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C M Y K C M Y K A - 21 A - 21 E Ed di it to or ra a: : Ana Paula Macedo [email protected] 3214-1195 • 3214-1172 / fax: 3214-1155 Segundo projeções das Nações Unidas, a temperatura média deve crescer em todo o globo durante este século. No Brasil, regiões como a Amazônia podem ver a elevação chegar a 6ºC, o que tornará a sobrevivência muito mais desafiadora » PALOMA OLIVETO O inverno de 2002/2003 começou estranho no Hemisfério Norte. A tra- dicional época do frio se apresentou 1ºC mais quente do que o habitual em parte dos Esta- dos Unidos e na Europa. Era uma pequena amostra do que ocorre- ria oito meses depois. Em agosto, no auge do verão, a Espanha re- gistrou quase 47ºC; a Alemanha, 41ºC; e a França, 40ºC. Até o fim da estação, 70 mil pessoas esta- riam mortas. Literalmente, mor- reram de calor. O ser humano não suporta condições climáticas extremas. Quando, lá fora, os termômetros sobem, internamente, o corpo deflagra um processo metabólico para manter a temperatura em 37ºC. Suor, aumento do fluxo sanguíneo periférico e maior pro- dução de urina são alguns dos mecanismos usados para com- bater o excesso de calor. Entretanto, no então pior ve- rão europeu em 500 anos, prin- cipalmente idosos e pessoas com condições de saúde fragili- zadas perderam essa batalha, ví- timas de insolação, parada car- díaca e agravamento de doenças respiratórias. Sete anos depois, o continente voltou a ferver. Dessa vez, temperaturas até 13,3ºC aci- ma do normal cobriram uma área de 2 milhões de quilôme- tros quadrados — 50 vezes o ta- manho da Suíça. Mais de 30 mil pessoas morreram. Nem em paí- ses mais acostumados com o cli- ma tropical, as pessoas estão imunes. No Brasil, 50 moradores da Baixada Santista entre 60 e 97 anos foram vítimas de uma sen- sação térmica de 45ºC entre ja- neiro e fevereiro de 2010. Embora as ondas de calor se- jam eventos isolados, o planeta está, de fato, mais quente. Regis- tros históricos indicam que, nos últimos 100 anos, houve um au- mento de temperatura de 0,75°C, sendo que, desde 1990, a taxa de aquecimento acelerou, com 0,18ºC a mais a cada década. Acumuladas, essas frações de grau são significativas. Cenários modelados pelo Instituto Fede- ral de Tecnologia de Zurique in- dicam que, até o fim desse sécu- lo, a cada dois anos, a Europa po- derá aguardar verões iguais aos de 2003 e 2010. Cenários O rascunho do mais recente re- latório do Grupo I divulgado pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) pre- vê, para 2100, um aumento de temperatura global que varia en- tre 0,3ºC e 1,7ºC (cenário mais oti- mista) e 2,6ºC e 4,8°C (pior cená- rio). No primeiro caso, a estimati- va leva em conta a estabilização das concentrações de gases de efeito estufa na próxima década, o que só será possível com medidas urgentes de redução das emis- sões. Já o futuro mais drástico é es- perado caso o ritmo de liberação de CO 2 na atmosfera continue acelerado. O meio-termo, consi- derado por alguns especialistas como o mais realista frente ao contexto atual, estima um au- mento de 1,1ºC a 2,6ºC. Contudo, para algumas re- giões, os horizontes são mais dramáticos. Devido a particula- ridades geográficas, climáticas e socioeconômicas, as previsões para o Brasil são ainda piores. Só a Amazônia poderá registrar um aumento de temperatura de até 6ºC em 2100; o cerrado, de 5,5ºC; a caatinga, 4,5ºC; a Mata Atlântica, até 4°C; e o pampa, de 3ºC. Tudo isso acompanhado de mudanças nos padrões de chu- va, com períodos prolongados e extremos de tormentas e estia- gens, conforme o Relatório de Avaliação Nacional do Painel Brasileiro de Mudanças Climáti- cas (PBMC). Impactos Ao redor do globo, os impac- tos serão sentidos por todas as criaturas, em cada canto. Da distribuição geográfica da dro- sófila — a mosca-da-fruta — ao tamanho da população de ursos-polares, da extensão de gelo do mar do Ártico ao dese- nho do litoral das pequenas il- has do Pacífico, do tamanho dos recifes australianos à ativi- dade vulcânica, nada será co- mo antes. E, em meio a tudo is- so, ainda tem o homem. Revisado pelo médico brasi- leiro Ulisses Confalonieri, o ca- pítulo sobre impactos das mu- danças climáticas na saúde hu- mana do relatório do IPCC cita três mecanismos básicos pelos quais ocorre essa relação: im- pactos diretos, como ondas de calor, secas severas e tempesta- des; efeitos mediados por siste- mas naturais, como poluição do ar e doenças transmitidas por vetores e pela água; e efei- tos amplamente mediados por sistemas humanos, como des- nutrição e estresse mental. Al- guns são mais fáceis de serem visualizados, enquanto, em ou- tros casos, há uma complexi- dade maior. “A maioria dos efeitos são in- diretos”, afirma Confalonieri. “A seca no Nordeste, por exemplo, pode levar a uma perda na pro- dução agrícola de subsistência e, ao longo de meses, haverá um impacto na segurança ali- mentar, com casos de desnutri- ção”, explica. Ele dá exemplo de como as precipitações e estia- gens influenciam o ciclo da ma- lária em Roraima. “No início do ano, os casos começam baixos, aumentam em maio/junho, em julho caem substancialmente, para crescer de novo em no- vembro”, relata. Segundo o médico e pesqui- sador da Fiocruz, isso ocorre porque, em maio, caem as pri- meiras chuvas, favorecendo a proliferação do mosquito. “Já em julho, a chuva é muito forte, e isso destrói a população do ve- tor. Em novembro, a chuva es- casseia e formam-se poças. O ci- clo do mosquito recomeça”, des- creve. Quando há secas extre- mas, como a de oito meses pro- vocada pelo fenômeno El Niño, em 1997, os registros de malária despencam no estado. Esse é, inclusive, um dos poucos casos em que alterações anormais no clima podem favorecer a saúde. Christovam Barcellos, coor- denador de saúde da Rede Clima — Rede Brasileira de Pesquisas sobre Mudanças Climáticas Glo- bais, lembra que, embora empi- ricamente as pessoas sempre te- nham ligado o clima ao bem-es- tar, apenas recentemente essas relações estão sendo mais bem compreendidas. “De forma in- tuitiva, sempre se reconheceu que algumas estações trazem temporadas de resfriado, de den- gue… Mas, do ponto de vista es- tatístico, como são relações mui- to indiretas, ainda é muito difícil compreendê-las”, reconhece o pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde do Insti- tuto de Comunicação e Informa- ção Científica e Tecnológica em Saúde da Fiocruz. LEIA AMANHÃ: ONDE O BRASIL É MAIS VULNERÁVEL » Condições desumanas Fenômenos como a seca no Nordeste costumam ter impacto sobre a saúde, aumentando, por exemplo, casos de desnutrição Lunae Parracho/Reuters - 17/1/13

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Page 1: Condiçõesdesumanas - ICICT - FIOCRUZC M Y K C M Y K A - 21 A-21 EEddiittoorraa::AnaPaulaMacedo anapaula.df@dabr.com.br 3214-1195•3214-1172 /fax:3214-1155 SegundoprojeçõesdasNaçõesUnidas

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EEddiittoorraa:: Ana Paula [email protected]

3214-1195 • 3214-1172 / fax: 3214-1155

Segundo projeções das Nações Unidas, a temperatura média deve crescer em todo o globo durante este século. No Brasil,regiões como a Amazônia podem ver a elevação chegar a 6ºC, o que tornará a sobrevivência muito mais desafiadora

»PALOMAOLIVETO

O inverno de 2002/2003começou estranho noHemisfério Norte. A tra-dicional época do frio se

apresentou 1ºC mais quente doque o habitual em parte dos Esta-dos Unidos e na Europa. Era umapequena amostra do que ocorre-ria oito meses depois. Em agosto,no auge do verão, a Espanha re-gistrou quase 47ºC; a Alemanha,41ºC; e a França, 40ºC. Até o fimda estação, 70 mil pessoas esta-riam mortas. Literalmente, mor-reram de calor.

O ser humano não suportacondições climáticas extremas.Quando, lá fora, os termômetrossobem, internamente, o corpodeflagra um processo metabólicopara manter a temperatura em37ºC. Suor, aumento do fluxosanguíneo periférico e maior pro-dução de urina são alguns dosmecanismos usados para com-bater o excesso de calor.

Entretanto, no então pior ve-rão europeu em 500 anos, prin-cipalmente idosos e pessoascom condições de saúde fragili-zadas perderam essa batalha, ví-timas de insolação, parada car-díaca e agravamento de doençasrespiratórias. Sete anos depois, ocontinente voltou a ferver. Dessavez, temperaturas até 13,3ºC aci-ma do normal cobriram umaárea de 2 milhões de quilôme-tros quadrados — 50 vezes o ta-manho da Suíça. Mais de 30 milpessoas morreram. Nem em paí-ses mais acostumados com o cli-ma tropical, as pessoas estãoimunes. No Brasil, 50 moradoresda Baixada Santista entre 60 e 97

anos foram vítimas de uma sen-sação térmica de 45ºC entre ja-neiro e fevereiro de 2010.

Embora as ondas de calor se-jam eventos isolados, o planetaestá, de fato, mais quente. Regis-tros históricos indicam que, nosúltimos 100 anos, houve um au-mento de temperatura de 0,75°C,sendo que, desde 1990, a taxa deaquecimento acelerou, com0,18ºC a mais a cada década.Acumuladas, essas frações degrau são significativas. Cenáriosmodelados pelo Instituto Fede-ral de Tecnologia de Zurique in-dicam que, até o fim desse sécu-lo, a cada dois anos, a Europa po-derá aguardar verões iguais aosde 2003 e 2010.

CenáriosO rascunho do mais recente re-

latório do Grupo I divulgado peloPainel Intergovernamental deMudanças Climáticas (IPCC) pre-vê, para 2100, um aumento detemperatura global que varia en-tre 0,3ºC e 1,7ºC (cenário mais oti-mista) e 2,6ºC e 4,8°C (pior cená-rio). No primeiro caso, a estimati-va leva em conta a estabilizaçãodas concentrações de gases deefeito estufa na próxima década, oque só será possível com medidasurgentes de redução das emis-sões. Já o futuro mais drástico é es-perado caso o ritmo de liberaçãode CO2 na atmosfera continueacelerado. O meio-termo, consi-derado por alguns especialistascomo o mais realista frente aocontexto atual, estima um au-mento de 1,1ºC a 2,6ºC.

Contudo, para algumas re-giões, os horizontes são mais

dramáticos. Devido a particula-ridades geográficas, climáticas esocioeconômicas, as previsõespara o Brasil são ainda piores.Só a Amazônia poderá registrarum aumento de temperatura deaté 6ºC em 2100; o cerrado, de5,5ºC; a caatinga, 4,5ºC; a MataAtlântica, até 4°C; e o pampa, de3ºC. Tudo isso acompanhado demudanças nos padrões de chu-

va, com períodos prolongados eextremos de tormentas e estia-gens, conforme o Relatório deAvaliação Nacional do PainelBrasileiro de Mudanças Climáti-cas (PBMC).

ImpactosAo redor do globo, os impac-

tos serão sentidos por todas as

criaturas, em cada canto. Dadistribuição geográfica da dro-sófila — a mosca-da-fruta —ao tamanho da população deursos-polares, da extensão degelo do mar do Ártico ao dese-nho do litoral das pequenas il-has do Pacífico, do tamanhodos recifes australianos à ativi-dade vulcânica, nada será co-mo antes. E, em meio a tudo is-so, ainda tem o homem.

Revisado pelo médico brasi-leiro Ulisses Confalonieri, o ca-pítulo sobre impactos das mu-danças climáticas na saúde hu-mana do relatório do IPCC citatrês mecanismos básicos pelosquais ocorre essa relação: im-pactos diretos, como ondas decalor, secas severas e tempesta-des; efeitos mediados por siste-mas naturais, como poluiçãodo ar e doenças transmitidaspor vetores e pela água; e efei-tos amplamente mediados porsistemas humanos, como des-nutrição e estresse mental. Al-guns são mais fáceis de seremvisualizados, enquanto, em ou-tros casos, há uma complexi-dade maior.

“A maioria dos efeitos são in-diretos”, afirma Confalonieri. “Aseca no Nordeste, por exemplo,pode levar a uma perda na pro-dução agrícola de subsistênciae, ao longo de meses, haveráum impacto na segurança ali-mentar, com casos de desnutri-ção”, explica. Ele dá exemplo decomo as precipitações e estia-gens influenciam o ciclo da ma-lária em Roraima. “No início doano, os casos começam baixos,aumentam em maio/junho, emjulho caem substancialmente,

para crescer de novo em no-vembro”, relata.

Segundo o médico e pesqui-sador da Fiocruz, isso ocorreporque, em maio, caem as pri-meiras chuvas, favorecendo aproliferação do mosquito. “Jáem julho, a chuva é muito forte,e isso destrói a população do ve-tor. Em novembro, a chuva es-casseia e formam-se poças. O ci-clo do mosquito recomeça”, des-creve. Quando há secas extre-mas, como a de oito meses pro-vocada pelo fenômeno El Niño,em 1997, os registros de maláriadespencam no estado. Esse é,inclusive, um dos poucos casosem que alterações anormais noclima podem favorecer a saúde.

Christovam Barcellos, coor-denador de saúde da Rede Clima— Rede Brasileira de Pesquisassobre Mudanças Climáticas Glo-bais, lembra que, embora empi-ricamente as pessoas sempre te-nham ligado o clima ao bem-es-tar, apenas recentemente essasrelações estão sendo mais bemcompreendidas. “De forma in-tuitiva, sempre se reconheceuque algumas estações trazemtemporadas de resfriado, de den-gue… Mas, do ponto de vista es-tatístico, como são relações mui-to indiretas, ainda é muito difícilcompreendê-las”, reconhece opesquisador do Laboratório deInformação em Saúde do Insti-tuto de Comunicação e Informa-ção Científica e Tecnológica emSaúde da Fiocruz.

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Lunae Parracho/Reuters - 17/1/13