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exposição mam candido portinariTRANSCRIPT
Legenda Foto: Ullaboreptam reruntore dit .
Apresentação
O Museu de Arte Moderna de São Paulo,
reafirmando seu compromisso de manter viva
a memória de artistas representativos de vários
tempos, já realizou grandes mostras individu-
ais, como as de Marcel Duchamp, Alfredo
Volpi, Anselm Kiefer, Cildo Meireles e Ernes-
to Neto, entre muitos outros. Com a exposição
No ateliê de Portinari, o mam-sp homenageia
o mestre Candido Portinari, nome que se con-
funde com a própria história da arte brasileira.
Além de produções do artista em seus anos de
formação, a curadora Annateresa Fabris selecio-
nou também obras que o consagraram publica-
mente, como as encomendadas pelo ministro
Gustavo Capanema nos anos 1930. Com o obje-
tivo de apresentar os processos compositivos e os
recursos estilísticos de Portinari, esta exposição
é, antes de tudo, uma ocasião única de conhe-
cer o interesse do artista pela experimentação
das linguagens modernas.
Milú Villela, Presidente do Museu
de Arte Moderna de São Paulo
5
Sumário
1 - Apresentação 5 Milu Villela
2 - Apontamentos 15 Annnateresa Fabris
3 - Portinari por Portinari 20
4 - Nota Preliminar 21
5 - Sentido Social da Arte 40
6 - Pintura que se desliga da arte 50
7 - Obras 81
8 - Excertos 80
9 - Bibliografia Selecionada 88
10 - English Version 198
111 - Lista de obras 202
<Sumário em construção>
7
Apontamentos sobre o pintor no ateliê
I Da formação acadêmica ao antinaturalismo
Portinari ocupa um lugar à parte no meio artístico brasileiro. Dota-
do de uma esquisita personalidade, as suas próprias incertezas refletem os
rasgos de um temperamento rebelde, tentando descortinar horizontes mais
largos. [...] A sua maneira nervosa, subordinada muita vez a traços largos,
vigorosos, constituiu algo de novo para o meio onde cada pintor faz mais de
uma uniformidade lastimável1.
As palavras com as quais o Jornal do Brasil saúda a participação de
Cândido Portinari no iii Salão da Primavera (maio de 1925) apanham, de
maneira certeira, os aspectos principais de um dos retratos apresentados na
mostra, em que o jovem artista lança mão simultaneamente de aspectos tra-
dicionais do gênero e de algumas novidades. Se o Retrato de Mario Tullio
(1925) responde à representação tradicional do artista captado no ato de pin-
tar, há nele alguns traços novos: o uso de pinceladas fortes e, sobretudo, a
atenção dedicada à definição das feições do rosto, no qual é nítida a vontade
de Portinari de fornecer um flagrante psicológico do modelo.
A avaliação do Jornal do Brasil não é, contudo, partilhada pela crítica
carioca como um todo. A participação do artista na xxxi Exposição Geral
de Belas-Artes (agosto de 1924), havia gerado visões diferenciadas. Os sete
retratos, dentre os quais os de Manoel Santiago (1923), Roberto Rodrigues
(1924) e Antônio Grellet (1924), são considerados pelo Rio-Jornal “distan-
ciados da perfeição relativa”. Ao mesmo tempo em que elogia o “colorido
limpo e vibrante”, o jornal não deixa de apontar um “defeito” a ser corri-
gido: “o pouco caráter” que o artista “imprime aos seus modelos”2. Bem
outro é o teor da crítica de Galabert de Simas, que destaca os aspectos
originais de uma linguagem ainda em gestação:
Equilíbrio, clareza, intuição e elegância são os melhores elementos
com que Portinari já se faz admirar na originalidade dos seus trabalhos.
9
1 “No Salão da Primavera”, in: Jornal do brasil, Rio de Janeiro, 6 maio 1925.
2 “A pintura no ‘Salon’”, in: Rio-Jornal, 14 ago. 1924 .
9
Na medida e no senso dos seus processos corre uma centelha de talen-
to que lhe marca um lugar próprio entre as maiores esperanças da moderna
pintura brasileira3.
Ao participar da xxxiii Exposição Geral de Belas-Artes (agosto de
1926) com dois retratos, Portinari chama a atenção do professor Carlos
Flexa Ribeiro, que destaca as qualidades fundamentais de seu estilo: “ele-
gância do desenho” e “romantismo de outras eras”. Portinari afigura-se ao
crítico como “um jovem que ficou à margem da evolução pictural”, como
“um tradicionalista”, cuja fatura “recebeu o influxo de certas modalidades
da pintura moderna, onde também aquele sentimento predomina”. É por
isso que Ignacio Zuloaga, “mestre que sempre se conservou estranho às
correntes que revolucionam a arte desde o Impressionismo”, configura-se
como parâmetro para um pintor que demonstra ser capaz de assimilar
com facilidade “as expressões dominantes” de certos artistas4.
O Retrato de Olegário Mariano (1928), com o qual Portinari ganha
o Prêmio de Viagem da xxxv Exposição Geral de Belas-Artes (agosto de
1928), desperta avaliações dicotômicas. Enquanto Celso Kelly o considera
“um modelo de elegância e finura”, destacando “a expressão bem sentida
de espiritualidade” da cabeça, Manuel Bandeira, mesmo elogiando a téc-
nica “larga e incisiva” do retratista, não hesita em falar em “concessões ao
espírito dominante na Escola”, que teriam resultado no prêmio5.
Essas avaliações tão díspares de um estilo em formação têm sua razão
de ser, não podendo ser atribuídas simplesmente a idiossincrasias pessoais
deste ou daquele crítico. Portinari, que tinha no retrato o vetor principal
de sua produção, era um artista de orientação eclética, que ora dialogava
com os exemplos clássicos do gênero, ora fazia algumas incursões por
experiências mais modernas. O Retrato de Edith Aguiar (1924, f. 2) parece
ser fruto do diálogo com Jean-Auguste-Dominique Ingres não só pelo de-
senho incisivo, mas igualmente pela primazia conferida à forma em detri-
mento da captação da psicologia do modelo. Retrato de mulher (1927, f. 3)
aponta numa direção contrária. Lançando mão de uma pincelada larga e
10
3 Galabert de Simas, “O ‘Sa-lão’ de 1924” (artigo locali-zado no arquivo do Projeto Portinari, Rio de Janeiro – PR-05.01.01).
4 Flexa Ribeiro, “O Salão de 1926”, in: O Paiz, Rio de Ja-neiro, 14 ago. 1926.
5 Celso Kelly, “O Prêmio de viagem”, in: A Manhã, Rio de Janeiro, 22 ago. 1928; Ma-nuel Bandeira, “Um rapaz de 23 anos”, in: Andorinha, andorinha. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966, p. 45.
determinada, Portinari constrói um rosto expressivo, no qual o vermelho
dos lábios forma um contraste harmonioso com o preto dos cabelos e dos
olhos. Ao tom claro do rosto corresponde o ocre do casaco vestido pela
jovem, tratado como uma grande massa cromática.
O conjunto de desenhos e quadros dedicados a Olegário Mariano
entre 1925 e 1929 traz igualmente a marca desse duplo registro. Se, no
desenho datado de 1925 (f. 4), o poeta estava sob o signo de Ingres, em sua
representação quase de corpo inteiro (1926, f. 5), os modelos são outros:
os retratos de Théodore Duret e Antonin Proust, realizados por Édouard
Manet em 1868 e 1880, respectivamente, e os retratos mundanos de James
Whistler, John Singer Sargent e Giovanni Boldini6. Enquanto no desenho
o modelo ganha um aspecto intemporal, na tela de 1926 o centro de in-
teresse está numa visão altamente contemporânea, haja vista o destaque
dado ao traje do poeta e a seu penteado. Intemporais também e marcados
por uma concepção sintética do rosto do modelo, são as representações
dedicadas a Olegário Mariano em 1926, 1927 e 1929. O desenho de 1926
parece servir de molde aos óleos de 1927 e 1929, nos quais o poeta é cap-
tado com uma pincelada mais enxuta, embora não isenta de certa densi-
dade matérica, como no caso da obra que integra o acervo da Academia
Brasileira de Letras (f. 6).
Comparado com essas representações sintéticas e atentas a uma de-
finição psicológica do modelo, o quadro com o qual Portinari obtém o
Prêmio de viagem é, sem dúvida, uma solução de compromisso. O mode-
lo não só é idealizado, como há uma discrepância entre o tratamento do
rosto, baseado num jogo de planos e luzes, e a caracterização sumária e
chapada do fardão, em consonância com a rarefação da pincelada do fun-
do, dominado por tons amarelos e dourados. O caráter oficial do quadro
não reside apenas numa representação que enfatiza o traje cerimonial,
mas também na presença do brasão da família do retratado: a pernambu-
cana Carneiro da Cunha.
Se bem que dominante, o retrato não é o único gênero ao qual Porti-
nari se dedica no momento de sua formação na Escola Nacional de Belas-
11
6 Cf. Sergio Miceli, Imagens negociadas: retratos da eli-te brasileira (1920-40). São Paulo: Companhia das Le-tras, 1996, p. 28.
-Artes, na qual ingressa como aluno livre em 1920, tendo como professor
Lucílio de Albuquerque. Aprovado no concurso para a classe de pintura
(1921), estuda com Rodolfo Amoedo, Rodolfo Chambelland e João Batista
da Costa7. Estudos de figuras humanas, cenas mitológicas, lembranças da
cidade natal (Baile na roça, 1924; Casinha de Brodowski, 1927), paisagens,
alguns nus e uma representação de Santa Cecília (c. 1925) integram a pro-
dução do Portinari estudante, claramente à procura da definição de uma
linguagem própria. Se os códigos acadêmicos repontam em suas obras
pictóricas iniciais – Meu primeiro trabalho (c. 1920, f. 1) e Meu segundo tra-
balho (c. 1920) – e em muitos estudos do corpo humano, trabalhos como
Baile na roça e algumas paisagens datadas de 1927 dão mostras de que o
jovem pintor ensaiava outras possibilidades de linguagem. Os traços mais
soltos de Baile na roça, que evoca o impressionismo em termos cromáticos
e no aspecto casual conferido à cena, estão igualmente presentes em obras
como Praia de Ipanema, Pedra da Gávea e Marinha, nas quais Portinari
usa pinceladas largas e incisivas, denotando a busca de uma composição
sintética, em sintonia com alguns aspectos da pintura moderna.
A presença da paisagem na primeira produção portinariana não res-
ponde apenas a um roteiro clássico de formação. Ela vem carregada de
uma intencionalidade precisa, uma vez que o pintor estava interessado
na definição de uma arte nacional como consequência de uma relação
empática com o próprio entorno. Em várias entrevistas, o artista aborda a
problemática da paisagem, auspiciando o surgimento de “uma escola de
cores clara, vigorosa, vibrante, luminosa”8. A questão da paisagem tem um
desdobramento em alguns retratos (Retrato de Paulo Gagarin, 1924; Retra-
to do pintor Roberto Rodrigues, 1926; Retrato de Celso Kelly, 1926; Retrato
de Jorge de Castro, 1929), nos quais Portinari coloca em prática os ensina-
mentos de Zuloaga, o pintor mais apreciado por ele naquele momento. É
muito enfático a esse respeito numa entrevista concedida em 1926:
Tem a paisagem íntima relação com o retrato, de que é elemento es-
sencial. Zuloaga, o grande pintor espanhol, o maior pincel do mundo, re-
12
7 Para dados ulteriores sobre a formação de Porti-nari na Escola Nacional de Belas-Artes, ver: Annatere-sa Fabris, Cândido Portinari. São Paulo: Edusp, 1996, p. 22.
8 “A versatilidade de pre-ferências no momento ar-tístico”, in: O Jornal, Rio de Janeiro, 1926 (artigo locali-zado no arquivo do Projeto Portinari, Rio de Janeiro, PR-28).
produz, continuamente em suas telas de figura trechos regionais, onde faz
viver a alma da Espanha. Aqui, em que o sol é vibrante e as cores são de be-
líssima intensidade, o fator paisagem seria primoroso em qualquer retrato9.
È este artista que estava ensaiando configurar uma linguagem pró-
pria, descrente de “escolas” e de “individualidades uniformes”, defensor
do classicismo “como uma gramática, para os que querem bem escrever”,
como “o elemento de ordem, a norma constante para as revoluções es-
téticas”10, que embarca em junho de 1929 para a Europa. Leva em sua
bagagem uma determinação: não fazer da estadia na Europa o pretexto
para uma produção intensa e quase nada meditada como têm feito
alguns colegas... [...] O que vou fazer é observar, pesquisar, tirar da obra
dos grandes artistas – do passado, nos museus, ou do presente, nas galerias
– os elementos que melhor se prestem à afirmação de uma personalidade.
Procurarei encontrar o caminho definitivo da minha arte fazendo estudos
e nunca quadros grandes, que estes roubam ao artista um tempo precioso
sem um resultado duradouro e sem influência definitiva no futuro. Prefi-
ro regressar da Europa sem nenhuma bagagem volumosa, aparentando ao
julgamento alheio nada ter feito, mas com um cabedal profundo de obser-
vações e pesquisas11.
A temporada europeia demonstra que Portinari segue à risca o pro-
grama traçado no Brasil. Embora radicado em Paris, decide não frequen-
tar a Académie Julian, como era de praxe entre os estudantes da Escola
Nacional de Belas-Artes. Se as visitas ao Museu do Louvre lhe permitem
confirmar sua crença nos “antigos”, é, porém, na National Gallery de
Londres que ocorre o encontro determinante com Paolo Veronese. A
visão da obra do artista veneziano desperta nele uma nova ideia de pin-
tura. Decide ser “um pintor de todos os gêneros”, autor de “grandes telas,
com muitas figuras agrupadas em enormes composições, com estruturas
variadas”, e não apenas um retratista12. Viagens pela França, Inglaterra,
13
9 “O momento n a pintura”, in: A Manhã, Rio de Janeiro, 3 jul. 1926.
10 Idem.
11 “Para o Velho Mundo em busca da perfeição”, 28 maio 1929 (artigo localizado no arquivo do Projeto Porti-nari, Rio de Janeiro, PR-118).
12 “Carta de Cândido Por-tinari a Olegário Mariano” (Paris, 12 set. 1929); Antonio Bento. Portinari. Rio de Ja-neiro: Léo Christiano Edito-rial, 1980, p. 58.
Espanha e Itália são igualmente determinantes para o jovem pintor, que
não só confirma o primeiro interesse por Sandro Botticelli e Diego Ve-
lázquez, como descobre os exemplos de Giotto, Masaccio, Piero della
Francesca, Luca Signorelli, Fra’ Angelico, Andrea del Castagno, Miche-
langelo, Leonardo, El Greco e Francisco de Goya. Esse contato, que lhe
permitirá constituir uma visualidade baseada, em grande parte, nos va-
lores táteis do Renascimento italiano, leva-o a distanciar-se de Zuloaga.
Outros artistas modernos despertam seu interesse: Amedeo Modigliani,
Henri Matisse, Pablo Picasso e, sobretudo, Felice Carena, que “produ-
ziu a maior emoção de toda a viagem”13.
Embora participe com um retrato e uma natureza-morta da Expo-
sition d’Art Brésilien (Paris, 1930), sua produção pictórica é escassa. Re-
gressa ao Brasil com três naturezas-mortas, dois nus, um autorretrato, um
retrato e três desenhos, dentre os quais Palaninho (1930, f. 8). A figura de
um habitante de Brodósqui, desenhada de maneira sintética e nervosa,
na qual Plínio Salgado detecta o “caboclo ítalo-bugre, ariano-etíope, ca-
fuzo com sangue da Lombardia, mameluco de todas as raças das zonas
rurais de S. Paulo” e, até mesmo, um “retrato” do próprio Portinari, “um
caboclo de Brodósqui, da zona cafeeira de Ribeirão Preto”14, está asso-
ciada a um momento crítico da temporada parisiense. Palaninho é um
emblema não só da cidade natal, descoberta à distância, mas igualmente
do Brasil, despertando no artista a determinação de “fazer a minha ter-
ra”, “a minha gente”15.
Essa determinação será reafirmada na entrevista concedida a Plínio
Salgado em 30 de agosto de 1930. Nela, o pintor estabelece um verdadeiro
programa de ação, articulado em volta de alguns eixos: concepção da arte
como um agente de transformação social e de criação de uma consciência
nacional, simbolizada pela figura de Almeida Jr.; tomada de posição con-
tra a arte estrangeira e o espírito excessivamente crítico da nova geração
de artistas e intelectuais brasileiros; defesa do tema e repúdio da “pintura
ignorante”, preocupada tão somente com qualidades estritamente plásti-
cas. A ideia de uma arte nacional alicerça-se não em grandes sínteses, mas
14
13 Aga, “Portinari voltou da Europa”, in: Mundo Illustra-do, 1931 (artigo localizado no arquivo do Projeto Porti-nari, Rio de Janeiro, PR-126).
14 Plínio Salgado, “Um pin-tor brasileiro em Paris”, in: O País, Rio de Janeiro, 5 out. 1930. A entrevista foi tam-bém publicada no Correio Paulistano (8 out. 1930).
15 A carta em que Portinari descreve Palaninho e Bro-dósqui, endereçada a Rosa-lita Candido Mendes em 12 de julho de 1930, encontra--se reproduzida em: Can-dido Portinari, Portinari, o menino de Brodósqui. Rio de Janeiro: Livroarte Edito-ra, 1979.
na representação dos tipos regionais, que seriam “humanos e universais”,
por terem “alma brasileira”.
Embora Paul Cézanne não seja citado entre os artistas modernos que
despertam o interesse de Portinari, as três naturezas-mortas pintadas em Pa-
ris, trazem a marca de um intenso diálogo com ele. Assim como no pintor
francês16, as naturezas-mortas de 1930 são, ao mesmo tempo, construtivas e
sintéticas. Caracterizadas quase sempre por uma iluminação difusa, que se
soma à luz que emana da matéria pictórica, tais obras podem ser conside-
radas exemplos evidentes do encaminhamento de Portinari para a busca de
uma composição baseada na essencialidade e no rigor geométrico.
Nu feminino (1929) e Nu (1930, f. 7), por sua vez, parecem atestar
seu diálogo com Carena, que, naquele momento, se distinguia por uma
composição sintética e volumétrica, inspirada, em parte, no classicismo.
A função que este atribuía à luz – estruturar a figura e plasmar a matéria
cromática para conseguir um efeito de tranquilidade e sobriedade – está
presente nos dois exercícios de Portinari, demonstrando seu interesse
por um realismo reinterpretado e, mais uma vez, fecundado pela lição
de Cézanne.
De volta ao Brasil (janeiro de 1931), Portinari trava, inicialmente, um
novo diálogo com a pintura moderna, buscando inspiração para alguns re-
tratos no léxico refinado e elegante de Modigliani. Retrato de Maria (1932,
f. 11) é um exemplo paradigmático desse diálogo. Composição requintada
e um tanto incorpórea, apesar da massa negra formada pelo vestido, o
retrato da esposa distingue-se pelo alongamento elegante da figura e pela
caracterização do rosto e da psicologia do modelo, captado numa atitude
introspectiva. A pose tranquila e distante, que não deixa de evocar alguns
retratos maneiristas, é realçada pela sobriedade cromática do conjunto.
Modelo constante, Maria Portinari torna-se o pretexto para uma sé-
rie de exercícios em que o marido testa diferentes soluções plásticas e
estilísticas. Em dois retratos executados em 1931, persistem o motivo do
pescoço alongado à la Modigliani e a vontade de penetrar na psicologia
do modelo, mas há também diferenças significativas de um para o outro.
15
16 Renato Barilli, L’arte con-temporanea: da Cézanne alle ultime tendenze. Mila-no: Feltrinelli, 1985, pp. 32-33.
Enquanto no primeiro, Portinari recorre a uma paleta suave (f. 9), no
segundo, opta por tons esverdeados, que conferem um aspecto ambíguo
à fisionomia de Maria, marcada pelo eco de algumas representações do
Picasso pré-cubista (f. 10).
Numa composição realizada por volta de 1932, o retrato da esposa
resume-se a um rosto de oval puro, dotado de grande intensidade expressi-
va (f. 12), ao passo que numa obra executada dois anos mais tarde, que a re-
presenta no ato de costurar, com a cabeça levemente inclinada, as feições
são apenas esboçadas e um tanto borradas17 (f. 13). Uma Maria enigmática,
que evoca uma estátua antiga e a atmosfera dos quadros metafísicos de
Giorgio de Chirico, é o centro de um quadro pintado por volta de 1934
(f. 14). Assentado num pescoço sólido, caracterizado por olhos vazios e
nariz proeminente, o rosto de Maria, captado de perfil, tem como fundo
uma paisagem marítima, que acentua, por contraste, o enigma de que ele
é portador em sua fixidez pétrea. As possibilidades clássicas do retrato são
exploradas pelo pintor numa obra datada provavelmente de 1941, em que
a esposa é representada numa pose levemente lateral. Graças ao uso de
um fundo escuro, Portinari confere uma luminosidade sutil à fisionomia
de Maria, na qual o vermelho da boca cria um contraste com o negror dos
olhos e do cabelo, sugerindo, ao mesmo tempo, uma passagem delicada
para o tom rosa da blusa (f. 15).
Se bem que os retratos constituam um vetor fundamental da pro-
dução portinariana, abarcando um corpus de 680 obras, outro aspecto
importante de seu trabalho demonstra que o pintor se manteve fiel à de-
terminação tomada em Paris de “pintar aquela gente com aquela roupa
e com aquela cor”, como se lê na carta endereçada a Rosalita Candido
Mendes em 12 de julho de 1930, em que era evocada a figura de Pa-
laninho. Num artigo publicado por ocasião da exposição realizada no
Palace Hotel (Rio de Janeiro, agosto de 1932), Manuel Bandeira realça,
além dos retratos, a presença de algumas paisagens. Estabelecendo dois
vetores no tratamento dado ao gênero – d’après nature e paisagens tiradas
“do subconsciente, reminiscências de subúrbios (vistos onde? quando?),
16
17 Existe uma outra versão do retrato, em que as fei-ções do rosto são mais bem definidas.
de Brodósqui sua terra natal, da Itália que lhe veio no sangue” –, o po-
eta detecta, no plano de fundo de Ronda infantil (1932, f. 16), “um filão
riquíssimo e apenas tocado na obra de Portinari”, não temendo afirmar
que dele poderia derivar uma obra-prima intitulada Brodósqui18. No ano
seguinte, ao resenhar uma nova exposição apresentada novamente no
Palace Hotel, no mês de julho, Bandeira volta a abordar a problemática
do local em que o artista havia nascido:
E o homem de Brodósqui não se esqueceu de Brodósqui. Há nesta
galeria admirável do Palace Hotel um grande quadro a óleo e várias aqua-
relas inspirados em aspectos e cenas da pequena cidade paulista. São das
melhores cousas que já compôs Portinari e dir-se-ia que o pintor esperava a
maturação de todos os seus recursos para encetar a transposição plástica de
suas reminiscências de infância19.
Pintada na pequena cidade natal, Ronda infantil representa o luga-
rejo com traços sintéticos e quase rudimentares. A cor marrom escuro
do chão, que é o elemento determinante da composição, transforma-se
em terra roxa em Paisagem de Brodowski (1940, f. 19), quadro que parece
responder de perto ao anseio de Bandeira. Espécie de súmula do imagi-
nário de Portinari, a tela, estruturada em planos sucessivos, é uma síntese
não apenas de Brodósqui, mas do Brasil. Na paisagem, em que se desta-
cam algumas casas e uma singela igrejinha, veem-se mulheres de trouxa
na cabeça ou carregando um feixe de lenha, um homem andando, uma
cena de casamento, um cavalo a galope, um par de bois descansando,
uma ovelha, algumas queixadas de animais pelo chão, um bauzinho e
uma ovelha. Dotado de um sentido circular, determinado pelos diversos
posicionamentos das figuras no espaço, o quadro baseia-se numa estrutura
de ações simultâneas, que conferem um aspecto dinâmico ao conjunto.
O motivo dos jogos infantis, por sua vez, é uma presença recorrente
na produção do artista. Em suas memórias, Portinari evoca a gangorra
instalada na praça da cidadezinha pelo Padre Josué e faz um elenco das
17
18 Manuel Bandeira, “A ex-posição de Portinari”, in: O Globo, Rio de Janeiro, 1932 (artigo localizado no arqui-vo do Projeto Portinari, Rio de Janeiro – PR-209).
19 Manuel Bandeira, “Flo-rentino quase caipira”, in: Andorinha, andorinha, op. cit., p. 46.
principais brincadeiras: gude, pião, arco, avião, papagaio, diabolô, bilbo-
quê, ioiô, botão, balão, malha, futebol, pique, barra-manteiga, pulando
carniça etc.20. Dois exemplos significativos, que se enlaçam com o uni-
verso de Ronda infantil, podem ser localizados em Crianças brincando
(1940, f. 17), em que se impõe a diagonal da gangorra numa composição
estranhamente estática, e Praça de Brodowski (1939, f. 18). Nesse quadro
concebido em tons terra, o branco da igrejinha cria um foco de luz que
se irradia por todo o campo visual; crianças de costas estão entretidas num
folguedo indefinido, exibindo um conjunto de poses dotadas de uma ten-
são suspensa e inquietante.
A cidade natal não é evocada apenas a partir da paisagem e das brin-
cadeiras infantis. Os tipos humanos são também lembrados numa gestu-
alidade que pode remeter à sua profissão, como é o caso de Sapateiro de
Brodowski (1941, f. 20-21). Figura monumental e escultórica, caracterizada
por uma deformação acentuada do corpo, no qual há um contraste evi-
dente entre a fragilidade do longo pescoço e o vigor dos braços e das per-
nas, o sapateiro está colocado num assoalho quadriculado, cuja estrutura
geométrica é atenuada pela aplicação irregular da tinta azul.
O poderoso modelado antinaturalista, inspirado no Picasso “neoclás-
sico”, estabelece um elo entre a figura do Sapateiro de Brodowski e as
obras realizadas na década anterior, quando Portinari “se entrega a novos
problemas estéticos e técnicos”, depois de ter satisfeito “as suas exigências
de ordem sentimental”, como lembra Mário Pedrosa21. O crítico elabora
um apanhado geral bem articulado das preocupações do artista nesse mo-
mento: análise do material; interesse pelos problemas da construção da
tela; abandono da pastosidade das tintas da série dedicada a Brodósqui em
prol de “uma enorme tensão analítica, procurando traduzir a realidade
plástica por uma abstração geométrica de planos e dimensões”22.
Uma obra emblemática desse momento, Estivador (c. 1934, f. 24),
condensa as principais características da pesquisa realizada por Portinari
depois da volta da Europa. A composição estrutura-se a partir de um jogo
plástico de caráter construtivo, ritmado pela separação entre as diversas
18
20 Candido Portinari, “Re-talhos de minha vida de infância”, in: Portinari, o menino de Brodósqui, op. cit., pp. 42-44.
21 Mário Pedrosa, “Portinari – De Brodósqui aos murais de Washington”, in: Dos murais de Portinari aos es-paços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 10.
22 Idem, pp. 10-11.
figuras e pela presença de formas geométricas simples. O gigantismo do
estivador não entra em contraste com a concepção geométrica do con-
junto e ainda não exibe aquela deformação mais acentuada (f. 22-23), que
transforma as figuras em verdadeiras estátuas. O aspecto escultórico é o
traço distintivo de obras como Lavrador de café (1934) e Mestiço (1934, f.
27), que se destacam por um modelado antinaturalista, pela deformação
expressiva e pelo equilíbrio conseguido entre o gigantismo dos dois traba-
lhadores, que parecem transbordar dos limites da tela, e a paisagem que
se descortina atrás delas.
Os estudos feitos para os dois quadros dão a ver o interesse do pintor
pela definição de corpos densos e sintéticos, nos quais o que importa é a
deformação dos pés e das mãos (Preto da enxada, 1934, f. 25), e pela cap-
tação precisa da fisionomia do modelo, próxima dos postulados da nova
objetividade (Cabeça de mulato, 1934, f. 26). Nos desenhos, Portinari não
se detém no tratamento do fundo, mas é este que atrairá a atenção de
Pedrosa por ocasião da exposição realizada pelo pintor em São Paulo, em
dezembro de 1934. Ao analisar as duas telas que se originaram dos dese-
nhos, o crítico dá destaque ao tratamento do fundo, por perceber nele
a presença da “natureza, na sua expressão concreta e social, a terra e o
trabalho”. No caso de Mestiço, Pedrosa chega a afirmar que Portinari con-
seguiu fugir da dimensão do retrato ao ser “solicitado [...] não pela figura
de um mestiço, mas pela realidade social e material da vida do mestiço,
representada pelos planos de fundo”23.
O aspecto concreto dessas figuras e das paisagens nas quais estão in-
seridas, que se desdobra em inúmeras composições como Café (1935) e
Colona (1935), por vezes, é deixado de lado em prol de uma pesquisa mais
formalizante. O interesse pela captação de valores construtivos e tonais
pode ser exemplificado com Colonos carregando café (c. 1935, f. 28) e Ma-
rias (1936, f. 31). No primeiro, que Pedrosa aproxima de certos murais de
Diego Rivera24, a deformação é atenuada, dando lugar a uma estruturação
mais geométrica, ritmada por intervalos entre as figuras e pelo uso de con-
trastes tonais acentuados. No segundo, caracterizado por uma suspensão
19
23 Mário Pedrosa, “Im-pressões de Portinari”, in: Diário da Noite, São Paulo, 7 dez. 1934. Para uma aná-lise detalhada do quadro e de suas relações com o muralismo, ver: Annateresa Fabris, “Mestiço, de Candido Portinari”, in: Taisa Palha-res, org. Arte brasileira na Pinacoteca do Estado de São Paulo: do século XIX aos anos 1940. São Paulo: Cosac Naify/Imprensa Oficial/Pi-nacoteca, 2009.
24 Mário Pedrosa, “Portinari – De Brodósqui aos murais de Washington”, op. cit., p. 16.
temporal que não deixa de lembrar certas atmosferas da pintura metafí-
sica, prevalecem os valores tonais. As pequenas silhuetas das mulheres
sumariamente esboçadas e representadas numa pose estática criam uma
nota luminosa com sua brancura numa composição em que prevalecem
tons terra.
A busca da concretude ou de uma definição mais fluida das figuras
alterna-se na produção de Portinari. Geométrica é a estrutura de Festa
de São João (1936, f. 30) e Retirantes (1936, f. 32), dominadas por figuras
poderosas e concretas em termos físicos. Festa de São João é estruturada
em termos claramente geométricos. Os triângulos formados pelo grupo
de três mulheres no primeiro plano, pelas figuras de lata na cabeça e pelo
homem carregando lenha harmonizam-se com as linhas verticais presen-
tes nos troncos das palmeiras, nos mastros e em alguns grupos. As linhas
curvas descritas pela paisagem criam um sutil dinamismo numa compo-
sição essencialmente estática, caracterizada pelo congelamento das figu-
ras, apesar das atividades desempenhadas por muitas delas. O classicismo
antinaturalista que permeia o quadro é o traço primordial de Retirantes,
concebido como uma estrutura piramidal. As figuras são modeladas com
a cor. Portinari estabelece um jogo de passagens da luz para a sombra. Faz
incidir a luz nas vestes brancas das figuras femininas e, a partir delas, cria
diferentes gradações de marrom.
Domingo no morro (1935, f. 29) exibe, ao contrário, uma estrutura
mais livre, evocadora da série marrom ou brodosquiana. Da mesma forma
que nas telas que têm como tema a cidade natal do pintor, Domingo no
morro apresenta uma superfície marrom, na qual se destacam os focos de
luz clara constituídos pelas diversas figuras que não parecem ser pensadas
em termos estritamente realistas. Um veio antirrealista está também pre-
sente em algumas obras datadas de 1940 – Mulheres e crianças em duas
versões (f. 33-34), Mulher com crianças (f. 35) e As moças de Arcozelo (f.
36) –, que parecem responder àquela “lei de compensação” evocada por
Pedrosa. Empenhado na realização dos “Ciclos econômicos” (1936-1944)
para o Ministério da Educação e Saúde, Portinari busca no cavalete “uma
20
cadência mais livre na pintura a óleo”25. Embora a estrutura geométrica
não faça falta a esse conjunto de telas, o que se impõe de imediato é a
pesquisa cromática empreendida pelo artista, que o leva a lançar mão de
uma paleta delicada e fluida. Os quadros de 1940, ao contrário da visão
épica que estava sendo construída nos muros do Ministério da Educação
e Saúde, apresentam figuras paradas, em atitude de expectativa, sem qual-
quer relação com o tempo e com a história.
Um novo encontro com Picasso marcará uma mudança de rota na
poética portinariana. O impacto provocado pela visão de Guernica (1937)
no começo de 1942 manifesta-se de maneira violenta na “Série bíblica”
(1942-1943), na qual Portinari rompe, em grande parte, com o que carac-
terizava sua obra até então. A deformação controlada da década anterior
transforma-se em desarticulação, evidenciando a busca de um novo ca-
minho expressionista, não alheio ao uso de elementos cubistas. Presen-
ça assumida sem rodeios, Picasso é considerado o elemento deflagrador
de O último baluarte (1942). Respondendo a uma necessidade interior, a
primeira obra da “Série bíblica” abria duas possibilidades para o pintor
brasileiro: levá-lo a “afundar-se” ou a dar um “salto”. Portinari acreditava
ter dado esse salto com a série “Retirantes”26, executada entre 1944 e 1945.
A visão lírica da infância, que estivera na base dos quadros de Bro-
dósqui, transforma-se numa percepção trágica da vida numa obra como
Criança morta (1944, f. 38). O pequeno cadáver, que mais parece um es-
queleto no desenho Menino morto (1944, f. 37), é transposto para a tela
com uma tinta esbranquiçada. Nos braços de uma mulher devastada pela
dor, e ladeado por dois grupos de figuras, que choram lágrimas de pedra
ou mostram um olhar atônito, o pequeno cadáver remete à iconografia
medieval da máscara da Morte. Antes do que uma figura real, pode ser
considerado como o símbolo de um sofrimento desmedido, impressão re-
forçada pelo corpo ressequido, pela cabeça que lembra uma caveira e pela
posição dos braços, que quase formam uma cruz.
21
25 Idem, p. 16.
26 Mário Dionísio, “Portina-ri pintor de camponeses”, in: Vértice, Coimbra, v. II, 1946, pp. 220-221.
II Os projetos monumentais
A hipótese da existência de um parentesco entre Colonos carregando
café e certas obras de Rivera, aventada por Pedrosa, não deve levar a crer
que este coloque o empreendimento muralista de Portinari sob a égide do
exemplo mexicano. Ao contrário, o crítico afasta decididamente a ideia de
que o trabalho monumental do pintor de Brodósqui tenha sido “um eco
retardado do formidável movimento mexicano”. E acrescenta:
Pela própria evolução interior de sua arte se pode ver que foi por assim
dizer organicamente, à medida que os problemas de técnica e de estética
iam amadurecendo nele, que Portinari chegou diante do problema do mu-
ral. Foi como problema estético interior que ele pela primeira vez o abordou.
Depois das figuras monumentais isoladas e do segundo Café, a experiência
com o afresco se impunha naturalmente, como o próximo passo. A possante
figura em têmpera – a Colona – feita em 1935 com o Café, de que é um
detalhe, mostra que o que Portinari queria era o plástico monumental27.
Ao fazer tais afirmações na década de 1940, Pedrosa está, na realidade,
retomando algumas questões suscitadas pela primeira exposição paulista
de Portinari (dezembro de 1934). No artigo “Impressões de Portinari”, o
crítico já havia assinalado que o artista tinha chegado “aos extremos limites
da unidade estrutural do quadro, da estética particular do quadro de cava-
lete”. Acreditando que Portinari se encontrava diante de uma “contradição
dialética”, gerada pelas “exigências da matéria social em sua dinâmica com-
plexidade, e os limites naturais da arte pictórica especificamente burguesa”,
Pedrosa localizava em Lavrador de café o “vértice de sua ascensão cria-
dora”. Nesse quadro, o artista havia utilizado todos os recursos da técnica
da pintura a óleo, mas a havia sobrepujado por apelar para outros meios,
dentre os quais a escultura e o mural, chegando “às portas do afresco”.
Diferenciando as questões suscitadas pelo pintor dos “problemas de
Anita e Tarsila”, Oswald de Andrade chega à mesma conclusão de Pedro-
22
27 Mário Pedrosa, “Portinari – De Brodósqui aos murais de Washington”, op. cit., p. 12.
sa, quando afirma que Portinari havia iniciado “a superação do quadro de
cavalete” em algumas obras paradigmáticas:
Os fortes detalhes de seu sonho plástico pulam nos músculos do “Mes-
tiço”, nos dedos e nos lábios, quebram a moldura na posição hercúlea do
“Preto da enxada”. Reclamam os muros que Siqueiros e seu grupo já conse-
guiram arrancar à burguesia no México e na Califórnia e que Rivera viu a
reação destruir em Nova York. Ambos são uma esplêndida matéria-prima da
luta de classes. E ambos – trabalhadores e negros – querem sair da estreite-
za educada do quadro para falar, expor enfim seu ensinamento mural, que
todos vejam e sintam a exploração do homem pelo homem que, no fundo
alinhou para outros os cafezais do seu suor. Portinari coloca-se visivelmente
na linha dos artistas revolucionários de nossa época28.
O encaminhamento de Portinari para o muralismo havia também
sido notado por Mário de Andrade, que situa sua obra no âmbito do “dra-
ma do artista contemporâneo, ao mesmo tempo artista e homem, e que
não quer abandonar nem os direitos desinteressados da arte pura, nem as
intenções interessadas do homem social”. A obra mais significativa desse
momento de virada seria Mestiço, em que se encontravam as duas dire-
trizes fundamentais evocadas pelo escritor: o interesse pelo social e a pes-
quisa puramente plástica, em que “o óleo, sem desmentir a sua natureza,
consegue no entanto um peso e uma eternidade de bronze”29.
Diante dessas manifestações, de pronunciamentos do próprio artista,
que advoga em prol da instituição da prática muralista no Brasil30 e da
consagração internacional de Café em 1935, não admira que o ministro
Gustavo Capanema o convide a pintar os afrescos dos “Ciclos econômi-
cos” no edifício do Ministério da Educação e Saúde (Rio de Janeiro). A es-
colha do tema responde plenamente às tarefas que Capanema atribuía ao
ministério, fundado em dezembro de 1930 – “preparar, compor e afeiçoar
o homem do Brasil” – e à cultura, à qual cabia articular “a nítida e impres-
siva presença do homem” diante da natureza e das “forças circundantes”31.
23
28 Oswald de Andrade, “O pintor Portinari”, in: Diá-rio de S. Paulo, 27 dez. 1934. Preto da enxada é denomi-nado atualmente Lavrador de café.
29 Mário de Andrade, “Por-tinari”, in: Diário de S. Paulo, 15 dez. 1934.
30 Cf. “Exposição de pintu-ra Candido Portinari”, in: Diário de S. Paulo, 21 nov. 1934; “Portinari, paulista de Brodowski, vae mostrar a S. Paulo os seus últimos tra-balhos”, in: Folha da Noite, São Paulo, 20 nov. 1934.
Rodolfo Garcia elabora um roteiro de leituras para Portinari, que in-
cluía Cultura e opulência do Brasil (1711), de André João Antonil; Travels
in Brazil (1816), de Henry Koster; História geral do Brasil antes de sua
separação e independência de Portugal (1854-1857), de Francisco Adolfo
de Varnhagen; e Capítulos de história colonial, 1500-1800 (1907), de João
Capistrano de Abreu. Depois de ter tentado dar uma resposta plástica ao
roteiro de leituras e ao conceito de “ciclos econômicos”, elaborado por
Afonso Arinos de Mello Franco, o pintor propõe a Capanema sua “pintura
de camponês”32, transformando uma concepção historicista numa visão
do Brasil alicerçada na figura do trabalhador, próxima, portanto, de sua
poética pessoal.
Sem deixar de levar em conta o tema, mas adequando-o a diretrizes
próprias, Portinari realiza, entre 1936 e 1938, centenas de estudos em dife-
rentes técnicas (têmpera, carvão, crayon, guache, aquarela, grafite, sépia,
sanguínea, nanquim, dentre outras), além de fazer experiências em esca-
las variadas, indo de representações diminutas a desenhos em tamanho
natural para transporte na parede (Trabalhador, 1938, f. 42; Garimpeiro,
1938, f. 45; Algodão, 1938, f. 48; Capataz – Erva-mate, 1938, f. 49; Capataz
em cafezal, 1938, f. 51; Homem sentado, 1938, f. 52; Homem agachado, 1938,
f. 54). Elabora também maquetes, dentre as quais Garimpeiros (1937, f.
44), indicando em algumas delas a escala de cores, como em Fumo (1938,
f. 46) e Ferro (1938, f. 55).
Para conferir credibilidade às diversas representações do trabalho,
Portinari viaja para Minas Gerais: em Mariana e Ouro Preto, observa
os garimpeiros; em Sabará, documenta as atividades nos altos-fornos da
Companhia Belgo-Mineira33. Dessas observações acuradas resultam de-
senhos de caráter realista, que recebem uma severa avaliação crítica de
Oswald de Andrade:
Deram muros a Portinari. Ele se tornou mesmo o monopolizador dos
afrescos oficiais. Mas a onda de reação levara nas suas correntes subterrâ-
neas o comovido camponês de Brodósqui com a sinceridade da sua paleta
24
31 Maurício Lissovsky; Pau-lo Sérgio Moraes de Sá, “O novo em construção: o edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde e a disputa do espaço arquite-tural nos anos 1930”, in: An-gela de Castro Gomes, org. Capanema: o ministro e seu ministério. Rio de Janeiro: Editora FGV/Universidade São Francisco, 2000, p. 50.
32 Mário Dionísio, op. cit., p. 223.
33 Geraldo Mendes de Bar-ros, “O Palácio da Educação apresentará grandiosa de-coração a fresco”, in: Correio Paulistano, São Paulo, 20 ago. 1938.
dos inícios pobres. O velho produto da Escola de Belas-Artes substitui-se ao
lírico do “Football” e ao plástico dos negros e dos cafezais. Pôs-se a virtuosar
pés, mãos, cabeças, copiadas de Rivera ou de documentos coloniais. Publi-
cados os cartões donde sairiam os afrescos decorativos do Ministério da Edu-
cação, viu-se que eram simplesmente vergonhosos. Só podiam fazer abrir,
de puro êxtase, a beiçorra crítica do Professor Mário de Andrade que não
percebeu, açulado contra a minha honesta campanha, os recursos passadis-
tas e primários de que se utilizava agora o pintor. O que ele achava digno
de Fídias, o próprio Portinari, perseguido pela sua má consciência, destruiu
implacavelmente. Inquieto, o artista tornou-se um derruba-paredes. Nada
mais o satisfazia, pois perdera o seu clima, que era a sinceridade. Acabou nas
imitações desesperadas dos modernistas. Dos nacionais, recorreu a Segall e
a Tarsila da fase Pau-Brasil. E copiou Chagall e copiou Braque!34
O escritor parece estar respondendo, à distância, ao artigo sobre os
estudos preparatórios publicado por Mário de Andrade em maio de 1938.
Ao contrário do ex-amigo, o poeta exalta o realismo de Portinari, que defi-
ne “moral, franco, forte, sadio, de um otimismo dominador”. A partir dele,
estabelece uma distinção entre o artista brasileiro, “missionário” e “educa-
dor”, e Rivera, “combatente” e voltado para “a gritaria mais propriamen-
te literária que plástica”. Sob “o signo dos Antigos”, Portinari conseguiu
“conservar uma calma, um equilíbrio, uma temática, que nada têm de
literários” e “soube dar uma esperança ao mundo”. Embora “otimista”,
seu realismo
não é sonharento. É um realismo apenas muito sadio e dinâmico. [...]
O realismo de Portinari não é simbólico, impede sonhar no vão. Mas glorifi-
ca o trabalho, explica o trabalho, impõe as formas sãs dos homens – o que já
não será pouco educativo para as cabeças dos que passam35.
O realismo de Portinari é também realçado por Sérgio Milliet, que
considera “digna de menção” sua “preocupação anatômica”. Falando do
25
34 Oswald de Andrade, “De literatura: para comemorar Machado de Assis”, in: Meio--Dia, Rio de Janeiro, 10 maio 1939.
35 Mário de Andrade, “Porti-nari”, in: Revista Academica, Rio de Janeiro, n. 35, maio 1938, s.p.
resultado final, em que o pintor estiliza e sintetiza, o crítico não deixa de
assinalar o fato deste nunca perder de vista que “as figuras são de carne e
osso e precisam firmar-se no solo, não podem ficar soltas como bonecos.
O exame atento das mãos, e sobretudo dos pés, das personagens revela a
intimidade do pintor com a anatomia”36.
Se Mão (1937, f. 40) e Pé (1937, f. 41) – dois estudos para o painel
Cana – dão a ver a intimidade de Portinari com a anatomia, o mesmo pode
ser dito dos demais desenhos do conjunto. Nos estudos para Pau-brasil (c.
1937, f. 39), Fumo (1937, f. 47), Cacau (1938, f. 53), Borracha (1938, f. 56) e
Carnaúba (1944, f. 57-58), por exemplo, é visível o interesse do artista em
detalhar a anatomia de suas figuras gigantescas. Isso não entra em choque
com um tratamento, por vezes, mais sintético, que o leva a simplificar fisio-
nomias, como no caso dos Lenhadores do primeiro ciclo econômico, ou a
traçar um desenho sumário, no qual o que importa é determinar a posição
das figuras no espaço, como demonstra Erva-mate (1938, f. 50).
Existe, na verdade, uma distinção entre o realismo dos estudos pre-
paratórios e o antirrealismo do conjunto mural, como assinala Mário de
Andrade em 1944. Depois de ter feito “centenas de experiências e estu-
dos”, ter-se desdobrado “em desenhos e desenhos das figuras que tecerão
as composições”, Portinari, ao realizar os afrescos,
arromba os limites do realismo visual, em sínteses plásticas duma au-
dácia totalmente depreciativa do realismo, e tudo é forma e cor. O assunto
é recalcado para um segundo plano de menor interesse, para não dizer, de
interesse nenhum. A obediência ao detalhe é desprezada. [...] E enquanto o
valor rapsódico, a lição coletivista e simbólica dos murais enfraquece muito,
predominam as exigências estéticas37.
Mário Pedrosa, por sua vez, detecta no conjunto uma realidade “a
interpretar”, do que seriam decorrência o “antinaturalismo da ilumina-
ção de muitos desses murais” e “o critério puramente estrutural da dis-
tribuição de luz como em certos detalhes do grupo Algodão, em que as
26
36 Sérgio Milliet, Diário crítico de Sérgio Milliet. São Paulo: Martins-Edusp, 1981, v. IV, p. 38.
37 Mário de Andrade, “Cân-dido Portinari”, in: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 20, 1984, p. 87.
figuras do primeiro plano são iluminadas por um cisma simetricamente
oposto e arbitrário”38.
Bem outra será a avaliação de Pagu, que estabelece uma distinção
entre as obras anteriores ao primeiro trabalho muralista e as que se segui-
ram a ele. Num artigo publicado em 1950, a autora não hesita em afirmar
que o “Portinari que arriscava, perdeu ao ser colocado em mural no Mi-
nistério da Educação. Ali tanto o engrandeceram, o enquadraram dentro
da ordem que ele acabou fazendo tudo certinho, e no final essa coisa
carnavalesca que é o painel de Tiradentes”39.
Se bem que Tiradentes (1948-1949) seja uma obra bastante proble-
mática, sobretudo em virtude do predomínio da dimensão política sobre
determinações plásticas40, não se pode, contudo, concordar com a ideia de
um artista que fazia “tudo certinho”. Ao fazer essa afirmação, a escritora
não leva também em conta o que significou para Portinari e seus cola-
boradores (Inês Correia da Costa, Roberto Burle Marx, Rubens Cassa,
Diana Barberi, Enrico Bianco e o irmão Lói, dentre outros) aprender a
trabalhar com um tipo de pintura inédito no Brasil. Como lembra Bianco,
por causa do clima tropical, pensou-se que seria necessário pintar num dia
um painel de 3 m. x 3 m. Numa das primeiras tentativas, o pintor solicitou
ao pedreiro uma massa de dois centímetros de espessura, que veio abaixo,
acompanhada do muro de concreto, no momento em que se começaria
a aplicar a tinta. Depois de várias leituras de livros técnicos, chegou-se à
conclusão de que “em cima do concreto armado o máximo que podia ter
de massa eram uns cinco milímetros, porque senão de fato escorregava e
caía. E não podia ser feito de uma vez só”, o que significava esperar que o
pedreiro preparasse aos poucos os trechos a serem pintados pela equipe41.
Portinari, por outro lado, dá mostras de “um profundo sentimento inte-
rior de liberdade”42 nas têmperas da Fundação Hispânica da Biblioteca do
Congresso (Washington, 1941), para não falar do momento intensamente
expressionista que se segue à visão de Guernica. A leitura das cartas de José
de Anchieta e de Manoel da Nóbrega e de Cultura e opulência do Brasil, de
Antonil, não significa que o pintor realize uma obra de caráter documental
27
38 Mário Pedrosa, “Porti-nari – De Brodósqui aos murais de Washington”, op. cit., p. 15. Para uma análise detalhada dos afrescos dos “Ciclos econômicos”, ver de Annateresa Fabris: 1 – o catálogo Portinari: estudos para os painéis do Ministé-rio da Educação e Saúde no Rio de Janeiro (São Paulo: Museu de Arte Contempo-rânea da Universidade de São Paulo, 1979); 2 – os livros Portinari, pintor social (São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1990) e Cândido Portinari (op. cit.); 3 – o capítulo “Um símbolo moderno” de Frag-mentos urbanos: represen-tações culturais (São Paulo: Studio Nobel, 2000); 4 – o artigo “Portinari e a arte social”, publicado na revista Estudos Ibero-Americanos (Porto Alegre, v. XXXI, n. 2, dez. 2005).
39 Pagu, “Contornos e des-vãos de um panorama su-mário”, in: Augusto de Cam-pos, org. Pagu: vida-obra. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 198.
40 Cf. Annateresa Fabris, “Portinari e a história: o caso Tiradentes”, in: Anais do Museu Histórico Nacio-nal, Rio de Janeiro, v. 39, 2007, pp. 81-104.
41 Projeto Portinari, Can-dido Portinari: o lavrador de quadros. Rio de Janeiro: Projeto Portinari, 2003, pp. 95-98.
42 Mário Pedrosa, “Portinari – De Brodósqui aos murais de Washington”, op. cit., p. 19.
ou ilustrativo. Ao contrário, ao enfocar quatro momentos fundamentais da
história latino-americana – Descobrimento, Catequese dos índios, Desbra-
vamento da mata e Garimpo do ouro –, ele demonstra-se capaz de intervir
criticamente na história oficial, elaborando uma visão contemporânea que
lhe permite destacar aquelas figuras que, a seu ver, haviam dado uma con-
tribuição efetiva à constituição das peculiaridades do Novo Mundo.
Nos estudos preparatórios, realizados em menos de um mês em dife-
rentes técnicas – grafite, lápis de cor, carvão, nanquim, óleo, pincel seco,
aquarela, guache, sanguínea –, e nas quatro maquetes em têmpera, é pos-
sível perceber a interpretação não oficial do artista. Esta localiza-se tanto
no destaque dado às poderosas figuras de negros nos estudos para Des-
cobrimento (f. 59-60) e Descoberta do ouro (f. 65), quanto na concepção
do espaço da representação como um cenário, animado por poucos per-
sonagens e ritmado por alguns elementos referenciais, como demonstra
Catequese (f. 64).
Mais seguro de seus meios expressivos graças ao treino obtido com
os estudos dos “Ciclos econômicos”, Portinari envereda por um caminho
menos realista, evidenciando uma grande economia formal: é o que ates-
tam a figura do bandeirante se abeberando em Desbravamento da mata (f.
61) e o expressivo Jesuíta (f. 62) carregando uma criança índia, desenhados
com poucos traços, mas assim mesmo bem intensos. Se, em alguns mo-
mentos, o artista opta por uma solução menos sóbria e mais carregada de
elementos figurativos, como no caso de Catequese (f. 63), esta será descar-
tada no momento da composição definitiva, por não corresponder àquela
visão sintética buscada por ele.
As palavras empregadas por Pedrosa na análise do resultado final
podem ser aplicadas aos estudos preparatórios, embora não haja neles a
redução das formas “à abstração criadora”, destacada no texto crítico. Do
mesmo modo que nos quatro painéis em têmpera, é possível vislumbrar
nos desenhos a presença de um artista “mais livre, mais desimpedido,
mais disposto a fazer as ginásticas técnicas mais perigosas e as deformações
mais violentas”43.
28
43 Idem. Para dados ulterio-res sobre as quatro têmpe-ras, ver: Annateresa Fabris, “Uma visão do Novo Mun-do: os painéis de Portinari para a Fundação Hispânica em Washington”, in: Tânia Maria Tavares Bessone; Te-reza Aline P. Queiroz, org. América Latina: imagens, imaginação e imaginário. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: Edusp, 1997.
Entre 1944 e 1945, Portinari engaja-se em outro projeto monumen-
tal. Na igreja de São Francisco de Assis da Pampulha (Belo Horizonte),
realiza um vasto mural para o altar, painéis de azulejos para o púlpito, o
confessionário, o batistério, o coro, as bancadas laterais, a fachada poste-
rior, além de uma Via Sacra, intensamente expressionista. O gigantesco
painel do altar, em que o artista lança mão de recursos já presentes na
“Série bíblica” – concepção expressionista das figuras e fundo recortado
geometricamente em planos superpostos –, tem como ponto de partida
inúmeros estudos em diferentes técnicas (grafite, aquarela, lápis de cor,
óleo). Num esboço não utilizado (f. 66), a composição concentra-se em
poucas figuras e na divisão entre os planos celeste e terreno. Outro estudo
(f. 67) já traz os elementos essenciais que estarão presentes na obra final:
a figura do santo em primeiro plano dominando a composição, ladeada
por blocos de figuras distribuídas de maneira harmoniosa. Um dado cha-
ma a atenção no desenho: os detalhes anatômicos de algumas figuras em
contraposição a um tratamento mais estilizado de outras. A contraposição
entre figura (concreta) e fundo (abstrato), que será a nota dominante do
painel São Francisco se despojando das vestes (1945), é ensaiada na maque
te de 1944 (f. 68). Nela, Portinari já dá a ver o resultado final: um jogo
equilibrado entre uma estrutura geométrica ao mesmo tempo fluida e
rigorosa, baseada no uso de linhas retas, verticais e horizontais, e o intenso
expressionismo das figuras.
Uma concepção expressionista está também na base do painel de
azulejos da fachada posterior, em que Portinari representa episódios da
vida do santo. São expressionistas não só pela deformação, mas também
pela intensidade do traço, os estudos para as cabeças de São Francisco (f.
69-70), de um menino (f. 75) e de um lobo (f. 76), para as mãos, captadas
numa gestualidade variada (f. 71-72), para os pés, que recebem tratamen-
tos diferenciados, ora mais estilizados (f. 73), ora mais realistas (f. 74). A
notação expressionista atenua-se consideravelmente nos estudos para os
painéis do interior da igreja – São Francisco falando aos pássaros (f. 77)
e O batismo de Jesus (f. 78). Para esses painéis, que figurarão no púlpito
29
e no batistério, Portinari recorre a uma linguagem menos crispada, que
evoca o maneirismo em virtude do alongamento das figuras e da ele-
gância dos dois conjuntos concebidos em termos bem mais sintéticos e
simplificados.
A crítica não é unânime na avaliação da obra principal do conjunto,
o painel do altar. Enquanto Rubem Navarra nota nele um conflito não
resolvido entre “o velho gosto da solidez” e “as solicitações de uma pin-
tura plana, esquemática”44, Sérgio Milliet enfatiza a presença de “uma
nota nova, bem brasileira, de humanização do cubismo”, consequência
de uma compreensão própria do legado de Picasso. A leitura do crítico
paulista é um crescendo de elogios, que abarcam o jogo geométrico do
fundo a preparar “o espírito para a apresentação da personagem principal,
pesada e rude, no centro do conjunto”, o agrupamento das figuras “em
blocos bem distribuídos”, o “expressionismo das fisionomias e atitudes”, o
detalhamento anatômico “em repetido contraponto com a estilização de
inúmeros elementos”45.
III Namoros com a abstração
Uma observação de Milliet permite abordar um aspecto peculiar do
virtuosismo técnico de Portinari. De acordo com o crítico, o artista teria
em si “a possibilidade de alcançar o abstrato” e de “realizá-lo melhor do
que outros”, por dominar seu instrumental. Sua opção, entretanto, foi ou-
tra: não se despreendeu “totalmente da realidade humana”, nem se preo-
cupou “com libertar-se das ‘limitações e associações’ que tanto amedron-
tam os artistas medíocres”46. Uma possível relação de Portinari com uma
concepção abstrata da obra já havia sido postulada por Mário Pedrosa e
Mário de Andrade. Além de detectar a presença de “uma necessidade de
definição abstrata de formas” em alguns quadros que se seguem à série de
Brodósqui, Pedrosa coloca os murais da Fundação Hispânica sob o signo
da experimentação mais ousada. Escreve a esse respeito:
30
44 Rubem Navarra, “Pre-parativos da ‘Missa’ I”, in: Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 19 set. 1948.
45 Sérgio Milliet, op. cit., p. 221. Para dados ulteriores sobre as obras de Portinari na igreja de Belo Horizonte, ver: Annateresa Fabris, “A batalha de Pampulha”, in: Fragmentos urbanos: repre-sentações culturais, op. cit.
46 Sérgio Milliet, op. cit., p. 222.
Nesses painéis de agora a intenção profunda do artista não é mais defi-
nir formas abstratas, mas reduzir formas à abstração criadora. As suas finali-
dades já não são puramente construtivistas, num sentido de montagem e de
estrutura, mas a criação livre. É a sua fase de libertação criadora, a conversão
do plástico no abstrato dentro da matéria pictórica47.
No ensaio “Cândido Portinari” (1939), Mário de Andrade, ao referir-se
à faceta de “experimentador infatigável” do pintor, destaca sua familiarida-
de com “os mistérios de preparação da tela, de variar a natureza das tintas,
da análise das areias com que irá construir os seus afrescos”, associada ao
conhecimento da “lei do corte de ouro”, da “repartição dos claros e das
sombras num Rubens”, das “cadências de cor em Cézanne”, das “doutri-
nas estéticas do Abstracionismo contemporâneo”. A Portinari não bastava
conhecer tais tradições e princípios por leituras ou conversas de ateliê; seu
experimentalismo levava-o a exercê-los por si mesmo, a viver-lhes a expe-
riência48. Embora o pintor não se transforme num adepto das gramáticas
abstratas, há, contudo, em suas obras aspectos que o crítico aproxima do
abstracionismo. É o caso dos painéis dos “Ciclos econômicos”, em cuja
estrutura Mário de Andrade detecta a recusa do pintor
a servir de instrumento de propaganda, que lhe deforme a pureza da
mensagem. Pode e quer servir ao Brasil, mas uma primeira sombra de des-
confiança envolve numa névoa estética o hino franco e poderoso dos estudos
anteriores. E enquanto o valor rapsódico, a lição coletivista e simbólica dos
temas dos murais enfraquece muito, predominam as exigências estéticas.
Estamos quase no abstracionismo contemporâneo. E se a cada pequeno pe-
daço de pintura que queiramos seccionar por meio de molduras transportá-
veis, rostos, vegetais e coisas se desinteressam de seu significado conceitual ,
criando momentos saborosos de pintura abstrata: o conjunto é dum esplen-
dor rítmico e duma volúpia cromática admiráveis49.
O que Milliet, Pedrosa e Mário de Andrade chamam de “abstração”
31
47 Mário Pedrosa, “Portinari – De Brodósqui aos murais de Washington”, op. cit., pp. 11, 19.
48 Mário de Andrade, “Cân-dido Portinari”, in: O baile das quatro artes. São Paulo: Martins, 1963, pp. 123-124.
49 Mário de Andrade, “Cân-dido Portinari”, in: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, op. cit., p. 87.
não é a busca de uma forma pura ou de procedimentos internos ao ato de
pintar. Como suas análises dão a ver, a “abstração” que Portinari se per-
mite é aquela engastada no próprio processo pictórico, embasado funda-
mentalmente em elementos formais como linhas e cores50. Movido pela
vontade experimental, o pintor aplica a uma obra como Composição com
figuras (c. 1939) – em que se permite um flerte com a concepção espa-
cial cubista – aquelas “molduras transportáveis” de que Mário de Andrade
falará em 1944. Depois de recortar a tela, isola dois fragmentos que se
tornam abstratos (f. 79-80) por exibirem tão somente ritmos plásticos e
um jogo cromático alicerçado em tons ocres e marrons, tendo perdido
qualquer referência figurativa.
Ao realizar os estudos para o painel de azulejos para a fachada do Mi-
nistério da Educação e Saúde, Portinari, depois de ter ensaiado algumas
soluções de caráter figurativo, centradas, por exemplo, na representação
estilizada de brincadeiras infantis, opta finalmente por um padrão bio-
mórfico que se aproxima de soluções abstratas. Os estudos para Conchas
e hipocampos (c. 1941) e Estrelas do mar e peixes (c. 1944, f. 81) são carac-
terizados pela adoção de uma linha sinuosa e prolongada, que envolve
toda a composição, sugerindo a forma de um amebóide. Nela, Joaquim
Cardozo percebe “o contorno do protoplasma primitivo”, a representação
do “começo da vida surgindo à luz do dia, em pleno mar”51.
Os desenhos preparatórios para Conchas e hipocampos são bem sig-
nificativos do processo de pesquisa empreendido por Portinari. Soluções
abstratas, ora sintéticas (f. 84), ora mais abarrotadas de elementos (f. 85)
alternam-se com a busca de ritmos puramente plásticos (f. 86) para atingir
finalmente uma concepção mais figurativa (f. 82-83), porém não isenta
de preocupações antes de tudo formais e cromáticas. Mesmo um crítico
severo de Portinari como Carlos Zílio considera os azulejos do Ministério
da Educação e Saúde uma exceção. Em sua fatura, o artista foi obrigado
a deixar de lado o virtuosismo e a enveredar pelo pós-cubismo, realizando
uma das obras “mais expressivas” do modernismo. Liberto dos “fantasmas
da temática e da necessidade de provar que ‘sabia pintar’”, Portinari con-
32
50 “Portinari: Que diria mi-nha avó se me visse pintan-do nus?”, in: Jornal de Letras, Rio de Janeiro, v. XXVIII, n. 299, nov. 1975, p. 2.
51 Frederico Morais, “Azu-lejaria contemporânea”, in: Dora de Alcântara, org. Azulejos na cultura luso--brasileira. Rio de Janeiro: Iphan, 1997, p. 99.
centra-se em jogos puramente formais (diagonais, grandes formas azuis),
além de criar um espaço complexo, formado por uma superposição de
planos, que descartam a representação ilusória da profundidade52.
Uma visão claramente abstrata configura-se na série dos quatro ele-
mentos, executada em 1945 para decorar uma das salas de despachos do
ministro Gustavo Capanema no Ministério da Educação e Saúde. Se o
biomorfismo de Joan Miró parece repontar em Água (f. 87), caracterizada
por formas isoladas e ao mesmo tempo interdependentes, em Ar (f. 88),
Terra (f. 89) e Fogo (f. 90), impõe-se uma noção de espaço pós-cubista,
feito de formas, ora transparentes, ora sólidas, que se interpenetram, anu-
lando toda sugestão de profundidade e levando o espectador a manter-se
apenas no plano da imagem, sem qualquer possibilidade de remissão a
um referente exterior.
Trata-se, contudo, de uma experiência praticamente única. Posterior-
mente, o artista, que não deixa de fustigar a “falta de senso e de equilíbrio
dos abstracionistas”53, pintará algumas obras inspiradas na abstração geo-
métrica, mas não se pode deixar de reconhecer que os resultados não são
muito satisfatórios em termos formais e expressivos. Embora a adoção de
algumas soluções abstratizantes se concentre em obras de grandes dimen-
sões como Primeira missa no Brasil (1948), Tiradentes, Guerra (1952-1956)
e Paz (1952-1956), é no final da década de 1950 que se torna mais intenso o
interesse pelo cubismo cristalino de Jacques Villon. A partir dele, o artista
reinterpreta alguns de seus temas centrais – cenas de trabalho, crianças,
morros –, mas é inegável que se trata de soluções artificiais, marcadas por
um intenso descompasso entre um desenho realista e a sobreposição de
planos geométricos coloridos.
IV – Artista = artesão
O fato de Portinari fazer experiências com a abstração, apesar de
nela criticar o enclausaramento em questões puramente plásticas, que só
33
52 Carlos Zílio, A querela do Brasil. A questão da iden-tidade na arte brasileira: a obra de Tarsila, Di Cavalcan-ti e Portinari/1922-1945. Rio de Janeiro: Funarte, 1982, pp. 110-111.
53 Flávio de Aquino, “Vai a arte acabar?”, in: Módulo, Rio de Janeiro, n. 2, ago. 1955, pp. 49-50.
atingem uma pequena parcela do público54, não deve levar a conclusões
apressadas e, muito menos, à figura de um artista eclético, destituído de
diretrizes próprias. Críticos atentos como Pedrosa, Milliet e, sobretudo,
Mário de Andrade, equacionam os diversos diálogos travados por ele, re-
conduzindo-os a uma matriz própria, a uma grande capacidade de reela-
boração, cujo resultado final é uma linguagem pessoal e inconfundível.
Mário de Andrade, que estuda mais detidamente a questão do “es-
tilo Portinari”, percebe em sua obra “uma íntima e profunda unidade”,
resumida na palavra “plástica”. “Experimentador infatigável”, Portinari
distingue-se por uma “enorme riqueza técnica” e pela “variedade expres-
sional”. “Artista somado a artesão”, conhece todos os segredos do ofício,
debruça-se sobre as soluções encontradas por outros pintores, sem que
isso signifique perder-se “no estéril de qualquer virtuosismo gratuito ou
diletante”. O que o salva desse perigo é o fato de repensar as experiências
dos outros e de refazê-las por si mesmo:
Pra ele não tem o menor interesse a originalidade só pelo gosto de
ser original. Antes, o inquieta sempre qualquer lição alheia, porque pode
sempre haver nela uma partícula que seja, da verdade. E então Cândido
Portinari refaz a experiência pressentida, conformando-a aos elementos e
caracteres que lhe são pessoais, à essencialidade plástica, ao tradicionalismo,
ao lirismo, ao nacionalismo tão fortes da sua personalidade55.
O retrato de Portinari bosquejado pelo crítico enfeixa, de maneira
sintética, os traços essenciais de seu estilo:
E este artista que reúne ao realismo mais respeitoso da figura, ao de-
senho mais sensivelmente descritivo, uma tão forte técnica renascentista,
é o mesmo que irá experimentar as diversas soluções do Cubismo e seus
derivados, irá auxiliar-se, na composição de muitos quadros, dos processos
super-realistas de invenção, e tentará reunir à sua “diferença” as diferenças
de um Picasso, de um Braque, de um Rivera. De tal forma ele funde a ciên-
34
54 Candido Portinari, “Sen-tido social del arte”, in: An-drea Giunta, org. Candido Portinari y el sentido social del arte. Buenos Aires: Si-glo XXI Editores Argentina, 2005, p. 316.
cia antiga da pintura a uma personalidade experimentalista e antiacadêmica
moderna, que de Cândido Portinari se poderá dizer que é o mais moderno
dos antigos56.
O realismo, considerado por Andrade o “elemento unificador”57 de
sua poética, é, de fato, o traço essencial do múltiplo Portinari. É ele que
o leva a pleitear que o artista não abdique de um pormenor sem muita
importância como o tema, a fim de atingir a sensibilidade do espectador:
Há os que creem que apenas com uma cor poderão expressar num
quadro uma tragédia ou uma alegria. Eu também creio nisso, mas se trata
de emoções de pequeno alcance que só alguns privilegiados poderão sentir,
ao passo que esse artista que apenas com uma cor foi capaz de produzir tal
sentimento, poderia ampliar sua força e dirigir-se às massas. São esses casos
que nos obrigam a classificar a sensibilidade em duas categorias: artística e
coletiva. Todos os artistas possuem altas doses de ambas. Por mil circunstân-
cias, em vários artistas uma delas supera e embota a outra58.
Falando em nome da “sensibilidade coletiva”, Portinari engaja-se,
desde os tempos de estudante, num projeto de definição de uma arte na-
cional. Esse projeto tomará contornos definidos na década de 1930, quan-
do o artista se dedica à configuração de uma iconografia nacional, que
parte de evocações da infância em Brodósqui para atingir o Brasil como
um todo em cenas cujo ator principal é frequentemente o trabalhador.
Seu realismo, alimentado pelas gramáticas da volta à ordem, abebera-se,
nesse momento, na lição realista do século xix59, que condensava na fi-
gura do trabalhador uma série de fatores: injustiça social, dignidade, he-
roísmo e probidade do trabalho manual. O fato de experimentar “todos
os processos de pintar, não só já no sentido superior da técnica, como do
próprio artesanato”60 faz dele o próprio emblema do artista-artesão, do
trabalhador que acredita na dignidade do trabalho manual e que, por isso
mesmo, não se esquece das exigências sociais da arte.
35
55 Mário de Andrade, “Cân-dido Portinari”, in: O baile das quatro artes, op. cit., pp. 123-125.
56 Idem, pp. 128-129.
57 Idem, p. 129.
58 Candido Portinari, “Sen-tido social del arte”, op. cit., pp. 316-317.
59 Linda Nochlin, Realism. Harmondsworth: Penguin, 1973, pp. 111-137.
60 Mário de Andrade, “Cân-dido Portinari”, in: O baile das quatro artes, op. cit., p. 124.
A imagem de Picasso como “uma esponja que absorve tudo”, pro-
posta por Francis Bacon61, aplica-se à perfeição a Portinari, que encontra
no pintor espanhol um exemplo a ser seguido desde a primeira temporada
parisiense. Picasso ensina-lhe, em primeiro lugar, que o artista verdadei-
ramente criador é dotado de uma grande liberdade interior, não devendo
dobrar seus processos a imposições exteriores. Ensina-lhe ainda que todos
os estilos são contemporâneos, que o artista deve estar aberto para todo
tipo de experimentação, podendo transitar de um estilo para outro e gozar
de uma grande liberdade perante a história e as linguagens do presente,
só possível depois do eclipse da ordem acadêmica. Esse Picasso múltiplo,
que inspira o múltiplo Portinari, não é evidentemente o artista de van-
guarda do começo do século xx. É um artista enfronhado no fenômeno
da volta à ordem, que, em seu caso específico, se inicia em 1914, quando
atenua o ímpeto vanguardista e questiona a ideia da inovação a todo cus-
to, reavaliando a própria relação com a história da arte e defendendo a
possibilidade (e a necessidade) de um olhar retrospectivo.
O fato de haver uma relação quase especular entre Portinari e Picasso
não deve fazer perder de vista um dado fundamental: boa parte da visuali-
dade do modernismo brasileiro está sob o signo da volta à ordem. A maior
parte dos artistas modernistas não renunciou ao referente e às exigências
do métier, não elaborou uma nova concepção espacial – anti-ilusionista
e baseada em ritmos puramente plásticos –, limitando-se a lançar mão
de estilemas e de fragmentos modernos, e não elaborando um código de
fato moderno. Por isso, não se podem aceitar sem questionamentos certas
leituras de Portinari, que o apontam como um acadêmico que se traveste
de moderno, pois ele está num caminho trilhado por quase todos os mo-
dernistas, em que pese a existência de diferenças estilísticas62.
Talvez seja mais acertado ver nele um artista moderno na acepção
brasileira do termo, ou seja, fundamentalmente realista (e não acadêmi-
co), de acordo com determinações do próprio temperamento e do clima
cultural encontrado na Paris de fins dos anos 1920. A cidade não era mais
a capital das vanguardas, pois nela predominavam o exemplo do Picasso
36
61 Silviano Santiago, “Ba-con, vida de artista”, in: O Estado de S. Paulo, 11 jun. 2011, caderno “Sabático”.
62 Ver a esse respeito: An-nateresa Fabris, “Vertentes realistas brasileiras na década de 1930”, in: Arte na França – 1860-1960: o realismo. São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, 2009.
“neoclássico”, várias formas de domesticação do cubismo, a reavaliação
das figuras de Rafael e de Ingres, a retomada das linguagens realistas, a
revalorização dos valores técnicos, dos temas herdados da tradição pós-
-renascentista (retrato, natureza-morta, paisagem e composição de figu-
ras) e da visão da arte como produção, antes de tudo, artesanal. É essa
problemática que mobiliza o artista brasileiro, requerendo a adoção de
um instrumental adequado à compreensão do novo momento vivido pela
arte no período de entre-guerras. Portinari inscreve-se, com pleno direi-
to, nas poéticas da volta à ordem, que apontam para uma nova ideia de
modernidade, não mais interessada na negatividade das vanguardas, mas
guiada pela busca de um novo sentido humanista para a arte.
Anaateresa Fabris, Curadora
37
Portinari por Portinari
I – Retrato do artista quando jovem
“Quando comecei a pintar, senti que devia fazer a minha gente e
cheguei a fazer o ‘baile na roça’. Depois desviaram-me e comecei a tatear
e a pintar tudo de cor – fiz um montão de retratos, mas eu nunca tinha
vontade de trabalhar, e toda gente me chamava
preguiçoso – eu não tinha vontade de pintar porque me botaram den-
tro duma sala cheia de tapetes com gente vestida à última moda”1.
“A maioria dos que se congregam sob a nova bandeira se constitui de
falsos artistas, os ‘ratés’, os fracassados, os que não estudaram a essência e
o processo acadêmico, e se rebelam contra ele, porque apresenta dificul-
dades, e não porque seja uma expressão de velhice ou cansaço... [...] O
essencial é conhecer a técnica íntima de sua arte para, com esses elemen-
tos, encontrar a sua feição original. O mais é recusar, de olhos fechados, o
que se desconhece, mas se ataca violentamente pelo prazer de combater
os moinhos... Rodin, criador do impressionismo na escultura, frequentou,
por muito tempo, a academia”2.
“Não procuro seguir escola nenhuma... Chegamos à compreensão
de que o fenômeno artístico é individual; não se apresenta para esses ou
aqueles agrupamentos, sem distinção, com a mesma intensidade e desen-
volvimento. Pinto, para satisfazer-me com a sinceridade e prazer íntimo
dos ‘footballers’ ou dançarinos quando se entregam a esses desportos... [...]
O intuito que me anima é empregar todas as forças, para a grande tarefa,
que pesa sobre a minha geração, de criar a legítima arte brasileira, sem o
convencionalismo de modelos importados”3.
“A pintura de hoje não é mais a mera reprodução de qualquer assun-
to. Atualmente o que a simples visão nos fornece não é o suficiente a uma
obra de arte, nem tampouco, lhe é essencial. Agora, pensa-se para pintar.
39
1 “Carta de Candido Portina-ri a Rosalita Candido Men-des” – Paris, 12 jul. 1930.
2 “A versatilidade de pre-ferências no momento ar-tístico”, in: O Jornal, Rio de Janeiro, 1926 (artigo locali-zado no arquivo do Projeto Portinari, Rio de Janeiro, PR-28).
3 Idem.
Antes de realizar algum trabalho, o artista estuda, com ampla liberdade,
o motivo, imprimindo-lhe a sua individualidade, sem escravizar-se com
o modelo. Antigamente os pintores, em sua maioria, realizavam as obras
totalmente uniformes, procurando usar da mesma maneira para tudo que
desejassem expressar. Tal uniformidade não poderia permanecer diante
da variedade do mundo moderno, que nos leva, naturalmente, a uma in-
finidade de modos. Portanto, não só são desprezadas as chamadas escolas,
como as individualidades uniformes. É necessária a variedade no próprio
indivíduo. Isso deve constituir a preocupação dos modernos”4.
“Tenho [...] uma grande admiração por Velázquez e Botticelli. São
os dois artistas que mais ocupam os meus sonhos de juventude. Mas, o
que conheço deles senão a tradição e a obra através de gravuras e reprodu-
ções que, por mais perfeitas, são sempre imperfeitíssimas? Acostumei-me
a amar de Velázquez ‘Os bebedores’, ‘O quadro das lanças’, ‘A rendição de
Breda’, ‘A crucificação’... De Botticelli como tenho amado as suas ‘Mado-
nas’, tão cheias de encanto na sua ‘antiguidade’ deliciosa e tão moderna!
‘A Primavera’, da Academia de Florença, e o ‘S. Sebastião’, da Galeria
Real de Berlim! Como tenho adorado as reproduções dessas obras-primas
consagradas pela crítica universal! [...] Essas predileções levo-as no cora-
ção e não no cérebro. Quero dizer com isto que não pretendo de forma
alguma procurar imitar Velázquez ou Botticelli, ou qualquer outro. Todo
artista deve ter a sua personalidade e envidar supremos esforços para não
perdê-la nunca, antes defini-la sempre mais e mais. Não há ‘maneiras’
melhores umas do que as outras. Não é grande Rubens? E não o é tam-
bém Velázquez? E grandes não são do mesmo modo Zuloaga e Claude
Monet? Nenhum tem, entretanto, a mesma ‘maneira’, os mesmos proces-
sos, a mesma técnica... Batista da Costa nada teria pintado se tivesse nas
mãos os pincéis de Antônio Parreiras, nem Eliseu Visconti produziria um
‘S. Sebastião’ com a paleta de Pedro Américo. Técnica!... Serve qualquer
uma desde que com ela encontre o pintor facilidade de interpretar o seu
sentir. E só com este pode ele avaliá-la, aprimorá-la e aceitá-la”5.
40
4 “O momento na pintura”, in: A Manhã, Rio de Janeiro, 3 jul. 1926.
5 “Para o Velho Mundo em busca da perfeição”, 28 maio 1929 (artigo localiza-do no arquivo do Projeto Portinari, Rio de Janeiro, PR-118).
“Não existe uma verdadeira distinção entre arte antiga e moderna.
Na Arte eu vejo a Beleza, e a Beleza é sempre a mesma em toda a parte.
Apenas as maneiras de a interpretar variam. Botticelli, se existisse hoje,
seria um artista de feição moderna, e dos mais arrojados”6.
“O classicismo é uma feição da arte perfeitamente eterna. Afigura-se-
-me como uma gramática, para os que querem bem escrever. É preciso
conhecê-lo e praticá-lo, para se poder pensar em obras renovadoras. De
modo que constitui o elemento de ordem, a norma constante para as re-
voluções estéticas”7.
“O alvo da minha pintura é o sentimento. Para mim a técnica é mera-
mente um meio. Porém um meio indispensável. A missão do artista é ex-
primir os sentimentos que existem latentes na alma de todo ser humano.
Não basta sentir para ser artista. É necessário criar, sem se afastar jamais
da verdade. E isso só se consegue com a técnica. Hoje já se começa a ter
uma concepção mais nobre do ideal artístico. Decaem os preconceitos
asfixiantes. O conceito acanhado que só admitia como beleza as linhas
puras, cede lugar a uma visão mais larga e humanitária. As incertezas, as
tendências variadas em que se debate a Arte no mundo inteiro, significam
que atravessamos uma fase decisiva: caímos num período de funda deca-
dência, ou então, conjugadas tantas energias dispersas, surgirá um novo
Renascimento”8.
“O retrato representa todas as dificuldades da técnica. Não são so-
mente de ordem pictórica as dificuldades que ele encerra. São também
de natureza psicológica e estética. De natureza psicológica, porque o es-
sencial a um retrato é a expressão individual do retratado, que não se en-
contra simplesmente na exata reprodução do físico, mas na revelação do
caráter do modelo. De natureza estética, porque a composição no retrato
quer maneira: o bom gosto lhe impõe posições especiais. Nesse ramo da
pintura, por vezes, a composição se apresenta de maneira muito mais di-
41
6 “No Salão da Primavera”, in: Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 6 maio 1925.
7 “O momento na pintura”,
op. cit. 8 “No Salão da Primavera”, op. cit.
fícil a resolver-se, do que num quadro de gênero. A simplicidade de um
retrato, com única figura, dificulta, sobremaneira, a composição porque,
sendo poucos os elementos, a sua distribuição deve ser cuidada. Para o
retrato, a liberdade de técnica é relativa. Nem sempre, as felizes pincela-
das de um retratista podem permanecer, embora sejam de primorosa arte.
Num quadro qualquer, elas seriam aproveitadas, com sucesso. Num retra-
to, são obrigatoriamente substituídas pela necessidade que tem o artista de
encontrar a verdadeira expressão”9.
“Entre nós, principalmente, deve ser intenso o desenvolvimento da
paisagem. País de largos horizontes, de variado colorido, de natureza ma-
ravilhosa, o Brasil apresenta, por todos os cantos, motivos dos mais interes-
santes para o cultivo da boa paisagem. Quanto à técnica em si, foram pou-
cos os pintores brasileiros, que conseguiram produzir obras de valor. Tem
a paisagem íntima relação com o retrato, de que é elemento essencial.
Zuloaga, o grande pintor espanhol, o maior pincel do mundo, reproduz,
continuamente em suas telas de figura trechos regionais, onde faz viver a
alma da Espanha. Aqui, em que o sol é vibrante e as cores são de belíssima
intensidade, o fator paisagem seria primoroso em qualquer retrato”10.
“Não temos, ainda, uma arte brasileira [...]. Estamos em pleno perí-
odo de formação. Se os centros de sólida e antiga cultura servem atual-
mente de campo fácil a todas as experiências, ainda as mais opostas, que
se não dirá de país novo, desconhecedor das suas verdadeiras diretrizes?
Mal saímos do período de caldeamento, e este foi o menos regular possí-
vel, com diversos contingentes, desde o africano ao europeu do norte e ao
sul, que, como se sabe, diferem substancialmente, por mais de uma razão
de ordem étnica e histórica. Mas, já na desordem presente, se delineiam
orientações definidas, que, inspiradas no meio natural e procurando har-
monizar a este último as regras e processos que agitam o cenário artístico
no Velho Mundo, levarão, com certeza, a uma escola de cores clara, vi-
gorosa, vibrante, luminosa, como estão a exigir as paisagens tropicais”11.
42
9 “O momento na pintura”, op. cit.
10 Idem.
11 “A versatilidade de prefe-rências no momento artís-tico”, op. cit.
“A arte de um país não se impõe com prédicas e leis: nasce instin-
tivamente e forma-se com o tempo, assim como as individualidades dos
artistas independem da sua vontade e só se firmam, quando a sua técnica
se solidifica. Ninguém pode impor, a si próprio, esta ou aquela fatura.
Assim, arte brasileira só haverá quando os nossos artistas abandonarem
completamente as tradições inúteis e se entregarem com toda a alma à
interpretação sincera do nosso meio”12.
II – O Prêmio de Viagem e a experiência europeia
“Estou imensamente satisfeito. O júri oficial do salão de belas-artes,
embora digam ser guiado nas suas decisões por um ferrenho espírito
acadêmico, concedeu-me, a mim, um dos pintores atuais, que mais
possuem tendências modernistas, o grande prêmio de viagem, que é o
maior laurel oficial. Estou satisfeitíssimo, repito, pois fui laureado com
unanimidade de votos, não tendo havido durante o julgamento, nenhu-
ma discussão”13.
“Mais tarde, já concorrente ao Prêmio, tive de transigir novamente,
tive de me submeter a uma maneira de pintar – deixei de seguir a minha
vontade – amoldei-me ao salão pacientemente, até obter o Prêmio. Do-
mestiquei a minha vontade dentro de um ponto de vista visando sistema-
ticamente um efeito. Esse efeito era agradar a você, esse ponto de vista era
você. Não sei se você contribuiu conscientemente em tudo isto; de qual-
quer modo o fato permanece. Sou um prêmio de viagem por sua causa.
Concorri sempre ao salão por sua causa. É certo que quando nos conhe-
cemos eu já enviava para o salão, mas até aquela época era lógico, depois
desse tempo eu talvez não mudasse; não mudei, porque o meu orgulho
de provinciano não me permitia por causa de uma discussão que houve a
respeito da minha premiação daquele tempo. Mas transigi – refreei o meu
43
12 “O momento na pintura”, op. cit.
13 “No Salão de Belas-Artes”, in: A Esquerda, 1928 (artigo localizado no arquivo do Projeto Portinari, Rio de Ja-neiro, PR-82).
impulso de matuto e deixei passar. Tudo por eu desejar a sua admiração e
parecia-me, aquela a única maneira de a obter”14.
“Como sabe, eu sempre me dediquei à representação na tela de ex-
pressões humanas. Encontro nesta feição da arte pictórica um grande
exercício de psicologia. E a prova do que afirmo está na coleção de qua-
dros que, até hoje, tenho executado na tela, como os do Cardeal Arco-
verde, exposto atualmente na Matriz da Glória, de Berta Singermann, de
Paulo Mazzucchelli, e outros. Acho, entretanto, que a causa predominan-
te para que o retrato de Olegário Mariano fosse premiado, foi a expressão
psicológica de sua fisionomia, que dizem ser perfeita, devido toda a atra-
ção fisionômica do retratado, e à grande intimidade que mantenho com o
poeta das ‘Cigarras’, o que me facilitou o trabalho”15.
“Entendo [...] que a estadia na Europa não deve ser aproveitada
pelo pintor para uma produção intensa e quase nada meditada como
têm feito alguns colegas... Considero-o um prêmio de observação. O que
vou fazer é observar, pesquisar, tirar da obra dos grandes artistas – do pas-
sado, nos museus, ou do presente, nas galerias – os elementos que me-
lhor se prestem à afirmação de uma personalidade. Procurarei encontrar
o caminho definitivo da minha arte fazendo estudos e nunca quadros
grandes, que estes roubam ao artista um tempo precioso sem um resulta-
do duradouro e sem influência definitiva no futuro. Prefiro regressar da
Europa sem nenhuma bagagem volumosa, aparentando ao julgamento
alheio nada ter feito, mas com um cabedal profundo de observações e
pesquisas. Uma tela só, cem vezes raspada e cem vezes pintada só para o
artista, em uma procura incessante de perfeição, na ânsia de encontrar
a melhor maneira de interpretar a natureza e exprimir a verdade, vale
mais, sem dúvida, como contribuição para os próprios destinos, do que
uma centena de telas acabadas, feitas sob fórmulas alheias, quase mecâ-
nicas, que o artista traga da Europa, como documentação de uma inútil
operosidade”16.
44
14 “Carta de Candido Por-tinari a Rosalita Candido Mendes” – Paris, 18 set. 1930.
15 “No Salão de Belas-Artes”, op. cit.
16 “Para o Velho Mundo em busca da perfeição”, op. cit.
“Eu, amigo, ainda não estou na idade de fazer afirmações, mormente
em questões de arte. Sou muito moço. Nunca tive predileções; logo não
posso dizer uma palavra sobre a arte, tendo embora a minha expressão
sintetizada nos meus quadros. Lá no ambiente do Velho Mundo irei ainda
estudar, vendo muito, muito mais do que trabalhando, a fim de melhor
conhecer as minhas tendências artísticas”17.
“Continuo a visitar os museus. Não tive ainda vontade de começar a
trabalhar. Cada vez acredito mais nos antigos. Entretanto há muitos mo-
dernos esplêndidos. Infelizmente nós aí, copiamos o que eles têm de mau.
[...] Não achas que estou em bom caminho, visitando os museus? Depois,
então, trabalharei”18.
“Já comecei a trabalhar, mas no meu quarto, porque não consegui
ainda ateliê (dentro de minhas posses); há muitos: custam apenas 3 e 4
mil francos. Contudo, não estou triste, porque não estou perdendo tem-
po: pela manhã vou ao Louvre ver aquela gente de perto e à tarde faço
estudos. Não pretendo fazer quadros por enquanto. Estou cada vez mais
antigo; diante das exposições que se realizam quase que diariamente e das
coisas do Louvre, a gente não sendo idiota e tendo mais amor à arte do que
ao sucesso tem que pender para este último. Aprendo mais olhando um
Ticiano, um Rafael do que para o Salão do Outono todo”19.
“Vim conhecer aqui em Paris o Palaninho, depois de ter visto tantos
museus e tantos castelos e tanta gente civilizada. Aí no Brasil eu nunca
pensei no Palaninho. [...] Daqui fiquei vendo melhor a minha terra –
fiquei vendo Brodósqui como ela é. Aqui não tenho vontade de fazer
nada. Vou pintar o Palaninho, vou pintar aquela gente com aquela roupa
e com aquela cor. [...] A paisagem onde a gente brincou a primeira vez
e a gente com quem a gente conversou a primeira vez não sai mais da
gente, e eu quando voltar vou ver se consigo fazer a minha terra”20.
45
17 “No Salão de Belas-Artes”, op. cit.
18 “Carta de Candido Porti-nari a Olegário Mariano” – Paris, 12 set. 1929.
19 “Carta de Candido Porti-nari a Olegário Mariano” – Paris, 14 nov. 1929.
20 “Carta de Candido Por-tinari a Rosalita Candido Mendes” – Paris, 12 jul. 1930.
“Nasci para agir, o meu espírito necessita de um campo sem marcos
para se espraiar e o tipo de pintor do Brasil não serve para mim. Eu não
posso ser medíocre – ou eu marcarei uma época na Arte Brasileira ou
então desaparecerei. Trabalhei sempre refreando um sentimento íntimo,
sem o procurar conhecer, por causa das imposições do momento que me
obrigava a realizar e não me deixava pesquisar, portanto impossibilitado
de toda ação normal. Foi possível que eu viesse à Europa, no meio de
todos os movimentos, no meio de todas as civilizações e no meio de uma
paisagem obediente, para compreender o sentimento que me acompa-
nhou sempre. Não pretendo ficar somente dentro da pintura – tenho so-
nhado muito tenho arquitetado grandes planos”21.
“O Brasil precisa, antes de tudo, olhar para si mesmo e deixar de
copiar os estrangeiros [...]. Nós devemos, no Brasil acabar com o orgu-
lho de se fazer uma arte ‘para meia dúzia’. O artista deve educar o povo,
mostrar-se acessível a esse público que tem medo da arte, por ignorância,
pela ausência de uma informação artística, que deve começar nos cur-
sos primários. Os nossos artistas precisam deixar suas torres de marfim,
devem exercer uma forte ação social, interessando-se pela educação do
povo brasileiro”22.
“[...] primeiro é preciso criar o espírito nacional, para que haja uma
direção geral comum na obra de pesquisa e de construção. O Almeida
Júnior, que é do tamanho do maior pintor da França, abriu a picada para
a pintura brasileira, mas deixaram crescer capim de novo. E, entretanto,
o seu exemplo continua enchendo os nossos museus com a sua grandeza
esquecida de todos”23.
“O Brasil não é só o índio e o negro. Sobre a unidade de um senti-
mento comum, cada Estado do Brasil tem um tipo e cada artista deve
contribuir com o da sua terra: o de Pernambuco, com o Zé Raimundo, de
Olegário; o do Rio Grande, com os gaúchos de Simões Lopes, de Darcy,
46
21 “Carta de Candido Por-tinari a Rosalita Candido Mendes” – Paris, 3 set. 1930.
22 Plínio Salgado, “Um pin-tor brasileiro em Paris”, in: O País, Rio de Janeiro, 5 out. 1930; Correio Paulistano, São Paulo, 8 out. 1930.
23 Idem.
de outros criadores de heróis; o de S. Paulo, com o Juca Mulato, de Me-
notti, o Zé Candinho e o Mondolfi do Estrangeiro; o do Rio, com as fi-
guras numerosas da Favela, que cantam pela boca de Ovalle e do Heckel
Tavares. Estes tipos ficarão porque têm alma brasileira, portanto são hu-
manos e universais”24.
“Devemos trancar os portos à arte estrangeira. Nem pintura do Salon,
nem a da galeria Percier devem entrar, de agora em diante, no Brasil. A
nossa natureza, o nosso povo estão cheios de surpresas. Nosso povo está se
formando de todas as raças, tem todos os climas, aspectos bem nacionais
na angústia do seu sofrimento, uma fisionomia moral e intelectual bem
marcados; a arte deve traduzir essa inquietude, esse caráter de raça, o mo-
mento brasileiro na humanidade. Abaixo a pintura do Salon francês que
os nossos acadêmicos fazem no Brasil; mas, tão pouco, devemos aceitar
a pintura das galerias modernas de Paris, que os nossos vanguardistas lá
fazem com a cabeça cheia de teorias e de ‘pontos de vista’”25.
“Há hoje uma reação contra o tema, a anedota. Pretende-se uma pin-
tura que seja essencialmente pintura. Isenta de toda influência literária. A
pintura ignorante. Como qualidade. E isso, até certo ponto, é um retorno
mesmo aos grandes mestres antigos. Esse movimento, que parece ter uma
ligação com Tintoretto, Paulo Veronese, Ticiano, sem falar nos grandes
mestres da Renascença, como Rafael e Miguel Ângelo [...], esse movimen-
to, hoje, é geral contra a arte do século passado, que não resistiu, por falta
de ‘qualidade’. Entretanto, é curioso observar como, dentro de uma reação
salutar e forte, encontram-se os germes dos vícios antigos. Esses ‘vírus’ estão,
exatamente, nas galerias dos mais vanguardistas [...]. Há ali a mesma preo-
cupação literária da pintura do século passado. As formas de expressões são
diferentes, ali também se diz que se combate o ‘assunto’; no entanto, a pin-
tura foge ao movimento geral do século, evidenciando-se, acentuadamente
preocupada, com uma outra feição de ‘literatura’ que, se não é o ‘tema’, é o
‘preconceito’. É o preconceito surrealista, os teoremas cubistas, a doutrina
freudiana, o primitivismo, tudo gritantemente literário. O que torna essa
47
24 Idem.
25 Idem.
arte, sob o ponto de vista geral do movimento moderno, inegavelmente
passadista, mesmo com sua expressão avançada”26.
“Eu não sou a entrevista, não tenho bastante coragem minha para
ser um chefe. Nunca pertenci a uma corrente, não fui acadêmico, não fui
moderno, não fui impressionista e não fui eu mesmo; eu fui dispersivo; a
minha pintura não refletiu o que eu desejava – não me pareço nada com
ela. A culpa não foi minha, foi do meio, do século e da vida, sobretudo
da vida. Você leu a minha carta Palaninho? Lá eu digo o que eu devia ter
feito”27.
III – O pintor modernista
“Ao chegar da Europa tive um enorme trabalho: desaprender, para
recomeçar. Estou recomeçando. Os meus recentes trabalhos estão apa-
gando o Portinari antigo. Van Dongen, a quem mostrei algumas cabeças
que fariam sucesso no Brasil, me dizia: ‘ Como consegue o senhor fazer
coisas tão difíceis? A pintura é tão fácil...’. A viagem à Europa para um
moço que observa é útil. Temos tempo de recuar. Temos coragem de vol-
tar ao ponto de partida. Eu sou moço”28.
“Apesar de atrapalhado pela Escola de Belas-Artes, que aguou minha
pintura, consegui de Paris ver de novo Brodósqui. Observando grandes
mestres como Picasso, Orozco, Rivera, e estudando os antigos, refiz mi-
nhas formas, perdidas no aprendizado oficial do Rio de Janeiro”29.
“Eu compreendo [...] a necessidade de que o artista realize um labor
constante, ininterrupto. O trabalho regular é indispensável e serve para
lhe depurar a sensibilidade, vitalizar os surtos de energia criadora, acentu-
ar a originalidade e a eficiência dos seus meios de expressão. Pelo trabalho,
ele faz um apelo a si mesmo e vai penetrando, devassando, exprimindo
48
26 Idem.
27 “Carta de Candido Por-tinari a Rosalita Candido Mendes” – Paris, 6 set. 1930.
28 Aga, “Portinari voltou da Europa”, in: Mundo Ilustra-do, Rio de Janeiro, 1931 (ar-tigo localizado no arquivo do Projeto Portinari, Rio de Janeiro, PR-126).
29 “Portinari, paulista de Brodowski, vae mostrar a S. Paulo os seus últimos tra-balhos”, in: Folha da Noite, São Paulo, 20 nov. 1934.
melhor o próprio mundo interior. Um pintor imóvel pode estar em transe,
em angústia; é possível que todo ele sangre no esforço do sonho. Mas o
que contesto é que, sem a prática constante, tenha a agilidade descritiva,
a visão sintética, em que possa plasmar, em traços lúcidos e definitivos, as
suas inquietudes mais profundas. A sua capacidade de realização estará
fatalmente diminuída”30.
“São comuns os confrontos entre os pintores antigos e modernos. E a
conclusão quase unânime é de que os antigos são os mais fortes. Pergunta-
-se: como explicar a diferença que se assinala? [...] O que sucede, apenas,
é que a vida, hoje, tornou-se mais intensa, mais absorvente, não permitin-
do, a não ser muito raramente, as dedicações absolutas à arte. O esforço
para arrostar às contingências da situação econômica torna dispersiva não
só a ação do pintor, mas a de todo aquele que se aplique a qualquer forma
de arte. O labor artístico, longe de se impor como único e supremo, re-
duz-se às proporções de um recreio ocasional. E mesmo quando o pintor
se dá exclusivamente à pintura, extraindo daí o necessário à subsistência,
mesmo assim não se pode ater à ideologia que se traçou. Cumpre que
faça concessões à opinião ingênua do público, isto é, dos compradores;
é preciso que se integre dentro de efeitos consagrados; que se submeta a
banalidades ornamentais tão a gosto do mundo. As afirmações vitoriosas
de personalidades só se fazem espaçadamente e quando o artista, iludindo
as conjunturas econômicas mais urgentes, deixa de mentir a si próprio,
visita a sua verdadeira alma. É ainda a vida moderna que exacerba, no
pintor, um defeito gravíssimo: a vaidade. E a vaidade prejudica, também,
a sua eficiência. Antes, o pintor era um operário e procedia como tal.
Trabalhava nos seus quadros com regularidade, todos os dias: pela con-
centração permanente do espírito sobre a pintura, ia aperfeiçoando a arte,
adquirindo uma visão mais penetrante da própria alma, dominando mais
amplamente as cores. O pintor moderno não quer ser apenas pintor; traz
consigo aptidões que só lhe traçam um destino: a pintura. Mas ele ama o
prestígio social, as grandes posições, o dinheiro, a notoriedade imediata.
49
30 “Como trabalham e so-nham os nossos pintores”, in: O Globo, Rio de Janeiro, 13 nov. 1934.
Ele se divide em múltiplos afazeres; e, obrigatoriamente, a força que con-
duz, aplicada, como é, em vários sentidos se enfraquece e abate”31.
“Não tenho ideias definitivas em matéria de estética, e não me preocu-
po em afiliar-me a qualquer escola. Para mim a cor e o desenho são igual-
mente importantes. Experimentei toda sorte de tendências. Sou um tradi-
cionalista, isto é, simples, chão, preciso, quase primitivo, quando se trata de
retratos. Entretanto, permito-me certas audácias na pintura de composição.
Observaram que faço lembrar Picasso – o que não é exato. Se eu quisesse
poderia imitá-lo, e a prova disso é que há algum tempo, como experiência,
tentei o cubismo. Mas desisti imediatamente, porque é uma forma que per-
tence a outros e não a mim. Acho o cubismo maravilhoso para aqueles que
o criaram, mas insuportável nos imitadores. O pintor é um produto do seu
ambiente; os artistas, como as roupas, estão em função do clima”32.
“A pintura não deve ser fotográfica; deve ser composta. Eu compo-
nho meus quadros. Cada detalhe, cada tipo, cada grupo, cada ângulo, são
diretamente arrancados da realidade, mas o conjunto do quadro é com-
posto pela visão que o pintor tem dessa realidade. A pintura deve ser feita
com a cabeça, e não com as mãos. Deve-se falar pouco e trabalhar muito.
Glória e sucesso nada significam. O que importa é pintar, realizar – plas-
ticamente no meu caso – a missão que cada um traz consigo. O pintor é
coisa secundária; o essencial é a obra realizada”33.
“Não, não foi a moda que me levou à pintura moderna. Eu não in-
ventei nada. A pintura tem uma história como a ciência. O que na ciência
é progresso, na história é evolução”34.
“Veja, começou com os românticos a pintura moderna. E já naque-
le tempo muita gente ‘não entendia’. Aqui mesmo no Brasil, gente mais
velha do que eu, que conheceu Pedro Américo, diz que também ele foi
combatido no seu tempo. Visconti, quando chegou ao Brasil pintando as
50
31 Idem.
32 “Uma entrevista de Por-tinari inédita no Brasil”, in: Revista Acadêmica, Rio de Janeiro, n. 54, maio 1941.
33 Idem.
34 “Portinari explica o sentido da sua arte”, in: O Jornal, Rio de Janeiro, 7 jul. 1943.
figuras esguias de sua arte pré-rafaelista, foi acusado de só pintar esqueletos.
‘Onde está a beleza das formas opulentas?’ – perguntavam. Quando Ingres,
na França, pintou as formas opulentas do seu ‘Banho turco’ essas mesmas
pessoas – porque são sempre as mesmas em todos os tempos – perguntavam
onde estava o desenho, onde a construção e as regras clássicas”35.
“Quanto à pintura moderna, tende ela francamente para a pintura
mural. Com isso, bem entendido, não quero afirmar que o quadro de
cavalete perca o seu valor, pois a maneira de realizar não importa. No
México e nos Estados Unidos já há muitos anos essa tendência é uma re-
alidade, e noutros países se opera o mesmo movimento, que há de impor
à pintura o seu sentido de massa. Aliás, não constitui o que estou dizendo
nenhuma novidade, num centro artístico como S. Paulo, perfeitamen-
te informado desse movimento renovador da pintura. Naturalmente, no
Brasil, país em formação, o artista não tem possibilidades, por falta de
interesse dos governos, de realizar trabalhos nesse sentido. Os artistas, en-
tre nós, lutam com todas as dificuldades, acrescidas ainda da indiferença
dos poderes públicos. E é pena isso, é muito de se lamentar, pois o nosso
país é um campo magnífico para a criação de uma pintura que não se
assemelharia à de nenhuma outra nação. O Brasil [...] é um diamante
fabuloso, percebe-se que, lapidado, daria a melhor pintura. Tudo aqui está
por fazer, havendo apenas alguns casos excepcionais. E a causa disso tudo
é ainda o governo, que se obstina a não ter, como no México se observa,
interesse direto pelas coisas da arte”36.
“A pintura atual procura o muro. O seu espírito é sempre um espírito
de classe em luta. Estou com os que acham que não há arte neutra. Mes-
mo sem nenhuma intenção do pintor, o quadro indica sempre um sentido
social”37.
“Não existe nenhuma grande obra de arte que não tenha ligação com
o povo. A arte é comunicação. Naturalmente que houve épocas e lugares
51
35 Idem.
36 “Exposição de pintura Candido Portinari”, in: Diá-rio de S. Paulo, 21 nov. 1934.
37 “Portinari, paulista de Brodowski, vae mostrar a S. Paulo os seus últimos tra-balhos”, op. cit.
em que a arte apenas servia este ou aquele grupo. Mas sempre teve, a que
vingou, ligação direta ou indireta com o povo”38.
“Sou filho de camponês. Meus pais foram sempre camponeses po-
bres. [...] Assim, não posso esquecer-me deles. São o meu objetivo. Quan-
do fiz os afrescos do Ministério da Educação, queriam que eu fizesse a
História do Brasil. Tentei. Mas foi impossível. Não saía nada. Depois de
estudos e estudos, nada. Então tive de dizer: a minha pintura é pintura de
camponês; se querem os meus camponeses, bem; se não, chamem outro
pintor. Foi então que, embora numa ordem histórica, fiz a série do ‘Ouro’,
‘Fumo’, ‘Gado’, etc.”39.
“O que mais assusta é a deformação das extremidades. [...] É que
muita gente, quando vê um quadro não o relaciona com a natureza, com
aquilo que existe, e sim com aquilo que já viu noutros quadros. O pé
descalço do enxadeiro não pode ser comparado com os pés feitos pelos
pintores europeus, porque na Europa os camponeses andam calçados”40.
“O público está habituado a ver pés mimosos na pintura, porque só
via, nus, os pés de deuses, Vênus, Diana e todas as outras. O pé humano é
diferente, assim como é diferente o mesmo rosto conforme os sentimentos
que o animam”41.
“A pintura é parada. [...] Se eu quero representar, em arte, a força da
maternidade, a poderosa e arrebatadora expressão do instinto materno,
como no quadro ‘As mães’, não posso pintar a mãe fazendo uma careta.
Tenho de me exprimir através de formas, formas estáticas cujo movimento
só é possível realizar por meios plásticos. Essa dramaticidade também leva
à deformação. A força de uma criatura, seus dramas, suas angústias, sua
própria presença se exprime[m] em pintura por meio de deformações que
lhe restituem, na transformação artística, essa realidade interior que de
outro modo lhe seria arrebatada”42.
52
38 Mário Dionísio, “Portina-ri pintor de camponeses”, in: Vértice, Coimbra, v. II, 1946.
39 Idem.
40 “Portinari explica o sen-tido da sua arte”, op. cit.
41 Idem.
42 Idem.
“[...] já que não é o tema que conta, não é nada demais pedir aos
artistas que incorporem esse pormenor à obra de arte. E isto para bem dos
que lutam e sofrem na vida, em todos os seus matizes. Estou seguro de que
esse ato só beneficiará a obra de arte, porque será acrescida de alguma coi-
sa de útil. Não vejo necessidade de abstenção intransigente do tema. Todo
artista que meditar um pouco sobre os acontecimentos que perturbam o
mundo, chegará à conclusão de que fazendo um quadro mais ‘legível’
sua arte ganhará ao invés de perder; e ganhará muito porque receberá o
estímulo do povo”43.
“Sei que os artistas que se encerram em si mesmos são os que mais
sofrem mas, infelizmente, é esse um sofrimento que não conduz a nada
e a ninguém beneficia. Se há acredite poder expressar uma tragédia ou
uma alegria só com uma pincelada e uma cor, penso que deveria ampliar
sua força, dirigir-se às massas ao invés de dirigir-se a apenas um pequeno
grupinho de privilegiados”44.
Seleção e montagem: Annateresa Fabris
53
43 Ibiapaba de Oliveira Martins, “O abstracionismo já foi superado”, in: Artes Plásticas, São Paulo, v. I, n. 3, jan.-fev. 1949.
44 Idem.
Nota preliminar
O sentido social da arte é uma conferência
proferida por Cândido Portinari no Instituto Fran-
cês de Estudos Superiores, de Buenos Aires, em 26
de julho de 1947, a convite do Centro de Estudantes
de Belas-Artes. Integra uma série de manifestações
que acompanham sua primeira exposição indivi-
dual na Argentina, realizada no Salón Peuser – uma
das principais galerias de Buenos Aires –, entre 16
de julho e 9 de agosto. Uma parte das ideias de-
fendidas na conferência já havia sido apresentada,
em fins de março de 1946, na sabatina promovida
pela Associação Brasileira de Imprensa. Nela, o pin-
tor postulava a necessidade de uma arte engajada
nas grandes causas da humanidade, sem por isso
descurar as qualidades intrínsecas da obra.
O mesmo texto, com algumas variações, sob
o título de “Discurso sobre arte”, encontra-se no ar-
quivo do Projeto Portinari, tendo como referências
Buenos Aires e o ano de 1947. Em outra fala, o “Dis-
curso-palestra proferido por ocasião da exposição
no Salón Peuser”, Portinari estabelece um elo entre
a arte social e o desejo de construção de um mun-
5454
do melhor, postulando ainda uma diferença entre
a sensibilidade plástica e a sensibilidade humana.
Além da conferência de 26 de julho, o artis-
ta divulga suas ideias sobre a arte social na en-
trevista concedida a María Rosa Oliver (“Conver-
sando con Candido Portinari”), publicada no n.
152 da revista Sur (julho de 1947). Nesta, tomando
como paradigmas Jacques-Louis David, Eugène
Delacroix e Gustave Courbet, defende a figura do
artista político e a necessidade de engajamento
na realidade contemporânea. A defesa da arte en-
gajada não significa o desprezo pelas qualidades
propriamente artísticas. Portinari é bem enfático
a esse respeito: “Os que não podem dar sua men-
sagem social numa boa pintura, que se dirijam e
falem em praça pública”.
A conferência O sentido social da arte é profe-
rida também no Teatro Verdi, de Montevidéu, em 12
de setembro de 1947, enquanto manifestação pa-
ralela à mostra vinda de Buenos Aires e apresenta-
da no Salão da Comissão Nacional de Belas-Artes.
Em novembro de 1947, o texto é publicado pelas
Ediciones del Centro Estudiantes de Bellas Artes,
de Buenos Aires. A conferência foi divulgada, re-
centemente, no catálogo da “Exposición Portinari”
(Buenos Aires: Fundación Proa, jul.-set. 2004) e no
livro Candido Portinari y el sentido social del arte,
organizado por Andrea Giunta (Buenos Aires: Siglo
XXI Editores Argentina, 2005).
Embora o texto tenha sido redigido em por-
tuguês e divulgado na revista Época (novembro
de 1947), do Rio de Janeiro, antecedido por poemas
de Rafael Alberti e Nicolás Guillén, no arquivo do
Projeto Portinari não foram encontrados nem o
manuscrito original, nem sua versão impressa. É
por esse motivo que o Museu de Arte Moderna de
São Paulo resolveu traduzi-lo do espanhol, mesmo
sabendo dos problemas que envolvem a “tradução
de uma tradução”. Algumas ideias da conferência
de 1947 foram também divulgadas por Ibiapaba
de Oliveira Martins no artigo “O abstracionismo já
foi superado”, publicado na revista Artes Plásticas
(São Paulo, v. I, n. 3, jan.-fev. 1949).
Annateresa Fabris
55
Conferência pronunciada no salão
do Instituto Francés de Estudios
Superiores em 26 de julho de 1947, a
convite do Centro de Estudiantes de
Bellas Artes, em Buenos Aires. Publi-
cada por Ediciones de Centro Estu-
diantes de Bellas Artes em novem-
bro de 1947.
Queridos amigos:
Antes de mais nada, desejo pedir desculpas e explicar por que falo
em minha língua. Em primeiro lugar, porque se eu quisesse falar no seu
idioma, vocês seriam os primeiros a pedir que eu falasse no meu, pois
assim entenderiam alguma coisa, ao passo que, se eu falasse na língua de
vocês, nada entenderiam. Nossos idiomas são irmãos como o são nossos
países e, por isso, quando vocês vêm ao meu país, preferimos que falem
na sua língua, pois acredito que a Argentina e o Brasil prolongam-se em
um só país. Nós, os brasileiros, sentimo-nos em casa aqui na Argentina e
desejamos que o mesmo aconteça com vocês no Brasil.
Solicitado por um grupo de jovens a fazer uma palestra aqui neste lo-
cal, não me foi possível negar. Na realidade, era o que devia ter feito, pois
os pintores não nasceram para falar, e sim para pintar; esse é seu meio de
expressão, e não a palavra. Por isso, vem-me à lembrança o que disse Pous-
sin, o grande pintor francês, quando escrevia a um amigo: “Levo mais de
quarenta anos professando uma arte muda e quando devo falar sinto-me
extremamente desajeitado”. E isso é o que me acontece agora. Aqueles
que achem longa esta conferência poderão dormir ou retirar-se, sem pedir
permissão ou desculpas. Para os que a achem curta, estarei à disposição
para continuar o tema em outra ocasião.
Arte social é o tema que foi escolhido para esta palestra, mas como
não sou especialista, pouca prática tenho para desenvolvê-lo. Entretanto,
vou fazer o possível para chegar até o fim sem desviar-me muito do que
vamos tratar. É um tema sobre o qual se tem escrito e falado muito e con-
tinuará sendo um tema de debate infinito.
Desejo esclarecer alguns pontos para explicar-me melhor durante a
conferência. Um deles é o da qualidade intrínseca da pintura, cujo valor
ninguém pode negar. Antes de qualquer coisa, analisaremos o espírito e a
técnica da obra de arte, sem com isso querer separar essas duas coisas im-
possíveis de separar, pois são siamesas; uma não pode existir sem a outra,
mas podemos fazer uma análise de ambas separadamente. O conteúdo
espiritual de um quadro registra a potência de sensibilidade do artista.
57
O lado técnico registra o conhecimento e o desenvolvimento da sensi-
bilidade do artista. A técnica é o meio com o qual o artista transmite sua
sensibilidade.
Para facilitar minha expressão, vou usar uma maneira um tanto arbi-
trária para expor meu pensamento. Vou desdobrar a sensibilidade em duas
categorias: uma que denominarei sensibilidade artística, e a outra, sensi-
bilidade coletiva. A sensibilidade artística só é sentida – em geral – por
aqueles que nascem e educam-se com ela. Educa-se com museus, confe-
rências etc. É por isso que os que se interessam pela pintura esforçam-se
e exigem atenção do governo a essa área, e é justo que assim aconteça.
Agora mesmo estou aqui porque um grupo de jovens acredita que este
meio, a conferência, é útil nesse sentido. Há poucos dias, vendo os murais
de alguns dos melhores pintores argentinos, constatei que esse trabalho é
a melhor prova para que o governo lhes confie os muros de seus edifícios.
Cumprindo, dessa forma, também uma finalidade educativa.
Continuando com este modo arbitrário para me expressar melhor,
acredito que é possível verificar, ou melhor, medir a sensibilidade artísti-
ca. Por exemplo, usando duas cores: vermelho e verde. Todos nós sabe-
mos que uma cor vai numa gradação de um a milhões. Começaremos a
mostrar essas duas cores em seu estado normal; depois, iremos transfor-
mando-as, adicionando outros matizes. Até o ponto em que o observador
constate essas cores e sua sensibilidade seja registrada. Uma pessoa que
nasceu com sensibilidade experimenta uma determinada emoção peran-
te uma pintura, mas isso se refere a seres privilegiados. Daí a dificuldade
do público em relação a certas obras de arte. Nestes últimos anos, como
reação a obras puramente circunstanciais, surgiram grupos de pintores
que fizeram e fazem uma pintura que se pode denominar arte pela arte.
Foi e é um acontecimento normal dentro da história. Como todos sabem,
uma escola de pintura surge quase sempre como reação a outra. Todos os
homens estão formados quimicamente por porcentagens diferentes em
relação às coisas do mundo; por isso mesmo, dizemos que existem pessoas
que nascem com sensibilidade para fazer ou sentir uma pintura. Isso não
58
quer dizer que as outras pessoas não possuam nenhuma sensibilidade, e
sim que nasceram com uma porcentagem mínima de sensibilidade para a
pintura. E é incorporando elementos acessíveis que a pintura interessará a
um maior número de pessoas.
Há outra consideração necessária a ser agregada. Nem a pintura cir-
cunstancial nem a pintura pela pintura bastam para se dirigir às massas.
Talvez com a fusão das duas se possa alcançar esse fim.
Há pintores que afirmam que só pelo fato de pintar um cubo e uma
esfera estão fazendo arte avançada. Pensar assim é um tanto elementar.
Esse cubo e essa esfera pintados por um pintor de conhecimentos técnicos
e sensibilidade converter-se-ão em uma obra artística, como o seria se ele
fizesse um nu. Esses dois motivos, pintados por um pintor sem técnica e
sem sensibilidade, resultariam num quadro desprovido de qualquer valor
artístico. Portanto, acredito que para fazer uma obra de arte o tema tem
pouca importância.
Claro que tudo isso é elástico, mas até certo ponto; e não se deve ver
mais tragédia em um quadro do Kandinsky, por exemplo, do que num
fuzilamento de Goya. Assim como não há homens de cinco metros, tam-
pouco os há de dois centímetros de estatura. Raciocinando em função dos
contrários, cairemos no caos.
Seria melhor que o homem que pinta e possui sensibilidade coletiva,
mas carece de sensibilidade artística, fosse diretamente à praça pública e
dissesse em uma linguagem corrente o que sente, em vez de expressar-se
por meios plásticos. Como já dissemos, a pintura social é a que pretende
dirigir-se às massas, e os pintores dessa categoria devem possuir sensibili-
dade artística e coletiva. Ambas devem ser educadas; para a primeira já
dissemos quais são os meios que acreditamos sejam os mais adequados.
Penso que a segunda sensibilidade poderá ser desenvolvida ao entrar
em contato com as massas, auscultando seus desejos. Todos possuem, em
maior ou menor grau, tanto uma como outra sensibilidade; é claro que os
que na vida demonstram vocação devem educar-se para poder atuar. Um
pintor não é pintor social simplesmente porque tem vontade de sê-lo, e
59
sim por razões de sensibilidade e educação (é um tanto irônico chamar
de educação o viver e sofrer os desejos do povo, mas uso essa palavra para
simplificar e para não me desviar do problema principal que estamos tra-
tando). Bem sei que, para explorar como deveria este tema, seria necessá-
rio escrever vários livros, mas só desejo dizer mais ou menos o que penso
sobre a arte social e estabelecer, ao mesmo tempo, que não pretendo estar
aqui ensinando com “ares doutorais”. Esta é apenas uma conversa entre
amigos.
O desenvolvimento e a direção de qualquer atividade humana estão
relacionados aos acontecimentos históricos, políticos e econômicos. Uma
consideração justa hoje pode não sê-lo amanhã. Vivemos em um mundo
contraditório em que o artista, por possuir uma sensibilidade à flor de pele
e em maior grau, sofre intensamente.
Dirige-se em várias direções e cada qual sofre e defende o seu mun-
do, mais por sentimento do que por raciocínio; é certo que só se raciocina
impulsionado por um sentimento qualquer, mas em geral acontece que
só ouvimos a voz do sentimento, em
vez de ouvir o sentimento pela voz do raciocínio.
Se colocássemos um artista em uma sala onde só houvesse um ob-
jeto – um telefone, por exemplo –, depois de algum tempo descobrirá
alguma beleza nesse telefone; essa beleza estará relacionada à sua sensi-
bilidade artística e, embora ele possua sensibilidade coletiva, esta ficará
desligada do seu meio e será consequentemente superada e vencida pela
sensibilidade artística, e o artista gritará com a voz do sentimento em de-
fesa daquela beleza.
A beleza é como um reino onde as lutas e as mortes acontecem.
Cada vez que há luta e cada vez que há mortes lhes são atribuídas ra-
zões diversas. Na Europa, devido ao desenvolvimento da especulação da
beleza, chegou-se ao máximo, esgotando-se todos os recursos no terreno
da pintura. Por essa razão, cada vez mais foi se distanciando a pintura
figurativa. Toda essa inquietação provém do regime social burguês, que
já se encontra em decomposição. Por isso mesmo, o setor revolucionário
60
e, portanto, mais avançado, busca no figurativo o seu meio de expressão.
Mas, como ainda prepondera a burguesia decadente, existe a luta entre o
abstrato e o figurativo. Essa discussão preocupa neste momento os meios
artísticos da Europa e, sobretudo, os de Paris, que continua sendo o centro
do mundo em matéria intelectual.
Entretanto, há muita confusão quando se trata do figurativo, pois há
muitos que levam o figurativo a um campo de imitação, acreditando no
retorno ao acadêmico. Na realidade, os figurativos não defendem uma
volta ao passado, pois se assim o fizessem, não seriam revolucionários. O
que desejam é superar o que já foi feito, incorporando todas as conquistas,
e prosseguir. Em todo caso, o debate continua firme e cada grupo defende
ferozmente seu ponto de vista. Essa luta sempre existiu, mas na realida-
de o que dá fim a esses debates são as mudanças de regime, ou melhor,
estes são os que mudam real e concretamente. Mas, por outro lado, essas
mudanças só ocorrem com a luta e há muitas formas de combate. Para
expressar-me melhor: em cada momento da vida humana existe a luta, e
quando a maioria desses setores coincide, a mudança ocorre. Isso quando
se vê de forma ampla todo o panorama no qual debatem-se os homens.
Visto de outra forma, cai no individualismo, o que significa sentir as coisas
em relação a si mesmo de acordo com os pequenos problemas, o que leva
à cegueira. Os regimes dominam todos os setores, inclusive o artístico.
É curioso, por exemplo, observar que na América Latina a questão da
pintura social não só é mais debatida como há também um maior número
de artistas empenhados em sua realização. A maioria desses países é semi-
feudal e semicolonial. Portanto, a diferença social é mais visível e, como
a educação artística está menos desenvolvida, o artista tem a sensibilidade
coletiva mais latente. A pintura mural é a mais adequada para a arte social,
porque o muro geralmente pertence à coletividade e, ao mesmo tempo, con-
ta uma história, interessando a um maior número de pessoas. Podem obter-
-se dois resultados por esse meio: a educação plástica e a educação coletiva.
É preciso não perder de vista a função da pintura em nossos dias, nos
quais a arte incorporou a fotografia e o cinema. Ambos são insuperáveis
61
para certos casos e, quando se tenta invadir o terreno de qualquer dos
dois, é feita uma arte de categoria inferior. Não quero dizer com isso que
o cinema e a fotografia sejam artes secundárias. Para mim, todas as artes
têm a mesma possibilidade. Nenhuma é superior ou inferior. Mas cada
uma tem seu campo de ação. Quem as exerce eleva-as mais ou menos;
depende da capacidade do artista e não do gênero de arte. Mas, repito,
cada uma tem seu campo de ação: quando invade outro campo, fatal-
mente se é derrotado. Claro que, se possuir qualidades, estas não desa-
parecem. É como se um grande corredor corresse em uma pista de três
metros: seria verificável que é um grande corredor, mas não disporia de
todos os meios para demonstrá-lo. Houve uma época em que um quadro
funcionava mais como documento histórico do que como uma obra de
arte, e o curioso é que a maioria desses quadros possui um valor artístico
extraordinário; embora pareça uma contradição o que estou dizendo, se
observarmos com atenção o que se pintou nesse sentido depois do surgi-
mento da fotografia e do cinema, chegaremos à conclusão de que noventa
por cento desses quadros estão despossuídos de valor, até mesmo histórico.
Isso prova, mais uma vez, que a importância do tema é muito relativa. Nos
tempos antigos, a visão artística dos homens talvez fosse mais pura e havia
uma compreensão mais exata da função do quadro. Não havia a imposi-
ção da imitação. O artista representava uma figura ou uma paisagem sem
cair no imitativo. Assim, podemos observar as decorações bizantinas, por
exemplo, onde o artista representava uma figura com a cabeça pintada
de verde e os pés de vermelho, e não acredito que seus contemporâneos
se escandalizassem, tal como acontece hoje em casos semelhantes. Essas
figuras não eram representadas apenas no sentido objetivo, mas também
no sentido espiritual. Por isso, asseguro que por meio do tema podemos
chegar ao interesse plástico, de como foi executado tal ou qual fragmento
do quadro, chegando a abstrair o que representa. Mas, acima de tudo, é
necessário interessar ao público. Agora, como em geral o público não tem
educação plástica, em princípio só se interessará se o quadro lhe disser al-
guma coisa extra-artística, para, pouco a pouco, entrar no terreno plástico.
62
Além do aspecto coletivo, que para mim é o mais importante, acredi-
to que por esse meio pode-se chegar à educação puramente estética, pois
o observador vai diretamente ao quadro, sem necessidade de explicações.
Pelo contrário, quando nos museus ou exposições deseja-se colocar à força
na cabeça do público tais ou quais formas, com razões um tanto abstratas,
não se chega a nenhum resultado, formando na maioria das vezes uma
infinidade de esnobes com esse método. É necessário que o artista dê uma
oportunidade para que o público venha ao seu quadro e não dê explica-
ções verbais sobre esta ou aquela cor.
Tudo o que se produz irá de acordo com a intenção que se tiver. Por
exemplo: se eu fizer algo que se dirige ao povo, cedo ou tarde irá ao povo.
Se o povo agora não está capacitado, estará amanhã. Se eu fizer uma coisa
sem intenção, cairá no vazio.
Geralmente se diz que o mundo está cheio de boas intenções, mas é
preciso saber que direção dar a essas boas intenções. De acordo com nossa
capacidade de discernimento, encaminharemos nossas ações e obteremos
o resultado desejado. Nesse sentido, existe uma só verdade, do contrário
eu pagaria uma dívida de mil pesos com um peso, dizendo: minha inten-
ção é que este peso valha mil.
Todas as coisas no mundo, até as mais abstratas, têm um peso e uma
medida; o importante é encontrar o peso e as medidas adequadas. Se um
artista que fizer uma obra de arte tiver intenção de dirigir-se às massas,
ainda que o faça de maneira complicada, um dia será compreendido.
Não há dúvida de que se alguém nos quisesse dizer que um círculo
que pintou em uma tela representa um menino chorando, esse artista
corresponde a um mundo que quer falar de uma praça pública; o máximo
que poderíamos dizer seria: tem boa intenção, mas é um incapaz ou, pior
ainda, um mentiroso. Plasticamente, há liberdade para as expressões mais
diversas. Quando alguém deseja representar um menino chorando, há
mil maneiras de fazê-lo. Da mesma forma como quando se diz alguma
coisa: essa coisa pode ser dita em voz grave ou aguda, alta ou baixa, não
importa. O que importa é o que foi dito.
63
É um limite bastante elástico. Tudo tem um princípio e um fim,
mas esse princípio e esse fim transformam-se imensamente dentro de uma
lógica para não cair no caos, gerando um jogo perigoso. Como quando se
diz que não vale a pena modificar a situação dos que estão morrendo de
fome, esses que assim falam acrescentam: sentir-se-ão infelizes fora do seu
ambiente. É o argumento dos que detestam qualquer mudança.
Acredito que ficou bem claro que um quadro deve possuir, acima
de tudo, um valor intrínseco, isto é, um valor artístico. Muitos acharão
absurdo pedir mais que isso a um quadro. Um artista debate-se por toda a
sua vida com seus problemas artísticos e não é justo que se lhe peça mais,
já que o tema só serve para desviá-lo do seu caminho. Bem sei que esse
é o problema fundamental para um artista, mas quando se pinta, sempre
se representa algo fora da questão plástica. Todos os pintores sabem que
não é o tema o que conta. Por isso mesmo, não é demais pedir ao pintor
que incorpore esse detalhe ao qual dedica tão pouca importância a seu
quadro, já que é algo extraplástico. Para o bem dos que lutam e sofrem na
vida, em todos os seus matizes.
Estou seguro de que esse ato só pode beneficiar a obra de arte, por-
que a ela será somada alguma coisa útil. Os temas de Goya, por exemplo,
são verdadeiros gritos, são de uma visibilidade incrível e, entretanto, o va-
lor plástico permanece. Sem ser, em absoluto, plasticamente inferior em
relação a tudo que de melhor tem sido feito na pintura abstrata.
Não vejo razão na necessidade de abstenção intransigente do tema.
Principalmente hoje, que se pode aproveitar toda a experiência plástica,
ficando o artista com uma liberdade absoluta, como um menino de quatro
anos que tivesse um quadro de mil metros por mil para se divertir. Todo ar-
tista que meditar sobre os acontecimentos que perturbam o mundo chegará
à conclusão de que fazendo seu quadro mais “legível”, sua arte, em vez de
perder, ganhará. E ganhará muito, porque receberá o estímulo do povo.
Sei que os artistas que se fecham em si mesmos são aqueles que mais
sofrem, mas, infelizmente, esse sofrimento não conduz a nada e não be-
neficia a ninguém.
64
Há quem acredite que somente com uma cor poderá expressar em um
quadro uma tragédia ou uma alegria. Eu também acredito nisso, mas são
emoções de pequeno alcance, que só alguns privilegiados poderão sentir.
Ao passo que esse artista, que somente com uma cor foi capaz de produzir
tal sentimento, poderia ampliar sua força e dirigir-se às massas. São esses
casos que nos obrigam a classificar a sensibilidade em duas categorias: ar-
tística e coletiva. Todos os artistas possuem altas doses de ambas. Por mil
circunstâncias, em vários artistas uma delas supera e embota a outra.
Os pintores que desejam fazer arte social e amantes da beleza da pin-
tura em si mesma são aqueles que não esquecem que estão neste mundo
cheio de injustiças para formar filas ao lado do povo, auscultando os dese-
jos em que este se debate. O pintor social acredita ser o intérprete do povo,
o mensageiro dos seus sentimentos. É aquele que deseja a paz, a justiça e
a liberdade. É aquele que acredita que os homens podem participar dos
prazeres do universo. Ouvir o canto dos pássaros. Ver as águas dos rios que
correm fecundando a terra. Ver o céu estrelado e respirar o ar das manhãs
sem chuvas. Sem nenhum outro pensamento a não ser o de fraternidade
e paz. Homens vivendo em um clima de justiça. Onde não haja crianças
famintas. Onde não haja homens sem direito. Onde não haja mães cho-
rando e velhos morrendo à intempérie.
Candido Portinari
65
Pintura que se desliga do povo não é arte�
As grandes palavras de Candido Portinari
na sabatina dos artistas plásticos � �O novo na
Arte, Ciência ou Política, causa sempre incô-
modo aos espíritos vulgares�
Na sabatina dos artistas plásticos realiza-
da quarta-feira na A. B. I., à qual comparece-
ram muitos dos nossos mais notáveis artistas
modernos, Candido Portinari, o grande pintor
brasileiro que integra as fileiras do Partido Co-
munista, teve a oportunidade de pronunciar as
seguintes palavras:
�Para um artista é muito difícil falar de
pintura, sobretudo em público, pois é a pin-
tura o seu meio de expressão e não a palavra.
Poussin, escrevendo, certa vez, a um amigo,
se lamentava de não poder se expressar bem
e, para se justificar, acrescentava que há mais
de quarenta anos fazia profissão de uma arte
muda. É mesmo difícil para um pintor, repito,
falar de pintura quando ele tem consciência
de que, usando outra linguagem, não poderá
transmitir o seu pensamento.
Acresce ainda que ele sabe bem o que é
a pintura. Por isso é um grande sacrifício para
quem durante toda sua vida só se exprimiu por
meio de seus quadros, vir a público e usar ou-
tro meio de expressão. Mas quando se é solici-
tado por companheiros que desejam conhecer
o nosso pensamento sobre tais e tais proble-
mas, e quando acreditamos que estes debates
podem interessar ao povo, todas essas conside-
rações desaparecem.
Penso que a pintura que se desliga do povo
não é Arte � mas sim passatempo, um jogo de co-
res cuja mensagem vai de epiderme a epiderme
� é de pequeno percurso. Mesmo feita com inte-
ligência e bom gosto, ela nada dirá aos nosso co-
ração. Uma pintura que não fala ao coração não
é arte, porque só ele a entende. Só o coração nos
poderá tornar melhores e é essa a grande função
da arte. Não conheço nenhuma grande arte que
não seja intimamente ligada ao povo. As coisas
comoventes ferem de morte o artista cuja única
salvação é retransmitir a mensagem que recebe.
Eu pergunto quais as coisas comoventes
neste mundo de hoje. Não são por acaso as guer-
ras, as tragédias provocadas pelas injustiças, pela
desigualdade, pela fome? Haverá outras, bem
[xxx] mas que nos aflijam mais do que estas,
duvido. Não creio que possam existir coisas que
gritem mais alto ao nosso coração. Tais aconte-
cimentos causam sensações diferentes em cada
um, porque nada existe exatamente igual, como
não existe nenhum homem igual ao outro, nem
fisicamente, porém há um limite de diferencia-
ção: não há homem de cinco metros como não
os há de dois centímetros. Entretanto os aconte-
cimentos maiores afetam forçosamente a todos.
Há também em pintura muita maneira de
expressão. Uns pela naturalista, outros até mes-
mo por uma espécie de código, como acontece
com o grande pintor espanhol Miró. Esses meios
correspondem apenas ao indivíduo; como há
pessoas que falam baixo e outras, alto. Miró nos
67
traz uma mensagem em voz baixa. Picasso nos
grita a sua. Ambas vindas da luta universal: a do
último traz marcas mais profundas de tragédia.
Raras vezes o tema deste é agradável, como raras
vezes é agradável este mundo de injustiças.
Apesar dessa Arte não ser compreendida
pela maioria, ela não deixa ninguém indiferen-
te. Não deixa ninguém indiferente, porque ela
reflete as angústias do povo que luta pelo direito
de existência. Essa obra transborda de sentimen-
to humano, ela é bem a mensagem do gênio.
Picasso como homem soube corresponder
aos apelos do povo e por isso nunca senti tanto
como é verdadeira a frase: �O homem é a obra.�
Voltando ainda aos meios que cada artista
usa para responder aos apelos íntimos, que na
verdade são reflexos do meio em que vive, ele se
serve de um por cento do natural para realizar
seu trabalho; outras vezes usa dez por cento e
assim por diante.
Arte não é imitação e sim representação.
Falo da maneira de se exprimir e ao mesmo
tempo porque, como disse Delacroix: �O me-
tier! Como se pudessem separá-lo em qualquer
espécie de arte, da parte intelectual! Como se,
para chegar ao espírito, pudéssemos prescindir
da habilidade de execução!�
Um pintor [brilhante representava] uma fi-
gura onde a cabeça amarela e os pés vermelhos
ou ao contrario. Fazendo isso, ele estava repre-
sentando uma figura por meios plásticos e não
copiando do natural. Este é o ponto de vista que
o observador deve adotar diante de um quadro.
Para realizar uma obra de arte é preciso
sentir o tema e não copiar mecanicamente.
Picasso, quando lhe perguntaram por que
não foi aos campos de batalha para pintar, res-
pondeu que não era fotógrafo. O termo fotó-
grafo no caso foi empregado para designar o
sentido naturalista.
Ele mais do ninguém pôde pintar a guer-
ra. Permaneceu ali e viu tudo. Sentiu o so-
frimento. Viu os homens, mulheres, velhos,
jovens e crianças morrendo de tudo. Estava
sempre presente, e com o seu gênio e com a
soma de tudo o que viu e sentiu, pôde realizar
os novos �Horrores da Guerra�.
O novo na Arte, Ciência ou Política causa
sempre incômodo aos espíritos vulgares. �
68
Obras�
Núcleo IDa Escola Nacional de Belas-Artes a Paris
70 71
Meu primeiro trabalho, c. 1920
7170 717171
72 73
< Retrato de Edith de Aguiar, 1924
Retrato de mulher, 1927
72 73
Retrato de Olegário Mariano, 1925
Retrato do poeta Olegário Mariano, 1926 >
74 7574
74 75
Retrato de Olegário Mariano, c. 1929
Retr
ato
do p
oeta
Ole
gári
o M
aria
no, 1
926
<
76 77
76 77
Palaninho, 1930
78 7978
Manuel Bandeira
19281
[...]Cândido Portinari é um paulista de 23 anos, que possui exce-
lentes dons de retratista. A sua técnica é larga e incisiva. Apanha bem a semelhança e o caráter dos modelos. Já concorreu mais de uma vez ao prêmio de viagem do Salão. Foi sempre prejudicado pelas tendências modernizantes de sua técnica. Desta vez ele fez maiores concessões ao espírito dominante na Escola, do que resul-tou apresentar trabalhos inferiores aos dos outros anos: isso lhe valeu o prêmio .
19322 Portinari continua a afirmar-se como um dos valores mais dig-
nos de confiança da nova geração de pintores brasileiros. Tudo que faz a nobreza de um artista – o amor da essência expressiva e da técnica de sua arte, a iniciativa de pesquisas renovadoras, a cora-gem de desdenhar o êxito fácil, a atração do árduo e do difícil, a capacidade de trabalho – garantem em Portinari a personalidade e a força de uma arte que vai amadurecendo em linhas harmonio-síssimas. [...]
Esses atributos de sóbria expressão, de ardência afetiva e não puramente sensual, de ternura extrema [...], atingiram o mais alto grau, na obra atual do artista, no grande retrato de Maria Portinari, que ocupa o lugar de honra da exposição do Palace Hotel. É já um trabalho magistral, livre de qualquer influência, acima de qualquer preconceito de escola, sem nenhuma literatura, nenhum pedantis-
7978 79
1 .“Um rapaz de 23 anos”, in: Andorinha, andorinha. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966.
2. Na XXXV Exposição Ge-ral de Belas-Artes, Portina-ri apresenta doze obras e ganha o Prêmio de viagem com o Retrato de Olegário Mariano (1928).
“A exposição de Portinari”, in: O Globo, Rio de Janeiro, 1932.
79
mo. Nele Portinari rematou em qualquer coisa de definitivo a série de estudos tão interessantes que vem nos últimos anos executan-do sobre o mesmo caro modelo, alguns dos quais, e dos melhores, figuram nesta exposição. [...]
Embora o retrato seja a parte mais forte e mais considerável da obra de Portinari, há muito que salientar nas suas paisagens, não só as que foram trabalhadas d’après nature, como e sobretudo naque-las que tirou do subconsciente, reminiscências de subúrbios (vistos onde? quando?), de Brodósqui sua terra natal, da Itália que lhe veio no sangue... Uma das mais comoventes é sem dúvida a que forma o fundo da Ronda infantil. A esse respeito pode-se dizer que é um filão riquíssimo e apenas tocado na obra de Portinari. Daí pode sair uma obra-prima: Brodósqui. Os naturais de Brodósqui e todos nós ficamos esperando pela obra-prima .
19333 [...]Portinari é, por excelência, um retratista. Mesmo quando faz
paisagem, ele nos dá esse elemento de compreensão em profun-didade que há em suas figuras: nunca é só o pitoresco das formas e das cores que constitui o quadro. Assim na sólida paisagem de Paquetá, tão real e no entanto de uma emoção tão vizinha das ver-dades plásticas do surréalisme.
E o homem de Brodósqui não se esqueceu de Brodósqui. Há nesta galeria admirável do Palace Hotel um grande quadro a óleo e várias aquarelas inspirados em aspectos e cenas da pequena ci-dade paulista. São das melhores coisas que já compôs Portinari e dir-se-ia que o pintor esperava a maturação de todos os seus recur-sos para encetar a transposição plástica de suas reminiscências de infância. [...]
Assim, quer pela seriedade de suas intenções, quer pela soli-
80
3. Em agosto de 1932, Porti-nari realiza uma exposição individual no Palace Hotel, do Rio de Janeiro. Integra-da por mais de sessenta obras, a mostra apresenta, pela primeira vez, quadros de temática brasileira, im-pregnados de lirismo e in-genuidade, dentre os quais Ronda infantil (1932).
4. “Florentino quase caipi-ra”, in: Andorinha, andori-nha, op. cit.
80
dez da composição e rica versatilidade de seus meios expressivos, Cândido Portinari assinalou-se nesta sua última exposição como a personalidade mais completa e mais harmoniosa da nossa pintura atual6 .
8181
5. Em julho de 1933, Portina-ri realiza uma nova expo-sição individual no Palace Hotel. Apresenta cerca de cinquenta obras entre telas, desenhos e aquarelas.
Núcleo IIUm modelo constante
Retrato de Maria,c. 1931
Retrato de Maria,c. 1932 >
8383
84 85
Retrato de Maria, c. 1932
84 85
Retrato de Maria, 1932
< Retrato de Maria,c. 1934
86 87
86 87
Retrato de Maria, 1941
88 89
Mário Pedrosa
1934 [...]Portinari começou pagando tributo à sua terra, Brodósqui. Pri-
meiro contato com a natureza, os homens etc. Esse primitivismo sentimental marcou-lhe o início da obra. Seus primeiros quadros tratam das crianças de seu tempo, que espalhou pela vastidão da terra nova. Os temas são ingênuos: crianças atrás do palhaço, cir-co de cavalinhos, cemitério pequenino no fundo, parecendo horta. Nesta vastidão marrom salpicada de claro-escuro e acidentes de luz, ninguém distingue ninguém. As reminiscências infantis satis-feitas, o artista emigrou para a cidade, onde começou a ver, com maior curiosidade, gente trepada pelos morros suburbanos.
Então, a gente já se individualiza mais, o sensualismo se intu-mesce. Acentua-se o realismo, e a plasticidade das formas começa a surgir. A vida é mais trepidante, mas a concepção geral do mundo ainda é quase a mesma: é idealista, é puramente visual. O mundo material, é verdade, alargou-se, mas aquela superfície escura do-minante, a pastosidade satisfeita das tintas, o mesmo processo de claro-escuro, a transparência das cores ainda simbolizam a mesma contemplatividade sentimental e apriorística da era brodosquiana. [...]
Portinari quer chegar a apreender a densidade dos corpos e dos objetos. A tinta, a cor já não são apenas um meio de efeito exterior sensorial, à cata de estados de alma correspondentes, convencio-nais. Esses elementos têm suas exigências próprias, a que é preciso dar expressão. Para consegui-lo o seu traço complica-se, encurva-se como querendo apalpar, enlaçar a matéria. A fatura liberta-se das
8988 89
“Impressões de Portinari”, in: Diário da Noite, São Pau-lo, 7 dez. 1934.
convenções e delicadezas do quadro de cavalete. O modelado toma uma concretização brutal, e passa ao primeiro plano (Café, 15 – Ín-dia e mulata, 16 – O operário, 14 – Mestiço, 12 – Preto da enxada, 11).
O pintor procura a expressão concreta da matéria em todas as suas manifestações (matéria animada e inanimada). Visa a unida-de total da matéria e da composição. Unir os corpos e os objetos, o homem e a natureza, na mesma trama material. Descobrir a passa-gem de um corpo a outro, de um objeto a outro. Revelar a misterio-sa zona de atração entre os corpos e as coisas. [...]
Que ele não é, no fundo de sua personalidade, o vulgar retratis-ta a que o querem reduzir (e que o sucesso do seu métier nesse gê-nero poderia confirmar) demonstra-o esse desrespeito pelo quadro, característico de toda esta fase final. A composição não respeita a unidade abstrata, e desconhece que existe um “fundo de quadro”, que é preciso considerar. Mestiço (12) não passaria de um retrato, se Portinari quisesse restringir-se aos limites estéticos do cavalete, mas ele é solicitado agora, não pela figura de um mestiço, mas pela realidade social e material da vida do mestiço, representada pelos planos de fundo.
Suas figuras projetam-se brutalmente para fora, enquanto o fundo do quadro se enche de amplidão, perspectivas, horizontes, uma vida intensa de planos e cores, significando a natureza, na sua expressão concreta e social, a terra e o trabalho. É o que há de mais contrário à técnica e estética do retrato. [...]
Portinari está diante, talvez, dum impasse. Mas pode ser que seja também diante do futuro. Com o afresco e a pintura mural mo-derna, a pintura marcha no sentido do curso histórico, isto é, para sua reintegração na grande arte totalitária, hierarquizada pela ar-quitetura, da sociedade socialista em gestação. Portinari já sente a força desta atração. Como se deu com Rivera, com a escola me-xicana atual, aliás – a matéria social o espreita. A condição de sua genialidade está ali. [...] .
90
Em dezembro de 1934, Por-tinari realiza sua primeira exposição em São Paulo, sob o patrocínio de dona Renata Crespi, esposa do prefeito Fábio da Silva Pra-do. Nessa oportunidade, a tela Mestiço (1934) é ad-quirida pela Pinacoteca do Estado de São Paulo.
1942 [...]Portinari não chegou ao afresco por um simples incidente ex-
terior, como se poderia pensar. Não foi o conhecimento dos murais de Rivera ou de seus êmulos do México que provocou no pintor brasileiro a ideia ou a vontade de fazer também pintura mural. [...] Pela própria evolução interior de sua arte se pode ver que foi por assim dizer organicamente, à medida que os problemas de técnica e de estética iam amadurecendo nele, que Portinari chegou dian-te do problema do mural. Foi como problema estético interior que ele pela primeira vez o abordou. Depois das figuras monumentais isoladas e do segundo Café, a experiência com o afresco se impu-nha naturalmente, como o próximo passo. A possante figura em têmpera – a Colona – feita em 1935 com o Café, de que é um detalhe, mostra que o que Portinari queria era o plástico monumental. [...]
Recenseando as “indústrias brasileiras”, os afrescos do Minis-tério da Educação têm o que Mário de Andrade chamou de “fun-cionalidade nacional”. Mas nunca se prendem literalmente aos assuntos de cada painel nem visam a demonstrar coisa alguma. No fundo, Portinari nunca viu nesses afrescos apenas uma reali-dade a exprimir, mas antes talvez a interpretar. É o que se pode de-duzir, por exemplo, do antinaturalismo da iluminação de muitos desses murais, do critério puramente estrutural da distribuição de luz como em certos detalhes do grupo Algodão, em que as figuras do primeiro plano são iluminadas por um cisma simetricamente oposto e arbitrário. [...]
Nos afrescos de Portinari esteve sempre presente, ao lado e acima da realidade, a finalidade plástica. Ele foge sempre – mes-mo quando faz as maiores concessões ao elemento da realidade ou didático, ao qual chama de ilustração. No entanto, o seu realismo é profundo e orgânico; eco talvez de suas origens campesinas. [...] Portinari tende a buscar, e buscará sempre, constantemente, uma
91
“Portinari – De Brodósqui aos murais de Washington”, in: Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo: Perspectiva, 1981.
O artigo é redigido por Pe-drosa em Washington, em fevereiro de 1942, para o Boletim da União Paname-ricana.
síntese fugidia, dramática na sua precariedade, entre o plástico e o abstrato, entre o puro pictórico e a vida. Esse dualismo deu o drama à sua obra anterior. Dá à obra atual. E continuará a dar à sua obra futura. [...]
As paredes da Fundação Hispânica na Biblioteca do Congresso vieram dar a Portinari o ensejo para realizações ainda mais auda-ciosas em matéria de pintura mural. São painéis feitos em têmpe-ra, a seco, apenas cal e areia. O artista, fora de seu país, fora do am-biente natal familiar, sentiu-se menos enraizado, mais livre para entregar-se, sem nenhum empecilho, de nenhuma ordem, ao de-mônio de sua virtuosidade, de seus mais recônditos impulsos, de sua inspiração. Jamais, e isso se depreende logo à primeira vista, em nenhum outro momento de suas realizações murais, se sentiu ele mais livre, mais desimpedido, mais disposto a fazer as ginásti-cas técnicas mais perigosas e as deformações mais violentas. Estas foram composições executadas sob um profundo sentimento inte-rior de liberdade. [...]
Por processos afastados de qualquer receita, ele tende ao que se poderia chamar de desmitologização de seus ícones, de suas imagens, de suas paisagens, numa fuga às contingências externas, de meio e de tempo, nacionais ou não, e come os dedos de seus pre-tos, desconcretiza as formas de seus seres, intensifica a oposição violenta dos contrastes, multiplica os sinais geométricos numa ân-sia de abstração, junta sem passagem cores irreconciliáveis, destrói perspectivas e funde planos, mesmo com prejuízo do equilíbrio da composição ou da representação imediata, tudo em troca de um aceno de universalidade. Ele desgeografiza o seu mundo e os seus símbolos, não hesitando em perturbar a harmonia primária para, por uma sucessão de acordes dissonantes, atingir a uma harmonia mais transcendente e silenciosa. [...] .
9292
Núcleo IVOs projetos monumentais
I- Ministério da educação e saúde pública - Rio de Janeiro
Lenhadores, c. 1937
94 95
I- Ministério da educação e saúde pública - Rio de Janeiro
Mão, 1937
94 95
I- Ministério da educação e saúde pública - Rio de Janeiro
Pé, 1937
96
I- Ministério da educação e saúde pública - Rio de Janeiro II- Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso, Washington
Descobrimento, 1941
97
Descobrimento, 1941
II- Fundação Hispânica da Biblioteca do Congresso, Washington98
Descobrimento, 1941
III- Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha – BH99
Descobrimento, 1941
100 101 III- Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha – BH
Núcleo VExperiências com abstração
100 101
Abstrato, 1939
102 103
Abstrato, 1939
102 103
Retrato de Maria, c. 1932
104 PB
Bibliografia Selecionada
PB 105
Bibliografia selecionada
I – Livros
Amaral, Aracy, Arte para quê?: a preocu-pação social na arte brasileira 1930-1970. São Paulo: Nobel, 1984.
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Arantes, Otília Beatriz Fiori, Mário Pedro-sa: itinerário crítico. São Paulo: Scritta Edito-rial, 1991.
Avancini, José Augusto, Expressão plásti-ca e consciência nacional na crítica de Mário de Andrade. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1998.
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Navarra, Ruben, “Preparativos da ‘Missa’
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1948.
Pedrosa, Mário, “Impressões de Portinari”,
in: Diário da Noite, São Paulo, 7 dez. 1934.
“Portinari, paulista de Brodowski, vae
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in: Folha da Noite, São Paulo, 20 nov. 1934.
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108
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III - Catálogos
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São Paulo: Museu de Arte de São Paulo Assis
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Washington: U.S. Government Printing Of-
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Portinari desenhista. Rio de Janeiro: Mu-
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São Paulo: Museu de Arte Contemporânea da
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IV – Inéditos
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e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, 1983 (Disserta-
ção de Mestrado).
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trágica de Portinari na fase dos Retirantes. Rio de
Janeiro: Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1986
(Dissertação de Mestrado).
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de de São Paulo, 2006 (Tese de Doutoramento).
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nos trópicos: Portinari e o mecenato Capanema.
Florianópolis: Centro de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Santa Ca-
tarina, 2003 (Tese de Doutoramento).
109
English version
110
I Da formação acadêmica ao antinaturalismo
Portinari ocupa um lugar à parte no
meio artístico brasileiro. Dotado de uma es-
quisita personalidade, as suas próprias incer-
tezas refletem os rasgos de um temperamen-
to rebelde, tentando descortinar horizontes
mais largos. [...] A sua maneira nervosa, su-
bordinada muita vez a traços largos, vigo-
rosos, constituiu algo de novo para o meio
onde cada pintor faz mais de uma uniformi-
dade lastimável1.
As palavras com as quais o Jornal do Brasil
saúda a participação de Cândido Portinari no
iii Salão da Primavera (maio de 1925) apanham,
de maneira certeira, os aspectos principais de
um dos retratos apresentados na mostra, em que
o jovem artista lança mão simultaneamente de
aspectos tradicionais do gênero e de algumas
novidades. Se o Retrato de Mario Tullio (1925)
responde à representação tradicional do artista
captado no ato de pintar, há nele alguns traços
novos: o uso de pinceladas fortes e, sobretudo,
a atenção dedicada à definição das feições do
rosto, no qual é nítida a vontade de Portinari de
fornecer um flagrante psicológico do modelo.
A avaliação do Jornal do Brasil não é, con-
tudo, partilhada pela crítica carioca como um
todo. A participação do artista na xxxi Exposi-
ção Geral de Belas-Artes (agosto de 1924), ha-
via gerado visões diferenciadas. Os sete retratos,
dentre os quais os de Manoel Santiago (1923),
Roberto Rodrigues (1924) e Antônio Grellet
(1924), são considerados pelo Rio-Jornal “distan-
ciados da perfeição relativa”. Ao mesmo tempo
em que elogia o “colorido limpo e vibrante”, o
jornal não deixa de apontar um “defeito” a ser
corrigido: “o pouco caráter” que o artista “im-
prime aos seus modelos”2. Bem outro é o teor
da crítica de Galabert de Simas, que destaca os
aspectos originais de uma linguagem ainda em
gestação:
Equilíbrio, clareza, intuição e elegância
são os melhores elementos com que Portina-
ri já se faz admirar na originalidade dos seus
trabalhos.
Na medida e no senso dos seus processos
corre uma centelha de talento que lhe marca
um lugar próprio entre as maiores esperanças
da moderna pintura brasileira3.
Ao participar da xxxiii Exposição Geral de
Belas-Artes (agosto de 1926) com dois retratos,
Portinari chama a atenção do professor Carlos
Flexa Ribeiro, que destaca as qualidades fun-
damentais de seu estilo: “elegância do dese-
nho” e “romantismo de outras eras”. Portinari
afigura-se ao crítico como “um jovem que ficou
à margem da evolução pictural”, como “um tra-
dicionalista”, cuja fatura “recebeu o influxo de
certas modalidades da pintura moderna, onde
111
também aquele sentimento predomina”. É por
isso que Ignacio Zuloaga, “mestre que sempre
se conservou estranho às correntes que revolu-
cionam a arte desde o Impressionismo”, con-
figura-se como parâmetro para um pintor que
demonstra ser capaz de assimilar com facilidade
“as expressões dominantes” de certos artistas4.
O Retrato de Olegário Mariano (1928), com
o qual Portinari ganha o Prêmio de Viagem da
xxxv Exposição Geral de Belas-Artes (agosto de
1928), desperta avaliações dicotômicas. Enquan-
to Celso Kelly o considera “um modelo de ele-
gância e finura”, destacando “a expressão bem
sentida de espiritualidade” da cabeça, Manuel
Bandeira, mesmo elogiando a técnica “larga e
incisiva” do retratista, não hesita em falar em
“concessões ao espírito dominante na Escola”,
que teriam resultado no prêmio5.
Essas avaliações tão díspares de um estilo
em formação têm sua razão de ser, não poden-
do ser atribuídas simplesmente a idiossincrasias
pessoais deste ou daquele crítico. Portinari, que
tinha no retrato o vetor principal de sua produ-
ção, era um artista de orientação eclética, que
ora dialogava com os exemplos clássicos do gê-
nero, ora fazia algumas incursões por experiên-
cias mais modernas. O Retrato de Edith Aguiar
(1924, f. 2) parece ser fruto do diálogo com Je-
an-Auguste-Dominique Ingres não só pelo de-
senho incisivo, mas igualmente pela primazia
conferida à forma em detrimento da captação da
psicologia do modelo. Retrato de mulher (1927,
f. 3) aponta numa direção contrária. Lançando
mão de uma pincelada larga e determinada,
Portinari constrói um rosto expressivo, no qual
o vermelho dos lábios forma um contraste har-
monioso com o preto dos cabelos e dos olhos.
Ao tom claro do rosto corresponde o ocre do
casaco vestido pela jovem, tratado como uma
grande massa cromática.
O conjunto de desenhos e quadros dedi-
cados a Olegário Mariano entre 1925 e 1929
traz igualmente a marca desse duplo registro.
Se, no desenho datado de 1925 (f. 4), o poeta
estava sob o signo de Ingres, em sua represen-
tação quase de corpo inteiro (1926, f. 5), os mo-
delos são outros: os retratos de Théodore Duret
e Antonin Proust, realizados por Édouard Ma-
net em 1868 e 1880, respectivamente, e os r Ja-
mes Whistler, John Singer Sargent e Giovanni
Boldini6. Enquanto no desenho o modelo ga-
nha um aspecto intemporal, na tela de 1926 o
centro de interesse está numa visão altamente
contemporânea, haja vista o destaque dado ao
traje do poeta e a seu penteado. Intemporais
também e marcados por uma concepção sinté-
tica do rosto do modelo, são as representações
dedicadas a Olegário Mariano em 1926, 1927 e
1929. O desenho de 1926 parece servir de mol-
de aos óleos de 1927 e 1929, nos quais o poeta é
captado com uma pincelada mais enxuta, em-
bora não isenta de certa densidade matérica,
como no caso da obra que integra o acervo da
Academia Brasileira de Letras (f. 6).
112
Comparado com essas representações sin-
téticas e atentas a uma definição psicológica
do modelo, o quadro com o qual Portinari ob-
tém o Prêmio de viagem é, sem dúvida, uma
solução de compromisso. O modelo não só é
idealizado, como há uma discrepância entre
o tratamento do rosto, baseado num jogo de
planos e luzes, e a caracterização sumária e
chapada do fardão, em consonância com a ra-
refação da pincelada do fundo, dominado por
tons amarelos e dourados. O caráter oficial do
quadro não reside apenas numa representação
que enfatiza o traje cerimonial, mas também
na presença do brasão da família do retratado:
a pernambucana Carneiro da Cunha.
Se bem que dominante, o retrato não é
o único gênero ao qual Portinari se dedica no
momento de sua formação na Escola Nacional
de Belas-Artes, na qual ingressa como aluno li-
vre em 1920, tendo como professor Lucílio de
Albuquerque. Aprovado no concurso para a
classe de pintura (1921), estuda com Rodolfo
Amoedo, Rodolfo Chambelland e João Batista
da Costa7. Estudos de figuras humanas, cenas
mitológicas, lembranças da cidade natal (Bai-
le na roça, 1924; Casinha de Brodowski, 1927),
paisagens, alguns nus e uma representação de
Santa Cecília (c. 1925) integram a produção
do Portinari estudante, claramente à procura
da definição de uma linguagem própria. Se os
códigos acadêmicos repontam em suas obras
pictóricas iniciais – Meu primeiro trabalho (c.
1920, f. 1) e Meu segundo trabalho (c. 1920) – e
em muitos estudos do corpo humano, trabalhos
como Baile na roça e algumas paisagens data-
das de 1927 dão mostras de que o jovem pintor
ensaiava outras possibilidades de linguagem. Os
traços mais soltos de Baile na roça, que evoca o
impressionismo em termos cromáticos e no as-
pecto casual conferido à cena, estão igualmente
presentes em obras como Praia de Ipanema, Pe-
dra da Gávea e Marinha, nas quais Portinari usa
pinceladas largas e incisivas, denotando a busca
de uma composição sintética, em sintonia com
alguns aspectos da pintura moderna.
A presença da paisagem na primeira pro-
dução portinariana não responde apenas a um
roteiro clássico de formação. Ela vem carregada
de uma intencionalidade precisa, uma vez que
o pintor estava interessado na definição de uma
arte nacional como consequência de uma rela-
ção empática com o próprio entorno. Em várias
entrevistas, o artista aborda a problemática da
paisagem, auspiciando o surgimento de “uma
escola de cores clara, vigorosa, vibrante, lumi-
nosa”8. A questão da paisagem tem um desdo-
bramento em alguns retratos (Retrato de Paulo
Gagarin, 1924; Retrato do pintor Roberto Rodri-
gues, 1926; Retrato de Celso Kelly, 1926; Retrato
de Jorge de Castro, 1929), nos quais Portinari co-
loca em prática os ensinamentos de Zuloaga, o
pintor mais apreciado por ele naquele momen-
to. É muito enfático a esse respeito numa entre-
vista concedida em 1926:
113
Tem a paisagem íntima relação com o
retrato, de que é elemento essencial. Zuloaga,
o grande pintor espanhol, o maior pincel do
mundo, reproduz, continuamente em suas te-
las de figura trechos regionais, onde faz viver a
alma da Espanha. Aqui, em que o sol é vibran-
te e as cores são de belíssima intensidade, o
fator paisagem seria primoroso em qualquer
retrato9.
È este artista que estava ensaiando configu-
rar uma linguagem própria, descrente de “esco-
las” e de “individualidades uniformes”, defensor
do classicismo “como uma gramática, para os
que querem bem escrever”, como “o elemento
de ordem, a norma constante para as revoluções
estéticas”10, que embarca em junho de 1929 para
a Europa. Leva em sua bagagem uma determi-
nação: não fazer da estadia na Europa o pretexto
para uma produção intensa e quase nada
meditada como têm feito alguns colegas...
[...] O que vou fazer é observar, pesquisar, ti-
rar da obra dos grandes artistas – do passado,
nos museus, ou do presente, nas galerias – os
elementos que melhor se prestem à afirmação
de uma personalidade. Procurarei encontrar
o caminho definitivo da minha arte fazendo
estudos e nunca quadros grandes, que estes
roubam ao artista um tempo precioso sem um
resultado duradouro e sem influência definiti-
va no futuro. Prefiro regressar da Europa sem
nenhuma bagagem volumosa, aparentando
ao julgamento alheio nada ter feito, mas com
um cabedal profundo de observações e pes-
quisas11.
A temporada europeia demonstra que
Portinari segue à risca o programa traçado no
Brasil. Embora radicado em Paris, decide não
frequentar a Académie Julian, como era de
praxe entre os estudantes da Escola Nacional
de Belas-Artes. Se as visitas ao Museu do Lou-
vre lhe permitem confirmar sua crença nos
“antigos”, é, porém, na National Gallery de
Londres que ocorre o encontro determinante
com Paolo Veronese. A visão da obra do ar-
tista veneziano desperta nele uma nova ideia
de pintura. Decide ser “um pintor de todos os
gêneros”, autor de “grandes telas, com muitas
figuras agrupadas em enormes composições,
com estruturas variadas”, e não apenas um
retratista12. Viagens pela França, Inglaterra,
Espanha e Itália são igualmente determinan-
tes para o jovem pintor, que não só confirma
o primeiro interesse por Sandro Botticelli e
Diego Velázquez, como descobre os exem-
plos de Giotto, Masaccio, Piero della Fran-
cesca, Luca Signorelli, Fra’ Angelico, Andrea
del Castagno, Michelangelo, Leonardo, El
Greco e Francisco de Goya. Esse contato, que
lhe permitirá constituir uma visualidade ba-
seada, em grande parte, nos valores táteis do
114
Renascimento italiano, leva-o a distanciar-se
de Zuloaga. Outros artistas modernos desper-
tam seu interesse: Amedeo Modigliani, Henri
Matisse, Pablo Picasso e, sobretudo, Felice
Carena, que “produziu a maior emoção de
toda a viagem”13.
Embora participe com um retrato e uma
natureza-morta da Exposition d’Art Brésilien
(Paris, 1930), sua produção pictórica é escassa.
Regressa ao Brasil com três naturezas-mortas,
dois nus, um autorretrato, um retrato e três
desenhos, dentre os quais Palaninho (1930, f.
8). A figura de um habitante de Brodósqui,
desenhada de maneira sintética e nervosa, na
qual Plínio Salgado detecta o “caboclo ítalo-
-bugre, ariano-etíope, cafuzo com sangue da
Lombardia, mameluco de todas as raças das
zonas rurais de S. Paulo” e, até mesmo, um
“retrato” do próprio Portinari, “um caboclo
de Brodósqui, da zona cafeeira de Ribeirão
Preto”14, está associada a um momento críti-
co da temporada parisiense. Palaninho é um
emblema não só da cidade natal, descoberta
à distância, mas igualmente do Brasil, desper-
tando no artista a determinação de “fazer a
minha terra”, “a minha gente”15.
Essa determinação será reafirmada na en-
trevista concedida a Plínio Salgado em 30 de
agosto de 1930. Nela, o pintor estabelece um
verdadeiro programa de ação, articulado em
volta de alguns eixos: concepção da arte como
um agente de transformação social e de cria-
ção de uma consciência nacional, simbolizada
pela figura de Almeida Jr.; tomada de posição
contra a arte estrangeira e o espírito excessiva-
mente crítico da nova geração de artistas e inte-
lectuais brasileiros; defesa do tema e repúdio da
“pintura ignorante”, preocupada tão somente
com qualidades estritamente plásticas. A ideia
de uma arte nacional alicerça-se não em gran-
des sínteses, mas na representação dos tipos re-
gionais, que seriam “humanos e universais”, por
terem “alma brasileira”.
Embora Paul Cézanne não seja citado entre
os artistas modernos que despertam o interesse
de Portinari, as três naturezas-mortas pintadas
em Paris, trazem a marca de um intenso diálo-
go com ele. Assim como no pintor francês16, as
naturezas-mortas de 1930 são, ao mesmo tempo,
construtivas e sintéticas. Caracterizadas quase
sempre por uma iluminação difusa, que se soma
à luz que emana da matéria pictórica, tais obras
podem ser consideradas exemplos evidentes do
encaminhamento de Portinari para a busca de
uma composição baseada na essencialidade e no
rigor geométrico.
Nu feminino (1929) e Nu (1930, f. 7), por
sua vez, parecem atestar seu diálogo com Ca-
rena, que, naquele momento, se distinguia por
uma composição sintética e volumétrica, ins-
pirada, em parte, no classicismo. A função que
este atribuía à luz – estruturar a figura e plasmar
a matéria cromática para conseguir um efeito
de tranquilidade e sobriedade – está presente
115
Lista de obras
116
117
Meu primeiro trabalho, c. 1920Óleo sobre tela Oil on canvasColeção particular Private collection
Retrato de Edith de Aguiar, 1924Carvão sobre papel cinza Charcoal on gray paperColeção Collection José Oswaldo de Paula Santos
Retrato de mulher, 1927Óleo sobre tela Oil on canvasColeção particular Private collection
Retrato de Olegário Mariano, 1925Grafite sobre papel Lead pencil on paperColeção Collection Alexandre de Medicis
Retrato do poeta Olegário Mariano, 1926Óleo sobre tela Oil on canvasColeção Collection James A. Lisboa
Retrato de Olegário Mariano, c. 1929Óleo sobre tela Oil on canvasColeção Collection Academia Brasileira de Letras
Nu, 1930Óleo sobre madeira Oil on woodColeção particular Private collection
Palaninho, 1930Grafite sobre papel Lead pencil on paperColeção particular Private collection
Retrato de Maria, 1931Óleo sobre tela Oil on canvasColeção particular Private collection Retrato de Maria, 1932Óleo sobre tela Oil on canvasColeção Collection Museu Nacional de Belas Artes / IBRAM / MinC
Retrato de Maria, c. 1932Óleo e nanquim pincel sobre tela Oil and India ink brush on canvasColeção particular Private collection
Retrato de Maria, c. 1934Óleo sobre tela Oil on canvasColeção Collection Anna Helena e Aluizio Rebello de Araujo
Retrato de Maria, c. 1934Têmpera sobre tela Tempera on canvasColeção Collection Ilde Maksoud
Retrato de Maria, c. 1941Óleo sobre tela Oil on canvasColeção Collection Bia Vidigal
Ronda infantil, 1932Óleo sobre tela Oil on canvasColeção particular Private collection
Crianças brincando, 1940Óleo sobre tela Oil on canvasColeção particular Private collection
Praça de Brodowski, 1939Óleo sobre tela Oil on canvasColeção Collection Museu Nacional de Belas Artes / IBRAM / MinC
Paisagem de Brodowski, 1940Óleo sobre tela Oil on canvasColeção Collection Gilberto Chateaubriand / MAM-RJ
Sapateiro, 1941Maquete para Sapateiro de Brodowski Small-scale sketch forGuache e grafite sobre cartão Gouache and lead pencil on cardboardColeção particular Private collection
Sapateiro de Brodowski, 1941
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Têmpera sobre tela Tempera on canvasColeção Collection Museus Castro Maya IBRAM / MinC
Estivador, 1933Nanquim pincel e grafite sobre papel India ink brush and lead pencil on paperColeção particular Private collection
Estivador, 1933Nanquim pincel e grafite sobre papel India ink brush and lead pencil on paperColeção Collection Antonio Gabriel de Paula Fonseca
Estivador, c. 1934Óleo sobre madeira Oil on woodColeção particular Private collection
Preto da enxada, 1934Estudo para a pintura Lavrador de caféStudy for the paintingNanquim pincel e nanquim bico-de-pena sobre papel India ink brush and India ink pen on paperColeção particular Private collection
Cabeça de mulato, 1934Crayon sobre papel Crayon on paperColeção particular Private collection
Colonos carregando café, c. 1935Óleo sobre tela Oil on canvasColeção Collection Michael Perlman Domingo no morro, 1935Óleo sobre tela Oil on canvasColeção particular Private collection
Mestiço, 1934Óleo sobre tela Oil on canvasColeção Collection Pinacoteca do Estado de São Paulo, aquisição Governo do Estado de São Paulo, 1935
Marias, 1936Óleo sobre tela Oil on canvasColeção particular Private collection
Retirantes, 1936Óleo sobre tela Oil on canvasColeção Collection Mário de Andrade Coleção de Artes Visuais do Instituto de Estudos Brasileiros USP
Mulher e crianças, 1940Óleo sobre tela Oil on canvasColeção Collection Orandi Momesso
Mulher e crianças, 1940 Óleo sobre tela Oil on canvasColeção particular Private collection
Mulher com crianças, 1940Óleo sobre tela Oil on canvasColeção particular Private collection As moças de Arcozelo, 1940Óleo sobre tela Oil on canvasColeção Collection Marcos Ribeiro Simon
Menino morto, 1944Estudo para o painel Criança mortaStudy for the panelÓleo sobre papel Oil on paperColeção particular Private collection
Criança morta, 1944Óleo sobre tela Oil on canvasColeção Collection MASP, Museu de Arte de São Paulo, Assis Chateaubriand
Lenhadores, c. 1937Estudo para a pintura mural Pau-brasilStudy for the mural paintingCarvão sobre papel Charcoal on paperColeção Collection Pinacoteca do Estado de São Paulo, aquisição Governo do Estado de São Paulo, 1978
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Mão, 1937Estudo para a pintura mural CanaStudy for the mural paintingCarvão sobre papel Charcoal on paperColeção CollectionFinanciadora de Estudos e Projetos
Pé, 1937Estudo para a pintura mural Cana Study for the mural paintingCarvão sobre papel Charcoal on paperColeção Collection Randolfo Rocha
Trabalhador, 1938Fragmento de desenho para transporte Cana Fragment of the cartoonCarvão sobre papel kraft Charcoal on kraft paperColeção Collection Randolfo Rocha
Cana, 1938Maquete para Cana Small-scale sketch forGuache e grafite sobre papel Gouache and lead pencil on paperColeção Collection Bradesco de Arte Brasileira
Garimpeiros, 1937Maquete para a pintura mural Garimpo Small-scale sketch for the mural paintingTêmpera sobre madeira aglomerada Tempera on chipboardColeção Collection MAC-USP
Garimpeiro, 1938Fragmento do desenho para transporte Garimpo Fragment of the cartoonCarvão sobre papel kraft Charcoal on kraft paperColeção Collection Museu de Arte Brasileira da FAAP
Fumo, 1938Maquete para a pintura mural Fumo Small-scale sketch for the mural paintingGuache e grafite sobre papel Gouache and lead pencil on paperColeção Collection Bradesco de Arte Brasileira
Trabalhador bebendo água, 1937Estudo para a pintura mural Fumo Study for the mural painting Carvão sobre papel Charcoal on paperColeção Collection Pinacoteca do Estado de São Paulo, aquisição Governo do Estado de São Paulo, 1978
Algodão, 1938Fragmento do desenho para transporte Algodão Fragment of the cartoonCarvão sobre papel kraft Charcoal on kraft paperColeção Collection Nadia e Olavo Setúbal Júnior
Capataz, 1938Fragmento do desenho para transporte Erva-mate Fragment of the cartoonCarvão sobre papel kraft Charcoal on kraft paperColeção Collection Museu de Arte Brasileira da FAAP
Erva-mate, 1938Estudo para a pintura mural Erva-mate Study for the mural paintingCrayon e carvão sobre papel vegetal Crayon and charcoal on tracing paperColeção Collection Max Perlingeiro
Capataz em cafezal, 1938Fragmento do desenho para transporte Café Fragment of the cartoonCarvão sobre papel kraft Charcoal on kraft paperColeção Collection Museu de Arte Brasileira da FAAP
MAM
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Museu de arte Moderna de são PauloDiretoria / ManageMent BoarDPresidente / PresidentMilú Villela
Vice-Presidente executiVo /executiVe Vice-PresidentAlfredo egydio setúbal
Vice-Presidente sênior / senior Vice-PresidentJosé Zaragoza
Vice-Presidente internAcionAl / internAtionAl Vice-PresidentMichel claude Julien etlin
diretor Jurídico / legAl directoreduardo salomão neto
diretor FinAnceiro / FinAnce directorAlfredo egydio setúbal
diretores AdMinistrAtiVos / AdMinistrAtiVe directorsclaudio galeazzisérgio ribeiro da costa Werlang
diretores / directorscesar giobbieduardo Brandãoorandi Momesso
suPerintendente executiVo / executiVe suPerintendentBertrando Molinari
curAdor / curAtor Felipe chaimovich
coordenAdor executiVo / executiVe coordinAtorAndrés i. Martín Hernández
Conselho / CounCilPresidente / PresidentAlcides tápias
Vice-Presidente do conselHo / Vice-President oF tHe councilcarmen Aparecida ruete de oliveira
conselHeiros / MeMBersAdolpho leirner Ana Maria lima de noronha Angela gutierrez Antonio Hermann dias de Azevedo Antonio Matias Benjamin steinbruchchella safra chieko Aoki daniel goldberg danilo Miranda denise Aguiar Alvarez edmundo safdié edo rocha Fabio c. BarbosaFernando Moreira salles geraldo carbone gilberto chateaubriandgraziela Matarazzo leonettigustavo Halbreich Henrique luzidel Arcuschin israel VainboimJoão carlos Figueiredo Ferraz João rossi cuppoloni José ermírio de Moraes neto José olympio da Veiga Pereira leo slezynger lily Marinholuciano da silva Amaroluiz Antonio Viana Manoel Felix cintra neto Marcos Arbaitman Maria da glória ribas Baumgart Mauro sallesMichael edgard Perlmanotávio Maluf Paula P. Paoliello de MedeirosPaulo setúbalPedro PivaPeter cohnPlínio salles souto roberto B. Pereira de Almeida roberto Mesquitaroberto teixeira da costarolf gustavo r. Baumgartsimone schapirathiago Varejão FontouraVera lúcia dos santos diniz
conselHo internAcionAl / internAtionAl councilAlexis rovzar
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