente veri-

    ficveis quando viajamos suficientemente prximos da velocidade da luz - o que uma experincia rara ao nvel do senso comum. Um exemplo disto que, quandoviajamos a uma velocidade prxima da da luz, o tempo se atrasa: os relgios depulso, os relgios atmicos e o nosso envelhecimento biolgico. Uma nave espacialque se desloque a uma velocidade prxima da da luz pode deslocar-se entre doislugares quaisquer, independentemente da distncia entre eles, num perodo detempo muito curto-tempo medido a bordo da nave, e no no planeta de origem. Umdia poderemos ir ao centro da Galxia da Via Lctea e voltar demorando apenasumas dcadas, tempo medido a bordo da nave. Este mesmo perodo de tempo,medido na Terra, equivalente a perto de 60.000 anos e muito poucos dos que nosviram partir estariam vivos para comemorar o nosso regresso. O filme EncontrosImediatos do Terceiro Graud-nos uma vaga ideia desta possibilidade de dilao dotempo, embora integre tambm a sugesto gratuita de que Einstein seria provavel-

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    mente um extraterrestre. As suas descobertas foram, de facto, desconcertantes,mas ele era muito humano e a sua vida um exemplo de quanto um ser humanopode conseguir, se for suficientemente dotado e corajoso

    O ltimo acto pblico de Einstein foi juntar-se a Bertrand Russell e a muitosoutros cientistas e intelectuais, numa tentativa frustrada de parar o desenvolvimen-to das armas nucleares. Argumentava que as armas nucleares tinham modificadotudo menos a nossa forma de pensar. Num mundo dividido em estados hostis, elevia a energia nuclear como a maior ameaa sobrevivncia da espcie humana.Podemos escolher, dizia, entre tornar ilegais as armas nucleares e ter deenfrentar a aniquilao geral [...] O nacionalismo uma doena infantil. osarampo da espcie humana [. . .] Os nossos livros escolares glorificam a guerra eescondem os seus horrores. Infiltram o dio nas veias das crianas. Eu ensinaria apaz em vez da guerra. Eu tentaria infiltrar o amor, e no o dio.

    Com 66 anos, nove anos antes de morrer, em 1955, Einstein descrevia oobjectivo de toda a sua vida: Havia este mundo enorme, que existe independente-mente de ns, seres humanos que permanece diante de ns um enigma gigantesco eeterno acessvel, pelo menos em parte, nossa inspeco e ao nosso pensamento. Acontemplao deste mundo acenava como uma libertao [...] O caminho para esteparaso no era to confortvel nem atraente como o caminho para o Parasoreligioso; mas mostrou-se digno de confiana e nunca me arrependi de o terescolhido. .

    Carl Sagan, O Crebro de Broca, Cap. III

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