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Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90) São comuns as discussões nos Tribunais Superiores acerca de aspectos desta lei. O STF, p. ex., frequentemente se manifesta sobre aspectos da constitucionalidade ou inconstitucionalidade. Mas, o que se entende por hediondo? É algo horrendo, sórdido, grave, repugnante. É isto que significa o termo hediondo. Mas, em relação ao conceito jurídico mais específico, o que poderíamos dizer? Entendeu o legislador que o crime hediondo é o que fere o bem jurídico protegido de maneira mais grave, mais forte. Eles estão no topo dos crimes mais graves, que lesam o bem jurídico de forma expressamente forma. Existe um aspecto importante em relação a essa lei que é o seguinte: quando se fala na lei dos crimes hediondos, fala-se num rol taxativo dos crimes considerados hediondos. Aqui, há o princípio da taxatividade. O rol traz uma lista específica de crimes que são considerados pelo legislador como crimes hediondos. A lei nunca criou novos tipos penais. Ela não teve o poder de criar novos tipos penais. Ela, por meio de uma decisão político-criminal, fez constar de um rol determinados tipos penais que, pela gravidade da conduta, devem ser considerados hediondos. Esse é um primeiro aspecto importante. A lei não cria novos tipos penais. Ela não traz novidade em relação a nova tipificação. Há alguma natureza específica para que o crime conste do rol? Os bens jurídicos protegidos são diversos. Não necessariamente há a mesma natureza. O crime praticado na forma tentada é também hediondo? Não, já que a lei fala tanto em crimes consumados quanto tentados. De onde o legislador tirou a ideia da lei n. 8.072? Essa ideia vem de uma previsão constitucional encontrada no art. 5º da CF de 88. Sem essa previsão a lei seria inconstitucional. Podemos ver a previsão no art. 5º, inciso XXXVII, parte final, da CF/88. A CF não deixou expresso quais crimes seriam hediondos. Ela apenas previu a possibilidade da legislação prever quais crimes seriam hediondos, que seriam insuscetíveis de pagamento de fiança ou anistia ou graça. Tanto graça quanto anistia são causas extintivas da punibilidade. A graça é um decreto do Presidente da República que trata da situação de uma pessoa específica. Já a anistia é uma lei, ato legislativo.

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Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90)

São comuns as discussões nos Tribunais Superiores acerca de aspectos desta lei. O STF, p. ex., frequentemente se manifesta sobre aspectos da constitucionalidade ou inconstitucionalidade. Mas, o que se entende por hediondo? É algo horrendo, sórdido, grave, repugnante. É isto que significa o termo hediondo. Mas, em relação ao conceito jurídico mais específico, o que poderíamos dizer? Entendeu o legislador que o crime hediondo é o que fere o bem jurídico protegido de maneira mais grave, mais forte. Eles estão no topo dos crimes mais graves, que lesam o bem jurídico de forma expressamente forma. Existe um aspecto importante em relação a essa lei que é o seguinte: quando se fala na lei dos crimes hediondos, fala-se num rol taxativo dos crimes considerados hediondos. Aqui, há o princípio da taxatividade. O rol traz uma lista específica de crimes que são considerados pelo legislador como crimes hediondos. A lei nunca criou novos tipos penais. Ela não teve o poder de criar novos tipos penais. Ela, por meio de uma decisão político-criminal, fez constar de um rol determinados tipos penais que, pela gravidade da conduta, devem ser considerados hediondos. Esse é um primeiro aspecto importante. A lei não cria novos tipos penais. Ela não traz novidade em relação a nova tipificação.

Há alguma natureza específica para que o crime conste do rol? Os bens jurídicos protegidos são diversos. Não necessariamente há a mesma natureza. O crime praticado na forma tentada é também hediondo? Não, já que a lei fala tanto em crimes consumados quanto tentados. De onde o legislador tirou a ideia da lei n. 8.072? Essa ideia vem de uma previsão constitucional encontrada no art. 5º da CF de 88. Sem essa previsão a lei seria inconstitucional. Podemos ver a previsão no art. 5º, inciso XXXVII, parte final, da CF/88. A CF não deixou expresso quais crimes seriam hediondos. Ela apenas previu a possibilidade da legislação prever quais crimes seriam hediondos, que seriam insuscetíveis de pagamento de fiança ou anistia ou graça. Tanto graça quanto anistia são causas extintivas da punibilidade. A graça é um decreto do Presidente da República que trata da situação de uma pessoa específica. Já a anistia é uma lei, ato legislativo.

Esse inciso da CF fala em tortura, tráfico de drogas, terrorismo e crimes hediondos. Então, tortura, tráfico e terrorismo não são crimes hediondos, pois não estão no rol taxativo da lei, mas são assemelhados aos hediondos. Assemelhados ou equiparados aos hediondos. Eles estão sujeitos às mesmas regras, já que o legislador, ao criar a Lei n. 8.072 tratou das restrições aos hediondos e também aos equiparados. Depois dessa previsão na CF de 88, surgiu a lei propriamente em 1990. Mas, por que ela surgiu? Ela já nasce recebendo inúmeras críticas, tendo sua constitucionalidade posta em dúvida. Ela nasceu em meio a índices altíssimos de criminalidade. Então, o legislador entendeu que uma lei que trouxesse um rol taxativo de crimes que receberiam aspectos punitivos mais severos seria suficiente para combater esses índices de criminalidade. Essa foi a finalidade da lei n. 8.072/90.

Quais as características mais importantes da lei? Ela, na sua origem, vedava a liberdade provisória. Ficava dito em seu art. 2º, hoje já revogado, que os indivíduos processados por crime considerado hediondo, não teriam direito à liberdade provisória. A lei na sua origem também vedava a progressão de regime. Ela dizia que a pena deveria ser cumprida em regime integralmente fechado. É lógico que, considerando a previsão da LEP que fala na progressão de

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regime (art. 102) e de sua importância na ressocialização, a partir do momento em que surge uma lei que se caracteriza pelo rigor na aplicação dos incidentes de execução, inúmeras críticas também surgiriam. O sujeito tem de cumprir a pena em regime integralmente fechado.

Em 1994, houve um avanço importante. Quando criada em 1990, a lei tinha um rol de crimes que já existiam no CP. Em 1994, a Lei dos Crimes Hediondos foi alterada para incluir novos crimes no rol taxativo da lei. Ela incluiu o homicídio qualificado no rol. Talvez, a inclusão tenha se dado em função da pressão midiática resultante do assassinado de Daniella Perez. O crime cometido em 1992, portanto, não seria atingido pela mudança de 1994, ante a previsão de que a lei não retroagirá senão em benefício do réu.

Seguiram inúmeras discussões a respeito de aspectos em torno da sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade. Em 2006, o STF, ao julgar um HC (HC n. 82.959), disse que a progressão do regime de cumprimento da pena nas espécies fechado, semiaberto e aberto tem como razão maior a ressocialização do preso que, mais dia menos dia, voltará ao convívio social. O HC fala na reincorporação do autor à sociedade, nos mesmos termos da LEP. Então, o STF entendeu que a obrigatoriedade de cumprimento da pena em regime integralmente fechado seria inconstitucional, por violação à individualização da pena (princípio constitucional), que deve ser respeitada tanto no momento de dosimetria quanto no momento da execução penal. O juiz responsável pela execução deve avaliar as condições do indivíduo que compre a pena. Então, o STF entendeu que o regime integralmente fechado da lei n. 8.072 feriria o princípio da individualização. O STF entendeu que a regra feriria também a finalidade de reintegração social. Mas, se o STF entendeu que a obrigatoriedade do cumprimento em regime integralmente fechado, que regra vale então? Vale a regra de 1/6, que é o estipulado pela LEP.

Em 2007, houve nova alteração legislativa (Lei n. 11.464/07). A primeira alteração importante foi a retirada da vedação à liberdade provisória. Entende-se, portanto, que o indivíduo processado por crime considerado hediondo tem direito à liberdade provisória. A segunda alteração importante tem a ver com a progressão de regime. O que disse a lei? Ela incluiu na lei uma nova regra em relação à progressão, dizendo que o indivíduo que cumpre pena por crime hediondo, pode progredir de regime, desde que cumpridos 2/5 da pena. A lei, portanto, retirou o termo “integralmente”, passando a constar como regime “inicialmente” fechado. Assim, o início da pena deveria ser obrigatoriamente no fechado, havendo possibilidade de progressão. O entendimento do STF, de 2006, retroage, por ser mais benéfico. Mas, e a lei de 2007? Esta não. Vale a irretroatividade. Há a Súmula do STJ que interpreta isso (Súmula n. 471 do STJ).

A lei de 2007 falava m regime inicialmente fechado. Mas, e a pessoa que responde por crime hediondo com pena máxima de 6 anos? Em princípio, apenas considerando a pena em abstrato, ela não poderia começar a cumprir a pena em regime aberto? Há decisão de 2012 (HC n. 112.440 do STF) que entende o contrário, por ofensa à garantia constitucional da individualização da penal. Entendeu o STF que ofende a individualização da pena o fato de o indivíduo, obrigatoriamente, ter de iniciar o cumprimento de sua pena no regime fechado, apenas pelo fato de que o regime determinado é o fechado. Discute-se, até hoje, se a lei é eficaz ou se ela é uma tentativa frustrada de resposta à sociedade por índices de criminalidade.

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O art. 1º da lei traz o rol taxativo, que traz um número definido, delimitado de crimes que são considerados hediondos. São hediondos o homicídio praticada em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que praticado por um único agente, e homicídio qualificado. Ou seja, o homicídio do caput do art. 121, em razão da taxatividade, não é considerado hediondo. O próprio caput traz a previsão de que a forma tentada dos delitos também configura a hediondez.

O art. 2º da lei traz a previsão de que os crimes hediondos são insuscetíveis de anistia, graça ou indulto. Também é causa de extinção da punibilidade. A graça é pessoal e específica. o indulto, em primeiro momento, destina-se a uma coletividade indeterminada. É um decreto presidencial que traz um rol de requisitos no seguinte estilo: os condenados (ou seja, já há condenação definitiva) que já tenha cumprido 1/3 da pena e tenha sido condenado a pena de no máximo 4 anos, terá direito a indulto. Mas, a previsão do indulto não estava na CF. então, este dispositivo é questionável, já que a CF não o veda expressamente. Esse decreto presidencial lançado no final do ano pode variar. Num ano, p. ex., não entram os condenados que cumpriram tanto da pena, com pena máxima tal. No ano seguinte, o decreto pode ser mais aberto ou mais restrito. Em relação aos últimos decretos de indulto, o decreto no final, fala expressamente da vedação aos indivíduos condenados por crimes hediondos, exceto o indulto humanitário (o requisito tem a ver com a saúdo do indivíduo que cumpre a pena, p. ex., a paraplegia). Como os decretos têm vedado o indulto para hediondos, não se tem discutido isso. Se o decreto não falasse da vedação, seria mais discutível, como já foi.

E o inciso II do art. 2º? Os crime hediondos são insuscetíveis de fiança. Para isso, há previsão constitucional. Esse inciso II, até a modificação da lei de 2007, continha a vedação da fiança e da liberdade provisória. O que diz o § 1º do art. 2º? Ele traz a previsão do regime inicialmente fechado. Nos outros dispositivos, vem a previsão da progressão de regime para os primários (2/5) e para reincidentes (3/5). A finalidade da lei é estipular regras mais severas. O § 3º traz a regra de que o juiz deverá, fundadamente, decidir se o réu poderá apelar em liberdade. a prisão processual é sempre a exceção à regra de liberdade. Isso tanto durante a fase de ação penal quanto pós sentença, já que ainda cabem recursos. É uma consequência da presunção de inocência. A lei pode gerar entendimento equivocado de que, se o sujeito quiser apelar, o juiz deve fundamentar se ele quiser ficar solto. Mas, o correto é que ele só fique preso se presentes requisitos da prisão preventiva. A crítica que se faz em relação a isso é decorrência de que a prisão é a exceção. Então, a previsão é desnecessária, já que o juiz SEMPRE deverá fundamentar sua decisão. A hediondez do delito não tem relevância alguma para a prisão processual. A hediondez do delito não pressupõe que o indivíduo deva ficar preso. A regra do § 3º do art. 2º, portanto, deve ser interpretada dessa forma.

Já a regra do § 4º deve ser interpretada no sentido de que o prazo da prisão temporária deverá ser de 30 dias, prorrogável por mais 60. Essa não é a regra original da prisão temporária, que era de 5 dias, prorrogável por mais 5 (para os crimes comuns). Ou seja, a situação dos crimes hediondos é muito mais grave. isto demonstra o maior rigor da imposição da Lei dos Crimes Hediondos. Outra disposição de maior rigor é a em relação ao livramento condicional (outro incidente de execução). Qual o prazo que o art. 83 estipula para os crimes não hediondos? O livramento condicional é concedido após cumprido 1/3 de pena, ou metade da pena para os reincidentes. Mas, há a previsão a lei n. 8.072, que modificou o art. 83, dizendo que o sujeito

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condenado por crime hediondo, deve cumprir 2/3 da pena para que possa receber livramento condicional. A partir do art. 6º da lei, a lei n. 8.072 faz alterações à pena em abstrato de determinados tipos penais. Há o art. 3º da lei de crimes hediondos que também trata da obrigatoriedade de a União manter presídios de segurança máxima para presos de alta periculosidade que causem risco nos estabelecimentos normais. É uma previsão completamente dissonante da matéria tratada no resto da lei. Foi só uma previsão simbólica, já que não tem a possibilidade de resolver todos os problemas prisionais do país.

O art. 8º da lei traz a previsão do crime de quadrilha ou bando, que tem pena de 1 a 3 anos (art. 288 do CP). A lei dos crimes hediondos aumenta a pena, quando a quadrilha se reunir para a prática de crimes hediondos. Há também a previsão da delação premiada, com redução da pena, para o partícipe da quadrilha que denunciar sua ocorrência. Mas, é importante ressaltar que o crime de quadrilha ou bando, por si só, não é crime hediondo.

O fato do crime ser considerado hediondo não determina que ele seja analisado por juízo específico. Não há varas especializadas em crimes hediondos. A competência para processar e julgar esses crimes segue a regra processual pertinente (p. ex., o crime de homicídio qualificado será julgado pelo Tribunal do Júri). A hediondez não afeta a questão do juízo competente. Outra coisa: o indivíduo processado pela prática em tese de crime hediondo responde pelas regras processuais comuns. Não há prazos diferentes, p. ex.. Há modificações pontuais (p. ex., a progressão de regime ou o livramento condicional). É matéria que envolve muitos debates sobre constitucionalidade ou inconstitucionalidade. É matéria que vale ser examinada com maior atenção.

Genocídio (Lei n. 2.889/56) Terrorismo (art. 20 da Lei n. 7.170/83) Tortura (Lei n. 9.45/97)

São todos crimes equiparados a hediondos. Não trataremos do tráfico de entorpecentes, que será objeto de estudo no próximo semestre. Examinaremos estes três crimes equiparados. Iniciemos pelo genocídio. Existem 3 artigos que tratam do genocídio. Podemos pensar em termos de conceituação como a matança em massa ou, ao menos, a morte e os maus tratos fundamentados por motivo de raça, etnia, religião. É uma afronta a determinado grupo social. Isto é o caracteriza o genocídio, que o diferencia da lesão corporal, do homicídio e do abordo, p. ex.. Essa característica de ser um crime contra uma etnia ou grupo social é marcante no genocídio. A ideia do genocídio pode ser identificada na história da humanidade desde sempre. Todavia, a ideia de crime de genocídio surgiu a partir do holocausto na Segunda Guerra Mundial. Foi a partir daí que surgiu a ideia concreta do genocídio. O crime surgiu em 1948, em Convenção Internacional. O texto da Convenção é praticamente idêntico ao de nossa lei. Nosso legislador não teve qualquer criatividade ao tipificar o genocídio. O artigo II da Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio traz as hipóteses de conduta que podem ser consideradas genocídio. O texto de nossa lei é praticamente uma cópia. Mas, isto não é necessariamente um demérito. Nosso legislador não foi criativo, pois talvez não precisasse ser. Houve, portanto, praticamente a importação do texto.

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O que é diferente nesta lei do genocídio? As penas desse crime. Não há uma pena prevista para o genocídio. Temos o uso de penas, a referência a penas previstas para outros crimes, que acabam sendo as mesmas penas previstas para o genocídio. P. ex., o crime de genocídio na modalidade “matar membros do grupo” será punido com as penas do homicídio qualificado. Já as penas da lesão corporal serão aplicadas para a conduta de “causar lesão grave a integridade física ou moral dos membros do grupo”. Já a conduta de submeter intencionalmente o grupo a condições capazes de gerar sua extinção total ou parcial recebe a pena do art. 270 do CP (envenenamento de água potável; a pena é muito alta, de 10 a 15 anos); mas, e a conduta de adotar medidas para impedir nascimentos no seio do grupo? Há a pena do aborto. Mas, não é possível considerar que, neste caso, a conduta diga respeito, necessariamente, ao aborto. Ora, forçar a adoção de métodos contraceptivos também é uma forma de impedir nascimentos.

Uma crítica comumente feita é que as penas do genocídio são baixas, desproporcionais, tendo em conta a gravidade deste crime. Embora ambas as condutas possam ser, p. ex., um homicídio, a morte de alguém, o homicídio é a morte de uma. Já o genocídio é a morte de várias. Então, a situação fica estranha na doutrina. Por que se matar uma pessoa pratico um homicídio? Já se matar duas, cometo dois homicídios. Mas, porque se matar várias por motivos éticos pratico apenas um genocídio? Aí, a pena será de um homicídio ou de dez? para tentar controlar ou driblar esta desproporção, alguns autores sustentam que, se matar uma pessoa, tenho um genocídio. Já se matar várias, tenho vários genocídios? Não. De fato, tenho apenas um genocídio. O que está errado é a pena. Se entendermos que três mortes ou três impedimentos ao nascimento de crianças significarão três genocídios. Isto deturparia o conceito de genocídio. Este é um dos principais defeitos desta lei. É uma questão comumente levantada. Mais do que isso, o crime de genocídio não está apenas no art. 1º da Lei n. 2.889. Ele está nos arts. 1º, 2º e 3º. No art. 2º há um crime de quadrilha ou bando específico, direcionado para a prática de genocídio. A pena será a da quadrilha ou bando, variando de acordo com a modalidade de conduta praticada. Se a quadrilha ou bando praticar crime de homicídio ou matar membros de determinado grupo, a pena será metade do homicídio qualificado. Se o objetivo for praticar aborto, a pena será metade do aborto. Já se a conduta for efetuar transferências forçadas de crianças do grupo, a pena será a do sequestro ou cárcere privado. Ou seja, a pena será sempre atrelada, dependente da do crime que a quadrilha ou bando optou praticar.

Essa lei é de 56. Temos na lei de 90 o crime de quadrilha ou bando próprio, quando a quadrilha ou bando optou por praticar crimes hediondos. A lei de 56 é específica e anterior. Mas, o entendimento que se tem é que esse art. 2º foi revogado pelo dispositivo da lei dos crimes hediondos. Já o art. 3º da Lei criminaliza a incitação pública ao cometimento de qualquer das condutas criminalizadas nesta lei. A pena será metade das cominadas a essas condutas, que já é uma pena atrelada a outros crimes, tipificados no CP. A pena pelo crime de incitação será a mesma do consumado, se este se consumar. Também há uma exceção aqui à regra da tentativa do CP: quando o crime é tentado, a pena pode ser diminuída de 1/3 a 2/3 (art. 14 do CP). A identificação da quantidade de diminuição dependerá do quão próximo a conduta chegou da consumação. Essa é a regra do art. 14, § único, do CP. O art. 5º da lei do genocídio dá uma fração fixa para a tentativa: 2/3. Ou seja, o juiz não poderá analisar o quão perto o

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agente chegou da consumação, avaliar o desvalor da conduta, etc.. Deverá, sim, aplicar a fração fixa de 2/3.

O crime de genocídio não é considerado de índole política. Isto é importante para fins de extradição. Em geral, nos acordos bilaterais de extradição fica estabelecido que não se extraditam nacionais e nem criminosos políticos. Uma questão que surge, mas não com muita frequência – já que o próprio genocídio não acontece comumente – é qual o bem jurídico protegido pelo genocídio. São condutas diferentes que são punidas. Algumas equiparadas ao aborto, outras ao homicídio, outras à restrição de liberdade. Enfim, punem-se condutas diversas. Será que quando o genocídio é caracterizado pela morte de integrantes do grupo, há crime contra a vida? Genocídio é julgado pelo tribunal do júri? Não, o genocídio não é julgado pelo júri. O genocídio, ainda que na modalidade “matar alguém” não é crime contra a vida para efeitos de competência de tribunal do júri. É considerado crime contra etnia ou grupo social. É comum encontramos na jurisprudência a identificação do bem jurídico como uma etnia, em sentido amplo. Dependendo da modalidade do genocídio, é possível haver afronta também a outros bens jurídicos, como a vida ou a liberdade individual. Mas, antes de ser um crime contra a vida é um crime contra uma etnia. No Brasil há crimes de genocídio já julgados contra grupos indígenas.

Passemos, agora, para o terrorismo. Está previsto no art. 20 da Lei n. 7.170 de 83. Não analisaremos a lei inteira, que é a lei de segurança nacional, promulgada durante a Ditadura Militar. Há várias condutas nela tipificadas que podem ter sua legalidade ou pertinência questionadas. Nosso objetivo não será analisar a lei inteira. Analisaremos o terrorismo. Analisaremos o art. 20 e veremos se, realmente, o terrorismo está previsto aí. Isto porque a própria existência de um crime de terrorismo em nosso ordenamento é questionável. Temos o que se chama de tipo misto alternativo. Há várias condutas descritas. Devastar, saquear, extorquir, roubar, sequestrar, provocar explosão, praticar atentado pessoal, etc.. Temos a referência expressa também a atos de terrorismo. Mas, a dúvida que se tem ou a polêmica existe no sentido de se entender se a expressão “atos de terrorismo” seria uma noção genérica dentro da qual todas as condutas anteriores estariam abarcadas ou se a expressão atos de terrorismo seria uma conduta a mais. Temos algumas expressões chamadas de cláusulas de fechamento de tipos penais (como a que há, p. ex., na letra “c” do inciso II do art. 61: “outro recurso que dificultou a defesa do ofendido”; as primeiras formas são exemplo, mas a expressão ao final indica que o rol não é taxativo; a cláusula fecha, sendo algo mais genérico; o mesmo no homicídio qualificado: “ou outro meio insidioso ou cruel”; toda as hipóteses inicialmente descritas são exemplos de meio insidioso ou cruel, sendo que o rol não é taxativo; o mesmo para o estelionato que usa “ou outro meio fraudulento”, que serve como cláusula genérica).

Voltemos para o terrorismo. Se a lei tivesse dito “ou outros atos de terrorismo”, poderíamos entender que todas as condutas iniciais são hipóteses de terrorismo. Mas, não foi isso que o legislador escreveu. Ele falou em extorquir, devastar, etc. ou atos de terrorismo. Ou seja, há duas interpretações possíveis. Existe uma primeira interpretação que diz o seguinte: apesar de o legislador não ter dito “ou outros atos de terrorismo”, é assim que deveríamos entender o art. 20, de modo que todas as condutas descritas antes nada mais são do que formas de se praticar o terrorismo. E, por essa corrente, temos o terrorismo em nossa legislação, que estaria

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descrito no art. 20 da Lei de Segurança Nacional. É como se estivesse escrito “ou outros atos de terrorismo”. Esta primeira corrente entende que o terrorismo está descrito em nossa legislação no art. 20.

Aí passamos para a segunda corrente que entende o seguinte: pelo princípio da legalidade, não podemos ler o que não está escrito, fazendo uma interpretação analógica para entender que os primeiros atos são exemplificações de atos de terrorismo. Desse modo, não podemos dizer que todas as condutas descritas antes são hipóteses de terrorismo. Os atos de terrorismo seriam então uma conduta a mais no rol. Ou seja, não é possível entender que o conteúdo atos de terrorismo é preenchido pelas condutas descritas anteriormente. O problema desta segunda corrente é o seguinte: se eu não posso concluir que os atos de terrorismo são as condutas anteriormente descritas, o que seriam atos de terrorismo? Se esta não é cláusula de fechamento preenchida com as condutas descritas anteriormente, precisamos identificar o conceito de atos de terrorismo. E, aí está o problema. Está é uma clara situação de ofensa ao princípio da taxatividade. O que seriam atos de terrorismo? Terrorismo é causar medo, terror, intimidação que acaba por restringir a liberdade das pessoas. Mas, este é conceito genérico, doutrinário, indeterminado.

Quais são os posicionamentos na doutrina e na jurisprudência? 1. Terrorismo está descrito no art. 20, sendo que todas as condutas são hipóteses de terrorismo. 2. Não há um crime de terrorismo no ordenamento jurídico brasileiro, já que, a despeito da referência expressa, o conteúdo da expressão é muito vago, impedindo uma clara identificação de seu conteúdo. Há sete ou oito anos atrás, quando houve os ataques do PCC em São Paulo, discutiu-se se aquilo não seria ato de terrorismo. A partir do 11 de setembro, todos passaram a ter uma ideia mais clara do que é terrorismo. Ele deixou de ter uma característica mais localizada, passando a ter alcance global. Antes, apenas alguns países conviviam com o terrorismo como algo localizado. A partir de 2001, a conduta alcançou uma abrangência maior. Então, é comum termos uma intuição do que é terrorismo. É de se entender que se tente enquadrar os atos de 2006 no terrorismo. Mas, exatamente pela falta de um tipo penal, os condenados não foram condenados por terrorismo. Foram condenados por homicídio, lesões corporais, etc.. O melhor é entender que não temos um tipo de terrorismo em nosso ordenamento, por falta de conteúdo. A doutrina majoritária vai nesse sentido, mas há posições em sentido contrário.

Qual a relevância disso hoje em nosso ordenamento? É muito relevante, por uma questão de relações internacionais, por questão de extradição. Quando chegam ao STF pedidos de extradição de condenados por terrorismo em outros países, um dos primeiro requisitos que deve ser analisado é a dupla tipicidade. A conduta precisa ser crime no país que pede a extradição e também no que irá extraditar. Há decisões dizendo que no Brasil não há o crime de terrorismo, de modo que não poderá haver extradição. Há uma decisão bastante clara nesse sentido do Min. Celso de Mello. Mas, isto é também algo discutível. O argumento contrário é: admitamos que não haja o crime de terrorismo. Mas, as condutas que eventualmente são consideradas terrorismo em outros países, de alguma forma não estão presentes em nosso ordenamento sob outro nomen iuris? Podemos não ter um tipo de terrorismo, mas condutas que em outros países são consideradas terrorismo podem também ser aqui criminalizadas, como homicídio, dano, lesões corporais, etc.. Então, a extradição seria possível. Essa é uma questão muito enfrentada pelo STF em decisões de extradição.

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Tortura (Lei n. 9.455/97)

Foi um crime introduzido de forma relativamente recente em nosso ordenamento. Quando falamos em tortura, e essa ideia de tortura é conhecida por quase todos, pensamos em um ato de imposição de sofrimento, dor, em geral física, a alguém pelo simples prazer de impor a dor ao outro ou pela mera dor em si. Não é necessariamente um meio para outro crime ou para se conseguir outra coisa. É a tortura quase como um fim em si mesma. É uma tortura coo ideia de causar um mal, impor uma dor a alguém. Para podermos efetivamente entender o conceito de tortura, é importante nos voltarmos a dois instrumentos internacionais que antecederam nossa lei (Convenção contra tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes de 1984 e a Convenção Interamericana para Prevenção da Tortura de 1985). O art. 1º da primeira destas convenções traz um conceito do que seja tortura. Já o art. 2º traz uma definição de tortura. Enfim, temos portanto, uma ideia do que seja tortura nessas convenções, as quais aderiu o Brasil e, portanto, estão incorporadas ao nosso ordenamento jurídico. Nosso texto constitucional, no art. 5º, há previsão de punição dos crimes hediondos, da tortura, do terrorismo e do tráfico de entorpecentes. Ou seja, a CF prevê não só a punição da tortura como também sua punição a título bastante oneroso, rígido por parte do Estado.

Quando questionamos as obrigações constitucionais de tutela, falamos em geral de exemplos que nos rementem a condutas cujo texto constitucional está relacionado à superação de algo, no caso brasileiro, um regime político. Nesta virada constitucional, o texto acaba trazendo para si o papel de determinar a criminalização de uma conduta para deixar muito claros os valores constitucionais que se pretende obter. Certamente, muitos atos de tortura foram praticados, então, o fato de haver esta previsão constitucional é muito significativo em nosso ordenamento. Poderíamos ter apenas uma questão de vida e dignidade humana – e já não seriam poucas. Mas temos mais do que isso: temos uma declaração expressa do constituinte de que a tortura deve ser punida como crime hediondo. O crime de tortura está inserido de maneira clara em nosso ordenamento a partir de 1997. O art. 1º é grande e trata, efetivamente, da punição do crime. Uma observação inicial com relação à lei especificamente: se pudermos observar das leituras de textos internacionais, fala-se que o sujeito ativo é funcionário público ou alguém que pratica o ato com o consentimento de um funcionário público. Nossa lei não exige para a caracterização do crime sujeito ativo próprio, ou seja, o funcionário público não tem nem mesmo de ser coautor.

Aí então já começamos uma discussão. Se pensarmos em tortura como ideia de impor a alguém um sofrimento físico ou mental, poderemos pensar que qualquer um pode torturar qualquer outro. Neste aspecto, estaria correta a lei. Mas, por conta desta dispensabilidade do funcionário público, é alvo de muita crítica, já que o conceito de tortura é técnico. Podemos ter uma ideia leiga, profana, de tortura. Mas, tortura não é um “simples” sofrimento que se impõe a outrem. Ela, tecnicamente, é um ato de funcionário público que se utiliza da imposição de dores físicas e mentais que pretende obter, p. ex., uma confissão. É uma conduta, claramente, de funcionário público. O fato de nossa lei não prever que o sujeito ativo seja necessariamente público é razão de muitas críticas. Até quando a lei fala em abuso de poder, dever-se-ia imaginar em abuso de poder por funcionário público. O conceito já pressupõe um abuso de autoridade. Em suma, o art. 1º da nossa lei não exige que o sujeito ativo seja funcionário público, mas isto em desacordo com os documentos internacionais

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pertinentes. Com relação ao sujeito passivo, qualquer um pode ser vítima do crime de tortura. A lei fala em três hipóteses (verbos) que definem o crime de tortura: constranger alguém mediante violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental, com o fim de obter informação ou declaração da vítima ou de terceira pessoa, ou também com o fim de obter a prática de crime (neste caso, a tortura é meio) ou, ainda, em razão de raça ou religião (neste caso, a tortura seria um fim em si mesmo). Há também outras hipóteses de tortura no art. 1º, incisos I e II. No § 1º vem a previsão de que incorre na mesma pena quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou psicológico não legalmente previsto. Também há pena para aquele que, nesta situação, tendo o dever de evitar a prática, não o faz.

Em primeiro lugar, não há definição do que seja sofrimento físico ou mental. Isto pode conduzir a algumas dificuldades em relação á tipicidade da conduta. Não há no ordenamento uma definição, ainda que exista uma ideia comum do que seja um sofrimento físico ou mental. Com relação à definição, o ordenamento português tem definição muito interessante e utilizada como referência: infligir sofrimento físico ou psicológico agudo, cansaço físico ou psicológico grave ou determinar o uso de elementos químicos, tóxicos ou outros elementos naturais ou sintéticos, com o fim de perturbar a capacidade de livre manifestação de vontade ou de autodeterminação de vontade da vítima. A violência e a grave ameaça estão presentes apenas no art. 1º, incisos I e II. Nas demais hipóteses, há a necessidade de violência ou grave ameaça. Ainda com relação ao crime de tortura, há a questão do elemento subjetivo do crime. Exige-se o dolo, a intenção de se praticar a tortura. Mas, não basta apenas o dolo genérico, ou seja, o dolo de praticar os atos descritos. Há também o dolo específico (especial fim ou motivo de agir, é a intenção que está por trás da conduta), o dolo de se obter por meio da tortura determinadas finalidades descritas na lei. Ou seja, é preciso a intenção não apenas de constranger alguém impondo sofrimento físico ou mental. É claro, este dolo genérico deve haver. Mas, este não é o objetivo final da conduta. Ele é imposto para que se obtenha uma confissão, p. ex.. Esta é a segunda intenção.

Há também as hipóteses qualificadas pelo resultado no § 3º, das quais pode resultar lesão corporal grave ou morte. É complicada a questão do concurso de crimes. Para que se possa qualificar o crime como preterdoloso, o agente precisa ter a intenção de praticar a tortura e, em razão dos excessos, causar a morte ou as lesões corporais. Agora, é diferente da hipótese em que a pessoa quer matar, mas resolver usar a tortura como meio para a prática do homicídio, há o homicídio qualificado pela tortura. Na prática a diferenciação é extremamente difícil. Mas, a repercussão se dá, p. ex., na competência. O homicídio qualificado irá para o tribunal do júri. Já a tortura com resultado morte não será da competência do júri. É a mesma dificuldade do homicídio e da lesão corporal com resultado morte. É a mesma dificuldade de diferenciação. Agora, e com relação a outra normas? P. ex., coloca-se a cabeça da vítima em um tanque d’água para que ela fique sem respirar, bate-se na vítima, etc.. É muito provável que, neste caso, a vítima sofra um constrangimento ilegal e diversas lesões corporais. Nesses casos, todos esses resultados que são decorrências lógicas da prática da conduta de tortura ficam absorvidos pelo crime de tortura. A lesão corporal já está embutida na tortura.

Existe outra questão bastante importante e que, por diversas vezes, vem a tona na mídia: é a diferença entre tortura e maus tratos (art. 136 do CP), que criminaliza a conduta de expor a

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perigo a vida ou saúde da pessoal para fins de educação, ensino ou custódia, quer privando-a dos meios de alimentação mínimos, quer abusando dos meios de correção e disciplina. O crime de maus tratos pode muitas vezes ser confundido com a tortura. O crime de maus tratos, por óbvio, é menos grave. Existe uma característica indispensável dos maus tratos que é o contexto de educação, ensino ou custódia. Podem ser praticados pelo professor em relação ao aluno, pelo pai em relação ao filho com a intenção de educar, p. ex.. Isto diferencia os crimes. Sempre ocorrem neste contexto. Às vezes, e tem sido cada vez mais comum, aparecem casos de idosos sendo espancados ou sofrendo privações dos cuidados adequados por quem tem o dever de fazê-lo. A pessoa está praticando tortura? Há também uma previsão de crime de maus tratos no Estatuto do Idoso (art. 99 da Lei n. 10.741/03), que diz respeito expor a perigo a saúde, a integridade física ou psíquica de idoso. Surge uma grande indignação da imprensa, que acredita tratar-se de tortura. Mas, o fim aqui não é a intenção de confissão, ou a prática de um crime ou o motivo de preconceito de raça ou religião, que caracterizariam a tortura.

Duas questões ainda: a primeira não é novidade para o estudo do direito penal, qual seja, a margem penal excessivamente ampla. O caput do art. 1º, por exemplo, tem uma margem de 2 a 8 anos. A forma como o legislador tipificou a tortura foi insatisfatória nesse sentido. As diferenças entre pena mínima e máxima são muito grandes. Quando deixa a margem muito ampla, o legislador dá grande margem ao juiz. A Lei de Tóxicos é ainda pior, prevendo 5 a 15 anos para o tráfico. No peculato, há 2 a 12 anos. Mas, qual o argumento para haver a margem ampla? As várias possibilidades, meios e modos de se praticar a tortura. Então, o juiz deveria ter, de fato, a possibilidade de atuar dentro dessa margem.

O § 7º da lei também foi motivo de inúmeras controvérsias, afirmando que o condenado por crime previsto nesta lei, salvo o funcionário público, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado. Nesta época, prevalecia o entendimento no STF da constitucionalidade da lei dos crimes hediondos quando esta previa o cumprimento integral em regime fechado. A tortura é equiparado a crime hediondo. Com a lei de tortura, ficou claro que em relação a este crime não haveria mais cumprimento integral no regime fechado. Haveria apenas a necessidade de iniciar o cumprimento neste regime. Nesta época houve discussão sobre se a lei de tortura havia revogado a lei de crimes hediondos. Quanto ao crime de tortura, era pacífico que haveria a progressão. Mas, a questão era a seguinte: a CF determinou tratamento uniforme para os crimes hediondos e equiparados. Então, não deveria haver a extensão do tratamento diferenciado para os outros crimes (os hediondos, no caso, por conta da equiparação constitucional)? Muitos sustentaram que a previsão poderia ser estendida para os hediondos e equiparados. Houve decisões neste sentido, sobretudo do TRF-3ª Região. Mas, este entendimento não prevaleceu. Prevaleceu na jurisprudência o entendimento de que a excepcionalidade valeria apenas para a tortura. Mas, esta discussão hoje está superada, ante a nova manifestação do STF em 2006, reconhecendo a possibilidade de progressão, e também a alteração legislativa da lei dos crimes hediondos de 2007.

Lei n. 7.716/89 – RACISMO/PRECONCEITO

Talvez o mais adequado fosse falar em crimes de preconceito, já que hoje se discute até mesmo o preconceito por orientação sexual. Mas, falaremos em racismo já que, além de

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questões importante envolvendo o racismo, há o mandamento constitucional. Nossa CF, já no Preâmbulo e nos arts. 1º e 5º, traduz o valor igualdade como algo importante, que caracteriza o Estado Democrático de Direito. Além de algo formal, este mandamento é também substancial. Além da questão da igualdade, há o valor da dignidade humana. Nos crimes de preconceito especificamente, a dignidade humana está diretamente envolvida. Além disso, apenas para citar alguns exemplos, temos a questão do pluralismo (político e cultural) que deve caracterizar nossa sociedade. assim, falar na necessidade de criminalizar comportamentos preconceituosos é mais do que adequado. O Estado não pode tolerar preconceito de qualquer natureza. Além desses valores expressos e que, por si só, já poderiam justificar a existência dessa lei, há norma expressa: art. 5º, XLII, diz que a prática do racismo consiste em crime inafiançável e imprescritível. Há, aqui, um mandado explícito de criminalização. Ele não está aí à toa. A CF representa uma superação da situação política anterior, com toda sua carga cultural arraigada.

A CF fala na imprescritibilidade e na impossibilidade de fiança. Quando o racismo foi inserido no texto constitucional, a maior preocupação era do preconceito contra negros. Essa era origem, a justificação da inserção do racismo como crime inafiançável e imprescritível. Embora isto tenha sido a justificativa, a CF fala em toda forma de racismo. Todas elas devem ser criminalizadas, e não apenas o preconceito contra negros. No plano constitucional, além dos princípios da igualdade, pluralidade e dignidade humana, há norma expressa que sugere a criminalização ou determina esta, a depender da interpretação.

Analisando expressamente a Lei n. 7.716/89, vemos já no preâmbulo a forma como foi pensada a lei. Ela define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Este é o seu preâmbulo. A lei não trata apenas das condutas preconceituosas. O art. 1º fala de forma mais abrangente, tendo em conta sua modificação por lei de 97. O dispositivo já alargou o espectro do que é racismo ou melhor, das condutas que são objeto de discriminação. Raça, cor, etnia e procedência nacional. Raça poderia ser entendida como características físicas das pessoas. Este é um conceito provisório. Será retomado mais para frente. Características físicas de origem genética, como cor da pele, tipo de cabelo, altura, etc.. Cor é um dos aspectos da raça. É a cor da pele. Etnia é um pouco mais amplo. Está mais relacionada à questão social e cultural. Muitas vezes, a etnia anda junto com a questão de raça. Mas, não necessariamente. Grupo étnico é o que tem características socioculturais relevantes. discriminação religiosa também é criminalizada. Há também discriminação em razão da procedência nacional, dizendo respeito ao lugar de origem da pessoa. À princípio, são essas as cinco hipóteses abarcadas.

Agora, passamos a não mais falar em racismo apenas. Falaremos de preconceito de maneira geral. O que diz o nosso ordenamento a respeito do preconceito? O art. 1º diz que serão punidos na forma da lei os crimes resultantes de preconceito resultante de cor, raça, etnia, procedência nacional ou religiosa. A lei tem redação diferente do tradicional. O art. 1º fala na criminalização. A partir do art. 2º, há uma série de condutas discriminatórias e que de alguma forma tratam desigualmente as pessoas, mas a desigualdade precisa estar lastreada na questão do preconceito. Do art. 2º ao 14 há uma série de condutas, mas nenhuma delas faz referência ao preconceito. Talvez fosse mais correto do ponto de vista técnico enumerar as condutas em incisos desse art. 1º. Todas as condutas descritas nos arts. 2º ao 14, em nenhuma delas há referência à discriminação de raça, cor, etnia, etc.. Não há referência à origem do

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tratamento desigual, que é o preconceito. A referência ao preconceito é dada no art. 1º. Pela literalidade e pelo princípio da taxatividade, procedência nacional vale apenas para estrangeiros. Não pode ser alargada a locução para englobar o preconceito resultante de região do país.

Retomando as condutas... Do art. 2º ao 14. Não será preciso ler todas as condutas. Mencionaremos apenas as mais importantes para termos uma ideia dos tipos de comportamentos proibidos. P. ex., impedir o acesso de qualquer legalmente habilitado aos cargos da administração pública direta ou indireta. Note-se que não está dito que o impedimento veio em razão de preconceito. Mas, isto está implícito em razão do art. 1º. Outras condutas: negar acesso a emprego em empresa privada. Depois, negar acesso ou atendimento a pessoa em estabelecimento comercial. A origem da negação em se atender é derivada da questão preconceituosa. Há norma similar no CDC, que impede a recusa de atendimento a consumidores. Também outra conduta é o impedimento a acesso de estabelecimento de ensino.

Na jurisprudência era comum, p. ex., anúncio de emprego que dava preferência por contratação de brancos (Idade de x a y, preferencialmente branco). Nesses casos, o preconceito é óbvio. Se no anúncio não veio escrito de forma expressa, é mais difícil a prova do preconceito. Temos uma série de condutas e comportamentos que descrevem atos discriminatórios. Todas essas condutas têm lastro, são complementadas pelo art. 1º, que fala da origem do preconceito. O art. 14 tem uma situação interessante já vista na jurisprudência: impedir ou obstar por qualquer meio ou forma o casamento ou convivência. Na jurisprudência, já houve caso de mãe que impediu a filha de namorar com um rapaz por preconceito racial. É um caso um pouco diferente, pois é incomum.

Há nos arts. 2º a 14 comportamentos que demonstram preconceito. Isto é diferente do art. 140, §3º do CP que é a injúria racial. Temos aqui uma diferenciação importante. Todos os crimes da lei especial falam em não deixar a pessoa entrar em determinado lugar, restringir acessos, etc.. São todos comportamentos que expressam racismo e preconceito, concretizando-se no fato de impedir o acesso à escola, clube, hotel, casamento, etc.. Já na injúria racial, ofende-se a honra subjetiva da pessoa. Uma coisa é impedir que pessoa de determinada raça entre no estabelecimento. Outra, é usar o racismo para um xingamento. Vemos muitos exemplos na jurisprudência que fazem esta diferenciação. Se a pessoa simplesmente fala, há injúria. Mas, se em razão de ser negro ou índio, p. ex., alguém impedir o acesso da pessoa, haverá crime da lei especial. O racismo não abrange todo e qualquer comportamento discriminatório. O racismo precisa ser externalizado por meio de uma das condutas tipificadas. A injúria racial não é inafiançável e imprescritível.

Mas, o art. 20 da Lei n. 7.716 se aproxima muito do que é a injúria racial. O dispositivo fala em praticar ou incitar o preconceito de raça ou cor. Isto não é possível de englobar o xingamento? Sim, é possível. Então, fica mais difícil separar a injúria do comportamento racista. Se não houvesse o art. 20 seria tudo mais fácil. E, se houver a denúncia por comportamento racista (art. 20) e o tribunal entender que é caso de injúria racial, haverá problemas processuais.

Agora, analisaremos um caso concreto. O HC n. 82.424-2/RS. É um acórdão muito grande. O cidadão publicou dois livros que falavam muito mal dos judeus, atribuindo a eles todos os

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males do mundo e dizendo que o holocausto jamais existiu. A discussão chegou até o STF e algumas questões merecem ser destacadas. Em primeiro lugar, vale notar que o julgamento abordou o conceito de racismo. A CF fala que o racismo é um crime imprescritível. Se entendo que a discriminação contra judeus é racismo (“raça judaica”), o crime seria imprescritível. No caso concreto, se fosse prescritível, já teria decorrido o tempo da prescrição. Voltamos ao conceito inicial: conjunto de características que diferenciam as pessoas de acordo com sua genética. Veio essa discussão no STF, justamente no sentido de que: será possível falar em raça ou critérios para separar as pessoas? O julgado tem parecer de Celso Laffer que fala claramente que como descobrimento do genoma, não é mais possível falar em raças de seres humanos. Há características diferentes entre si, mas não raça. Isto, por si só, já foi objeto de muita discussão. Será que existe uma raça judaica? O termo racismo é bastante específico. Outra discussão que houve na decisão é o conflito entre liberdade de expressão e a proibição do racismo/preconceito. É uma discussão sem fim. Não é possível afirmar com certeza o que prevalece. Até que ponto tenho a liberdade de me expressar de qualquer forma? Na decisão, se entendeu que a liberdade de expressão tem limites e não pode prevalecer em relação à dignidade humana. Isto não foi unânime, mas também é muito tênue.

Duas questões ainda interessantes: é possível incitar o racismo ou o preconceito por meio de um livro? Nélson Hungria já dizia que o crime de incitação (art. 286 – Incitar publicamente a prática de crime) pode ser praticado com simples incitação, sem que o crime venha de fato a ser praticado pelas outras pessoas. Isto também foi discutido no STF. Um dos argumentos interessantes para considerar que não se pode praticar a incitação por meio de livros é que o brasileiro não lê muito. Não foi o argumento que prevaleceu. O livro é algo de pouco acesso. Então, não dá para imaginar que por meio do livro toda uma população será incitada. A discussão foi em torno do potencial que o livro tem para conduzir à incitação. Será que o livro pode, de fato, incentivar ou incitar o racismo em outras pessoas?

E a imprescritibilidade? O que a justificaria? Isto também está no parecer de Miguel Reale Jr. é que crimes de racismo ou contra a humanidade não devem ser apagados da memória. Isto vai contra todas as teorias de ressocialização. Se é necessário sempre se manter presente a lembrança, a memória desses fatos, sustentou-se a imprescritibilidade. Talvez não haja exemplo melhor do que a imprescritibilidade do antissemitismo. A decisão do STF foi no sentido de que há sim imprescritibilidade e há também incitação no livro antissemita.

Nesta matéria, é preciso mencionar as discussões que há no Congresso sobre o PL n. 122 da Câmara que propõe trazer para a lei a criminalização do preconceito por uma série de outros fatores além dos 5 do art. 1º, tais como a origem (não mais procedência nacional), condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero. Esta é uma grande discussão. Não são todos que concordam com a inclusão do preconceito sexual. Então, o PL acaba sendo identificado como aquele que vai criminalizar a “homofobia”. No art. 8º também seria inserido um parágrafo único que criminalizaria a restrição da manifestação de afetividade das pessoas incluídas no art. 1º da lei, desde que tais atitudes sejam permitidas para outros. Ou seja, se um casal heterossexual pode se manifestar, o casal homossexual também poderia. O PL também prevê a modificação da injúria, para incluir os elementos referentes à orientação sexual. Na origem, a lei previa apenas o racismo. Foi alargada para questão social, de etnia, procedência nacional, etc..

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Crimes do ECA (Lei n. 8.069/90)

Seu objetivo é proteger a criança e o adolescente. Os crimes são elencados a partir do art. 228 do ECA. O art. 227 da CF fala do dever de proteção à criança e ao adolescente. Nos §§ desse artigo há outras disposições que entram em minúcias no que diz respeito à proteção de crianças e adolescentes. Mas, só o caput do art. 227 já é suficiente para identificarmos a importância que a CF atribuiu a essa proteção. Falar na proteção de criança e adolescente de uma forma ampla já é suficiente, já que os tipos penais em si se preocuparão em proteger bens jurídicos específicos (liberdade, integridade física, liberdade sexual). Não analisaremos os atos infracionais. Analisaremos os crimes do ECA. Crianças são todas as pessoas com até 12 anos completos (ou 11 incompletos). Da data em que faz 12 anos para frente, é adolescente, chegando esta fase até os 18. Ou seja, o conceito de criança e adolescente é bem definido. O ECA nos seus arts. 225 a 227, há disposições genéricas e inúteis, como, p. ex., dizer que a ação penal é pública incondicionada. O art. 226 fala que aplicam-se ao crimes as disposições pertinente do CP e do CPP, subsidiariamente. Mas, por óbvio, se o crime é contra criança e adolescente, não será aplicável a causa de aumento prevista no art. 61 do CP (crimes praticados contra vítima menor e 18 anos), sob pena de bis in idem. Então, exclui-se a aplicação da agravante.

Passando para a análise dos tipos penais, há alguns grupos de tipos dentro do ECA. Em primeiro lugar, os arts. 228 e 229 dizem respeito muito claramente ao direito à saúde da criança. São tipos muito parecidos. Ambos são crimes próprios, só podendo ser praticados pelo encarregado de serviço ou dirigente de estabelecimento de atenção à saúde da gestante (art. 228) ou médico, enfermeiro ou o dirigente de estabelecimento (art. 229). São pessoas que têm o dever de documentar as informações sobre o nascimento, identificar o neonato e sua mãe, informar esta a respeito de tudo o que foi feito, etc.. Enfim, é o dever de registrar tudo para fins de conhecimento. Isto deve ficar registrado por 18 anos. até a pessoa completar 18 anos as informações devem ser guardadas. Ambos os tipos fazem referência ao art. 10 do ECA, que trata dos hospitais e demais estabelecimentos de atenção à saúde de gestantes, falando dos registros necessários. Essas são normas que devem ser respeitadas e obedecidas pelos hospitais e demais estabelecimentos de saúde da gestante. É o direito penal vindo trazer sanção para aquelas condutas determinadas. Só a norma do art. 10 já seria suficiente. A sanção vem para tentar dotar a outra norma de maior eficácia.

Além disso, temos um outro conjunto de tipos penais que estão relacionados à questão da liberdade do menor. Muito diretamente relacionados à apuração e ao procedimento dos atos infracionais. E aí, identificamos que para entender os tipos penais, precisamos minimamente entender a questão dos atos infracionais. Estamos num momento de grande discussão a respeito destes. Quando falamos em ato infracional, estamos falando condutas previstas na legislação penal como crimes ou contravenções e praticados por crianças e adolescentes. Há diferenciação no tratamento que é dado a crianças e adolescentes, no caso de prática de ato infracional. Só adolescentes podem cumprir medida sócio educativa. As crianças que eventualmente pratiquem ato infracional não podem sofrer sanção por medida sócio educativa. Há outras medidas sócio educativas menos restritivas do que a internação (que priva o adolescente da própria liberdade). Há providências descritas no art. 101 do ECA que podem ser aplicadas para qualquer criança ou adolescente que pratique ato infracional. A

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diferença em relação ao tratamento do adolescente é que este, além dessas medidas, pode sofrer outras, que são as medidas sócio educativas descritas no art. 112 do ECA. Ato infracional pode ser praticado tanto por criança quanto por adolescente. Medida sócio educativa só pode ser imposta a adolescente. Os tipos penais do art. 230 a 235 dizem respeito aos atos infracionais. Quando se fala em privar a criança de liberdade, procedendo à sua apreensão, diz respeito à restrição momentânea da liberdade da criança ou adolescente “pega em flagrante”, mas quando não estava praticando qualquer ato infracional; o mesmo para quem faz uma “revista” na criança ou a conduz para uma delegacia. Não é caso de restrição de liberdade em tempo grande. É a restrição da liberdade sem autorização da autoridade momentaneamente. É algo transitório é rápido, não se confundindo com sequestro ou cárcere privado. O art. 231 traz o crime de deixar de comunicar a família da criança ou adolescente apreendido ou a pessoa por ele indicada. É a concretização na legislação estatutária do direito assegurado na CF para qualquer um.

O art. 232 está neste contexto para os casos de apreensão do adolescente que é exposto de forma vexatória. Um bom exemplo de situação vexatória é o da escola particular que chama em sala a criança para comunicá-la que seus pais estão em dívida, sendo exposta ao constrangimento frente aos demais. Talvez esta não tenha sido a situação para a qual o dispositivo foi pensado, mas ela se enquadra plenamente. O art. 233 foi revogado pela lei de tortura. Já o art. 234 traz nova situação que se encontra no contexto da apreensão e apuração de um ato infracional. A autoridade competente que identifica ilegalidade na apreensão precisa promover imediatamente sua liberação. Pode ser qualquer autoridade. É claro, o promotor em justiça não pode colocar em liberdade. Mas, tendo conhecimento da situação ilegal, ele tem o dever de comunicar o juiz. Conselho tutelar é um órgão previsto no ECA formado por representantes da sociedade e que tem por objetivo supervisionar o tratamento da criança ou adolescente. Quanto maior a cidade, mais conselhos ela possui. O conselho é composto por promotor de justiça, autoridades em geral e representantes da sociedade eleitos. O membro do conselho tutelar também é considerado autoridade para esses fins do art. 234 do ECA. O art. 235 traz os prazos das medidas sócio educativas. Se os prazos forem desrespeitados, a autoridade responde pela conduta. P. ex., antes da sentença, a internação pode ser determinada por prazo máximo de 45 dias (art. 108 do ECA). Já no art. 121, § 3º, há a previsão de que o prazo máximo da internação é de 3 anos. só o adolescente e não a criança pode ser privado de liberdade. O art. 121, § 5º fala na liberação compulsória aos 21 anos de idade, ainda que não tenha cumprido o prazo de 3 anos.

O art. 236 (impedir ou embaraçar a ação de autoridade prevista na lei) também crime de menor potencial ofensivo. Ou seja, há proteção penal, mas mitigada. Todos os tipos admitem a transação penal, com aplicação dos juizados especiais criminais. Os arts. 237, 238 e 239 tratam das condutas de levar criança para o exterior sem autorização, levar criança para lar substitutivo contra as normas legais (“dar para adoção”). O art. 238 é aquela situação da mulher grávida que, sem condições de cuidar da criança, promete entregar o bebê para outrem, mediante paga ou promessa de recompensa. No parágrafo único há a conduta daquela pessoa que oferece a paga ou recompensa. No caso do art. 239, não precisam estar presentes as duas circunstâncias (“com inobservância das formalidades legais” ou “com o fito de obter lucro”). Mas, se ambas estiverem presentes, certamente haverá o crime. O tipo se aplica àqueles casos em que o pai ou alguém que subtrai a criança quer fugir com esta do país.

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Há também os tipos de pornografia ou prática, descritos a partir do art. 240. A grande maioria das condutas incriminadas que costumam ser chamados popularmente de “pedofilia” ou que envolvam a proteção do desenvolvimento sexual da criança ou adolescente. O art. 240 é complementado pelo art. 241-E, que define o conceito de cena de sexo explícito ou pornográfica. Crianças e adolescentes não podem participar de filmes, filmagens, teatros ou qualquer outro tipo de atuação que envolvam atos sexuais. Não só o ator que contracena, mas também quem filma e dirige respondem pela prática. Isso não significa que no teatro não possa haver cenas de sexo e crianças, na mesma peça. O que não pode é colocar a criança na mesma cena. O que se evita é expor a criança a esse tipo de contato.

O art. 241 trata da venda ou exposição à venda produto do crime do art. 240 (fotografia ou filme pornográfico envolvendo criança). Já o art. 241-A trata das condutas de oferecimento, troca, disponibilização ou distribuição, por qualquer meio, inclusive informático, de vídeo, fotografia, foto, etc., envolvendo cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente. No § 1º há a conduta do administrador do provedor que, uma vez notificado da prática do crime, não tira a imagem ou vídeo do ar. O art. 241-B traz grave perigo em sua interpretação. A pessoa tem seu e-mail. Nele, recebe de tudo. Recebe uma foto de cena de relação sexual com adolescente. Ainda que a pessoa não tenha aberto a foto, há crime? Não, pois falta o dolo. Mas, e se abriu e não apagou? Pelo tipo penal, é possível interpretar que até isso será crime. Está armazenado, está no computador. Mas, certamente não é esse o objetivo da norma. Mas, não parece ser essa a intenção da incriminação.

Faltaram alguns dispositivos para terminarmos a lei n. 8.069/90. Trataremos do art. 242: vender ou fornecer a adolescente arma, munição ou explosivo. Então, se houver venda ou fornecimento ainda que gratuito de arma, munição ou explosivo, haverá a incidência da incriminação. No art. 244, há a previsão em relação a fogo de artifício e estampidos. A lógica é a mesma. Mas, se pensarmos em festas juninas, é muito comum recordarmos de crianças com biribinhas e pequenos fogos do gênero, que, por não causarem qualquer dano, são expressamente excluídos pela lei. É um dispositivo mais leve. Arma, munição ou explosivo são coisas que, certamente, podem causar dano físico quando utilizado. Já fogos de artifício ou estampido são coisas que podem causar dano físico, SE mal utilizados. Voltando ao 243, temos a situação de produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica. Um dos exemplos é o álcool. Mas, não só ele: o dispositivo trata de qualquer dependência que, se mal utilizada, pode causar dependência. A crítica da doutrina é que, muitas substância que em geral têm pouquíssima contra indicação, também podem ser incluídos dentre as substâncias que podem causar dano físico ou psíquico (p. ex., remédios). Por isso, a grande abrangência do tipo é criticável.

O art. 244-A, talvez estivesse melhor localizado próximo aos crimes contra a dignidade sexual, e trata da conduta de submeter criança ou adolescente à prostituição ou à exploração sexual. . nas mesmas penas incorre o proprietário, gerente ou o responsável pelo local em que se verifique a submissão de criança ou adolescente às práticas de prostituição. Em geral, prostituição se refere a mais de uma relação sexual mediante pagamento. Pressupõe, portanto, prática minimamente reiterada desse comportamento. Então, uma única relação sexual, para fins de direito penal, não é considerada prostituição. Entretanto, a lei fala de exploração da prostituição. Então, muitos autores entendem que, por isso, não é necessária a

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reiteração. A situação é difícil de ser equalizada. A prostituição precisa ser reiterada ou não? Há a discussão. Prevalece o entendimento de que, aqui, não precisa ser reiterada. Se o agente expõe, coloca ou agencia a criança para a prática da prostituição (você vai cobrar x, se dirigir ao local y, etc.). Ainda que especificamente em relação à prostituição, doutrina e jurisprudência exijam reiteração.

Por fim, a corrupção de menores (art. 244-B). Consiste em corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 anos, praticando com ele infração penal ou induzindo-o a praticá-lo. esse delito foi inserido em 2009 no ECA. O adulto responde por crime próprio e autônomo, ainda que o menor estivesse praticando conjuntamente. Em geral, também responderá pelo crime de corrupção de menores. Já o menor, responderá apenas pelo ato infracional. Há também o crime de corrupção de menores no sentido de corromper sexualmente o menor de 18 anos. esse é um crime contra a dignidade sexual e está no art. 218 do CP (induzir menor de 14 a satisfazer a lascívia de outrem). É um caso raro, em que dois crimes na legislação penal têm o mesmo nomen iuris, mas não são idênticos.

Falaremos hoje da lei das contravenções penais (Decreto-Lei n. 3.688/41). Foi criado concomitantemente ao CP de 1940. Na verdade, é quase que um complemento a parte especial do CP. A lei das contravenções penais é discutida na doutrina a respeito de sua importância. A grande verdade é que são muito poucas as contravenções que costumam ser aplicadas. Muitas contravenções já foram revogadas. Outras, simplesmente não fazem mais sentido em relação a sua aplicação. Outras tantas se discute inclusive a sua constitucionalidade. No entanto, é uma matéria importante. Em primeiro lugar, porque embora boa parte não tenha aplicação prática, outra tem. Depois, há toda uma sistemática especial em relação às contravenções penais. Em alguns pontos, inclusive, há grande diferenciação. Ouvimos muito falar que o direito penal trata dos crimes e das contravenções penais. Mas, o que são contravenções? Crimes e contravenções são comportamentos ontologicamente iguais. Não conseguimos fazer uma diferenciação essencial entre ambos. Podemos dizer com acerto que as contravenções são infrações mais leves. Elas têm uma carga de ofensa ao bem jurídico menos intensa do que os crimes. Existe uma definição célebre do Prof. Manoel Pedro Pimentel que diz que a contravenção é um crime anão, pequeno. Parece jocosa a definição, mas talvez seja até hoje a melhor. Elas são infrações penais muito pouco expressivas no que diz respeito à lesão ao bem jurídico. não se confundem com infrações penais de menor potencial ofensivo. Quando a Lei n. 9.099/95 falou dessas infrações, ela incluiu no seu conteúdo tanto as contravenções penais quanto os crimes com pena máxima de até um ano. depois, isso se estendeu para dois anos. ou seja, elas fazem parte do gênero infrações penais de menor potencial ofensivo, mas não há identidade.

Qual é a relevância? Onde está a diferença que o tratamento jurídico dispensa? Este tratamento jurídico diferenciado acabou sendo mitigado, superado pela própria lei dos JECrim. Ela trouxe uma série de implicações processuais e penais para todos os crimes de menor potencial ofensivo. Então, de modo geral, existe um procedimento diferenciado (procedimento sumaríssimo), há também a impossibilidade de se prender em flagrante, a exigência de se fazer termo circunstanciado quando da prática de infração penal, etc. Ou seja, há uma série de disposições que também se referem a elas. A lei das contravenções possui

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uma parte geral. Ater-nos-emos a alguns dispositivos da parte geral que imprimem tratamento diferenciado em relação aos delitos.

O art. 2º da lei das contravenções fala do princípio da territorialidade, já estudado no CP. Como regra geral, a lei brasileira se aplica aos crimes praticados no território nacional, mas o art. 7º do CP prevê hipóteses de extraterritorialidade. Existem ali alguns princípios (defesa, proteção do bem jurídico, etc.), que autorizam a aplicação da lei penal brasileira a fatos praticados fora do pais. Em relação às contravenções penais, tais exceções não existem. A lei penal brasileira, portanto, só se aplica às contravenções praticadas no território nacional. A lei das contravenções só se aplica às infrações praticadas no Brasil. O art. 3º é objeto de muita discussão: para a existência da contravenção, basta a ação ou omissão voluntária, devendo ter em conta dolo ou culpa se a lei fizer depender de um deles algum efeito jurídico. O que a lei parece dizer? Parece indicar que bastaria o comportamento voluntário, ou seja, a ação, enquanto ato voluntário. Tanto que, quanto o ato não é voluntário, sequer temos ação. Toda ação é ato voluntário. O que a lei fala é que não precisa haver dolo e nem culpa. Uma interpretação que se faz deste dispositivo é que não teria havido a incorporação desta lei do finalismo. Ou seja, não precisaria haver a finalidade na ação. Bastaria a relação de causalidade. Seria, portanto, uma norma adequada mais ao causalismo do que ao finalismo. Alguns autores sustentam que esse artigo seria mais consentâneo ao causalismo. O que acontece quando a lei fala que não precisa haver dolo ou culpa? Se contravenção penal é modalidade de infração penal, tenho que ter uma conduta típica, antijurídica e culpável. A questão do dolo e da culpa na diferença entre o causalismo e o finalismo é que no causalismo, dolo e culpa estão na culpabilidade. De qualquer forma, seja no causalismo, seja no finalismo, há a exigência do elemento subjetivo. Então, esta leitura de que o art. 3º seria uma regra mais adequada à teoria causalista, não faz sentido. O fato é que, o direito penal hoje e já há algum tempo, sempre faz depender a existência do crime do dolo ou culpa. Pela própria questão do princípio da culpabilidade, não há crime sem dolo ou culpa. Se for um caso fortuito ou de força maior, não tenho crime. Embora haja essa interpretação de que o art. 3º estaria inserido no contexto causalista, é preciso considerar a necessidade de dolo e culpa. Assim como os crimes, as contravenções também se caracterizam como fatos típicos, antijurídicos e culpáveis.

Já no art. 4º da lei, há a previsão de que a tentativa não é punível. É uma opção de política criminal. E muito comum encontramos nos manuais a afirmação de que não há tentativa de contravenção penal. Ontologicamente, existe tentativa. Mas, a lei não fala que não há tentativa. Ela diz, apenas, que não se pune a tentativa. Até quando estudamos tentativa e iter criminis, nos manuais de direito penal, há crimes que não admitem tentativa. Muitos incluem aí as contravenções, sem maiores explicações. É preciso dizer que, embora seja naturalisticamente possível, a contravenção não é punível. Quantos às penas, temos a prisão simples e multa. Prisão simples é uma pena restritiva de liberdade muito mais branda do que a reclusão ou detenção. É cumprida apenas em regime aberto ou semiaberto. A grande verdade é que é dificílimo encontrarmos condenações à pena de prisão simples pela prática de contravenção. Se isto já era raro antes da lei n. 9.099, após ela, se tornou raríssimo, já que a possibilidade de transação penal é grande. Além disso, é muito mais comum a condenação a pena de multa. Outra diferença em relação aos crimes diz respeito à reincidência. A reincidência opera-se quando o agente seja condenado por contravenção, depois de já ter sido condenada, no Brasil ou no estrangeiro, pela prática de crime, ou no Brasil, pela prática de

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contravenção. A pessoa, para ser reincidente em crime, precisa ter sido condenada anteriormente por crime. Se ela pratica antes a contravenção e depois o crime, não é reincidente. Nesse sentido, a lei das contravenções é mais rígida. O prazo de 5 anos poderia ser aplicado por analogia do CP.

O art. 8º fala do erro (desconhecimento da lei ou da ilicitude). Ele diz que, em primeiro lugar, se fala em erro de direito. No caso de ignorância ou de errada compreensão da lei, quando escusáveis, a pena pode deixar de ser aplicada. Quando falamos em errada compreensão, é fácil a identidade com erro de proibição. Não é ignorância acerca da lei, é ignorância acerca da ilicitude do comportamento. No que diz respeito a errada compreensão da lei, falamos basicamente de erro de proibição. Mas, na verdade, essa é uma interpretação talvez adaptada para o nosso ordenamento jurídico da regra geral de que ninguém pode alegar a ignorância da lei. É uma interpretação adaptada para a própria regra do CP que fala das atenuantes da pena e prevê como atenuante o desconhecimento da lei. Há também o art. 21 do CP que fala do erro de proibição. Quando se fala em ignorância da lei, não é caso de absolvição. Seria caso de perdão judicial. Mas, aí estaríamos com uma situação paradoxal dentro do próprio ordenamento: o erro de proibição acarreta a absolvição, pois exclui a culpabilidade e, consequentemente, não temos crime. O erro de proibição é algo mais sofisticado do que a ignorância em relação a lei e, aqui, ela causa apenas o perdão judicial. Ou seja, a pessoa é condenada, mas apenas a pena deixa de ser aplicada. Qual a interpretação que se dá para isso, a fim de harmonizar? Se houver erro de proibição (erro quanto à compreensão da lei, neste caso), será caso de absolvição. Agora, se houver erro ou desconhecimento da lei, teremos uma situação um pouco mais complicada. Para algumas pessoas, o desconhecimento da lei implica perdão judicial. Para outros, esta norma estaria em desacordo com todo o ordenamento jurídico, pois seria impossível desconsiderar a regra geral no sentido de que a ninguém é facultado alegar o desconhecimento da lei. Mas, o melhor é entender que erro de proibição dá azo a absolvição. Agora, desconhecimento da lei é caso de perdão judicial. Isto pode parecer um pouco forçado, mas é a leitura que parece atender melhor à norma do art. 8º. O art. 9º está superado.

O art. 10 fala que a duração da pena não pode ser superior a 5 anos, assim como a de prisão, pelo CP, não pode ser superior a 30. Pelo art. 13, há a previsão de medida de segurança para as contravenções por prazo mínimo de 6 meses. Pode haver a conversão da pena de prisão simples por restritivas de direitos. Analisando as contravenções dissemos que muitas são inaplicáveis. Mas, muitas são até atos preparatórios para a prática de outros crimes. No art. 38, temos a provocação abusiva de fumaça, vapor ou gás que possa ofender alguém. O art. 42, prevê a perturbação do trabalho ou sossego alheio. Jogo do bicho como modalidade de jogo de azar talvez seja a contravenção mais famosa. Jogos de azar são aqueles em que ganhar ou perder depende da sorte. A grande contradição é que o próprio Estado explora jogos de azar. A prática de apostas em cavalos é criminalizada apenas se praticada fora do Jóquei. A grande maioria delas poderia ser rebaixada a simples ilícitos administrativo.

Atividade no Moodle: 24, 25 e 26 de Maio. Haverá um questionário que pode ser respondido a qualquer momento. Há um tempo para fazer, e uma tentativa só. Terminando, envia-se o questionário.

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Introdução à legislação especial. O objeto do curso é o estudo da legislação penal especial, mas apenas de algumas leis penais especiais. Há inúmeras criminalizações fora do Código. Antes de analisarmos estas leis especificamente, é importante analisarmos as características dessas leis que não se encontram dentro de um Código. Os códigos têm algumas características importantes e que conferem uma legitimidade e importância diferenciada à legislação de maneira geral. A ideia de codificação, união de todo o ordenamento num único corpo legislativo, não é recente. É ideia encontrada desde Roma, com a Lei das XII Tábuas. O Código de Hamurabi também serviu como uma forma de agrupamento de normas. A codificação facilita o conhecimento da norma. Se toda a legislação está dentro do código penal, ele pode até ser enorme. Mas, sei que se destrincha-lo do começo ao fim, conhecerei todas as normas. Então, esta não é característica recente. Mas, a ideia de código vai além da unidade da legislação. Então, embora o CP seja caracterizado por todos os textos no mesmo corpo, ele tem outras características: p. ex., a sistematização a matéria, que é idealizada por aqueles que propõe a codificação. Nosso CP, p. ex., tem regras sobre a aplicação da lei penal, depois a teoria do crime, por fim a teoria da pena e a parte especial, subdividida de acordo com os bens jurídicos (esse é o principal critério de diferenciação). Essa ideia de sistematização é um valor importante para os códigos. Isto ajuda a compreensão e a interpretação das normas.

Deve existir, e geralmente existe, um liame, uma ligação entre as partes do CP, de modo a favorecer a sua compreensão. Também se espera que haja uma unidade de forma, de linguagem utilizada. sendo as mesmas pessoas que o produziram e no mesmo momento, a unidade formal também acaba aparecendo e se fixando, como no caso das questões de estilo. Essas características, portanto, como coerência, unidade e sistematicidade, deveriam compor o modelo ideal de legislação iluminista. O próprio domínio prático e conhecimento do direito ficariam muito mais facilitados por essas características. Nesse sentido, poderíamos dizer que o direito penal deveria estar ou deve estar todo no código? A princípio, sim. Mas, se fosse assim, não haveria a nossa disciplina. O direito penal acaba não estando todo presente dentro do código. Mas, existem e acabam sendo produzidas leis específicas para tratar de temas específicos, que dizem respeito à matéria penal. essa relativização da centralidade ou da exclusividade do código é prevista em nosso ordenamento. Não é, propriamente, um desvio. Há o art. 12 do CP que diz que suas regras da parte geral se aplicam não só aos crimes nele previstos, mas também a todos que venham a ser criados por leis especiais. essa é uma regra geral de interpretação. Geralmente, lidamos com ela muito superficialmente. Mas, ela deixa muito claro, já no próprio código, que ele não é a única fonte do direito penal. ele já nasce admitindo a existência de outras leis que venham a disciplinar a matéria.

Nesse sentido, nossa codificação, embora tenha tendência centralizadora, é considerada uma codificação fraca ou débil. Nesse sentido, a codificação já não nasce com a pretensão de exaurir toda a legislação penal. no caso específico da nossa legislação, já tendo essa previsão de que leis especiais podem vir a surgir, juntando a essa característica, há outras que não são exclusividade da legislação brasileira. São características da modernidade que acabam se refletindo na legislação penal. Aí, juntamos a permissividade de se produzirem leis especiais com essas características da sociedade que fortalecem essa tendência a se produzir leis especiais. Uma delas, é a expansão das funções do Estado. Cada vez mais, o Estado assume novas funções que antes não pertenciam a ele. Há novas áreas de relações sociais e econômicas numa sociedade que se faz cada vez mais complexa. Isso cria a necessidade de

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protegermos os bens jurídicos que antes não existiam. Se fizermos uma comparação de nossa sociedade com outra de 50 ou 100 anos atrás, perceberemos que era menos intensa a discussão, p. ex., em torno de bens jurídicos Transindividuais. A globalização, nesse contexto de complexidade, também está aí inserida. É uma realidade a admissão do direito penal para resolver conflitos da sociedade, às vezes com prejuízo aos princípios da intervenção mínima e da ultima ratio. Esses fatores todos ajudam ou corroboram o estímulo para a produção de legislação penal especial fora do código, a fim de tratar desses novos bens, valores e interesses que vão surgindo na sociedade ao longo do tempo. Essa é uma característica mundial. Cada vez mais, identificamos novas leis penais sendo produzidas.

Aos poucos, o fenômeno que começa a ser delineado é o CP como disciplina residual. A ideia do CP como centralidade do ordenamento acaba sendo mudada. Isso é a administrativização do direito penal ou bagatelização do direito penal. os fenômenos não são sinônimos. Em relação ao primeiro, o que se percebe é que o direito penal vem sendo cada vez mais utilizado para punir infrações administrativas. Começam a ser criados tipos penais para punir as próprias infrações administrativas. Temos, p. ex., algumas das criminalizações do ECA que envolve transportar criança e adolescente para fora do país sem as formalidades legais. Ou seja, o desrespeito ás formalidades administrativas dará origem ao crime. Tenho uma norma administrativa que acaba se valendo do direito penal para ter uma sanção criminal em caso de descumprimento. Isso não é exceção no direito penal mais recente. Na legislação penal ambiental isto é ainda mais evidente: há uma norma administrativa que leva a isso. A ideia são as normas penais tutelando questões administrativas. Quanto à bagatelização, temos a tutela penal de situações pouco relevantes. condutas não tão ofensivas a ponto de justificar a intervenção penal. isso também é característica do crescimento desmedido do direito penal. outro fenômeno que observamos é a desmaterialização dos bens jurídicos. Se em 1940 poderíamos identificar bens jurídicos muito bem identificáveis materialmente falando (vida, integridade física, liberdade, etc.), hoje, tenho crimes contra a ordem tributária, o sistema financeiro, o meio-ambiente, etc.. Ou seja, há uma desmaterialização, uma fluidez dos bens jurídicos. Essa é uma tendência da legislação atual.

O que isso traz de consequência para o ordenamento jurídico como um todo? Há uma proliferação de leis especiais, que geram algumas consequências muito claras. Em primeiro lugar, é possível falar numa mitigação do princípio da taxatividade, até porque os bens jurídicos são mais genéricos, e se tem por objetivo tutelar uma gama maior de condutas. É muito comum percebermos a vagueza das incriminações, que acabam sendo vagas demais. A ideia da taxatividade – o que é ilícito é descrito precisamente – é mitigada: os tipos penais estão cada vez menos claros na delimitação dos espaços de ilicitude. Há uma percepção empírica de que isto é mais fácil de acontecer. Isto não é uma regra, mas é uma tendência que se observa. Muitas vezes, a jurisprudência acaba sendo responsável por definir os limites do tipo penal e, certamente, não deveria ser assim. Outra característica é a ausência de sistematização a matéria. É claro, se tiver tudo dentro do código, será mais fácil para verificar sistematização e coerência, uma relação de dependência entre as normas. Fora do CP, como há uma lei para tratar de cada assunto, a probabilidade de perda de sistematização é também maior. Quando falamos em falta de sistematização, falamos também em falta de proporcionalidade. É claro, não é fácil colocar todas as normas dentro do CP. E, ainda assim, mesmo com tudo dentro do CP, não seria absolutamente certa a proporcionalidade. Em

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relação à estrutura da norma, vimos, p. ex., o crime de preconceito. Ele tem uma série de tipos penais que não têm expresso o elemento subjetivo (em razão de preconceito de raça, cor, etc.). ele está apenas no art. 1º. Mas, para ser compreendido o alcance do todos os outros tipos, é preciso fazermos uma leitura conjunta.

Ou seja, esta é uma técnica de redação própria desta lei, que não se verifica em outras. Não é questão de estar errado ou certo; mas, na medida em que isto destoa de toda a sistemática da legislação penal, isto dificulta a apreensão de seu correto significado. Essa ausência de sistematicidade também caracteriza a legislação fora do código. Isto implica também em favorecimento ao desconhecimento da lei. Se, uma das funções do código, é favorecer a publicidade das normas e seu conhecimento, a existência de inúmeras leis penais acaba prejudicando tais objetivos. Ninguém conhece todas as leis penais. Então, a presunção de que todos conhece as normas, neste sistema descodificado, isto fica muito mais problemático. Há implicações no princípio da proporcionalidade também. A presunção não cai por terra, mas a vulnerabilidade do indivíduo é recente. Isto fica visível também no trabalho dos editores de Código. Os melhores são os que fazem remissões a outras leis e trazem indicações de revogações tácitas. Isto é um reflexo de como a legislação está espalhada.

Falamos até das vantagens da centralidade do CP e as consequências da proliferação de leis penais. Isso é consequência da evolução dos valores sociais. Se fosse só ruim, só defeitos, poderíamos pensar: por que não acabar com essa legislação especial, colocando tudo no CP? Existem algumas importantes objeções à centralidade ou exclusividade do código. Ou seja, há argumentos importantes a favor da existência da legislação penal especial. O primeiro deles é a própria natureza fragmentária do direito penal. este é, por excelência, um direito fragmentário. Um dos princípios que o informam é o da intervenção mínima. Ele, por sua vez, contém a fragmentariedade do direito penal. isso significa que o direito penal não é feito para disciplinar toda uma matéria ou setor da vida humana, ao contrário do direito civil. Há uma disciplina global para tratar das matérias. Temos uma disciplina ampla da matéria. Essa premissa não é verdadeira para o direito penal. ele, justamente por tutelar apenas os bens jurídicos mais importantes contra as condutas mais agressivas a eles, ele tutela apenas alguns comportamentos. Esse é o sentido da fragmentariedade. Ele não cuida do patrimônio de maneira geral. Ele prevê apenas algumas condutas e comportamentos tirados da sociedade que refletem uma ofensa importante contra o patrimônio. Esse é o sentido de falar que o direito penal é fragmentário. Se ele não existe ou é concebido para cobrir toda uma matéria, será que precisaríamos ter isto num código? Ou, justamente, porque estou tratando de leis pontuais, também faz sentido a fragmentarizaçao? O direito penal, então, por sua natureza, poderia ir de encontro à centralidade do código.

Outra objeção que é feita é a seguinte: o código penal também sofre constantes modificações. Podemos dizer que a legislação teria de estar fora do código penal. O ideal, portanto, é que houvesse mais estabilidade. Mas, estar dentro do código não necessariamente é mais garantia de centralidade. Ainda que as modificações sejam feitas dentro do código, isso não necessariamente implicará em respeito à lógica interna e à proporcionalidade. Apenas para pegar como exemplo: em 98, houve duas leis que modificaram a lei dos crimes hediondos, uma delas incluindo dentre eles a falsificação de remédios (art. 273, do CP), prevendo, também, um aumento de pena. A pena da falsificação de remédios é, hoje, de 10 a 15 anos. se

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fizermos um cotejamento com outras infrações penais existentes no código penal, veremos a desproporcionalidade. Mesmo dentro do código penal, não há a garantia de que as modificações serão proporcionais e coerentes. Essa é outra objeção feita pelos críticos, por aqueles que entendem que o código não tem essa importância toda. Para essas pessoas, o fato de o código poder ser modificado já não garantiria mais esta centralidade e estabilidade. Há o exemplo dos crimes contra a dignidade sexual: surgem novos interesses, e não temos onde colocá-los. Então, começa a renumerar com letras: 216-A, 216-B, 216-C, etc.. Esta é uma saída legítima, mas, aos poucos, o CP que tem a função de organização, começa a virar colcha de retalhos. Então, falar em obrigatória sistematização dentro do código também é objeto de críticas.

Outra objeção à centralidade do código é a dinamicidade dos interesses que surgem na sociedade. o surgimento de novos interesses ocorre com grande velocidade em nossa sociedade. então, existem modificações que se fazem necessárias com o tempo. a legislação precisa ser modificação. Este é argumento forte para quem entende que deve ser estimulada a legislação penal especial. É a existência dos chamados “microssistemas”. Se tenho uma questão específica que precisa de tutela – p. ex., a manipulação genética, que era impensável em 1940 – foi elaborada uma lei que trata dessa questão, prevendo crimes. Esse é um exemplo de novos interesses que surgem ao longo do tempo, precisando ser disciplinados, sendo coerente esperar isso de uma lei especial. Outros exemplos são as questões ambientais e das drogas, que disciplinam a matéria de maneira geral (o que é meio-ambiente, quais são suas infrações administrativas e, por fim, de uma parte penal). argumenta-se que é muito mais proveitoso que a norma penal esteja nessa lei, e não no CP, até porque muitas dessas leis trazem definições que auxiliam na compreensão dos crimes. O mesmo para a lei de drogas, que trata da política nacional de drogas, do tratamento dos viciados e de normas processuais, além dos crimes.

Esse é o panorama que temos de nossa legislação, em relação às questões que surgem ou podem surgir. A matéria de análise seguida de leis pode parecer chata. Mas, inevitavelmente, fazemos a análise pormenorizada das leis. mas, é importante a visão do conjunto. Crimes como os do estatuto do idoso, em considerável parte, não precisavam nem existir. Isso causa muito mais irrazoabilidade no ordenamento. No caso do crime de preconceito, temos uma elaboração legislativa diferente da regra geral. Isto foge à ideia de sistematização. Existem situações em que talvez se justifique o direito penal fora do CP. Mas, não em todos os casos. Essas características que falamos de forma geral ou genérica é observada de forma corrente. São as características da legislação penal especial. Nosso objeto é a análise da legislação brasileira, e isto não é fenômeno nacional.

Para finalizarmos, há o princípio da reserva de código. De acordo com ele, toda a legislação penal deve estar dentro do código. Com todas essas objeções – que são válidas e importantes – é improvável que isto venha a acontecer. É improvável a totalização da legislação dentro do código. Mas, este é um caminho para que os valores iniciais do ordenamento – coerência, unidade, proporcionalidade – sejam garantidos. Não porque não possa haver coerência e proporcionalidade fora do código, mas, a experiência tem demonstrado que esses valores são mais dificilmente alcançados.

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Lavagem de Capitais (Lei n. 9.613/98) – Com recente alteração pela Lei n. 12.683/12

Essa é uma matéria considerada por muitos como extremamente complexa. É muito polêmica, e passaremos pelos pontos mais importantes. Qual a origem do termo “lavagem de dinheiro”? Existe a informação de que este termo surgiu na década de 20, quando Al Capone teria se utilizado de lavanderias para mascarar a ilicitude do dinheiro que recebeu por meio de outras atividades, como o tráfico de drogas. por meio de sua suposta atividade nas lavanderias, transformava o dinheiro ilícito em aparentemente lícito. Mas, lavagem tem uma razão de ser. O tipo penal da lavagem pressupõe tornar um bem ou valor obtido de forma ilícita num bem ou valor obtido de aparência lícita. O dinheiro obtido de um crime passa por um processo composto por três etapas, passando a ter a conotação de um bem ou valor obtido de forma lícita. Esse tipo penal pressupõe, necessariamente, a prática anterior, antecedente, de outro crime. Não existe lavagem de dinheiro num processo de transformação de um dinheiro obtido de forma lícita. Ou seja, pressupõe-se o crime antecedente. A lavagem, portanto, tem natureza acessória. É elementar ao tipo penal da lavagem o crime antecedente.

E, como funciona esse crime? Temos que entender que o crime de lavagem, por mais que possa representar lucro para o sujeito (o dinheiro ilícito é transformado em lícito, podendo ser utilizado), é importante entender que a lavagem não visa lucro específico. O principal é a dissimulação, ela é o cerne do tipo penal. e, este traduz três diferentes etapas, três diferentes acontecimentos. São três etapas. A primeira etapa é a de colocação. Depois, vem a ocultação. E, por fim, temos a integração. Na primeira etapa, há a introdução dos bens ou valores dentro do sistema econômico. Depois de praticado o crime antecedente, o produto desse crime antecedente é colocado dentro do sistema econômico, em geral através de depósitos ou pequenas compras de ativos, em geral de forma fracionada. Pode acontecer quando falamos de um envolvimento estrangeiro, de modo que o sujeito introduza os valores gradativamente em contas de paraísos fiscais. Mas, o fundamental é que nesta primeira etapa já a introdução de valores no sistema financeiro, em geral de forma fracionada, o que visa ocultar a origem ilícita, por certo. A segunda etapa é a de ocultação. É a etapa intermediária. O indivíduo que pratica a lavagem, para dificultar o rastreamento contábil, pode fazer transferência entre contas, tirando de um titular e colocando em outro. Ou seja, faz a movimentação dos bens ou valores, a fim de dificultar o descobrimento. O dinheiro pode ser colocado em contas em nome de laranjas, ou ser repassado para diversas outras contas. Enfim, a finalidade é dificultar o descobrimento da ilicitude. A terceira e última etapa para a configuração do tipo penal é a de integração. Os bens ou valores de origem ilícita são introduzidos na economia formal, como se sempre tivessem sido lícitos. Eles acabam se confundindo com os valores lícitos que nela giram. Geralmente, investe-se em empreendimentos. O que é importante sabermos?

A Lei n. 9613/98 estipulou em seu art. 1º os chamados crimes antecedentes. Havia rol taxativo dos crimes antecedentes. Ou seja, se praticasse determinado crime que não estivesse no rol taxativo, e depois procedesse às três etapas, não estaria praticando lavagem de dinheiro. esse rol não existe mais. Mas, antes, era o tráfico de drogas, os ilícitos contra a administração, crimes contra o sistema financeiro, crimes praticados por organização criminosa, crime de contrabando de armas ou munições. A lei de 2012 – que não teve vacatio legis – trouxe

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inúmeras alterações. As mais importantes são: i. a nova lei retirou o rol taxativo que estipulava quais eram os crimes antecedentes; não existe mais hoje o rol específico; o que isto significa? Todo crime praticado pode ser considerado como antecedente? Sim, e, ainda, a lei não fala em crime. Ela fala em infração penal. englobam-se, portanto, contravenções. Ou seja, pode haver lavagem se o antecedente é uma mera contravenção. Ou seja, a pena do antecedente pode ser infinitamente menor. Esta abertura é muito criticada. Essa é a primeira alteração mais relevante. A lavagem pode corresponder a três gerações dentro da criminologia. A primeira geração seria a previsão da Convenção de Viena de 88, que tinha como lavagem aquela que tem como antecedente, exclusivamente, o tráfico de drogas. Já a segunda geração englobaria o rol maior de crimes antecedentes, mas ainda assim um rol taxativo. Alemanha, Espanha e Portugal são exemplos de países que adotam esta geração. E o que seria a legislação de terceira geração? É aquela que tem rol aberto, de modo que todas as infrações penais são legítimas para serem consideradas antecedentes. É o nosso caso, da Itália, do México, dos EUA, da França, da Argentina, etc..

ii. a segunda grande alteração foi a ampliação do rol de pessoas físicas e jurídicas que são obrigadas a informar movimentações financeiras suspeitas, atípicas ao COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras). É órgão criado pela Lei n. 9.613, que faz o controle das movimentações financeiras. Ele é o órgão que recebe as informações. É o art. 9º da lei que trata das pessoas que devem informar o órgão sobre as movimentações financeiras atípicas suspeitas. O que ele faz quando recebe alguma informação desse tipo? Ele comunica as autoridades responsáveis para que instaurem os procedimentos cabíveis (art. 15).

No art. 2º da Lei de Lavagem, e isto também conduz a muitas discussões, há a previsão de que a ação penal pelo crime de lavagem independe da ação que tramita pelo crime antecedente. Ou seja, independe do processo e julgamento das infrações penais antecedentes, ainda que praticadas em outro país. o juiz responsável pelo processo e julgamento do crime de lavagem pode atrair para si a competência para julgar o crime antecedente. A regra é absurda, já que pode haver absolvição pelo crime antecedente. Então, o melhor é que o juiz, de fato, aguarde o fim da ação penal do crime antecedente. É o total oposto da regra válida para os crimes contra a ordem tributária. Há parágrafo no dispositivo falando que se houver extinção da punibilidade da ação penal antecedente, isto não impede que tramite a ação pela lavagem. O crime de lavagem pode incluir outros sujeitos além daquele que praticou o crime antecedente. Assim, a morte do agente do primeiro crime, p. ex., não impede a tramitação da ação penal pela lavagem. Há também o aspecto do art. 1º, §5º que prevê a redução da pena de 1/3 a 2/3 ou aplicação da pena ou a possibilidade de cumprimento da pena em regime semi-aberto ou aberto ou há também a possibilidade de deixar de aplicar a pena ou de aplicá-la e substituída por restritiva de direitos A QUALQUER TEMPO, se houver delação premiada. Ou seja, o sujeito pode até mesmo já estar cumprindo a pena em regime fechado e, se delatar, terá a progressão.

Quando é da competência da justiça federal? Em primeiro lugar, quando praticados quando o sistema ou a ordem econômico-financeira ou suas entidades autárquicas e empresas públicas (art. 2º), ou quando a infração penal antecedente for de competência da justiça federal. Outra questão bastante polêmica é a que envolve a irretroatividade da lei nova. Ela não é mais benéfica. Ela recrudesceu a matéria. Então, pode ser considerada novatio legis in pejus. Aí

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entra então a questão da irretroatividade. Existe uma corrente que entende que o crime de lavagem de dinheiro é instantâneo com efeitos permanentes. Existe outra corrente que o entende como permanente. Se entendermos que ele é permanente, poderíamos entender que seria aplicável a lei nova para os casos em que ele se iniciou na vigência da lei anterior, mas encerrou-se após a promulgação da nova lei. A Súmula 711 do STF afirma que a lei penal mais grave aplica-se ao crime permanente ou continuado se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência. Outro ponto polêmico é o do art. 17-D, que prevê o afastamento de servidor público pelo mero indiciamento. A crítica que se faz é que o servidor público meramente indiciado já pode ser afastado. Não é servidor público processado ou condenado, é servidor meramente indiciado. Outro ponto importante é o que trata o art. 4º: há a previsão da alienação antecipada: é a possibilidade de o judiciário leiloar os bens apreendidos antes mesmo da condenação definitiva. A finalidade é evitar a depreciação? E o que acontece se for condenado? Nada, vai para os cofres do Erário. Se for absolvido, os valores podem ser resgatados. A finalidade é político-criminal, sendo a intenção do legislador endurecer, fechar o cerco em relação à lavagem. É muito difícil identificar o crime de lavagem de dinheiro. Não é por outra razão que hoje o rol de pessoas obrigadas a prestar informações é maior e também maior o número de informações que devem ser prestadas.

No CP há o tipo de receptação. Qual a diferença entre a receptação e a lavagem? Na receptação, outro agente recebe o produto que sabe ser proveniente de crime. O receptador é sempre diferente do primeiro sujeito. Isto não necessariamente acontece na lavagem. No caso da lei anterior de lavagem, no art. 1º, quando falava da lavagem, deixava bem clara a questão do dolo direto (“sabe serem de origem ilícita”). A questão do dolo estava clara. Não por outra razão que a lei do ano passado retirou esse termo. Ela não está querendo deixar dúvida de dolo direto ou eventual. Ela quis dizer que todos que tenham participado de forma dolosa, entram na prática. Isto é um ponto que, desde o nascimento da lei, gerou muita polêmica. Os advogados que atuam em ações penais defendendo seus clientes processados por lavagem, ou advogados que prestam serviços jurídicos para pessoas que sabem praticar lavagem, devem prestar informações aos órgãos responsáveis?

A polêmica é que o art. 9º, XIV, diz que as pessoas físicas ou jurídicas que prestem serviços de qualquer natureza de consultoria ou assessoria, devem informar. Na época da lei anterior, era mais restrito o rol das pessoas físicas e jurídicas que deveriam informar o COAF a respeito das informações suspeitas. Eram mais bancos e corretoras. Essa nova lei abriu a possibilidade para profissionais liberais, inclusive, o que não surpreende que a Confederação Nacional dos Profissionais Liberais já tenha ingressado com ADI no STF para questionar o possível ferimento gerado pela lei ao exercício dos profissionais liberais. A Procuradoria-Geral da República já emitiu parecer dizendo que a lei não alcança todas as atividades da advocacia. A OAB já se manifestou nos sentido de que o advogado está protegido pelo sigilo profissional. É inerente à profissão do advogado guardar sigilo sobre o que o cliente faz. Exatamente por isso o indivíduo processado não tem o dever de produzir prova contra si. O interrogando não presta juramento de dizer a verdade. Se o indivíduo processado tem direito à autodefesa, o advogado tem de exercer a defesa técnica. Como o advogado vai exercer a defesa técnica de qualquer sujeito que possa vir a ser processado se o próprio advogado estiver no rol de pessoas que devem informar o COAF.

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Mas, o advogado não recebe o dinheiro que é produto do crime? O presidente do COAF deu recentemente entrevista dizendo que acredita que o advogado tem direito ao sigilo profissional, não sendo obrigado a delatar. Mas, ainda não tivemos tempo para discutir suficientemente sobre isso. A análise fria da lei nos demonstra que o advogado poderia ter esse dever, mas isto vai contra todos os princípios que invocamos, como a ampla defesa.