como é estar na velhice

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    Palavras-chave:velhice, envelhecimento, mulheres, intervenopsicolgica.

    How it is to be in elderhood? The experience of elderly womenwho participated in a psychological intervention group

    Abstract:The present work aims to answer how it is to be inelderhood b means of reports of elderl women who participatedin a pschological intervention group. Events that marked thebeginning of elderhood were identified, as well as the concernsand constraints associated with elderhood and the achievements

    that integrate this lifes phase. The meetings of the group wererecorded and transcribed; the data were submitted to ThematicAnalsis. Events and experiences associated with the beginningof elderhood were pointed out b the participants: changesin the famil dnamics, the retirement and the impairment ofphsical health. The concerns were related to famil difficulties,fear of becoming dependent on others, fear of helplessness andintergenerational conflicts. Generall, the participants talked moreeasil about the negative aspects of this stage of life than about the

    positive ones. Those who recognied achievements in the processof aging pointed: experience, self-knowledge, flexibilit of workinghours, greater autonom and satisfaction with life.

    Keywords: elderhood, aging, women, pschologicalintervention.

    Como envelhecer? Como estar na ltima etapado ciclo vital, chamada velhice? Quais so as repercussesdesse processo do desenvolvimento humano na maneiracomo os indivduos se relacionam, na forma como lidamcom suas experincias de vida e nas percepes dosacontecimentos cotidianos? Para tentar responder a essasperguntas, fomos buscar relatos de mulheres idosas queapontam as caractersticas da velhice, suas dificuldades epotencialidades.

    Nota-se que o envelhecimento, apesar de ser umfenmeno mundial, assume caractersticas diferenciadas

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    nos vrios pases. Uma delas bastante ntida: nos pasesdesenvolvidos, o envelhecimento ocorreu gradativamente,

    permitindo a adaptao da sociedade. J nos pases emdesenvolvimento, o envelhecimento vem se dando de formaabrupta e recente (Loureno, Veras & Silva, 2002) o que, decerta forma, surpreende uma sociedade desprovida de recursosadequados para lidar com os desafios impostos por essa novarealidade.

    Velhice e envelhecimento tornaram-se temas de real

    interesse cientfico apenas a partir da segunda metade do sculoXX. A Psicologia do Desenvolvimento, por exemplo, priorioupor um longo tempo o estudo de crianas e adolescentes,embora, desde os anos 30, alguns autores tenham tratado darelao entre envelhecimento e desenvolvimento. Na dcadade 1960, cientistas europeus e norte-americanos passarama desenvolver estudos e a divulgar conhecimentos acercado desenvolvimento humano, demonstrando que este ocorre

    ao longo da vida (Neri, 2001b). As mudanas demogrficase o envelhecimento de pesquisadores e participantes depesquisas esto entre os motivos que favoreceram a novanfase sobre desenvolvimento e envelhecimento. A velhiceno poderia, assim, continuar sendo tratada como um perodoexclusivamente de perdas e declnio, uma ve que envolve,inegavelmente, aprendiagem e transformaes (Neri,

    2001a).Minao e Coimbra Jnior(2002) apontam que raramente

    se permite que pessoas idosas sejam genuinamente ouvidassobre suas experincias de vida, tanto por profissionais desade, como pela sociedade. Prevalece, ento, uma concepomuitas vees estereotipada e distante da realidade daquelesque envelhecem. De acordo com Soua, Minao, Ximenes e

    Deslandes (2002), h uma predominncia de pesquisas sobre oque se observa e se pensa acerca da velhice em contraposioquelas sobre como a velhice vivenciada.

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    A partir dessas consideraes, procurou-se dar vo amulheres idosas que compartilharam vivncias e concepes

    sobre a velhice em uma interveno psicolgica grupal.O estudo buscou contribuir para uma compreenso maisabrangente dessa etapa do ciclo vital segundo a perspectivade quem est envelhecendo.

    Observa-se que a realiao de pesquisas, a revisode mitos e preconceitos sobre velhice, bem como odesenvolvimento de estratgias na famlia e em outros sistemas

    sociais para lidar com os idosos tm sido estimulados pelocrescente nmero de idosos. Ocorre, na maioria dos pases,um envelhecimento populacional que consiste no aumentoda participao de pessoas idosas na populao total. NoBrasil, idosos representavam 4% da populao em 1940,passando a 8,6% em 2000, sendo 15% a expectativa para2020 (Camarano, 2002). Paschoal (2002) estima que, em 2025,

    haver aproximadamente32 milhes de brasileiros idosos.Estudos epidemiolgicos tambm apontam a feminizao

    da velhice, ou seja, quanto mais idade tiver um determinadogrupo de pessoas, maior ser sua parcela feminina (Camarano,2002). Em 2003, 55% dos idosos brasileiros eram mulheres,na faixa etria de 60 a 74 anos, o que pode ser explicado pelamaior longevidade feminina, haja vista que a expectativa devida para elas era de 75,2 anos, enquanto para os homens, 67,6anos (IBGE, 2005). Grande parte dessas idosas viva, morasoinha, no tem experincia no mercado formal de trabalho,recebeu pouca instruo, alm de apresentar diferentes grausde debilitao fsica (Camarano, 2002).

    Para lidar com essa crescente parcela da populao,

    necessrio o enfrentamento de mitos e preconceitos sobreenvelhecimento e velhice, que podem influenciar negativamentea produo do conhecimento cientfico, gerar prticas sociais

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    discriminatrias e atingir o auto-conceito da pessoa idosa. ParaPaschoal (2002), a velhice costuma ser associada a perdas,

    dependncia, doena, solido, e a pessoa idosa consideradaimplicante, triste, demente.

    Acosta-Orjuela (2002) aponta que a mdia aindatende a reforar esses esteretipos, contribuindo para criarexpectativas negativas acerca da velhice. Pessoas idosasso significativamente menos representadas do que aquelasde outras faixas etrias; seus personagens costumam ser

    excntricos, agressivos, tolos e pouco atraentes. Contudo,observam-se mudanas recentes no modo como a mdiarepresenta a velhice. Personagens idosos ativos sexuale socialmente, cuidadosos com a prpria aparncia ecomprometidos com diferentes atividades tm surgido emalgumas programaesda televiso brasileira.

    Preconceitos, bem como a idia de que o envelhecimentose resume incapacidade funcional progressiva que culmina namorte, interferem na qualidade de vida do idoso. Ao dificultarema distino entre envelhecimento normal e patolgico, podemlevar pessoas idosas e profissionais de sade a menosprearsintomas, impedindo o diagnstico precoce e o tratamento. Aprpria depresso, que causa de grande sofrimento humano,no tratada nem diagnosticada, porque existe o preconceitode que os idosos so um pouco tristes mesmo (Paschoal,2002, p.82).

    Destaca-se que a velhice, ltima etapa do ciclo vital,no se resume s modificaes orgnicas decorrentes deum desgaste natural ao longo da vida. Neri (2001b) apontaque a experincia da velhice envolve fatores psicossociais

    como sexo, classe social, personalidade, histria de vida econtexto socioeconmico, que a tornam bastante heterognea.A concepo de velhice como uma fase significativa da

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    existncia humana foi viabiliada por Paul Baltes (citado porNeri, 2004) a partir do paradigma do desenvolvimento ao

    longo de toda a vida (life-span). Nessa teoria, pressupe-seque no envelhecer ocorre desenvolvimento, dessa formaso processos correlacionados. Constata-se que, mesmona presena do declnio fsico, por exemplo, os processospsicolgicos so mantidos e at desenvolvidos se o ambientecultural for estimulador. Assim, a velhice deve ser igualmenteconsiderada como perodo de potencialidades, o que temgrande impacto social e teraputico por apresentar o idosocomo um ser em desenvolvimento.

    Envelhecer bem envolve condies apropriadas deeducao, urbaniao, habitao, sade e trabalho. Essascondies influenciam a longevidade, a sade real e apercebida, a eficcia cognitiva, a capacidade de manter umarede de relaes afetivas e sociais, bem como o nvel de

    satisfao com vrias situaes e eventos de vida.Viver avelhice satisfatoriamente depende tambm da histria de vidade cada pessoa, de sua capacidade de lidar com perdas e daqualidade de interao com a sociedade (Neri, 2001b). Logo,a pessoa idosa vista como algum que pode interferir emsuas condies de vida, corroborando a concepo de queo envelhecimento no mais encarado como um estado aoqual o indivduo se submete passivamente, mas como umfenmeno biolgico ao qual o indivduo reage com base emsuas referncias pessoais e culturais (Uchoa; Firmo; Lima-Costa, 2002, p. 27).

    O presente trabalho procurou contribuir para acompreenso da velhice a partir de depoimentos de mulheresidosas que participaram de uma interveno psicolgica grupal

    em servio pblico de sade. O objetivo do estudo foi conhecercomo essas mulheres vivenciam a prpria velhice a partir daidentificao de eventos que marcaram o incio da velhice;

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    de preocupaes e limitaes associadas velhice; e, deconquistas que integram essa etapa da vida.

    Metodologia

    Este estudo parte de uma pesquisa de mestrado quebuscou investigar a participao de pessoas idosas em ummodelo de interveno psicolgica grupal breve. A pesquisafoi aprovada pelo Comit de tica da Faculdade de Sade da

    Universidade de Braslia.

    Participantes

    Tomaram parte no estudo oito mulheres, entre 65 e 78anos, encaminhadas pela equipe multidisciplinar do Centro deMedicina do Idoso (CMI), no Hospital Universitrio de Braslia. Oencaminhamento atendeu aos seguintes critrios: habilidadesde expresso verbal e de julgamento preservadas; nenhumagrave sintomatologia psictica, depressiva ou demencial edisponibilidade para participar das atividades previstas noestudo. As idosas, tendo sido informadas de que se tratava deuma pesquisa, concordaram em participar, mediante assinaturade Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os nomes

    das participantes foram alterados a fim de preservar suasidentidades.

    Local do estudo e procedimento

    Os encontros grupais foram realiados no CMI, em2003. Foram realiadas oito sesses, com periodicidadesemanal e durao aproximada de duas horas. Em cada umdos encontros, foram tratados temas identificados como de

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    maior interesse pelo grupo. As sesses foram gravadas eposteriormente transcritas, sendo objeto de anlise deste artigo

    as concepes de velhice apresentadas pelas participantes.O material transcrito foi submetido anlise de

    contedo a partir da perspectiva de Minao (1996), no caso,a Anlise Temtica, que consiste em procurar identificar osprincipais temas presentes no discurso dos sujeitos. Temcomo objetivo descobrir os ncleos de sentidoque compemuma comunicao cuja presena ou freqncia signifiquem

    alguma coisa para o objetivo analtico visado (p. 209). O temavelhice esteve presente ao longo dos encontros. A seguirsero apresentados e discutidos alguns dos tpicos que sedestacaram no processo grupal.

    Resultados e discusso

    Pde-se constatar o tema da velhice ao longo de todaa interveno, porm sua presena foi marcante em trs dosoito encontros grupais. Nesses, tratou-se especificamente doincio da velhice, de suas limitaes e preocupaes, bem comodas conquistas a ela relacionadas. De modo geral, nota-seque as participantes falaram mais facilmente sobre aspectosnegativos desta etapa da vida do que sobre os positivos.

    Eventos que marcaram o incio da velhice

    Ao compartilharem, no grupo, os eventos e vivnciasassociadas ao incio da velhice, as idosas fieram refernciaa mudanas significativas no arranjo e na dinmica familiar.Sentimentos de solido, tristea, despreo, abandono e vaio

    marcaram os depoimentos. As mudanas relatadas decorremde perdas como o falecimento do cnjuge ou de filhos e a sadados filhos de casa, acarretando diminuio da rede social mais

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    ntima e, conseqentemente, uma experincia de isolamento.Ao sarem de casa, os filhos deixam um ninho vaio e a famlia

    se redu a um casal ou a uma s pessoa. Tal modificaofamiliar exige que a mulher reestruture seu papel materno ese volte para o prprio casamento, quando o caso, ou paraa sua vida pessoal (Walsh, 1995). Isso foi bem ilustrado como depoimento de Nina sobre o incio de sua velhice:

    Foi quando os meus filhos foram casando, n? Foi saindo um porum. Porque era muito bom; muita gente, muito movimento (...)

    mas, ficou to vazia a casa (...) sabe aquele vazio terrvel, sabe?Eu ficava buscando em Deus como que eu ia fazer pra aceitaraquela situao de ficar s mais meu esposo.

    Entretanto, nem todas as mudanas no arranjo familiarforam relacionadas pelas idosas vivncia de perdas. Onascimento de netos e a adoo de um novo papel, o de av,tambm um marco do incio da velhice, fato comentado por

    Rubi com certa ambivalncia: Eu tinha 45 anos quando euganhei minha primeira neta. Eu fiquei morrendo de alegre.Mas, agora, eu envelheci mais. De fato, a condio de avconstitui um potencial de enriquecimento, pois oferece aoportunidade de investimento em outras relaes significativas.O relacionamento com os netos permite reviver a experinciade criar os filhos, lidar com graus diferentes de autoridade e,sobretudo, dar e receber afeto, entre outros aspectos (Bacelar,2002).

    O fato de o incio da velhice ter sido relacionadoprincipalmente a questes familiares sugere o lugar privilegiadoque os papis de esposa, me e av ocupam na vida dasintegrantes do grupo. No entanto, ressalta-se que muitas delasno se dedicaram exclusivamente s atividades domsticas e

    familiares, tendo participado do mercado formal ou informal detrabalho. A aposentadoria, juntamente com fatores familiares,foi considerada como um marco apenas por Cla:

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    Foi tudo mais ou menos junto. Ele[o nico filho] viajou, mudoupra c; meu marido morreu; e eu fui aposentada. A, eu comeceia sentir um tipo de depresso, de tristeza. Eu me senti um pouco

    sozinha, embora tivesse uma imensido de amigos. Mas, aquelenovo espao que eu tinha na minha casinha, do meu marido emeu filho, foi ficando um pouquinho vazio.

    Tal como Cla sinaliou em seu depoimento, perdas emudanas familiares, sociais e profissionais na maturidadee na velhice podem ocorrer simultnea ou sucessivamente,potencialiando o sentido de despreparo e desamparo para

    enfrentar o novo. Este pode se apresentar como o vaio dacasa que se torna grande demais, a relao conjugal que,geralmente, foi relegada a segundo plano por muitos anos,pois o foco era a criao dos filhos. Quando os filhos saemde casa, nota-se que o contato me-filho ser marcado porum distanciamento fsico e, muitas vees, afetivo. O que tornar-se idoso nesse contexto? O que mantm a identidade

    da pessoa idosa ao passar por tantas perdas de vnculos? Apossibilidade de manter na sua memria as experincias e asrelaes significativas que viveu, a capacidade de investir emrelaes atuais, bem como ter oportunidade de refaer sua redesocial. Aspecto este nem sempre favorecido pela sociedade.

    A partir disso, percebe-se que as migraes podem ganharuma dimenso diferenciada na velhice. Nessa fase da vida,

    a migrao, tambm apontada por Cla, tem grande impactosobre a integrao social da pessoa. Essa participante afirmaque a sua necessidade de mudar de cidade esteve relacionadaao medo de adoecer e no ter o filho por perto para cuidar dela.Ao mudar-se de cidade, porm, ela deparou-se com a perdada sua rede social j consolidada e a dificuldade de construiruma nova. Observa-se que a pessoa idosa geralmente tem

    menor acesso a contextos que favorecem o relacionamentosocial, como o caso do estudo e trabalho. Cla descreveuseu estranhamento ao lidar com outra comunidade:

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    Eu cheguei a Braslia e imediatamente eu j me senti envelhecidaporque eu sentia a diferena da cultura do povo de So Paulodo povo de Braslia. Ento, aqui o pessoal muito seco, muitoarredio. (...) Ningum gosta de ningum; ningum quer amizadecom ningum. Ento, medida que eu fui vivendo aqui, eu fuisentindo que eu estava envelhecendo.

    O incio da velhice tambm foi relacionado pelasparticipantes ao surgimento ou agravamento de problemasde sade tais como dificuldades de memria, presso altae depresso. A constatao de uma doena foi motivo depreocupao ou tristea, conforme ilustrou Sol:

    Ento, a, fiquei doente, presso alta. A, uma tristeza muitogrande que eu tive quando fui fazer uma consulta e a doutorafalou pra mim: Dona Sol, a senhora no pode mais comeralgumas comidas. Naquele momento, eu tive um impacto muitogrande. Eu falei uma coisa que no devia. Eu falei: Ento, euprefiro morrer!.

    Restries de ordem diversa, decorrentes de doenasna velhice, podem ser vividas como perdas insuportveis, queabalam o senso de autonomia e de continuidade da vida. importante que profissionais de sade tenham sensibilidadeao prescrever dietas e novos hbitos definidores de uma vidasaudvel. Sem uma escuta atenta histria de vida da pessoa

    idosa, seus valores e representaes sociais, as recomendaesmdicas podem no ser seguidas, comprometendo a sade ea relao profissional-paciente.

    Algumas participantes, porm, no destacaram eventosque marcaram o incio da velhice, afirmando no se sentiremvelhas. Anne, por exemplo, relatou:

    Voc sabe que eu ainda no senti a velhice? (...) Eu sei que eu jt com 65 anos, mas ainda no acordei, no. No botei na minhacabea que eu t aquele trapo e que eu no valho mais nada.

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    No. Eu gosto de passear, eu gosto de andar, eu gosto de gente.Eu no gosto de solido (...) Mas, no senti assim que, por ter 65anos, eu t caindo aos pedaos, no. Eu t muito em cima, t

    jovem, muito bacana ainda, apesar de eu ter um esquecimento,mas isso natural.

    Pode-se supor que a dificuldade em se perceber e seaceitar idosa est justamente no modo como Anne compreendea velhice tempo de decrepitude, isolamento, menos valia, dese tornar um trapo, invlido, incapa de viver com dignidadee praer. Essa viso pessimista e assustadora de velhiceexpressa pela idosa pode comprometer o planejamentode projetos futuros, a adoo de cuidados pessoais e oinvestimento em atividades preventivas. Evitar encarar o seuprprio envelhecer foi observado em outro comentrio deAnne: , eu no gosto de ficar pensado nisso[velhice], no.Eu gosto de viver a vida. Eu acho... assim... que eu vivo hojee deixa. Amanh vai vir amanh e, hoje, no me interessa.

    O equilbrio entre negar a prpria finitude e viver cada diade maneira saudvel, reconhecendo suas limitaes sem sedeixar paralisar por elas, um desafio constante do processode envelhecimento.

    Do mesmo modo, a maior proximidade da morte pode seruma rao para que a pessoa no se reconhea idosa. Vitriaora diia tambm no senti que sou velha, ora ser velha uma ddiva de Deus porque eu t vivendo. Eu no morri! Euadoro a vida! Eu queria viver. A associao que Vitria faentre envelhecer e morrer fica ainda mais clara: Eu semprepenso na morte mais do que na velhice. Envelhecer... Todavez, no meu aniversrio: Ah, meu Deus! Um ano a mais, maisperto da morte.

    Considera-se que o significado que o idoso atribui mortepode contribuir para a compreenso de como ele percebe oenvelhecer. A estreita aproximao de velhice e finitude est

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    presente em Camila: Ento, senti que estava envelhecendo(...) na hora que comea a sentir, assim, falta da memria, a

    vida vai se esvaindo, sei l, sumindo. A percepo da finitudepode ser um caminho para a busca do sentido da vida (Doll;P, 2005). Ao se perceber mais prximas da finitude, algumaspessoas podem se sentir estimuladas a usufruir o que h debom na vida, porm, h aquelas que ficam amedrontadas ese sentem paralisadas diante da possibilidade da morte. Aseguir abordaremos as limitaes advindas e percebidas com

    o envelhecer.

    Limitaes e preocupaes na velhice

    Constata-se a relevncia do tema famlia nos relatosdas participantes acerca de limitaes e preocupaes davelhice. O mesmo havia ocorrido ao analisarem os eventos

    que, segundo elas, marcaram o incio dessa etapa da vida.Os depoimentos traduiram a incertea sobre poderem ou nocontar com o apoio dos familiares, sobretudo no caso de setornarem dependentes. Cla expressou seu receio de receberpouco cuidado da famlia:

    O apoio mesmo desse tipo na velhice com o filho, possivelmentecom a nora e netos (...) Eu no vou esperar nada dos meus netos,

    quer dizer, esperar nada no digo isso (...) Mas que eles me cuideme tal? No! Meu filho tambm no tem l muita pacincia.

    O medo de um futuro desamparo ainda mais ntido norelato de Anne, que v a possibilidade de morar em asilo comoalgo assustador:

    Ento, eu tenho medo, assim, da velhice, de ficar jogada (...) Ela [anora] j falou mesmo que no vai me olhar e meu filho disse que

    vai me pr no asilo. Eu morro de medo de asilo (...) No me faltacomida. No tem jeito de faltar comida pra mim, no. S tenhomedo de no ter quem me bote essa comida na boca.

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    Essa preocupao quanto a um futuro abandono podeadvir do modo como as idosas se relacionam atualmente

    com seus familiares, pois as participantes descreveram,como limitaes da velhice, situaes em que se sentiramdiscriminadas, pouco valoriadas ou incompreendidas poreles. Ao se dier marginaliada pela famlia, Vitria explicouao grupo:

    Voc se apavora porque a gente sente que deixado de lado.s vezes, fica triste porque na casa do seu... Meu neto veio pra

    mim: Vov, vai ter uma festa. Sabe que eles no vo te convidar?Falei: No faz mal. Mas, no fundo, di.

    No participar de comemoraes dos familiares nem deseu cotidiano torna mais perceptvel, para as participantes, oisolamento e os sentimentos de rejeio, tristea e solido,talve at mesmo o de no pertencer mais quele grupofamiliar. Alm disso, observa-se que algumas dificuldades

    surgem da prpria forma de ser e de se relacionar da pessoaidosa, e no em decorrncia das relaes familiares. Esseaspecto pode ser notado no seguinte depoimento de Sol:

    E eu fico [pensando] assim: Por que eu tenho que morar s?Por que eu no posso morar com os meus filhos? s vezes,traz tristeza pra gente, mas no t dizendo que meus filhos soruins. (...) s vezes a distncia obriga a gente a ficar s. Porquea pessoa idosa, ela tem umas maniazinhas, n? E os jovens, elesso diferentes, vm os netos, fazem barulho.

    As diferenas entre valores, concepes de mundoe padres culturais de cada faixa etria podem resultarem conflitos entre as geraes de uma famlia (Goldman,2004). Isto , os membros de uma gerao podem se sentirdesvaloriados pelos membros de outra, como se percebe nocomentrio de Cla:

    Eles [filho e netos] resolvem fazer da maneira deles ou, ento,aquilo que est na moda agora e que no era moda no meu

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    Alm das limitaes e preocupaes relacionadas amudanas de papis na famlia e s dificuldades de interagir

    socialmente, sobretudo com os mais jovens, as participantesapontaram tambm preocupaes com a sade fsica. Osdesgastes do organismo ao longo do tempo parecem seracompanhados de um sentimento de impotncia diante dessasperdas que se mostram cada ve mais definitivas. Nessesentido, Cla foi enftica:

    Tem a sade da gente. Tudo pifa! Pifa a cabea, pifa os rins,

    pifa as pernas, os joelhos, o intestino no funciona direito. Nadafunciona direito, embora a maioria das pessoas (...) faz aquilo que recomendado para o idoso. Pelo menos, eu fao assim. Masnada disso vale, no. Tudo continua do mesmo jeito.

    Esse desabafo de Cla, acerca das mudanas fsicas queenfrenta ao envelhecer, confirma a perspectiva de Goldfarb(1998, p. 13), ao apontar que as limitaes corporais e a

    conscincia da temporalidade so problemticas fundamentaisno processo de envelhecimento, aparecendo de forma reiteradano discurso dos idosos. E, to importante quanto os problemasde sade mencionados, a sensao de menor disposiopara o dia-a-dia e o descompasso entre o que se deseja faere o que o corpo permite faer. Aspecto este que pde ser vistono relato de Vitria:

    Eu queria me sentir com 20 anos e ter a mesma fora que eu tinhaaos 20. Hoje, j no tenho. Eu tambm sinto vontade de trabalhar,de fazer tudo, mas o meu organismo no agenta, apesar de euestar com sade.

    O depoimento de Vitria nos remete a um paradoxoque o processo de envelhecimento nos apresenta sepermanecemos, de certo modo, sendo a pessoa que semprefomos, nosso corpo se transforma, confirmando a inexorvelpassagem do tempo e a fragilidade da vida (Mess, 1999).

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    O encontro da pessoa que envelhece consigo mesma,frente ao espelho, descrito magistralmente por Goldfarb

    (1998, p. 54): enquanto a criana se rejubila ante o espelho,antecipando sua unidade corporal, o sujeito que envelhece sedeprime, antecipando a decrepitude da velhice e a finitude damorte. Para a autora, essa estranhea ante a prpria imagemocorre antes da velhice propriamente dita, entre os 50 e os 60anos, anunciando-a esteticamente.

    Apesar de tudo o que foi dito pelas participantes sobre

    limitaes e dificuldades da velhice, importante lembrar queesses aspectos apresentam somente uma faceta do processodo envelhecer, na outra esto as potencialidades e conquistasque sero comentadas a seguir.

    Conquistas da velhice

    A princpio, as participantes demonstraram grandedificuldade em citar qualquer evento ou caracterstica quereconhecessem como vantagens ou conquistas da velhice,quando provocadas pelas coordenadoras do grupo. Algumasnegaram a existncia de aspectos positivos nessa etapa davida. o que se depreende do depoimento de Cla, que logo

    enumerou os aspectos negativos:Eu no acho que a velhice tem nada de bom, no. A velhice s

    traz perdas: voc perde a memria, no lembra das coisas muito

    bem, voc perde a sua sade fsica, comea a cansar muito, sofrediscriminao das pessoas mais jovens.

    J era esperado que o grupo tratasse com menosdesenvoltura dos aspectos positivos da velhice, pois, assimcomo pessoas de outras faixas etrias, as participantescresceram em uma sociedade que discrimina o envelhecer e

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    o velho, aprendendo uma srie de atitudes preconceituosas.A maior parte do que se v e se ouve sobre velhice, inclusive

    por parte da mdia, relaciona-se a perdas (Incontri, 2002).No se pretende, com isso, minimiar o impacto das

    perdas sofridas ao longo do envelhecimento. Pretende-se, sim,atentar para o fato de que concepes que relacionam a velhiceapenas a perdas podem afetar a qualidade de vida da pessoaidosa, impedindo-a de valoriar as potencialidades inerentes aessa etapa. Desse modo, possvel que o idoso subestime a

    si mesmo e as oportunidades que surgem quando poderia lidarde outra maneira com os limites naturais do envelhecimento,cuja superao facilitada quando se reconhece a persistnciae a plasticidade das prprias capacidades (Ribas, 2000).Um exemplo desse reconhecimento a declarao de Rubique, ao falar de experincia e aprendiado, no se referiuapenas a questes exteriores, mas a si mesma, revelando

    perceber que seu autoconhecimento se desenvolveu com oenvelhecimento.

    Mas a gente ganha muito mais experincia com o dia-a-dia. Agente vai vivendo e aprendendo. Coisas que a gente no sabiaquando era nova, hoje a gente sabe, no ? [...] Sabe tambm oque a gente pode fazer, a eu s vou fazer o que eu posso fazer.Outrora no, quando eu era nova, eu fazia coisa que eu sabiaque no tinha condio de fazer.

    Outros ganhos da velhice discutidos pelas participantesse referem flexibilidade de suas rotinas e conquista deuma maior autonomia. A possibilidade de ter uma velhicebem-sucedida passa pelo aproveitamento do tempo livre ematividades praerosas. Em geral, nessa poca que, coma aposentadoria e a sada dos filhos de casa, diminuem as

    obrigaes. Nesse sentido, vontade e disposio sero maisdeterminantes na realiao de atividades do que eram antes,como comentado por Lia:

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    EliEnE M. Curado / ana Paula M. CaMPos / VEra lCia d. CoElho

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    intergeracional, o isolamento e sentimentos de rejeio porestarem se sentindo parte na convivncia com os filhos e

    netos.Nota-se que as participantes demonstraram grande

    dificuldade em citar eventos ou caractersticas relacionadas aconquistas da velhice, inclusive algumas negaram a existnciade tais aspectos. Aquelas que perceberam alguns ganhos noprocesso do envelhecer citaram a experincia adquirida, oaprendiado, o autoconhecimento, a flexibilidade de horrios,

    a maior autonomia e a satisfao com a vida.

    Dar a mulheres idosas a oportunidade de falarem sobresi mesmas, portanto, alm de valoriar suas experinciasde vida, constituiu uma maneira de compreender melhorcomo vivenciam a velhice, obtendo-se informaes valiosassobre esse perodo do ciclo vital. Neste estudo, observam-sedepoimentos que refletem diferentes aspectos da velhice, assimcomo reafirmam a sua heterogeneidade. Afinal, existem idosose no o idoso, ou ainda, existem velhices e no a velhice(SantAnna, 1997, p. 76). As participantes compartilharam, noespao grupal, o incio dessa fase da vida, seus benefcios eperdas, destacando sempre os fatores relacionais, tanto osfamiliares como os sociais.

    Duas questes sobressaram nos encontros grupais,em especial naqueles onde a velhice era o tema principal: adificuldade de reconhecer as conquistas da velhice e de noassumir a condio de pessoa idosa. Tais questes remetem noo de que preconceitos sociais e prticas discriminatriasrealmente podem influenciar o que pessoas idosas pensam esentem sobre a velhice, mas esse sentimento tambm resulta

    de uma histria pessoal e familiar, imersa em um contextosociocultural. Assim, intervenes psicolgicas que busquemresgatar e ressignificar a histria de vida podem contribuir para

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    a valoriao da pessoa idosa e, conseqentemente, melhorade sintomas emocionais. medida que so questionadas

    as idias sobre si e sobre a velhice, outras atitudes poderoser adotadas, levando a interessantes descobertas sobre asprprias capacidades.

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