condicao da escuta

184
condição da escuta mídias e territórios sonoros

Upload: caroline-alciones-leite

Post on 26-Nov-2015

29 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

  • condio da escutamdias e territrios sonoros

  • Giuliano Obici

    condio da escuta

    mdias e territrios sonoros

  • 2008 Giuliano Lamberti Obici

    Produo editorialDebora Fleck

    Isadora TravassosJorge Viveiros de Castro

    Marlia GarciaTui Villaa

    Valeska de Aguirre

    Produo grficaChris Abbade

    RevisoEduardo Carneiro

    CapaFabiana Faleiros

    Viveiros de Castro Editora Ltda.R. Jardim Botnico 600 sl. 307 Rio de Janeiro | RJ cep 22461-000

    (21) 2540-0076 / 2540-0130 | [email protected] | www.7letras.com.br

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    O14cOBICI, Giuliano LambertiCondio da escuta : mdias e territrios sonoros / GiulianoLamberti Obici. - Rio de Janeiro : 7Letras, 2008.184p. (Trinca-ferro)

    Inclui bibliografiaISBN 978-85-7577-492-2

    1. Som - Aspectos sociais. 2. Msica. 3. Som na comunicao demassa. 4. Mdia - Aspectos sociais. 5. Comunicao de massa -Inovaes tecnolgicas. I. Ttulo.

    08-1956. CDD: 302.23CDU: 316.774

  • SUMRIO

    Prefcio Peter Pl Pelbart ................................................... 13Atalhos ................................................................................. 17

    PRELDIO.............................................................................. 21

    Captulo 1 Fenomenologia da escuta

    PIERRE HENRI MARIE SCHAEFFER..............................................25Ouvido como instrumento ............................................. 25Escuta como ato de criao ............................................. 26Fenomenologia do som ................................................... 27O ouvido entre as coisas .................................................. 28Acusmtico ..................................................................... 30Escuta reduzida: modo de subjetivar o som ..................... 32

    TRANSIES SCHAEFFERIANAS .................................................. 33Dispositivos de escuta: microfone e alto-falante ............... 33Inventando escutas .......................................................... 36

    Captulo 2 Ecologia sonora

    RAYMOND MURRAY SCHAFER....................................................38PROJETO PAISAGEM SONORA MUNDIAL .................................... 38

    Ecologia sonora ............................................................... 40Clariaudincia: uma pedagogia da escuta ........................ 40Moozak ........................................................................... 41

    TRANSIES SCHAFERIANAS ..................................................... 43Poluio sonora & rudo ................................................. 43Rudo e poder ................................................................. 44Esquizofonia ................................................................... 46

    PARA ALM DE UM PENSAMENTO SCHAFERIANO .......................... 46Pela potncia esquizofnica ............................................. 47Para que afinar o mundo? ............................................... 49Outra idia de ecologia ................................................... 50A escuta musical daria conta do universo sonoro? ........ 51Poluio sonora ou questo de territrio? ........................ 52Esboos de uma poltica da escuta ................................... 53

  • INTERLDIO A QUEM NOSSOS OUVIDOS SERVEM? .................... 56

    Um rei escuta ............................................................... 56Escuta para alm do significado ...................................... 61Dois modos de o poder operar a partir do sonoro ........... 61

    Captulo 3 Territrio Sonoro (TS)

    MICROPOLTICA DO SENSVEL .................................................. 63Cdigos, meios e ritmos .................................................. 63Transduo e transcodificao: troca de meios ................. 64Caos operador de instabilidade ....................................... 65Ritmo: diferenciao em estado bruto ............................. 66Produo excedente de cdigos por uma economia daescuta .............................................................................. 69

    TERRITRIO .......................................................................... 71Territrio produz qualidades expressivas ........................... 72Passagens e distncias ...................................................... 73Arte e territrio ............................................................... 74Produo de mundos possveis ........................................ 75

    RITORNELO ........................................................................... 76A cano nos protege ...................................................... 77Traando um lugar seguro ............................................... 78Criar territrios a partir do sonoro .................................. 79Ritornelo: fabricao de tempo ....................................... 83Duas imagens de tempo: a cano e o galope .................. 84Territrios vestveis mdias sonoras mveis ................... 86

    ARTICULAES COM O SONORO ............................................... 88pera maqunica ............................................................ 89Sobriedade e seletividade: para no espantar os deviressonoros ........................................................................... 90Poder e potncia do sonoro ............................................. 92Ritornelo, o problema da msica? ................................... 94A msica convoca foras da terra: o povo ........................ 94Por orelhas potentes ........................................................ 95Silencieiro: caso clnico? .................................................. 96

  • TERRITRIO SONORO (TS) ..................................................... 98Duas operaes do Territrio Sonoro .............................. 98Poder, priso e TS: muros, cadeados e labirintos snicos .... 100Territrios Sonoros Seriais e Difusos ............................. 101Produo de escuta: biopoltica do sonoro ..................... 102

    Captulo 4 Escuta e poder

    Poder como produo ................................................... 103Poder no localizvel: relao estratgia ....................................................... 103Trs modos de operar a vida, o corpo, os sentidos ......... 104

    PODER E CONDIO DA ESCUTA ............................................. 106Disciplina auricular: Pantico ........................................ 106Pantico e Pmphnos .................................................... 109

    ESCUTA E CIBERCULTURA ....................................................... 114Mp3: codificao do sonoro .......................................... 114Msica totalizante ......................................................... 115Biopoder do sonoro: escuta e sociedade de controle ...... 119

    REGIME DIFUSO OU DE CONTROLE ......................................... 122Territrios Sonoros Seriais (TSS) e Territrios SonorosDifusos (TSD) .............................................................. 125Instrumento de escuta e sociedades de controle ............. 129Sonoridade e transformao incorprea ......................... 130Biopotncia da escuta .................................................... 132

    CONCLUSO ........................................................................ 134Silncio e Rudo: entre o musical e a mquina de guerrasonora ........................................................................... 134Fico sonora ................................................................ 139Por uma clnica da escuta ........................................... 141

    POSLDIO ........................................................................... 145

    Notas ................................................................................. 146Bibliografia ........................................................................ 174

  • para Jos e Rosa

  • 11

    Agradeo aos professores do programa Comunicao e SemiticaPUC-SP: Jorge, Cesaroto, Rogrio da Costa, Gisele Beiguelmane Jerusa Pires. Nash, Manzano, Fabiana e Lilian Coelho. EdgardoArenas cmplice e provocador.

    Professores do Ncleo de Subjetividade: Suely Rolnik, LuizOrlandi e Peter Pal Pelbart. Rafael, Fabi Borges, Juliana, Breno,Andrea, Aragon, Beth, Flvia, Fabi Rossarola, Jlio York e EdsonBarros pelo rigor dos apontamentos.

    Grupo de Msica e Tecnologia da USP (Lami). Prof. Dr.Fernando Iazzetta, Rogrio Costa. Grupo Muro: Aleh, Valrio,Lili, Debb, Porres, Andrei, Nenfldio, Patrcia, Vtor, Gabb.

    Luciana Ohira e Srgio Bonilha. Marcelo Bressani, Srgio Pin-to, Salete, Julieta, Letcia. Jean, Palm, Glerm, Cris e os virtuais doEstdio Livre. Matt Lewis e Alex Magnus. Felipe Ribeiro, Kaloan.

    Tarso, Skalinski, Fernando, Luiz, Schiavoni, Ernandes. GrupoChave de L. Henrique de Arago, Dmaso, Giani, Cludio.Ftima dos Santos, Rodolfo Caesar e Janete El Haoli.

    Fernanda, Leo, Andr, Cris, Cau e Davi. Tatiana, Juan Carlos,Gabriel, Leo Gonzalez. Cecco Previdncia, Cia, Srgio, Irene,Torres e participantes do programa Ubitat.

    Silvio Ferraz, personagem imprescindvel de toda a pesqui-sa, quem possibilitou pensar o sonoro diante dos desafios daescrita e, no menos fcil, respeitando minhas experimentaes epensamentos.

    Em especial: Alexandre Fenerich, Valrio da Costa, LilianCampesato. Kekei, pelo respeito, companhia e por me encorajar aapostar em minhas tmidas idias. Com admirao, Julian Jaramillo,com quem dialoguei em pensamento cada linha deste texto.

    Este livro tem apoio de publicao da Fapesp.

  • 13

    PREFCIO

    Sou uma das pessoas menos indicadas para avaliar o teor do pre-sente livro. Considero-me um caso clnico sem cura no mbitosonoro. Minha irritabilidade com os rudos em sala de aula, cine-ma, aeroporto, restaurante, trnsito, em casa, nas viagens, nasruas tamanha, que s comparvel hipersensibilidade de umneurtico de guerra. Rudos de papel de bala sendo desembru-lhados devagarzinho no teatro, celulares invadindo o espao ditopblico e obrigando-nos a compartilhar das idiotices familiares,conjugais e comerciais da vida contempornea, a televiso oni-presente em qualquer lugar nos enfiando goela abaixo os progra-mas mais abjetos, os alto-falantes espalhados pelas praas outudo isso um problema de todos ns, ou na encarnao passadafui uma ostra. Um pouco de silncio, seno eu sufoco!, eu di-ria, parafraseando Kierkegaard. No entendo como as pessoasno protestam, como elas no quebram as mquinas, no arre-bentam os controles, no conseguem bloquear essa crescente sa-turao ruidosa. Sei de aparelhos a preos razoveis, e vendidospela Internet, que bloqueiam televisores ou celulares, pequenoscontroles de sabotagem que ainda hei de usar em minhas aulas,onde vejo alunos muito concentrados subitamente saindo emdesabalada correria para fora da sala, levados por um toque decelular, na esperana de receberem alguma mensagem muito maisimportante do que aquele conceito em vias de ser esclarecido... a banalidade cotidiana: o futuro eventual (alguma novidade, no-tcia, convite, contato, chance, tragdia, ou at um engano) inva-de o presente e ganha inteira prioridade sobre ele. Na ltima Bienalde So Paulo um artista quis circular com um bloqueador decelular, e foi interditado, naturalmente... Ficou apenas o gestoartstico... Vacolos de silncio, reivindicava Deleuze com grandepertinncia h alguns anos. verdade que fui aprendendo a meproteger da saturao sonora com cadeados diversos, cera no

  • 14

    ouvido, iPod, autismo, ciso, modalidades de ausncia ofensiva.Mas nada disso me apazigua, pois deixa tudo intacto para essaescalada tecnolgica cuja lgica eminentemente econmica,poltica e subjetiva.

    Da a importncia da leitura de um estudo como esse, quemostra como o tema do territrio sonoro, do monitoramentosonoro em espao aberto, nas condies de uma sociedade decontrole, equivale a uma anexao do espao pblico por mqui-nas de emisso sonora e visual, com suas conseqncias aindaimponderveis. Da tambm minha simpatia por algumas no-es ousadas e engenhosas que Giuliano Obici traz neste livro,tais como o Pmphnos, a meu ver mais operativo hoje do queum suposto Panptico. Mas o autor teve o cuidado de evitar aarmadilha paranica, a diabolizao generalizada, regressiva ousaudosista, enxergando linhas de fuga por toda parte, focos deexistencializao sonora plurais, de modo que qualquer demoni-zao da tecnologia no d conta da complexidade do camposonoro hoje em dia. Apesar da indignao pessoal, sei que pre-ciso mais sutileza, cuidado, ateno para ler as linhas de fora queatravessam esse campo.

    Eu resumiria esse trabalho com a frmula da pgina 92: Oque pode um som? Quais capacidades de agir ele ativa? Quaissuas potncias? Suas alegrias e tristezas? Assim, o mundo sonorodas grandes metrpoles (que Lvio Tragtenberg teve a felicidadede chamar de Neurpolis, em seu belo trabalho que escova tudoisso a contrapelo) passa a ser pensado maneira de Deleuze-Guattari, como uma verdadeira pera maqunica... E o princi-pal, a escuta acaba sendo concebida como dramatizao das for-as de que o som portador. Vejo a, nesse conjunto de questes,e nos paradoxos a presentes, e nessa opo de politizar a escutasem diabolizar a tecnologia, um eixo muito agudo e fecundo,com muitas prolas pontuais... Uma sobriedade com o rudo parano espantar os devires sonoros, a seletividade necessria parapreservar a possibilidade de continuar sendo afetado pelos sonsetc... Em todo caso, h uma clusula difcil de sustentar, mas que

  • 15

    atravessa esse estudo como um todo, qual seja, a de encontrar umlugar de anlise sem fatalismo nem deslumbramento, tentandocaptar qual a biopotncia da escuta, como criar corpos-ore-lhas-maqunicas que possam restituir nossa sensibilidade auditi-va, tirando-nos do estado anestsico e de entorpecimento ao qualnossos ouvidos esto submetidos. Politizar a escuta sem torn-laparanica, sem moralizar ou diabolizar os sons da cidade, dasmquinas, dos equipamentos eletrnicos e da mdia, mesmo quan-do se detecta a militarizao da dimenso sensvel do audvel.

    Em suma, o leitor tem em mos uma cartografia rica e bem-sucedida do tema em questo, propondo at uma clnica da escu-ta, no sentido mais amplo da expresso. um programa sugesti-vo, que tambm poderia ser formulado, na esteira de Guattari,como uma ecologia da escuta. Se a escuta um problema polti-co, biopoltico, ecolgico, clnico, a edio deste livro se justificaplenamente, tanto para aqueles que se preocupam com os rumosda pervasividade capitalstica como para aqueles que, em meio aofervilhamento contemporneo, perscrutam e experimentam, nocampo artstico e social, novos meios de expresso e agenciamen-tos sonoros inesperados.

    Peter Pl Pelbart

  • 17

    ATALHOS

    Este livro uma reviso da pesquisa de mestrado realizada peloprograma de Comunicao e Semitica em conjunto com o N-cleo de Subjetividade da PUC-SP e defendida em outubro de2006. A proposta aqui pensar a escuta a partir das mdias e dosterritrios sonoros delineados pelos dispositivos de registro, difu-so, codificao e compartilhamento de dados sonoros (microfone,alto-falante, rdio, TV, celular, mp3 player, Internet, podcast, peer-to-peer). Mapear as transformaes que vm ocorrendo no planosensvel, bem como relaes de poder que se estabelecem pelosdispositivos de escuta vinculados s novas tecnologias. A seguir,alguns atalhos leitura.

    1

    Preldio, contextualizao inacabada acerca dos dispositivossonoros para pensarmos como o desenvolvimento tecnolgico trans-formou e vem moldando escutas desde seu surgimento, relaciona-do s estratgias de poder que envolvem as mdias sonoras.

    2

    Os Captulos 1 e 2 apresentam concepes de autores oriun-dos da msica. O interlocutor inicial Pierre Schaeffer, inventorda msica concreta, que apresentar o ouvido como instrumen-to. Antes dele o tema da escuta ocupava um lugar acessrio noplano musical. Schaeffer colocar em questo a dimenso subjeti-va e objetiva da escuta sem jamais separ-la da produo sonora.

    No Captulo 2, uma reviso das propostas do compositor ca-nadense Murray Schafer e sua preocupao em preservar a escutacom a proposta de uma ecologia sonora. Nele se discutem aspec-tos entre espao e som, como o excesso de rudo causado pelapresena intensa das mquinas no cotidiano, bem como a buscapor construir paisagens sonoras saudveis e harmoniosas.

  • 18

    3

    Interldio, apropriao do conto Un Re in Ascolto, de ItaloCalvino (1923-1985), escrito durante os anos de interlocuocom o compositor italiano Luciano Brio (1925-2003), que com-ps em 1983 uma pera homnima. O conto nos possibilita vi-ver um pouco o drama de um rei que perde o controle de si e deseu reino a partir de sua escuta. Seria, quem sabe, uma situaoprxima qual se encontra nossa escuta atualmente frente aosapelos sonoros que nos cercam.

    4

    Gilles Deleuze e Flix Guattari so os interlocutores do Cap-tulo 3 para pensar a sonoridade como delimitadora de territrio,produtora de subjetividade, posse, domnio, marcas, estilo, mais-valia e transformao incorprea, entre outros aspectos. Um revi-so atenta do texto Acerca do Ritornelo e da concepo musicale sonora apresentada pelos autores.

    5

    O Captulo 4 aborda o tema escuta e poder a partir de MichelFoucault, Deleuze e Guattari. Reviso das trs tecnologias de poderque Foucault apresenta: soberania, disciplinar e controle. O in-tuito ser pensar a disciplina e o controle no contexto das mdiassonoras, partindo do Panptico, dispositivo de vigilncia do olhar,desdobrando algumas idias, a partir da tecnologia de udio, paracartografar verses no plano do sonoro. Uma breve articulaosobre a compilao e o compartilhamento de arquivos de udio apartir do mp3 e cibercultura com Pierre Levy e Paul Virilio. Almdisso, as noes de poder e potncia, bem como as de biopolticae biopotncia em Foucault, Deleuze e Toni Negri aparecem paraapontar aspectos da condio da escuta.

  • 19

    6

    Na Concluso e no Interldio a proposta imaginar o futuroda escuta, propondo possveis aberturas pela necessidade de cria-o e enfrentamento que o sonoro nos coloca. O desafio pensarprticas que comeam a brotar apenas depois de um perodo dereflexo e escuta. Alguns esboos para construir mquinas sono-ras de guerra, fazer fico sonora ou ainda clnica da escuta, aponto de, quem sabe, destravar potncias do sonoro que estopor a. Teramos ouvidos para isso?

  • 21

    PRELDIO

    Muito se fala sobre o excesso de informaes produzidas pelosveculos de comunicao, bem como a influncia da mdia naconstituio do homem contemporneo. No entanto, as mdiassonoras como telefonia, rdio, TV e alto-falantes constituem,atualmente, no apenas o lugar da comunicao de uma mensa-gem especfica, mas tambm elementos fundamentais na compo-sio de territrios sonoros, em conjunto com outras formas deproduo sonora, sinais que no tm finalidade de transmitirqualquer mensagem, sons ou rudos supostamente sem propsito.

    Desde o sculo XIX, uma intensa transformao vem ocor-rendo no ambiente acstico mundial. A industrializao e a ur-banizao modificaram significativamente os sons do cotidiano,principalmente nas cidades, onde se intensificam a proximidadeentre as mquinas e o ser humano, assim como a concentraomassiva de pessoas. Tais aproximaes entre homens e mqui-nas, entre homens e homens geram uma trama singular queinfluencia diretamente a forma como percebemos e nos relacio-namos no mundo.

    Com a manipulao eltrica, aconteceram importantes ino-vaes tecnolgicas, que mudaram significativamente a forma degerao, difuso e recepo do som. A transduo de vibraesmecnicas em impulsos eltricos possibilitou a manipulao dossons de uma forma especial, permitindo, ao mesmo tempo, osurgimento de equipamentos de comunicao a distncia. O pri-meiro equipamento da moderna tecnologia de comunicao foio telgrafo,1 cujo funcionamento se dava por eletroms que emi-tiam sinais sonoros decodificados a partir de um protocolo decomunicao: o cdigo Morse.2

    A inveno por Alexandre Graham Bell do Electrical SpeechMachine, datada de 1876, que chamamos hoje de telefone, assimcomo o telgrafo, para algumas pessoas, foi o mais importante

  • 22

    equipamento sonoro a causar transformaes nos vnculos que ohomem mantm com o som. Alm de possibilidades de comuni-cao, o telefone inaugurou outra forma de escuta, at o momen-to inexplorada, com a presentificao de uma fonte sonora novisvel. Esse modo de escuta, que Pierre Schaeffer denominaacusmtica,3 Murray Schafer de esquizofonia4 e McLuhan,extenso do ouvido, pe por terra a noo de causa-efeito paraa escuta. Esse aspecto ser ampliado com o desenvolvimento e osurgimento de outros dispositivos, como as mdias portteis(walkman, celular, mp3 player).

    Em 1895, Guglielmo Marconi descobriu a transmisso da ele-tricidade por ondas de rdio. Em 1906, foi possvel realizar atransmisso sonora sem fio, com a inveno da vlvula amplifica-dora, do tubo trodo ou audion, que possibilitou amplificar eestabilizar o sinal no aparelho receptor. A utilizao desses equi-pamentos das comunicaes radiotelegrfica e radiofnica foi defundamental importncia na Primeira Guerra Mundial. Tais fer-ramentas causaram um grande impacto social; um exemplo dedestaque foi o importante papel do rdio na ascenso de Hitlerno entre-guerras, tendo sido o principal veculo de propagandado nacional-socialismo na Alemanha.5

    Fazendo um percurso histrico do papel social do rdio, po-dem-se assinalar claros momentos de mudana. Num primeiro,sua utilizao esteve voltada para fins polticos e educativos; pos-teriormente, o vnculo com a indstria fonogrfica motivou alinguagem radiofnica a se voltar para o entretenimento. Pode-ramos delinear ainda um terceiro momento, quando o rdio utilizado como estratgia de movimentos de resistncia, como sedeu com as rdios piratas e as comunitrias, ou ainda um quarto,com a rede mundial de computadores.

    Com o advento de dispositivos de gravao (fongrafo, fitamagntica) surge a possibilidade de armazenar, repetir e exami-nar sons efmeros que, antes, s eram possveis de ser escutadosem presena da fonte mecnica que os produziu. A dissociaoentre viso e ouvido favorece uma outra maneira de escutar, esta-

  • 23

    belecendo uma ruptura com a maneira tradicional de se relacio-nar com o som, seja no plano da msica, da comunicao ou dossons cotidianos.

    Vale ressaltar que a utilizao desses dispositivos teve, desdesua origem, vnculos com estratgias de poder, tanto os polticosquanto as estratgias de guerrilhas durante as grandes guerras.

    Ao contrrio da remisso a um poder centralizado, vigoraram,depois desse perodo, estratgias difusas. Com o fim da GuerraFria, a tecnologia invade o cotidiano, o avano dos novos dispo-sitivos de escuta nos pe a pensar a problemtica do poder, bemcomo a transformao sofrida por nossa matria sensvel face produo do sonoro. Um exemplo que evidencia essa relao en-tre produo do sensvel e mercado, poder e tecnologia o dacampanha difusora do fongrafo, datada do incio do sculo XX.Verificava-se, poca, uma averso ao fongrafo por no se asse-melhar aos sons naturais, devido quantidade de rudo. A inds-tria passou a apostar, posteriormente, numa educao auditiva,como a campanha tone test da National Phonograph Company,empresa que comercializava os aparelhos de Thomas Edison. Apropaganda se fundamentava na idia de que a empresa poderiaoferecer qualidade semelhante do fenmeno acstico natural, eutilizava a estratgia da imitao: o ouvinte era posto a ouvirmsica ao vivo e no fongrafo, e induzido a acreditar que as duasse assemelhavam.6

    A indstria apostou numa reeducao auditiva de seus com-pradores para romper com um modo de escuta que nos habitua-mos, isso parece comprovar a estratgia da National PhonographCompany, que comercializava os aparelhos de Edison.7 Hoje nomais Thomas Edison, com o fongrafo, mas Apple, Microsoft eas companhias de telefonia mvel, que esto na briga pela pro-priedade de nossos ouvidos, com as discusses e brigas judiciais arespeito da comercializao de modos de processamento, compi-lamento, compactao de arquivos.8 O contexto outro, no nosperguntamos mais se o que escutamos num mp3 player real ouse soa como ao natural.

  • 24

    Aprendemos a ouvir de acordo com o material sonoro a queestamos expostos. (...) qualquer um pode fazer testar esse apren-dizado auditivo ouvindo um dos discos de alta fidelidade dos anos60. Na poca eles representavam um verdadeiro alcance tecnol-gico, porm, um ouvinte hoje jamais se enganaria pensando tra-tar-se de uma gravao recente. (Iazzetta, 1996, p. 56)

    A partir do sculo XX a transformao do espao acsticoseguiu com a revoluo eletrnica. O barateamento da tecnolo-gia depois da dcada de 50 possibilitou a difuso do computadorem larga escala. Os aparelhos eletrnicos promoveram osurgimento de outra realidade de convvio com a msica.

    Desse ponto de vista, possvel entender como nossa matriasensvel est vinculada ao desenvolvimento tecnolgico, que, porsua vez, est relacionada dinmica de produo do mercado.Qualquer que seja a mquina, ela criar um territrio sonoro emalgum canto do planeta, que se liga a uma cadeia de produo evenda dos produtos. Mas isso no acontece apenas num planomacro, existe a dimenso micropoltica, as produes de outrosbens que esto sendo postos tambm venda. A maneira como semodula subjetividade, escuta, modos de percepo, desejo, entreoutras questes que se veiculam com esses aparatos tecnolgicos.

    Desde sempre os sons modelam ambientes, determinandoaes e estratgias de convvio. Pusemo-nos a pensar a escuta,relacionando-a com o avano da tecnologia, bem como o poder.Imaginamos nossos ouvidos como envolvidos numa teia sonora,produzindo afetos, intensidades, sensaes e potncias que inde-pendem da vontade ou inteno do sujeito que escuta. nesseterreno que pretendemos pensar qual a condio da escuta. Co-mecemos revisando alguns pensadores que possam nos ajudar emtal travessia.

  • 25

    Captulo 1

    FENOMENOLOGIA DA ESCUTA

    PIERRE HENRI MARIE SCHAEFFER

    Ouvido como instrumento

    Pierre Schaeffer (1910-1995), criador da msica concreta,1 onosso primeiro interlocutor. Em face do grande aporte constitu-do destacaremos seu pensamento sobre o sonoro como uma ati-vidade perceptiva, considerada a escuta como um fenmeno acs-tico psquico e fsico indissocivel.

    Em meados do sculo XX, aps um perodo de desenvolvi-mento e aplicaes de tecnologias como, por exemplo, os trans-dutores,2 surgiram ferramentas que possibilitaram converter ener-gia mecnica em eletricidade.3 Dentre os vrios inventos, a fitamagntica, como suporte de gravao, permitiu versatilidade namanipulao e produo dos sons, proporcionando a execuode atividades como cortar, colar, combinar e reproduzir em dife-rentes velocidades.

    Com os aparelhos de difuso surge um outro modo de lidarcom o musical, no apenas pautado na execuo de um instru-mento ao vivo, mas na criao de instrumentos de escuta basea-dos no alto-falante (vitrola, rdio, aparelho de som).4 sobre ofenmeno dos equipamentos de escuta desenvolvidos a partir darevoluo eltrica que P. Schaeffer ir pensar e trabalhar. Direta-mente envolvido com esse modo de produo, pde se debruarde maneira significativa sobre a mudana de pensamento a res-peito da escuta, embasado na fenomenologia de Edmund Husserl(1859-1938) e Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), bem comono estruturalismo de Ferdinand Saussure (1857-1913), RomanJakobson (1896-1982) e Claude Lvi-Strauss (1908-).5

  • 26

    Antes de ser discutido por P. Schaeffer, o tema da escuta ocupa-va um lugar acessrio no plano musical.6 O autor deu um lugardistinto questo por considerar o ouvido uma ferramenta deanlise, um aparato tcnico tal como as tecnologias de transmis-so sonora. Nossa compreenso do musical em geral no poderse passar, daqui em diante, sem o conhecimento da orelha comoinstrumento.7

    Escuta como ato de criao

    Um dos marcos para pensarmos a escuta em Pierre Schaeffer a proposio do termo msica concreta,8 que se utiliza do estadoconcreto dos sons, passvel de ser registrado com o gravador e ma-nipulado pela fita magntica, diferente da forma tradicional rea-lizada por meio do solfge9 , e sua representao pela partitura.

    O termo concreto surgiu como uma referncia pintura figura-tiva, que se vale do mundo visvel. Fazendo um paralelo com odesenvolvimento da pintura, cujas transformaes seguiram o per-curso do figurativo para o no-figurativo este ltimo apoiado emvalores pictricos forosamente abstratos. P. Schaeffer entende queo caminho da msica foi contrrio ao tomado pela pintura. Inver-samente, a msica se desenvolveu primeiro sem o mundo exterior,s remetia a valores musicais abstratos, se faz concreta, figurati-va, poderamos dizer, quando utiliza objetos sonoros extradosdiretamente do mundo exterior dos sons naturais e dos rudos.10

    A proposta da msica concreta era uma experincia do som,sua apreenso a partir do registro, em oposio concepo abs-trata de tendncia serial, cujo suporte era a partitura.11 O que sepropunha era o contato direto com o objeto sonoro,12 no qual oaprendizado da prpria sonoridade se impunha, anterior a qual-quer estruturao musical. Existia uma espcie de escolha pauta-da em duas situaes: 1) usar o material concreto para criar obras;2) pesquisar o sonoro para descobrir o musical.13 A msica con-creta propunha um contato direto com o sonoro, uma experin-

  • 27

    cia imediata, em vez da mediao pela representao da nota-o.14 Ao mesmo tempo em que se afirmava como msica, tam-bm pensava em uma pesquisa a partir da escuta; ela veio a seconfigurar em 1966, com o livro Trait des objets musicaux: essaiinterdisciplines (Tratado dos objetos musicais: ensaio interdiscipli-nar).15 O solfejo do objeto sonoro, descrito no Trait, propelevar, da prtica de corpos produtores de som, a uma musicalidadeuniversal atravs de uma tcnica de escuta.16 P. Schaeffer propeno separar jamais o escutar do fazer.17

    Fenomenologia do som

    As tcnicas de captao e registro permitiram isolar o aconte-cimento sonoro, essa categoria efmera e fugaz, da estrutura mu-sical. A fixao pelo magnetofone18 configurou outros regimes percepo, possibilitando conservar, repetir e examinar a partirda escuta19 o que P. Schaeffer chama de objeto sonoro. Com isso,a escuta passou a ser uma ferramenta rica.20

    Para evitar que seja confundido com sua causa fsica ou com umestmulo, temos simulado fundar o objeto sonoro em nossa sub-jetividade. Mas nossas ltimas observaes indicam que este nose modifica nem com as variaes da escuta de um indivduo aoutro, nem com as incessantes variaes de nossa ateno e sensi-bilidade. Longe de serem subjetivos, no sentido de individuais,incomunicveis e praticamente inapreensveis, os objetos sono-ros, como veremos, se deixam descrever e analisar muito bem.21

    (Schaeffer, 1966, p. 97)

    O que se ouve o objeto sonoro, uma experincia distinguvel,um fragmento de percepo, anterior msica, mas que pode setornar musical a partir do momento em que isolado e categori-zado. A partir dessas colocaes, podemos distinguir o que P.Schaeffer entende por sonoro e por musical. Sonoro seria o per-ceptvel, aquilo que se capta, diferentemente de musical, que seriaum juzo de valor atribudo ao som.22 Nesse sentido, claro quepodemos pr em dvida um paralelismo estreito entre lngua e

  • 28

    msica,23 e dizer que o sonoro pr-significante, existe antes dequaisquer categorias ou regimes de significao sejam lingsti-cos, sejam musicais.24

    O objeto sonoro no poderia ser considerado um produtoesttico, nem uma estrutura, mas um trabalho em jogo; no umgrupo de signos fechados, mas um volume de linhas em desloca-mento; no seria a velha obra musical, mas algo prprio da vida.25

    A condio do objeto sonoro a de se fazer nesse paradoxo per-ceptivo, ele s existe a partir da escuta. O objeto s objeto denossa escuta, relativo a ela.26 Por isso, falar em objeto sonoro eescuta so condies inseparveis. no contato com o sonoroque se cria a escuta.

    O ouvido entre as coisas

    O pensamento de Pierre Schaeffer est diretamente relaciona-do fenomenologia, que coloca em questo os limites que defi-nem objeto e sujeito, pondo em dvida a forma de construo dosaber. Deixamos de pensar a percepo como ao do puro obje-to fsico sobre o corpo humano e o percebido como resultadointerior dessa ao, parece que toda distino entre o verdadeiroe o falso, o saber metdico e os fantasmas, a cincia e a imagina-o, vm por gua abaixo.27

    Para a fenomenologia, no h percepo fora da conscincia,assim como o som no existe fora dela. Toda conscincia cons-cincia de alguma coisa, no existe percepo interior, interna.Meu corpo vidente e visvel. Ele se v vendo, toca-se tocan-do.28 Os ouvidos so muito mais do que receptculos do som,eles se comovem pelo impacto do mundo que se apresenta. Quan-do ouvimos um som externo, ele se faz interno, existindo emnossa conscincia, a partir de quando o percebemos. Ele existesimultaneamente fora e dentro da conscincia. Nessas condies,o ouvido coisa entre as coisas, rene sua dupla pertena or-dem do objeto e ordem do sujeito.29

  • 29

    A partir da fenomenologia, os estmulos sonoros da percep-o no so mais pensados como causas do mundo percebido,apenas os revelam ou os desencadeiam. Isso no significa que sepossa perceber sem o corpo-orelha mas, ao contrrio, que pre-ciso reexaminar a definio de corpo como puro objeto para com-preendermos como pode ser nosso vnculo vivo com a nature-za.30 O mundo o que percebemos, o que ouvimos. No entanto,precisamos discernir o que ns e o que o ouvir, como se nosoubssemos de nada e tivssemos de aprender tudo.31

    Deveramos reconhecer que, no caso do som, a confuso entre oobjeto percebido e a percepo que tenho dele mais fcil de cometer(...) o objeto sonoro se inscreve em um tempo que muito fcilde confundir com o tempo de minha percepo, sem me dar con-ta de que o tempo do objeto est constitudo, por um ato desntese, sem o qual no haveria objeto sonoro, mas um fluxo deimpresses auditivas. (Schaeffer, 1966, p. 268-9)

    O objeto sonoro no seria a efemeridade do acontecimento;para Pierre Schaeffer, ele se mantm conforme propriedades es-pecficas que se atualizam sempre graas a algum aparato que ofixou, mesmo no sendo percebido da mesma maneira quandorepetido. Este um ponto significativo e deve-se tomar o devidocuidado para no cair em explicaes que levem a uma noosubjetivista em demasia, a qual pode beirar um certo misticismoacerca do objeto sonoro. Por outro lado, tais explicaes tambmpodem cair num objetivismo extremado, a ponto de consideraros objetos sonoros meros espcimes de laboratrio.32

    No Trait, Pierre Schaeffer constantemente se preocupa em apre-sentar a dimenso subjetiva da escuta, em contrapartida dimen-so fsica e objetiva do sonoro. Parece fazer isso com o intuito dedeslocar posies preestabelecidas, demonstrando como o fen-meno sonoro lida, ao mesmo tempo, com uma zona fronteiriaentre sujeito e objeto. A possibilidade de repetir a partir da grava-o permite entrar em contato com o mesmo objeto fixado na fita.Porm, como percepo, ele nunca ser o mesmo. o mesmo su-

  • 30

    porte, a mesma gravao, no mesmo aparelho, no entanto, sempre percebido de maneira diferente quando escutado. Mesmo as-sim, o objeto sonoro mantm suas caractersticas e, por isso, nose restringe ao material da fita nem percepo individual, sempredistinta e subjetiva, que se d durante o contato com o objeto.

    O fato de o objeto sonoro nunca ser o mesmo percepono significa imperfeio do ouvido ou que o registro do sinalsonoro no suficientemente ntido. Essa variao uma condi-o prpria da percepo, mas no do objeto, que mantm suascaractersticas a partir do registro.33

    Como entrar em contato com o objeto sonoro? Ele revelar-se-iada melhor maneira quando no se tem o registro visual da fonteemissora, quando direcionamos nossa ateno exclusivamente aosom. sobre essa proposta que Pierre Schaeffer apresentar doisoutros conceitos que esto imbricados com o objeto sonoro: acus-mtico e escuta reduzida.

    Acusmtico

    Termo relativo escola pitagrica, que Pierre Schaeffer citado dicionrio Larousse (1928): Acusmtico, adjetivo: se diz deum rudo que se ouve sem saber as causas de onde provm.34 P.Schaeffer recupera da escola de Pitgoras o termo acusmtico,sem se aprofundar, para pensar a escuta a partir das tecnologiasde difuso do sonoro.

    A confraria pitagrica era constituda por duas grandes clas-ses: os acousmticos (ouvintes pitagoristas), dirigidos porHipsio de Metaponto, e os matemticos, ou pitagricos, quetrabalhavam no conhecimento verdadeiro (mthema estudo,cincia, conhecimento) sob a direo do mestre. Acousmtico re-feria-se ao primeiro nvel dos discpulos ligados ao ensino oral(acousmates sinais de reconhecimento). Durante cinco anos, opostulante deveria escutar as lies em silncio, sem nunca tomara palavra, nem ver o mestre, que falava dissimulado por uma

  • 31

    cortina. S depois desses anos, envolto por uma srie de provasfsicas e morais, que poderia pertencer fraternidade considera-do um pitagrico, e passar para o outro lado da cortina. Os ma-temticos lidavam com os smbolos (coisas extensas), estgio adian-tado no ensino secreto da natureza.35 Eis alguns exemplos de ale-gorias a serem decifradas durante o ensinamento oral dos acus-mticos citados pelo neoplatnico Joo Filpono: No se sentesobre uma medida significa No escondas nem faas desapare-cer conscientemente a justia. No atices o fogo com uma es-pada: No provoques o homem irascvel com tuas palavras.36

    Os acousmatas eram os iniciados na doutrina capazes de reconhe-cer os acousmates, tidos como preceitos ontolgicos, religiosos eticos. Boa parte desses acousmates era de natureza simblica, poisao serem enunciados apresentavam um duplo sentido: um refe-rente vida cotidiana e outro, a um significado alto, apreendidosomente pelos iniciados. Essa dimenso enigmtica envolve todoo ensinamento oral dos pitagricos, inseparvel da prtica do se-gredo no limiar entre o visvel e o invisvel, o audvel e o inaudvel.

    Interessa apontar aqui que o sentido dado por Pierre Schaeffera acusmtico no se fixa integralmente ao contexto pitagrico,cujo termo era atribudo escuta preocupada em buscar o senti-do simblico e secreto dado pela fala do mestre. O autor se apro-priou do termo em outro aspecto, pensando sua prtica com astecnologias sonoras que surgiam na poca. Ao que parece, o quelhe chamava a ateno na palavra era a definio de uma termi-nologia apta a nomear um aspecto da escuta tornado presente emnossas vidas graas ao alto-falante. A ciso entre fonte sonora eviso, assim como a separao pela cortina, serviu-lhe para pen-sar a relao que estabelecemos com o som a partir de dispositi-vos, os quais retiravam essa relao direta do som (fonte sonora),separando escuta e viso.

    Sublinhe-se, todavia, que a situao acusmtica no referidaao contexto inicitico e revelador que a ela se relacionava entre ospitagricos. Conforme Pierre Schaeffer, ela destitui a relao cau-sal da escuta, retirando-a de um contexto que se impe pelo olhar,

  • 32

    pela posio dos corpos, seus movimentos e gestos. Esse desloca-mento determinante, pois muito do que acreditamos ouvirera, de fato, apenas visto, e explicado pelo contexto.37

    A dissociao da vista e da audio favorece outra maneira deescutar; no apenas uma escuta direta (relacionada ao contexto daviso), mas uma escuta indireta, mediada pelo alto-falante.38 An-tigamente, era uma cortina que constitua esse dispositivo; hoje,a rdio e a cadeia de reproduo, em meio ao jogo de transforma-es eletroacsticas, nos coloca como modernos ouvintes de umavoz invisvel, nas condies de uma experincia similar.39

    Escuta reduzida: modo de subjetivar o som40

    Com a experincia acusmtica, Pierre Schaeffer passou a evi-denciar a possibilidade de apreenso do objeto sonoro, um modode perceber: escuta reduzida.41 No desenvolvimento de suas idias,e na busca por apreender o objeto sonoro em si, o compositor seaproximou dos conceitos fenomenolgicos: epoch (reduo doobjeto) e suspenso do mundo.

    O epoch (reduo) coloca o mundo entre parnteses, o juzoem suspenso, duvidando do objeto e da prpria percepo, aomesmo tempo em que a convoca. Para a fenomenologia, o epoch um mtodo, instrumento de depurao em busca de uma natu-reza evidente e indubitvel. Implica um ato voluntrio, antes doque a crena nas essncias; preocupa-se em destituir valores, colo-cando o mundo em suspenso para apreend-lo por exerccio daconscincia. Nos termos de Merleau-Ponty, no nos estabelece-mos num universo de essncias; pedimos ao contrrio que se re-considere a distino do that e do what, da essncia e das condi-es de existncia.42

    Assim como prope a fenomenologia em relao busca doobjeto em si, independentemente de suas causas e significaes, aescuta reduzida tinha a inteno de no escutar mais do que oobjeto sonoro.43 A busca era a do fenmeno sonoro em si mesmo,

  • 33

    considerado algo objetivo que no se restringe a explicaes sub-jetivistas e abstratas. A escuta reduzida implica a dissecao dossons em torno de suas caractersticas intrnsecas (timbre, envelo-pe sonoro, gro, durao, entre outros), buscando encontrar in-formaes sobre o som, e no sobre sua fonte. Essa atitude apro-xima-se da situao acusmtica, inclinando a ateno s qualida-des do fenmeno snico percebido.

    Com a escuta reduzida propunha-se um desligamento dos sis-temas culturais lingsticos e musicais, colocando em dvida oparalelo entre msica e linguagem. Visando alcanar a coisa em si,a reduo fenomenolgica criava uma postura antinatural, emcontraponto a comportamentos naturais, habituais e condicio-nados.44 Ao mesmo tempo, a busca do fenmeno sonoro em sicolocava a percepo num outro tipo de condicionamento daescuta, to paralisante quanto uma escuta do hbito ou a escutanatural.45 A conscincia, ocupada com as sensaes, no se reco-nhece como atividade da prpria percepo, no percebe a simesma, apenas o objeto.46 De alguma forma, P. Schaeffer apontaa necessidade de uma certa prudncia para a apreenso da escutareduzida que almeja a essncia, o em si, do objeto sonoro, quandoescreve que o excesso de penetrao falseia a percepo. O olharcientfico, cromtico, quebra sempre o aveludado desta cor.47

    TRANSIES SCHAEFFERIANAS

    Dispositivos de escuta: microfone e alto-falante

    Diferentemente dos olhos que direcionam a viso ao espaofrontal, os ouvidos captam os sons de forma onidirecional. Sesubstituirmos nossos ouvidos por um microfone, este captar in-discriminadamente os sons no espao, sem o crivo subjetivo daateno,48 e teremos ao alto-falante final um produto que nofoi selecionado como havia feito nossos ouvidos diretamente emsua escuta ativa.49 Contudo a escuta no apenas reativo de est-

  • 34

    mulo e resposta, h um processo seletivo da conscincia que diri-ge a ateno de acordo com uma srie de sons no espao, que P.Schaeffer chama de escuta ativa. Em outro aspecto, podemos di-zer que o microfone tambm exerce aspectos do foco subjetivo,no ir transcrever a realidade sonora sem deixar suas marcas,pois dependendo do posicionamento na gravao, sua proximi-dade da fonte sonora, o tipo de microfone, valorizar certas ca-ractersticas do objeto sonoro.

    Pierre Schaeffer descreve duas caractersticas que o microfoneopera: 1) enquadre (plano); 2) ganho (detalhe). Com a captaodos sons o espao acstico de trs dimenses foi convertido emespao de uma dimenso.50 Com o som executado no alto-fa-lante, a escuta tende a ficar circunscrita pelo enquadre, quandocomparada ao evento no espao originrio, perdendo certas ca-ractersticas de focalizao e localizao da escuta direta.51 Se porum lado, com o microfone, ocorre perda na escuta ativa que loca-liza e direciona, por outro, torna audvel o que era imperceptvel,possibilita o som maior do que por natureza.52

    Essa relao do enquadre, que se d pela captao do microfo-ne e sua reproduo por meio dos alto-falantes, no s retira umprincpio ativo da escuta que seleciona o foco, como tambm criauma outra dimenso de espao por meio da escuta. Pensemos nomicrofone, captando todos os pontos sonoros do espao circun-dante. Aps diversas transformaes sofridas, os vrios pontosdispersos encontrar-se-o condensados num nico local a mem-brana do alto-falante. O espao original onidirecional substi-tudo e passa a ser ouvido a partir de uma nica fonte, localizadae dirigida pela posio em que o alto-falante est situado. Mesmoassim, sendo o sistema microfone-alto-falante uma fonte dirigida,o objeto sonoro capturado guarda em si caractersticas do espao.Por exemplo, nossa escuta tende a reconhecer se o material foigravado em sala pequena ou grande, em ambiente aberto ou fe-chado etc. nesse sentido que o objeto sonoro pode guardarcaractersticas do espao tambm. O sistema microfone-alto-fa-

  • 35

    lante pode destituir as dimenses espaciais, mas tambm pode vira restitu-las. O mesmo podemos pensar na prtica com outrasferramentas de manipulao do sonoro, sobre a possibilidade desugerir espaos por simulao nos padres do sinal sonoro, a par-tir de algoritmos que simulam cmaras de eco, encontrados, hojeem dia, em qualquer software de edio.

    Assim se inicia outro saber a respeito dos procedimentos tc-nicos que influem diretamente no modo de escuta. O microfonepassa a operar transformaes que lhe legitimam num estado depoder em relao ao sonoro. Aqui comea uma nova cincia doinstrumento, e um procedimento de audio, impraticvel pelaescuta direta, que representa perfeitamente o poder de transfor-mao do microfone.53 Vale lembrar que, no caso da transdu-o, a energia mecnica (ondas que variam a presso do ar som) transformada em energia eltrica (microfone) e depois nova-mente em energia mecnica (alto-falante). Como no existemtransformaes perfeitas, de um estado de energia a outro, o mi-crofone (transdutor) distorce o som, filtrando certas caractersti-cas do sonoro.54

    De alguma maneira, o microfone e o alto-falante tornaram-sergos estendidos do ouvido e da boca, como nos faz pensarMcLuhan,55 levando a percepo dos sons a pontos improvveispara pocas anteriores. Pierre Schaeffer compara as transforma-es da escuta, a partir das ferramentas de gravao, ao adventoda fotografia ao olhar; nesse processo, a fotografia priva a fluidezda viso e promove uma fixao do objeto, proporcionando-nos,a partir do enquadre, ver o que no se via. Pelo enquadre da foto,somos dispensados de ver o resto, nossa ateno se fixa sobre algoque se quis tornar visvel.56 Com o microfone, assim como nafotografia, a escuta passou a ter um enquadre, e se encontra emol-durada num regime sonoro proposto. Escutas produzidas e pr-fabricadas destituindo, de forma sutil, multiplicidades de percep-es, para propor e circunscrever modos de subjetivao do sonoro.

  • 36

    O microfone e o alto-falante passaram a executar tambm umaatividade que, antes, s podia ser individual: a de selecionar edirecionar a escuta para um foco conforme o interesse. Agora,essa funo parece pr-proposta pelos falantes que habitam todasas dimenses do cotidiano, no mais apenas dos alto-falantes dordio quando, nos primrdios, as pessoas se reuniam em tornodele, ou do sistema de som das praas, ainda existente em certasregies. De alguma forma, se algum no quiser exercer a escolhado que escutar, sempre existir um ambiente sonoro pronto, umacasa snica, um casulo aconchegante aos ouvidos, um territriosonoro, todo j proposto pelas mais diferentes mdias. Em geral,mesmo a escolha por no escutar essas mdias se pe como im-possvel, pois elas vm tomando nossa escuta de assalto.57

    Inventando escutas

    A escuta, do nosso ponto de vista, se apresenta cada vez maisconfinada. Antes de se propor como uma possibilidade de inves-tigao e descoberta do sonoro, ela se encontra numa trincheirasnica que se impe aos ouvidos. Est arregimentada pela buscade se tornar tanto propriedade de uma cultura que se apropria,mais e mais, daquilo que preexiste, seja da condio da vida prpria condio da escuta, seja do consumo dos falantes port-teis (celulares, mp3 players) at o consumo de zonas de confortoaos ouvidos.

    Tais instrumentos incorporaram funes da percepo auditi-va que, anteriormente, eram propriedades de um ser capaz degerir certos mecanismos da conscincia, como a ateno, o focoauditivo e a memria sonora, s para atribuir alguns. No entan-to, agora essas capacidades parecem incorporadas a um outro re-gime de proposio pr-individualizada do sonoro. Se a escutafoi algum dia propriedade do indivduo, capaz de escolher e deci-dir quais sons escutar, essa capacidade parece hoje se reduzir cadavez mais, na medida em que existem redes sonoras que colocam aescuta num estado de sujeio. Nossa dimenso sensvel parece

  • 37

    cada vez mais pressuposta, preconfigurada, enquadrada, pr-estruturada, familiarizada pelas condies dadas pelos diversosfluxos sonoros que se apresentam insistentemente.58

    Retomando os temas schaefferianos elencados neste captulo,perguntamo-nos se teramos tornado nossa escuta menos ativa,ou ainda, aprisionada por um enquadre preconfigurado pelo su-porte e pelo recorte que a captao do microfone inscreve nosinal sonoro. Se o sonoro passa a ter um enquadre a partir dosistema registro e difuso, o que resta nossa escuta? P. Schaeffermostrou que essas ferramentas passaram a possibilitar uma mol-dura escuta por pr-institurem um modo de perceber o sonoroa partir do enquadre, cumprindo uma funo de circunscrev-lanum territrio sonoro limitado. Por outro lado, esses aparatostecnolgicos permitem tambm tornar sonoras foras antes im-pensveis, imperceptveis, inauditas. Resta-nos inventar, com eles,outras potncias. A escuta tambm precisa ser inventada com outrotipo de funo e outras atribuies.

    Talvez ainda estejamos ingenuamente tangenciando questessob o plano da condio em que se encontra a escuta hoje, no spara denotar aspectos de um poder que tende a nos tornar insen-sveis ao sons, no sentido de que perdemos a capacidade de nosafetar, mas como possibilidade de pensar uma potncia do sono-ro, a capacidade de tornar foras sonoras sensveis, de tornar au-dveis foras no audveis. A escuta como potncia do futuro,como prope Silvio Ferraz no Livro das sonoridades (2005). Nadado presente ou do passado ajuda a deduzi-la, porque ela sedireciona a foras que esto no futuro. Esto no futuro porqueso improvveis.59 Mas como no fazer essas indagaes a partirde Pierre Schaeffer, que nos fez pensar o fazer escuta? Sigamosnosso percurso, na tentativa de encontrar outros pensamentosque potencializem o sensvel do inaudvel contemporneo queinsiste em soar, mas para o qual nossos ouvidos muitas vezes pa-recem surdos ou estariam anestesiados?

  • 38

    Captulo 2

    ECOLOGIA SONORA

    RAYMOND MURRAY SCHAFER

    O pensamento musical durante o sculo XX parece ter direcionadoos ouvidos ao ambiente, talvez influenciado pela gama de sonsque vieram juntos com a revoluo industrial e a presena deautmatos e mquinas eltricas no cotidiano.1 Diferentes com-positores e pensadores abordaram o tema do ambiente sonoroem suas obras, seja como material de criao musical, seja sob aforma de tratados, manifestos, estudos e livros. Entre eles, LuigiRussolo (A arte do rudo: manifesto futurista, 1913),2 Eric Satie(Msica de mobilirio, 1920), John Cage (433, 1952 Silence,1961), Pierre Schaeffer (Tratado dos objetos musicais, 1966).Murray Schafer (A afinao do mundo 1977) pesquisou, demaneira especfica e sistemtica o tema, atravs de investigaes eregistros sobre os sons do ambiente.

    Soundscape, traduzido para o portugus como paisagem so-nora, um dos conceitos que se encontram espalhados por todaa obra do compositor canadense Murray Schafer.3 Ele definesoundscape como todo e qualquer evento acstico que compe umdeterminado lugar. O termo pode referir-se a ambientes reais ou aconstrues abstratas, como composies musicais e montagens defitas, em particular quando consideradas como um ambiente.4

    PROJETO PAISAGEM SONORA MUNDIAL

    Em 1969, com a finalidade de estudar o ambiente sonoro,Murray Schafer e um grupo de pesquisadores Bruce Davis, PeterHuse, Barry Truax e Howard Broomfield da Simon FraserUniversity, no Canad, formaram o World Soundscape Project

  • 39

    (WSP) Projeto Paisagem Sonora Mundial na tentativa de unirarte e cincia para o desenvolvimento de uma interdisciplina cha-mada Projeto Acstico. Os objetivos eram: 1) realizar um estudointerdisciplinar a respeito de ambientes acsticos e seus efeitossobre o homem; 2) modificar e melhorar o entorno sonoro; 3)educar estudantes, pesquisadores e pblico em geral; 4) publicarmateriais que servissem de guia a estudos futuros.5

    Em 1977, Murray Schafer escreve o livro The tuning of theworld (A afinao do mundo). Nessa obra, sintetiza as idias e osresultados do WSP, uma explorao pioneira pela histria e peloatual estado do mais negligenciado aspecto do ambiente: a paisa-gem sonora. Este livro abriu conexes a respeito do som e am-biente nas mais diferentes reas.

    Com A afinao do mundo M. Schafer busca traar um pano-rama amplo a respeito da paisagem sonora at 1975. Recorre atextos consagrados da literatura universal para reconstituir am-bientes sonoros do passado vasculhando escritos a respeito domar, do vento e da chuva, com o intuito de desvendar caracte-rsticas sonoras que passariam despercebidas. Aborda as trans-formaes e os impactos da Revoluo Industrial e Eltrica noambiente sonoro. Estabelece elementos para anlise da paisa-gem sonora. Apresenta um relato sobre os riscos auditivos gera-dos pelo aumento da intensidade na paisagem sonora, assim comoleis de diferentes pases que regulam os nveis de rudo. Discutepossveis solues para a poluio sonora, pensando na melhoriada qualidade auditiva e sensibilidade esttica das pessoas. Valori-za a criao e manuteno de paisagens sonoras agradveis, belase saudveis para a sociedade, vislumbrando o surgimento de umnovo profissional preocupado em estabelecer uma ecologia acs-tica dos espaos, capaz de projetar edifcios que sejam politica-mente corretos em termos auditivos. A busca por uma sociedadesonora que preserve as condies auditivas adequadas, respeitandoos limites de rudo, assim que ele ir pensar o Projeto PaisagemSonora Mundial (WSP), a busca de um ambiente acstico ideal.

  • 40

    A finalidade do WSP era descobrir os princpios estticos queregiam o ambiente acstico e a influncia dos sons na vida daspessoas. O pensamento de M. Schafer est relacionado tentativade restituir uma relao equilibrada entre homem e ambiente, que,conforme o autor, foi destituda aps a Revoluo Industrial.6

    Ecologia sonora

    Projeto Acstico ou Ecologia acstica , na concepo de M.Schafer, o estudo dos efeitos da paisagem sonora sobre as respostasfsicas ou caractersticas comportamentais das criaturas que nelavivem. Seu principal objetivo dirigir a ateno aos desequilbriosque podem ter efeitos insalubres ou hostis.7 Entende a paisagemsonora como uma grande composio musical que precisamos sa-ber orquestrar e aperfeioar, para produzir bem-estar e sade.8

    Sob esse aspecto, M. Schafer pensa em restries do rudo,avaliao, preservao de marcos sonoros9 e arranjo imaginativode sons como mtodos para criar ambientes atrativos e estimu-lantes, composio de jardins sonoros. Ir vislumbrar, com isso,um pensamento ecolgico dedicado paisagem para o resgatede uma cultura auditiva significativa.10 Compor essa grande obraseria tarefa para pessoas que sabem ouvir os sons do ambiente.Assim como os ambientalistas se preocupam em preservar as dife-rentes espcies de vidas existentes, WSP dar ateno aos sons queesto em extino, e gravar todos os tipos de paisagens sonoras.

    Clariaudincia: uma pedagogia da escuta

    O fim da poluio sonora acontecer por duas vias, comoaponta Murray Schafer: limpeza de ouvidos ou por um colapsomundial de energia. Sem energia, o mundo industrial pararia e,conseqentemente, boa quantidade das mquinas silenciaria.Muitos sons presentes hoje sumiriam, voltaramos a viver numestado pr-Revoluo Industrial, que pareceria quase uma volta paisagem sonora remota, um desejo pessoal do autor em se verlivre do mundo sonoro das mquinas.11

  • 41

    A outra estratgia a mudana na postura da escuta, uma in-teno induzida aos ouvidos que busca encarar o mundo colocan-do os ouvidos atentos paisagem sonora. M. Schafer prope alimpeza de ouvidos como estratgia para a sensibilizao e mudan-a de atitude para com a poluio sonora. Limpeza de ouvidos, emvez de entorpecimento de ouvidos. Basicamente, podemos ser capa-zes de projetar a paisagem sonora para melhor-la esteticamente.12

    Esse era um programa de treinamento sistemtico para se es-cutar de maneira discriminada os sons do ambiente, como umapedagogia da escuta.13 O objetivo seria atingir a clariaudincia,que significa, literalmente, audio clara, habilidade auditiva ad-quirida a partir de exerccios para perceber melhor os sons quecompem as paisagens sonoras.

    Os exerccios de limpeza de ouvidos surgiram de suas experin-cias em sala de aula compilados no livro The thinking ear (O ouvidopensante, 1986).14 A sua inteno era possibilitar um aprendiza-do da escuta; ele escreve que a primeira tarefa, para msicos eprojetistas da paisagem sonora futura, seria aprender a ouvir. Osexerccios poderiam ser imaginativos, mas o mais importante, aprincpio, so os que ensinam o ouvinte a respeitar o silncio.15

    Moozak

    M. Schafer critica todo tipo de aplicao dada aos sons emdeterminados ambiente, mais conhecido como msica de fundoou moozak.16 O termo aplicado para designar toda baboseiramusical, especialmente em lugar pblico, um grande motivo deparaso orquestrado, a verso acstica de uma indstria que lidasonoramente com a crua realidade de seus modernos estilos devida.17 uma tentativa de instaurar a idia de paraso que omercado se apropria para vender toda espcie de produto.

    Moozak toda programao de msica no espao pblico,seja a rdio do supermercado, shopping center, rua, empresa, siste-ma de telefonia, entre outros. Os mesmos programas so toca-dos tanto para pessoas como para o gado.18 Para M. Schafer, omoozak resulta do abuso de utilizao do rdio que tornou a msica

  • 42

    paisagem, moblia, pea de decorao, multiplicando sons no am-biente e reduzindo a qualidade auditiva. O moozak reduz a m-sica ao fundo. uma concesso deliberada audio de baixafidelidade (lo-fi). Ele multiplica os sons. (...) O moozak msicapara no ser ouvida.19

    O termo moozak uma aproximao direta a Muzak, inds-tria que produz esses parasos musicais para todas as situaesvoltadas venda de um produto. Eis o que consta na pgina daempresa na Internet (2006):

    Muzak sobre uma idia. Uma idia grande.(...) Sua premissa simples. Toda empresa tem uma histria para contar. O que nsfazemos trazer aquela histria de certo modo vida com msica,voz e som. Isso to poderoso quanto persuasivo. A emoo nosso guia. a fora que conecta pessoas e lugares. O intangvelcria experincias que constroem marcas. A paixo o combustvelque ns somos e o que ns projetamos. Setenta anos atrs, Muzakcriou uma indstria. Trs geraes depois, ns ainda estamos re-volucionando isto.20

    Esse o nvel a que nossos ouvidos esto expostos. A indstriaMuzak o exemplo claro de que nossa audio est posta paraproduzir e consumir, que existem pessoas trabalhando, h algumtempo, para habitar nossos ouvidos por todos os cantos em queestejamos, e ainda destituindo o espao auditivo comum, toman-do-o como propriedade. O Muzak mais que msica psicolo-gicamente planejado para cada tempo e lugar (...) Especialistasem aplicaes psicolgicas e fisiolgicas da msica.21

    Diferentemente das programaes de rdios, que tm seus es-paos de comerciais no meio da programao, o moozak trabalhano espao comum, onde voc muitas vezes no tem como esca-par, criando um modo de escuta, um estado subjetivo diretamen-te voltado ao consumo. Deteremo-nos na reflexo sobre esse tema,a partir de outros autores, no quarto captulo, em que apresenta-mos uma viso biopoltica acerca da escuta e das condies emque ela se encontra em relao ao mercado e produo de sub-jetividades.

  • 43

    TRANSIES SCHAFERIANAS

    Poluio sonora e rudo

    Dentre vrios significados e nuances que o rudo adquire nahistria, Murray Schafer apresenta quatro acepes: 1) somindesejado; 2) som no-musical, som aperidico; 3) som forte,de intensidade alta que agride a fisiologia do aparelho auditivo; e 4)distrbio de comunicao, que no pertence ao sinal-mensagem.22

    Essas quatro definies apresentam o rudo no plo negativo deuma funo estabelecida, sendo aquilo que: 1) no se deseja ouvir,2) no musical, 3) no saudvel e 4) no comunica.

    Pela tica da paisagem sonora Murray Schafer articula o ru-do a partir de dois pontos: 1) poluio sonora e 2) poder. No querespeita primeira concepo, ele se preocupa em mostrar que oaumento do nvel de rudo est diretamente relacionado polui-o sonora. A transformao do espao acstico com as mqui-nas e o aglomerado de pessoas nas cidades tm influenciado dire-tamente na maneira de encarar o rudo como poluio, produoexcessiva de sons. Apresenta uma viso ecolgico-jurdico-higie-nista acerca do rudo que dever ser combatido, previsto, cir-cunscrito, medido, higienizado e controlado a partir de estrat-gias que o docilizem como ameaa ao ambiente, lei e sade. Aecologia sonora schaferiana acaba funcionando como um pensa-mento disciplinar, no sentido foucaultiano, quando pensa o ru-do pelo crivo da poluio.

    Vale apontar aspectos positivos do rudo, como sua potnciade criao e ponto de instabilidade, que possibilitam transforma-es, inventividades, bem como processo de ruptura na estrutu-rao e transmisso do cdigo.23 Foi assim com a histria da msicaocidental, que ampliou os horizontes explorando sonoridadesestranhas, consideradas rudos pelos padres e tratados estticos.Talvez seja necessrio problematizar ainda mais a definio derudo, assim como a de silncio. O que se entende por rudo hojeno o mesmo que em outras pocas. Quando pensamos numa

  • 44

    arqueologia do rudo, possvel rastrear diferenas e variaes emseus conceitos, bem como em nossa maneira de o perceber.24 Rudoou silncio, atributos do sonoro que, em princpio, no possuempolaridade direta, no so bons ou maus, adorados ou diaboliza-dos. Pensemos para alm de tais categorizaes para no cairmosem julgamentos que simplifiquem, como em certos momentos opensamento de Murray Schafer parece se inclinar.

    O surgimento da disciplinarizao do espao parece demons-trar uma falncia da prpria escuta, que, ameaada, tenta resti-tuir algo como a busca por um paraso acstico perdido. Por ou-tro lado, por que no pr os ouvidos nesse mundo de outra for-ma, pensando quais so suas potncias criadoras, ao invs de bus-car legislaes que funcionem como protetores auriculares legal-mente constitudos? Uma outra postura em relao aos sons, umaoutra atitude de escuta, que necessita de outras definies a res-peito do rudo-silncio.

    Rudo e poder

    M. Schafer estabelece a frmula rudo = poder, sob doisaspectos: 1o) imaginrio de que rudo-intensidade evoca temor; e2o) a emisso de rudo permitida por causa de um contratosocial que se estabelece a partir de estruturas de poder. Sob oprimeiro aspecto, o autor ir recuperar no imaginrio arcaicohumano o temor e o respeito que certos sons fortes evocavam.25

    Descrever como o poder relacionado ao sonoro se deslocou, noperodo arcaico, para os sons fabricados pelo homem dos sonsnaturais (trovo, vulces, tempestades) para os dos sinos da igrejae do rgo de tubo.26 Depois, no perodo industrial, teve lugaruma outra passagem, em que o poder atravs dos sons se expressapor meio das mquinas. Sob esse crivo poderamos acrescentaruma terceira passagem com as mdias sonoras, mquinas cons-trudas para emitir sons.

    No que diz respeito ao aspecto social, M. Schafer trata o bin-mio rudo-poder no sentido daquele que tem a permisso para

  • 45

    fazer barulho, autorizao concedida socialmente para o emitirsem censura. Um exemplo seriam as festas coletivas, como o car-naval e outras festas onde se permitido o excesso. Mas no casode Schafer seu interesse pensar qual seria o contrato social estabe-lecido para uma sociedade povoada por mquinas barulhentas. Suapergunta talvez fosse quem tem o poder sobre os sons das mqui-nas? Ou, ainda, as mquinas so representantes sonoros de quesituao de poder? Ou a quem os rudos das mquinas interessa?

    As noes de poder e rudo apresentadas por M. Schafer res-saltam aspectos exclusivamente negativos. Talvez prefira atribuirao silncio o plo positivo e ao rudo o plo negativo do som. Noentanto, queremos fugir dessa polarizao que se estende noode poder. Vale lembrar a dimenso positiva do poder, como vere-mos melhor no quarto captulo, que no se restringe ao carterrepressor e temerrio.

    Rudo e silncio no so concepes fceis de ser definidas,pois se constituem socialmente mudando conforme o entendi-mento que temos do mundo.27 No so categorias abstratas damsica, vivem em estado de mudana constante. Um exemplo a experincia de John Cage na cmara anecica, que estabeleceum outro conceito de silncio.28

    Nem sempre to fcil de circunscrever, como faz M. Schafer,a frmula rudo = poder. Certas pessoas no se sujeitam aosrudos de maneira a sentirem-se violentadas e destitudas de suapotncia de escuta, a ponto de o som maqunico se tornar umsom repressor. Pensamos que o poder se estabelece constante-mente a partir das relaes que vivenciamos com o sonoro.

    No apenas uma questo de produo excessiva de som,rudo na acepo schaferiana, que implica situao de poder. Osilncio apresenta seu aspecto de poder tanto quanto o rudo.Italo Calvino mostra-nos muito bem isso no conto Um rei escu-ta, ao narrar a histria de um rei que controla todo o seu reino apartir do silncio de seu trono. Graas ao silncio absoluto, eleconsegue monitorar cada movimento que acontece em seu reina-do, no precisando mais do que se pr a escutar.29 Podemos tal-

  • 46

    vez sinalizar modos diferentes de expresso do poder, um que lidacom o silncio e outro, com o rudo.

    Esquizofonia

    Termo apresentado pela primeira vez no livro The ThinkingEar (1986),30 coletnea de ensaios dedicada ao ensino musical.Formado pela justaposio de esquizo, do grego schzein, fender,separar; e fonia, do grego phon, som, voz. Esquizofonia seria aseparao entre o som e sua fonte emissora. Como vimos no pri-meiro captulo, esta a mesma definio proposta por PierreSchaeffer para acusmtica a partir dos equipamentos de transmis-so e estocagem de sons capazes de dissociar tempo e espao. Como telefone e o rdio, o som j no estava mais ligado ao seu pontode origem no espao; com o fongrafo, ele foi liberado de seuponto original no tempo.31

    A escolha do neologismo se deu pela proximidade com a pala-vra esquizofrenia;32 o autor opta por esta palavra nervosa paradramatizar o efeito aberrativo desse desenvolvimento do sculoXX.33 A partir da inveno do telefone por Graham Bell em1876 e o fongrafo por Charles Cros e Thomas Edison em 1877,haveria surgido a era da esquizofonia, que para M. Schafer torna-ria o mundo mais ansigeno.34

    PARA ALM DE UM PENSAMENTO SCHAFERIANO

    Dentro de certos parmetros, Murray Schafer abre um campointeressante para pensarmos o sonoro no s a partir da msica,como tambm sob um crivo poltico a respeito do regime acsti-co vigente. Diante da perspectiva que a paisagem sonora nos per-mite vislumbrar, a sensao que se tem de que est tudo toma-do, dominado pelos desdobramentos que a produo sonora as-sume. Essa a primeira impresso, mas s vezes tende a se tornarnica. No entanto, podemos pensar que, ao mesmo tempo em

  • 47

    que se apontam tais absurdos e perversidades, abrem-se tam-bm possibilidades de um poder de resistncia contra isso tudo.

    Sendo assim, M. Schafer contribui bastante para se pensar nasconseqncias que o som pode ter em nossa vida, alertando-nospara as condies do espao sonoro em que vivemos, bem comobuscar estratgias para constru-lo. Entendemos que o pensamentoschaferiano aponta questes significativas a respeito da condioem que se encontra a escuta; no entanto, discordamos das pers-pectivas e inclinaes que oferece a elas. Por isso, convidamos apens-las juntos.

    Pela potncia esquizofnica

    O regime de dissociao entre espao e som que os aparatosmiditicos operam gera uma espcie de desterritorializao quepode levar a um estado catico e angustiante um certo aprisiona-mento auditivo. Isso se daria em virtude de um ambiente quepropicia a sensao de descontrole da audio, prximo agoniade sentir o ego desfragmentando devido ao apelo gerado pelosdispositivos sonoros.

    Num estado contnuo de ligao e corte dos fluxos a escutapermanece vagando de um a outro meio. Um rdio ligado nasala, um telefone que toca, uma TV, um tocador porttil. Entreum corte e outro algo mobilizado na matria sensvel. A cadaapelo sonoro h uma diferena de potencial, modulao. Um afetodisparado pela cano, um sentido que surge durante o notici-rio, um desconforto com o celular que toca, uma lembrana comos sons da chuva. Paradoxalmente, o oposto tambm ocorre: svezes, em meio balbrdia, um fio de melodia possibilita acon-chego e segurana.

    Habitar territrios-miditicos-polifnicos-desfragmentadosrepresenta colocar a subjetividade para trabalhar. Tendo que in-ventar estratgias diante do mundo proposto, a tendncia cadavez mais a criao de subjetividades flexveis. O que parece estar

  • 48

    em jogo a maneira de ocupar e transitar por esses terrenos, decomo se vestir-proteger-estimular os ouvidos, consumir estrat-gias de circulao diante dos territrios sonoros propostos.

    Em virtude dessas caractersticas a escuta desliza, o territriosonoro se torna mvel, nmade. Esse funcionamento flutuanteproduz sentidos em velocidade, se articula com a produo e con-sumo de mercadorias. Sob esse aspecto a esquizofonia pode serpensada enquanto mquina produtora de sentidos. como se amatria sensvel estivesse colonizada pelo constante jogo de des-fragmentao e desestruturao do plano audvel, gerando trans-formaes incorpreas.

    M. Schafer diagnostica na paisagem sonora a atrofia do sens-vel como um estado de falncia. Assim como o esquizofrnicoartificial dos hospcios aquele que esgotou, ou ainda, que levouao mximo a potncia de produzir conexes, atingindo um esta-do de paralisia, a esquizofonia descrita por M. Schafer tende paralisia dos ouvidos. Nos perguntamos qual ser o dispositivo-instituio que representa sonoramente o hospital psiquitrico?Chegaremos ao autismo auditivo? O que seriam os aparelhos deescuta portteis como walkman, diskman, mp3 player, celular?Perderemos a capacidade de nos afetar aos territrios sonoros comosintomas de um funcionamento do nosso plano sensvel?

    O diagnstico parece assustador, seja do esquizofrnico quetentou mas no conseguiu,35 seja da escuta anestesiada que rom-peu com a capacidade de se afetar aos murmrios e gritos dosalto-falantes. Mesmo diante deste quadro, entendemos que tantoa esquizofrenia quanto a esquizofonia esto prenhes de potnciasrevolucionrias e criativas. Ao mesmo tempo que podemos ficarpresos em uma espcie de labirinto snico existe a possibilidadede se escapar e viajar atravs deles. Pode-se chegar ao esgotamen-to da escuta, seja pela velocidade infinita ou pela ruptura total,pode-se inventar mundos snicos pela criao de territrios so-noros irreais, delrios de foras inaudveis. nesse paradoxo entreo que possvel e inimaginvel que nossos ouvidos poderiam

  • 49

    mobilizar uma atitude criadora que tambm uma forma de in-ventar escuta.

    As inclinaes sobre esquizofonia aqui se referem ao conceitode esquizo em Deleuze e Guattari, ressaltando aspectos produti-vos-positivos para se contrapor noo schaferiana, que tende aoplo negativo do termo. Esquizofonia como produo de mun-dos sonoros irreais, no menos fantsticos, inventivos e terrveisque com delrios, alucinaes e desesperos que envolvem a esqui-zofrenia. Se verdade que o esquizofrnico carrega em si umapotncia de ruptura capaz de criar outros mundos, entendemosque a condio esquizofnica tende ao mesmo caminho.

    Se esboamos algum aspecto positivo da esquizofonia no para amenizar a situao em que se encontra a escuta hodierna,ou deixar transparecer que isso esteja to longe de acontecer. Oque entendemos que h um jogo duplo que se fundamenta napositividade que existe na produo imaterial. A atual condioda escuta exige de ns uma postura to radical quanto a produ-o veloz dos territrios sonoros que circunscrevem nossos ouvi-dos. Talvez o que tenhamos apresentado sejam apenas esboosdas potncias existentes no conceito esquizofonia que ainda preci-sam ser desdobrados ou mesmo inventados num outro plano.Uma possvel prtica revolucionria que apresente sadas e estra-tgias de enfrentamento diante dos territrios audveis traados.Uma poltica do sonoro que tambm seja uma prtica de inter-veno e criao de valores nesse sentido. Seria como guerrilhasonora imaterial ou como trincheira utpica dos ouvidos?

    Para que afinar o mundo?

    A proposta de M. Schafer de intervir na paisagem sonora paraobter sons e sensaes mais agradveis e bonitas nos parece equivoca-da. s vezes, em meio cachoeira, esquece-se do veneno do nibus,que pode ser to instigante quanto os jardins sonoros apaziguadores.Talvez seja prefervel escutar um pouco do veneno da mquina nacidade do que ser aprisionado por uma idia buclica e protegida.

  • 50

    Implicitamente, o autor sustenta um discurso que valoriza ossons naturais (saudveis e no-poluentes) dos sons no-naturais(insalubres e poluentes). como se todo som que no fosse pro-duzido por um fenmeno da natureza (trovo, chuva, animal,homem, canto de pssaro, grilos, vento etc.) fosse ruim. Tais sonsnaturais podem ser to poluidores quanto uma britadeira, de-pendendo do contexto. possvel se habituar ao som das mqui-nas, assim como ao som da chuva. O som contnuo do rio, emtermos de presena constante, no est longe do som intermitentede motores como, por exemplo, o refrigerador, ou o reator ener-gtico de luminrias fluorescentes.

    O mesmo acontece com a msica. A mais sublime sonata deBeethoven pode se tornar um rudo desagradvel, desde que nose esteja disposto a escut-la.36 No livro dio msica, PascalQuignard apresenta alguns motivos para se desconfiar das boasintenses em torno da msica. Ela hipnotiza, enlouquece, causanuseas, faz mal, pe em marcha, mata, em Auschwitz foi utiliza-da com crueldade para manipular e conduzir os judeus para amorte at as cmaras de gs.37 No estaria M. Schafer nos desen-corajando a enfrentar criativamente os rudos das mquinas paracombat-los e control-los, a limpar os ouvidos para higienizar omundo musicalmente?38

    Outra idia de ecologia

    Em M. Schafer, existe uma tendncia a pensar a ecologia demodo a separar natureza biolgica, humana e mquina. Entende-mos que as coisas se constituem sob um aspecto tanto social quan-to fsico, biolgico, psquico e maqunico.39 Vivemos numa nicacultura que lida com todas essas instncias num processo de pro-duo. J no h nem homem nem natureza, mas unicamenteum processo que os produz um no outro, e acopla as mquinas.40

    Outro aspecto que envolve a noo de ecologia sonora, talcomo o compositor canadense defende, a de equilbrio entrehomem e natureza. A paisagem sonora apresenta uma idia deharmonia que tende ao esttico, diferentemente da proposta do

  • 51

    contraponto, que prope a harmonia como movimento e fluxosde tenses, dinmica que se d pela instabilidade.41 A afinao domundo schaferiana tende estabilidade, anestesia das potnciasde vida e criao, desabilitar a capacidade sensvel de apreendera realidade sonora como um campo de foras em constante dese-quilbrio, crise, tenso.

    A escuta musical daria conta do universo sonoro?

    O ttulo do livro de Murray Schafer A afinao do mundo parece querer ditar uma forma de as coisas soarem no mundo, ouseja, uma afinao, um diapaso, uma rgua, uma classificao paraos sons. Para que isso? Ser que ele no quer docilizar os sons,afinando-os? Nossos ouvidos j no esto demasiadamente treina-dos, viciados? Por que no subverter a escuta desse princpio orde-nador dos sons que a afinao tende a inserir? No seria o momen-to de encararmos esses sons aperidicos, desafinados, desarmni-cos, ruidosos e poluidores como possibilidades de fuga da prpriaescuta? Com o tipo de postura que M. Schafer prope, no esta-ramos refazendo uma escuta musical para os sons do ambiente?

    Assim como existem mltiplas fontes sonoras no espao ur-bano, existem mltiplas escutas, no apenas a musical. Escutar asonoridade em determinado territrio como msica, como M.Schafer prope, no seria repetir um padro de escuta? Ativar umouvido musical em todas as situaes no seria enfadonho? Oque certos compositores propunham quando utilizavam rudosnas composies era destituir essa relao de escuta na prpriamsica. Difcil exerccio, o de querer enquadrar os sons dentro dosparadigmas modal, tonal, serial, minimal e musical. Se esses sonstm algo para nos oferecer, exatamente o oposto do musical,possibilitando encontrar outros campos de criao, de escutas.

    Entrando e saindo de elevadores e os elevadores andando de umandar para outro: essa informao pode ativar circuitos que levamaos nossos ouvidos uma concatenao de sons. Talvez voc noconcordasse que o que ouviu era msica. Mas, nesse caso, outra

  • 52

    transformao teria ocorrido: o que voc ouviu levou a sua mentea repetir definies de arte e msica que se encontram em dicio-nrios obsoletos. (Cage, 1967, p. 33)

    Retirar a arte de um lugar sublime. Escutar a cidade, ou ossons das mquinas querendo coloc-las dentro do mesmo crivomusical, no seria uma forma de restrio? Os lugares desses sonsso outros e, conseqentemente, a escuta outra, talvez comoescuta nmade.42

    Murray Schafer alertou-nos para o imperialismo sonoro damquina, o carro, o motor dos veculos, e ainda o alto-falante;alertamos, por nossa vez, para um imperialismo da audio quequer transformar tudo o que soa em msica.43 Se a dimensomaqunica que toma conta dos nossos ouvidos tem nos tornadorefns, tomemos cuidado tambm para no nos aprisionarmospor uma concepo de escuta. A escuta musical, ou o que se con-siderou por muito tempo como tal, no parece ser suficiente parapensar a condio sonora em que nos encontramos. Podemosestar nos distanciando de um contato com os sons em virtude daconcepo de ambiente acstico ideal.44

    Poluio sonora ou questo de territrio?

    A poluio sonora uma questo que ultrapassa o plano domaterial sonoro, ou mesmo da percepo do som. Se no existi-rem pessoas para as quais esses sons so emitidos, estaria tudobem. A velha questo proposta pelo filsofo: se uma rvore cairno meio da floresta e ningum escut-la cair, ela realmente caiu?Se no existir ouvido para escutar no haver problema com oexcesso: que o mundo ento sofra uma avalanche sonora.

    As mquinas no tm ouvidos. Um mundo cheio de mqui-nas no o problema, mas o a presena de seus sons nos nossosouvidos. O problema da poluio no so as mquinas ou o vo-lume sonoro, mas a maneira como nossos ouvidos ocupam omesmo territrio das mquinas. A questo no apenas sonora,

  • 53

    envolve outros pontos, diretamente vinculada a um modo de vi-ver no mundo, que implica os modos de escuta, um modo de seaglomerar, de concentrar corpos no espao, de marcar e ocuparterritrio, delimitar e instituir propriedades, produzir e consu-mir, controlar, disciplinar e dominar. nesses termos que pode-mos pensar o binmio som-poder e no simplesmente pela in-tensidade (volume) e poluio.

    Esboos de uma poltica da escuta

    Murray Schafer fala com ressalvas sobre o avano tecnolgico.Talvez preferisse um mundo sem mquinas tanto que foi viverem uma fazenda no interior do Canad, longe da cidade.45 significativo todo seu esforo em alertar-nos para algo que estamosperdendo, um modo de escuta em estado de extino. O quereivindica o direito a um estado de silncio, de no querer escu-tar as mquinas, de no estar com os ouvidos a servio de umfluxo sonoro ou outro. O direito de se isolar do vizinho, do moozak,das buzinas, dos motores.

    Nossos ouvidos esto sempre colocados disposio para es-cutar algo que no pudemos escolher a princpio. No ter sidosempre assim? O que mudou? A presena de todo tipo de aparatosonoro parece evidenciar isso com maior intensidade, assim comoa aglutinao das pessoas nas cidades. Estamos nos empilhandosonoramente, como corpos e mquinas que se trombam constan-temente, como se apresentssemos sintomaticamente uma poss-vel fobia socioacstica, que no se distingue de outras fobias, masapenas delata mais uma camada da condio geral em que a vidaest sendo colocada. Na grande metrpole isso se torna mais evi-dente. Escutar pode ser uma experincia desagradvel quandono se est disposto a enfrentar a catica sonoridade de formainventiva e perspicaz. H que considerar a existncia de outrascamadas, como as mdias portteis, outros interesses, como o fatode que nossos ouvidos esto postos para consumir algo.

  • 54

    Faamos aqui um breve contraponto entre Luigi Russolo eMurray Schafer, considerando as diferentes maneiras de encararo rudo. De um lado, apologia dos sons das mquinas; do outro,a sensao desconfortvel de estar com os ouvidos sempre aber-tos, sendo constantemente violentado por um mundo surdo aossons do ambiente. Dois modos de subjetivao da escuta afetadapor sons ruidosos, que guardam diferenas, momentos distintosem que seus pensamentos se constituram. Russolo, incio do s-culo XX, prope a Arte dos rudos, com perspectivas de enfrenta-mento de tal realidade, afirmando que do caos do rudo na vidaconstitui nosso novo prazer acstico, capaz de mexer verdadeira-mente nossos nervos, de mover profundamente nossa alma, e demultiplicar, sem encerrar, o ritmo de nossa vida.46 Perguntamo-nos: onde esto essas potncias do rudo que aponta Russolo?

    Levando Murray Schafer a outros lugares, ele nos permite en-tender que o espao comum precisa ser pensado tambm em ques-tes acsticas. Pensemos a escuta como um bem comum imaterial,que, assim como uma srie de outros bens como ateno, mem-ria, viso, o pensamento e as sensaes, esto hoje postas em peri-go, e no simplesmente os recursos naturais, como gua, terra, ar,fauna e flora, ao contrrio do que alertam os ecologistas. O modode vida que vigora hoje nos faz pensar a escuta em outro plano queno apenas o da ecologia sonora schaferiana, que nos apresentaimplicaes pejorativas de buscar refgio num mundo que notem volta. Outras problematizaes ocupam o plano do sonoro.

    Nosso percurso pelo pensamento de Murray Schafer nos fazpensar sobre o que estamos fazendo com a matria sensvel; po-rm, discordamos de suas nuances morais. Por outro lado, pen-semos na potncia de seus apontamentos, quando ele nos fazescutar a transformao da paisagem sonora. a partir dele quepassamos a encarar o estado da escuta como algo socialmenteconstitudo, que necessita ser pensado como um ato poltico deproduo e de delimitaes de territrios.47 Fundamentado emoutros pensadores do sonoro, ele nos evidencia aspectos a respei-

  • 55

    to da condio em que se encontra a escuta nos diferentes territ-rios sonoros pelos quais transitamos. Aponta-nos uma perspecti-va nada otimista sobre qual mundo estamos construindo para ofuturo e quais os caminhos que nossos ouvidos tm trilhado.48

    Podemos discordar de M. Schafer por vrias razes, como fi-zemos: sua postura visionria de querer afinar o mundo, fazendoda paisagem sonora uma grande composio musical, de higie-nismo com limpeza dos ouvidos, ou sua concepo idealistaem estabelecer um projeto como o WSP, que busca uma socieda-de acstica ideal. No entanto, suas propostas fornecem-nos indi-caes para encarar com uma postura prtica e, por que no,poltica no sentido de pensar o som (ouvido pensante) comoalgo que influencia diretamente a vida todos que, de algumaforma, lidam com o som. Possibilita-nos iniciar uma reflexo so-bre uma escuta comum, uma poltica da escuta. Quem tem ouvi-dos. Escute!

  • 56

    INTERLDIO

    A QUEM NOSSOS OUVIDOS SERVEM?

    UM REI ESCUTA1

    O disparador agora o conto Un re in ascolto do cubano ItaloCalvino (1923-1985), escrito durante os anos de dilogo com ocompositor italiano Luciano Berio (1925-2003). Ambos traba-lhavam juntos numa pera com o mesmo ttulo, quando, pordivergncias, a parceria interrompida e Berio decide terminarsozinho a obra acrescentando textos de Shakespeare, FriedrichWilhelm Gotter e Wystan Hugh Auden.2

    Descreveremos o conto de Calvino por fragmentos, aumen-tando um ponto aqui, tirando outros ali. Recortando, colando,desapropriando, reapropriando. A quem queremos enganar? Fun-cionamos assim, com engrenagens de uns, pensamentos de ou-tros. No fim d nisso. Est tudo a citado, mrito de Italo Calvinoe interlocutores.3

    ***

    Em seu conto, Calvino apresenta um rei imvel, pregado notrono, entretido na destreza em equilibrar ao mesmo tempo co-roa maior que sua cabea e cetro. Fixado na posio que lhecabe, de onde no sai nem pela urgncia de suas necessidadesbsicas.4 Todo o reino devidamente organizado para evitar seudeslocamento. Tudo chega at ele, pois nada ganharia movendo-se de l para c a fim de tomar conhecimento das coisas.

    De seu trono, o rei alcana horizontes de seu reinado a partirda escuta, uma maneira de tocar a distncia; assim que ele detudo sabe, pois tudo ouve. Isso se d em virtude da posio emque se encontra, sua sala estrategicamente situada, devidamentearquitetada no alto, ventilada pelas correntes sonoras onde tudoecoa, ventos vindos de todos os lados.

  • 57

    Pelas correntes ruidosas de ar, ele sabe do tempo e no precisade qualquer regulador de seu fluxo. Os reis no tm relgio:supe-se que sejam eles a governar o fluxo do tempo; a submissos regras de um engenho mecnico seria incompatvel com amajestade real. (...) basta estender o ouvido e aprender a reconhe-cer os rudos do palcio, que mudam de hora em hora.5 Pelamanh, a corneta toca ao iar da bandeira no alto da torre, ascarruagens descarregam no ptio da despensa, os sons da cozinhae suas metdicas tarefas bradam a rotina do palcio. Em todo oprotocolo de ordens do dia vo soando as horas. O prprio pal-cio um relgio ruidoso, cheio de cifras sonoras que se desenvol-vem como um tema musical regido pelo curso do sol. Os baru-lhos se repetem seguindo a ordem habitual, os devidos intervalos.O rei pode ficar tranqilo, o seu reino no corre perigo.

    Mergulhado no grande lago de silncio que habita, todos oscaminhos e percursos ecoam na sala real. Pode ser paradoxal, mas graas ao silncio imaculado envolvente que o som mais sutillhe soa preciso e grandioso. O palcio um grande ouvido emque anatomia e arquitetura trocam de nomes e de funes: pavi-lhes, trompas, tmpanos, espirais, labirintos.6

    Rei e palcio se confundem. O palcio o corpo do rei. Oseu corpo lhe manda mensagens misteriosas,7 e ele as acolhe comreceio e ansiedade. Paranico, busca sinais em todos os sons, umahistria que liga um rudo a outro, no consegue deixar de pro-curar um sentido, que talvez se oculte no nos rudos isolados,mas no meio, nas pausas que os separam.8

    O rei vive o delrio auditivo, buscando sinais aqui e ali. Espe-rando a pausa entre um som e outro, tenta decodific-los, desco-brir mensagens, dialogar e conhecer lnguas. Repita os golpesconforme ouviu agora. Silncio. Ei-los de novo. A ordem naspausas e na freqncia mudou um pouco. Repita outra vez. Es-pere. De novo uma resposta no se faz esperar. Estabeleceu umdilogo?9 Seria sugesto? Acaso? Poderiam ser sinais? O que elescomunicam?

  • 58

    Seu delrio o prisioneiro que imagina no calabouo, baten-do contra a parede. Seria seu predecessor, aquele que expulsou dotrono? Todos os barulhos so sinais. No abaixa a guarda um ins-tante. De ouvidos sempre a postos, se pergunta de onde vm, o quesignificam. No se convence daquilo que sente, no sabe se dedentro ou de fora. Toda aquela gente que habita o palcio, nospores, na cozinha e nos corredores, continua sacudindo corren-tes, batendo colheres e berrando protestos. No adianta colocarisolamento acstico em paredes e pavimentos, e revestir esta salacom cortinados pesadssimos. (...) No adianta tapar os ouvidoscom as mos: vai continuar ouvindo tudo do mesmo jeito.10

    Agua seus ouvidos na esperana de conseguir suplantar aclaustrofobia snica. Acaba criando a expectativa pelo prximorudo, deseja saber o que vem depois, como se quisesse confirmarsuas ordens atravs dos sons. Tudo o que se ouve responde s regrasestabelecidas pelo rei. Sustentando uma escuta que tudo apreende,tudo quer controlar, a pensar o palcio em todos os detalhes, o reivive num esforo enervante, estado de espera constante pelo queseriam os sons ameaadores de sua ordem. Se algo sair dos confor-mes? O silncio pode indicar que as coisas no seguem os pro-tocolos. Quem sabe a ameaa vem mais do silncio do que dosrudos? H quantas horas no ouve a troca das sentinelas?11

    Num estado de constante ansiedade, todo sinal que rompe anorma soa como ameaa. Como prisioneiro de sua escuta, o reivive em uma espcie de jaula, acorrentado por cadeados snicos.

    Calvino nos faz entrar na personagem do rei, a viver um esta-do de governar um reino, mas, ao mesmo tempo, alerta para umacondio aprisionadora que as paredes do palcio