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ACEPÇÕES RECENTES DO CONCEITO DE LUGAR E SUA IMPORTÂNCIA PARA O MUNDO CONTEMPORÂNEO Luiz Felipe Ferreira" Recent uses of the concept of place and their significance for lhe contemporary world Place has 1l0W emerged as one of lhe richest conccpts in Geography. Encompassing an objecti ve and a subjective dirnension, lhe conccpt plays today an important role in both hurnan ist ic and radical gcographical thought and is considcred a kcy category for comprehending the contemporary world. Anel' rcviewiug t he phenomenological and radical conccptions of placc, the article discusscs rcccnt theorctical cfforts which try to reunite thesc two apparcrnly opposed VICWS. o conceito de lugar, considerado por muito tempo como um dos mais problemáticos da Geografia, tem se destacado, recentemente, como uma das chaves para a compreensão das tensões do mundo contemporâneo. Articulan- do, entre outras, as questões relativas a globalização versus individualismo, às visões de tendência marxista versus fenomenológica ou à homogeneização do ambiente versus sua capacidade de singularização, o lugar tem se apresentado como um conceito capaz de ampliar as possibilidades de entendimento de um mundo que se fragmenta e se unifica em velocidades cada vez maiores. Inicialmente associado à idéia de região, o conceito de lugar Ioi utilizado por La Blache e Sauer sem que eles, entretanto, aprofundassem a discussão sobre seu significado. A partir da década de 70, no entanto, a chamada Geo- grafia Humanista irá realizar um esforço de recuperação do conceito associ- ando-o à base filosófica da Fenomenologia e do existencialismo e transforman- do-o em um de seus conceitos-chave (HOLZER, 1992; 1997, 1999, DUNCAN, 1994). Nos anos 80, o interesse com relação ao lugar ultrapassou os limites da Geografia Humanista e passou a interessar também aos geógrafos econômicos . Doutorando em Geografia do PPGG da UFRJ

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ACEPÇÕES RECENTES DO CONCEITO DELUGAR E SUA IMPORTÂNCIA PARA

O MUNDO CONTEMPORÂNEO

Luiz Felipe Ferreira"

Recent uses of the concept of place and theirsignificance for lhe contemporary world

Place has 1l0W emerged as one oflhe richest conccpts in Geography.Encompassing an objecti ve and asubjective dirnension, lhe conccpt playstoday an important role in bothhurnan ist ic and radical gcographicalthought and is considcred a kcy

category for comprehending thecontemporary world. Anel' rcviewiugt h e phenomenological and radicalconccptions of placc, the article discusscsrcccnt theorctical cfforts which try toreunite thesc two apparcrnly opposedVICWS.

o conceito de lugar, considerado por muito tempo como um dos maisproblemáticos da Geografia, tem se destacado, recentemente, como uma daschaves para a compreensão das tensões do mundo contemporâneo. Articulan-do, entre outras, as questões relativas a globalização versus individualismo, àsvisões de tendência marxista versus fenomenológica ou à homogeneização doambiente versus sua capacidade de singularização, o lugar tem se apresentadocomo um conceito capaz de ampliar as possibilidades de entendimento de ummundo que se fragmenta e se unifica em velocidades cada vez maiores.

Inicialmente associado à idéia de região, o conceito de lugar Ioi utilizadopor La Blache e Sauer sem que eles, entretanto, aprofundassem a discussãosobre seu significado. A partir da década de 70, no entanto, a chamada Geo-grafia Humanista irá realizar um esforço de recuperação do conceito associ-ando-o à base filosófica da Fenomenologia e do existencialismo e transforman-do-o em um de seus conceitos-chave (HOLZER, 1992; 1997, 1999, DUNCAN,1994). Nos anos 80, o interesse com relação ao lugar ultrapassou os limites daGeografia Humanista e passou a interessar também aos geógrafos econômicos

. Doutorando em Geografia do PPGG da UFRJ

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que buscaram entender lugar como uma "especificidade manifestada dentro docontexto de processos gerais" (DUNCAN, 1994:442).

Por um lado, a corrente da Geografia Humanista irá identificar o lugarcomo base da própria existência humana através de uma experiência profundae imediata do mundo ocupado com significados (RELPH, ] 980) buscando umaaproximação com a Fenomenologia e o Existencialismo (HOLZER, 1997) ouabordando o espaço através do modo como ele é vivenciado pelos seres hu-manos (HOLZER, 1999) e propondo uma Geografia que dê relevância àsquestões referentes às pessoas em vários contextos (BUTIlMER, 1974). Porsua vez, a visão da chamada Geografia Radical, de base marxista, irá com-preender o lugar como uma perspectiva regional sobre o global (JOHNSTON,1991), uma construção social sobre o pano de fundo da relação entre espaço-tempo e ambiente (HARVEY, 1996), um local criado para atender a determi-nadas funções (SANTOS, 1997) a partir do qual estabelecemos nossa revisãoe interpretação do mundo, onde "o recôndito, o permanente, o real triunfam,afinal sobre o movimento, o passageiro, o imposto de fora" (SANTOS,1993:20)

A partir destas duas acepções, aparentemente opostas e irreconci Iiáveis,alguns geógrafos têm buscado, em trabalhos recentes, novas concepções delugar, visto, desta vez, como expressões das tensões da modernidade(ENTRIKIN, 1997; MERRIFlELD, 1993; OAKES, 1997).

Buscaremos destacar, neste artigo, estes três caminhos. Iniciaremosapresentando uma abordagem sobre a concepção de bases fenomenológicas dolugar, destacando os trabalhos de Relph e Buttimer. A seguir apresentaremosa idéia de lugar como enfocada pela Geografia Radical, abordando, principal-mente, as concepções de Harvey, Santos e Massey. A terceira parte buscaconciliar as divergências apresentadas através de novas visões do lugar, dando-se destaque aos trabalhos de Entrikin, Merrifield, Graham e Oakes.

O LUGAR "FENOMENOLÓGICO"You /ack vision, but I see li place where people get on and of! the freeway.011 and of!, of! and 0/1 aI! day, aLI night! SOOIZ, where Toon Town oncestood will be a string of gas stations, inexpensive motels, restaurants lha!serve rapidly prepared food. Tire salons, automobile dealerships andwonderful. wonderful billboards reaching as far as the eye can see! MyGod, ir/I! be beautiful!Uma cilada para Roger Rabbit

A relação entre Geografia e Fenomenologia foi estabelecida, inicialmen-te, por Relph em seu livro Place and placelessness (1980). Nele, o autorafirma que o lugar deve ser analisado a partir das experiências diretas do

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mundo e da consciência que temos do ambiente em que vivemos. Para Relph,o espaço geográfico não deve ser entendido como uma lacuna aguardandopara ser completada mas sim como "o lugar onde alguém está e, talvez, oslugares e paisagens de que ele se lembra" ou seja, "uma profunda e imediataexperiência do mundo que é ocupado com significados e, como tal, é a própriabase da existência humana" (RELPH, 1980:5). O conceito de lugar, adquire,deste modo, para a Geografia Humanista, um papel central visto gue é atravésdele gue se articulam as experiências e vivências do espaço. Como ressaltaHolzer (1977), o conceito de lugar é essencial para o que ele denomina deGeografia Fenomenológica, pois é ele que irá propiciar a este ramo do conhe-cimento a possibilidade de voltar-se para sua essência que é o estudo doespaço geográfico. Tuan (1983) acrescenta que os lugares, assim como osobjetos, são núcleos de valor, e só podem ser totalmente apreendidos atravésde uma experiência total englobando relações íntimas, próprias do residente(insider), e relações externas, próprias do turista (outsider). O lugar torna-serealidade, portanto, a partir da nossa familiaridade com o espaço, não neces-sitando, entretanto, de ser definido através de uma imagem precisa, limitada.Lugar se distingue, deste modo, de espaço. Este "transforma-se em lugar àmedida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor" (TUAN, 1983:6)adquirindo definição e significado.

Buttimer (1976), por sua vez, irá buscar na noção de mundo vivido(lifeworLd) o elo entre os procedimentos geográficos e fenomenológicos. Comodestaca Méo (1999), o conceito de mundo vivido exprime uma relação existen-cial, portanto subjetiva, que o indivíduo, ou o grupo social, estabelece com oslugares, refletindo seu pertencimento a um determinado grupo num determina-do lugar. Para se conhecer o mundo vivido é necessário o conhecimento deseus atores, de suas práticas, representações e imaginário espacial. A ligaçãocom o lugar não poderá prescindir, deste modo, daquilo que Jackson definecomo "urna consciência viva do ambiente familiar, uma repetição ritual, umsentido de companheirismo baseado numa experiência compartilhada"(JACKSON, 1994:159). Para a Geografia Humanista, é, portanto, o nossosentido de tempo, de ritual, que a longo prazo cria nosso sentido de lugar e decomunidade. São os horários que estabelecemos para nós mesmos que noscolocam em contato uns com os outros. Não é a proximidade mas ocompartilhamento de horários que nos aproxima. No ambiente urbano contem-porâneo nosso sentido de unidade e continuidade é dado pelo sentido cícl ico dotempo, pela recorrência regular de eventos e celebrações. A ligação com olugar é comparável a ligação da criança com a figura paterna e se dá tantono nível material quanto no social e no imaginativo (HA YDEN, 1997). O lugardispara a lembrança daqueles que o vivenciaram, que compartilharam um

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passado comum, abrindo a possibilidade de sua compreensão para o outsideratravés dos passados compartilhados e inscritos na paisagem cultural. O con-ceito de memória, seja ela pessoal ou coletiva, está, deste modo, intimamenteligado ao de lugar. Estas memórias se encontram armazenadas nas paisagensurbanas que seriam, deste modo, verdadeiros "armazéns de memória social"(HAYDEN, 1997:9), visto que tanto os elementos naturais quanto os construídospelo homem freqüentemente sobrevivem a muitas gerações.

Na década de 1970, Relph (1980) já destacava a importância das expe-riências intersubjetivas e da aparência do lugar na expressão de sua identidade.Esta, entretanto, não é fixa e imutável, mas possui componentes e formas quevariam com li mudança das circunstâncias e das atitudes.

O processo de desenvolvimento de identidade de um lugar seria, paraRelph, uma combinação de observação, ou seja, de contato direto com o lugar,e de expectativas estabelecidas antes deste contato. A identidade de um lugarseria, deste modo, a expressão da adaptação, da assimilação, da acomodaçãoe da socialização do conhecimento. O lugar seria um centro de significaçõesinsubstituível para a fundação de nossa identidade como indivíduos e comomembros de uma comunidade, associando-se, desta forma, ao conceito de lar(home placei, Relph ressalta, entretanto, que esta associação com o lar/lugarpode dar-se em vários níveis, variando da ligação mais completa à totaldesvinculação entre sujeito e lugar. A importância de nossa relação para comos lugares ultrapassa a da nossa consciência dessa ligação. Como diz o autor,"uma relação profunda com os lugares é tão necessária, e talvez tão inevitável,quanto uma relação próxima com as pessoas; sem tais relações, a existênciahumana, embora possível, fica desprovida de grande parte de seu significado"(RELPH, 1980:41)

Outros autores buscaram ampliar esta concepção de lar e sua associa-ção com o lugar. Tuan (1983) considera que o lugar existe em diferentesescalas, desde uma poltrona preferida até a totalidade da terra. McGreevy(1990) ressalta que, dependendo do contcx to, tanto a terra nativa quanto umcentro urbano, uma comunidade local ou uma habitação familiar podem repre-sentar um lar. Holzer ressalta, entretanto, que o aumento da escala tende adificultar o relacionamento espacial direto, "remetendo-nos para uma apreen-são cada vez mais fragmentária dos lugares" (HOLZER, 1999:74). Buttimer(1980), por sua vez, pensa o lugar em termos de dois movimentos e conceitosrecíprocos: o lar (llOlI1e) e os horizontes de alcance (reach) relacionados,respectivamente, ao espaço experienciado e às perspectivas fora deste espaço.Tais conceitos são comparáveis, deste modo, à inspiração e à expiração, aodescanso e ao movimento; ao território e ao alcance, à segurança e à aventura,à construção da comunidade e à organização social. De acordo com a autora,

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níveis diferentes de lar e alcance podem ser aplicados para (1) a imaginaçãopessoal, (2) as afiliações sociais e (3) a localização física do lar e alcance. Taisdistinções, se mapeadas dentro dos horizontes de tempo do espaço vivido,podem prover chaves para a compreensão da identidade de lugares.

Entretanto, longe de se preocupar somente com a formação e com aexperiência direta dos lugares, a Geografia Humanista de base fenomenológicabusca questionar as ações presentes no mundo contemporâneo, globalizado.que destroem e desconsideram a importância dos lugares. A questão da glo-balização é, deste modo, crucial para tentar-se entender a diminuição do nú-mero de lugares significantes e a homogeneização das paisagens. A partirdesta constatação, Relph (1980) irá elaborar o conceito de deslugaridadeiplacelessness), associando ao mundo moderno a perda da diversidade e dosignificado deste lugares. De acordo com o autor, na sociedade atual, a dimi-nuição do número de lugares significantes e paisagens diferenciadas estariaapontando para o surgimento do que ele chama de uma Geografia do deslugar.Como conseqüência disso, estaríamos sendo subjugados pelas forças dadeslugaridade e pela perda de nosso sentido de lugar. A partir dos conceitosde autenticidade e inautenticidade, tão caros à Fenomenologia. Relph - emlugar de simplesmente condenar esta que ele chama de uma atitude inautênticade deslugaridade - busca compreender suas características e reconhecer quea deslugaridade é lima atitude e lima expressão dessa atitude que está setornando crescentemente dominante e, como conseqüência, torna-se cada vezmenos possível a criação autêntica de lugares e a fruição de um sentidoprofundo de lugar. O autor conclui que as sociedades industrializadas e demassa possuem um modo de vida dominantemente inautêntico onde a comu-nicação de massa, a cultura de massa, as grandes empresas, o processo deautoridade central e o próprio sistema econômico são os principais responsá-veis por todo este processo. Relph afirma, deste modo, que é necessário levar-se em conta a profunda necessidade humana de associação com lugares. Parao autor, a negação de tal fato irá levar a um futuro onde o lugar deixará deter importância. Entretanto se decidirmos transcender a deslugaridade o lugarressurgirá como um reflexo da variedade humana.

As conclusões de Relph irão, entretanto ser relativizadas por Buttimer aosugerir que o sentido de lugar pode ser urna função de quão bem ele provê umcentro para o interesse de vida do indivíduo. Deste modo, lugares que parecemgrandes manchas de concreto deslugarizadas podem possuir significados paragrupos sociais específicos. Lanchonetes situadas em ruas afastadas ou embeiras de estradas podem ser lugares plenos de significados para grupos deadolescentes ou motoristas de caminhão. Baseando-se em conceitos desenvol-vidos por ela, a autora destaca que pessoas para as quais o horizonte de

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alcance (reach) é mais importante que o lar (home) podem considerar, porexemplo, que lugares constituem somente pontos localizados entre acessos.Componentes importantes da paisagem moderna como auto-estradas, aeropor-tos e arranha-céus - verdadeiros vilões da deslugaridade - seriam, para Buttimer,símbolos de uma civilização que endeusa o alcance e despreza o lar. Ou, comoafirma HAYDEN, mesmo um shopping-center que tenha sido construído nolocal de um campo de flores selvagens, merece ser considerado um lugar, "nemque seja para registrar a importância de perda e explicar que ele tenha sidodestruído por um desenvolvimento sem cuidados" (HAYDEN, 1997: 18).

Apesar de apresentar uma visão mais ampla do conceito, Buttimer as-socia-se a Relph em suas preocupações quanto a possível extinção do lugarpelos processos de globalização capitalista. Ao contrário, entretanto, de respon-sabilizar a centralização do mundo contemporâneo, a autora considera a impor-tância da ação tanto do insider quanto do outsider e propõe como mediadoro geógrafo "sensibilizado com a experiência de lugar do insider e do outsidere atento a suas reciprocidade de lar e alcance em sua experiência de vida"(BUTTIMER, 1980: 184).

O LUGAR "RADICAL"Most people have a [ull measure of life, anel mos! people just watch itslowly drip away But if you can summon u ali up in one time, ar one place,vou can accomplish something glorious.Highlander; o guerreiro imortal /I

A visão popularizada por Relph e adotada pela Geografia Humanista deum mundo globalizado - onde o lugar, com toda sua carga de significadossimbólicos e afetivos, parece se dissolver e se transformar em deslugares semalma, homogeneizados pelo sistema econômico que busca a padronização -seria alvo de severas críticas oriundas, principalmente, da chamada GeografiaRadical.

Harvey (1996), por exemplo, irá colocar em cheque muitos dos concei-tos-chave desta visão do lugar. Idéias como a de enraizamento, terra-mãe,relação autêntica com o ambiente, fariam sentido no mundo capitalista altamen-te industrializado em que vivemos? Ou não seriam elas mesmas produtos domundo industrializado moderno, na medida em que teriam emergido exatamenteno momento em que a industrialização moderna nos separa do processo deprodução e encontramos o ambiente como um bem terminado. Não será aprópria busca de autenticidade que irá gerar uma necessidade de se inventartradições e heranças culturais, num processo artificial de preservação e re-construção? Deste modo, para Harvey, o lugar, ao contrário de estar se tor-

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nando menos importante, vem adquirindo cada vez mais importância no mundocontemporâneo. Como afirma o autor, o lugar é uma construção social e deveser compreendido tanto como uma localização quanto como uma configuraçãode "permanências" relativas internamente heterogênea, dialética e dinâmicacontida na dinâmica geral de espaço-tempo de processos sócio-ecológicos. Ouseja, processos específicos contidos e expressos dentro do processo global.

Esta forma de se compreender o lugar irá servir de base para diversosestudos geográficos, políticos e econômicos a partir de então, sofrendo, entre-tanto, algumas atualizações no decorrer das últimas décadas. Nos anos 1970,por exemplo, lugar é definido por Santos como uma "porção discreta de espaçototal", ou como "uma porção da face da terra identificada por um nome"(SANTOS, 1978: 121). O mesmo autor, 20 anos depois, irá perceber, no que elechama de esquizofrenia do lugar, sua importância na formação de consciênciase como indicador de modos de intervenção conscientes nos processos deglobalização. É este papel de espaço de resistência ao mesmo tempo singulare global que está no âmago do conceito adotado por esta Geografia Crítica nacompreensão dos processos sociais e suas espacializações.

De acordo com Harvey, para Marx o lugar se define dentro da geografiahistórica da acumulação de capital como um dos constituintes do mundo espa-ço-temporal de intrincadas relações sociais e valorações universais. Este mun-do espaço-temporal, entretanto, possui uma qualidade universal que precisa serpensada em termos de uma estratégia político-econômica global. Isto não implicana negação do mundo da experiência direta mas aponta a necessidade de secompreender processos globais de trocas econômicas que interferem em nossavida diária. Ou seja, aquilo com o qual interagimos não é suficiente paraexplicar a realidade político-econômica do mundo atual. Para Marx, segundoHarvey, a construção do lugar estaria ligada (direta ou indiretamente) com ocapital e representaria um "momento de consolidação de um regime de rela-ções sociais, instituições e práticas político-econômicas de inspiração capitalis-ta" (HARVEY, 1996:314). Busca-se compreender, deste modo, o local comouma expressão do global.

Para Santos (1978) o espaço seria um testemunho de um momento deprodução fixado na paisagem, decorrente de processos preexistentes e influen-ciando novos processos. Estes devem adaptar-se às formas já existentes parapoderem se determinar. Ou seja, "os objetos geográficos aparecem em loca-lizações, correspondendo aos objetivos da produção em um dado momento e,em seguida, por sua própria presença, eles influenciam os momentos subse-qüentes da produção" (SANTOS, 1978: 139). As expressões do global no localseriam marcadas pelo que Santos define como rugosidades, ou expressões dotempo histórico incorporadas ao espaço. Esta concepção, onde subjaz uma

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visão do lugar como imobilidade em contraposição ao global eternamente emprocesso, pode ser percebida na definição do lugar como "ponto de articulaçãoentre a mundialidade em constituição e o local enquanto especificidadeconcreta, enquanto momento" [grifo meu] (CARLOS, 1993:303).

A relativa rigidez desta abordagem do lugar será, entretanto, matizada apartir de necessidade de se compreender as singularidades dos lugares dentrodo contexto global. Os lugares devem ser diferenciados não somente por seuambiente físico mas também pelas diferentes respostas humanas às oportuni-dades e limitações apresentadas pelos ambientes. Tais respostas estariam naraiz da variedade cultural contemporânea e na concepção das estruturas sociaiscomo "máquinas para viver" (JOHNSTON, 1991). Deste modo, mesmo tendocomo objetivo uma uniformização cultural, a globalização, vista como "umprocesso de reestruturação do sistema de acumulação e reprodução dos cen-tros capital istas mundiais" (ORTEGA e LOPES, 1993: 172), provocaria proces-sos de fragmentação espaço-temporal e conseqüente hierarquização espacial.

Para Santos (1997) a globalização (ou mundial ização, como prefere oautor) da produção propicia a afirmação e diferenciação dos lugares em escalamundial. A tendência das firmas transnacionais a se fixarem mundialmente,exemplificá o autor, faz surgir uma busca constante por lugares mais rentáveis.Estes, atingidos direta ou indiretamente pelas necessidades do processo produ-tivo, buscam diferenciar-se dos lugares concorrentes reorganizando-se, buscan-do destacar suas vantagens naturais ou sociais preexistentes ou adquirindonovas vantagens. Os lugares, afirmam Young e Lever (1977), buscam promo-ver-se a si mesmo com o objetivo de atraírem investidores e consumidoressendo uma das estratégias dessa promoção a criação de imagens do lugar. Ouseja, a mundialização dos lugares os torna cada vez mais específicos e singu-lares através da especialização dos elementos do espaço, da dissolução dosprocessos de acumulação de capital, do aumento das ações que distinguem einterligam os lugares. Nas palavras de Santos, "quanto mais os lugares semundializam, mais se tornam singulares e específicos, isto é, únicos" (SAN-TOS, 1997:47).

Santos ressalta ainda que, assim como o lugar deve ser compreendidolevando-se em conta a totalidade do processo, a realidade global tambémprecisa ser entendida através das diferenças regionais. Elementos comoshopping-cenrers, auto-estradas ou aeroportos terão diferentes impactos emáreas distintas do planeta produzindo resultados distintos e particulares. Emboraaparentemente similares, cada objeto está relacionado a contextos mais amplos,constituindo-se em um produto histórico singular.

O processo de singularização do lugar se dá, deste modo, como umaespécie de combinação, num determinado local, das possibilidades oferecidas

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pela generalização. Mesmo possuindo uma força de inércia, uma "autonomiade existência", presente naquilo que o forma, o lugar incorpora novas funçõesa estas antigas formas através da "autonomia de significação" (SANTOS,1978). Ou seja, mesmo permanecendo esquematicamente os mesmos, os luga-res têm suas significações permanentemente mudadas.

Ferrara (1993) já havia destacado que, no processo de globalização, oque na verdade se globaliza é a percepção do mundo. É esta idéia de umespaço que se identifica, que se dá a conhecer, que será desenvol vida porSantos (2000) através do conceito de fabulação. Para o autor, us fabulaçõeslegitimam a realização dos mitos como o da "aldeia global", o do "encurtamentodas distâncias" e o da "morte do Estado". Elementos importantes na formaçãodo discurso totalitário, as fabulações produzidas no mundo de hoje têm comoobjetivo produzir interpretações de eventos marcada pelos humores, visões,preconceitos e interesses dos veículos mediadores. As idéias de "aldeia global",de "espaço e tempo contraídos", de "desterritorialização da humanidade" sãodeterminantes para a própria existência do período histórico atual. É dentrodesta mesma globalização, entretanto, prossegue Santos, que os lugares irãoassumir o papel de espaços de resistência. Estes ao mesmo tempo em queacolhem os vetores da racionalidade dominante propiciam o surgimento e odesenvolvimento de diferentes processos. Os lugares são o mundo e reprodu-zem este mundo de modos indi viduais e diversificados. Eles são formas singu-lares da totalidade-mundo e toei dos pobres, dos excluídos e dos marginaliza-dos, a grande força produtora da contra-ordem, em oposição aos vetores daglobalização. Estes excluídos e marginalizados, reunidos em número crescentenas cidades "não se subordinam de forma permanente à racionalidadehegemônica e, por isso, com freqüência podem se entregar a manifestaçõesque são a contraface do pragmatismo" (SANTOS, 2000:114). Estes lugarestêm, deste modo, um papel de relevante importância ao propiciarem um espaçovivido "que permite, ao mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indaga-ção sobre o presente e o futuro" (SANTOS, 2000: 114).

Hudson (1998), entretanto, alerta para o que ele chama de produção dehistórias sobre a globalização. Estas "histórias" afirmam que a crescentemobilidade do capital, e sua inelasticidade, associadas a contínua demanda deinvestimentos econômicos pelos lugares, os têm aniquilado. Estes, não maissofrendo as influências, vantajosas 01.1 desvantajosas, da distância ou da aces-sibilidade buscariam atrair capital através de ambientes regulatórios cada vezmais liberais, criando territórios desregulados, similares entre si, marcando,deste modo, o chamado fim da Geografia. Na verdade, sustenta Hudson, estatese, associando globalização, hipermobilidade e desregulamentação competiti-va, deve ser encarada com ceticismo por uma série de razões, entre elas o

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exagero do impacto da globalização, a desvinculação entre hiperrnobilidade eglobalização do capital e a necessidade do capital de estar fixado em algumlugar para acumular valor. A globalização não levaria necessariamente à com-petição entre lugares porque o próprio processo de globalização, ao atuar noslugares, muda sua natureza alterando seu alcance, sua posição e seu poder. Oslugares não são entidades fixas, permanentes e limitadas, mas "temporárias,dinâmicas e (re)produzidas através de processos sociais que não são contidospor seus limites crescentemente porosos" (HUDSON, 1998:917). O processode globalização ampliaria, portanto, a participação de atores extra-locais naconstrução de lugares. Na verdade, a própria dificuldade em se traçar oslimites do lugar põe em cheque a concepção dualista de lugar como lima tensãoentre o local e o global. Deste modo, "lugares são resoluções temporariamenteconfiadas na paisagem social dinâmica; eles são o sítio e o produto de proces-sos de barganha regulatória. Portanto, mais do que levar ao fim da Geografiaa globalização envolve o reescalonamento de lugares" (HUDSON, 1998:934)

Massey (1984) irá abordar a questão em termos da relação entre pro-cessos gerais e questões particulares. A variedade, destaca a autora, não deveser compreendida como um desvio do que deveria necessariamente acontecervisto que os processos gerais nunca ocorrem de forma pura. Há semprecircunstâncias específicas, uma história particular ou um lugar ou locaçãoparticulares. Esta própria variedade, este mosaico de especificidades regionaisterá grande importância no modo como a sociedade como um todo se reproduze se modifica. Segundo Massey (1997), a idéia, defendida pela GeografiaHumanista, de que houve um tempo onde os lugares eram habitados por co-munidades homogêneas não só é falsa mas acabou por gerar o conceito de quea busca pelo sentido do lugar seria reacionária. A partir desta constatação, aautora irá buscar um sentido de lugar progressivo, não autocontido, que "olhepara fora" e seja adequado ao momento atual de compressão espaço-tempo.

A idéia de que o senso de deslocamento que percebemos no mundoatual não é diferente daquele que outras civilizações sentiram quando, porexemplo, entraram em contato com o colonizador britânico serve como pontoinicial pra que Massey questione a própria noção de compressão espaço-tempo. A aceleração do mundo atual, mesmo tendo um forte componenteeconômico, decorrente da internacionalização do capital, não o teria comoúnico determinante. Além do mais, nem todas as pessoas experimentam estacompressão espaço-temporal com a mesma intensidade. Enquanto uns reali-zam as movimentações e comunicações que "reduzem" o mundo contemporâ-neo, outros, apesar ele se movimentarem, não estão encarregados do processo.Outros ainda são símp les receptores da compressão espaço-temporal. Noextremo desse processo algumas pessoas, como os favelados do Rio de Janei-

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ro, apesar de contribuírem com o esporte ou a música global, estão como queaprisionados na compressão espaço-temporal. Deste modo, existem diferençasnão somente em termos de graus de movimento e de comunicação mas tam-bém em graus de controle e iniciação.

A idéia de lugares com limites demarcados e identidades únicas,construídas através de relações profundas e históricas, não se adapta a estarealidade. O lugar, para Massey, não possuiria um sentido único compartilhadopor todos, do mesmo modo que as pessoas não possuem uma identidade única.A identidade dos lugares é mais bem explicada no plural pois lugares possuemdiversas identidades e estão repletos de relações com meio mundo. É nestesentido que a autora fala de um sentido global de lugar.

Deste modo, "o que dá ao lugar sua especificidade não é algum tipo dehistória longamente internalizada mas o fato de que ele é construído a partir deuma constelação particular de relações sociais que se encontram e se enlaçamnum locus particular" (MASSEY, 1997:322). Lugares seriam, portanto, pontosde encontro de redes de relações sociais, movimentos e comunicações cujasrelações recíprocas tenham sido construídas em escala muito maior do queaquelas definidas para o lugar naquele momento. Estas relações com o sistemaamplo não são apenas ritualísticas mas relações reais com conteúdos econô-micos, políticos e culturais reais.

BUSCA DE INTEGRAÇÃOOh, a sleeping drunkard / Up in Central Park, / And a lion-hunter / Inthe jungle dark; / And a Chinese dentist, / And a British queen - / AI{ fittogether / In lhe same machine. / Nice, nice, ve/y nice; / Nice, nice, verynice; / Niee, nice, very nice - / 50 many different people / In the samede vice.Kurt vonnegut, jr. (Cat's eradle)

Apropriado, deste modo, tanto pela Geografia Humanista quanto pelaGeografia Radical como um de seus conceitos-chave, o lugar irá osc ilarecleticamente entre definições conflitantes. Harmonizar estas expressões -que vão de uma relação autêntica com o espaço, por um lado, à materializaçãoda relação global-local, por outro - passou a ser uma tarefa perseguida porvários estudiosos. O esforço desenvolvido por alguns deles irá lançar novasluzes sobre este conceito, ampliando o conhecimento das ciências humanas, eda Geografia em particular, sobre questões tão atuais quanto a hipermobilidadede empresas ou a relação entre espaço e novos sistemas da tecnologia deinformação.

As novas concepções de lugar buscam compreendê-lo como um

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articulador das questões cruciais para a compreensão da vida humana e suarelação com um ambiente cada vez mais fragmentado e globalizado. Impõe-se,deste modo, uma nova realidade onde as recentes tecnologias de informaçãopotencializam tanto a globalização dos processos quanto a aglutinação de ele-mentos com significados comuns. O conceito de lugar será, deste modo, apro-priado por geógrafos em busca de uma compreensão profunda e multifacetadada realidade atual.

Um dos primeiros estudiosos a tentar elaborar um conceito de lugar quesintetize todas estas tensões será Entrikin (1991). Este buscará as bases parao entendimento do lugar através do contraste entre duas visões do mundo: acentrada, ligada ao ponto de vista subjetivo, e a descentrada, ligada ao pontode vista objetivo. Para o autor, ao assumirmos uma abordagem descentrada(através de um ponto de vista objetivo, teórico-científico, ligado à externidade)com relação ao lugar deixamos de compreendê-lo como contexto para vê-locomo locação. A posição contrária, ou seja, abordar o lugar de um ponto devista centrado (através de enfoque subjetivo, ligado à internidade) é afirmarque não existe nenhuma essência universal do lugar para ser descoberta.Compreender o lugar será, portanto, compreender tanto a realidade subjeti vaquanto a objetiva, será colocar-se em algum lugar no meio do caminho entrea visão descentrada do cientista, que vê o lugar como um conjunto de relaçõesgenéricas, e aquela centrada do sujeito que o vê em relação às preocupaçõesdo indivíduo. Esta característica própria do lugar, Entrikin denominará deintermediaridade (betweelll7ess).

Para o autor, a postura científica, que busca conceitos universais reduza importância das particularidades dos lugares. Entretanto, como atores indivi-duais, estamos sempre, de um modo ou de outro, localizados no mundo eligados a suas particularidades. Questões cruciais para a vida moderna estãorelacionadas a esta "localização". Deste modo, o ponto de vista "afastado",característico da teorização científica, toma difícil a compreensão de diversose importantes aspectos da existência humana. Ao definirmos uma abordagemdescentrada, estamos optando pela generalização das especificidades dos luga-res, deixando de vê-los como contextos para compreendê-los como locação.Por outro lado, "compreender o lugar como contexto é reconhecer que, doponto de vista objetivo do teórico, não existe nenhuma essência ou estruturauniversal do lugar para ser revelada ou descoberta" (ENTRlKIN, 1991 :3). Amediação entre estas duas perspectivas se dá. de acordo com o autor, atravésdo processo de descrição de lugares em estilo narrativo, característico dassínteses geográficas. Tal processo acontece no espaço de mediação entre aperspectiva do insider e a do outsider captando, deste modo, a intermediaridadecaracterística do lugar. Compreender um lugar é, assim, compreender tanto a

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realidade objetiva quanto a subjetiva. A narrativa representa, deste modo, ummeio de se descrever o mundo em relação a um sujeito. Ela é um ponto devista do sujeito, possuindo dois componentes: a história e o narrador. Seurelativo centramento permite com que ela possa incorporar elementos objetivose subjetivos. Entrikin destaca que

"Uma diferença entre a visão do agente da vida cotidiana e a visão dogeógrafo tende a se apresentar através da gradação entre a distinçãodestes dois pólos. O geógrafo realiza uma tentativa autoconsciente deseparar estes dois pólos e de ocupar uma posição relativamente objetivaem algum lugar entre aquela do agente e a do teórico. Deste pontoprivilegiado, o geógrafo ganha uma compreensão do lugar como o con-texto das ações e eventos humanos" (ENTRIK/N, /99/:26).

A interpretação do significado do lugar é, para Entrikin, um dos objetivosdo geógrafo cultural moderno. Sua narrativa cumpriria a função de traduzir ahistória dos lugares interconectando suas realidades objetivas e subjetivas.Segundo Entrikin, ao buscar a perspectiva do narrador, o geógrafo deverá nãosomente descrever as experiências, mas também avaliá-las, buscando, destemodo, uma compreensão objetiva do lugar sem perder, entretanto, a dimensãodos fatos da experiência.

Ao se compreender o lugar como intermediaridade entre o interno e oexterno, Entrikin (1997) coloca a questão sobre até onde se deve ser penne-ável ao mundo externo buscando-se um equilíbrio entre o que deve ser mantidode fora - preservando-se as características da comunidade - e o que deve serpermitido entrar - evitando-se a esterilidade resultante do isolamento. O estudogeográfico do lugar não deve, assim, se limitar ao estudo do específico e dosingular mas buscar compreender as experiências indi viduais através das nar-rativas coletivas e dos discursos públicos. Esta forma de abordagem do lugarirá equalizar seus diversos aspectos, evitando compreendê-lo unicamente comoalgo socialmente construído.

Em que pese a originalidade da abordagem de Entrikin e os caminhosapontados por sua concepção do lugar como intermediaridade, e da narrativacomo expressão dessa situação peculiar, algumas críticas se apresentaram aesta concepção. Malpas (1999) destaca que Entrikin compreende o lugar comouma construção subjetiva ao mesmo tempo em que busca, através do conceitode narrativa, reunir os seus aspectos subjetivos e objetivos. Merrifield, por suavez, ressalta que Entrikin propõe compreender o lugar através de uma abor-dagem explicitamente dialética reconciliando "o modo no qual a experiência évivida e agida no lugar e o modo como ela se relaciona e se integra em práticas

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políticas e econômicas que são operativas em escalas mais amplas"(MERRIFIELD, 1993:517). A preocupação da dialética com as questões damudança, do movimento, da interconexão e da interação e a compreensão dotodo através das relações internas entre cada uma das partes em oposição a"objetificação" da realidade social e a busca de uma ordem lógica do ponto devista empiricista irão fazer com que o autor coloque em xeque a tese deEntrikin. A idéia de interrnediaridade pressupõe, segundo Merrifield, uma basecartesiana, assumida por Entrikin ao entender o lugar de uma forma dualística:de um lado o mundo material (externo), e de outro o mundo da consciênciahumana (interno). Ao buscar apresentar o lugar como ponte entre as duaspontas de um continuum, Entrikin irá destacar uma polaridade entre a concep-ção subjetiva e a objetiva do lugar. Deste modo, a argumentação de Entrikin,"ao envolver a noção de uma 'intermediaridade', busca compreender comodois opostos polares podem ser reunidos em lugar de compreender como olocus do lugar é uma unidade contendo dentro de si diferentes aspectos"(ênfase do autor) (MERRIFIELD, 1993:519). Merrifield propõe, então, com-preender-se o lugar através do conceito de "fetichismo das mercadorias"(fetishism of commodities), de Marx. Para Marx, as mercadorias, como qual-quer outro fenômeno, são processos que aparecem na forma de coisas. Ouseja, o mundo material é simultaneamente uma coisa e um processo. É atravésdesta concepção que Merrifield irá conceituar a construção e a transformaçãodo lugar. A paisagem material, assim como as práticas da vida diária, apresen-tam-se, deste modo, incorporadas à totalidade capitalista global. Por outro lado,o sistema capitalista não ocorre simplesmente num sentido abstrato, mas pre-cisa se vincular a lugares específicos. "O espaço da totalidade extrai seusignificado, portanto, do luga.r, e cada pa.rte (ou seja, cada lugar), através desua interconexão com outras partes (lugares), engendra o espaço da totalida-de" (MERRIFIELD, 1993:520)

Para Merrifield, deste modo, o lugar é o terreno onde são vividas aspráticas sociais, é onde se situa a vida cotidiana, é o espaço praticado. Aespecificidade do lugar age, deste modo, ativamente sobre o espaço socialgeral capitalista. No lugar estão presentes processos conflituosos e heterogê-neos que, freqüentemente, operam em escalas mais amplas. O lugar seria umaparada nos fluxos de capital, dinheiro, bens e informações representados peloespaço hegemônico. O lugar é mais do que a vida diária vivida. Ele é "o'momento' quando o concebido, o percebido e o vivido atingem uma certa'coerência estruturada" (MERRIFIELD, 1993:525).

Graham (1998) irá buscar um novo enfoque da idéia de lugar ao tentarcompreender o sentido deste conceito num mundo contemporâneo profunda-mente influenciado por novos sistemas de tecnologia da informação. Para isto

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o autor irá recorrer às teorias de ator-rede (actor-network: theories) e suavisão relacional das ligações entre tecnologia, tempo, espaço e vida social. Estaperspectiva enfoca o papel das novas tecnologias nas relações complexas econtingentes entre atores humanos e artefatos técnicos e sua constantemutabilidade. Tais relações formam o conjunto denominado de ator-rede atravésdo qual "a vida social e espacial torna-se sutil e continuamente recombinada emcombinações complexas de novos conjuntos de espaços e tempos que são semprecontingentes e impossíveis de serem generalizados" (GRAHAM, 1998:167).

A teoria ator-rede aborda, deste modo, a relação e o envolvimento dosindivíduos com as tecnologias, documentos, textos e dinheiro nas chamadasator-redes. A atividade é entendida como um processo puramente relacionalonde o espaço e o tempo absolutos não têm sentido. As tecnologias produzemefeitos variáveis através das ligações com contextos sociais específicos. Taisligações seriam intermediadas pelo conjunto de atividades humanas etecnológicas. Homem e máquina tornam-se cada vez mais interligados a pontode cada vez menos se poder falar em máquinas ou homens em geral. ParaGraham, os sistemas de comunicação agem, na verdade, como "redestecnológicas dentro das quais novos espaços e tempos e novas formas deorganização, controle e interação humanas são continuamente construídas"(GRAHAM, 1998: 179). O lugar deve ser compreendido, deste modo, a partirde sua vinculação com os processos espaço-temporais. Bairros, cidades eregiões não podem, deste modo, ser examinados sem se levar em conta asdiferentes espaço-temporalidades neles contidas.

Para Graham, o principal mérito da perspectiva ator-rede é ressaltar osmúltiplos e contingentes mundos da ação social e sua relação com a complexaordem social elaborada à distância através de um conjunto complexo de arte-fatos tecnológicos. Com essa perspectiva, pode-se compreender que o papelhumano não se restringe a ser impactado pelas novas tecnologias. O homemexiste como algo mais do que um servo da máquina. A teoria ator-rede buscacompreender, deste modo, a crescente concentração urbana através dasrecombinações propiciadas pelas recentes redes tecnológicas e mostra que, aocontrário de se produzir um mundo abstrato e desumano, elas operam dentrodo espaço da cidade recombinando práticas sociais e espaciais. Novos lugaressão produzidos independentemente de imposições tecnológicas ou decisõespolítico-econômicas, mas, sim, ligados a processos de configuração social es-pecíficos de ator-redes. A cidade moderna, portanto, está em constante modi-ficação, não podendo ser apreendida num quadro fixo. Lugares podem sercompreendidos, deste modo, como combinações sutis e contingentes de proxi-midades eletrônicas consideradas em paralelo a significações baseadas naproximidade física.

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Será, entretanto, Oakes (1977) quem irá sintetizar com mais consistênciaas diferentes acepções do conceito de lugar. A partir de sua análise sobre aexpressão literária da tensão entre o progresso e a perda, o autor irá proporuma concepção de lugar que incorpora, como uma parte fundamental de suaexperiência, o sentido de deslocamento causado pela reestruturação capitalistado mundo.

Oakes destaca o pioneirismo de Massey que demonstrou que a identi-dade baseada no lugar é produto da inter-relação das forças extralocais daeconomia política com as camadas históricas das relações sociais. Lugar nãoé "comunidade" ou "localidade" mas o sítio de identidades significativas eatividade imediata. É esta última característica, inclusive, que distingue lugarde região e de nação. Um dado importante, para Oakes, é o fato do lugar nãoser territorialmente delimitado, mas sim uma conseqüência de ligações atravésdo espaço e do tempo "que fazem o lugar ser mais uma rede dinâmica do queum localização ou sítio específico" (OAKES, 1997:510). Para o autor, o lugarexpressa a tensão, característica da modernidade, entre o progresso e a perda;o lugar seria, deste modo, "um espaço criativo, embora ambivalente, cavado emalgum loca! entre a opressão da nova ordem e o aprisionamento da tradição"(OAKES, 1997 :511).

O lugar não deve ser compreendido, portanto, como um "contrapontoconceitual a uma vaga modernidade deslugarizada" (OAKES, 1997:520). Abatalha que acontece no lugar não é simplesmente uma resistência às tenta-tivas de hegemonia históricas e espaciais mas uma "luta para nos colocarmoscomo sujeitos (em lugar de objetos) da história e da espacialidade" (OAKES,1997:520).

A construção de idenLidades relacionadas ao lugar está, deste modo,mais ligada à percepção das tensões entre o progresso e a perda do que a lutaspara resistir a imposições hegemônicas.

À Guisa de Conclusão

A importância do conceito de lugar está diretamente vinculada aos ru-mos da Geografia Humana e a dois de seus principais ramos, a GeografiaHumanista e a Geografia Radical. Ambas, cada uma a seu modo, buscaramcombater as atitudes positivistas da Geografia Quantitativa. Se a GeografiaHumanista procurou na História e nas humanidades os elementos para atacara abordagem positivista e sua depreciação das individualidades, atitudes, valo-res e sentimentos humanos, a Geografia Radical irá procurar suas respostasatravés da crítica a aceitação implícita, por parte da Geografia Quantitativa, do

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status político global e de sua incapacidade em associar significados a suasdescrições quantitativas. Estes dois caminhos de trilhas e bases teóricas tãodiversas irão, entretanto, encontrar na procura da definição do conceito delugar seu ponto de contato. Cada um deles buscará agregar significados a umconceito até então pouco significante para o estudo geográfico. Esta aparentedivisão do lugar em duas correntes de significados antagônicos será, entretanto,sua maior riqueza pois está exatamente no desafio de se harmonizar estasdiferenças a resposta a uma série de questões do mundo atual. A busca dacompreensão de conceitos como globalização, singularidade, identidade,internidade, externidade, simbolismo, progresso, perda, subjetividade,interconectividade apresenta-se paralela àquela em direção à compreensão dolugar. Compreender o lugar é, deste modo, compreender uma relação possívelentre questões políticas e econômicas e teias de significações e vivênciasexpressas localmente sem perder-se de vista suas relações estruturais globaisou as novas relações espaciais determinadas por um mundo em constantemutação. É exatamente esta essência constantemente em movimento, estacapacidade de responder aos estímulos internos e externos com diferentesvelocidades, esta qualidade da permanência (material, afetiva e simbólica)associada ti permeabilidade a processos internos e internos influenciadores desua modificação (material, afetiva e simbólica) que faz com que o lugar sejaum permanente desafio a sua compreensão e a compreensão do mundo.

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