clifford james a experiencia etnografica cap i e ii

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A experincia etnogrfica16A experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica1918RORTY, R. Contingency, irony, and solidarity. Cambridge: Cambridge.University Press, 1989.STOCKING Jr., G. W. Romantic motives: essays on anthropological sensibility. Madison: The University of Wisconsin Press, 1989.VELHO, O. Besta fera: a recriao do mundo. Rio de Janeiro: Relume Dumar, 1995.VILHENA, L.R. Projeto e misso: o movimento folclrico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro: Fuarte, 1997.WILLIAMS, R. Culture and society, 1780-1950. New York: Harper and Row, 1966.SOBRE A AUTORIDADE ETNOGRFICA

Clifford considera como seus nativos, assim como seus informantes (...), os antroplogos (...) Estamos sendo observados e inscritos.Paul Rabinow, Representations are social facts.

O frontispicio de 1724 do livro Moeurs des sauvages amricains, do Padre Lafitau, retrata o etngrafo como uma jovem mulher sentada numa escrivaninha em meio a objetos do Novo Mundo, da Grcia Clssica e do Egito. Ela est acompanhada por dois querubins - que ajudam na tarefa de comparao - e pela barbuda personagem do Tempo, que aponta para uma cena que representa a fonte primordial da verdade brotando da pena do escritor. A imagem para a qual a jovem mulher dirige seu olhar a de um conjunto de nuvens onde esto Ado, Eva e a serpente. Acima deles esto o homem e a mulher redimidos do Apocalipse, de cada lado de um tringulo que irradia luz e ostenta a inscrio Yahweh, em alfabeto hebraico.J em Os argonautas do Pacfico Ocidental o frontispcio uma fotografia com o ttulo "Um ato cerimonial do kula". Um colar de conchas est sendo oferecido a um chefe trobriands, que est de p na porta de sua casa. Atrs do homem que presenteia o colar, est uma fileira de seis jovens, curvados em reverncia, um dos quais sopra uma concha. Todas as personagens esto deperfil, com a ateno aparentemente concentrada no rito da troca, um evento importante na vida melansia. Mas a um olhar mais atento parece que um dos trobriandeses que se curvam est olhando para a cmera.A alegoria de Lafitau menos familiar: seu autor transcreve, no cria. Diferentemente da foto de Malinowski, a gravura no faz nenhuma referncia experincia etnogrfica - apesar dos cinco anos de pesquisa de Lafitau entre os mohawks, uma pesquisa que lhe granjeou um lugar de honra entre os pesquisadores de campo de qualquer gerao. Seu relato apresentado no como um produto de observao de primeira mo, mas como um produto da escrita em um gabinete repleto de objetos. O frontispcio de Os argonautas, como toda fotografia, afirma uma presena - a da cena diante das lentes; e sugere tambm outra presena - a do etngrafo elaborando ativamente esse fragmento da realidade trobriandesa. O sistema de troca kula, tema do livro de Malinowski, foi transformado em algo perfeitamente visvel, centrado numa estrutura de percepo, enquanto o olhar de um dos participantes redireciona nossa ateno para o ponto de vista do observador que, como leitores, partilhamos com o etngrafo e sua cmera. O modo predominante e moderno de autoridade no trabalho de campo assim expresso: "Voc est l... porque eu estava l".Este estudo traa a formao e a desintegrao da autoridade etnogrfica na antropologia social do sculo XX. No uma explicao completa, nem est baseada numa teoria plenamente desenvolvida da interpretao e da textualidade etnogrfica.1 Os contornos de tal teoria so problemticos, uma vez que a prtica de representao intercultural est hoje mais do que nunca em cheque. O dilema atual est associado desintegrao e redistribuio do poder colonial nas dcadas posteriores a 1950, e s repercusses das teorias culturais radicais dos anos 60 e 70. Aps a reverso do olhar europeu em decorrncia do movimento da "negritude", aps a crise de conscience da antropologia em relao a seu status liberal no contexto da ordem imperialista, e agora que o Ocidente no pode mais se apresentar como o nico provedor de conhecimento antropolgico sobre o outro, tornou-se necessrio imaginar um mundo de etnografia generalizada. Com a expanso da comunicao e da influncia intercultural, as pessoas interpretam os outros, e a si mesmas, numa desnorteante diversidade de idiomas - uma condio global que Mikhail Bakhtin (1953) chamou de "heteroglossia".2 Este mundo ambguo, multivocal, torna cada vez mais difcil conceber a diversidade humana como culturas independentes, delimitadas e inscritas. A diferena um efeito de sincretismo inventivo. Recentemente, trabalhos como o de Edward Said - Orientalismo (1978) - e o de Paulin Hountondji -Sur la "philosophic" africaine (1977) -, levantaram dvidas radicais sobre os procedimentos pelos quais grupos humanos estrangeiros podem ser representados, sem propor, de modo definido e sistemtico, novos mtodos ou epistemologias. Tais estudos sugerem que, se a escrita etnogrfica no pode escapar inteiramente do uso reducionista de dicotomias e essncias, ela pode ao menos lutar conscientemente para evitar representar "outros" abstratos e a-histricos. mais do que nunca crucial para os diferentes povos formar imagens complexas e concretas uns dos outros, assim como das relaes de poder e de conhecimento que os conectam; mas nenhum mtodo cientfico soberano ou instncia tica pode garantir a verdade de tais imagens. Elas so elaboradas - a crtica dos modos de representao colonial pelo menos demonstrou bem isso -a partir de relaes histricas especficas de dominao e dilogo.As experincias de escrita etnogrfica analisadas neste texto no seguem nenhuma direo claramente reformista ou evoluo. Elas so invenes ad hoc, e no podem ser encaradas em termos de uma anlise sistemtica da representao ps-colonial. Elas so talvez melhor compreendidas como componentes daquela "caixa de ferramentas" da teoria engajada sugerida por Gilles Deleuze e Michel Foucault:A noo de teoria como uma espcie de caixa de ferramentas significa: (i) que a teoria a ser construda no um sistema, mas sim um instrumento, uma lgica daA experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica2120especificidade das relaes de poder e das lutas em torno delas; (ii) - que esta investigao s pode se desenvolver passo a passo na base da reflexo (que ser necessariamente histrica em alguns de seus aspectos) sobre determinadas situaes. (Foucault, 1980:145; ver tambm 1977:208)Podemos contribuir para uma reflexo prtica sobre a representao intercultural fazendo um inventrio das melhores, ainda que imperfeitas, abordagens disponveis. Destas, o trabalho de campo etnogrfico permanece como um mtodo notavelmente sensvel. A observao participante obriga seus praticantes a experimentar, tanto em termos fsicos quanto intelectuais, as vicissitudes da traduo. Ela requer um rduo aprendizado lingstico, algum grau de envolvimento direto e conversao, e freqentemente um "desarranjo" das expectativas pessoais e culturais. claro que h um mito do trabalho de campo. A experincia real, cercada como pelas contingncias, raramente sobrevive a esse ideal; mas como meio de produzir conhecimento a partir de um intenso envolvimento intersubjetivo, a prtica da etnografia mantm um certo status exemplar. Alm disso, se o trabalho de campo foi durante algum tempo identificado com uma disciplina singularmente ocidental e uma cincia totalizante, a "Antropologia", tais associaes no so necessariamente permanentes. Os atuais estilos de descrio cultural so historicamente limitados e esto vivendo importantes metamorfoses.O desenvolvimento da cincia etnogrfica no pode, em ltima anlise, ser compreendido em separado de um debate poltico-epistemolgico mais geral sobre a escrita e a representao da alteridade. Nesta discusso, porm, mantive o foco na antropologia profissional, e especificamente na etnografa a partir da dcada de 50.3 A atual crise - ou melhor, disperso - da autoridade etnogrfica torna possvel marcar em linhas gerais um perodo, limitado pelos anos de 1900 e 1960, durante o qual uma nova concepo de pesquisa de campo se estabeleceu como a norma para a antropologia americana e europia. O trabalho de campo intensivo, realizado por especialistas treinados na universidade, emergiu como uma fonte privilegiada e legitimada de dados sobre povos exticos. No se trata aqui da dominncia de um nico mtodo de pesquisa. (Compare-se Griaule, 1957, com Malinowski, 1922: cap. 1). Alm disso, a hegemonia do trabalho de campo foi estabelecida nos Estados Unidos e na Inglaterra antes e de forma mais difusa do que na Frana. Os exemplos pioneiros de Franz Boas e da expedio ao estreito de Torres foram seguidos apenas bem mais tarde pela fundao do Institut d'Ethnologie em 1925 e pela famosa Misso Dakar-Djibouti de 1932 (Karady, 1982; Jamin, 1982a; Stocking, 1983). Apesar disso, em meados da dcada de 30 j se pode falar de um consenso internacional em desenvolvimento: as abstraes antropolgicas, para serem vlidas, deviam estar baseadas, sempre que possvel, em descries culturais intensivas feitas por acadmicos qualificados. Neste momento, o novo estilo havia se tornado popular, sendo institucionalizado e materializado em prticas textuais especficas.Recentemente, tornou-se possvel identificar e assumir uma certa distncia em relao a essas convenes.4 Se a etnografia produz interpretaes culturais atravs de intensas experincias de pesquisa, como uma experincia incontrolvel se transforma num relato escrito e legtimo? Como, exatamente, um encontro intercultural loquaz e sobredeterminado, atravessado por relaes de poder e propsitos pessoais, pode ser circunscrito a uma verso adequada de um "outro mundo" mais ou menos diferenciado, composta por um autor individual?Analisando esta complexa transformao, deve-se ter em mente o fato de que a etnografia est, do comeo ao fim, imersa na escrita. Esta escrita inclui, no mnimo, uma traduo da experincia para a forma textual. O processo complicado pela ao,de mltiplas subjetividades e constrangimentos polticos que esto cima do controle do escritor. Em resposta a estas foras, a escrita etnogrfica encena uma estratgia especfica de autoridade. Essa estratgia tem classicamente envolvido uma afirmao, no questionada, no sentido de aparecer como a provedora da verdadeA experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica2322no texto. Uma complexa experincia cultural enunciada por um indivduo: We the Tkopia, de Raymond Firth; Nous avons mange lafort, de Georges Condominas; Coming of age in Samoa, de Margaret Mead; Os nuer, de E. E. Evans-Pritchard.A discusso que se segue localiza, em primeiro lugar, esta autoridade historicamente, dentro do desenvolvimento de uma cincia da observao participante no sculo XX. A seguir, ela elabora uma crtica das suposies subjacentes a esta autoridade e uma resenha de prticas textuais emergentes. Estratgias alternativas de autoridade etnogrfica podem ser visualizadas em recentes experincias feitas por etngrafos que conscientemente rejeitatn cenas de representao cultural ao estilo do frontispcio do livro de Malinowski. Diferentes verses seculares daquela repleta oficina de escrita de Lafitau esto surgindo. Nos novos paradigmas de autoridade o escritor no est mais fascinado por personagens transcendentes - uma deidade hebraico-crist, ou seus substitutos no sculo XX, o Homem e a Cultura. Nada permaneceu daquele quadro celestial, a no ser a imagem desbotada do antroplogo num espelho. O silncio da oficina etnogrfica foi quebrado -por insistentes vozes heteroglotas e pelo rudo da escrita de outras penas.5 Ao fim do sculo XIX, nada garantia, a priori, o status do etngrafo como o melhor intrprete da vida nativa - em oposio ao viajante, e especialmente ao missionrio e ao administrador, alguns dos quais haviam estado no campo por muito mais tempo e possuam melhores contatos e mais habilidade na lngua nativa. O desenvolvimento da imagem do pesquisador de campo na Amrica, de Frank Hamilton Cushing (um excntrico) a Margaret Mead (uma figura nacional), significativo. Durante este perodo, uma forma particular de autoridade era criada - uma autoridade cientificamente validada, ao mesmo tempo que baseada numa singular experincia pessoal. Durante a dcada de 20, Malinowski desempenhou um papel central na legitimao do pesquisador de campo, e devemos lembrar nesse sentido seus ataques competncia de seus competidores no campo. Por exemplo, o magistrado colonial Alex Rentoul, que teve a temeridade de contradizer as descobertas da cincia sobre as concepes trobriandesas de paternidade, foi excomungado nas pginas da revista Man, por sua perspectiva no-profissional, judiciria (police court perspective) (ver Rentoul, 1931a,b; Malinowski, 1932). O ataque ao amadorismo no campo foi levado ainda mais longe por A. R. Radcliffe-Brown, que, como Ian Langham mostrou, passou a tipificar o profissional da cincia, descobrindo rigorosas leis sociais (Langham, 1981 :cap. 7). O que emergiu durante a primeira metade do sculo XX com o sucesso do pesquisador de campo profissional foi uma nova fuso de teoria geral com pesquisa emprica, de anlise cultural com descrio etnogrfica.O terico-pesquisador de campo substituiu uma diviso mais antiga entre o "man on the spot" (nas palavras de James Frazer) e o socilogo ou antroplogo na metrpole. Esta diviso de trabalho variava em diferentes tradies nacionais. Nos Estados Unidos, por exemplo, Morgan tinha conhecimento pessoal de ao menos algumas das culturas que serviram como material para suas snteses sociolgicas; e Boas foi pioneiro em fazer do trabalho de campo intensivo, condio sine qua non de um discurso antropolgico srio. Em termos gerais, no entanto, antes de Malinowski, Radcliffe-Brown e Mead terem estabelecido com sucesso a norma do scholar treinado na universidade, testando e fazendo teoria a partir de pesquisa de primeira mo, prevalecia uma economia bem diferente do conhecimento etnogrfico. Por exemplo, The Melanesians (1891), de R. H. Codrington, uma detalhada compilao de folclore e costumes, elaborada a partir de um perodo relativamente longo de pesquisa como missionrio e baseado em colaborao intensiva de tradutores e informantes nativos. O livro no est organizado em torno de uma "experincia" de trabalho de campo, nem prope uma hiptese interpretativa unificada, funcional, histrica ou quaisquer outras. Ele se limita a generalizaes de pequeno alcance e compilao de um ecltico conjunto deA experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica2524informaes. Codrington est agudamente consciente da incompletude de seu conhecimento, acreditando que a verdadeira compreenso da vida nativa comea apenas depois de uma dcada, ou algo assim, de experincia e estudo (p. vi-vii). Esta compreenso da dificuldade de se captar o mundo de outros povos - os muitos anos de aprendizado e desaprendizado necessrios, os problemas para se adquirir uma competncia lingstica suficientemente boa -tendia a dominar os trabalhos da gerao de Codrington. Tais suposies seriam em breve desafiadas pelo confiante relativismo cultural do modelo malinowskiano. Os novos pesquisadores de campo se distinguiam nitidamente dos anteriores "men on the spot" -o missionrio, o administrador, o comerciante e o viajante - cujo conhecimento dos povos indgenas, argumentavam, no estava informado pelas melhores hipteses cientficas ou por uma suficiente neutralidade.Antes do surgimento da etnografia profissional, escritores como J. F. McLennan, John Lubbock e E. B. Tylor haviam tentado controlar a qualidade dos relatos sobre os quais estavam baseadas suas snteses antropolgicas. Eles o fizeram por meio do roteiro do Notes and queries, e, no caso de Tylor, atravs do cultivo de relaes de trabalho prolongadas com pesquisadores sofisticados no campo, tais como o missionrio Lorimer Fison. Aps 1883, como recm-nomeado professor conferencista de Antropologia em Oxford, Tylor estimulou a coleta sistemtica de dados etnogrficos por profissionais qualificados. O United States Bureau of Ethnology, j devotado a essa tarefa, forneceu um modelo. Tylor participou ativamente da fundao de um comit sobre as tribos do noroeste do Canad. O primeiro agente do comit na rea foi E. F. Wilson, o veterano missionrio, com 19 anos de experincia entre os ojibwa. Ele foi logo substitudo por Boas, um fsico em processo de mudana para a etnografia profissional. George Stocking argumentou, de forma convincente, que a substituio de Wilson por Boasmarca o incio de uma importante fase no desenvolvimento do mtodo etnogrfico britnico: a coleta de dados por cientistas naturais treinados na academia, definindo-se a si mesmos como antroplogos, e envolvidos tambm na formulao e na avaliao da teoria antropolgica. (1983:74)

Com o pioneiro survey de Boas e a emergncia, na dcada de 1890, de outros pesquisadores de campo que eram cientistas naturais, como A. C. Haddon e Baldwin Spencer, o movimento em direo etnografia profissional estava a caminho. A expedio de 1899 ao estreito de Torres pode ser encarada como a culminncia do trabalho desta "gerao intermediria", como Stocking a chamou. O novo estilo de pesquisa era claramente diferente daquele dos missionrios e outros amadores no campo, e parte de uma tendncia geral que vinha desde Tylor, de "elaborar de modo mais articulado os componentes empricos e tericos da pesquisa antropolgica" (1983:72).No entanto, o estabelecimento da observao participante intensiva como uma norma profissional teria de esperar as hostes malinowskianas. A "gerao intermediria" de etngrafos no vivia tipicamente num s local por um ano ou mais, dominando a lngua nativa e sofrendo uma experincia de aprendizado pessoal comparvel a uma iniciao. Eles no falavam como se fizessem parte daquela cultura, mas mantinham a atitude documentria, observadora, de um cientista natural. A principal exceo antes da terceira dcada do sculo XX, Frank Hamilton Cushing, permaneceu um exemplo isolado. Como Curtis Hinsley sugeriu, a longa pesquisa de primeira mo sobre os zunis, realizada por Cushing, sua quase absoro pelo modo de vida dos nativos, "despertou problemas de verificao e explicao... Uma comunidade de antropologia cientfica nos moldes das outras cincias requeria o uso de uma linguagem comum de discurso, canais de comunicao regular, e pelo menos um consenso mnimo para julgar um mtodo" (1983:66). O conhecimento intuitivo e excessivamente pessoal de Cushing, a respeito dos zuni, no podia oferecer autoridade cientfica.A experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica2627Em termos esquemticos, antes do final do sculo XIX, o etngrafo e o antroplogo, aquele que descrevia e traduzia os costumes e aquele que era o construtor de teorias gerais sobre a humanidade, eram personagens distintos. (Uma percepo clara da tenso entre etnografa e antropologia importante para que se perceba corretamente a unio recente, e talvez temporria, dos dois projetos). Malinowski nos d a imagem do novo "antroplogo": acocorando-se junto fogueira; olhando, ouvindo e perguntando; registrando e interpretando a vida trobriandesa. O estatuto literrio desta nova autoridade est no primeiro captulo de Os argonautas, com suas fotografias, ostensivamente dispostas, da tenda do etngrafo, armada entre as casas da aldeia de Kiriwina. A mais aguda justificao metodolgica para o novo modelo encontrada no Andaman islanders de Radcliffe-Brown (1922). Os dois livros foram publicados com a diferena de um ano de um para outro. E embora seus autores desenvolvam estilos de trabalho de campo e vises sobre a cincia cultural bem diferentes, ambos os textos fornecem argumentos explcitos para a autoridade especial do antroplogo-etngrafo.Malinowski, como mostram suas notas para a crucial Introduo de Os argonautas, estava muito preocupado com o problema retrico de convencer seus leitores de que os fatos que estava colocando diante deles eram objetivamente adquiridos, no criaes subjetivas (Stocking, 1983:105). Alm disso, ele estava totalmente ciente de que "na etnografa, freqentemente imensa a distncia entre a apresentao final dos resultados da pesquisa e o material bruto das informaes coletadas pelo pesquisador atravs de suas prprias observaes,-das asseres dos nativos, do caleidoscpio da vida tribal" (Malinowski, 1922:3-4). Stocking analisou de forma elegante os vrios artifcios literrios de Os argonautas (suas construes narrativas envolventes, o uso da voz ativa no "presente etnogrfico", as dramatizaes encenadas da participao do autor em cenas da vida trobriandesa), tcnicas que Malinowski usou para que "sua prpria experincia quanto / experincia dos nativos [pudesse] se tornar tambm a experincia do leitor" (Stocking, 1983:106; ver tambm Payne, 1981). Os problemas de verificao e explicao que haviam relegado Cushing margem da vida profissional rondavam as preocupaes de Malinowski. Esta ansiedade se reflete na massa de dados contida em Os argonautas, suas 66 ilustraes fotogrficas, e a agora curiosa "Lista cronolgica dos eventos kula testemunhados pelo autor", a constante alternncia entre a descrio impessoal do comportamento tpico e declaraes do gnero "eu testemunhei..." e "Nosso grupo, navegando a partir do norte...".Os argonautas so uma complexa narrativa, simultaneamente sobre a vida trobriandesa e sobre o trabalho de campo etnogrfico. Ela arquetpica do conjunto de etnografias que com sucesso estabeleceu a validade cientfica da observao participante. A histria da pesquisa construda em Os argonautas, no popular trabalho de Mead sobre Samoa e em We the Tikopia, tornou-se uma narrativa implcita subjacente a todos os relatos profissionais sobre mundos exticos. Se as etnografias subseqentes no precisavam incluir relatos de campo desenvolvidos, foi porque tais relatos eram supostos, a partir de uma declarao inicial tal como, por exemplo, a simples frase de Godfrey Leenhardt no incio de Divinity and experience (1961 :vii): "Este livro baseado num trabalho de dois anos entre os dinka, no perodo entre 1947 e 1950".Na dcada de 20, o novo terico-pesquisador de campo desenvolveu um novo e poderoso gnero cientfico e literrio, a etnografia, uma descrio cultural sinttica baseada na observao participante (Thornton, 1983). O novo estilo de representao dependia de inovaes institucionais e metodolgicas que contornavam os obstculos a um rpido conhecimento sobre outras culturas que haviam preocupado os melhores representantes da gerao de Codrington. Essas inovaes podem ser brevemente resumidas.A experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica2829Primeiro, a persona do pesquisador de campo foi legitimada, tanto pblica quanto profissionalmente. No domnio popular, figuras de proa, tais como Malinowski, Mead e Marcel Griaule, transmitiram uma viso da etnografa como cientificamente rigorosa ao mesmo tempo que herica. O etngrafo profissional era treinado nas mais modernas tcnicas analticas e modos de explicao cientfica. Isto lhe conferia, no campo, uma vantagem sobre os amadores: o profissional podia afirmar ter acesso ao cerne de uma cultura mais rapidamente, entendendo suas instituies e estruturas essenciais. Uma atitude prescrita de relativismo cultural distinguia o pesquisador de campo de missionrios, administradores e outros, cuja viso sobre os nativos era, presumivelmente, menos imparcial, e qu estavam preocupados com os problemas poltico-administrativos ou com a converso. Alm da sofisticao cientfica e da simpatia relativista, uma variedade de padres normativos para a nova forma de pesquisa surgiu: o pesquisador de campo deveria viver na aldeia nativa, usar a lngua nativa, ficar um perodo de tempo suficiente (mas raramente especificado), investigar certos temas clssicos, e assim por diante.Segundo, era tacitamente aceito que o etngrafo de novo estilo, cuja estadia no campo raramente excedia a dois anos, e mais freqentemente era bem mais curta, podia eficientemente "usar" as lnguas nativas mesmo sem domin-las. Num significativo artigo de 1939, Margar,et Mead argumentava que o etngrafo, seguindo a prescrio de Malinowski de evitar os intrpretes e conduzindo a pesquisa na lngua nativa, na verdade no precisava demonstrar fluncia nessa lngua, mas podia "us-la" apenas para fazer perguntas, manter contato e de forma geral participar da outra cultura, enquanto obtinha bons resultados de pesquisa em reas particulares de concentrao. Isto com efeito justificava a prpria prtica de Margaret Mead, que se realizava a partir de estadias relativamente curtas e com um foco em domnios especficos, tais como "infncia" ou "personalidade", focos estes que funcionariam como "tipos" para uma sntese cultural. A atitude de Mead em relao ao "uso" da lngua era amplamente caracterstica de uma gerao etnogrfica que podia, por exemplo, reconhecer como legtimo um estudo intitulado Os nuer, que era baseado em apenas onze meses de difcil pesquisa. O artigo de Mead provocou uma aguda resposta de Robert Lowie (1940), que escrevia a partir da primeira tradio boasiana, mais filolgica em sua orientao. Mas sua ao era de retaguarda; de forma geral,* j havia consenso quanto ao ponto segundo o qual uma pesquisa legtima poderia na prtica ser realizada com base em um ou dois anos de familiaridade com uma lngua estrangeira (muito embora, como Lowie sugeria, ningum daria crdito a uma traduo de Proust que fosse baseada num conhecimento equivalente tio francs).Terceiro, a nova etnografia era marcada por uma acentuada nfase no poder de observao. A cultura era pensada como um conjunto de comportamentos, cerimnias e gestos caractersticos passveis de registro e explicao por um observador treinado. Mead frisou bem este ponto (na verdade, seus prprios poderes de anlise visual eram extraordinrios). Como uma tendncia geral, o observador-participante emergiu como uma norma de pesquisa. Por certo o trabalho de campo bem-sucedido mobilizava a mais completa variedade de interaes, mas uma distinta primazia era dada ao visual: a interpretao dependia da descrio. Aps Malinowski, uma suspeita generalizada em relao aos "informantes privilegiados" refletia esta preferncia sistemtica pelas observaes (metdicas) do etngrafo em detrimento das interpretaes (interessadas) das autoridades nativas.Quarto, algumas poderosas abstraes tericas prometiam auxiliar os etngrafos acadmicos a "chegar ao cerne" de uma cultura mais rapidamente do que algum, por exemplo, que empreendesse um inventrio exaustivo de costumes e crenas. Sem levar anos para conhecer os nativos, seus complexos hbitos e lngua, em ntimos detalhes, o pesquisador podia ir atrs de dados selecionados que permitiriam a construo de um arcabouo central,A experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica3130ou "estrutura", do todo cultural. O "mtodo genealgico" de Rivers, seguido pelo modelo de Radcliffe-Brown baseado na noo de "estrutura social", fornecia essa espcie de atalho. Era como se algum pudesse deduzir os termos de parentesco sem uma profunda compreenso da lngua nativa e o necessrio conhecimento contextual convenientemente limitado.Quinto, uma vez que a cultura, vista como um todo complexo, estava sempre alm do alcance numa pesquisa de curta durao, o novo etngrafo pretendia focalizar tematicamente algumas instituies especficas. O objetivo no era contribuir para um completo inventrio ou descrio de costumes, mas sim chegar ao todo atravs de uma ou mais de suas partes. J mencionei o privilgio que se deu, por um certo tempo, estrutura social. Um ciclo de vida individual, um complexo ritual como o circuito do kula ou a cerimnia do naven poderiam tambm servir, assim como categorias de comportamento tais como economia, poltica, e assim por diante. Na retrica da nova etnografia, predominantemente fundada na sindoque, as partes eram concebidas como microcosmos ou analogias do todo. Na representao de um universo coerente, o cenrio composto por instituies em primeiro plano, situadas contra panos de fundo culturais, adequava-se a convenes literrias realistas.Sexto, os todos assim representados tendiam a ser sincrnicos, produtos de uma atividade de pesquisa de curta durao. O pesquisador de campo, operando de modo intensivo, poderia, de forma plausvel, traar o perfil do que se convencionou chamar "presente etnogrfico" - o ciclo de um ano, uma srie de rituais, padres de comportamento tpico. Introduzir uma pesquisa histrica de longa durao teria complicado e tornado impossvel a tarefa do novo estilo de trabalho de campo. Assim, quando Malinowski e Radcliffe-Brown estabeleceram sua crtica "histria conjectural" dos difusionistas, foi muito fcil excluir os processos diacrnicos como objetos do trabalho de campo, com conseqncias que tm sido suficientemente apontadas.

Estas inovaes serviram para validar uma etnografia eficiente, baseada na observao participante cientfica. Seus efeitos combinados podem ser vistos claramente no que pode ser considerado o tour de force da nova etnografia, Os nuer de Evans-Pritchard, publicado em 1940. Baseado em onze meses de pesquisa realizada em condies quase impossveis, Evans-Pritchard foi todavia capaz de compor um clssico. Ele chegou, como a notvel introduo do livro nos informa, ao territrio nuer logo aps uma expedio militar punitiva, respondendo a uma solicitao urgente do governo do Sudo anglo-egpcio, e foi o objeto de intensa e constante suspeio. Apenas nos poucos meses finais pde conversar efetivamente com os informantes que, conta ele, eram mestres em esquivar-se de suas perguntas. Em tais circunstncias^ sua monografia uma espcie de milagre.Ao fazer proposies limitadas e sem fazer segredo das dificuldades de sua pesquisa, Evans-Pritchard conseguiu apresentar seu estudo como uma demonstrao da eficcia da teoria. Ele focaliza a "estrutura" social e poltica dos nuer, analisada como um conjunto abstrato de relaes entre segmentos territoriais, linhagens, conjuntos etrios e outros grupos mais fluidos. Este conjunto analiticamente construdo representado contra um pano de fundo "ecolgico" composto por padres migratrios, relaes com o gado, noes de tempo e espao. Evans-Pritchard distingue claramente seu mtodo daquilo que ele chama de documentao "fortuita" (malinowskiana). Os nuer no um extenso compndio de observaes e textos em lngua nativa ao estilo do Os argonautas e do Coral gardens de Malinowski. Evans-Pritchard argumenta com rigor que "os fatos s podem ser selecionados e articulados luz da teoria". A singela abstrao de uma estrutura poltico-social oferece o necessrio enquadramento. Se eu for acusado de descrever fatos como exemplificaes de minha teoria, ele ento assinala, terei sido compreendido (1969:261).A experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica3233Em Os nuer, Evans-Pritchard defende abertamente o poder da abstrao cientfica para direcionar a pesquisa e articular dados complexos. O livro freqentemente se apresenta mais como um argumento do que como uma descrio, mas no consistentemente: seu argumento terico cercado por evocaes e interpretaes habilmente narradas e observadas sobre a vida dos nuer. Estas passagens funcionam retoricamente como mais do que apenas "exemplificaes", pois efetivamente envolvem o leitor na complexa subjetividade da observao participante. Isto pode ser visualizado num pargrafo caracterstico, que se desenvolve atravs de uma srie de posies discursivas descontnuas:E difcil encontrar, em ingls, uma palavra que descreva adequadamente a posio social dos diel numa tribo. Chamamo-nos aristocratas, mas no pretendemos dizer que os nuer os consideram como de grau superior pois, como ressaltamos enfaticamente, a idia de algum predominando sobre os demais lhes repugna. No conjunto - explicaremos esta colocao mais adiante - os diel tm mais prestgio do que posio, e mais influncia do que poder. Se voc um diel da tribo em que vive, voc mais do que um membro da tribo. E um dos donos da regio, do terreno da aldeia, dos pastos, dos reservatrios de pesca e dos poos. Outras pessoas vivem ali em virtude de casamentos feitos com membros de seu cl, da adoo pela sua linhagem ou algum outro lao social. Voc um lder da tribo, e o nome-de-lana de seu cl invocado quando a tribo entra em guerra. Sempre que h um diel numa aldeia, esta se agrupa a seu redor assim como o gado se agrupa ao redor de seu touro.6As primeiras trs frases so apresentadas como um argumento sobre traduo, mas de passagem elas atribuem aos nuer um conjunto estvel de atitudes. (Mais adiante comentarei mais esse estilo de atribuio). Em seguida, nas quatro frases que comeam por "Se voc um diel...", a construo na segunda pessoa une o leitor e o nativo numa participao textual. A frase final, apresentada como a descrio direta de um acontecimento tpico (que o leitor agora assimila do ponto de vista do observador-participante), evoca a cena por meio das metforas nuer sobre gado. Nas oito frases do pargrafo, um argumento sobre traduo transforma-se numa fico de participao e em seguida numa fuso metafrica de descries culturais estrangeiras e nativas. Realiza-se, assim, a unio subjetiva de anlise abstrata com experincia concreta.Evans-Pritchard depois se afastaria da posio terica assumida em Os nuer, rejeitando sua defesa da "estrutura social" como um enquadramento privilegiado. Na verdade, cada um dos "atalhos" do trabalho de campo que enumerei anteriormente era e continua sendo contestado. Ainda que, atravs de sua disposio em diferentes combinaes, a autoridade do terico-pesquisador de campo acadmico tenha sido estabelecida entre os anos de 1920 e 1950. Esse amlgama peculiar de experincia pessoal intensa e anlise cientfica (entendida nesse perodo tanto como "rito de passagem" quanto como "laboratrio") emergiu como um mtodo: a observao participante. Ainda que entendido de formas variadas, e agora questionado em muitos lugares, esse mtodo continua representando o principal trao distintivo da antropologia profissional. Sua complexa subjetividade rotineiramente reproduzida na escrita e na leitura das etnografas.

A observao participante serve como uma frmula para o contnuo vaivm entre o "interior" e o "exterior" dos acontecimentos: de um lado, captando o sentido de ocorrncias e gestos especficos, atravs da empatia; de outro, d um passo atrs, para situar esses significados em contextos mais amplos. Acontecimentos singulares, assim, adquirem uma significao mais profunda ou mais geral, regras estruturais, e assim por diante. Entendida de modo literal, a observao-participante uma frmula paradoxal e enganosa, mas pode ser considerada seriamenteA experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica3534se reformulada em termos hermenuticos, como uma dialtica entre experincia e interpretao. Assim como os mais recentes e persuasivos defensores do mtodo o reelaboraram, na tradio que vem de Wihelm Dilthey, passa por Max Weber e chega at os antroplogos dos "smbolos e dos significados", como Clifford Geertz. Experincia e interpretao tm recebido, no entanto, nfases diferentes quando apresentadas como estratgias de autoridade. Em anos recentes, tem havido um notvel deslocamento de nfase do primeiro para o segundo termo. Este e os prximos segmentos do texto vo explorar os diferentes usos da experincia e da interpretao assim como o desdobramento de sua inter-relao.O crescente prestgio do terico-pesquisador de campo colocou em segundo plano (sem elimin-la) uma srie de processos e mediadores que haviam figurado de modo mais destacado nos mtodos anteriores. Vimos como o domnio da lngua foi definido como um nvel de uso adequado para reunir um conjunto pequeno de dados num limitado perodo de tempo. As tarefas da transcrio textual e da traduo, junto com o papel dialgico crucial de intipretes e "informantes privilegiados", foram relegadas a um status secundrio, ou mesmo desprezadas. O trabalho de campo estava centrado na experincia do scholar que observava-participava. Uma ntida imagem, ou narrativa, surgiu - a de um estranho entrando em uma cultura, sofrendo um tipo de iniciao que levaria a um rapport (minimamente aceitao e empatia, mas usualmente implicando algo prximo amizade). A partir dessa experincia emergia, de modos no especificados, um texto representacional, escrito pelo observador-participante. Como veremos, esta verso da produo textual obscurece tanto quanto revela. Mas vale a pena considerar seriamente o seu pressuposto principal: o de que a experincia do pesquisador pode servir como uma fonte unificadora da autoridade no campo.A autoridade experiencial est baseada numa "sensibilidade" para o contexto estrangeiro, uma espcie de conhecimento tcito acumulado, e um sentido agudo em relao ao estilo de um povo ou de um lugar. Esse requisito freqentemente explcito nos textos dos primeiros observadores-participantes profissionais. A suposio de Margaret Mead de poder captar o princpio ou ethos subjacente a uma cultura atravs de uma sensibilidade aguada forma, tom, gesto e estilos de comportamento, e a nfase de Malinowski em sua vida na aldeia e a compreenso derivada dos "imponderveis da vida real" so exemplos destacados. Muitas etnografas - por exemplo, a de Colin Turnbull, Forest people (1962) - ainda so apresentadas no modo experiencial, defendendo, anteriormente a qualquer hiptese de pesquisa ou mtodo especficos, o "eu estava l" do etngrafo como membro integrante e participante.Certamente difcil dizer muita coisa a respeito de "experincia". Assim como "intuio", ela algo que algum tem ou no tem, e sua invocao freqentemente cheira a mistificao. Todavia, pode-se resistir tentao de transformar toda experincia significativa em interpretao. Embora as duas estejam reciprocamente relacionadas, no so idnticas. Faz sentido mant-las separadas, quanto mais no seja porque apelos experincia muitas vezes funcionam como validaes para a autoridade etnogrfica.O argumento mais srio sobre o papel da experincia nas cincias histricas e culturais est contido na noo geral de Verstehen.1 Na influente viso de Dilthey (1914), o ato de compreender os outros inicialmente deriva do simples fato da coexistncia num mundo que partilhado; mas esse mundo experiencial, um terreno intersubjetivo para formas objetivas de conhecimento, precisamente o que falta, ou problemtico, para um etngrafo ao penetrar uma cultura estrangeira. Assim, durante os primeiros meses no campo (e na verdade durante toda a pesquisa), o que acontece um aprendizado da linguagem, em seu sentido mais amplo. A "esfera comum" de Dilthey deve ser estabelecida e restabelecida, a partir da construo de um mundo de experincias partilhadas, em relao ao qual todos os "fatos", "textos", "eventos" e suas interpretaes sero construdos. Esse processo d se viver a entrada num universo expressivo estranho sempreA experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica3637subjetivo, por natureza, mas se torna rapidamente dependente do que Dilthey chama de "expresses permanentemente fixadas", formas estveis s quais a compreenso pode sempre retornar. A exegese dessas formas fornece o contedo de todo conhecimento sistemtico histrico-cultural. Assim, a experincia est intimamente ligada interpretao. (Dilthey est entre os primeiros tericos modernos a comparar a compreenso de formas culturais com a leitura de "textos"). Mas esse tipo de leitura ou exegese no pode ocorrer sem uma intensa participao pessoal, um ativo "sentir-se em casa" num universo comum.Seguindo os passos deDilthey, a "experincia" etnogrfica pode ser encarada como a construo de um mundo comum de significados, a partir de estilos intuitivos de sentimento, percepo e inferncias. Essa atividade faz uso de pistas, traos, gestos e restos de sentido antes de desenvolver interpretaes estveis. Tais formas fragmentrias de experincia podem ser classificadas como estticas e/ou divinatrias. H espao aqui para apenas algumas palavras sobre tais estilos de compreenso em sua relao com a etnografia. Uma evocao de um modo esttico convenientemente fornecido por A. L. Krqeber, em uma resenha de 1931 do Growing up in New Guinea de Mead:Primeiro de tudo, est claro que ela possui em grau elevado as faculdades de apreender^rapidamente as principais tendncias que uma cultura impinge aos indivduos, e de deline-las em retratos compactos de incrvel agudeza. O resultado uma representao de extraordinria vivacidade e semelhana em relao vida. Obviamente, algo de um sensacionalismo intelectualizado, ainda que forte, subjaz a essa capacidade; tambm obviamente, h um alto grau de intuio, no sentido da habilidade de compor um quadro convincente a partir de pistas, pois pistas so tudo o que alguns de seus dados podem ser, com apenas seis meses para aprender uma lngua e penetrar no interior de toda uma cultura, alm da especializao em comportamento infantil. De qualquer forma, o quadro, to longe quanto pode ir, totalmente convincente para este resenhador, que admira sem reservas a segurana dos insights e a eficincia do trao da autora na descrio, (p. 248)Uma formulao diferente fornecida por Maurice Leenhardt em Do Kaino: la personne et le mythe dans le monde mlansien (1937), um livro que, em seu por vezes enigmtico modo de exposio, requer de seus leitores justamente o tipo de percepo esttica e gestltica, na qual distinguiam-se, tanto Mead quanto Leenhardt. O endosso de Leenhardt a esse tipo de abordagem significativo, uma vez que, dada sua experincia de campo extremamente longa, e seu profundo cultivo de uma lngua melansia, seu mtodo no pode ser visto como uma racionalizao para uma etnografa de curto prazo:Na verdade, nosso contato com o outro no realizado atravs da anlise. Antes, ns o apreendemos como um todo. Desde o incio, podemos esboar nossa viso dele a partir de um detalhe simblico, ou de um perfil, que contm um todo em si mesmo e evoca a verdadeira forma xde seu modo de ser. Esta ltima o que nos escapa se abordamos nosso prximo usando apenas as categorias) de nosso intelecto.Outro modo de levar a srio a experincia como fonte de conhecimento etnogrfico fornecido pelos estudos de Cario Ginzburg (1990:143-180) sobre a complexa tradio das prticas de adivinhao. Sua pesquisa abrange desde as primeiras interpretaes feitas por caadores a partir de rastros dos animais, passando pelas formas mesopotmicas de predio, pelo deci-framento de sintomas na medicina hipocrtica, pela ateno aos detalhes na identificao de falsificao no mundo da arte, at Freud, Sherlock Holmes e Proust. Estes estilos de adivinhao, que no passam pela experincia do transe, apreendem relaes circunstanciais especficas de significado e esto baseadas em palpites, na leitura de indcios aparentemente disparatados e emA experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica3938ocorrncias casuais. Ginzburg prope seu modelo de "conhecimento conjectural" como um modo disciplinado de compreenso, no-generalizante e abdutivo, que de importncia central para as cincias culturais, embora isso no seja reconhecido. Esse modelo pode se somar a um estoque de recursos que na verdade bem modesto, e que serve para entender com mais preciso como algum se sente ao penetrar numa situao etnogrfica no-familir.Precisamente porque difcil pin-la, a "experincia" tem servido como uma eficaz garantia de autoridade etnogrfica. H, sem dvida, uma reveladora ambigidade no termo. A experincia evoca uma presena participativa, um contato sensvel com o mundo a ser compreendido, uma relao de afinidade emocional com seu povo, uma concretude de percepo. A palavra tambm sugere um conhecimento cumulativo, que vai se aprofundando ("sua experincia de dez anos na Nova Guin"). Os sentidos se juntam para legitimar o sentimento ou a intuio real, ainda que inexprimvel, do etngrafo a respeito do "seu" povo. E importante notar, porm, que esse "mundo", quando concebido como uma criao da experincia, subjetivo, no dialgico ou intersubjetivo. O etngrafo acumula conhecimento pessoal sobre o campo (a forma possessiva "meu povo" foi at recentemente bastante usada nos crculos antropolgicos, mas a frase na verdade significa "minha experincia").

E compreensvel, dado seu carter vago, que o critrio experiencial da autoridade - crenas no problematizadas no "mtodo" da observao participante, no poder das relaes de afinidade emocional, da empatia, etc. - tenha sido submetido a crticas por antroplogos hermeneuticamente sofisticados. O segundo momento na dialtica entre experincia e intepretao tem recebido ateno e elaborao crescentes (ver, por exemplo, Geertz, 1973, 1976; Rabinow e Sullivan, 1979; Winner, 1976; Sperber, 1981). A interpretao, baseada num modelo filolgic de "leitura" textual, surgiu como uma alternativa sofisticada s afirmaes hoje aparentemente ingnuas de autoridade experiencial. A antropologia interpretativa desmistifica muito do que anteriormente passara sem questionamento na construo de narrativas, tipos, observaes e descries etnogrficas. Ela contribui para uma crescente visibilidade dos processos criativos (e, num sentido amplo, poticos) pelos quais objetos "culturais" so inventados e tratados como significativos.O que est suposto no ato de se olhar a cultura como um conjunto de textos a serem interpretados? Um estudo clssico fornecido por Paul Ricoeur, em seu ensaio The model of text: meaningful action considered as a text (1971). Clifford Geertz, numa srie de estimulantes e sutis discusses, adaptou a teoria de Ricoeur ao trabalho de campo antropolgico (1973:cap.l). A "textualizao" entendida como um pr-requisito para a interpretao, a constituio das "expresses fixadas" de Dilthey. Trata-se do processo atravs do qual o comportamento, a fala, as crenas, a tradio oral e o ritual no escritos vm a ser marcados como um corpus, um conjunto potencialmente significativo, separado de uma situao discursiva ou "performativa" imediata. No momento da textualizao, este corpus significativo assume uma relao mais ou menos estvel com um contexto; e j conhecemos o resultado final desse processo em muito do que considerado como uma descrio etnogrfica densa. Por exemplo, dizemos que uma certa instituio ou segmento de comportamento so tpicos de, ou um elemento comunicativo em, uma cultura circundante, como a famosa briga de galos de Geertz (1973:cap. 15), que se torna um locus intensamente significativo da cultura balinesa. So criadas reas de sindoques nas quais partes so \ relacionadas a todos, e atravs das quais o todo - que usualmente chamamos de cultura - constitudo.Ricoeur na verdade no privilegia as relaes entre parte e todo nem as formas especficas de analogia que constituem asA experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica4140representaes funcionalistas ou realistas. Ele simplesmente prope uma relao necessria entre o texto e o "mundo". Um mundo no pode ser apreendido diretamente; ele sempre inferido a partir de suas partes, e as partes devem ser separadas conceituai e perceptualmente do fluxo da experincia. Desse modo, a textualizao gera sentido atravs de um movimento circular que isola e depois contextualiza um fato ou evento em sua realidade englobante. Um modo familiar de autoridade gerado a partir da afirmao de que se esto representando mundos diferentes e significativos. A etnografia a interpretao das culturas.Um segundo passo fundamental na anlise de Ricoeur seu estudo do processo pelo qual o "discurso" se torna texto. O discurso, na clssica discusso de Emile Benveniste (1971:217230), um modo de comunicao no qual so intrnsecas as presenas do sujeito que fala e da situao imediata da comunicao. O discurso marcado pelos pronomes (explcitos ou implcitos) eu e voc, e pelos diticos - este, aquele, agora, etc. -que assinalam o momento presente do discurso, ao invs de algo alm dele. O discurso no transcende a ocasio especfica na qual um sujeito se apropria dos recursos da linguagem para se comunicar dialogicamente. Ricoeur argumenta que o discurso no pode ser interpretado do modo aberto e potencialmente pblico como um texto "lido". Para entender o discurso, "voc tem de ter estado l", na presena do sujeito. Para o discurso se tornar texto, ele deve se transformar em algo "autnomo", nos termos de Ricoeur, separado de uma locuo especfica e de uma inteno autoral. A interpretao no uma interlocuo. Ela no depende de estar na presena de algum que fala.A relevncia desta distino para a etnografia talvez bvia demais. Em ltima anlise, o etngrafo sempre vai embora, levando com ele textos para posterior interpretao (e entre estes "textos" que so levados podemos incluir as memrias - eventos padronizados, simplificados, retirados do contexto imediato para serem interpretados numa reconstruo e num retrato posteriores). O texto, diferentemente do discurso, pode viajar. Se muito da escrita etnogrfica, produzido no campo, a real elaborao de uma etnografa feita em outro lugar. Os dados constitudos em condies discursivas, dialgicas, so apropriados apenas atravs de formas textualizadas. Os eventos e os encontros da pesquisa se tornam anotaes de campo. As experincias tornam-se narrativas, ocorrncias significativas ou exemplos.Esta traduo da experincia da pesquisa num corpus textual separado de suas ocasies discursivas de produo tem importantes conseqncias para a autoridade etnogrfica. Os dados assim reformulados no precisam mais ser entendidos como a comunicao de pessoas especficas. Uma explicao ou descrio de um costume por um informante no precisa ser construda de uma forma que inclua a mensagem "fulano e fulano disseram isso". Um ritual ou um evento textualizados no estojnais intimamente ligados produo daquele evento por atores especficos. Em vez disso, estes textos se tomam evidncias de um contexto englobante, uma realidade "cultural". Alm disso, como os autores e atores especficos so separados de suas produes, um "autor" generalizado deve ser inventado, para dar conta do mundo ou contexto dentro do qual os textos so ficcionalmente realocados. Este "autor generalizado" aparece sob uma variedade de nomes: o ponto de vista nativo, "os trobriandeses", "os nuer", "os dogon", como estas e outras expresses similares aparecem nas etnografias. "Os balineses" funcionam como os "autores" da briga de galos textualizada por Geertz.O etngrafo, portanto, usufrui de uma relao especial com uma origem cultural ou um "sujeito absoluto" (Michel-Jones, 1978:14). tentador comparar o etngrafo com o intrprete literrio (e esta comparao cada vez mais um lugar-comum) - mas mais especificamente com o crtico tradicional, que encara como sua a tarefa de organizar os significados no controlados em um texto numa nica inteno coerente. Ao representar os nuer, os trobriandeses ou os balineses como sujeitos totais, fontes de uma intenoA experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica4243cheia de significados, o etngrafo transforma as ambigidades e diversidades de significado da situao de pesquisa num retrato integrado. E importante, porm, assinalar o que foi deixado de lado. O processo de pesquisa separado dos textos que ele gera e do mundo fictcio que lhes cabe evocar. A realidade das situaes discursivas e dos interlocutores individuais filtrada. Mas os informantes - juntamente com as notas de campo - so intermedirios cruciais, so tipicamente excludos de etnografas legtimas. Os aspectos dialgicos, situacionais, da interpretao etnogrfica tendem a ser banidos do texto representativo final. No inteiramente banidos, claro; existem a topo i aprovados para traar o retrato do processo de pesquisa.Estamos cada vez mais familiarizados com o relato do trabalho de campo feito em separado (um subgnero que ainda tende a ser classificado como subjetivo, "leve", ou no-cientfico), mas mesmo nas etnografas clssicas, "fbulas do contato" mais ou menos estereotpicas narram a realizao do pleno status de observador-participante. Essas fbulas podem ser contadas de forma elaborada ou resumidamente, ingnua ou ironicamente. Elas normalmente retratam a inicial ignorncia do etngrafo, os mal-entendidos, a falta de contatos - freqentemente, um tipo &status semelhante ao da criana numa cultura. No Bildungsgeschichte da etnografa, estes estados de inocncia ou confuso so substitudos por um conhecimento adulto, confiante e desabusado. Podemos citar novamente a briga de galos de Geertz, em que uma inicial alienao em relao aos balineses, um confuso status de "no-pessoa", transformada pela atraente fbula da batida policial e sua demonstrao de cumplicidade (1978:278-283). A anedota estabelece um pressuposto de conexo, que permite ao escritor funcionar em sua anlise subseqente como um exegeta e um porta-voz onipresente e sbio. Este intrprete situa o esporte ritual como um texto num mundo contextual e brilhantemente "l" seus significados culturais. O abrupto desaparecimento de Geertz em sua relao - a quase-invisibilidade da observao participante paradigmtico. Aqui ele faz uso de uma conveno estabelecida para encenar a realizao da autoridade etnogrfica. Como resultado, raramente ficamos cientes do fato de que uma parte essencial da construo da briga de galos como texto dialgica - a conversa do autor cara a cara com balineses especficos, e no a leitura da cultura "por cima de seus ombros" (1973:452).

A antropologia interpretativa, ao ver as culturas como conjuntos de textos, frouxa e, por vezes, contraditoriamente unidos, e ao ressaltar a inventiva potica em funcionamento em toda representao coletiva, contribuiu significativamente para o estranhamento da autoridade etnogrfica. Em seus principais aspectos realistas, porm, no escapa aos limites gerais apontados por aqueles crticos da representao "colonial" que, desde 1950, tm rejeitado discursos que retratem as realidades culturais de outros povos sem colocar sua prpria realidade em questo. Nas pioneiras crticas de Michel Leiris, e nas de Jacques Maquet, Talai Asad e muitos outros, a qualidade de no-reciprocidade da interpretao etnogrfica tem sido questionada (Leiris, 1950; Maquet, 1964; Asad, 1973). Conseqentemente, nem a experincia nem a atividade interpretativa do pesquisador cientfico podem ser consideradas inocentes. Torna-se necessrio conceber a etnografia no como a experincia e a interpretao de uma "outra" realidade circunscrita, mas sim como uma negociao construtiva envolvendo pelo menos dois, e muitas vezes mais, sujeitos conscientes e politicamente significativos. Paradigmas de experincia e interpretao esto dando lugar a paradigmas discursivos de dilogo e polifonia. At o final deste artigo, vamos resenhar esses emergentes modos de autoridade.Um modelo discursivo de prtica etnogrfica traz para o centro da cena a intersubjetividade de toda fala, juntamente com seu contexto performati vo imediato. O trabalho de Benveniste sobre o papel constitutivo dos pronomes pessoais e demonstrativosA experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica4544ressalta justamente estas dimenses. Todo uso do pronome eu pressupe um voc, e cada instncia do discurso imediatamente ligada a uma situao especfica, compartilhada; assim, no h nenhum significado discursivo sem interlocuo e contexto. A relevncia desta nfase para a etnografia evidente. O trabalho de campo significativamente composto de eventos de linguagem; mas a linguagem, nas palavras de Bakhtin, "repousa nas margens entre o eu e o outro. Metade de uma palavra, na linguagem, pertence a outra pessoa". O crtico russo prope que se repense a linguagem em termos de situaes discursivas especficas: "No h", escreve ele, "nenhuma palavra ou forma 'neutra' - palavras e formas que podem no pertencer a 'ningum'; a linguagem completamente tomada, atravessada por intenes e sotaques". As palavras da escrita etnogrfica, portanto, no podem ser pensadas como monolgicas, como a legtima declarao sobre, ou a interpretao de uma realidade abstrada e textualizada. A linguagem da etnografia atravessada por outras subjetividades e nuances contextuais especficas, pois toda linguagem, na viso de Bakhtin, uma "concreta concepo heteroglota do mundo" (1953:293).As formas da escrita etnogrfica que se apresentam no modo "discursivo" tendem a estar mais preocupadas com a representao dos contextos de pesquisa e situaes de interlocuo. Portanto, um livro como o de Paul Rabinow, Reflections on fieldwork in Morocco (1977) se preocupa com a representao de uma especfica situao de pesquisa (uma srie de tempos e lugares limitadores) e (de uma forma algo ficcional) de uma seqncia de interlocutores individuais. Na verdade todo um novo subgnero de "relatos sobre o trabalho de campo" (do qual o de Rabinow um dos mais vigorosos) podem ser situados dentro do paradigma discursivo da escrita etnogrfica. O texto de Jeanne Favret-Saada, Les mots, la mort, les sorts (1977), uma experincia incisiva e autoconsciente de etnografa num modo discursivo.8 Ela afirma que o evento da interlocuo sempre destina ao etngrafo uma posio especfica numa teia de relaes intersubjetivas. No h nenhuma posio neutra no campo de poder dos posicionamentos discursivos, numa cambiante matriz de relacionamentos de eus e vocs.Uma srie de recentes trabalhos tem escolhido apresentai-os processos discursivos da etnografia sob a forma de um dilogo entre dois indivduos. O texto de Camille Lacoste-Dujardin, Dialogue desfemmes en ethnologic (1977), o de Jean-Paul Dumont, The headman and I (1978) e o de Marjorie Shostak, Nisa: the life and words ofalkung woman (1981), so exemplos dignos denota. O modo dialgico representado com considervel sofisticao em dois outros textos. O primeiro, as reflexes tericas de Kevin Dwyer sobre a "diogica da etnologia", nasce de uma srie de entrevistas com um informante-chave e justifica a deciso de Dwyer de estruturar sua etnografia na forma de um registro bastante literal desses intercmbios (1977,1979,1982). O segundo trabalho, mais complexo, o de Vicent Crapanzano, Tuhami: portrait of a Moroccan, outro relato de uma srie de entrevistas que rejeita qualquer separao ntida entre um eu que interpreta e um outro textualizado (1980; ver tambm 1977). Tanto Dwyer quanto Crapanzano colocam a etnografia num processo de dilogo em que os interlocutores negociam ativamente uma viso compartilhada da realidade. Crapanzano argumenta que esta mtua construo est presente em qualquer encontro etnogrfico, mas que os participantes tendem a supor que eles simplesmente aquiesceram em relao realidade do outro interlocutor. Assim, por exemplo, o etngrafo das Ilhas Trobriand no elabora abertamente uma verso da realidade em colaborao com seus informantes, mas sim interpreta o "ponto de vista trobriands". Crapanzano e Dwyer oferecem tentativas sofisticadas de romper com esta conveno literrio-hermenutica. Nesse processo, a autoridade do etngrafo como narrador e intrprete alterada. Dwyer prope uma hermenutica da "vulnerabilidade", frisando as lacunas do trabalho de campo, a posio dividida e o controle imperfeito por parte do etngrafo. Tanto Crapanzano quanto Dwyer buscam representar a experincia da pesquisa de uma formaA experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica4647que expe a tessiturtextualizada do outro, e assim tambm do eu que interpreta.9 (Aqui as etimologias so evocativas: a palavra texto est relacionada, como se sabe, com tecelagem, e vulnerabilidade, com entrega ou com ferimento, significando, nesta instncia, a abertura de uma autoridade at ento fechada).O modelo do dilogo ressalta precisamente aqueles elementos discursivos - circunstanciais e intersubjetivos - que Ricoeur teve de excluir de seu modelo de texto. Mas se a autoridade interpretativa est baseada na excluso do dilogo, o reverso tambm verdadeiro: uma autoridade puramente dialgica reprimiria o fato inescapvel da textualizao. Enquanto as etnografias articuladas como encontros entre dois indivduos podem com sucesso'dramatizar o dar-e-receber intersubjetivo do trabalho de campo e introduzem um contraponto de vozes autorais, elas permanecem representaes do dilogo. Como textos, elas podem no ser dialgicas em sua estrutura, pois, como Steven Tyler (1981) assinala, embora Scrates aparea como um participante descentrado em seus encontros, Plato retm o pleno controle do dilogo. Este deslocamento, mas no eliminao, da autoridade monolgica - caracterstico de qualquer abordagem que retrate o etngrafo como um personagem distinto na narrativa do trabalho de campo. Alm disso, h uma freqente tendncia, nas fices de dilogo, a apresentar o interlocutor do etngrafo como o representante, ou a representante, de sua cultura - um tipo, na linguagem do realismo tradicional - atravs do qual os processos sociais gerais so revelados.10 Tal retrato restabelece a autoridade interpretativa fundada na sindoque, atravs da qual o etngrafo l o texto em relao ao contexto, constituindo, desse modo, um "outro" mundo significativo. Se difcil, para representaes dialgicas, escapar de procedimentos tipificantes, elas podem, num grau considervel, resistir ao impulso de representar o outro de forma autolegitimadora. Isto depende de sua habilidade ficcional em manter a estranheza da outra voz e de no perder de vista as contingncias especficas do intercmbio.

Dizer que uma etnografia composta de discursos e que seus diferentes componentes esto relacionados dialogicamente no significa dizer que sua forma textual deva ser a de um dilogo literal. Na verdade, como Crapanzano reconhece em Tuhami, um terceiro participante, real ou imaginado, funciona como mediador em qualquer encontro entre dois indivduos (1980:147-151). O dilogo ficcional de-fatd uma condensao, uma representao simplificada de complexos processos multivocais. Uma maneira alternativa de representar essa complexidade discursiva entender o curso geral da pesquisa como uma negociao em andamento. O caso de Marcel Griaule e os dogon bem conhecido e particularmente esclarecedor. O relato de Griaule sobre seu aprendizado da sabedoria cosmolgica dogon, Dieu d'eau (1948a), foi um pioneiro exerccio de narrao etnogrfica dialgica. Para alm desta situao interlocutria especfica, porm, um processo mais complexo estava em funcionamento, pois claro que o contedo e o gradual ajustamento da longa pesquisa feita pela equipe de Griaule, que durou dcadas, foram monitorados de perto e modelados de forma significativa pelas autoridades tribais dogon (ver discusso aprofundada em "Poder e dilogo na etnografia: a iniciao de Marcel Griaule" neste volume). Isto no mais novidade. Muitos etngrafos comentaram as formas, ao mesmo tempo sutis e notrias, pelas quais suas pesquisas foram direcionadas ou circunscritas por seus informantes. Em sua provocativa discusso deste tema, loan Lewis (1973) chegou a chamar a antropologia de uma forma de "plgio".O processo de dar-e-receber da etnografia claramente retratado em um estudo de 1980, notvel por sua apresentao, numa nica obra, tanto de uma realidade "outra" interpretada quanto do prprio processo de pesquisa: Ilongot headhunting, de Renato Rosaldo. Rosaldo chega s terras altas das Filipinas pretendendo escrever um estudo sincrnico de estrutura social; mas recorrentemente, apesar de suas objees, ele forado a escutarA experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica4849as narrativas interminveis dos ilongot sobre a histria local. Por obrigao,, sem prestar muita ateno, numa espcie de transe entediado, ele transcreve estas histrias, enchendo cadernos e mais cadernos com o que ele considera textos dispensveis. S depois de deixar o campo, e aps um longo processo de reinterpretao (processo manifesto na etnografia), ele se d conta de que aqueles obscuros relatos forneciam na verdade seu tema final: o sentido culturalmente distinto de narrativa e histria dos ilongot. A experincia de Rosaldo do que pode ser chamado de "escrita direcionada" prope incisivamente uma questo fundamental: quem na verdade o autor das anotaes feitas no campo?O assunto sutil e merece um estudo sistemtico. Mas j foi dito o bastante para se poder afirmar que o controle nativo sobre o conhecimento adquirido no campo pode ser considervel, e mesmo determinante. A escrita etnogrfica atual est procurando novos meios de representar adequadamente a autoridade dos informantes. H poucos modelos em que se basear, mas importante reconsiderar as antigas compilaes textuais de Boas, Malinowski, Leenhardt e outros. Nesses trabalhos, o gnero etnogrfico no havia ainda se cristalizado na moderna monografia interpretacional, intimamente identificada com uma experincia de campo pessoal. Podemos contemplar neles um modo etnogrfico que no se legitimou ainda naqueles modos especficos que esto agora poltica e epistemologicamente sendo questionados. Essas compilaes mais antigas incluem muito, ou tudo, do que na verdade escrito pelos informantes. Pode-se pensar aqui no papel de George Hunt na etnografa de Franz Boas, ou dos quinze transcripteurs listados nos Documents no-caldoniens de Leenhardt (1932).11Malinowski um complexo caso de transio. Suas etnografas refletem uma coalescncia ainda incompleta da moderna monografia. Se ele por um lado foi centralmente responsvel pela fuso de teoria e descrio na autoridade do pesquisador de campo profissional, por outro lado ele incluiu material que no sustentava diretamente sua ntida perspectiva de interpretao. Nos muitos mitos e nos encantamentos a ele ditados, e que enchem seus livros, publicou muitos dados que ele, assumidamente, no havia compreendido. O resultado foi um texto aberto sujeito a mltiplas reinterpretaes. importante comparar tais velhos compndios com o recente modelo de etnografia, que cita as evidncias para sustentar uma interpretao centrada num foco temtico, mas que no vai muito alm disso.12 Na moderna e legtima monografia, no h, na verdade, quaisquer vozes fortes presentes, a no ser a do escritor; mas em Os argonautas (1922) e em Coral gardens (1935) lemos pgina aps pgina sobre encantamentos mgicos, nenhum deles, em essncia, expresso pelas palavras do etngrafo. Estes textos ditados foram em tudo o mais, com exceo de sua inscrio fsica, escritos por especficos e annimos trobriandeses. Na verdade, qualquer exposio etnogrfica contnua inclui rotineiramente em si mesma uma diversidade de descries, transcries e interpretaes feitas por uma variedade de "autores" indgenas. Como essas presenas autorais devem ser manifestas?

Uma posio til - ainda que extrema - trazida pela anlise de Bakhtin sobre o romance "polifnico". Uma condio fundamental do gnero, ele argumenta, que ele representa sujeitos falantes num campo de mltiplos discursos. O romance luta com, e encena, a heteroglossia. Para Bakhtin, preocupado com a representao de todos no-homogneos, no h nenhum mundo cultural ou linguagem integrados. Todas as tentativas de propor tais unidades abstratas so constmctos d poder monolgio. Uma "cultura" , concretamente, um dilogo em aberto, criativo, de subculturas, de membros e no-membros, de diversas faces. Uma "lngua" a interao e a luta de dialetos regionais, jarges profissionais, lugares-comuns genricos, a fala de diferentes grupos de idade, indivduos, etc. Para Bakhtin, o romance polifnico no um tour de force de totalizao cultural ou histrica (comoA experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica5150crticos realistas como Georg Lukcs e Erich Auerbach argumentaram) mas sim uma arena carnavalesca de diversidade. Bakhtin descobre um espao textual utpico no qual a complexidade discursiva, a interao dialgica das vozes, pode ser acomodada. Nos romances de Dostoievski ou de Dickens ele valoriza precisamente sua resistncia totalidade; seu romancista ideal um ventrloquo - no idioma do sculo XIX, um "poli-fonista". "Ele representa a polcia com vrias vozes diferentes", exclama um ouvinte admirado, sobre o garoto Sloppy, que l em pblico um jornal, em Our mutual friend. Mas Dickens, o ator, performer oral e polifonista, deve ser comparado a Flaubert, o mestre do controle autoral, que se move como um deus entre os pensamentos e os sentimentos de seus personagens. A etnografia, como o romance, debate-se entre essas alternativas. Ser que o escritor etnogrfico retrata o que os nativos pensam maneira do flaubertiano "estilo indireto livre", um estilo que suprime a citao direta em favor de um discurso controlador que sempre, mais ou menos, o do autor? (Dan Sperber, 1981, tomando Evans-Pritchard como exemplo, mostrou de forma convincente que o estilo indireto sem dvida o modo preferido da interpretao etnogrfica.) Ou ser que o retrato de outras subjetividades requer uma verso estilisticamente menos homognea, cheia das "vozes diferentes" de Dickens?Um certo uso do estilo indireto inevitvel, a menos que a novela ou a etnografia seja composta inteiramente de citaes, algo que teoricamente possvel mas raramente tentado.13 Na prtica, porm, a etnografia e o romance tm recorrido ao estilo indireto em diferentes nveis de abstrao. No precisamos nos perguntar como Flaubert sabe o que Emma B ovary est pensando, mas a habilidade do pesquisador de campo em habitar as mentes nativas suscita sempre dvidas. Certamente isto um problema permanente, no resolvido, do mtodo etnogrfico. Os etngrafos tm geralmente evitado atribuir crenas, sentimentos e pensamentos aos indivduos. Mas no tm hesitado em atribuir estados subjetivos a culturas. A anlise de Sperber revela como frases tais como "os nuer pensam..." ou "o senso nuer de tempo" so fundamentalmente diferentes de citaes ou tradues do discurso nativo. Tais declaraes no tm "nenhum falante especfico" e so literalmente equvocas, combinando de forma contnua as afirmaes do etngrafo com as do, ou dos informantes (1981:78). So abundantes nas etnografias frases que no so atribudas a ningum, tais como: "Os espritos retornam aldeia durante a noite", descries de crenas nas quais o escritor assume na verdade a voz da cultura.Neste nvel "cultural", os etngrafos aspiram oniscincia flaubertiana que se move livremente atravs de um mundo de sujeitos nativos. Sob a superfcie, no entanto, seus textos so menos controlados e mais discordantes. O trabalho de Victor Turner fornece um exemplo revelador, que vale a pena investigar mais de perto como um caso de interao entre a exposio monofnica e a polifnica. As etnografias de Turner oferecem retratos soberbamente complexos dos smbolos rituais e crenas ndembu; e ele forneceu tambm alguns vislumbres incomumente explcitos dos bastidores. Em meio aos ensaios reunidos em The forest of symbols, seu terceiro livro sobre os ndembu, Turner oferece um retrato de seu melhor informante, "Muchona the Hornet, interpreter of religion" (1967:131-150). Muchona, um curandeiro ritual, e Turner se unem atravs do interesse compartilhado pelos smbolos tradicionais, as etimologias e os significados esotricos. Ambos so "intelectuais", intrpretes apaixonados das nuances e profundezas dos costumes; ambos so scholars desenraizados partilhando "a insacivel sede de conhecimento objetivo". Turner compara Muchona a um professor universitrio; seu relato desta colaborao inclui mais do que simples insinuaes de que ele seu "duplo" psicolgico.H, porm, uma terceira presena nesse dilogo, Windso Kashinakaji, um veterano professor ndembu da escola missionria local. Ele rene Muchona e Turner e compartilha da paixo deles pela interpretao da religio tradicional. Atravs de sua educaoA experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica5352bblica, ele "adquiriu um faro apurado para elucidar questes intrincadas". Tendo se tornado ctico a respeito dos dogmas cristos e dos privilgios missionrios, ele olha com simpatia para a religio pag. Kashinakaji, conta-nos Turner, "transps a distncia cultural entre Muchona e eu, transformando o jargo tcnico do curandeiro e a picante gria da aldeia numa prosa que eu pudesse entender melhor". Os trs intelectuais logo "estabeleceram uma espcie de seminrio dirio sobre religio". Os relatos de Turner sobre esse seminrio so estilizados: "oito meses de estimulantes e geis discusses entre ns trs, principalmente sobre o ritual ndembu". Eles revelam um extraordinrio "colquio" etnogrfico; mas significativamente Turner no faz dessa colaborao a trs o eixo de seu ensaio. Ao invs disso, ele centra o foco em Muchona, transformando portanto um "trilogo" num dilogo, e transformando uma relao produtiva, complexa e sedutora no "retrato" de um "informante" (esta reduo foi de alguma forma exigida pelo formato do livro no qual o ensaio primeiramente apareceu, a importante coletnea editada em 1960 por Joseph Casagrande, In the company of men: twenty portraits of anthropological informants).14Os trabalhos publicados de Turner variam consideravelmente em sua estrutura discursiva. Alguns so em grande parte compostos por citaes diretas; em pelo menos um ensaio Muchona identificado como a principal fonte de toda a interpretao; em outra parte ele invocado anonimamente, por exemplo, como "um especialista em ritual" (1975:40-42, 87,154156, 244). Windson Kashinakaji identificado como assistente e tradutor, ao invs de uma fonte de interpretaes. De forma geral, as etnografias de Turner so incomumente polifnicas, abertamente construdas a partir de citaes ("De acordo com um adepto..." ou "Um informante acha..."). No entanto, ele no representa os ndembu em diferentes vozes, e ouvimos poucas vezes a tal "picante gria da aldeia". Todas as vozes do campo foram suavizadas na prosa expositria de "informantes" mais ou menos intercambiveis. A encenao do discurso nativo numa etnografia, o necessrio grau de traduo e familiarizao, so complicados problemas prticos e retricos.15 Mas os trabalhos de Turner, ao darem um lugar visvel s interpretaes nativas dos costumes, expem concretamente esses temas do dialogismo textual e da polifonia.A incluso da descrio de Muchona feita por Turner em The forest of symbols pode ser vista como sinal dos tempos. A coletnea de Casagrande na qual ela originalmente apareceu teve o efeito de isolar o tema crucial das relaes entre etngrafos e seus colaboradores indgenas. A discusso desse tema ainda no tinha lugar nas etnografias cientficas, mas a coletnea de Casagrande abalou o tabu profissional ps-malinowskiano sobre os "informantes privilegiados". Raymond Firth sobre Pa Fenuatara, Robert Lowie sobre Jim Carpenter - uma longa lista de reconhecidos antroplogos descreveram os "etngrafos" indgenas com quem eles dividiram, em algum grau, uma viso distanciada, analtica e mesmo irnica dos costumes. Esses indivduos se tornaram informantes valorizados porque entenderam, muitas vezes com grande sutileza, o que implica uma atitude etnogrfica diante da cultura. Na citao de Lowie de seu intrprete crow (e colega "fillogo"), Jim Carpenter, percebe-se uma atitude comum: "Quando voc escuta os velhos contando suas vises, voc tem de acreditar nelas" (Casagrande, 1960:428). E h bem mais do que apenas uma piscadela e um assentimento cmplice na histria recontada por Firth sobre seu melhor amigo e informante tikopiano:Em outra ocasio, a conversa recaiu sobre as redes feitas para pegar trutas no lago. As redes estavam ficando escuras, possivelmente com material orgnico, e tendiam a se romper facilmente. Pa Fenuatara ento contou uma histria ao pessoal reunido na casa sobre como, quando estava certa vez no lago com suas redes, sentiu um esprito envolto na rede, e tornando-a mais macia. Quando ele puxou a rede pra fora do lago, ele a achou pegajosa. OA experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica5554esprito havia trabalhado ali. Perguntei a ele ento se isso era parte do conhecimento tradicional, a idia de que espritos eram responsveis pela deteriorao das redes. Ele respondeu: "No, isso uma idia minha". Ento acrescentou, rindo: "Conhecimento tradicional de minha prpria autoria". (Casagrande, 1960:17-18)Todo o impacto metodolgico da coletnea de Casagrande permanece latente, especialmente quanto importncia de seus relatos para a produo dialgica dos textos e interpretaes etnogrficos. Esta importncia obscurecida por uma tendncia a tomar o livro como um documento universalizante, humanista, que revela "uma sala de espelhos (...) muna grande variedade, a interminvel imagem refletida do ser humano" (Casagrande, 1960:xii). luz da atual crise na autoridade etnogrfica, no entanto, estes reveladores retratos se imiscuem nas obras de seus autores, alterando o modo como elas podem ser lidas. Se a etnografia parte do que Roy Wagner (1980) chama de "a inveno da cultura", sua atividade plural e alm do controle de qualquer indivduo.

Uma maneira cada vez mais comum de realizar a produo colaborativa do conhecimento etnogrfico citar os informantes extensa e regularmente. (Um notvel exemplo We eat the Mines, the Mines eat us [1979], de June Nash.) Mas esta ttica apenas comea a romper a autoridade monofnica. As citaes so sempre colocadas pelo citador, e tendem a servir meramente como exemplos ou testemunhos confirmadores. Indo-se alm da citao, pode-se imaginar uma polifonia mais radical que "representaria os nativos e o etngrafo com vozes diferentes"; mas isso tambm apenas deslocaria a autoridade etnogrfica, confirmando uma vez mais a orquestrao final virtuosstica feita por um s autor de todos os discursos presentes no texto. Neste sentido, a polifonia de Bakhtin, muito estreitamente identificada com o romance, uma hetero-glossia domesticada. Os discursos etnogrficos no so, em nenhuma circunstncia, falas de personagens inventados. Os informantes so indivduos especficos com nomes prprios reais -nomes que podem ser citados de forma modificada quando necessrio. As intenes dos informantes so sobredeterminadas, suas palavras, poltica e metaforicamente complexas. Se alocadas num espao textual autnomo e transcritas de forma suficientemente extensas, as declaraes nativas fazem sentido em termos diferentes daqueles em que o etngrafo as tenha organizado. A etnografa invadida pela heteroglossia.Esta possibilidade sugere uma estratgia textual alternativa, uma utopia da autoria plural que atribui aos colaboradores no apenas o status de enunciadores independentes, mas de escritores. Como uma forma de autoridade, ela deve ainda ser considerada utpica por duas razes. Primeiro, os poucos experimentos recentes de trabalhos de mltiplos autores parecem requerer, como uma fora instigadora, o interesse de pesquisa de um etngrafo que no fim assume uma posio executiva, editorial. A estratgia de autoridade de "dar voz" ao outro no plenamente transcendida. Segundo, a prpria idia de autoria plural desafia a profunda identificao ocidental de qualquer organizao de texto com a inteno de um nico autor. Ainda que essa identificao fosse menos forte do que quando Lafitau escreveu seu Moeurs des sauvages amricains, e a critica recente a tenha colocado em questo, ela ainda uma poderosa imposio sobre a escrita etnogrfica. Todavia, h* sinais de movimento nessa rea. Os antroplogos tero cada vez mais de partilhar seus textos, e por vezes as folhas de rosto dos livros, com aqueles colaboradores nativos para os quais o termo informante no mais adequado, se que um algum dia foi.O livro de Ralph Bulmer e Ian Majnep, Birds of my Kalam country (1977), um importante prottipo. (Tipos de letra diferentes distinguem as contribuies justapostas do etngrafo e dos nativos da Nova Guin, resultado da colaborao de mais de uma dcada). Ainda mais significativo o estudo de 1974, coletivamente proA experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica5756duzido, Piman shamanism and staying sickness (Ka:cim Mumkidag), que lista em sua folha de rosto, sem distino (embora no, deve-se notar, em ordem alfabtica): Donald M. Bahr, antroplogo; Juan Gregorio, xam; David I. Lopez, intrprete; e Albert Alvarez, editor. Trs destes quatro so ndios papago, e o livro conscientemente destinado a "transferir a um xam, tanto quanto possvel, as funes normalmente associadas autoria. Estas incluem a opo por um determinado estilo explanativo, a obrigao de fazer interpretaes e explicaes e o direito de julgar as coisas que so importantes e as que no o so" (p. 7). Bahr, o iniciador e organizador do projeto, optou por partilhar a autoridade tanto quanto possvel. Gregorio, o xam, aparece como a principal fonte da "teoria da doena" que transcrita e traduzida, em dois nveis separados, por Lopez e Alvarez. Os textos de Gregorio em lngua nativa incluem explicaes compactadas, muitas vezes enigmticas, que so elas mesmas interpretadas e contextualizadas por um comentrio em separado de Bahr. O livro incomum em sua encenao textual da interpretao das interpretaes.Em Piman shamanism, a transio das enunciaes individuais para as generalizaes culturais sempre visvel na separao das vozes de Gregorio e de Bahr. A autoridade de Lopez, menos visvel, semelhante de Windson Kashinakaji no trabalho de Turner. Sua fluncia nas duas lnguas guia Bahr atravs das sutilezas da linguagem de Gregorio, permitindo assim ao xam "falar extensivamente sobre tpicos tericos". Nem Lopez nem Alvarez aparecem como uma voz especfica no texto, e sua contribuio etnografia permanece em grande parte invisvel, a no ser para qualificados papagos, capazes He avaliar a exatido dos textos traduzidos e a nuance vernacular das interpretaes de Bahr. A autoridade de Alvarez reside no fato de que Piman shamanism um livro dirigido a pblicos distintos. Para a maioria dos leitores interessados nas tradues e explicaes que os textos trazem em lngua piman, ele ser de pouco ou nenhum interesse. O lingista Alvarez no entanto corrigiu as transcries e tradues atentando para seu uso no ensino da lngua piman, utilizando uma ortografia que ele desenvolvera com este propsito. Assim, o livro contribui para a inveno literria dos papago em relao sua prpria cultura. Esta leitura diferente, inserida em Piman shamanism, de importncia mais do que apenas local. intrnseco ruptura da autoridade monolgica que as etnografias no mais se dirijam a um nico tipo geral de leitor. A multiplicao das leituras possveis reflete o fato de que a conscincia "etnogrfica" no pode mais ser considerada como monoplio de certas culturas e classes sociais no Ocidente. Mesmo nas etnografias em que faltem os textos em lngua nativa, os leitores indgenas iro decodificar diferentemente as interpretaes e o conhecimento nativo textualizados. Os trabalhos polifnicos so especialmente abertos a leituras no especificamente intencionais. Os leitores trobriandeses podem achar as interpretaes de Malinowski cansativas, mas considerar seus exemplos e extensas transcries evocativas. Os ndembu no iro glosar to rapidamente quanto leitores europeus as diferentes vozes que existem nos textos de Turner.A recente teoria literria sugere que a eficcia de um texto em fazer sentido de uma forma coerente depende menos das intenes pretendidas do autor do que da atividade criativa de um leitor. Para citar Roland Barthes, se um texto "a trama de citaes retiradas de inumerveis centros de cultura", ento "a unidade de um texto repousa no em sua origem mas em seu destino" (1977:146, 148). A escrita da etnografia, uma atividade no-controlada e multissubjetiva, ganha coerncia atravs de atos especficos de leitura. Mas h sempre uma variedade de leituras possveis (alm das apropriaes meramente individuais), leituras alm do controle de qualquer autoridade nica. Pode-se abordar uma etnografia clssica buscando simplesmente captar os significados que o pesquisador deduz a partir dos fatos culturais representados. Ou, como sugeri, pode-se tambm ler a contrapelo da voz dominante no texto, procurando outras semi-ocultasA experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica5958autoridades, reinterpretando as descries, textos e citaes reunidos pelo escritor. Com o recente questionamento dos estilos coloniais de representao, com a expanso da alfabetizao e da conscincia etnogrfica, novas possibilidades de leitura (e portanto de escrita) das descries culturais esto surgindo.16A concretizao textual da autoridade um problema recorrente para os experimentos contemporneos em etnografia.17 Um modo mais antigo, realista - representado pelo frontispcio de Os argonautas do Pacfico Ocidental e baseado na construo de um tableau vivant cultural destinado a ser visto a partir de um nico ponto de vista, aquele que une o escritor e o leitor - pode agora ser identificado como apenas um paradigma possvel de autoridade. Pressupostos polticos e epistemolgicos esto embutidos nestes e em outros estilos, pressupostos que o escritor etnogrfico no pode mais se permitir ignorar. Os modos de autoridade resenhados aqui - o experiencial, o interpretativo, o dialgico, o polifnico - esto disponveis a todos os escritores de textos etnogrficos, ocidentais e no-ocidentais. Nenhum obsoleto, nenhum puro: h lugar para inveno dentro de cada um destes paradigmas. Vimos como novas abordagens tendem a redescobrir prticas antes descartadas. A autoridade polifnica olha com renovada simpatia para compndios de textos em lngua nativa - formas expositivas distintas da monografia centralizada num s tema e ligada observao-participante. Agora que aquelas ingnuas afirmaes da autoridade experiencial foram submetidas suspeio hermenutica, podemos antecipar uma ateno renovada interao sutil entre components pessoais e disciplinares na pesquisa etnogrfica.Os processos experiencial, interpretativo, dialgico e polifnico so encontrados, de forma discordante, em cada etnografia, mas a apresentao coerente pressupe um modo controlador de autoridade. Um argumento que esta imposio de coerncia a um processo textual sem controle agora inevitavelmente uma questo de escolha estratgica. Tentei distinguir importantes estilos de autoridade na medida em que se tornaram visveis nas dcadas recentes. Se a escrita etnogrfica est viva, como acredito que esteja, ela est em luta nos limites dessas possiblidades, ao mesmo tempo que contra elas.

NotasApenas os exemplos ingleses, americanos e franceses so discutidos. Ainda que os modos de autoridade aqui analisados possam, muito provavelmente, ser amplamente generalizados, nenhuma tentativa foi feita no sentido de estend-los a outras tradies nacionais. E suposto tambm, na tradio antipositivista de Wilhelm Dilthey, que a etnografia um processo de interpretao, no de explicao. Modos de autoridade baseados em epistemologas das cincias naturais no so aqui discutidos. Em virtude de sua nfase sobre a observao participante como um processo intersubjetivo e como trao definidor da etnografia do sculo XX, esta discusso deixa de lado uma srie de fontes alternativas de autoridade: por exemplo, o peso do conhecimento acumulado em "arquivos" sobre determinados grupos; ou a perspectiva de comparao intercultural; ou o trabalho de levantamento estatstico.A "heteroglossia" supe que as "lnguas no se excluem, mas sim tm intersees umas com as outras, de muitas formas diferentes (a lngua ucraniana, a linguagem do poema pico, do primeiro simbolismo, do estudante, de uma gerao especfica de crianas, do intelectual mediano, do nietzscheano, etc.). E possvel mesmo que a prpria palavra 'linguagem' perca todo sentido nesse processo - pois aparentemente no h nenhum plano nico no qual todas estas 'linguagens' possam se justapor" (p. 291). O que se diz das linguagens se aplica igualmente s "culturas" e s "subculturas". Ver tambm Volosinov (Bakhtin?), 1953:291, especialmente captulos 1-3; e Todorov, 1981:88-93.No tentei investigar estilos de escrita etnogrfica que possam estar sendo gerados fora do Ocidente. Como Edward Said, Paulin Hountondji e outros mostraram, um considervel esforo de "limpeza" ideolgica, um trabalho crtico de oposio, contnuo;A experincia etnogrficaSobre a autoridade etnogrfica6160 a ele que os intelectuais no-ocidentais tm devotado grande parte de suas energias. Minha discusso se mantm nos limites de um cincia cultural realista elaborada no Ocidente, embora em suas fronteiras experimentais. Mais ainda: ela no est considerando aqui como reas de inovao os gneros "para-etnogrficos" da histria oral, do romance no-ficcional, o "novo jornalismo", a literatura de viagem e o filme documentrio.Na atual crise de autoridade, a etnografa emergiu como tema para o escrutnio histrico. Para novas abordagens crticas, ver Hartog, 1971; Asad, 1973; Burridge, 1973:cap. 1; Duchet, 1971; Boon, 1982; De Certeau, 1980; Said, 1978; Stocking, 1983; e Rupp-Eisenreich, 1984.Sobre a supresso do dilogo no frontispcio do livro de Lafitau e a constituio de uma "antropologia" textualizada, a-histrica e visualmente orientada, ver a detalhada anlise de Michel de Certeau (1980).Os nuer, So Paulo, Perspectiva, 1978, p. 223.O conceito algumas vezes muito apressadamente associado intuio ou empatia, mas como uma descrio do conhecimento etnogrfico Verstehen envolve propriamente uma crtica da experincia emptica. O significado exato do termo assunto de debate entre os especialistas em Dilthey (Makreel, 1975:6-7).O livro de Favret-Saada foi traduzido em ingls como Deadly words (1981); ver especialmente cap. 2. Sua experincia foi reescrita em outro nvel ficional em Favret-Saada e Contreras, 1981.Seria errado passar por cima das diferenas entre as posies tericas de Dwyer e de Crapanzano. Dwyer, seguindo Georg Luckcs, traduz o dilogo para a dialtica marxista-hegeliana, mantendo fora de alcance, portanto, a possibilidade de uma restaurao do sujeito humano, uma espcie de realizao no e atravs do outro. Crapanzano recusa qualquer ancoragem numa teoria englobante, sendo sua nica autoridade a do escritor do dilogo, uma autoridade minada por uma narrativa inconclusiva de encontro, ruptura e confuso. ( importante notar que o dilogo, tal como usado por Bakhtin, no redutvel dialtica).Para uma primeira defesa da antropologia dialgica, ver tambm Tedlock, 1979.Sobre os "tipos" realistas, ver Luckcs, 1964,passim. A tendncia a transformar um indivduo num enunciador cultural pode ser observada em Dieu d'eau de Marcel Griaule (1948a). Isso ocorre ambivalentemente em Nisa de Shostak (1981). Para uma discusso desta ambivalncia e da complexidade discursiva resultante, ver discusso em "Sobre a alegoria etnogrfica" neste livro.Para um estudo deste modo de produo textual, ver no presente livro "Trabalho de campo, reciprocidade e elaborao de textos etnogrficos". Ver tambm neste contexto Fontana, 1975, a introduo a The Pima Indians de Frank Russell, sobre o oculto co-autor do livrp, o ndio papago Jos Lewis; Leiris, 1948, discute a colaborao como co-autoria, tal como o faz Lewis, 1973. Para uma defesa programtica da nfase de Boas nos textos vernculos e sua colaborao com Hunt, ver Goldman, 1980.O elaborado Bwiti (1985) de James Fernandez uma transgresso consciente da sinttica forma monogrfica, retornando escala malinowskiana e revivendo as funes "arquivsticas" da etnogra