cesar eugenio martins

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA CESAR EUGÊNIO MACEDO DE ALMEIDA MARTINS A DINÂMICA DO RECRUTAMENTO MILITAR NA PROVÍNCIA DE MINAS GERAIS: MOBILIZAÇÃO, CONFLITO E RESISTÊNCIA DURANTE A GUERRA DO PARAGUAI (1865-1870) Juiz de Fora 2009

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

    INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA

    CESAR EUGNIO MACEDO DE ALMEIDA MARTINS

    A DINMICA DO RECRUTAMENTO MILITAR NA PROVNCIA DE MINAS

    GERAIS: MOBILIZAO, CONFLITO E RESISTNCIA DURANTE A

    GUERRA DO PARAGUAI (1865-1870)

    Juiz de Fora2009

  • CESAR EUGNIO MACEDO DE ALMEIDA MARTINS

    A DINMICA DO RECRUTAMENTO MILITAR NA PROVNCIA DE MINAS

    GERAIS: MOBILIZAO, CONFLITO E RESISTNCIA DURANTE A

    GUERRA DO PARAGUAI (1865-1870)

    Dissertao apresentada ao Programa de ps-graduao em Histria da Universidade Federal de Juiz de Fora como requisito parcial obteno do ttulo de Mestre em Histria.

    Orientadora: Silvana Mota Barbosa

    Juiz de Fora2009

  • BANCA EXAMINADORA

    Aprovada em

    ________________________________________________ Presidente: Prof. Dr. Vitor Izecksohn

    ________________________________________________Titular: Prof. Dr. Alexandre Mansur

    ________________________________________________Orientador: Profa. Dra. Silvana Mota Barbosa

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a Deus por tudo que tenho conseguido na vida.

    Agradeo aos meus pais Paulo Cezar e Maria Jos, cujos exemplos de cidadania,

    perseverana, amor e f guiaram-me pelos caminhos da vida. Ao meu irmo Paulo

    Gustavo, amigo e companheiro que sempre me incentivou a continuar a escalada pela

    montanha do conhecimento, mesmo quando pensei em desistir. Valeu Paulo!

    Meu muito obrigado minha namorada sis, colega de curso, amiga e

    companheira, pelo incentivo, pelo apoio, e por sua pacincia nos momentos mais

    difceis dessa trajetria.

    minha Tia Rosina, minha madrinha, cujo corao de uma generosidade sem

    igual. Foi ela que me acolheu quando tive que frequentar o Mestrado em Juiz de Fora.

    Aos meus primos Marcos Henrique e Joo Luiz, que cederam parte dos seus espaos

    para que eu pudesse me acomodar em sua casa.

    professora Silvana Mota Barbosa, que com inteligncia e senso crtico

    orientou-me durante todo o curso e sobretudo na elaborao da minha dissertao e sem

    a ajuda dela tudo isso no seria possvel.

    Ao professor Alexandre Mansur, cuja competncia, talento e dedicao

    Histria influenciaram- me durante todo o mestrado, alm de suas justas e

    enriquecedoras crticas.

    Ao professor Vitor Izecksohn por ter colaborado muitssimo no plano que

    elaborei para a minha dissertao. Tambm agradeo-lhe pelo incentivo, pela sua

    generosidade e pelas orientaes que dele recebi.

    Aos funcionrios do Programa de Ps-Graduao do Departamento de Histria

    da UFJF, incansveis no apoio e na difcil tarefa de atender com presteza e eficincia s

    minhas reivindicaes.

    Universidade Federal de Juiz de Fora pelo apoio materializado pela concesso

    de uma bolsa de estudo, fundamental para a consecuo do meu objetivo.

    todos que de alguma forma me apoiaram e que permitiu que esse trabalho

    fosse feito, meus sinceros agradecimentos.

  • A pior desgraa em todo universo ser recruta no Brasil. uma punio. Um soldado comum considerado um escravo miservel.

    General Cunha Mattos

  • SUMRIO

    1 INTRODUO..................................................................................................10

    2 A GUERRA DO PARAGUAI NAS MINAS GERAIS.......................................18

    2.1 Minas Gerais e a Guerra.................................................................................18

    2.2 Minas do sculo XIX: economia e demografia e seus reflexos na guerra......33

    3 O RECRUTAMENTO MILITAR: DINMICA E FUNCIONAMENTO...........43

    3.1 O Recrutamento militar brasileiro no Brasil Imperial....................................43

    3.2 Tenses e Contradies do Recrutamento Militar Sob as Condies de Guerra...................................................................................................................53

    4 OS MINEIROS E AS ARMAS: A REPERCUO DO RECRUTAMENTO NA PROVNCIA DE MINAS GERAIS.......................................................................71

    4.1 A guerra e as modalidades de incorporao militar....................................... 71

    4.2 As Formas de Resistncia e Evaso ao Recrutamento na Provncia de Minas....................................................................................................................86

    4.3 Comparao Interprovincial da Contribuio ao Esforo de Guerra............100

    CONCLUSO...................................................................................................103

    FONTES............................................................................................................108

    BIBLIOGRAFIA..............................................................................................111

  • LISTA DE TABELAS E FIGURAS

    QUADRO 1 Estrutura hierrquica de emisso de ordens para o recrutamento militar durante a Guerra do Paraguai................................................................... 22

    TABELA 1 Populao por condio, regies mineiras e Provncia de Minas Gerais(1831-1872)................................................................................................34

    TABELA 2 Proporo de pedidos de iseno durante os anos de guerra.............97

    GRFICO 1 Contribuio ao Esforo de Guerra Total, por Provncias, 1865-1870 (Nmero de Habitantes por Soldado)........................................................101

  • RESUMO

    A historiografia relacionada s questes militares vem ganhando novos adeptos

    preocupados em fazer histria desprendendo-se da perspectiva positivista,

    tradicionalista e ufanista. Neste sentido, observa-se que esse atual enfoque no estudo da

    instituio militar e de seus elementos relacionados pode proporcionar novos caminhos

    metodolgicos e diferentes abordagens histricas que levem a uma nova compreenso

    da histria social e cultural do Brasil. Assim, pretendemos discutir sobre o recrutamento

    militar na provncia de Minas Gerais, destacando a mobilizao, a dinmica, os

    possveis conflitos e a resistncia que por l ocorreram durante o perodo entre 1865 e

    1870, ou seja, durante a Guerra do Paraguai. Daremos nfase anlise da representao

    e da influncia do recrutamento militar durante o conflito do Brasil contra o Paraguai, e

    a relao desta incorporao compulsria de homens nas organizaes militares diante

    da conjuntura social, poltica e econmica da provncia mineira, atentando-nos s suas

    provveis peculiaridades.

    Palavra-chave: Recrutamento Militar. Guerra do ParaguaI. Brasil Imprio.

  • ABSTRACT

    The study of history related with military subjects is getting new adepts worried in

    making history, going away from this positive, traditional and nationalistic

    perspective. Ins this sense, it is observed that a present focus on the study of the army

    formation and its elements can provide new approaches and different historical ways,

    which take to a new comprehension of the social and cultural history of Brazil. We

    intend to discuss about the military recruitment in the province of Minas Gerais

    emphasizing the mobilization, the dynamic, the possible conflicts and the resistance that

    occurred in Minas Gerais within 1865 and 1870 (Paraguay War). We want to underline

    the result of the military recruitment during the battle of Brazil against Paraguay and

    understand how it influenced in the political, social and economical structure of the

    Minas Gerais province, drawing our attention to possible peculiarities.

    Key-words: Military recruitment. Paraguay War. Brazil Empire.

  • 1 INTROUOA perseguio aqui por parte da policia continua em maior escalla. A 14 do corrente mez estando Barnab Alves na porta do 2 substituto do juiz municipal, em exerccio, e sendo ali provocado por um inspector que nunca seria Liberal: s por isso foi ali mesmo espancado, e nem auto corpo de delicto se fez apezar de ficar gravemente ferido, e o sangue da victima ter salpinado a porta do juiz municipal. H bem poucos dias um outro inspector irmo do 2 supplente do delegado em exerccio foi prender a um menor de desesete annos, para recruta e como este procurasse evadir-se da escolta cercaro-no e depois de preso espancaro-no, e assim o conduriro para a cada..

    Villa de S. Joo Baptista 28 de Maio de 18671.

    A violncia e os atropelos das leis marcaram os anos do Imprio do Brasil na

    campanha contra o Paraguai. O que vimos para a Villa de So Joo Baptista foi prtica

    recorrente naqueles tempos beligerantes. Mesmo sabendo das punies, a tentativa de

    evaso, sem sucesso ou com sucesso, ilustrou bem como os indivduos viam o esforo

    do preenchimento das fileiras militares. De fato, o recrutamento militar no era bem

    visto pelos indivduos, principalmente os mineiros.

    Neste sentido, esta dissertao tem por finalidade tratar do recrutamento feito em

    Minas Gerais ao longo da guerra, atentando-nos para sua dinmica e seu

    funcionamento. Sem dvida, a Guerra do Paraguai foi o mais importante conflito no

    qual o Brasil esteve envolvido no sculo XIX. Tendo incio em finais de 1864 e

    terminado em 1870, essa guerra causou danos irreversveis para as naes que nela se

    envolveram. Antes mesmo dessa guerra, j existiam srios atritos na regio do Prata,

    disputas territoriais e polticas que se desenrolavam desde o tempo das misses

    colonizadoras de Portugal e Espanha. A regio de fronteira entre Paraguai, Uruguai,

    Argentina e Brasil encontrava-se constantemente em conflito desde o perodo em que

    espanhis e portugueses exploravam estas reas, ocorrendo disputa de terras, o que,

    entre outros motivos, gerou a guerra. O confronto armado promoveu a mobilizao de

    1 Constitucional. Notao: JM-1239984. Edio: 44 . Data: 28/06/1867. Localidade: OURO PRETO. Filme: 055. APM.

  • recursos em larga escala, o que provocou a reestruturao do exrcito, que, diante

    dessa situao, organizou-se para o pesado esforo da campanha. Sendo assim, muitos

    estudos apontam essa guerra como a mais destrutiva e sanguinolenta das que assolaram

    a Amrica do Sul no sculo XIX, consumindo centenas de milhares de vidas2.

    A Guerra do Paraguai foi registrada por fotgrafos, por dirios de pessoas que

    viviam no front de guerra, por soldados, por estrangeiros que se aventuraram no campo

    de batalha, gravando em suas anotaes e em seu imaginrio os momentos que

    marcaram aquele episdio, descrevendo verses partindo de suas prprias impresses

    do conflito. Alm disso, os jornais da poca, que circulavam nos pases participantes,

    geraram fontes de informaes fundamentais para uma melhor compreenso da guerra,

    sendo fontes essenciais no trabalho histrico. Diversos jornais e panfletos circulavam

    nos pases envolvidos, bem como nos campos de guerra.

    As primeiras obras a respeito do conflito foram elaboradas logo depois do fim da

    guerra. Essa primeira historiografia, em sua maioria, foi elaborada por militares que l

    estiveram ou por viajantes que se aventuravam pelos territrios beligerantes na busca

    por informaes do episdio. Marcada pelo sentimento ufanista e de misso

    cumprida, essa perspectiva histrica moldou o imaginrio da guerra justificando o

    esforo feito pelo governo brasileiro para vencer o conflito.

    Esse evento foi um assunto muito abordado pela historiografia militar

    tradicional3, principalmente na historiografia militar do incio do sculo XX que, ao

    escrever e reescrever a participao do Brasil na guerra, moldou um esprito patritico

    e de nao fundamental na construo da imagem da Repblica Brasileira e do

    Exrcito Brasileiro como instituio forte e organizada. Seguindo esta viso, muitos

    autores idealizaram a guerra, seu desenrolar e suas consequncias. Heris e mitos foram

    forjados e elevados ao Altar da Ptria com lugar privilegiado no Panteo Nacional.

    Alguns autores, entre o final do sculo XIX e o inicio do sculo XX, preocupados com

    o projeto de construo do Estado brasileiro e com forte sentimento ufanista,

    caracterstico dos republicanos4, deram cunho folhetinesco s aes passadas em terras 2 BETHELL, Leslie. A Guerra do Paraguai. Histria e Historiografia. In: MARQUES, Maria Eduarda Castro Magalhes (org.). Guerra do Paraguai-130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume-Dumar, 1995. p. 12.3 A historiografia militar tradicional brasileira representada em sua maioria por militares, como o General Paulo Queiroz Duarte, Dionsio Cerqueira, Tasso Fragoso, A dEscragnolle Taunay.4 Os republicanos dos primeiros anos da Repblica, muitas vezes inseridos nos ideais positivistas, se caracterizaram, bem como a produo intelectual que produziram, pela construo de batalhas simblicas; o mito de origem, a construo do heri romntico e da batalha espetacular viva no imaginrio coletivo, formadas e afirmadas com o propsito de tornar a Repblica (o novo regime) no s aceito pela populao como marcado pela mudana revolucionria, como aponta Jos Murilo de Carvalho em A

  • paraguaias. Para eles, a origem da guerra estaria condicionada ambio desmedida de

    Francisco Solano Lpez e seu carter ditatorial e autoritrio.

    No fim da dcada de 1920, incio da dcada de 1930, quando os cursos de

    Histria se estabeleceram no pas, muitos artigos e livros foram publicados sobre o

    tema. Nessas abordagens prevaleceu o julgamento de Solano Lpez como o grande

    culpado do conflito. Para tanto, esta perspectiva utilizou-se de dados militares e

    diplomticos, referendando fatos e acontecimentos numa sucesso de operaes e

    manobras, formulando uma narrativa geral da guerra. Assim sendo, essa historiografia,

    tido como tradicional, demonstrou que a origem do conflito se deu pela ambio

    desmedida do Chefe de Estado guarani5.

    No sculo XX, nos anos 1960, surgiu uma corrente revisionista sobre a Histria

    da Guerra do Paraguai. Autores como Len Pomer, da Argentina (La Guerra Del

    Paragua! Gran Negcio!) e o jornalista Julio Jos Chiavenato do Brasil (Genocdio

    Americano: a verdadeira histria da Guerra do Paraguai), passaram a defender a tese

    de que o Paraguai foi massacrado pelo Brasil, Argentina e Uruguai que se uniram

    devido influncia do governo britnico, que temia a independncia econmica do

    Paraguai. Neste sentido, tal historiografia caracterizou-se por apresentar uma viso do

    Paraguai como um pas desenvolvido, considerando que a guerra foi um instrumento

    para romper com seu desenvolvimento econmico e poltico. O Paraguai foi visto como

    vtima da agresso imperialista e capitalista, numa viso que dava a entender que a

    Inglaterra teria sido o quarto Aliado na campanha de destruio do Estado paraguaio.

    A viso revisionista teve seu auge na dcada de 1970, caracterizada por motivaes

    ideolgicas, deixando de lado as questes documentais, na tentativa de construir um

    mito revolucionrio e libertrio com a figura de Solano Lpez para a Amrica do Sul.

    Dessa forma, a Trplice Aliana entendida como mecanismo da ao imperialista

    inglesa contra o autnomo e independente Paraguai6.

    formao das Almas: O imaginrio da Repblica no Brasil. So Paulo, Companhia das Letras, 1990.

    5 A historiografia tradicional brasileira, representada em sua maioria por militares, como o General Paulo Queiroz Duarte, Dionsio Cerqueira, Tasso Fragoso, A dEscragnolle Taunay, apresentam em suas clssicas obras: Os Voluntrios da Ptria na Guerra do Paraguai, Reminiscncias da Campanha do Paraguai, Histria da Guerra da Trplice Aliana e o Paraguai e A Retirada da Laguna, respectivamente, a idia sistematizada e simplificada de que este conflito internacional foi ocasionado pelas pretenses tirnicas do presidente paraguaio, Solano Lpez, em conquistar toda regio platina e ento tornar-se o Napoleo do Prata.6 CERQUEIRA, Dionsio. Reminiscncias da Campanha do Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exrcito, 1980, e CHIVENATTO, Jlio Jos. Genocdio Americano: a verdadeira histria da Guerra do Paraguai. So Paulo: Editora Brasiliense, 1979.

  • Contudo, hoje j possvel afirmar que o Paraguai era um pas pobre do ponto

    de vista econmico7 e que a historiografia do anos 1960-1970, influenciada pelo

    revisionismo histrico, construiu verses julgando o imperialismo ingls e a covardia

    da Trplice Aliana como as causas da tragdia paraguaia, revisionismo este

    influenciado pelo momento histrico das ditaduras militares na Amrica do Sul. Dessa

    maneira, os trabalhos revelaram a luta entre duas estratgias de desenvolvimento: a

    paraguaia (autnoma, sem dependncia do capital externo) e a brasileira e argentina

    (dependente dos recursos financeiros e tecnolgicos estrangeiros). Essa historiografia

    colaborou com o projeto poltico que tinha por objetivo a construo de uma Amrica

    Latina forte e independente dentro do contexto dos regimes militares8.

    Todavia, outras interpretaes foram atribudas ao conflito, ampliando para alm

    de uma viso estrutural e econmica as causas da guerra. Sua reescrita possibilitou uma

    vasta coleo de interpretaes sobre a guerra. Os estudos publicados no fim dos anos

    1980 e ao longo dos anos 1990 inserem uma crtica ao revisionismo dos anos 1960 e

    1970, enfatizando nas pesquisas a questo das tenses territoriais de fronteira, bem

    como a estruturao dos Estados Nacionais envolvidos no conflito9.

    De acordo com a recente historiografia10, as origens do conflito na regio do

    Prata remontam s guerras entre espanhis e portugueses no sculo XVIII pelo domnio

    de terras, relacionando-se com os diferentes processos de formao nacional por que

    passavam os pases envolvidos e tambm ligados aos interesses geopolticos e

    econmicos da regio platina. Seguindo esta anlise, as questes que envolveram a

    guerra podem ser entendidas como consequencia de conflitos internos e jogo de

    interesses entre os pases da Bacia do Prata. 7 Os estudos de Salles, Doratioto e Izecksohn apontam que o Paraguai no atingiu a condio de pas desenvolvido.8 O mesmo revisionismo histrico apresentado por Florestan Fernandes em A Revoluo Burguesa no Brasil: ensaio de interpretao sociolgica. Rio de Janeiro. Zahar, 1974, por Otavio Ianni em Estado e capitalismo. Estrutura social e industrializao no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1963, e Fernando Henrique Cardoso em Dependncia e desenvolvimento na Amrica Latina: ensaio de interpretao sociolgica, 5 ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1979, estudiosos que construram o pensamento da autonomia nacional e de dependncia internacional. 9 SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: escravido e cidadania na formao do Exrcito. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990; SCHULZ, John. O exrcito na poltica. Origens da interveno militar, 1850-1894. So Paulo, Editora da Universidade de So Paulo, 1994; SILVEIRA, Mauro Csar. A batalha de papel. A Guerra do Paraguai atravs da caricatura. Porto Alegre: L&PM, 1996; MARQUES, Maria Eduarda Castro Magalhes (org). A Guerra do Paraguai 130 anos depois. Rio de Janeiro: Relume- Dumar,1995 e MENEZES, Alfredo da Mota. Guerra do Paraguai: como construmos o conflito. So Paulo: Contexto; Cuiab, MT: Editora da Universidade Federal de Mato Grosso, 1998.10 DORATIOTO, Francisco F. Monteoliva. Maldita Guerra: nova histria da Guerra do Paraguai. So Paulo: Companhia das Letras, 2002; SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: memria e imagens. Rio de Janeiro: Edies Biblioteca Nacional, 2003 e IZECKSON, Vitor. O Cerne da Discrdia: a Guerra do Paraguai e o ncleo profissional do Exrcito. Rio de Janeiro: E-papers, 2002.

  • Com o processo de independncia dos pases que faziam fronteira no Prata, os

    limites territoriais foram estipulados por meio de acordos, o que gerou a instabilidade na

    regio de fronteira. Com as fronteiras abertas os pases envolvidos buscaram seus

    interesses por meio de manobras diplomticas e aes armadas. Para tanto, a presena

    inglesa foi evidente, uma vez que os ingleses estavam dispostos a fazer dinheiro com a

    guerra. Porm, contrariando a idia revisionista do imperialismo ingls, a ajuda que a

    Inglaterra deu aos aliados, mais que ao Paraguai, se deve por uma lgica de mercado, ou

    seja, investir no provvel vencedor da guerra era garantia de remunerao sem maiores

    riscos.

    A nova historiografia militar acerca do conflito critica as ponderaes da

    historiografia militar revisionista que insistiu em afirmar que o exrcito paraguaio era

    disciplinado, o que de fato nunca existiu. O exrcito do Paraguai no possua uma

    oficialidade compatvel com nmero de soldados que, alm do mais, combateram

    utilizando armamentos remanescentes do perodo colonial (ineficazes para os embates

    contra armas mais sofisticadas como os encouraados brasileiros)11. Ou seja,

    contrariando a idia do mito do Paraguai-Maior, de uma fantasiosa imagem

    construda pelo revisionismo histrico, o pas guarani no era um pas avanado,

    independente do capital estrangeiro, nem mesmo industrializado.

    Nem por isso a guerra deixou de ser tarefa fcil para os brasileiros. Mesmo a

    recente historiografia revelando o potencial blico e mensurando de forma mais precisa

    o grau de ameaa dos soldados de Solano Lpez, fazer a guerra contra os paraguaios

    teve seu preo, na verdade um alto preo. A guerra como muitos pensam no se fez

    apenas nas trincheiras e nas zonas de combates. Ela tambm se deu dentro dos pases

    que participaram do conflito12. A corrida para a formao dos corpos de soldados gerou

    uma insatisfao desmedida, exacerbada na medida em que as necessidades da

    campanha impunham prticas violentas e ilegais nas localidades na ao recrutadora.

    Era necessrio alimentar com homens a mquina de guerra. Como entender a guerra

    sem saber quem eram os soldados? Como eles eram recrutados? Todos eles queriam

    lutar? Como funcionava a ao recrutadora?

    A historiografia militar destinada ao estudo dos exrcitos e das guerras quase

    sempre esteve atrelada a uma Histria Monumental preocupada em criar mitos, heris

    e mrtires. Atualmente, a historiografia relacionada s questes militares vem ganhando 11 DORATIOTO, Francisco F. Monteoliva. Maldita Guerra: nova histria da Guerra do Paraguai. Op. Cit. p. 93.12 MARCO, Miguel Angel de. La guerra del Paraguay. 1 Ed. Buenos Aires. Planeta, 2003.

  • novos adeptos preocupados em fazer histria, desprendendo-se dessa perspectiva

    positivista e ufanista. Nesse sentido, observa-se que o estudo da instituio militar e do

    recrutamento pode nos proporcionar novos caminhos metodolgicos e novas

    abordagens histricas no intuito de compreender a histria social e cultural do Brasil.

    A guerra alterou a dinmica das estruturas de poder, marcando o ponto de

    inflexo do desgaste das instituies imperiais e, por fim, a ruptura do status quo

    vigente. Por ter essa importncia na historiografia brasileira, muitos autores enfatizam,

    principalmente, as batalhas militares travadas no teatro de guerra, alm de estudos

    polticos, econmicos, culturais e sociais, relegando a um plano secundrio o

    alistamento militar e suas implicaes nas diversas esferas sociais.

    As consequncias da guerra foram lastimveis; metade do territrio paraguaio

    foi tomada pelos vencedores. Segundo a perspectiva revisionista, a populao foi

    reduzida a 30% do total de habitantes. Desses 70% de mortos ou desaparecidos, 99%

    eram pessoas do sexo masculino13. Outros autores afirmam que a populao caiu de 1,5

    milho de habitantes para 500 mil, sendo a maioria composta de velhos, crianas,

    mulheres e invlidos. A derrota do Paraguai no s dizimou sua populao, como

    tambm arruinou sua economia, havendo a desarticulao das tarifas alfandegrias, a

    destruio de fornos de fundio, e o fechamento ao livre comrcio. Com isso, o

    Paraguai foi falncia, sendo derrotado e invadido, transformando-se num dos pases

    mais pobres e subdesenvolvidos da Amrica do Sul, entregue oligarquia latifundiria.

    Para o Brasil, as consequncias da guerra marcaram definitivamente

    nossa histria. Apesar da superioridade militar, econmica e demogrfica dos pases

    aliados, a guerra estendeu-se por quase 5 anos (1865-1870). A guerra do Paraguai exps

    a fragilidade militar brasileira, sendo, porm, o Imprio capaz de superar essa

    fragilidade, mobilizando todos os seus recursos em direo ao front de guerra. O

    confronto, que seria breve (de acordo com a logstica prvia dos oficiais), arrastou-se

    at 1870, fazendo nascer uma nova instituio no cenrio brasileiro: o exrcito. Com o

    desenrolar das batalhas, os militares voltaram para casa com uma nova

    representatividade frente sociedade monarquista: a profisso das armas tornava-se

    uma forma de ascenso social at ento impensvel na poltica imperial14. Alm disto, a

    13 DORATIOTO, Francisco F. Monteoliva. Maldita Guerra: nova histria da Guerra do Paraguai. Op. Cit. p. 456.14 IZECKSON, Vitor. O Cerne da Discrdia: a Guerra do Paraguai e o ncleo profissional do Exrcito. Op. Cit. pp. 147-159.

  • experincia da guerra favoreceu a formao de um exrcito regular e a ampliao do

    territrio brasileiro, pois foram anexadas reas na fronteira de Mato Grosso.

    Segundo Francisco Doratioto, as consequncias da guerra poderiam ter sido

    outras, caso Solano Lpez no tivesse se precipitado ao tomar a deciso de invadir Mato

    Grosso, no momento em que seu governo comprara armamentos na Europa, e prestes a

    serem entregues foram barrados pela esquadra brasileira15. Diante das conjunturas

    apresentadas, podemos concluir que o ataque paraguaio ao territrio brasileiro

    demonstrou o despreparo das foras imperiais de defesa na fronteira mato-grossense e o

    erro logstico de Solano Lpez, que desejava fazer uma guerra- relmpago. Contudo,

    a reao do Imprio do Brasil foi rpida. Mesmo com muitas dificuldades, o governo

    imperial sustentou a campanha contra o Estado guarani, com suprimentos, armas e

    homens. Destes homens, alguns mineiros.

    A necessidade de soldados se fez presente, marcando um tempo de

    descumprimento de regras acerca do recrutamento. Diante desta questo, pretendemos

    analisar o recrutamento militar durante a Guerra do Paraguai (1865-1870) e a relao

    dessa incorporao compulsria de homens nas organizaes militares com a conjuntura

    social, poltica e econmica da provncia de Minas Gerais. Procuramos, mais

    especificamente, compreender porque a provncia mais populosa do Imprio era

    tambm a que menos oferecia combatentes. Nesse sentido, o presente trabalho consiste

    na contextualizao da guerra, na identificao das modalidades de incorporao, das

    tenses, contradies e resistncia ao recrutamento em Minas.

    Utilizamos como fontes documentais os Relatrios do Ministrio da Guerra e da

    Justia, Relatrios do Presidente da Provncia e as correspondncias mantidas entre os

    encarregados pelo recrutamento e o Presidente da Provncia, ou seja, os Juzes de Paz,

    Comandante da Guarda Nacional, Chefes de Polcia, Delegados e os Subdelegados das

    diferentes jurisdies. Tais documentos foram analisados atravs do trabalho de

    pesquisa no Arquivo Pblico Mineiro e tambm no site da Universidade de Chicago16,

    que disponibiliza a documentao referente aos Relatrios dos Presidentes de Provncia.

    Tendo como inclinao terica as formulaes da Nova Histria Militar17,

    procuramos fazer uma investigao emprica e teoricamente orientada dando uma nova

    15 DORATIOTO, Francisco Fernando Monteoliva. Maldita guerra: nova histria da Guerra do Paraguai. Op.Cit. p.93.

    16

    1

    Site da Universidade de Chicago: http..//www.//brazil.crl.edu/bsd/bsb/nartness/paraguay.html.17 A Nova Histria Militar tem como paradigma a crtica a verso revisionista da Histria, bem como o tratamento de novos atores dentro dos acontecimentos militares. Seus principais nomes so: Celso Castro, Vitor Izecksohn, Hendrik Kraay, Francisco Doratioto.

  • nfase aos acontecimentos e fatos ligados s foras armadas, vendo na guerra e na

    formao dos exrcitos modernos fenmenos indissoluvelmente ligados poltica e

    histria social e cultural de Minas Gerais.

    Que caractersticas demogrficas, polticas, econmicas destacavam Minas

    Gerais como uma provncia refratria ao servio das armas? O que levava o mineiro a

    torna-se um rebelde frente incorporao militar? Por que Minas, apesar de ser a

    provncia mais populosa, foi a que menos ofertou soldados para as fileiras da guerra?

    So essas as questes que nortearo este trabalho, na tentativa de analisar o mecanismo

    de recrutamento em Minas Gerais ao longo da Guerra do Paraguai (1865-1870).

    Para se compreender o recrutamento militar durante a Guerra do Paraguai

    fundamental que faamos uma anlise das relaes de poder entre o Estado (na figura

    dos representantes do processo de recrutamento e das autoridades provinciais e

    imperiais) e a populao. por esse caminho que podemos perceber e identificar os

    mecanismos e instrumentos de incorporao, que marcaram a histria conflituosa da

    populao livre pobre do Imprio, uma vez que o ato de recrutar era visto pelo povo

    como uma punio ou como um castigo.

    Neste trabalho, veremos no primeiro captulo uma anlise diferente sobre a

    Guerra do Paraguai, enfocando a viso dos mineiros do conflito por meio de um

    peridico conservador. Nesta primeira parte descreveremos a dinmica da batalha e

    como os mineiros viam este conflito, apresentando algumas caractersticas econmicas,

    populacionais e geogrficas da provncia de Minas Gerais. Nos atentaremos para

    perceber como as notcias da guerra repercutiram em territrio mineiro, apontando

    como a ao do recrutamento interligava todas as partes do Imprio

    (Corte/Provncia/Localidade).

    No segundo captulo, trataremos do funcionamento do recrutamento fazendo um

    contraponto entre sua ao antes da guerra e durante a guerra. Ao analisar essa questo

    evidenciamos que a Guerra do Paraguai representou um elemento desestabilizador ao

    causar o desgaste da relao entre os indivduos e autoridades inseridos em uma

    sociedade articulada por uma rede de proteo e solidariedade. Veremos como o

    conflito impulsionou um movimento patritico que motivou, nos primeiros tempos,

    homens que se aventuraram nos campos de batalha, bem como suas estratgias para

    fugir da ao recrutadora. Ficaremos atentos s tenses, contradies e ao jogo de

    interesses que perpassam no necessrio esforo de angariar tropas.

  • No terceiro captulo, buscamos entender como o recrutamento militar se

    desenrolou em Minas Gerais. A pesquisa toma a provncia mineira como exemplo para

    anlise da ao recrutadora, e com isso, observamos como os mineiros reagiram contra

    as determinaes do poder imperial de tentar transform-los em recrutas. Minas torna-se

    um interessante exemplo, principalmente quando comparada com outras provncias do

    Imprio.

    Nossa proposta tentar compreender como o Imprio do Brasil reagiu contra

    Solano Lopez. Fazer a guerra era necessrio e urgente, e para isso, contou com a boa

    vontade dos poderes provincial e locais. Estabeleceram-se naqueles tempos relaes

    clientelares que ajudavam no funcionamento da burocracia monrquica, e as aes de

    interesse pblico (ou interesses do estado imperial) se misturavam s aes de

    interesse particular. Neste contexto, o recrutamento ganhou destaque, pois representou

    tanto uma necessidade quanto uma ameaa, inserindo novos significados sua prtica.

    2 A GUERRA DO PARAGUAI NAS MINAS GERAIS

    2.1 Minas Gerais e a GuerraQuem sente palpitar em si um corao de brazileiro, e que maduramente reflecte sobre a situao por sim no pode deixar de entrsitecer-se e atemorisado cogitar na sorte de seus filhos. Os elos, que prendem a vida moral das naes, um a um se vo desatando entre ns! Parece que o sinistro fado tenta esmagar o imprio do Cruzeiro!

  • E aquelles, que no fundo dalma ainda guardo risinhas esperanas de melhores dias, confiados no anjo tutellar, que protege nossas plagas, novas decepes vo soffrendo a proporo das novas notcias, que vo recebendo. Ora a da vergonhosa quieturde do chefe da esquadra brasileira, que affanosa de novos triumphuns impassvel v o exercito imperial ser cortado pelas balas inimigas, sem que dos seus canhes ao menos como protestos se arremesse um projtil. Ora a da nefria direo so exercito assiado, que se no fora o distincto e bravo general Polydoro estaria condenado a seputar nos lodos do Estero Bellaco os loiros conquistados com o preo de milhares de vida. Ora ainda a desesperardora noticia de que aquelles, que deixaro seus lares, abandoanaro seus commodos, e atravez de um sem numero de privaoes e martyrios foro abrir seus peitos as pontarias das selvagens cohortes do dictador paraguayo em defesa da sua nao, no encontro nos hospitaes uma atadura, com que estanque o sangue gloriosamente derramado. Ora dos miserveis vampiros, que com asqueroso contractos numa quadra de tantas provanas tem sugado toda a seiva do thesouro nacional18.

    Em Minas Gerais, a guerra foi noticiada pelos jornais da poca. Refns de sua

    ideologia, estes veculos narravam e descreviam os acontecimentos beligerantes de

    acordo com seus interesses partidrios. Liberal ou conservadora, a imprensa teve papel

    importante para a formao da ideia de guerra por parte dos leitores. Os leitores, por sua

    vez, espalhavam suas impresses e vises do conflito, misturadas ao seu

    posicionamento poltico, econmico ou social. Como uma teia, as informaes

    cruzavam as roas, vilas e distritos exacerbando ainda mais a imagem que os mineiros

    faziam do conflito.

    As notcias no paravam de chegar da fronteira sul do Imprio. Verdades,

    mentiras, ilaes, imaginaes e suposies no importavam tanto, o que era certo que

    as informaes povoaram as mentes dos indivduos. Como duvidar das informaes

    quando a lista dos mortos e feridos multiplicava-se a todo instante? A guerra progrediu

    lentamente nos primeiros meses, mas mostrou-se sangrenta aps o primeiro ano

    ceifando a vida dos combatentes, afetando a vida das famlias que aguardavam o retorno

    daqueles que partiram para o cenrio da guerra. Seguir o caminho da batalha para

    muitos era coisa de voluntrio, de soldado por opo e no de trabalhadores rurais,

    chefes de famlia, homens de bem. At mesmo a Guarda Nacional, acostumada a

    18 Constitucional. Notao: JM-1239947. Edio: 8. Data: 06/10/1866. Localidade: OURO PRETO. Filme: 055. APM.

  • misses perigosas, no se sentiu vontade para lutar em solo inimigo, resistindo muitas

    vezes s tentativas de preenchimento das fileiras. Sem uma estrutura militar organizada

    o fazer a guerra no foi tarefa fcil. Os indivduos radicados em suas terras no se

    aventurariam pelas incertezas dessa epopeia que foi a campanha contra Solano Lpez.

    O Paraguai, cada vez mais, mostrava-se um inimigo complicado de ser batido. O

    conflito que aparentemente parecia ser breve colocou o Estado Imperial em alerta

    mximo, o que exigiu o funcionamento de todo seu aparato para concentrar os esforos

    e vencer o inimigo. O Imperador Dom Pedro II, atento a essa situao, manifesta seu

    apelo patritico e sua preocupao com relao aos desgastes que aquele conflito

    gerava, mesmo assim, confiava plenamente na capacidade brasileira de xito contra a

    barbrie de Solano Lpez. Tal alerta foi objeto de sua fala na Assemblia Geral

    Legislativa, no dia 3 de maio de 1866, quando o imperador, reunido com os deputados e

    representantes de todo o Imprio, apresentou suas consideraes sobre a real situao

    em que a Nao se encontrava:

    Hoje mais do que nunca vossa reunio motivo de lisongeiras esperanas para o Brasil, como auxilio de muita confiana para o Governo. Cheio de prazer vos comunico o nascimento de Principe D. Pedro, fructo feliz do consorcio de Minha muito cara filha a Princeza D. Leopoldina com o Meu muito prezado Genro, o Duque de Saxe. Congratulo-me comvosco pela tranqilidade publica de que tem gozado o Imprio durante a guerra. O desaggravo da honra nacional offendida pelo presidente do Paraguay, ainda nos no consente largar as armas; alegro-me porm de reconhecer que tem sido incessante o concurso de todos no desempenho de to sagrado dever. Um tratado de alliana offensiva e defensiva foi celebrado entre Imprios e as Repblicas Argentina e Oriental19.

    A situao de guerra provocou uma crise nunca antes vista exigindo do governo

    uma postura habilidosa que contasse com o equilbrio entre a fora coercitiva de

    recrutar indivduos e a postura de regulamentao das estruturas administrativas do

    Imprio. Alm disso, as notcias da guerra se espalhavam por todo o pas por meio da

    imprensa, e dos demais documentos enviados pelas autoridades e por outras fontes

    relatando a difcil posio do Brasil frente situao causada pela invaso paraguaia.

    Por isso, entendemos a preocupao do Imperador, que compreendia o que isso

    representava e o que aquele conflito poderia exigir do seu arcaico e estratificado

    19 Fala com que Sua Majestade o Imperador encerrou a terceira e abriu a quarta sesso da dcima segunda Lesgislatua na Assemblia Geral Legislativa, no dia 3 de Maio de 1866. APM. Ofcios e Avisos dos Ministrios do Imprio e da Guerra. Secretaria do Governo Provincial (SP) 1127.

  • Imprio" dependente da participao da esfera privada na vida pblica para o bem

    funcionamento do Estado20.

    A fala do imperador revelou seu desejo de fazer justia, e para isso, contava

    com o apoio e a lealdade de seus representantes provinciais. O executivo delegava

    funes de administrao pblica queles que possuam riquezas, ou seja, para aqueles

    que poderiam entrar na poltica utilizando de seu prestgio e da influncia que tal

    indivduo exercia. Isso estabeleceu uma trama que ligava as mais altas autoridades

    imperiais aos setores mais modestos da sociedade espalhados pelo vasto territrio do

    Imprio. O jogo poltico e partidrio foi colocado prova e utilizado pelos mais

    diversos fins, sejam eles de coero, de proteo ou de obedincia s ordens do

    comando (autoridades e agentes do recrutamento). Neste sentido, Ernesto Cerveira de

    Sena faz uma importante ponderao sobre esse processo, declarando que:

    No Imprio do Brasil, durante a guerra contra o Paraguai (1864-1870), predominava a disputa entre dois partidos no espao poltico brasileiro, como geralmente tambm acontecia em grande parte da Amrica Latina. Nas diferentes e distantes provncias do Imprio esses partidos muitas vezes tinham seus respectivos representantes. Eram laos estabelecidos muito mais fidelidades pessoais do que por programas partidrios. Mas eram vnculos que faziam lugares distantes da capital do Brasil se sentirem como parte integrante de um pas em construo, correspondendo aos muitos desgnios do centro poltico, ao mesmo tempo em que tambm apresentavam demandas para as polticas gerais do Imprio21.

    O funcionamento da poltica imperial, principalmente com o advento da guerra,

    imprimiu nova dinmica s aes das autoridades acerca do alistamento militar. Dessa

    forma, com a crise estabelecida e com o desenrolar dos eventos, o recrutamento militar

    feito pelos agentes exigiu uma postura mais enrgica do Ministrio dos Negcios da

    Guerra, rgo que conduzia as questes referentes campanha contra o Paraguai. O

    Ministro dos Negcios da Guerra, atendendo o apelo de sua Majestade e exercendo a

    funo que o Imprio lhe confiava, ordenou o envio de ofcios para as provncias a fim

    de que elas reunissem e enviassem ao teatro das operaes indivduos aptos (em tese22), 20 FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens na Ordem Escravocrata. 3 Edio. Editora Kairs. So Paulo. 1983. p. 121.21 SENA, Ernesto Cerveira de. Disputas polticas na fronteira do Imprio Brasileiro durante a Guerra do Paraguai. www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=99. p.1.22 Ao longo deste trabalho observaremos que a situao de guerra gerou uma crise na prestao militar o que desencadeou uma srie de situaes contraditrias colocando em atrito o governo imperial e a sociedade.

  • pronto para lutarem em defesa do pas. Seguindo essa prtica, em 22 de agosto de 1866,

    do Palcio Imperial no Rio de Janeiro, foi enviado por ordem do Ministro dos Negcios

    da Guerra um ofcio para o presidente da provncia de Minas Gerais, defendendo as

    ponderaes de Dom Pedro II:

    Assumindo a direo dos negcios do Estado a 3 do corrente o Ministrio declarou s Cmaras que seo principal esforo sero empregado em terminar honrosamente a guerra que o Imprios fora provocado pelo Dictador da Republica do Paraguay. O Governo Imperial esta certo que neste pensamento acompanhado por todos os Brasileiros, acreditando que nenhum cidado deixar de auxilia-lo no empenho de obter os recursos, ainda necessrios, para que as nossas foras de terra e mar prosigo vantajosamente na sua marcha gloriosa at conseguirem a completa desaffronta da honra e dignidade do Imprio.As victorias sucessivas de nossas armas contra as do Dictador Lopes, dando-nos motivos de justo orgulho, so objecto das mais honrosas manifestaes por parte dos nossos denodados alliados. No meio, porm, da srie no interrompida dos nossos triumphos cumpre no esquecer que ainda no esta terminada a guerra, e que os nossos inimigos, embora muito enfraquecidos, continuo a oppor-nos resistncia. Em tais circunstancia dever do Governo cuidar activa e energeticamente de reunir e enviar mais praas s fileiras do nosso exercito. V. Excia compreende que as reservas so um recurso de que o Governo no pode prescindir, ainda que tenha, como tem, fundadas rases para esperar, dentro em breve, o completo anniquilamento das foras inimigas. Tenha V. Excia portanto, como muito recomendado este novo appello ao patriotismo brasileiro, do qual espera o Governo Imperial os contingentes necessrios para prosseguir no grande fim de debellar o inimigo, j desmoralisado ante as bravuras de nossos soldados. Para obter esses contigentes por meio do alistamento de Voluntrios da Ptria ou da Guarda Nacional, na Provncia onde no se houver completado o numero, que lhes foi designado, ou da [sic] geral dos cidados, mediante o recrutamento, dever V. Excia regular-se pelos Decretos e Leis em rigor. Do zelo e patriotismo de V. Excia muito espera o Governo Imperial, e confia na promptido com que expedir as convenientes providencias e ordens para satisfaser o que a V. Excia pelos Ministrios respectivos determinado urgentemente23.

    A dinmica da guerra imps a movimentao das autoridades e dos agentes do

    recrutamento em todas as esferas de poder. Do mesmo modo que havia uma relao

    23 Oficio enviado pelo Ministrio dos Negcios do Imprio ao presidente da Provncia de Minas Gerais, 1866. Secretaria do Governo Provincial (SP) 1127. APM. Avisos dos Ministrios do Imprio e da Guerra.

  • estreita entre o poder central (corte) e o poder provincial (regional), tambm havia

    lealdade entre representantes imperiais no nvel local. Com a mesma intensidade e apelo

    com que o ministro enviava seus ofcios presidncia de Minas Gerais requerendo

    soldados, o presidente de provncia redistribua para as mais variadas partes da

    provncia as ordens de recrutamento e preenchimento de tropas com o objetivo de

    seguirem para a batalha contra os paraguaios. Essas circulares emitidas pelo presidente

    de provncia foram remetidas para as diversas localidades a fim de potencializar o

    esforo de guerra, buscando elevar a porcentagem da taxa de contribuio da provncia

    mineira na luta contra o Paraguai. Por sua vez, as autoridades espalhadas por todos os

    cantos de Minas Gerais respondiam e enviavam seus apelos, registros, contagens,

    observaes, etc, para o presidente da provncia. Neste esforo, as ordens sobre o

    recrutamento e sobre a guerra partiam da corte em direo s demais provncias. Em

    Minas, ao receber esses ofcios e decretos, o presidente da provncia acionava as

    autoridades competentes na esfera regional, e estas, por sua vez, contavam com o papel

    dos agentes recrutadores locais para a prtica do preenchimento das tropas para a

    batalha. As ordens seguiram, grosso modo, o caminho descrito pelo desenho abaixo:

    QUADRO 1 Estrutura hierrquica de emisso de ordens para o

    recrutamento militar durante a Guerra do Paraguai:

    Obedecendo hierarquia estabelecida, as ordens que saam do Ministrio dos

    Negcios da Guerra deveriam ser respondidas pelo presidente de provncia e pelas

    autoridades com que ele contava. Tendo essa organizao em mente que vamos nos

    debruar sobre a ao recrutadora em Minas Gerais. Diante dessa estrutura

    observaremos como o recrutamento funcionou, e principalmente como a guerra e sua

  • dinmica marcou a relao conflituosa entre os indivduos (potenciais recrutas) e os

    agentes recrutadores. A guerra e a crise gerada por ela fizeram aumentaram o

    intercmbio entre aqueles diferentes nveis de poder, uma vez que o envio crescente de

    correspondncias e demais papis relacionados logstica militar do conflito promoveu

    a ligao entre corte, provncia e localidades em um s intuito: o de fazer a guerra.

    J Fbio Faria Mendes sustenta que a guerra contra o Paraguai demonstrou a

    ineficcia do sistema defensivo brasileiro, a fragilidade fronteiria do Imprio e a

    conturbada relao de poderes ainda presente na sociedade escravista e imperial.

    Relaes conflituosas entre o poder central e os poderes locais promoveram uma

    desarticulao entre o Estado e a populao, com consequncias diretas sobre o

    Imprio24. O despreparo e a desorganizao do exrcito regular no Brasil refletiam a

    dificuldade de se criar uma fora disciplinada e centralizada capaz de desempenhar

    funes de defesa e de mobilizao nacional. Sem um exrcito regular, o governo

    monrquico contava com a boa vontade de seus sditos, principalmente daqueles

    mais ilustres, titulares de postos importantes na administrao imperial e provincial.

    por isso que notamos que o clamor patritico do ministro dos Negcios da Guerra perde

    seu vigor nas vrias cidades e vilas das provncias, onde muitas vezes os homens no

    compreendiam as razes da guerra e nem sentiam apego s causas nacionais. O governo

    imperial, que tinha como certa a obedincia e o servio dos seus homens pblicos e das

    autoridades espalhadas para fazer o recrutamento, reconheceu que o esforo para se

    fazer a guerra foi muito alm de sustentar as tropas em terras paraguaias. por essa

    razo que notamos nos papis e demais correspondncias enviadas pelo ministro e pela

    presidncia da provncia mineira o apelo ufanista, pois era necessrio motivar e

    pressionar as autoridades por melhores resultados. Fazer a guerra no foi misso suave.

    Uma terra distante, um caminho longo, tratamento desestimulante, condies

    precrias, tudo isso implicava em aspectos negativos que afrontavam os indivduos,

    principalmente se eles eram trabalhadores tidos como bons homens. Os mineiros,

    diferentemente dos brasileiros oriundos do norte e nordeste, no viam no recrutamento

    qualquer perspectiva de futuro.

    A guerra tornou-se prioridade para Dom Pedro II e derrotar Lopez era preciso. O

    Imprio do Brasil incentivou com promessas o recrutamento de homens, o que

    24 MENDES, Fbio Faria. O Tributo de sangue: recrutamento militar e construo do Estado no Brasil Imperial. Tese de Doutorado em Cincia Poltica. Rio de Janeiro, Instituto Universitrio de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), 1997. pp. 111-125.

  • funcionou bem nos primeiros tempos, mas no mais teve resposta desejvel devido s

    notcias tristes e desoladoras que vinham dos campos de batalha.

    Reconhecido pelo jeito ressabiado e desconfiado, o mineiro, ao receber essas

    notcias, sentia temor, e reconhecia nos agentes recrutadores uma ameaa real. Os

    agentes, por sua vez, tinham o melindroso e arriscado propsito de recrutar as pessoas.

    Neste sentido, percebemos que a guerra e sua dinmica impuseram condies nunca

    antes vistas: uma relao entre necessidade e limites, o que marcou decisivamente

    aqueles tempos.

    Porm, mesmo com toda a preocupao, a vida tinha que seguir seu rumo: a

    fazenda precisava ser tocada, a lavoura cultivada, a loja administrada. Os mineiros,

    assim como outros provincianos, sustentaram economicamente a guerra pagando suas

    contribuies ao Imprio. Aquela guerra, distante, aproximava-se, e j poderia ser

    sentida por todos, e tal sensao era marcada pela alterao do cotidiano das pessoas. O

    clima de tenso se espalhou e os corre-corres pelos matos ficaram mais frequentes,

    assim como os sumios de gente e outras aes que contrariavam a ordem at ento

    estabelecida pelos modos e costumes. Podemos entender que a guerra tambm

    aconteceu em solo ptrio; com outros atores, em outro cenrio, em que os inimigos

    poderiam sair de qualquer lugar, no s das trincheiras como em terras paraguais, como

    tambm de onde menos se esperava. A anlise dessa guerra particular reveste-se de

    fundamental importncia para a compreenso do esforo do Imprio na campanha e de

    sua repercusso em nvel local.

    Os mineiros estavam muito mais preocupados em lavrar suas terras e administrar

    seus ofcios que marchar para o front. Fazer o ganha-po era fundamental, tentar somar

    riquezas era importante, mas ter a moral inabalada era necessrio e preciso, bem como

    ser bem relacionado em sua comunidade e nunca ter fama de vadio ou criminoso, para

    no ser entregue aos quartis que recolhiam os recrutas. Restavam poucas opes para

    os desafortunados: resistir ao recrutamento, seguir para as incertezas do destino com

    grandes possibilidades de morrer ou tentar a fugir desesperadamente dos comboios.

    A desconfiana, que genuna no mineiro, aflorava-se fortemente nessas

    condies, aumentando a aflio com o futuro incerto. A ideia da guerra era

    fantasmagrica, como um espectro que a todos assustava, espalhando o medo. Nas

    localidades de Minas Gerais, os indivduos tiveram que lidar com essa complicada e

    complexa questo. Se por um lado, o Imprio necessitava de material humano e de

  • somas de dinheiro para fazer a campanha, por outro lado, os mineiros, em sua maioria,

    desejavam tranquilidade e paz para tocarem pacatamente suas vidas.

    As notcias vindas do sul traziam dor e sangue. Os polticos e os representantes

    do Imprio perdiam foras na ao recrutadora por conta dessas informaes. A

    narrao dos acontecimentos de guerra era feita pela imprensa que assumia seu

    posicionamento poltico e criticava ou amenizava a situao do Imprio, dependendo de

    seus objetivos. Em 1866, quando as autoridades tiveram certeza de que aquele conflito

    no findaria de modo fcil, as notcias se espalharam conforme as intenes planejadas.

    Se fosse necessrio recrutar, e se as autoridades responsveis por isso representassem o

    mesmo partido do jornal, nada mais natural que os redatores suavizassem as notcias.

    Em Minas, o jornal Constitucional, conservador, alm de expor com toda veemncia a

    situao do Brasil em relao guerra contra o Paraguai, faz uma critica direta

    imprensa liberal da poca, alegando que os liberais tentaram confundir o leitor,

    omitindo a real situao de seu pas. Vejamos o escrito desse jornal:

    ...sem f no futuro, sem crenas nos representantes do poder, comprometido no estrangeiro, arruinado em suas finanas, sustentando uma guerra barbara, mas hoje de indeclinvel necessidade, e que infelizmente tem tomado propores assustadoras, o Brasil nunca precisou tanto como agora de uma linguagem franca daquelles seus filhos, que sinceramente se inspiro no seu bem estar. Ainda bem que o Constitucional mostrando-se fiel sectrio d estes princpios tem feito partir das suas columnas raios de muita luz a manifestarem o lastimoso e verdadeiro estado do paiz. Isto era preciso. Os gazeteiros officiaes semelhantes Lopez, plgios do systema de converterem victorias no papel as derrotas soffridas no campo de batalha, encobrem ao conhecimento publico o triste estado do exercito brasileiro. J indignava v-los audazes e impassivos tecerem hosannas em douradas phrases a esse governo, que to mal e desastradamente tem gerido quase um lustro os destinos do imprio25.

    No h dvidas quanto a essa guerra de interesses pela construo da verdade

    dos fatos. A imagem que as pessoas faziam da guerra eram moldadas e forjadas por

    muitos elementos, principalmente os que escreviam nos peridicos da poca. Cada

    posicionamento poltico, tanto da imprensa quanto das autoridades refletia a situao

    polarizada da poltica imperial, em que as partes defendiam suas questes na disputa

    pelo poder. Os conservadores no pouparam os liberais que presidiram a provncia

    25 Constitucional. Notao: JM-1239947. Edio: 8. Data: 06/10/1866. Localidade: OURO PRETO. Filme: 055. APM.

  • mineira nos anos da batalha, e aproveitaram-se das mazelas da guerra para soltar todo

    arsenal de seus golpes.

    O combate contra o exrcito de Solano Lopez repercutiu de forma dramtica em

    Minas. No primeiro ano do conflito, de dezembro de 1864 a dezembro de 1865, Pedro

    Alcntara Cerqueira Leite foi quem presidiu Minas Gerais e quem recebeu as notcias

    de guerra. Cerqueira Leite foi juiz municipal de Barbacena, juiz de direito em Sabar e

    desembargador em Pernambuco. Sua carreira pblica ficou marcada pelo fato de que,

    mesmo como magistrado, militava na poltica, como membro do Partido Liberal. Teve

    assento como deputado na Assembleia Legislativa Provincial, por vrias vezes, e na

    Assembleia Geral, de 1838 a 1848, como representante de Minas Gerais. Assumiu a

    provncia mineira por sua boa influncia no Imprio, mas permaneceu pouco tempo,

    algo comum nos tempos provinciais. Ficou conhecido tambm como Baro de So Joo

    Nepomuceno e teve razovel contribuio no esforo de guerra ao enviar tropas para o

    campo de batalha, conseguindo arregimentar alguns milhares de voluntrios.

    Cerqueira Leite fez valer de toda sua habilidade poltica adquirida em sua

    carreira para estabelecer vnculos nas localidades que pudessem dar a resposta s suas

    necessidades. Vale lembrar mais uma vez que os primeiros meses no representaram

    uma grande demanda, e por isso ficou responsvel fundamentalmente na formao dos

    corpos e batalhes de Voluntrios da Ptria. Neste sentido, percebemos um baixo ndice

    de registro de resistncias e perseguies em seu mandato. Ainda com a guerra sob

    controle, entre marchas e contra-marchas na fronteira oeste (Mato Grosso), as

    autoridades judiciais responsveis pelo preenchimento do efetivo das tropas circulavam

    sem causar tanto calafrio nos habitantes. Todavia, mesmo em tempos mais calmos

    houve quem reclamasse da atuao de alguns homens sem ptria. Em um oficio

    enviado para Cerqueira Leite, em 25 de fevereiro de 1865, o comissrio Jos Cesrio

    relata seu entusiasmo ao conseguir alistar cerca de 50 voluntrios na regio de Ub e

    denuncia a prtica de proteo por parte de uma autoridade da Guarda Nacional aos

    guardas nacionais que alistaram nos batalhes de voluntrios:

    V. Exa conhece-me bastante, se sou capaz de abafar nas atuaes emmergencias os meus rescentimentos polticos para unicamente render homenagem a Santa causa do nosso Paz, sinto-me igualmente com foras para por de parte escrpulos mal entendidos afim de denunciar a V. Exa pequeninas misrias de alguns agentes da fora publica neste municpio. Sabe-o Deus e sabece minha conscincia que falo a verdade, devo ser acreditado. O Tenente Coronel Diogo da Rocha Bastos morador no

  • Presdio, tem denegado guias muitos Guardas Nacionais, que ingressaram ingenuamente superpem lhes serem elles mister para se apresentarem ao Delegado do Termo como Voluntrios. Alm deste procedimento inqualificvel, procuro levar o desanimo e a decepo a seus espritos patriticos. Isto desanima. Digne-se V. Exa fazer chegar quanto antes este fato ao conhecimento do Governo Imperial. Espritos tacanhos e ignorantes, preciso officiais de tal quilat serem postos margem26.

    Ingenuamente ou no, houve o alistamento de guardas nacionais, que muitas

    vezes, seguindo suas convices patriticas se apresentavam como soldados. Sabemos

    que isso foi algo raro, pois a guarda nacional se caracterizou pela resistncia ao

    recrutamento. Todavia, os poucos que ainda se alistavam se isentavam do servio antes

    mesmo de se aquartelarem. Alm da influncia direta dos oficiais e de outras

    autoridades, o jogo partidrio tambm se fazia presente, e o recrutamento esteve

    merc dessa prtica. Como podemos perceber, o comissrio Jos Cesrio anunciou para

    o presidente da provncia os problemas que ele e os seus sucessores iriam encontrar: a

    imposio da fora e as relaes de poder entre os indivduos e as autoridades

    moldavam a atrasada trama do alistamento militar. Cesrio completou seu oficio

    apontando a consequncia bvia desses problemas aqui apontados: a ineficincia do

    sistema de recrutamento e sua fluidez diante do cenrio poltico, econmico e

    partidrio:

    Cumpre-me ainda ponderar V. Exa que o procedente de no recrutar-se Guardas Nacionais ainda mesmo mal qualificados, tem seos de pssimas conseqncias; os afficiaes infesos ao Governo, e que estamos

    empenhados, jogo de partido, asseguro aos praas de sua companhia, que sero ellas postas em liberdade logo que forem recrutadas. Com esta segurana fogem ellas do alistamento27.

    Depois do mandato de Cerqueira leite, Joaquim Saldanha Marinho foi destinado

    ao posto de presidente de Minas Gerais, governando de 1865 a 1867. Bacharel em

    Direito pela Faculdade de Olinda em 1836, atuou como servidor pblico e na poltica

    imperial. Como servidor pblico exerceu os cargos de: Promotor Pblico no Crato-CE,

    Secretrio de Governo, advogado do Conselho de Estado, Juiz dos Feitos da Fazenda

    em Fortaleza-CE e advogado do Conselho de Estado. Como poltico, foi presidente das

    provncias de Minas Gerais (1865-1867) e So Paulo (1867-1868) alm de diversos

    26 Seo Provincial. Presidente da Provncia. Guarda Nacional PP1/16 cx. 166. ano: 1865. APM.27 Ibidem.

  • mandatos na Assembleia pela provncia pernambucana. Alm disso, teve destacada

    atuao no partido liberal e, posteriormente, aps a ciso interna, no republicano,

    destacando-se como um dos signatrios do Manifesto Republicano de 1870.

    Joaquim Saldanha Marinho foi uma das figuras mais conhecidas na poltica

    imperial de seu tempo. Bem articulado, tornou-se Gro-Mestre da Maonaria, o que

    possibilitou contatos e relaes fraternais com outros ilustres daquele tempo. Em

    Minas, enfrentou os anos mais sangrentos da guerra, e assim como seu antecessor, deu

    continuidade ao processo de arregimentao de voluntrios e de recrutas. Porm, no

    teve a mesma sorte de Cerqueira Leite, pois em 1866 a guerra j se mostrava cansativa e

    impiedosa, impondo necessidades que ocasionaram ondas de resistncia e de pedidos

    de iseno, o que provocou o baixo nmero de mineiros na campanha naqueles tempos.

    Liberal, Saldanha Marinho enfrentou as duras crticas dos conservadores

    mineiros, principalmente da imprensa. A guerra declarada entre os partidos acirrou os

    nimos dos indivduos que buscavam em suas convices polticas a explicao para os

    acontecimentos. Os liberais, no posto poltico nessa poca, viam na guerra a

    manifestao patritica e a organizao do Imprio. J os conservadores, cticos e

    revoltados, cobravam das autoridades uma definio do combate que enfraquecia a

    economia do pas e tirava a vida dos filhos da ptria. Em uma critica mais acirrada, os

    conservadores do jornal Constitucional denunciaram os vexames e as atitudes imorais

    cometidas pelos progressistas, que, de acordo com o jornal em questo, usaram do

    conflito contra o Paraguai para empurrar os inimigos polticos para as fileiras,

    aprisionar elementos indesejveis, ou qualquer outra manifestao que ferisse a ordem

    estabelecida por influncia de questes partidrias:

    Essa guerra com que os progressistas justifico os abusos, desmandos e crimes de seu governo, e os histricos motivaro a opposio que fazio ao mesmo governo e a sua desavena com os progressistas...Essa guerra, com que o governo corrompido e corruptor tem procurado apadrinhar-se para fazer calar a opposio da tribuna e da imprensa...Essa guerra, emfim, em que os barrigudos tivero, tem e ho de ter tudo a ganhar, e vs tudo a perder! Ei-los, pois, reconciliados, depois de um arrunfo de dous annos! A necessidade de se unirem os brazileiros para de commum acordo debellarem o inimigo, desaffontarem a honra acional, no fora sufficiente para operar este milagre!28

    28 Constitucional. Notao: JM-1239946. Edio: 7. Data: 29/09/1866. Localidade: OURO PRETO. Filme: 055. APM.

  • Compreendendo o funcionamento da sociedade imperial, no estranho pensar

    que a guerra foi o meio utilizado para impor e imprimir vontades polticas. Os polticos

    vitoriosos nos pleitos eleitorais j definiam previamente as aes que colocariam em

    prtica aps sua eleio. Obviamente, os polticos seguiram suas cartilhas,

    obedecendo aos tratados pr-estabelecidos com sua base (sua rede protetora ou/e

    protegida). Se pensarmos no recrutamento isso evidente, pois o recrutamento no

    obedeceu a nenhum critrio legalizado de obrigao generalizada. por esse motivo

    que a luta pelo poder se tornou mais inflamada, assim como a disputa entre liberais e

    conservadores. Assim sendo, dominar ou no a poltica poderia representar a proteo

    ou desproteo diante da necessidade do recrutamento. Como podemos observar na

    complementao do texto do jornal acima citado, os redatores alertaram seus leitores

    sobre a batalha eleitoral que aconteceria, relatando que o presidente da provncia trazia

    em mos um trunfo que faria qualquer homem apoi-lo:

    Operou-o, entretanto, a necessidade de se unirem os patriotas para o prximo combate nos estdios eleitoraes! Os gritos e gemidos da ptria afflicta no bastaro...Bastaro, porem, os roncos plangentes da barriga ameaada. Ahi vem caminho desta provncia o Sr. Saldanha, o emissrio da corrupo, com carta que foro postas a sua disposio as quotas da marinha! E os progressistas que o adoro, por que adorao a todos que lhes enchem as barrigas, batem palmas de contentes....E os histricos, que perdero a esperana de um governo histrico, preparo se para fazerem lhe um bonita recepo...29

    No sabemos ao certo se a denuncia feita procedeu. O que vale aqui apontar

    que os leitores desse jornal tiveram a informao que a adorao sentida por muitos

    na provncia, nada mais foi que o medo de ver seus nomes nas listas do recrutamento,

    ou como foi colocado no jornal, nas quotas da marinha. neste contexto que ao

    recrutadora vai se desenrolar em Minas Gerais. A guerra e suas consequncias causaram

    a revolta e o descontentamento por grande parte da populao. Mas as atitudes internas,

    movidas pelos sentimentos mesquinhos, causaram uma dor difcil de ser curada, a dor

    da injustia motivada por convices ideolgicas. Saldanha Marinho foi denunciado

    sem pudores, sendo questionado quanto sua atitude na prtica do recrutamento militar:

    Quando a imprudncia e o pouco tino do Sr. Saraiva levou o imprio a guerra desastrosa que sustenta com o Paraguay? O que fizeram os homens de bem? Os corruptos fizero callar a imprensa; Abriro as suas

    29 Ibidem.

  • bolsas; Mandaro seus filhos para os campos de combate30.

    Para a imprensa conservadora, Saldanha Marinho agiu de m f na ao

    recrutadora quando mandou os filhos dos homens de bem para os campos de

    combate. Para os defensores do presidente ele poderia ter reagido s necessidades da

    guerra. O que fica perceptvel e, o que nos importa realmente aqui, visualizar o clima

    criado e vivido pelos mineiros naqueles tempos. As tenses entre as partes e a

    desavenas que provocaram nos habitantes um sentimento de revolta e de discrdia. A

    desconfiana caracterstica dos mineiros multiplicou-se na medida em que a situao

    crtica do conflito exigia um ritmo difcil de ser alcanado, o que provocou aes que

    no se coadunavam com os limites do aceitvel, como podemos observar na crtica feita

    por um redator da cidade de Mariana em janeiro de 1867 para o jornal Constitucional:

    A guerra sendo questo de honra para todos os brasileios amantes de seu pais, o governo tem tornada odiosa, servindo-se della como pretexto por meio de seos, pela maior parte, desmoralisados agentes para innumeras vexaes, perseguies adversrios polticos, e inauditas atrocidades, que no terio explicao, mesmo quando legalmente estivessem suspensas todas as garantias, no respeitando-se ao menos os sagrados recintos, a senectude, e o pudor feminino no furos infrene de vexar, molestar e perseguir31.

    Os atos aqui destacados evidenciam a desarmonia social e poltica que a

    dinmica da guerra imps. De vexatrio e desmoralizante poderamos classificar esses

    atos se concordssemos plenamente com as crticas dos conservadores, ou se

    pensssemos com o discernimento do presente. No podemos fazer o julgamento

    daquelas atitudes sem antes tentar compreend-las. No podemos afirmar que Saldanha

    Marinho, de uma forma maquiavlica e calculista fez aumentar a presso sobre as

    autoridades responsveis pelo recrutamento, motivado somente por questes de

    interesse pessoal ou poltico. A prpria indefinio da guerra e os diversos fatores que

    caracterizaram o perodo foram elementos que compuseram este complicado cenrio e

    que influenciaram a ao das autoridades. Saldanha Marinho e/ou as autoridades

    30 Constitucional. Notao: JM-1239943. Edio: 4. Data: 08/09/1866. Localidade: OURO PRETO. Filme: 055. APM.31 Constitucional. Notao: JM-1239959. Edio: 20. Data: 03/01/1867. Localidade: OURO PRETO. Filme: 055. APM.

  • responsveis pelo esforo de guerra agiram conforme as circunstncias apresentadas,

    naturalmente protegendo os mais prximos e recrutando os mais preteridos.

    Nesse cenrio de contradies e de crise, Joaquim Saldanha Marinho deixou a

    presidncia de Minas Gerais e assumiu a presidncia da provncia paulista. Em seu

    lugar foi nomeado por carta imperial de 22 de setembro de 1867, Jos da Costa

    Machado de Sousa que tomou posse em de 24 de outubro de 1867, presidindo esta

    provncia at 25 de agosto de 1868. Machado de Sousa tambm enfrentou grandes

    dificuldades. O fim de 1867 foi marcado por deseres e por um intenso recrutamento,

    o que colocou prova a interao e as relaes entre as autoridades e os indivduos que

    buscavam por todos os meios e formas fugir do recrutamento, e escapar das jornadas da

    guerra. Neste perodo tambm, mesmo com as dificuldades para se fazer o

    recrutamento, as notcias que voltavam das frentes de combate eram mais estimulantes

    correspondendo virada de jogo feita pelo exrcito aliado na fortaleza de Humait.

    Essa batalha foi um marco na guerra, e a perspectiva da vitria contra Lopz ficou

    muito mais ntida quando os soldados liderados por Caxias transpuseram esse difcil e

    perigoso obstculo. A vitria em Humait motivou moradores de destaque (vigrio,

    subdelegado e professores pblicos) da Villa Risonha de So Romo a enviarem para o

    presidente da provncia de Minas no dia 30 de maro de 1868 um abaixo-assinado

    celebrando e comemorando esse feito, pedindo a Deus a proteo e a eficincia do

    exrcito em luta para que a guerra acabasse o mais breve possvel:

    A espledida Victoria alcanada sobre as trincheiras e reductos da celebre trincheira de Humait pela fora das armas imperiaes na manha de 19 do ms prximo passado, symbolo da grandesa ou magnitude do feito mais brilhante commetido, e the hoje conhecido, pela marinha e exercito Brasileiro, acaba de dar ao Brasil o mais apparatoso dia de gloria; e cheios de praser, os abaixo assinados se congratulo com V. Exa por to magnfico triunfo. Anciosos ficamos esperando pela fausta noticia do dia das ultimas e mais estrondosas oraes de vencimento total. Nossa causa santa, e Deos, visivelmente, nos proteje32.

    De alguma forma, os assinantes dessa lista perceberam que a vitria final estaria

    mais perto depois de Humait33. Essa fortaleza foi o ponto fundamental para a conquista

    de Assuno. Os mineiros da Villa Risonha de So Romo informados dos fatos da

    32 Secretaria do Governo Provincial: SP-1255. Ofcios e mais papeis dirigidos ao Governo sobre Fora Pblica (Janeiro-Abril) 1868. APM.33 Fortaleza localizada em um ponto em que o Rio Paraguai faz uma curva fechada, possua 80 canhes voltados para o flanco do rio e outros 100 canhes para face terrestre. Ver Doratioto, 2002.

  • guerra tiveram a compreenso necessria para imaginarem que o banho de sangue dos

    tempos anteriores diminura, e que uma nova fase da campanha tivera incio: a

    perseguio a Solano Lopz em seu prprio territrio. Em comparao ao ano de 1867,

    1868 foi marcado pelo fato de o recrutamento militar em Minas ter perdido a sua

    voracidade. A guerra tinha entrado em outra fase, menos mortfera, porm no menos

    perigosa. A conquista e a manuteno de novas posies no campo de guerra eram

    essenciais, e por isso ainda eram necessrios soldados, cujo recrutamento tornara-se

    menos vido, devido s novas circunstncias. .

    Nos anos finais da guerra contra o Paraguai a provncia de Minas Gerais foi

    governada por Domingos de Andrade Figueira, presidindo de agosto de 1868 a 14 de

    maio de 1869 sucedido por Jos Maria Correia de S e Benevides que teve seu mandato

    de 14 de maio de 1869 a 26 de maio de 1870. Estes dois presidentes enfrentaram o

    acirramento da disputa entre liberais e conservadores pelo poder e os atritos constantes

    destes na imprensa. Em Minas, os jornais utilizavam da guerra e de tudo que girava ao

    seu redor para ganhar posies frente ao inimigo poltico. Da mesma forma e

    intensidade que os conservadores criticaram as aes do recrutamento e denunciaram a

    guerra, os liberais tambm assim o fizeram quando Caxias, um expoente do partido

    conservador, assumiu o posto de comandante-em-chefe do exrcito aliado na campanha

    contra Lopz. Neste jogo conflitante de ideias, os elaboradores dos peridicos trocavam

    acusaes graves, tudo isso na tentativa de desestabilizar as intenes polticas de cada

    lado. Omisses, mentiras, denncias oportunistas, exageros de todos os tipos,

    dramatizao de fatos corriqueiros, maximizao ou minimizao de ndices, tudo isso

    aconteceu durante o perodo de guerra para forjar uma situao desejada. O luta pelo

    domnio dos acontecimentos promoveu a corrida pela busca da melhor arma

    disponvel: a da opinio pblica.

    Controlar a opinio dos indivduos era algo preciso, ainda mais em tempos de

    crise. Alm da opinio pblica, contar com o apoio das autoridades locais era

    fundamental. por isso que os jornais travaram um rigoroso duelo de verdades. As

    autoridades locais funcionaram como ponta de lana, atuando de forma direta na ao

    recrutadora. Era necessrio ento ter uma boa relao com elas para o sucesso da prtica

    do recrutamento e do cumprimento de ordens vindas do posto acima da hierarquia

    imperial. A figura e a atuao do presidente de provncia foram essenciais. Assim

    sendo, podemos pensar que as dificuldades enfrentadas no recrutamento militar em

    Minas podem ser explicadas, alm da crise natural causada pela guerra, pela troca

  • constate do representante provincial (tivemos 6 presidentes de provncia), prtica essa

    que desestruturava relaes estabelecidas to precisas no momento. A cada substituio,

    um novo trabalho deveria ser colocado em prtica. Em vrias ocasies, homens bem-

    intencionados, por no conhecerem os segredos de Minas, no tiravam todo o

    proveito que poderia advir da ao recrutadora.

    Sem dvida, o esforo feito pelo Imprio do Brasil foi algo nunca antes visto. A

    guerra contra o Paraguai colocou prova o poder do Estado Monrquico e as

    habilidades administrativas de seus representantes polticos. Cada surpresa, cada

    decepo, cada esperana, cada derrota e cada vitria, em todas as operaes militares

    no teatro arriscado do conflito repercutiram diretamente nos mais longnquos rinces do

    Imprio. Com a circulao livre de jornais e panfletos, as informaes, precisas ou no,

    na maioria das vezes tendenciosas, estavam ao alcance de quem dominava a arte das

    letras. Aqueles que no sabiam ler escutavam curiosamente as impresses tiradas dos

    mais privilegiados. A dinmica da guerra imprimiu o ritmo das aes a ela referentes, e

    isso influenciou decisivamente o cotidiano dos habitantes. Por esse motivo,

    compreender seu percurso elementar em nossa proposta.

    2.2 Minas do sculo XIX: economia e demografia e seus reflexos na guerra

    Comparando a organizao das foras de guerra entre o Paraguai e o Imprio do

    Brasil, observamos que a questo territorial fundamentalmente importante no esforo

    de batalha. O recrutamento militar no Brasil foi algo nunca antes visto, um

    empreendimento que implicou em trabalhos de logstica e na marcha pelos mais

    espalhados e distantes confins de nosso imenso territrio. Como sabemos a dificuldade

    de se fazer a guerra tinha sua primeira peleja na ao interna, nas localidades. No s a

    dimenso territorial, mas as condies geogrficas das diversas regies impuseram

    enormes dificuldades para a ao recrutadora.

    A possibilidade de sumir no mato incentivou muitos homens a se

    embrenharem por florestas e sertes, fugindo dos mandados e das listas que trouxessem

    seus nomes. Muitas vezes os agentes recrutadores apareciam nas vilas e distritos e no

    conseguiam capturar os indivduos j definidos por ordem superior, que, avisados de

  • antemo, refugiavam-se na imensido das grotas que cercavam as cidades. Neste

    sentido, a provncia de Minas Gerais foi um exemplo interessante, uma vez que

    apresenta um espectro generoso de variaes topogrficas, climticas e de vegetao

    (elementos que dificultaram ainda mais os esforos dos agentes nas localidades

    mineiras). Alm da geografia e das questes fsicas, a economia tambm deve ser

    compreendida no contexto da guerra. Acreditamos que sua anlise pode produzir uma

    melhor compreenso dos elementos que compuseram o recrutamento nos tempos

    beligerantes. Por essa razo, deixaremos nosso objeto principal (a dinmica do

    recrutamento militar durante a guerra) em segundo plano por um momento, e

    percorreremos a histria demogrfica e econmica de Minas, atentando-nos

    principalmente questo populacional, lembrando que a ao recrutadora em foco nesta

    pesquisa teve como alvo os homens livres, pois os escravos no sofreram o

    recrutamento forado. Sua participao na guerra foi por meio de outras circunstncias

    que veremos mais a frente.

    Douglas Cole Libby34 retrata a histria de Minas oitocentista tendo como eixo

    analtico a transformao do trabalho, e por consequncia, a transformao econmica

    e social na provncia mineira. Libby constri sua anlise tendo como base emprica

    documentos manuscritos relativo populao provincial de Minas Gerais denominados

    mapas de populao (1830-1840), circulares do governo provincial (1850) e no censo

    de 1872.

    Douglas Libby, apesar de dar nfase s atividades artesanais, manufatureiras e

    fabris em sua pesquisa, considera a agropecuria mercantil de subsistncia como

    principal setor da economia de Minas no sculo XIX. Libby demonstra atravs de

    tabelas comparativas o aumento demogrfico em Minas e tambm uma concentrao de

    mo de obra escrava (apesar da ausncia do trfico negreiro). Demonstra em sua

    pesquisa que, ao longo do sculo XIX, o percentual de pessoas livres em relao aos

    escravos aumentou devido a diversificao econmica e a um melhor acesso a terra. Tal

    progresso observada pela comparao da relao entre livres e escravos ao longo do

    sculo XIX. De 1831 1841 essa relao era de 68,6% para 31,4%; de 1854 1857 era

    de 77% para 33% e em 1872 a proporo era de 82% para 18%. A tabela a seguir

    demonstra esses nmeros:

    TABELA 1

    34 LIBBY, Douglas Cole. Transformao e Trabalho em uma economia escravista Minas Gerais no sculo XIX. Ed. Brasiliense. 1988.

  • Populao por condio, regies mineiras e Provncia de Minas Gerais

    1831-1872 (nmeros absolutos)35

    Estes dados sustentam a hiptese de Libby: a ascenso de uma produo

    mercantil baseada na expanso da atividade produtiva que inclua os trabalhadores ex-

    escravos e livres de todas as condies, em reao ao revs econmico que ameaava a

    Provncia de Minas com a decadncia e a estagnao36. Ao contrariar a ideia

    decadncia das Minas, Libby reinterpreta a histria econmica das Minas

    oitocentistas nos oferecendo dados que apontam o crescimento das atividades

    comerciais em consonncia com setores que no esto ligados com a monocultura e o

    latifndio.

    Segundo Libby, o colapso da minerao nunca chegou a ser completo, apenas as suas atividades deixaram de ocupar papel central na economia e cederam terreno para atividades produtivas diversas que outrora foram secundrias na economia de Minas37. Por outro lado, Libby estabelece o conceito de economia em acomodao evolutiva

    para descrever as atividades de transformao, tais como siderurgia, indstria txtil e

    agropecuria mercantil que coexistiram com a atividade mineradora e absorveram os

    efeitos da crise da minerao. Uma das principais contribuies deste estudo que ele

    nos mostra a importncia econmica das atividades de transformao na provncia.

    Longe de afirmar que as atividades de minerao foram extintas nos oitocentos, o autor

    35 Ibidem. p. 367.36 Ibidem. p. 363.37 Ibidem. p. 48.

    Regies 1831-1840 1854-1857 1872Livre Escrava Livre Escrava Livre Escrava

    Metalrgica

    Mantiqueira

    15.875 9.121 172.283 63.261 383.601 90.148

    Zona da Mata 8.819 5.129 81.832 51.799 279.206 94.559Regio Sul 15.203 7.444 105.540 48.403 279.778 72.223

    Regio Oeste 9.021 3.208 71.903 25.653 201.709 41.373Tringulo 3.267 1.733 24.757 8.672 54.271 10.548

    Alto Paranaba 2.947 1.314 13.366 3.502 80.253 15.901Paracatu 3.363 1.022 31.856 7.576 31.760 2.638

    So Francisco

    Montes Claros

    3.786 1.199 84.471 6.980 81.926 7.507

    Jequitinhonha

    Mucuri Doce

    13.191 4.214 155.541 30.817 277.320 35.012

    Provncia de

    Minas Gerais

    75.477 34.384 714.939 246.643 1.669.276 370.459

  • demonstra categoricamente que a agricultura mercantil de subsistncia foi o grande sustentculo da economia mineira do sculo XIX, pelo qual os homens disponveis para recrutas tiravam seu sustento.

    De acordo com Clotilde Paiva, Minas Gerais do sculo XIX possua uma

    economia diversificada e regionalmente diferenciada38. Criticando a historiografia

    tradicional, que vincula o declnio do ouro e do diamante desarticulao da sociedade

    e da economia (diminuio populacional e estagnao econmica), a autora, inserida

    numa perspectiva revisionista da Histria de Minas, realiza um estudo sistemtico das

    listas nominativas e depoimentos de viajantes estrangeiros, constatando que no houve

    queda demogrfica em Minas durante o sculo XIX. Ao contrrio, nota-se um aumento

    tanto da populao livre quanto da populao escrava.

    Segundo Clotilde Paiva a economia de Minas do sculo XIX estava mais

    organizada regionalmente em comparao ao sculo anterior. Isso porque a riqueza

    criada pela extrao aurfera (caracterstica do perodo colonial) deu origem formao

    e consolidao de ncleos urbanos nos arredores das minas. Tal estrutura impulsionou

    uma economia que supriu as necessidades e a subsistncia dessas vilas, arraiais e

    cidades que assim surgiram. Com a crise da minerao, quando se extinguiu a extrao

    do ouro de aluvio, novas reas foram povoadas, surgindo assim novas fontes de

    produo e mercado39.

    Nesse sentido, o trabalho de Paiva nos informa que a dinmica econmica de

    Minas no sculo XIX est diretamente ligada lgica do povoamento dentro da

    provncia. A autora conclui que:

    Emergiu da uma sociedade provincial heterognea, com base econmica diversificada e dinmica, em estgio avanado da reestruturao que processou-se aps o revs do declnio da minerao aurfera. Coexistem em seu territrio mltiplas formas de trabalho ligadas a uma estrutura produtiva complexa e com fortes vnculos externos40.

    A economia da provncia mineira mostrou fortes vnculos com o mercado

    externo, com exportaes de variados artigos, principalmente gneros agropecurios

    simples ou transformados. Como bem descreve a autora: a agricultura, a pecuria e as

    38 PAIVA, Clodilde de. Populao e Economia nas Minas Gerais do Sculo XIX. Tese de Doutorado. USP, 1996.39 Ibidem. p. 125.40 Ibidem. p. 156.

  • atividades de beneficiamento ou transformao agropecurias constituam o principal

    segmento da economia da Provncia41.

    Em sua tese, Paiva verifica que o trabalho escravo era amplamente utilizado em

    Minas, e no se limitou lavoura de caf. Contudo, esse tipo de trabalho no era

    predominante em todas as regies, e sua importncia variava. Assim como o uso do

    trabalho escravo, as caractersticas demogrficas tambm variavam de acordo com o

    nvel de desenvolvimento de cada regio42.

    Seguindo essa perspectiva, a autora apresenta as variveis demogrficas como

    sexo, condio social, idade, cor/origem e posse de escravos associados economia e ao

    progresso de cada regio da Provncia de Minas Gerais. Nota-se que nas regies

    mineradoras o nvel de desenvolvimento mais elevado, concentrando metade da

    populao provincial43. Nas outras regies, h um ndice de desenvolvimento menor.

    Como demonstra Clodilte Paiva, as variveis demogrficas esto diretamente ligadas s

    condies econmicas de cada localidade. Essa relao entre a economia e os aspectos

    populacionais pode ser exemplificada quando a autora afirma que:

    A presena de alargada e complexa base produtiva reflete uma economia que est em estgio avanado de reestruturao, a minerao h muito perdeu sua posio de atividade nuclear e o resultado no o to decantado fenmeno da decadncia que se manifesta atravs da desorganizao produtiva, fuga de populao e o retrocesso para uma economia de subsistncia. A dinmica manifesta-se tambm no crescimento populacional, na grande presena de escravos, na pujana das atividades mercantis e nos expressivos vnculos com mercados externos44.

    Ao contextualizar a situao social e econmica de Minas, tendo em vista a

    perspectiva revisionista de Douglas Libby e as anlises de Clodilte Paiva, aceitamos o

    argumento de que Minas, aps o declnio da minerao, no deixou de representar uma

    economia dinmica. Mesmo com a decadncia da produo mineral (ouro e pedras

    preciosas), Minas buscou novas alternativas para reerguer sua economia, tendo posio

    de destaque nas exportaes de gneros agrcolas e no autoabastecimento (comrcio

    interno). Com isso, notamos que a economia da provncia de Minas era forte, dinmica

    e expansiva, embora centrada na produo para o mercado interno.

    41 Ibidem. p. 161.42 Ibidem. p. 128.43 Ibidem. p. 132.44 Ibidem. p. 164.

  • Essas novas atividades produtivas alavancaram a economia mineira e

    sustentaram o crescimento populacional durante o perodo do sculo XIX. Ao lado do

    trabalho escravo, houve o aumento da massa de trabalhadores livres que no pode e no

    deve ser ignorada. Novas pesquisas45 vm dando