critica e retraducao poetica

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8/18/2019 Critica e Retraducao Poetica http://slidepdf.com/reader/full/critica-e-retraducao-poetica 1/218 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS Crítica e retradução poética Álvaro Faleiros Tese apresentada ao Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, como exigência para a obtenção do título de Livre-docente em Literatura Francesa. São Paulo 2010

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS

Crítica e retradução poética

Álvaro Faleiros

Tese apresentada ao Departamento deLetras Modernas da Faculdade de Filosofia,Letras e Ciências Humanas da Universidadede São Paulo, como exigência para aobtenção do título de Livre-docente emLiteratura Francesa.

São Paulo2010

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Para Rita

meu jardim

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Agradecimentos

Ao amigo Mário Laranjeira, pelo diálogo franco;

aos colegas da área de francês da USP, especialmente aos professores DivaDamato, Gilberto Pinheiro Passos, Philippe Willemart, Verónica GalíndezJorge e Cláudia Amigo Pino, com quem tenho compartilhado os cursos deliteratura francesa;

a Adriana Zavaglia e Alain Mouzat, interlocutores da área de tradução;

aos colegas Antônio Vicente Pietroforte, Roberto Zular, Viviana Bosi, IvanMarques e Maurício Vasconcelos, com quem compartilho o Labioratório dePoéticas Contemporâneas;

a meu amigo Paulo Iumatti, que me estimulou a organizar e desenvolver estareflexão;

a meus pais Eva e Vicente, pelo afeto e força;

a Rita, minha mulher, pela presença sempre.

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SUMÁRIO

Apresentação 05

1. Crítica e retradução poética 10

PARTE I - A RETRADUÇÃO POÉTICA COMO CRÍTICA 31

2. Retraduzir o Sineiro de Mallarmé 32

3. !"#"$%&"'"$"()(% %+ ,-)./0# ./)(-12%# (0 30%+) 4Il Pleut 5 (% 630$$"7)"/% 46

4. O vocabulário caribenho: dificuldades na tradução de 4Les fenêtres 5 de Apollinaire

58

5. Grimór "08 ) ./)(-190 70# $"+".%# (% 4:/0#)5 68

6. Retraduzir Um lance de dados:contrapontos à sinfonia haroldiana 79

7. Um Lance de dados , outras refrações: uma auto-retradução comoredimensionamento do espaço-gráfico

99

PARTE II - A CRÍTICA DA RETRADUÇÃO POÉTICA 112

8. Mário Laranjeira retradutor de Prévert 113

9. Tavares Bastos retradutor de Victor Hugo 123

10. Castro Alves tradutor de poetas franceses e retradutor de Lamartine 134

11. Pignatari tridutor de Mallarmé 160

12. Traduções e retraduções de " L'invitation au voyage " de Baudelaire 168

13. Maria Gabriela Llansol retradutora de Charles Baudelaire 18814. À guisa de conclusão: Por uma retradução em prosa das Flores do mal 201

Sobre os textos 208

Referências bibliográficas 210

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5

Apresentação

O desenvolvimento de minha pesquisa de doutorado levou-me à

redação do livro Traduzir o poema: operações textuais , a ser publicado, ainda

em 2010, pela Ateliê Editorial, com o apoio do Programa de Pós-Graduação

em Língua e Literatura Francesa ao qual pertenço.

No livro, desenvolvo, a partir do conceito de significância de MárioLaranjeira, uma série de reflexões em torno dos Caligramas de Apollinaire. A

originalidade do trabalho consiste, por um lado, na própria tradução

comentada desta obra, à época inédita em língua portuguesa 1 e, por outro,

no desenvolvimento de um método em que sistematizo a reflexão em torno

da tradução poética a partir de uma série de índices textuais, desde o mais

evidente ; o espaço gráfico ; até os aspectos mais fonossemânticos,

passando pelo metro, pela rima e pela textura fônica.

Ao organizar o volume, ao invés de reproduzir a tese, preferi

acrescentar, no final de cada capítulo, uma reflexão em que aponto para a

possibilidade da ampliação das leituras textuais por meio de uma

compreensão mais contextualizada do ato tradutório. Esta mudança de

paradigma levou-me a desenvolver, desde 2005, uma nova reflexão em torno

do conceito de retradução. Com efeito, desde o ano de 2006, quando

3-'$",-%" 0 )/."&0 4<%./)(-="/ 0 >"7%"/0 (% ?)$)/+@5A B%7C0produzindo uma

1

Publiquei um capítulo da tese como introdução aos Caligramas de Apollinaire. OrganizaçãoTradução e notas de Álvaro Faleiros. São Paulo, Ateliê Editorial, 2008.

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7

discussão de natureza cultural, diferencia-se dos dois primeiros, mas

levando, como os anteriores, a uma proposta de retradução.

D)#0 #%+%$C)7.% 0F0//% F0+ 4Q/"+orio: a tradução nos limites deR:/0#)S5A %+ ,-% ) )7N$"#% ()# 30##"'"$"()(%# (% ./)(-190 (% -+ .%/+0

culturalmente marcado leva a uma proposta de retradução; esse texto, mais

recente, já está vinculado às minhas pesquisas atuais sobre Mallarmé e

opera numa perspectiva contextual.

Essa mesma perspectiva orienta os dois trabalhos seguintes, que

%7F%//)+ ) 3/"+%"/) 3)/.%8 4<%./)(-="/Um lance de dados : contrapontos à

#"7O07") C)/0$(")7)5 % 4Um lance de dados, outras refrações: uma auto-

/%./)(-190 F0+0 /%("+%7#"07)+%7.0 (0 %#3)10 &/NO"F05L 6+'0# #0'/% 0

30%+) 4T+ $)7F% (% ()(0#5 (% ?)$$)/+@A %##%# %7#)"0# /%3/%#%7.)+ 0

estado atual de minha reflexão sobre a retradução como crítica, em que não

se trata de construir o projeto apenas a partir do texto mallarmaico, mas

correlacioná-lo com a tradução existente e o que ela implica como poética no

contexto brasileiro. No caso do último texto, trabalha-se com o limite do

retraduzir, fundindo tradução e F/E."F) 30/ +%"0 (0 F07F%".0 (% 4/%O/)1905L

Esses dois últimos textos, organizados de forma um pouco diferente são

parte integrante do livro Um lance de dados, refrações , de minha autoria, no

qual também está incluída uma retradução do poema de Mallarmé. A

publicação está prevista para o final de 2010, pela Ateliê Editorial.

Na segunda parte, desenvolvo a Crítica da retradução ; tema mais

recente em minhas investigações ; por meio de análises, a maioria ainda

inéditas, nas quais procuro compreender o fenômeno da retradução nos

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distintos contextos em que foram retraduzidos poetas franceses para o

português.

U0 3/"+%"/0 )/."&0A "7@(".0A "7.".-$)(0 4?N/"0 V)/)7W%"/) /%./)(-.0/ (%:/@B%/.5A /%O$".0 #0'/% )# /%./)(-12%# F/E."F)# (% :/@B%/. 03%/)()# 30/ ?N/"0

Laranjeira, insatisfeito com as soluções apresentadas por Silviano Santiago

em sua tradução. A crítica de uma retradução crítica pareceu-me ser um

bom ponto de partida para a discussão.

Em seguida, são apresentadas duas críticas de retraduções de poetas

/0+X7."F0#L U) 3/"+%"/)A 4J)B)/%# Y)#.0# /%./)(-.0/ (% !"F.0/ Z-&05A )7)$"#0

o modo como Bastos, em seu singular estudo, intitulado Versões poéticas de

Victor Hugo , de 1952, vai modulando suas práticas de retradução. No

#%&-7(0A 4D)#./0 6$B%# ./)(-.0/ (% 3oetas franceses e retradutor de

V)+)/."7%5 /%.0+0A 7) 3/"+%"/) 3)/.%A %#.-(0 WN 3-'$"F)(0, no qual procuro

apreender o conceito de tradução para Castro Alves. Na segunda parte,

inédita, discuto o que implica, numa perspectiva da retradução, a dupla

traduçã0 (0 30%+) 4Élegie 5 (% V)+)/."7% O%".) 30/ D)#./0 6$B%#A F)#0 [7"F0

na obra do poeta brasileiro.

6 ,-)/.) F/E."F) () /%./)(-190 30@."F)A )"7() "7@(".)A "7.".-$)() 4\@F"0Pignatari tridutor (% ?)$$)/+@5, tem como objeto o projeto de Pignatari de

traduzir três vezes o poema !"#$%&'- ()*) *",- .#,-/ . A forma particular com

que dispõe suas traduções e o que ela acarreta é discutida à luz da

retradução.

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Os três textos seguintes formam um conjunto dedicado à retradução

de Baudelaire para o português. Tema bastante profícuo dado o grande

número de traduções e retraduções existentes. No primeiro dos três,

4J/)(-12%# % /%./)(-12%# (% R!")-0)1#1)2- #, 023#4/S (% Y)-(%$)"/%5A /%.0+0

artigo já publicado em 2007, no qual as retraduções propostas por Vera

Azambuja Harvey e Juremir Machado da Silva são analisadas e comparadas

a algumas traduções canônicas L M .%].0 #%&-"7.%A 4?)/") Q)'/"%$) V$)7#0$

/%./)(-.0/) (% Y)-(%$)"/%5, a ser publicado na revista Cadernos de Tradução

2010.1, discute alcances e limitações de uma das mais ousadas e originais

retraduções de As flores do mal para o português. À guisa de conclusão, em

4:0/ -+) /%./)(-190 %+ 3/0#) ( e As flores do mal 5A )3^# ) F/E."F) ()#

propostas anteriores de retradução de Baudelaire, volto à retradução como

crítica.

Enfim, essas duas partes, complementares, se querem uma

contribuição para o desenvolvimento deste campo de estudos que, como se

pode notar no texto introdutório, ainda é novo e promissor.

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10

1.

Crítica e retradução poética

Le dernier point de vue en date est celui de5# $261)7,/8 9"/'1 :/5,) *",-/%/:2--#)''#-:/ */ 5")-'6$#%#;)5)16 /-1%/histoire et fonctionnement, entre langage et

littérature. Et par là le travail pour%/:2--#<1%/ 5"=)'12%):)16 *, 1%#*,)%/> /1 */'traductions.

Henri Meschonnic

Apesar de ser uma prática tão corrente, ou mais, do que a própria

tradução, devido ao constante interesse comercial e acadêmico pelos textos

canônicos, a retradução tem sido objeto de poucas análises 2. O pouco

interesse que tem suscitado não condiz com sua riqueza e complexidade,

pois a retradução é a reapropriação de uma obra já traduzida,

acrescentando-lhe novas leituras e relevos por meio da reescritura da

reescritura; movimento duplo, voluntário ou não, de crítica: à crítica que é o

ato tradutório (CAMPOS, 1976) soma-se outra ou várias outras. A retraduçãoconfigura-se, assim, como um espaço possível e rico de reflexão sobre o

fazer poético.

A retradução exige, inicialmente, uma compreensão do seu vasto

campo de possibilidades, e que abrange, pelo menos, duas grandes práticas.

2

Em publicação relativamente recente sobre a questão, Milton e Torres (2003) aindaassinalam a pouca atenção teórica dispensada ao fenômeno.

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11

A primeira é a retradução como crítica . Um exemplo é o ensaio

#%+"7)$ (% Z)/0$(0 (% D)+30#A (% _IK`A () 4J/)(-190 F0+0 F/")190 (%

F0+0 F/E."F)53. Trata-se de propor uma nova tradução em função de

traduções já existentes. A própria tradução de Homero por Odorico Mendes

(HOMERO, 2000), a que se refere Haroldo, pode ser compreendida como

uma retradução, pois, por um lado, já existiam trechos de Homero traduzidos

por autores de língua portuguesa antes de Odorico e, por outro, há uma série

de comentários do tradutor para o português, em suas notas, a outras

traduções de Homero para o francês, o inglês, o italiano. Essa é prática

bastante importante e aparece, por exemplo, nos trabalho do próprio Haroldo

de Campos, de Meschonnic e de Mário Laranjeira; além dos trabalhos que

compõem a primeira parte deste estudo.

A adoção dessa forma de crítica leva ao acréscimo de mais outro texto

literário para a história da recepção de uma determinada obra no sistema

literário de chegada e pode servir tanto para apresentar uma nova

abordagem tradutória, como para propor supostas correções a

contrassensos, supressões ou acréscimos.

A segunda grande prática é a crítica da retradução . Trata-se de uma

forma de crítica que foi pouco desenvolvida até o presente momento.

Entretanto, ela está relacionada a uma discussão sobre a historicidade do

traduzir que, esta, já tem quase dois séculos.

A partir dela, pode-se pensar, além da própria retradução como crítica,

por exemplo, um tipo específico de retradução que é, segundo Gambier

3 Cf. CAMPOS, 1976.

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(1994), a tradução de um texto, em geral de línguas pouco conhecidas em

uma determinada cultura, a partir de outra tradução já realizada para uma

língua de maior divulgação; como ocorreu com traduções de Byron, no Brasil,

feitas a partir do francês4. Esse sentido é adotado por Laranjeira (1993,

p.112), ao se referir às traduções de Villon no Brasil, quando comenta que os

./)(-.0/%#8 4aLLLb .%/")+ O%".0 -+) /%./)(-190A F07O0/+% )# #%&-"7.%# %.)3)#8

texto original em moyen français , tradução intralingual para o francês

+0(%/70A ./)(-190 3)/) 0 30/.-&-c# +0(%/705 . Esse tipo de retradução,

também chamado de tradução indireta, acarreta uma série de questões como

0# 4%O%".0#5 7) /%F%3190 (% -+) 0'/) (%B"(0# d -."$"=)190 (% -+) $"7&-)&%+

mais ou menos arcaizante ou, ainda, sobre a necessidade de se considerar

uma tradução como verdadeiro texto de partida. O fato de envolver diferentes

línguas faz com que esse tipo específico de retradução escape ao escopo

deste trabalho.

ZNA F07.-(0A -+ F)#0 (% 4/%./)(-190 F0+0 ./)(-190 "7("/%.)5 ,-%

serve para exemplificar outra prática de retradução, que proponho chamar de

retradução como autocorreção. Trata- #% () ./)(-190 (% 4M D0/B05A (%

Edgard Poe, feita por Machado de Assis, sobre a qual, assinala Barreiros

(2005, p.136):

A primeira tradução que se conhece, logo de 1883, é de um dosmaiores escritores da língua portuguesa, embora se tenhanotabilizado, sobretudo, como romancista, Machado de Assis; noentanto, como não sabia inglês, traduziu do francês, isto é, a partir daversão de 1875 de Stéphane Mallarmé, que viria a publicar uma novatradução muito corrigida em 1888.

4 Cf. BARBOZA, 1975.

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Mais recentemente, alguns dos autores que se debruçaram sobre o

tema também destacam a importância de se considerar a relação que se

estabelece entre a primeira tradução e as seguintes. Antoine Berman 5 (1999,

p.104-105, grifo do autor), um dos primeiros a refletir sobre a retradução,

)##"7)$) ,-% @ 7%F%##N/"0 ("#."7&-"/ 4(0"# %#3)10# e% (0"# .%+30#f (%

tradução: o das primeiras traduções e o das retraduções 65g % )F/%#F%7.) ,-%

) ("#."7190 (%##)# (-)# F).%&0/")# @ 4aLLLb -+ (0# +0+%7.0# (%base de uma

reflexão sobre a temporalidade do traduzir da qual encontraremos um esboço

; mas apenas um esboço ; em Goethe e Benjamin5.7

Berman comenta ainda que aquele que traduz não lida apenas com

um texto, mas com dois. Nesse contexto, a retradução acontece, para

Y%/+)7 e_IIIA 3L_HPfA 4aLLLb ) O)B0/ (0 0/"&"7)$ % F07./) )# ./)(-12%#

existentes. E pode-se observar que é nesse espaço que, em geral, a

tradução produziu suas obras-primas. As primeiras traduções não são (e não

30(%+ #%/ )# +)"0/%#f5L

A retradução, por lidar com um universo discursivo já historicizado,

encontra-se numa posição crítica privilegiada, que lhe permite e, em certo

sentido, obriga a constituir-se em função de um diálogo temporalmente e

5 No ensaio acima citado, Berman retoma suas ideias anteriormente 3-'$"F)()# 70 )/."&0 4V)./)(-F."07 %. $) $%../% 0- $S)-'%/&% (- $0"7.)"75 e_IhPf "7Les tours de Babel . Mauzevin: Trans-Europ.6 Traduções minhas, salvo indicação.7 Berman refere-se ao texto de Goethe de que tratamos e do texto de Benjamin (2001, p.203)sobre a tarefa- /%7[7F") (0 ./)(-.0/A 07(% %#.% )O"/+)A 30/ %]%+3$0A ,-%A 4)7.%# (% 0-./0#A

eles [os românticos alemães] possuíam uma consciência da vida das obras da qual a./)(-190 @ 0 +)"# )$.0 .%#.%+-7C0L5

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retórico-formalmente marcado. Berman, contudo, assim como Goethe,

estabelece certa hierarquia entre os modos de traduzir.

Com efeito, os textos nos quais Berman trata de retradução são),-%$%# %+ ,-% (%#%7B0$B% -+) (%O%#) (0 ,-% FC)+) (% 4./)(-190 $".%/)$5L

Berman esclarece que traduzir literalmente é traduzir a letra ; a forma ; , e

não a palavra, ou seja, trata-se de traduzir o ritmo, as aliterações, os jogos

significantes de um texto. Berman, seguindo os passos de Goethe, afirma ser

a literalidade e a retradução os modos mais maduros de se traduzir e retoma

Steiner (apud BERMAN, 1999, p.105) quando este (%#.)F) ,-% 40 $".%/)$"#+0

790 @ aLLLb 0 +0(0 +)"# ONF"$ % 3/"+%"/0A +)# 0 +0(0 [$."+05L

Gambier (1994, p.414) reage à posição de Berman, afirmando que

este sugere que uma primeira tradução tende a s %/ +)"# 4)##"+"$)(0/)A )

/%(-="/ ) )$.%/"()(% %+ 70+% (% F%/.) $%&"'"$"()(%5L U%##)# F07("12%#A )

/%./)(-190 #%/") -+) %#3@F"% (% 4/%.0/70 )0 .%].0 (% 3)/."()5L Q)+'"%/

atenta para o fato de que essa perspectiva baseia- #% 7-+) 4"$-#905 (% ,-% 0

4#%7."(0 %#.N (%30#".)(0 70 .%].0 (% 3)/."() % #%/") "+-.NB%$5L

Gambier, diferentemente, parte do princípio de que a retradução

conjuga a dimensão sócio-cultural do discurso a sua dimensão histórica. Suapremissa o leva a levantar uma série de questões, como:

! Por que um mesmo texto suscita várias traduções?

! Por que e como determinadas traduções envelhecem?

! Quais as especificidades envolvidas na retradução de determinados

tipos de texto, como os poemas?

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! Qual a relação daquele de re-traduz com as traduções anteriores?

Em seguida, Gambier esboça algumas respostas parciais, que abrem

pistas de trabalho. O autor destaca dentre as possíveis razões de umaretradução, o fato de esta ter como intuito: dar visibilidade a partes

suprimidas de uma obra (nesse sentido uma retradução seria em certa

medida uma primeira tradução); tratar de algum contrassenso; remediar um

%B%7.-)$ 43%#05 70 %#."$0g 3/0B)/ -+) (%#./%=) (% )$&-+ ./)(-.0/g ).%7(%/ )

interesses comerciais de uma determinada editora.

Quanto ao envelhecimento das traduções, Gambier destaca que suas

causas são múltiplas, como o surgimento de uma nova edição; a

transformação dos meios de interpretação graças, por exemplo, à análise

genética dos manuscritos, a novas abordagens teóricas como as sociológicas

e as da recepção; além de, certamente, a baixa qualidade da tradução ou de

suas retraduções.

Já a especificidade dos gêneros vincula-se tanto a modificações de ordem

epistemológica quanto ao fato, por exemplo, de um verso poder ser traduzido

em prosa ou ao fato de uma peça de teatro ser adaptada a um determinado

espetáculo.

A maneira como aquele que retraduz se relaciona com as traduções

anteriores indica, por sua vez, o alcance crítico de sua retradução. Talvez o

retradutor não a(s) considere ou nem saiba de sua(s) existência(s), talvez

almeje produzir uma resposta à(s) mesma(s) ou, talvez, ainda, seja outra a

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#-) O07.% 40/"&"7)$5 %A 30/ 790 ./)')$C)/ F0+ ) +%#+) %("190A ) ./)(-190

possa até ser considerada primeira.

De todo modo, indica Gambier, a compreensão do complexo processo emque se dá a retradução implica uma dupla análise, fundamentada, por um

lado, nos próprios textos retraduzidos e, por outro, nos comentários de

tradutores, de editores, de leitores e de críticos.

Gambier encerra seu artigo com uma nova série de questões às quais

uma análise de retraduções pode procurar responder e que se referem a:

! Periodicidade e frequência das retraduções;

! Momentos de maior ou menor interesse por determinados textos e

autores;

! Razões de se retraduzir um texto e as transformações na língua, na

cultura e na literatura receptoras;

! Estratégias e efeitos das novas retraduções.

Desse modo, a reflexão de Gambier não pressupõe nenhum caráter

evolutivo, mas se interessa em analisar o que uma retradução implica em

função de sua historicidade e da dinâmica do sistema sociocultural e literário

da cultura receptora na qual se insere. Nessa rede, imbricam-se projetos

tradutórios, tendências estéticas e teóricas dominantes e em confronto,

interesses comerciais, didáticos, pessoais, acadêmicos e literários.

As questões suscitadas pelos autores acima indicam que uma crítica do

fazer poético pode se dar, também, por meio da retradução poética. É a partir

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dessa perspectiva, que se visa apontar alguns caminhos para a compreensão

da relação entre crítica e retradução poética.

Crítica e retradução poética no Brasil

Há alguns estudos, no Brasil, a partir dos quais é possível uma

primeira aproximação crítica da retradução poética. Em um deles, Rosemary

Arrojo (1986, p.141) utiliza-se de uma polêmica que se estabeleceu entre

Nelson Ascher e Paulo Vizioli, a respeito de traduções de John Donne, feitas

por Vizioli e por Augusto de Campos, para demonstrar que a tradução de um

30%+) 4#%/N O"%$ d B"#90 ,-% 0 ./)(-.0/ .%+ (%##% 30%+) %A .)+'@+A )0#

objetivos d) ./)(-1905L

Em sua análise, Arrojo (1986, p.142) esclarece que ambos os

./)(-.0/%# #90 4aLLLb O"@"# d# #-)# F07F%312%# .%^/"F)# )F%/F) () ./)(-190 %

acerca da poesia de Donne e, nesse sentido, tanto as traduções de um,

como de outro, são legítimas e com 3%.%7.%#L5 6//0W0 "7./0(-= 0 307.0 (% B"#.)

de um tradutor e, em seguida, o diferencia do outro. Nesse jogo de contrastes

demonstra com muita propriedade a natureza dos dois projetos tradutórios e

(% F0+0 6#FC%/ O0" 4#%(-="(05 3%$0# 3/%##-30#.0# ./)7#F/").ivos de Augusto

de Campos.

A sedução e a reação que esta provocou provêm, em grande medida,

da ordem em que foram publicadas as traduções. Arrojo informa que a

origem da polêmica se deve ao fato de Vizioli ter retraduzido os textos que já

haviam sido traduzidos por Augusto de Campos. Afirma Arrojo (1986, p.138):

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20

4D0+0 #-&%/% !"="0$"A 0 ,-%A 7) B%/()(%A 3)/%F% "7F0+0()/ 0 F/E."F0 @ ,-%

#-)# ./)(-12%# #90A (% F%/.) O0/+)A R"7O"@"#S d# B%/#2%# (% 6-&-#.0 (%

D)+30#5. É o fato de Vizioli ter retraduzido um texto que já havia sido

canonizado pelo paideuma concretista, a partir de outro projeto tradutório,

que provocou a ira de um dos simpatizantes do grupo.

A veemência da reação de Ascher, que afirma que o trabalho de Vizioli

@ 0 (% -+ 4%/-(".0 3/0O"##"07)$ % F0+3%.%7.%A +)# 30%.) )+)(0/5 % ,-% #%-

./)')$C0 790 30(%/N #-'#.".-"/ 0 (% 6-&-#.0 (% D)+30# 4-+ 30%.) -tradutor e

"7B%7.0/ (% $"7&-)&%7# 3/0O"##"07)$5A (%F0//% (% )$&-7# B)$0/%# ,-% 3%/+%")+

o discurso de um grupo, que considera apenas apto para traduzir poemas

),-%$% ,-% O0/ 30%.) 43/0O"##"07)$5A 0- #%W)A 4"7B%7.0/ (% $"7&-)&%7#5L

Restringe-se, assim, o universo da tradução poética apenas a uns poucos

escolhidos a quem cabe, por sua vez, legitimar ou não os trabalhos de

tradução poética.

No caso da retradução, arrisca ser desqualificado o retradutor que

propuser outro projeto de re-reescritura de um poeta já eleito pelo grupo

concretista. E, como bem nota o próprio Vizioli, a natureza da crítica não diz

respeito às características do projeto de retradução:

Tive a nítida impressão de que, na verdade, o seu autor se revoltoumenos com as pretendidas deficiências de meu trabalho que comminha petulância em incursionar por terreno onde antes perambulara Augusto de Campos. (VIZIOLI apud ARROJO, 1986, p.138).

Além da reflexão sobre o policiamento estético de obras e de

traduções inventivas que foi praticado pelo grupo concretista, é importante

considerar a natureza dos projetos de tradução em jogo e de como se

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relacionam. Arrojo explicita com clareza os dois projetos, que podem ser

#"7.%."=)(0# 7)# 3)$)B/)# 4"7B%71905 % 4%/-("1905L U)# %.)3)# (% B"() (% -+)

obra por meio de suas traduções, onde as situaríamos?

Com efeito, como destaca Gambier, qualquer tentativa de se pré-

estabelecer uma ordem está fadada ao fracasso. A fragilidade da tipologia de

Goethe e de Berman deve-se não só à hierarquia, mas à própria tipologia.

Seria a tradução de Augusto mais próxima da paródia ou mais isomórfica

(literal)? Ou seria a tradução de Vizioli aquela mais colada ao texto? As duas

traduções têm em comum a produção de textos rimados e metrificados como

são os de Donne. Ambas as traduções são precedidas de prefácios nos quais

são explicitados as leituras do poeta e o projeto de tradução. Esses traços

comuns podem, talvez, indicar uma tendência das traduções e retraduções

brasileiras de ater-se à forma; tendência esta que parece predominar também

em parte da crítica8.

60 )7)$"#)/ )$&-+)# 4/%F/")12%#5 (% 30%+)# (% i0C7 \077% 30/

Augusto de Campos, Ana Helena de Souza (2004) compara os primeiros

versos da ?@5/43A 42)-4 12 ;/*B de Augusto de Campos, de Vizioli e também

de Octávio Paz. A autora destaca que ambos os brasileiros produzem

estruturas rímicas análogas às de Donne, diferentemente de Paz, que opta

por versos livres. Os dois tradutores brasileiros também optam por versos

isométricos para a tradução dos decassílabos de Donne: Vizioli pelo de doze

sílabas e Augusto de Campos pelo de dez.

8 Cf. FALEIROS, 2006.

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22

O resultado é que o poema de Campos, por ser mais conciso,

4#)F/"O"F) )$&-7# %$%+%7.0# +)"# %]3$"F)."B0#5L M 4F07F%".05A .90 F)/0 d 30%#")

+%.)OE#"F)A F0+0 )##"7)$) >0-=) eGHHjA 3LGHjfA 4aLLLb 3%/(% F0+ ) %$"+"7)190

(0# %$%+%7.0# aLLLb ,-% .90 '%+ F07W-&)+ 70 0/"&"7)$ ) RO0/1) 3%/#-)#"B)S (0

%7&%7C0 (% \077%5. Os dodecassílabos de Vizioli, por sua vez A 430(%+ &%/)/

/%(-7(X7F")# % B%/#0# +)"# 3%#)(0#5L >0-=) eGHHjA 3LGHPf )F/%#F%7.) ,-%A

%+ !"="0$"A 4-+ F)/N.%/ +)"# %]3$"F)."B0 O0" )("F"07)(0 )0# B%/#0#5L >-)

F07F$-#90 @ (% ,-%A 7) ./)(-190 (% 6-&-#.0 (% D)+30#A 430(%-se até dizer

que a concisão da imagem é tensionada, algo mais a afim da poética de

\077%5.

A comparação de Souza e sua afinidade com a proposta tradutória

transcriativa a impede de entrever uma complementaridade nos dois projetos

./)(-.^/"0#L 63^# ) B%/#90 4.%7#"07)()5 % 4F07F"#)5 (% 6-&-#.o de Campos,

Vizioli brinda o leitor com outra, mais explicativa, e que, apesar do eventual

43%#05A W-#.)+%7.% 30/ #%/ +)"# 4%]3$"F)."B)5A F07O"&-/)-se de forma a

(%#.)F)/ 0 4F07F%".05A ("+%7#90 .90 F)/) )0# 30%.)# +%.)OE#"F0#L

Ao adotar uma abordagem mais histórica e dialógica, a crítica da

retradução poética se desvincula de uma atitude apaixonada e sincrônica. E

não se trata tampouco de apenas considerar válidos diferentes projetos

tradutórios e leituras do poema, como o faz Arrojo. A retradução, pensada

desse modo, não opera um apagamento da tradução anterior, ao contrário,

acrescenta outra camada interpretativa, adensando o tecido discursivo de

uma determinada obra no sistema da língua-cultura receptora.

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Parto, aqui, da tradução e retradução do poeta peruano César Vallejo

no Brasil para ilustrar outros dos possíveis caminhos da crítica da retradução

poética pensada em sua historicidade. Ainda que não possa afirmar

categoricamente, a tradução de Tiago de Mello da Poesia completa de

Vallejo parece ser a primeira no Brasil9, pois Mello (1984, p.13), em sua

"7./0(-190A )O"/+) ,-% !)$$%W0A 4-+) ()# B0=%# 3/"7F"3)"# () 30%#") $)."70-

)+%/"F)7) (% .0(0# 0# .%+30#5A @ 4-+ &/)7(% (%#F07C%F"(0 (0# $%".0/%#5L M

tradutor acrescenta que começou a trabalhar, a convite de Ênio Silveira,

43)/) ,-% !)$$%W0 FC%&)##% )0 F07C%F"+%7.0 (0# ,-% $eem poesia em nossa

3N./")5L

Tiago de Mello, em momento algum, faz menção da existência de

outra edição em português, mas, por outro lado, comenta ter utilizado

traduções inglesas, francesas e italianas. Consciente das dificuldades da

./)(-190 30@."F)A ?%$$0 e_IhjA 3L_jf %7F)/) ) .)/%O) F0+0 -+) 4)3/0]"+)190

)0 -7"B%/#0 30@."F0 0/"&"7)$5L :)/) .)$A 0 ./)(-.0/ (%+07#./) -+ F07C%F"+%7.0

profundo da obra de Vallejo, destacando sua invenção verbal, seu uso de

arcaísmos, neologismos, regionalismos e da fala coloquial, assim como, as

alterações que produz na sintaxe e na ortografia. Mello (1984, p.15) informa

)"7()8 4aLLLb ) .0(0# %##%# /%F-/#0# (% %]3/%##90 % B"/.-(%# F/")(0/)# ./).%" (%encontrar correspondência formal que, em nosso idioma, me pareceu

)(%,-)()5 . Mello destaca, também, a importância do decassílabo na poesia

(% !)$$%W0 % )O"/+) ,-% ./).0- 4(% /%#&-)/()/ -$C% 0 /".+05L

9

Amálio Pinheiro (1986, p.186) indica a tradução de três poemas do livro Trilce feitas porHaroldo de Campos e publicadas na revista peruana Cielo Abierton.25, em 1983.

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24

Após os comentários a respeito da poética de Vallejo, Mello (1984,

p.16) faz a seguinte observação:

Dentre os raros poetas brasileiros que se aproximam da poesia dogrande peruano, alguns existem, de irrecusável pendor para asmanifestações artísticas de vanguarda, que só valorizam no conjuntode sua obra Trilce,seduzidos pelo esplendor da invenção formal, defascinante hermetismo. Sucede que olham com olhos vesgos e fazemboca de escárneo para seus poemas posteriores, nos quais palpitauma poesia também rigorosamente construída, só que marcada por

um profundo humanismo.

Essa é, em grande medida, a postura adotada por Haroldo de

Campos, em 1983, e por Amálio Pinheiro. Este publica, em 1986, um estudo

sobre o poeta peruano, O abalo corpográfico , no qual reproduz, ao final, as

traduções de Haroldo de Campos. Em seu estudo, como está assinalado na

F07./)F)3)A 4)./)B@# (0 %])+% () )3)/%$C)&%+ (%Trilce , que se irradia

diferencialmente nas demais obras, Vallejo é colocado em diálogo com as

,-%#.2%# +)"# F0+3$%])# () B)7&-)/() % () +0(%/7"()(%5. (PINHEIRO,

1986).

O trabalho crítico de Pinheiro sobre Vallejo, também se dá por meio da

tradução. Apenas três anos depois de Thiago de Mello, em 1987, ele publica

uma primeira seleção de poemas, revista e ampliada no ano de

comemoração do cinquentenário de morte de Vallejo, em 1988; edição

intitulada A dedo , aqui utilizada. Com efeito, Pinheiro (1988, p.10),

"7.%/%##)(0 70 ,-% FC)+) (% 4/)("F)$"()(% F07#./-."B)5 (% !)$$%W0A 70.) ,-% )

4.@F7"F) F07#./-."B)5 (0 30%.) 3%/-)70A 4%+'0/) #% F07F%7./)7(0 70 %/-3."B0

livro Trilce , estende-se até os dísticos poético-políticos, hispânico-

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25

maiakovskianos, do poema XIV de España 5L U) #%$%190 (% PH 30%+)# (%

Pinheiro, trinta e um são de Trilce , e os dezenove restantes contemplam

quatro outros livros de poemas de Vallejo.

Há, aqui, um confronto mais ou menos velado entre Thiago de Mello e

Amálio Pinheiro10; seguramente entre as leituras que fazem de Vallejo e entre

os projetos tradutórios que adotam.

Na edição da tradução de Thiago de Mello, os poemas são

apresentados exclusivamente em português e de forma corrida na página.

Impondo-se, assim, um corte aleatório nos poemas, havendo páginas que se

iniciam com dois ou três versos de um poema; forma bastante comum em

edições de obras completas que, contudo, rompem com a visilegibilidade 11

do texto. A edição de Pinheiro, mais voltada para os aspectos formais,

apresenta uma edição bilíngue em que cada poema ocupa uma página.

Às diferenças na apresentação dos poemas corresponde outra no

tratamento formal do texto, ou seja, do projeto de tradutório. Pinheiro (1988,

3LIf )(0.) %]3$"F".)+%7.% -+) 30#.-/) ./)7#F/")."B) 4F07./) ) ONF"$

C"#3)7"=)190 %]3$"F)."B)A ,-% (%#F-"() ()# 307.%# (% 3)##)&%7# /E.+"F)#5L

Sem nomear o trabalho anterior de Thiago de Mello, Pinheiro toma, comoexemplo,

10 Com efeito, diferentemente do que faz em sua antologia de 1988, em Abalo Corpográfico ,Pinheiro (1986) critica explicitamente as traduções de Thiago de Mello. Ao se referir àmestiçagem, neologismos e regionalismos característicos da poética de Vallejo, Pinheiroe_IhKA 3L_IHf F0+%7.) %+ 70.)8 4k %##) /",-%=) (% .%].-/) ,-% #%+3/% #% 3%/(% 7)#

traduções de Thiago de Mello (César Vallejo, Poesia Completa A <iA _Ihjf5L 11 Cf. LARANJEIRA (1993).

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26

[...] o poema LII de Trilce , onde o jogo castelhano em b/v ésubstituído, no caso específico, pela articulação brasileiro-caboclamais contígua e paródico-humorística em r/l , sem o que apertinência entre o macro e o microestético ficaria, numa traduçãoingenuamente fiel, prejudicada.

O trecho em questão é, no texto de partida, o seguinte (PINHEIRO,

1988, p.82):

le tomas el pelo al peón decúbito

que hoy otra vez olvida dar los buenos días,

esos sus días, buenos con b de baldío,

que insisten en salirle al pobre

por la culata de la v

dentilabial que vela en él.

(VALLEJO, 1988, p.82)

O mesmo é traduzido e retraduzido por:

tu zombas do peão decúbito

que hoje outra vez se esquece de dar bons-dias,

esses seus dias, bons com b de baldio,

que insistem em lhe sair, ao pobre,pela culatra do v

dentilabial que nele vela

(Thiago de Mello)

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tiras um sarro do peão decúbito

que hoje outra vez enrola ao dar boas tardes,

essas sua tardes, que rolam um R tardio,

e insistem em lhe sair baldias

pela culatra desse L

vibrante e alveolar que vela nele.

(Amálio Pinheiro)

Assim, é provável que Pinheiro considere a tradução de Thiago de

?%$$0 4"7&%7-)+%7.% O"%$5L >% $%BN##%+0# %+ F07.) 0# )/&-+%7.0# (%

Q0%.C% % Y%/+)7A .%/") #"(0 ) ./)(-190 (% JC")&0 (% ?%$$0 +)"# 4%$%B)()5 %

4+)(-/)5l M- #%/")A )0 F07./N/"o, a retradução de Pinheiro (1988, p.12) mais

3%/."7%7.%A 30/ #% 0/"%7.)/ 3%$0 43/%##-30#.0 () F07.)+"7)190 "7B%7."B)A

nunca da curiosidade bio- '"'$"0&/NO"F)5l

Se partíssemos dos princípios de Berman, estaríamos diante de uma

equação insolúvel, pois, por um lado, a tradução de Mello produz um

estranhamento maior ao colocar o leitor em contato com um traço fonético

F)/)F.%/E#."F0 (0 %#3)7C0$A 30/ 0-./0A #%/") +)"# 4$".%/)$5 :"7C%"/0 3or sua

coloquialidade e sua ironia mais marcadas.

A comparação, por exemp$0A (0 #07%.0 4J%/F%.0 )-.^F.07% mmm5 30(%

eventualmente lançar luz sobre a questão. Vallejo escreve um soneto no

,-)$A F0+0 (%#.)F) :"7C%"/0 e_IhhA 3L_HfA CN 4-+ +%F)7"#+0 (%O0/+)7.%

gráfico-auditivo [...] através dos vários meios de substituição de letras,

)F%7.-)190 % "7B%7190 (% #-O"]0#5g F0+0 0F0//% 70 B%/#0 4y brinca un ruido

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28

aperital de platos 5L n#.% @ ./)(-="(0 %+ ?%$$0 30/ 4-+ #0+ (% )3%/"."B0 #)"

(0# 3/).0#5 % %+ :"7C%"/0 30/ 4% #)$.) -+ /-E(0 )3%/".)$ (% 3/).0#5L

Diferentemente do que afirma em seu prefácio, Mello acaba por

(%#F07#"(%/)/ 0 7%0$0&"#+0 4)3%/".)$5 F-7C)(0 30/ !)$$%W0 % /%.0+)(0 30/

Pinheiro, fazendo com que a tradução deste seja mais atenta ao aspecto

formal e inventivo do poema.

Entretanto, o trecho citado acima, em que Thiago de Mello critica as

leituras excessivamente vanguardistas da obra de Vallejo, somado a sua

preocupação com o lado humano do poeta, sinaliza para uma leitura de

Vallejo na qual o caráter inventivo radical do poeta não é central ; como o

exame mais detalhado de suas traduções indica. Essa constatação permite

afirmar que a tradução de Pinheiro é mais madura? Creio que não.

O que parece fazer dela a mais madura é, e nisso concordo com

Berman, o fato de ser uma retradução reflexiva e, acima de tudo, por

contrapor-se à primeira tradução; introduzindo outra leitura, relevante e

elaborada da poética de Vallejo. Esse mesmo motivo faz da tradução de

\077% 3/030#.) 30/ !"="0$" -+) ./)(-190 +)"# 4+)(-/)5 (0 ,-% ) (% 6-&-#.0

de Campos, não por seus aspectos formais ou sua s -30#.) 4,-)$"()(%

30@."F)5 0- 4(% "7B%71905A +)# 30/ ./)=%/ 3)/) 0 $%".0/ '/)#"$%"/0 -+) #%&-7()

abordagem da poética de Donne, em que seu caráter explicativo é realçado;

ainda que este possa parecer secundário, para alguns, na poesia de John

Donne.

Mas, uma retradução nem sempre implica um amadurecimento. Em

2006, por exemplo, foi lançada no Brasil aquela que é, de acordo com o

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levantamento que fiz, no mínimo, a terceira tradução (segunda retradução),

voltada para o público adulto, da Canção de Rolando para o português 12.

Assim como as duas anteriores, esta última atém-se ao aspecto semântico

do texto. Pode-se tecer em relação a ela, comentário semelhante àquele feito

por Mário Laranjeira (1993, p.131) em relação à tradução de Lígia Vassalo,

de 1988:

[...] foi feita, pura e simplesmente uma tradução semântica do texto,abandonados todos os elementos que marcam a Chanson de

Roland como uma canção de gesta. Lido no despojamento datradução proposta, o texto seja a ser simplório, ridículo.

Deixados de lado os juízos de valor, o que chama a atenção é que as

retraduções, além de não fazerem referência a traduções anteriores, não

representam uma mudança em relação a elas. A contribuição que Vassalo

deixa, em relação à edição que a precede, é a retomada, em sua introdução,

de estudos de intertextualidade que identificam a presença de Roldão na

literatura popular. Já a mais recente apenas reproduz as notas do

organizador francês Pierre Jonin. Em sua única nota, a tradutora comenta:

4)# 70.)# %+ ,-% :"%//% i07"7 )3%7)s justifica suas opções de tradução para

0 O/)7Fc# +0(%/70 790 F07#.)+ (%#.) %("190 '/)#"$%"/)5L \%##% +0(0A 0

leitor brasileiro tem, por uma terceira vez, um texto balizado por um mesmo

projeto de tradução: tradução puramente semântica, sem a presença de um

original e tradutoriamente nada reflexivo.

12

A primeira de 1958, feita por Leoni e a segunda, de 1988, de Lígia Vassalo. Há, pelomenos, duas outras, adaptações para o jovem leitor, publicadas em 1940 e em 1980.

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30

Não se quer afirmar com isso que a imaturidade se deva ao fato de se

tratar de traduções semânticas, mas por elas serem orientadas pelo mesmo

projeto de tradução. Um poeta que tenha sido traduzido exclusivamente, ou

quase, com rima e métrica como é o caso do Baudelaire das Flores do mal

no Brasil, talvez mereça agora uma tradução semântica ou em prosa poética,

para que, por exemplo, a coloquialidade e a prosódia prevaleçam. Mais uma

vez, o que está em jogo é a historicidade do traduzir; é nesse sentido que a

retradução torna-se um campo profícuo para se pensar a reescritura poética

e o que ela implica; seja por meio da retradução como crítica, seja por meio

da crítica da retradução.

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PARTE I

A retradução poética como crítica

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32

2.

Retraduzir o Sineiro de Mallarmé

Considero uma exigência bem justa, nas traduções,

que a crítica deva vir acompanhada de uma sugestão construtiva.

August Wilhem von Schlegel

Introdução

Um projeto de tradução, em princípio, parte da identificação dos

elementos centrais no processo de construção de sentido do texto de partida.

Essa postura interpretativa implica reescrever o texto com o intuito de

reconfigurar esses aspectos considerados primordiais para o modo de

significar do texto. No caso do poema, essa reescritura, de acordo com a

postura adotada neste artigo, lida tanto com aspectos retórico-formais quanto

sintático-#%+X7."F0#L M 30%+) 4M >"7%"/05 (% ?)$$)/+@A @ ),-" "7.%/3/%.)(0e, a partir desta leitura, descreve-se o modo como foi transcriado por Augusto

de Campos, para que, enfim, uma retradução seja apresentada em função

dos parâmetros textuais considerados relevantes no modo de significar do

poema. <%./)(-="/ 4M >"7%"/05 (% ?)$$)/+@ "+3$"F)A ),-"A /%3%7#)/ 0#

parâmetros tradutórios da transcriação.

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33

!" $%&'%()* de Mallarmé

M #07%.0 4M >"7%"/05, publicado em 1862 e incluído entre os poemas

divulgados na revista Parnasse contemporain em 1866, faz parte do que secostuma identificar como a fase parnaso-simbolista do jovem Mallarmé. A

presença de um vocabulário marcadamente baudelairiano e a escolha do

alexandrino, metro clássico francês valorizado por Baudelaire, assim como

pelos parnasianos, corroboram essa perspectiva. Outra característica

relevante do simbolismo, presente em 4M >"7%"/05A @ ) /%$)190 +0."B)() ,-%

se encontra entre som e sentido, como se pode notar:

Le Sonneur

Cependant que la cloche éveille sa voix claire

C 5"#)% $,% /1 5)($)*/ /1 $%2.2-* *, (#1)-

@1 $#''/ ',% 5"/-.#-1 7,) D/11/ $2,% 5,) $5#)%/

Un angélus parmi la lavande et le thym,

!/ '2--/,% /..5/,%6 $#% 5"2)'/#, 7,")5 6:5#)%/>

Chevauchant tristement en geignant du latin

Sur la pierre qui tend la corde séculaire,

E"/-1/-* */':/-*%/ F 5,) 7,",- 1)-1/(/-1 52)-1#)-8

Je suis cet homme. Hélas! de la nuit désireuse,

G"#) ;/#, 1)%/% 5/ :H;5/ F '2--/% 5")*6#5>

I/ .%2)*' $6:=6' '"6;#1 ,- $5,(#4/ .6#5>

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34

Et la voix ne me vient que par bribes et creuse!

J#)'> ,- D2,%> .#1)4,6 *"#02)% /- 0#)- 1)%6>

K L#1#-> D"M1/%#) 5# $)/%%/ /1 (/ $/-*%#) .

M 30%+) .%+ F0+0 .%+) 40 #"7%"/05A ,-%A )0 #0+ (0# #"70#A

tristemente entoa, ou melhor, geme seu latim. Os dois ; sino e latim ; são tão

melancólicos que o levam a cogitar o suicídio por enforcamento na corda do

próprio sino que toca.

No texto acima, as duas primeiras estrofes culminam com rimas em

-tin ; matin, thym, latin, lointain ; , reforçadas pela presença do termo

tintement antes da última. Nelas, as assonâncias, além de nasais são agudas

como o próprio tilintar do sino. Não é por acaso que dentre as mais

recorrentes onomatopéias para representar, em português, o som do sino

%7F07./) 0 4'$%+-'$%+5 ; que se pronuncia blêim ; em que uma oclusiva é

seguida de uma nasal (no caso do português, em um ditongo) marcadamente

)&-()g 4."7"(05, por sua vez, remete ao som agudo dos metais e, talvez, no

3/^3/"0 .%/+0 4#"705A C)W) +0."B)190 #070/)A WN ,-% %+ 4#"705 ) .o7"F) ()

palavra é uma vogal aguda seguida de uma soante nasal. Note-se que as

soantes nasais (m, n, nh) servem, com frequência, para ampliar o som da

vogal que as precede 13.

O som do sino, no poema, se por um lado é melancólico, por outro,

pela sua agudeza desperta quem o escuta, ressoa e ilumina. Esse duplo

13 Dentre os múltiplos exemplos existentes na lírica brasileira, pode-se destacar o papel

central das rimas em - im 7) F)7190 46.@ 0 O"+5A (% DC"F0 Y-)/,-%L 6$" #% 70.) O)F"$+%7.%como o caráter agudo do i acentua-se devido à nasal.

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movimento aparece na alternância das rimas nas duas quadras do soneto. O

sino possui, no primeiro verso do texto, uma 4B0= F$)/) eclaire f5 %A 70 3/"+%"/0

B%/#0 () %#./0O% #%&-"7.%A 30/ +%"0 (0 #0+ (0 #"70A 4)F$)/) eéclaire)5 0 (")L

Essa claridade, contudo, está sempre em tensão com o agudo e tristonho

ressoar das rimas em -tin .

A relevância destas rimas em -tin para o modo de significar do poema

deve-se não apenas ao lugar que ocupam na estrofe ; com elas concluem-se

as quadras ; , mas também ao fato de, em geral, as duas primeiras estrofes

serem, no soneto, o momento em que o tema e a situação são apresentados,

para, nos tercetos, desdobrarem-se e chegarem a seu desfecho.

n#.% @ 0 F)#0 (% 4M >"7%"/05. Após a introdução ; primeira quadra ;

%+ ,-% 0 #"70 4)F0/() #-) B0= F$)/)5 % #% %#3)$C) 3%$0# )//%(0/%#A 7)

#%&-7()A 0 #"7%"/0 4F)B)$&) ./"#.%5 0-B"7(0 )0 O-7(0 0 #0+ (0sino que toca.

O primeiro terceto inicia-#% F0+ ) )O"/+)190 F).%&^/"F)8 4:%7)p n#.% C0+%+

#0- %-5 % 0 #%&-7(0 %7F%//)-se com a afirmação de que, um dia, esse

sineiro irá se enforcar.

Observe-se que, no primeiro terceto e na primeira linha do segundo,

lemos8 4L.. */ 5# -,)1 *6')%/,'/> N G"#) ;/#, 1)%/% 5/ :H;5/ F '2--/% 5"O*6#5> N I/.%2)*' $6:=6' '"6;#1 ,- $5,(#4/ .6#5> N @1 5# 02)P -/ (/ 0)/-' 7,/ $#% ;%);/'

et creuse !5Uma possível paráfrase deste trecho indica que, por mais que se

puxe a corda da noite desejante para que soe o Ideal, o que chega é uma

3$-+)&%+ $%)$ (% O/"0# 3%F)(0# %A )##"+A 4) B0= )3%7)# +% B%+ %+ F)F0# %

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0F)5L n#.) B0= 3)/%F% #%/ ),-%$) (0 #"70 % 790 ) (0sujeito do poema14, uma

vez que, no primeiro verso do poema, lê-#%8 4%+'0/) 0 #"70acorde a sua voz

F$)/)5L

Este esclarecimento é importante para se compreenderem as escolhas

tradutórias apresentadas a seguir.

! O Sineiro! de Mallarmé na transcriação de Augusto de Campos

Em seu trabalho de transcriação de Mallarmé (1991), Augusto de

Campos incluiu este poema:

!" $%&'%()*

Embora o sino acorde uma voz que ressoa

Clara no ar puro e limpo e fundo da manhã

E desperta, infantil, uma outra voz que entoa

Um angelus por entre a alfazema e a hortelã,

O sineiro evocado à clave da ave, irmão

Sinistro cavalgando, a gemer sua loa,

A pedra que distende a corda em sua mão,

Só ouve retinir um som vago que ecoa.

Esse homem sou eu. Dentro da noite louca

14 Neste segundo caso, o mais natural seria Et ma voix , visto que, em francês, se utiliza com

frequência o pronome adjetivo. A interpretação de que se trata da voz do poeta é tambémpossível, ainda que menos provável.

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Agrada-me puxar a corda do Ideal,

De pecados se alegra a plumagem leal

E a minha voz vem aos pedaços e oca!

Mas um dia cansado deste afã obscuro,

Ó Satã, eu roubo esta pedra e me penduro.

Em seu soneto, Augusto de Campos compõe os versos em

alexandrinos clássicos, com cesura na sexta sílaba, como o fez Mallarmé.

Quanto às rimas, o tradutor reconstrói, nas duas quadras que abrem o

poema, o ir e vir das rimas abertas de um lado e nasais de outro, existentes

nas quadras originais, com rimas em -oa nas duas quadras, estas alternadas

com rimas em -ã , na primeira quadra, e com rimas em -ão , na segunda.

Desse modo, Augusto de Campos traz para o português os elementoscentrais do jogo rímico das quadras.

Note-se, contudo, que as rimas abertas e as rimas nasais alternam-se,

na tradução de Augusto de Campos, dentro de cada quadra, mas não entre

as mesmas, o que desloca a dinâmica interestrófica, já que uma rima nasal ;

4+)7C9-C0/.%$95 ; coroa a primeira quadra, mas não a segunda, onde ganha

destaque a rima em -oa .

A escolha da rima em -oa A )$@+ (% %F0)/ 7) /"+) 4$0-F)-0F)5A #-&%/%

um movimento de abertura, mesmo se a tônica se encontra no o , som mais

fechado do que o [q] do texto mallarmeano. A questão que se coloca, porém,

é o desaparecimento da motivação sonora nesse lugar de destaque que é a

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rima, pois a relação entre som e sentido, existente em claire e em éclaire ,

não é reintroduzida em seu texto, ainda que surja na sugestiva rima interna

F0/0)() 4F$)B% () )B%5 % ,-% 0 .%/+0 4F$)/)5A 30/ +%"0 (% -+enjambement ,

esteja no início do segundo verso.

Poderia, talvez, justificar-se a escolha por uma vontade de não se

obscurecer o poema, bastante evidente, aliás, sobretudo se comparado com

a obra posterior de Mallarmé. Mas, o que se observa é justamente o

contrário; por exemplo, no verso inicial, Augusto de Campos escolhe o artigo

"7(%O"7"(0 4-+) B0=5A ,-)7(0 4#-) B0=5A +%70# )+'E&-0A #%/") 30##EB%$L M-

)"7()A 70 .%/F%"/0 B%/#0A ) )(W%."B)190 (% F/")71) %+ 4"7O)7."$5g 0 ,-% .0/7) 0

.%/+0 30$"##c+"F0A 30"# .)7.0 4-+) B0=5A F0+0 ) 40-./) B0=5 30(%+ #%/

infantis. Não se trata de, ao traduzir, explicar o texto, mas tampouco de

dificultar sua leitura.

As rimas em -ã e -ão , por sua vez, mesmo se guardam a vibração da

nasal, distanciam-se da agudeza acima mencionada. A isso, soma-se o fato

de que o som seco do [ã] é distinto da ressonância do -im , bem mais longo.

Já as rimas em [ão] são mais longas e por isso ressoam mais, ainda que a

/"+) 4"/+90-+905 "7./0(-=) (0"# %$%+%7.0# #%+X7."F0# %#./)7C0# )0 .%].0 (%

partida.

Partindo-se do princípio da transcriação, adotado por Augusto de

Campos, tal escolha é pertinente. Mas, caso se queira elaborar uma tradução

em que os aspectos formais são apreendidos em sua relação com os

aspectos semânticos, a introdução de tais elementos deve ser feita com

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parcimônia, evitando-se, se possível, que ocorra nos dois segmentos

rimantes de uma mesma rima.

Há outros momentos em que o distanciamento de Augusto de Campos%+ /%$)190 )0 #%7."(0 @ )"7() +)"# %B"(%7.%A F0+0 7) #%7.%71) 4... de la nuit

*6')%/,'/> N G"#) ;/#, 1)%/% 5/ :H;5/ F '2--/% 5"O*6#5> N I/ .%2)*' $6:=6' '"6;#1

un plumage féal, / Et la voix ne me viens que par bribes et creuse !5 6 $0F-190

avoir beau A #"&7"O"F) 4.%7.)/ %+ B905A % 790 4)&/)()/5A 30"# $-.)/ 3)/) %7O"+

malograr não parece ser algo agradável. O sineiro-homem não parece

#)."#O%".0 F0+ #-) B9 .%7.)."B) (% 3-])/ ) F0/() (0 4#ino-m(%)$5 % 3%/F%'%/

que a voz do alto lhe chega oca e aos cacos. Aí, Augusto de Campos opta

por uma interpretação contestável, pois não parece ser a voz do sineiro, e

sim a do sino que chega frágil e estilhaçada aos ouvidos do homem sedento

de Ideal. Por fim, o poema encerra-se tragicamente, com um provável

#-"FE("0 30/ %7O0/F)+%7.0 (0 (%#%#3%/)71)(0 #"7%"/0L J/)(-="/ 4 je me

$/-*%#)B por 4%- +% 3%7(-/05 F/") -+) )+'"&- idade quase cômica, ironia que

o texto mallarmeano não traz.

Os comentários acima atentam, pois, para o fato de que a análise aqui

proposta parte do pressuposto de que é na articulação que se estabelece

entre som e sentido que o poema significa, pois, como assinala Richards

(1997, p. 316):

Estudar o ritmo em poesia separadamente do significado, sendo queo significado é sem dúvida o fator de controle na escolha que opoeta faz dos efeitos rítmicos por ele produzidos, parece deste pontode vista um empreendimento de valor duvidoso.

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Dessa maneira, nas linhas que seguem, apresento outra tradução de

4O Sineiro5, em que incorporo elementos da tradução de Augusto de

Campos, consciente de que se trata de apenas mais uma possível reescritura

que não substitui as outras e, sim, soma-se à história da tradução do poema.

Como afirma Berman (2002, p. 315), 4) /%./)(-190A 70 #@F-$0 GHA 30##-" -+

sentido histórico e cultural mais específico: o de nos reabrir o acesso a

0'/)#LLL5 e&/"O0 (0 )-.0/fL

+(,-./%( , 0)1%2,34) 5)&)(, -' !" $%&'%()* de Mallarmé

Na interpretação do poema aqui proposta, destaca-se, primeiramente,

o fato de este ser um soneto escrito em alexandrinos franceses clássicos,

forma reproduzida no poema que segue:

Embora o sino acorde e que a sua voz clara

Na aurora limpa e funda entoe seu clarim

E passe sobre o infante amável que lançara

Um angelus por entre a lavanda e o alecrim,

O Sineiro tocado pela ave que aclara,

Triste vai cavalgando e gemendo em latim

Sobre a pedra que estende a corda secular

Até que escuta ao longe um vago retintim.

Eu sou esse homem. E da noite sedenta

Eu puxo em vão o cabo em que soa o Ideal,

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De frios pecados vem a plumagem leal,

E a voz me chega oca, aos pedaços rebenta!

Farto, um dia, porém, desse eterno agnus dei

Ó Satã, tiro a pedra e lá me enforcarei.

Na tradução de Augusto de Campos, tanto a estrutura do soneto

quanto o metro alexandrino foram incorporados, princípio que procurei neste

caso também seguir. É importante salientar que as possibilidades decontagem da métrica silábica são processos dinâmicos, uma vez que

encontros vocálicos podem ser interpretados às vezes como ditongos, outras

vezes como hiatos, em função da unidade do poema.

D0+ %O%".0A )$&-+)# $%".-/)# #90 +)"# 47).-/)"#5A 30/ F0//%#307(%/%+

d 3/0#^(") () $E7&-) % 0-./)# +%70#A F0+0 70 B%/#0 4n+'0/) 0 #"70 )F0/(% )

#-) B0= F$)/)5L :)/) #% 0'.%/um alexandrino, é necessário escandi-lo assim:

4n+-bo-ra-o-si-noa-cor//dee-quea-su-a-voz-F$)e/)f5L ZNA .)+'@+A )$&-7#

ditongos produzidos que soam mais facilmente por se tratar do encontro de

-+) +%#+) B0&)$g F0+0 %+ 43%-laa-B%5A 70 "7EF"0 () #%&-7() ,-)(/ a.

Entretanto, na maioria dos versos da tradução acima, o metro flui de acordo

com a prosódia do português.

Quanto às rimas, o texto é construído em um esquema rímico ABAB

ABAB CDD CEE. Augusto de Campos aproxima-se bastante desta

disposição e produz um te ].0 F0+ /"+)# 6Y6Y YS6YS6 D\\ DnnL U0.%-se

que um modo mais tradicional de se representar a disposição rímica do texto

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de Augusto de Campos seria ABAB BCBC DEE DFF, nesta, entretanto,

apaga-se a proximidade sonora existente entre ã e ão , relevante na textura

fônica da tradução.

Em minha tradução, mantém-se a equação das rimas originais: ABAB

ABAB CDD CEE. Como no caso de Augusto de Campos, e provavelmente do

3/^3/"0 ?)$$)/+@A ) %#F0$C) (% 4)$%F/"+5A %+ B%= (%thym tem, sobretudo,

função sonora, e visa a trazer para o texto em português a sonoridade nasal

aguda presente no texto de Mallarmé. Note-se que cabe ao tradutor

identificar os termos essenciais que se encontram na rima, e aqueles que

foram introduzidos pela necessidade de repetição sonora no poema original;

é o que leva Manuel Bandeira, em carta a Alphonsus Guimarães Filho

pedindo-lhe conselho sobre dificuldades de tradução poética, a afirmar:

sempre que você quiser traduzir um poema, faça um estudopreliminar no sentido de apurar o que é essencial nele e o que foiintroduzido por exigência técnica, sobretudo, de rima e métrica. Istofeito, se aparecerem dificuldades que digam respeito ao últimoelemento (o que não é essencial pode ser alijado), resolva-sealijando o supérfluo, mesmo que seja bonito. (apud PAES, 1990, p.63).

Este princípio explica a tradução de thym e.0+"$C0f 30/ 4C0/.%$95A 7)

B%/#90 (% 6-&-#.0 (% D)+30#A %A 7) ./)(-190 3/030#.) )F"+)A 30/ 4)$%F/"+5A

Outra distinção entre as duas traduções é a manutenção da

alternância de rimas, não só dentro das duas primeiras estrofes, mas entre as

mesmas. Procurou-se, além disso, a rima mais aberta e mais clara possível

como contraponto para a rima nasal aguda. Chegou-se, pois, aos pares

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4F$)/)-$)71)/)5 % 4)F$)/)-#%F-$)/ )5L n#.) [$."+) C0+0O07") @possível graças

ao enjambement 4#%F-$)/ -).@5L 6,-"A ) 3/%#%71) () B0&)$ 70 "7EF"0 (0 B%/#0

produz a rima. Note-se que enjambements ocorrem em poemas do próprio

Mallarmé, como em um de seus sonetos que se encerra como o dístico: ?Q#%

son chant réfleté jusqu "#, NN L2,%)%/ *, $H5/ R#':25 e? ALLARMÉ, 1945,

p.73). O recurso é, pois, condizente com a poética mallarmeana.

As escolhas feitas permitiram produzir rimas que introduzem alguns

.%/+0# %#./)7C0# )0 .%].0 F0+0 4agnus dei 5 % 4F$)/"+5L U%#.%A )"7() ,-% 0

som se sobreponha ao sentido, deslocando-o de maneira significativa, a ideia

central da manhã (alvorada) limpa e profunda, cortada pelo som do sino,

3%/+)7%F%L :0/ 0-./0 $)(0A 70 .%/+0 4F$)/"+5A %7F07./)-se a ideia do som dos

metais e de claridade. Destaca-se ainda que a rima ampliada em - timocupa

um lugar de destaque também na tradução; e retoma alguns signos

+0."B)(0# "+30/.)7.%#A F0+0 4$)."+5 elatin fA 4/%."7."+5(tintement). A motivação

#070/) 0F0//% .)+'@+ 7)# /"+)# (% #070/"()(% )'%/.)A 3/%#%7.%# %+ 4F$)/)5

(claire f % 4)F$)/)5 eéclaire ).

No segundo, note-#% ,-% 4agnus dei 5 %7F07./)-se no mesmo campo

#%+X7."F0 (% 4angelus 5 % 4$)."+5A )$@+ (% 3%/+"."/ -+) /"+) /)/) F0+

4%7O0/F)/%"5LO 4F0/(%"/0 (% \%-#5A 3/N."F) F0//%7.% (-/)7.% ) +"##)A /%.0+) )

ideia de re3%."190 e#%+3/% ) +%#+) $)()"7C)f % F07./)#.) F0+ 0 4>).95 (0

verso final, reforçando essa importante oposição que atravessa o poema de

Mallarmé entre alto e baixo, céu e inferno.

Há casos, ainda, em que a dificuldade não se deve a questões

métricas, rímicas ou de repetição, mas sim ao próprio léxico nas duas

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línguas, como em effleurer, que é utilizado, geralmente, em francês, no

#%7."(0 (% 4)//)7C)/A /01)/A /)#3)/A .0F)/ $%B%+%7.% e%+ )$&-@+ 0- %+ -+

)##-7.0f5L U%#.% F)#0A 6-&-#.0 (% D)+30# 03.0- 30/ 4%B0F)(05g %#F0$C%+0#

4.0F)(05A ,-% F070.) .)7.0 F07.).0 OE#"F0 ,-)7.0 ) )190 (% %+0F"07)/A )$@+

de remeter ao toque do sino. Outra distinção semântica importante entre as

duas traduções é, no verso que encerra o poema, a referência ao

enforcamento, que é um modo bastante singular de estar pendurado. Ela

aparece de forma bastante clara no texto mallarmeano, de forma ambígua na

tradução de Augusto de Campos e ressurge, de modo explícito, na última

rima de minha tradução.

Conclusão

Este artigo não esgota nem a análise do texto, nem o estudo das

traduções, mas atenta para o fato de que, caso o projeto do tradutor de um

poema parta do princípio de que a forma é constitutiva do modo de significar

do texto, esta pode ser reinterpretada em sua relação com o sentido. Trata-

se, no caso, de observar tanto os aspectos formais e as relações que este

possui com o sentido, quanto às especificidades discursivas do texto a ser

traduzido, como, por exemplo, a locução verbal avoir beau em francês ou o

uso dos pronomes adjetivos nessa língua.

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46

3.

Visilegibilidade em quatros traduções

-) 6)'0, ! Il Pleut * -' 76)88%&,%('

"5 (%10)5 -) '56,3) '0 ! Il Pleut *

A complexidade do modo de significar de um poema pode ser

F0+3/%%7("()A 30/ %]%+3$0A 30/ +%"0 (0 F07F%".0 (% 4/".+05A (%O"7"(0 30/

Henri Meschonnic (1982) como a organização dos movimentos da fala

(parole ) na linguagem. Esses movimentos incluem os aspectos tipográficos

(0 30%+)g ) ."30&/)O")A F0+3/%%7("() ),-" F0+0 40 F07W-7.0 () 3N&"7)A )#

relações entre o impresso e o branco, assim como a pontuação e os seus

F)/)F.%/%#5L e?n>DZMUUmDA _IhGA 3L`HK-307). É claro que tais elementostipográficos não podem ser isolados, mas são interpretados em sua

articulação com as outras dimensões significantes do texto.

Jacques Anis (1 Ih`fA )0 (%O"7"/ 0 ,-% %7.%7(% 30/ 4B"#"$%&"'"$"()(%5A

assinala que, para o poema, as formas gráficas não podem ser vistas nem

como um corpo estranho, nem como um meio relativamente transparente ouopaco, mas como um corpo significante integrado às isotopias textuais.

Assim, o caligrama não é apenas um desenho; nem o verso uma sequência

fônica somada a uma linha de letras. Segundo Anis (1983, p.97):

Um caligrama não se reduz à imagem, ele se caracteriza pelainteração de elementos heterogêneos: desenho global, relaçõesespacializadas entre os componentes: título, palavras, grafemas,

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48

No verso seguinte ; :"/'1 02,' #,'') 7,")5 $5/,1 (/%0/)55/,'/'

rencontres de ma vie, ô gouttelettes ; , após o silêncio que se impõe pelo

branco que o precede, surge, em eco (repete-se um il pleut , precedido de

aussi fA 0 [7"F0 F07./)307.0 %-O^/"F0A 4+)/)B"$C0#0# %7F07./0#5A "(%7."O"F)(0 d#

4&0.EF-$)# () FC-B)5L 6 +).%/")$"()(% () FC-B) F0+0 (%#F/"190 (% F%/.0

êxtase é acompanhada pelo desaparecimento dos elementos sonoros, que

ressurgem, no terceiro verso, para permanecerem até o fim do poema.

É, aliás, no terceiro verso ; et ces nuages cabrés se prennent à hennir

tout un univers de villes auriculaires ; que as metáforas sonoras mais se

adensam, pois as nuvens, revoltas, põe- #% ) 4/%$"7FC)/ .0(0 -+universo de

F"()(%# )-/"F-$)/%#5L k 0 3/^3/"0 B%/#0 ,-% /%$"7FC)A 3%$) "7.%7#) 3/%#%71)

estrondosa da vibrante [R]: caBRé, PRennent, henniR, univeRs,

auRiculaiRes , antes de um derradeiro desaguar melancólico.

Nos dois últimos versos, espacialmente muito mais próximos um do

outro, solicita-se a atenção do ouvinte...

6:2,1/ '")5 $5/,1 1#-*)' 7,/ 5/ %/4%/1 /1 5/ *6$#%1 $5/,%/-1 ,-/ancienne musique

écoute tomber les liens qui te retiennent en haut et en bas

escuta se chove enquanto a mágoa e a partida choram uma antigamúsica

escuta caírem os laços que te retém em cima e embaixo

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49

...para que ele ouça, primeiramente, num momento de encontro das

"+)&%7# ),-N."F)# F0+ )# "+)&%7# #070/)#A 4) +N&0) % ) 3)/."()5 ,-%

4FC0/)+ -+) )7."&) +[#"F)5L n##% @ .)+'@+ 0 +0+%7.0 em que se introduz

a última grande unidade de sentido em que reverbera, uma segunda vez, a

forma il pleut presente no verso inicial.

Em seguida, solicita-#% ,-% 0 $%".0/ 0-1) 4F)E/%+ 0# $)10#5A %$0# ,-%

/%.c+ %##% 0-B"7.% e.%f 4%+ F"+) % %+')"]05L n##) [ltima e curiosa imagem

coincide com o verso mais contido ; o mais curto e também o mais colado ao

verso anterior ; num gesto inversamente proporcional à expansão espacial

do verso primacial.

Assim, a introdução da imagem da queda ; queda última das vozes,

(0# O"0# .c7-%# ()# $%+'/)71)#A )7.%# /%."(0# 4%+ F"+) % %+')"]05A %+

grande medida, potencializa a verticalidade do poema. Não se trata apenas

dispor o poema de forma vertical, mas de produzir um efeito significante,

pois, apresenta-se visualmente o cair dos laços; movimento que encerra o

poema.

A dramaticidade da queda adensada pela verticalidade, levemente

diagonal, do poema adquire toda sua amplitude pelo lugar que a manchaocupa na página. O título, diferentemente do que ocorre, em geral, nas

publicações de poemas, não se encontra acima do poema, na edição de

1918 que foi acompanhada por Apollinaire (Figura 1). Neste caso, o poema

está no alto da página e o título está disposto à sua esquerda, seguido de um

grande vazio; branco que amplia o efeito de suspensão devido ao elo

rompido.

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A colocação do título à direita produz um redimensionamento de toda a

dinâmica discursiva do poema. Caso o título estivesse acima do texto ou a

sua esquerda, o percurso de leitura passa /") (0 4il pleut 5 (0 .E.-$0 )0 4il pleut 5

do início do primeiro verso. Com a disposição do título à direita, o percurso de

leitura inicia-#% F0+ 0 4il pleut 5 (0 3/"+%"/0 B%/#0 % F07F$-"-#% F0+ 0 4il pleut 5

do título; o que implica um circularidade da leitura ausente na disposição

tradicional (título numa posição de anterioridade no percurso de leitura). A

observação desses elementos que compõem a visilegibilidade do poema é

determinante no modo de significar das reescritas do poema propostas por

meio de suas traduções.

$)9(' ,5 1(,-.3:'5 -' ! Il Pleut *

Na primeira tradução aqui tratada (Figura 2), Oliver Bernard (In:

APOLLINAIRE, 1965) produz um texto em que, primeiramente, a colocação

do título à esquerda introduz outro percurso de leitura: perde-se o efeito de

circularidade acima mencionado e atenua-se a verticalidade do texto pelo fato

do título estar acima dos versos, o que enfraquece a intensidade de sua

queda.

A distribuição da mancha é também consideravelmente diferente. Por

um lado, não há a assimetria provocada pelo branco entre o primeiro verso e

os demais, o que reforça o caráter matricial do primeiro verso. A assimetria

entre o tamanho do primeiro verso, em plena expansão, com o último verso,

em contensão tampouco se nota. Por outro lado, a simetria na distribuição

diagonal dos versos, que introduz um movimento que sugere a passagem do

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vento, do tempo por entre os versos de chuva tampouco se verifica na

tradução. Há, pois, uma redistribuição espacial que modifica

consideravelmente a visilegibilidade do poema.

A segunda tradução (Figura 3), primeira de que se tem conhecimento

em português, feita por Paulo Hecker Filho (In: APOLLINAIRE, 1984)

desestrutura, por sua vez, a dinâmica discursiva do texto de Apollinaire por

outros motivos. O título é também colocado em posição tradicional, acima do

poema, mas, diferentemente da tradução inglesa, encontra-se centralizada e

bastante colada aos versos. A mancha acaba toda mais contida pela

proximidade com o texto que, por estar todo em caixa alta, desconstrói em

grande medida a iconicidade das letras, muito mais arredondada e próximas

das imagens das gotículas no texto de Apollinaire.

Hecker Filho também apaga o efeito de assimetria existente entre o

primeiro verso e os outros; além de romper com a diagonalidade, marca da

passagem do vento, que atravessa o texto de partida. Uma segunda vez, a

relação entre a mancha e os brancos não traz, no texto fonte, a complexidade

topográfica e tipográfica que configura o texto em francês.

A tradução para o espanhol (Figura 4) é, sem dúvida, muito maisatenta ao espaço gráfico do poema. Nela, J. Ignácio Velázquez (In:

APOLLINAIRE, 1997) produz uma distribuição dos versos de forma

assimétrica, tanto no espaço após o primeiro verso, como na contensão dos

(0"# [$."+0#A ,-% #% )3/0]"+) (0# 3/0F%##0# #"&7"O"F)7.%# (% 4Il pleut 5L ZNA

contudo, um excesso de irregularidade na distribuição das letras ao longo de

cada verso que introduz uma sinuosidade ausente da escrita de Apollinaire.

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Outra desatenção que persiste é o lugar do título que, mesmo estando

em caixa alta e num tamanho maior como ocorre no poema apollinairiano,

continua acima do poema e em cima do poema, desestabilizando a

circularidade que o título à direita proporciona.

;)( .0, ('1(,-.34) -' ! Il Pleut *

A retradução aqui (Figura 4), proposta (In: APOLLINAIRE, 2008), foi

feita como um espelho topográfico e tipográfico da primeira; o que se deu, em

grande medida, à oportunidade de lidar com a edição de 1918, na qual o

título ocupa lugar tão ímpar. A questão que se coloca, por fim, é justamente a

da materialidade do poema que, pelo modo como se distribui no espaço e de

como se desenha na página produz um ritmo, dinâmica discursiva que

7%F%##)/")+%7.% F07#.".-"/N #%- +0(0 (% #"&7"O"F)/L <%./)(-="/ 4Il pelut 5

significa, por fim, na perspectiva semiótico-textual aqui adotada, recuperar a

historicidade das marcas gráficas presentes na edição de 1918, a única cuja

publicação foi acompanhada pelo próprio Apollinaire.

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ANEXOS

Figura 1: Il Pleut edição do Mercure de France, 1918.

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Figura 2: Il Pleut tradução de Oliver Bernard, 1965.

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Figura 3: Il Pleut tradução de Paulo Hecker Filho, 1984.

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Figura 4: Il Pleut tradução J. Ignácio Velázquez, 1997.

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Figura5: Il Pleut tradução de Álvaro Faleiros, 2008.

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4.

O vocabulário caribenho:dificuldades na tradução de ! Les fenêtres * de Apollinaire

Tanto o estudioso da tradução quanto o didata depara frequentemente

com dificuldades interpretativas de ordem cultural. Nas linhas que seguem,descreve-se algumas opacidades presentes no texto 4Les fenêtres 5 de

Guillaume Apollinaire e mostra-se como elas induziram os tradutores

lusófonos do poema ao erro. A identificação de desvios interpretativos pode

indicar caminhos que ajudem a evitar esse tipo de erro numa futura

retradução.

Escrito para um catálogo da exposição de Delaunay, o poema 4Les

fenêtres 5 de Apollinaire é considerado um de seus textos mais

revolucionários. Por exemplo, D%'07 eGHHjA 3LP`f )O"/+) ,-%8 4%#.% 30%+)

mítico aparece como a emergência de uma nova fala poética. Ele joga com

%$%+%7.0# F0$0/"(0# % $-+"70#0#A %,-"B)$%7.%# 30@."F0# (0# 4F07trastes

#"+-$.X7%0#5 (0 3"7.0/ aDelaunay]5L A passagem rápida por diferentes

contextos imagéticos confere ao texto uma velocidade surpreendente. No

meio desse conjunto de referências, há um momento em que o autor passeia

por termos que remetem ao universo antilhano. O desconhecimento desse

fato cria uma série de opacidades para o tradutor desavisado e acaba

induzindo-o ao erro. No trecho em questão, lê-se:

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Tours

Les Tours ce sont les rues

Puits

Puits ce sont les places

Puits

Arbres creux qui abritent les Câpresses vagabondes

Les Chabins chantent des airs à mourir

Aux Chabines marronnes 15

Os termos no trecho supracitado que exigem do tradutor especial

atenção são Caprêsses , Chabinse Chabines , todos iniciados por maiúsculas.

Uma busca em dicionários franceses como o Larousse ou o Robert não

ajudam em nada o tradutor, uma vez que esses termos não constam nos

mesmos. Diante desse fato, os tradutores parecem ter optado por trabalhar

com induções que pressupõem, por exemplo, que Câpre remete

provavelmente a caprinoe que Chabin(e)remete a chèvre (cabra).

Dessa maneira, as traduções brasileira e portuguesa feitas nos anos

oitenta (APOLLINAIRE,1984; 1989) chegaram ao seguinte resultado:

Torres

As torres são ruas

Poços

Poços são praças

Poços

Torres

As torres são as ruas

Poços

Poços são as praças

Poços

15 Poema na íntegra anexo.

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Árvores ocas que abrigam cabrasvagabundas

Os bodes cantam árias de morrer

Às ovelhas marrons

(Trad. Hecker Filho, 1984)

Árvores ocas que abrigam ascabritas vagabundas

Os Carneiros cantam árias agónicas

Às Cabras castanhas

(Trad. Jorge de Souza Braga, 1989)

Hecker Filho chega, por um lado, a cabras, bodes e ovelhas , iniciados

por minúsculas; o que apaga qualquer possibilidade de particularização

gráfica dos termos, diferentemente do original. Por outro lado, mais sensível

à marcas do autor, Jorge de Souza Braga conserva as iniciais maiúsculas em

dois dos três termos; o que cria, contudo, uma disparidade entre o primeiro

termo (cabrita) e os demais.

Uma pesquisa em outras fontes mostra que, na realidade, os dois

tradutores equivocaram-se por não considerarem uma possível leitura cultural

dos textos. Ao longo de 4Les fenêtres 5 há uma série de referências a lugares

que culminam, nos últimos versos:

Paris Vancouver Hyères Maintenon New York et les Antilles

!# ./-S1%/ '"2,0%/ :2((/ ,-/ 2%#-4/

Le beau fruit de la lumière

A chave para se penetrar em uma dessas janelas é, como indicam os

versos acima, justamente as Antilhas. Nesse conjunto de ilhas de

colonização francesa, esses três termos têm uma conotação específica.

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O Trésor de la Langue Française , define Câpre, Caprêsse da seguinte

+)7%"/)8 4aNas Antilhas Francesas] Pessoa descendente do cruzamento de

negro e mulato. [...] derivado de câpre e)$F)3)//)f 4'0.90 (% O$0/5A 30/ )7)$0&")

(% F0/516. Trata-se, pois, de uma pessoa parda, definida em função da cor de

sua pele, por analogia com a cor da alcaparra. Não se trata, pois, de uma

cabra , mas provavelmente, no sentido figurado, de uma cabrita , visto que

este segundo termo refere- #%A #%&-7(0 Z0-)"## s !"$$)/ eGHH_fA ) 4+-$C%/

'%+ +0/%7) 0- +%#."1)5L

A escolha de Braga não parece, contudo, consciente, uma vez que

escreve cabrita em minúsculas e, em seguida, opta por Carneiros e Cabras ,

em referência direta aos animais. Cabin e Chabine , contudo, são também

denominações dadas aos mulatos. Segundo o Vocabulário da escravidão da

Martinica , Chabin @ 0 4+-lato de pele clara e de cabelos castanhos ou

/-"B0#517.

Ao entrevistar Raphaël Confiant, a jornalista Chantal Anglade confessa

#%- (%#)+3)/0 (")7.% (0 .%/+0 % )O"/+) ,-%8 4%#.) 3)$)B/) B)" .0/7)/

evidente para o leitor francês sua própria ignorância (compreende-se

4+-$).05A 4+%#."105A +)# 790 #% F0+3/%%7(% 4DC)'"75f518. Anglade, diante do

16 4Dt:<nA Dt:<n>>nL [Aux Antilles françaises] Personne issue du croisement de nègre etde mulâtre. [...] issu de câpre u '0-.07 (% O$%-/ v 3L )7)$L (% F0-$%-/5L m78 m?Y> s wTn?6\6(1971-1994).17 4ChabinL ?x$)./% d $) 3%)- F$)"/% %. )-] FC%B%-] FCX.)"7# 0- /0-]L5In: www.esclavage-martinique.com/fr/def/chabin.htm. Consultado em 14/09/2005.18 LLLF% +0. ,-" B) O/)33%/ $% $%F.%-/ +@./030$".)"7 (S"&70/)7F% e 07 F0+3/%7( u mulâtre »,« métis », on ne va pas comprendre « chabin ». In :

www.remue.net/article.php3?id_article=548. Consultado em 14/09/2005.

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primeiro choque, recorreu a conhecidos das Antilhas e chegou à conotação

caribenha do termo.

A incompreensão dos tradutores perante a referência ao mulatoexistente em Chabin soma-se a um outro erro, que faz com que traduzam o

adjetivo marronnes por marrons e castanhas . Note-se, primeiramente, que a

forma marronnes não pode referir-se à cor, uma vez que não há, em francês,

flexão de gênero nem de número no adjetivo referente à cor marron . Logo, a

forma flexionada, obrigatoriamente, diz respeito à segunda acepção do

termo, que se encontra no dicionário Le Petit Robert A 07(% #% $c8 4_KjHA

palavra das Antilhas [...] Escravo negro marron : que fugiu para viver em

$"'%/()(%519 . A não diferenciação entre o adjetivo invariável indicativo da cor e

o adjetivo de origem antilhana levou os dois tradutores a uma interpretação

errônea do poema. Soma-se a isso o fato de que, em português, a forma

mais utilizada é marrom , adjetivo invariável.

Na terceira tradução de que dispomos do poema, Pignatari (1996) foi

sensível ao sentido de marronnes , como se nota no trecho abaixo:

Tours

As Torres são as ruasPoços / Depois

São praças lugares

Depois / Poços

Árvores ocas que abrigam alcaparras vagabundas

19 4_KjHA +0. (%# 67."$$%# aLLLb n#F$)B% 7y&/% +)//07 8 ,-" #S%#. %7O-". 30-/ B"B/% %7 $"'%/.@5LIn:

REY & REY-DEBOVE (1990).

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Os Chabinos cantam árias de morte

Às Chabinas fugitivas

(Trad. Décio Pignatari)

A sensibilidade do autor, entretanto, não o impediu de acrescentar, em

demasia, surrealidade às imagens do texto de Apollinaire. Imaginar

4)$F)3)//)# B)&)'-7()# %#F07("()# %+ N/B0/% 0F)#5 30(% ).@ O)=%/ )$&-+

sentido, mas não em um contexto antilhano, que se desdobra nos versos

seguintes, nas imagens dos Chabins e Chabines . A escolha de Pignatari,

apesar de lúdica, insere no texto uma dose exagerada de invenção, uma vez

que os termos em francês remetem a um contexto bastante singular.

Procurar um termo tão específico quanto Chabinos e Chabinas (que são o

cruzamento do carneiro com a cabra) o distancia do texto de Apollinaire.

D0+0 )F"+) )##"7)$)(0A 70 30%+) 4Les fenêtres 5A 6pollinaire explicita oslugares-janelas que se abrem no poema.

A partir dos comentários tecidos, propomos para este trecho de

Apollinaire a seguinte retradução:

Tours

As Torres são as ruas

Poços

Pois eles são as praças

Poços

Árvores ocas que abrigam Mulatas vagabundas

Os Cabras cantam árias de morte

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Há outro aspecto interpretativo que aparece nas primeiras linhas do

trecho aqui em questão que não diz respeito diretamente às Antilhas, mas

que é, provavelmente, o maior desafio de qualquer tradutor: o signo duplo .

Riffaterre (apud LARANJEIRA,1993: 104) define-0 F0+0 43)$)B/) ,-% $"&)

F)(%")# )##0F")."B)# ,-% F0//%+ 3)/)$%$)+%7.% 7-+) O/)#%5L :0/ %]%+3$0A

em francês, o termo Tours remete tanto à cidade com este nome, quanto a

torre . O termo puits , assim grafado significa poço , mas é homófono a puis

que pode ser traduzido, entre outros, por depois, em seguida, pois . Atento à

polissemia, Pignatari é o único a trazer para sua tradução diferentes

possibilidades, ainda que tenha introduzido uma dificuldade inexistente no

texto de Apollinaire ao explicitar os possíveis sentidos com sua fórmula

poços/depois; depois/poços . Na retradução proposta, procurou-se um meio

termo, abrindo as possibilidades de leitura, sem deslocar em excesso os

percursos de leitura.

As breves colocações feitas apontam, assim, para alguns cuidados

necessários no momento da interpretação de um texto. Primeiramente, evitar

qualquer tipo de suposição que possa levar a equívocos graves, e não

inventar soluções mirabolantes que não tenham respaldo em nenhuma fonte,

ou seja, é arriscado deduzir câpre (alcaparra) de câpresse ou contentar-secom a semelhança entre Chabin e chèvre . Em seguida, manter-se atento

para a morfossintaxe da língua de partida, caso contrário pode-se interpretar

erroneamente adjetivos que sejam homônimos em sua forma masculina e

singular, como é o caso de marron .

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Enfim, esta retradução cumpre o papel de, por meio de uma

reinterpretação, despertar o leitor para as marcas culturais presentes no texto

de partida; marcas essas que se articulam com a história comum que a

escravidão acarretou como processo de crioulização tanto nas Antilhas

quanto no Brasil.

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Anexo

4Les fenêtres 5

Du rouge au vert tout le jaune se meurtQuand chantent les aras dans les forets natalesAbatis de pihisIl y a un poème à faire sur l'oiseau qui n'a qu'une aileNous l'enverrons en message téléphoniqueTraumatisme géantIl fait couler les yeuxVoila une jolie fille parmi les jeunes TurinaisesLe pauvre jeune homme se mouchait dans sa cravate blancheTu soulèveras le rideauEt maintenant voilà que s'ouvre la fenêtreAraignées quand les mains tissaient la lumièreBeauté pâleur insondables violetsNous tenterons en vain de prendre du reposOn commencera à minuitQuand on a le temps on a la libertéBigorneaux Lotte multiples Soleils et l'Oursin du couchantUne vieille paire de chaussures jaunes devant la fenêtreToursLes Tours ce sont les ruesPuitsPuits ce sont les placesPuitsArbres creux qui abritent les Caresses vagabondesLes Chabins chantent des airs à mourirAux Chabines marronnesEt l'oie oua-oua trompette au nordOù les chasseurs de ratonsRaclent les pelleteriesÉtincelant diamantVancouverOù le train blanc de neige et de feux nocturnes fuit l'hiverÔ ParisDu rouge au vert tout le jaune se meurtParis Vancouver Hyères Maintenon New York et les Antilles

La fenêtre s'ouvre comme une orangeLe beau fruit de la lumière

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frescor, oposta ao artifício da poesia erudita, que busca operar aressurreição da beleza mortal e lhe assegurar imortalidade poética 20.

Esse longo poema octossilábico, formado por quatorze quadras com

rimas alternadas, é, segundo Guimarães (2007, p.73), -+) %#3@F"% (% 4)/.%

poét"F)5 +)$$)/+%)7)L U%$)A ) )+'"&-"()(% (0 .%/+0 4prose 5 ; que significa

tanto narrativa, quanto hino ; , de certa forma, anuncia a complexa relação

que se desenha no poema ; e na concepção de linguagem mallarmeana ;

entre o divino e a palavra.

No poema, as duas primeiras estrofes funcionam como introdução,

depois das quais, para Noulet (1974, p.254), inicia-se uma pintura da

4+"#.%/"0#) )B%7.-/) () F/")190 30@."F)5L k 3/%F"#)+%7.% 7%##% "7Ecio que

surge o termo grimoire :

Hyperbole! De ma mémoire

Triomphalement ne sais-tu

T/ 5/0/%> #,D2,%*"=,) 4%)(2)%/

Dans le livre de fer vêtu :

9#% D")-'1#55/> $#% 5# ':)/-:/>

!"=3(-/ */' :U,%' '$)%)1,/5' @- 5"U,0%/ */ (# $#1)/-:/>

Atlas, herbiers, rituels.

Hipérbole! De minha memória

Triunfalmente não tens sabido

Erguer-te, hoje grimoire

No livro de ferro vestido:

Pois instalo, pela ciência,

O hino de corações espirituais

Na obra de minha paciência,

Atlas, herbários, rituais21.

20 Tradução de J. C. Guimarães.21

Essa tradução essencialmente semântica visa somente dar para o leitor elementos para acompreensão do texto.

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Para refletir sobre possíveis significações de grimoireno poema, é

necessário saber que, em francês, o termo grimoire , sem equivalentes em

dicionários brasileiros, significa, segundo o Littré (1958)22:

1. O livro dos bruxos para evocar os demônios, etc. [...] Houve livrosem que os mistérios dos bruxos estavam escritos; vi um no qualdesenharam bem mal um bode e uma mulher de joelhos atrás dele;chamavam esses livros degrimoires na França e, em outros lugares,o alfabeto do diabo . VOLT. Dict. phil. Bouc.[?@ Fig. Saber o grimoire, escutar o grimoire A #%/ CN'"$ 7),-"$0 %+ ,-% 70# %7B0$B%+0# azb

2. Fig. e familiar. Discurso obscuro, escrita difícil de se ler [...]

Já foi feminino: Mas encontro em minha grimoire que a fé nunca oabandonará [...]

Diez pensa que a palavra vem do antigo Alemão grîma , espectro. Masa forma antiga da palavra, que é gramaire , gramare , não a aproximade grîma . Génin identifica uma variação da palavra grammaire

(gramática), tendo sido a gramática considerada como um livro deciência oculta no qual lia-se para evocar o diabo. Schleler observa oradical grimer , que significa rabiscar (griffonner ); mas assim comopara grîma, a raiz é gramare e não grimoire; grimoire só aparece noséculo XVI, tendo passado por gramoire. Desse modo, é melhorseguir a forma vinda de gramare do baixo-latin gramma , letra; deletra, pode-se passar para o sentido de grimoire .

Como Mallarmé é um poeta que mergulha com frequência naetimologia, pareceu importante não apenas referir-se à compreensão de

grimoire F0+0 4$"B/0 (0# '/-]0#5A 0- F0+0 4("#F-/#0 0'#F-/0 % %#F/".) ("OEF"$5A

mas remeter à sua etimologia ; gramática, por sua vez compreendida como

22 A escolha do dicionário Littré deve-se ao fato de esse dicionário ser, segundo Chassée_IPjA 3L_KIfA 4aLLL] o livro que seguramente exerceu sobre Mallarmé a mais profunda

"7O$-c7F")5.

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71

4$%./)5A F0+0 4$"B/0 (% F"c7F") 0F-$.)5 % F0+0 +%.)$"7&-)&%+A $-&)/ (%

desenvolvimento de um discurso sobre a própria linguagem.

Com efeito, Mireille Rupli e Sylvie Thorel-Cailleteau (2005)desenvolvem um longo estudo em que demonstram que Mallarmé

estabeleceu uma relação etimológica entre os termos grimoire e grammaire ;

sendo, para ele, o primeiro uma variante do segundo. Conforme as autoras,

essa etimologia está na origem de uma tríade ortografia- grimoire -Literatura,

baseada na ideia de que a gramática trata das relações entre as letras e as

palavras (RUPLI; THOREL-CAILLETEAUapud GAULIN, 2005). Ogrimoire

seria, assim, o espaço no qual se conjugam os signos e são esses

agrupamentos que engendram os versos. Segundo esse princípio, a voz do

poeta não viria do alto, mas do baixo, da própria matéria da linguagem. Caso

se possa falar de uma filosofia de Mallarmé, essa se encontraria no próprio

grimoire , de onde emana a Literatura.

Rupli e Thorel-Cailleteau (2005) também apontam para o fato de que

as reflexões de Mallarmé sobre a linguagem estão diretamente ligadas a sua

experiência do abismo (gouffre ), origem de um impasse teológico profundo ;

que também aparece em Igiture no Coup de dés V diante da impossibilidade

de um Deus transcendente. Para Mallarmé, a única possibilidade de se

3/0(-="/ -+) 30@."F)A (")7.% () 4"+30##"'"$"()(% (% \%-#5 e0 )F)#0fA #%/") )

própria matéria. Trata-se, para o poeta, de 3/0(-="/ 40 ("B"70 F0+ )

$"7&-)&%+5L ?)$$)/+@ e_IhjA 3LjKfA %+Igitur A FC%&) ) )O"/+)/ ,-% 4le hasard

était nié par le grimoire 5 e0 )F)#0 %/) 7%&)(0 3%$0grimoire ). Desse modo, a

ciência e a espiritualidade são fontes complementares, imbricadas, de

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conhecimento. Chassé (1954, p.21), por sua vez, acrescenta que o interesse

3%$0 +"#."F"#+0 4aLLLb +)7"O%#.)-se nas teorias filológicas de Mallarmé e [que]

esquecemos com muita frequência que elas estão na base de sua arte

30@."F)5.

A leitura de Bénichou (1995) s0'/% 0 "7EF"0 (0 30%+) 4:/0#)5 .)+'@+

aproxima o termo grimoire da própria escrita poética. Dessa maneira, a

4C"3@/'0$% B"B"()5 % ,-% )'/% 0 30%+) .%+A 70grimoire , a sua versão escrita

(BÉNICHOU, 1995, p.286); oélan da hipérbole vê-se preso nas ferragens de

um livro, instalado numa obra fixa ; 4:0"# "7#.)$0A 3%$) F"c7F")A {M C"70 (%

F0/)12%# %#3"/".-)"# {U) 0'/) (% +"7C) 3)F"c7F")5A $c-se no poema. Como

70.) Y@7"FC0- e_IIPA 3LGhKfA ),-"$0 ,-% #% "7#.)$) 70 30%+) @A 4#%&-7(0 #-)

própria frase [de Mallarmé]A -+) %$%B)190 (% 7).-/%=) +E#."F)5 ; hino de

F0/)12%# %#3"/".-)"#L ?)"# d O/%7.%A Y@7"FC0- e_IIPA 3LGh|f F07F$-"8 4aLLLb

assim, essas duas estrofes já podem querer dizer, como que pela força das

coisas, que é apenas pela linguagem que se pode significar aquilo está além

(%$)5.

6# (-)# %#./0O%# #%/B%+A )##"+A F0+0 4aLLLb -+) %#3@F"% (% $%+) $E/"F0

permanente do poeta e que o poema, como narrativa ( récit fA "$-#./)5.

(BÉNICHOU, 1995, p.285). Vê-se, dessa forma, a importância do termo

grimoire na obra e no pensamento de Mallarmé. Cabe agora verificar como

os tradutores lidaram com o termo.

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" 6)'0, !;()5,* ' ,5 A.,1() 1(,-.3:'5 -' grimoire

Júlio Castañon Guimarães (2007), adotando uma perspectiva maishistoricizada ao situar sua retradução em relação às anteriores, atenta para)$&-7# 3/0'$%+)# 7) ./)(-190 (% B0FN'-$0# (0 30%+) 4:/0#)5A (%7./% 0#quais destaca grimoire . Segundo Guimarães (2007, p.80):

É difícil encontrar em português um único vocábulo satisfatoriamentecorrespondente. A tradução de José Paulo Paes [1992] apresenta a#0$-190 4F)')$) "7B0F).^/")5A %7,-)7.0 7) (% 6-&-#.0 (% D)+30#a_IIGb #% $c 4&)/).-W) "7&$^/")5 e@ F$)/0 ,-% )# %#F0$C)# 790 #% O)=%+

apenas no nível do significado vocabular, mas também levando emconta todo o contexto, inclusive a métrica e a rima). Essas duastraduções optam cada uma por um extremo, por assim dizer, doespectro de acepções de grimoire L U) +"7C) ./)(-190A 40'#F-/)C"#.^/")5 3/0F-/) 790 #% 3/%7(%/ )3%7)# )0 )#3%F.0 OE#"F0 () %#F/".)Anem direcionar o significado num certo sentido ocultista.

O termo grimoire O0"A )##"+A ./)(-="(0 30/ 4F)')$) "7B0F).^/")5A

4&)/).-W) "7&$^/")5 % 40'#F-/) C"#.^/")5LNeste último caso, Júlio retraduz

F$)/)+%7.% 0 .%/+0A (%#$0F)7(0 0 #%7."(0g #-) %#F0$C) 30/ 40'#F-/) C"#.^/")5

remete assim não apenas a grimoire , mas à própria história do termo em

português, cuja história permanece pouco clara.

Mais recentemente, soma-se a essas propostas a tradução de

Joaquim Brasil Fontes (2007, p.153) de grimoire 30/ 4C"%/^&$"O05 ,-%A (%

alguma maneira, remete mais ao aspecto de termo de difícil decifração,

deslocando-o, contudo, para outro contexto simbólico. Nenhuma das

tentativas, porém, retoma a noção de gramática e, menos ainda, a

complexidade da polissemia que o termo implica. Os tradutores preferiram

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todos situar-se dentro de certo universo simbólico disponível em português,

ainda que isso acarrete um esvaziamento da carga simbólica de grimoire .

Guimarães (2007, p.80) ainda retoma o pensamento de Fowlie (1953)e assinala que se deve, no poema, atent )/ 3)/) 0 O).0 (% ,-% 4aLLLb 0 -#0 ()

palavra grimoire acentua a crença de Mallarmé na ausência de acaso na

criação de poesia. Trata-se da arte do controle, não importando até onde é

+"#.%/"0#0 0 F07./0$%L523 As escolhas tradutórias para o português lidam mal

com a noção de controle, pois nem cabala, nem hieróglifo, nem história, nem

garatuja destacam essa ideia, retomando, cada uma de sua maneira,

sobretudo, o sentido de dificuldade de leitura e de decifração.

A postura conservadora dos tradutores diante do termo grimoirenão

impediu nem José Paulo Paes, nem Augusto de Campos de, em outro

momento do mesmo poema, optar por um neologismo. Como analisa

Guimarães (2007, p.81):

A ocorrência na oitava estrofe de um vocábulo científico,4"/"(@%#5A (%70+"7)190 (% -ma família de plantas, estabeleceuma série de nexos. Em primeiro lugar o vocábulo faz parte daB"/.-0#E#."F) /"+) 4(@#"/A "(@%#5 { 4(%# "/"(@%#5L U%7C-+) ()# ./c#

traduções conseguiu solução equivalente ao original nestapassagem, sendo que José Paulo Paes e Augusto de Campos#% B)$%/)+ () $"'%/()(% (% F/")/ ) O0/+) 4"/"(@")#5 % %#.)'%$%F%/a rima com ideia#A ,-)7(0 ) O0/+) ("F"07)/"=)() @ 4"/E(%)#5 0-4"/"(NF%)#5L

23 Tradução de J. C. Guimarães.

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propriedades da língua e introduziram mais um novo termo, como fizeram

F0+ 4"/"(@")#5l U90 #%/") 30##EB%$ F-7C)/ -+ 7%0$0&"#+0 ) 3)/."/ (%

grimoire ?

De grimoire , !B(%0C(%)* : por uma retradução como invenção

Uma primeira possibilidade para o tradutor, caso queira trazer para o

português a carga semântica presente no termo grimiore , em francês, é

cunhar um novo vocábulo ; como Augusto de Campos e José Paulo Paes

O"=%/)+ F0+ 4"/"(@")#5 ) 3)/."/ () 3/0]"+"()(% %]"#.%7.% %7./% 0# #-O"]0# (%

idées % 4"(eia#5L U%##% F)#0A 30(%-se utilizar o sufixo degrimoire ; presente

também em mémoire (memória), gloire (glória), ou ainda em oratoire

(oratório) e aléatoire (aleatório) ; % F-7C)/A %+ 30/.-&-c#A 4&/"+ó/")5 0-

4&/"+ó/"05A B"#.0 ,-% 0 .%/+0A %+ O/)7Fc#A (% )F0/(0 F0+ 0Littré , já foi

também feminino.

6 B)7.)&%+ 7) %#F0$C) (% 4&/"+ó/")5 @A 70caso da obra de Mallarmé,

sem dúvida, a facilidade da rima perfeita, tão cara a alguns tradutores, pois o

uso do termo no poeta em questão, vem, em geral, associado a palavras que

rimam com termos como mémoire (memória). A escolha por uma das duas

opções ; 4&/"+ó/")5 0- 4&/"+ó/"05 ; pode ser também mediada, neste caso,

por algumas outras práticas discursivas reveladoras, que lançam outras luzes

sobre a questão, para além da ausência do termo em nossos canônicos

dicionários da língua portuguesa.

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6.

Retraduzir Um lance de dados:

contrapontos à sinfonia haroldiana

A publicação da tradução do Lance de dados , por Haroldo de Campos

(In: MALLARMÉ, 1991), é um marco, pois permitiu aos leitores brasileiros

entrar em contato com uma das mais importantes obras da história da

literatura em cuidada edição, acompanhada de notas e análises, num livro

onde é possível, também, reler uma parte importante dos poemas de

Mallarmé em português.

Esse minucioso trabalho realizado por Haroldo corresponde ao que

Meschonnic (1982, p.130) considera uma boa tradução, isto é, aquela que

4%+ /%$)190 F0+ ) 30@."F) (0 .%].0 "7B%7.) #-) 3/^3/") 30@."F) % ,-%

substitui as soluções da língua pelos problemas do discurso, até inventar um

novo pr 0'$%+)A F0+0 ) 0'/) "7B%7.)5L

E, justamente por inventar novos problemas, uma boa tradução pode

provocar uma retradução; questões em processo; sujeito e história que se

reconfiguram. É nessa perspectiva que são aqui apresentados elementos

para uma retradução do poema Um lance de dados em português.

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Notas ao Prefácio e a sua tradução.

O Lance de Dados foi, desde sua primeira edição, acompanhado de

um prefácio, paradoxalmente introduzido por Mallarmé com um pedido para,-% O0##%A $0&0 )3^# #-) 4"7[."$ $%".-/)5A %#,-%F"(0L 6 3/%#%71) (%##%

prefácio é, contudo, parte do texto e revela-se um verdadeiro programa da

470B) )/.%5 30@."F) ,-% 0 .%].0 "7)-&-/)L

A tradução do prefácio pode ser, pois, uma indicação dos princípios

adotados pelo tradutor na relação que estabelece com o texto. Um exemplo é

a tradução da expressão mise en scène ; presente na importante sentença

em que se fala das 4#-'("B"#2%# 3/"#+N."F)# () m(%ia [... que] dura seu

F07F-/#05A 4(#-' 7,/57,/ ()'/ /- ':&-/ '$)%)1,/55/ /P#:1/B ; traduzida por

47)$&-+) F%70&/)O") %#3"/".-)$ %]).)5A 30/ Z)/0$(0 (% D)+30#. Creio,

contudo, que o termo pode ser retraduzido por 4%+ )$&-+) %7F%7)190

%#3"/".-)$ %]).)5L

A distinção, que aparece na primeira metade do prefácio, ilustra uma

relevante diferença de postura. Segundo o Dicionário Houaiss da Língua

Portuguesa A 4F%70&/)O")5 @A 3/"+%"/)+%7.%A -+ .%/+0 (% )/,-".%.-/)A ,-%

#"&7"O"F) 4)/.% % .@F7"F) (% /%3/%#%7.)/ %+ 3%/#3%F."B)5 %A %+ #%&-"()A -+.%/+0 (0 .%)./0A ,-% ,-%/ ("=%/ 4)/.% % .@F7"F) (% 3%/#3%F."B)/ )#decorações

Fc7"F)#5g 70# (0"# F)#0# ./).)-se da arte de construir cenários, como o termo

scénographie A %+ O/)7Fc#L :0/ 0-./0 $)(0A 4%7F%7)1905A (% )F0/(0 F0+ 0

+%#+0 ("F"07N/"0A @ -+ .%/+0 (0 .%)./0 ,-% #"&7"O"F) 0 4).0 0- %O%".0 (%

encenar (pôr em cena); %#3%.NF-$0 .%)./)$A +07.)&%+A /%3/%#%7.)1905L U90 @

por acaso que, em francês, metteur en scène é diretor de teatro.

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Dá-#%A 30"#A 7) 3/"+%"/) ./)(-190A (%#.),-% d 4)/.% % d .@F7"F)5 (% #%

construir cenário. Na segunda, destaca- #% 0 4).0 0- O%".05A &%#.0 ,ue é

montagem e espetáculo, talvez, sinfonia e ópera. Trata-se, neste caso, de

estar em cena e não de constituir cenário. Como assinala Leyla Perrone-

Moisés (1980):

O fingimento, a encenação, são os únicos meios de o sujeito seprocessar na escritura. [...] Teatro e escritura são inseparáveis:46./)B@# () %#F/".-/)A 0 #)'%/ /%O$%.% "7F%##)7.%+%7.% #0'/% 0 #)'%/Asegundo um discurso que não é mais epistemológico, mas(/)+N."F05L

6 70190 (% 4%7F%7)1905 )'/% -+ F)+30 #%+X7."F0 ,-% .%+

desdobramentos importantes em outros momentos do texto, como na

tradução de récit A ,-% )3)/%F% %+8 4Tout se passe, par raccourci, en

=3$2=1&'/W 2- /0)1/ 5/ %6:)1B .

O termo récit , no Littré , refere-#% .)7.0 ) 4/%$).05 ; action de raconter

une chose ;A ,-)7.0 d 47)//)."B)5 ; *#-' 5" art dramatique, la narration

*61#)556/ *",- 606-/(/-1 7,) 0)/-1 */ '/ $#''/% . 6 %#F0$C) (0 .%/+0 4/%$).05A

por Haroldo de Campos, é bastante precisa e mais abrangente do que a

%#F0$C) (% 47)//)."B)5 que se justifica, contudo, por uma vontade de salientar

o campo semântico do teatro (e da ópera), central no poema e em seu

prefácio onde se fala em encenação, em verossimilhança e em ficção. Ficção

disposta prismaticamente, como ocorre no mundo das Ideias, e não

linearmente como, em geral, apresentam-se as narrativas.

Na mesma sentença citada acima, em que há o termo récit , nota-se a

possibilidade de outra retradução, mas agora de natureza sintático-

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semântica, no que concerne a difícil expressão par raccourci , utilizada por

Mallarmé, e que não aparece dicionarizada. No Littré, encontra-se en

raccourci A F0+ 0 #%7."(0 (% 4%+ /%#-+05LRaccourcipode significar também

4).)$C05L U0 .%].0A 3%/+)7%F% )+'E&-) ) %]3/%##90Aassim, tanto a leitura de

Z)/0$(0 (% D)+30#A (% ,-% 4J-(0 #% 3)##)A 3)/) /%#-+"/A %+ C"3^.%#%5A

qu)7(0 %#.)A (% ,-% 4J-(0 #% 3)##)A 30/ ).)$C0A %+ C"3^.%#%5, são possíveis.

A diferença é que, na tradução de Haroldo de Campos, destaca-se a

hipótese, já na retradução, tudo o que ocorre passa por atalhos e em

hipótese ou, quem sabe, em hipótese por atalhos; o que salienta as

encruzilhadas dos percursos de leitura do texto mallarmeano.

As encruzilhadas mallarmeanas são, com efeito, múltiplas e obrigam o

tradutor a se posicionar, não só diante das grandes questões, mas, também,

diante de alguns vocábulos, como feuillet , traduzido por Haroldo de Campos

30/ 43N&"7)5L n7./%.)7.0A )$&-+)# $"7C)# )')"]0A ?)$$)/+@ -."$"=) 0 .%/+0

Page , em maiúscula, distinguindo-a de feuillet . Na tradução de Haroldo de

Campos as duas palavras distinguem-se apenas pela maiúscula. Para evitar

esta repetição, parece melhor retraduzir feuillet30/ 4O0$C)5L

Na perspectiva da retradução, apontar para modificações não impede

que se retome soluções adotadas anteriormente. Por exemplo, em sua

tradução, Haroldo traduz portée por 4("#30#"1905, como se o texto estivesse

em uma pauta de música, ou ainda retraits , que é traduzido por 4retrações 5.

A retomada desses termos numa retradução não impede que se adote outra

postura tradutória, como bem ilustrou a retradução, no Prefácio, do termo

mise en scène . Essa distinção também se dá na tradução do poema.

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A tradução de Lance de dados

Haroldo de Campos, n-+ .%].0 "7.".-$)(0 4\)# %#./-.-/)# ("##"3).^/")#

à constelação: a transcriação do Lance de dados (% ?)$$)/+@5 e_IIKA 3L`K-

39), vinte anos depois da primeira publicação de sua tradução, resume os

critérios que adotou em sua transcriação ; que ele chama de teoria radical da

tradução poética ; do Lance de dados a cinco:

1) o nível gráfico,

2) o grafo numerológico,

3) a retomada etimológica,

4) a macro-sintaxe,

5) as correspondências semântico-visuais.

Nas linhas que seguem, analiso cada um desses critérios e apresento,

em alguns casos, propostas de retradução.

O nível gráfico, no caso de um poema como o Lance de dados , é

evidente, uma vez que Mallarmé (1945, p.455) explicita, já no início do

prefácio ao poema, que a disposição das palavras introduz como novidade o

4%#3)1)+%7.0 () $%".-/)5L M# 4'/)7F0#5 )##-+%+ "+30/.X7F")A 4FC0F)+ (%

"7EF"05 %A +)"# )(")7.%A "7O0/+)8 46 ("O%/%71) (0# F)/)F.%/%# ."30&/NO"F0# %7./%

o motivo preponderante, um secundário e adjacentes, dita sua importância na

emissão oral e a disposição na pauta, média, no alto, embaixo da página,

70.)/N 0 #-'"/ 0- 0 (%#F%/ () %7.07)1905L

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Desse modo, tanto a disposição espacial das palavras quanto os

tamanhos e formas dos tipos gráficos são centrais no modo de significar do

poema e podem assumir configuração homóloga, caso se queira uma

tradução com alto grau de aderência ao texto de partida. Nesse caso, o

primeiro critério exige do tradutor e do editor uma enorme atenção. Seu

redimensionamento, contudo, como se pode notar no artigo seguinte sobre

as refrações, pode também abrir o texto a outras interpretações.

Pode-se também notar que, ao referir-se à diferença dos caracteres

como indicação da existência de um motivo preponderante, um secundário e

outros adjacentes, Mallarmé assinala a existência de uma macro-sintaxe,

outro dos cinco critérios de Haroldo de Campos. Com efeito, Haroldo de

Campos propõe uma excelente solução para a dupla negação do francês

existente no motivo preponderante: UN COUP DE DÉS / JAMAIS /

US6YMVm<6 { Vn Z6>6<\L D0+0 0 +%#+0 %7F07./)-se disperso ao longo do

poema, Haroldo traduz esse motivo da seguinte maneira: UM LANCE DE

DADOS / JAMAIS / JAMAIS ABOLIRÁ / O ACASO. A repetição do advérbio

de negação evita a introdução de um contrassenso grave no poema, motivo

pelo qual foi incorporada na retradução.

Há, contudo, momentos em que a macro-sintaxe pode criar pontos de

tensão com a micro-sintaxe. No poema de Mallarmé, o motivo preponderante

e o secundário distribuem-se ao longo do texto, ramificando-se; e acabam por

estabelecer outras redes de sentido com os elementos que se encontram na

mesma página. Essa dupla função sintática é uma das características

centrais do Lance de dados ; topologia que rompe com a organização linear

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dos sentidos. Octavio Paz (1999, p.328), em O arco e a lira , sintetiza essa

("7X+"F) () #%&-"7.% +)7%"/)8 4)# O/)#%# .%7(%+ ) F07O"&-/)/ em-se em

centros mais ou menos independentes, à maneira dos sistemas solares

dentro de um universo; cada raiz de frases, sem perder sua relação com o

.0(0A F/") -+ (0+E7"0 3/^3/"0 7%#.) 0- ),-%$) 3)/.% () 3N&"7)5L T+ (0#

maiores desafios da tradução do jogo mallarmeano é, justamente, não perder

de vista essa dupla dinâmica no poema, ou seja, estar atento às

configurações próprias de frases e de páginas sem, contudo, perder a

relação com o todo.

Um dos momentos mais críticos da tensão entre macro e micro-sintaxe

é a tradução do motivo secundário: L) N :"61#)1 N 5/ E2(;%/ N '/ '/%#)1 . E que

O0" ./)(-="(0 30/ Z)/0$(0 (% D)+30# () #%&-"7.% +)7%"/)8 4>% { O0##% { 0

7[+%/0 { #%/")5L U-+) )7N$"#% +)F/0-sintática, a tradução de Haroldo de

Campos é inquestionável, natural. Entretanto, micro-sintaticamente o verbo

:"61#)1inicia uma página e está distante da conjunção de condição Si . Nesse

seu sistema solar próprio lê-#%8 49"61#)1 N 5/ E2(;%/ N )'', '1/55#)%/5g ,-% 30(%

#%/ ./)(-="(0 30/8 4n/) { 0 U[+%/0 { #)E() %#.%$)/5L

A dificuldade é que a conjunção Si , em francês, é seguida pelo

imperfeito do indicativo e, em português, seguida do imperfeito do subjuntivo.

A mudança de modo verbal produz, no sistema micro-sintático, um

deslocamento aspectual relevante, pois o aspecto indicativo esvazia-se,

intraduzível... A menos que se opte pela produção de uma agramaticalidade.

Poder-se-ia justificar a escolha pelo fato de o próprio Mallarmé ter produzido,

em seus poemas, agramaticalidade. Essa postura possível, mas radical,

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levaria inevitavelmente a um enfraquecimento da macro-sintaxe do poema,

ainda que ela, em certa medida, se conservasse pelo aspecto tipográfico.

A tensão entre a autonomia dos sistemas das frases e a unidade dopoema é um aspecto que pode orientar a discussão sobre um terceiro

critério, talvez o mais polêmico dos cinco adotados por Haroldo de Campos,

,-% %$% FC)+) (% 4correspondências semântico-visuais 5L m7#3"/)(0 70#

estudos formalistas, Haroldo de Campos concentra-se de modo obsessivo na

busca de tais correspondências e faz destas o tema central de suas notas

sobre a tradução. Uma descrição detalhada de todas as correspondências

assinaladas por Haroldo de Campos seria por demais extensa. Basta, como

ilustração, a tradução de furieux30/ 4"/0#05A ,-% Z)/0$(0 (% D)+30# e_II_A

p.122) justifica assim:

m<M>MA +)"# F-/.0 ,-% 4O-/"0#05A .%+A O"guradamente, o sentido de4.%+3%#.-0#05A #%/B"7(0 )(+"/)B%$+%7.% )0 F07.%].0A 07(%furieux (elemento cinético, de tensão) contrasta com étale (apogeu estático).Q)/(7%/ \)B"%#8 4k.)$% d 3/@#%7.A )3/y# $S0/)&%A $) +%/ %#. %7F0/%fouettée par le vent, blanch% @F-+%5 e7EB%$ 3/"+%"/0A $".%/)$A ,-% 790esgota, evidentemente, o leque plúrrimo do texto). Anagramatização:IrOSO / aBISmO / SOB.

6 -."$"=)190 (% .%/+0# F0+0 4$%,-% 3$[//"+05 % 4)7)&/)+)."=)1905 #90

bons exemplos tanto da atitude quanto do tom vanguardista e erudito que

Haroldo de Campos adota, e que permeia não só sua análise, mas também

suas escolhas tradutórias; escolhas estas por vezes controversas.

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87

M F/".@/"0 ()# 4F0//%#307(c7F")# #%+X7."F0-B"#-)"#5A % ) F07#%,-%7.%

'-#F) (% -+) 4%,-"B)$c7F") /E.mico-#%+X7."F)5 e"(%+f 30(%+ O)=%/ F0+ ,-%

uma supervalorização das aliterações e paronomásias ; não que sejam

irrelevantes ; leve à destruição de sequências semânticas significativas. Não

se trata de sempre procurar a tradução palavra por palavra, mas, por

exemplo, a disposição de determinados sinônimos ao longo de um texto pode

ser importante na sua rede de significações. No caso do Lance de dados ,

desde o prefácio, a sinonímia é um recurso relevante, muitas vezes

desconsiderado por Haroldo de Campos.

Assim, Mallarmé, nas primeiras linhas de seu prefácio, como já foi

observado, ao referir-se à importância dos espaços em branco e ao novo

%#3)1)+%7.0 ,-% 3/032%A 0'#%/B) ,-%8 4un morceau, lyrique ou de peu de

pieds, occupe, au milieu, le tiers environ du feuillet 5L U0.%-se que o termo

feuillet O0" ./)(-="(0 30/ Z)/0$(0 (% D)+30# 30/ 43N&"7)5L n7./%.)7.0A

algumas linhas abaixo, Mallarmé utiliza o termo Page , em maiúscula,

distinguindo-a de feuillet . Na tradução de Haroldo de Campos as duas

palavras diferem apenas pela maiúscula; para evitar esta repetição, traduzi

feuillet30/ 4O0$C)5A -+) B%= ,-%A 70Lance de dados , Page é a folha dupla, a

unidade de sentido nesse poema, segundo o próprio Mallarmé.

O empobrecimento quantitativo supracitado ; para retomar as

tendências deformantes de Berman (1999) ; ocorre também na tradução do

poema. Um exemplo importante é a variação que há entre abîme e gouffre.

Termos que, levando-se em conta a possível motivação sonora do signo

linguístico, foneticamente provocam efeitos distintos: o primeiro, iniciado pela

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B0&)$ )'%/.) 4)5 @ +%70# #0+'/"0 ,-% 0 #%&-7(0L n#.) 7-)71) (% $-=

corresponde aos lugares que os termos ocupam no Lance de dados .

Abîmeaparece uma vez, nas páginas iniciais, à esquerda, no alto, emletras maiúsculas. Este espaço superior, na folha esquerda é, ao longo do

poema, ocupado por termos como: Le maître ; plume solitaire ; issu stellaire ;

altitude (o mestre; pluma solitária; saída estelar; altitude, respectivamente),

todos termos mais ligados aos céus do que às profundezas. No caso de

Abîme , ele é logo seguido do adjetivo blanchi (branco). Conforme Gardner

Davies (1992, p.66-K|fA 4?)$$)/+@ %#F0$C% ) 3)$)B/)Abismo (Abîme)para

(%#"&7)/ 0 F07W-7.0 (0 F@- % () .%//)5 % /%+%.% d #%&-"7.% 3)##)&%+ (%

Igtur :

888*/ 5"O-.) ni se séparent les constellations et la mer,

*/(/,%6/'> /- 5"/P16%)2%)16> */ %6:)$%27,/' -6#-1'8

...do Infinito separam-se as constelações e o mar, que

permanecem, na exterioridade, recíprocos nadas.

No poema A la nue accablante tu(MALLARMÉ, 1991, p.76), a nuvem

baixa e carregada confunde-se com a espuma do mar e, desse encontro

surge:

...T2,1 5"#;<(/ 0#)- 6$5236

... Todo o abismo vão aberto

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Por outro lado, o termo gouffre aparece duas vezes, em caracteres

minúsculos, em páginas centrais. Ambas as vezes, na parte inferior, à direita.

Esses finais de página são, feita a exceção da última, ocupados por termos

como: fond naufrage, profondeur; tempête; brumes; parages du vague .

Note-se que gouffre, termo recorrente na obra de Mallarmé tanto em

seus poemas como em sua prosa é, com frequência, associado a uma

atmosfera sombria. Gouffreaparece, em Mallarmé (1945, p.15), já em seus

primeiros poemas, como no ainda baudelairiano 25 !"/-.#-1 $%2*)4/ em que

descreve uma relação sexual com uma prostituta e que termina com a

seguinte quadra:

Là, ma sainte, enivré de parfums extatiques,

\)7# $S0-'$" (- 70"/ Q0-OO/% %. (% $Sm7O"7" FC%/A

Après avoir chanté tout bas de longs cantiques

iS%7(0/+"/)" +07 +)$ #-/ B0./% O/)"FC% FC)"/ 26.

O aspecto sombrio de gouffre aparece também em Lance de dados ,

não só pelo fato de ocupar posição análoga na página a termos como fond

naufrage, profondeur, tempête, brumes; parages du vague , mas pelo

contexto em que se insere. Na sua primeira aparição, lê-se, na parte inferior:

4...quelque p %2:=/ 12,%;)552- *"=)5#%)16 /1 *"=2%%/,% N 0251)4/ #,12,% *, 42,..%/B

25 O termo Gouffreé bastante utilizado por Baudelaire e, com frequência, aparece, na líricade expressão francesa, ao invés de abîme , como na última estrofe do poema Voyage , queencerra as Flores do mal .26 Ali, minha santa, embevecida de perfumes estáticos, / No esquecimento da negra

Voragem e do caro Infinito, / Depois de Ter cantado baixinho extensos cânticos / 6(0/+%F%/%" +%- +)$ #0'/% #-) F)/7% O/%#F)5L

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[... algum próximo turbilhão de hilaridade e de horror / volteia em torno à

voragem].; ou seja, em torno à voragem, volteia um turbilhão de hilaridade e

de horror. Quanto à segunda ocorrência, ela surge na sentença: Choit / la

plume / rythmique suspens du sinistre / s'ensevelir / aux écumes originelles /

naguères d'où sursauta son délire jusqu'à une cime / flétrie / par la neutralité

identique du gouffre . a4D)" { ) 3$-+) { /E.+"F0 #-#3%7#e do sinistro / sepultar-

se / nas espumas originais / de onde há pouco sobressaltara seu delírio até

um cimo / fenecido / pela neutralidade idêntica da voragem]. Essa passagem

permite uma aproximação com o abîme ; mar e céu ; do início, entretanto, a

neutralidade idêntica da voragem faz com que o cimo feneça, pois a voragem

é espuma original onde a pluma sepulta-se; uma imagem regida pela morte.

Indiferente tanto à disposição espacial de abîme e de gouffre quanto

ao lugar distinto que ocupam no conjunto da obra de Mallarmé, Haroldo de

Campos traduz as três passagens acima, respectivamente, da seguinte

+)7%"/)8 40 6'"#+0 { '/)7F0 { %#.)7F0 { "/0#05g 47)$&-+ 3/^]"+0 .-/'"$C90 (%

C"$)/"()(% % C0//0/ { %#B0)1) %+ .0/70 )0 B^/."F%5g 4D)" { ) 3$-+) { /E.+"F0

suspense do sinistro / sepultar-se / nas espumas primordiais / de onde há

pouco sobressaltara seu delírio a um cimo / fenescido (sic)/ pela neutralidade

"(c7."F) (0 )'"#+05L M- #%W)Agouffre @ ./)(-="(0 -+) B%= 30/ 4B^/."F%5 %0-./) 30/ 4)'"#+05L \%##% +0(0A )paga-se, na tradução haroldiana, a

sugestiva distinção existente entre Abîmee gouffre .

Sem refletir sobre a relação, também sonora, existente entre gouffree

termos como fond, profondeure brumes, também localizados na parte inferior

de outras páginas, Haroldo de Campos (1991, p.133), no que concerne a

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primeira aparição de gouffre , justifica sua escolha afirmando: "Vórticetraduz

gouffre com a vantagem de aliterar com ESVOaça e ligar-se, ainda, a

"7\}DmM !"/Qn+L M %#B0)1)/ O"F)A )##"+A (%#%7C)(0 7) 3N&"7)5. Quanto à

#%&-7() -."$"=)190A Z)/0$(0 e_II_A 3L_`If F0+%7.)8 4Gouffre é o mesmo

Abismo branco() 3N&L `L 4!^/."F%5 0- 0-./) 3)$)B/) #"7o7"+) 790 +% ()/")+

as rimas toantes com CIMO e feneSCIdO, que abISMO favorece".

As escolhas de Haroldo de Campos restringem-se, pois, ao sistema

aliterativo de termos circundantes ; e que nem sempre se encontram no

poema de Mallarmé. Ele produz, dessa maneira, lindas melodias soltas que

não acompanham necessariamente os movimentos da sinfonia que é o texto

de partida. Enfim, parece surpreendente que um tradutor como Haroldo de

D)+30# )O"/+% F).%&0/"F)+%7.% ,-% 4Gouffreé o mesmo Abismo branco 5

sem nem mesmo perguntar-se por que Mallarmé utilizou, nesse momento, o

termo gouffreao invés de Abîme e, por um ensejo aliterativo, deforme a rede

lexical do poema, empobrecendo-a.

Há outro empobrecimento lexical considerável no texto e que se liga a

-+ ,-)/.0 F/".@/"0 (% ./)(-190 )(0.)(0 30/ Z)/0$(0 (% D)+30#A 0 4&/)O0

7-+%/0$^&"F05L T+) $%".-/) ).%7.) (0Lance de dados é suficiente para que

se compreenda que se trata de uma equação verbal ; ao longo do poema,

além dos próprios dados, que são um jogo de números, aparecem termos

como anciens calculs, unique Nombre, LE NOMBRE, se chiffrâ-t-i... (antigos

cálculos, único Número, O NÚMERO, decifrar-se-ia, respectivamente).

Gardner Davies (1992, p.154-155) indica que o cômputo da equação é 7, o

número da Ursa Maior, o Setentrião, constelação que é o próprio poema e

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que assume diversas configurações no texto. Haroldo de Campos (1991,

p.142-143), atento aos cálculos, entre outras insinuações do número sete,

)##"7)$) ,-%A 7) 3N&"7) O"7)$ (0 .%].08 46# | %#./%$)# eLLf /%3/0(-=%+ 7)

3N&"7) 0 &/NO"F0 #"(%/)$5 % %7-+%/) 0# &%/[7("0# e./c# %#./%$)# () F)-()fA

que se ligam à três estrelas-frases do corpo, por meio de uma estrela-frase

"7.%/+%("N/") e`~`~_fA % )F/%#F%7.)8 47)# (-)# [$."+)# $"7C)# %#.%$)/%# (0

Poema, é ainda possível reconhecer a cifra da constelação: cada uma delas

.%+ #%.% 3)$)B/)#5L n+ #-) ./)(-190A Z)/0$(0 (% D)+30# /%3/0(-= )#

mesmas equações.

Em passagem anterior, Haroldo de Campos (1991, p.137), cita que

Décio Pignatari propôs uma chave para decifrar o enigma da frase 4L) :"61#)1

le Nombre / Ce serait le Hasard 5 (Se fosse o Número / Seria o Acaso) que,

foneticamente, pode também ser lido como 4Si sept est le Nombre / Cesserait

le Hasard 5 ( Se sete é o Número / Cessaria o Acaso). A sugestiva leitura de

Décio Pignatari, tão louvada por Haroldo de Campos, não permitiu que este

identificasse outra homofonia, muito mais evidente, e que introduz o Verbo ;

a palavra ; 7) #0+).^/") () %,-)1908 4 un compte total en formation 5L

Sobre a tradução desta última somatória, Haroldo de Campos (1991,

p. 142) observa:

Usei cálculo %+ B%= (% 4Fo+3-.05A 30/ -+ ^'B"0 )/&-+%7.0 (%%-O07")g 4F07.)5 #%/") 30bre semanticamente, contaminada como estáa palavra por sua acepção mais cotidiana. Calculus em lat. Significa)"7() 43%(/) (% W0&05A F)//%)7(0 %#.) F070.)190 %."+0$^&"F) 3)/) 0%#3)10 (% .)-.0$0&") %#3%F-$)/ 70 ,-)$ 0 30%+) #% "7#F/%B% e4)=)/5A

como já ficou dito, e assim o francês hasard , vem da palavra árabe,-% #"&7"O"F) 4W0&0 (% ()(0#5fL

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O que Haroldo de Campos não destacou é que compte (cômputo,

cálculo) em francês, pronuncia-se como conte (conto). Ora, o texto

mallarmeano que está na origem do Lance de dados é Igtur , um conto

inacabado de Mallarmé. Note-#%A .)+'@+A ,-%A 70 4:/%ONF"05A ?)$$)/+@

)##"7)$)8 46 O"F190 )O$0/)/N % #% ("##"3)/NA /N3"(0A F07O0/+% ) +0'"$"()(% (0

escrito, em torno das interrupções fragmentárias de uma frase capital desde

o título introduzida e continuada. Tudo se passa, por atalhos, em hipótese;

evita-#% ) 7)//)."B)5L ?)$$)/+@ (%#%W)A 30"#A ) O"F190A )"7() ,-% %B".% )

7)//)."B) % ,-% .-(0 790 3)##% (% C"3^.%#%L 6##"+A 0 #%- 4FN$F-$0 .0.)$5 B)"

além do grafo numerológico, pois 0 ,-% %#.N %+ W0&0 @ ) 43)$)B/) .0.)$5g

como se pode notar no parágrafo que conclui o famoso artigo Crise de vers

e?)$$)/+@A _IjPA 3L`Khf8 4M B%/#0 ,-% (% BN/"0# B0FN'-$0# /%O)= -+) 3)$)B/)

(mot ) total, nova, estrangeira à língua e como encantador, acaba com este

isolamento da palavra (parole f8 7%&)7(0A F0+ -+ ./)10 #0'%/)70A 0 )F)#0LLL5

Diante desse fato, contentar-se em reduzir o campo semântico ao

/%3%."/ 0 .%/+0 4FN$F-$05A WN -."$"=)(0 7) :N&"7) j ; no verso 4=2%' *"#-:)/-'

calculs 5 (fora de antigos cálculos) ; com a afirmação de que se trata de um

4^'B"0 )/&-+%7.0 (% %-O07")5A )"7() )F/%#F"(0 (% W-#."O"F)."B)# %."+0$^&"F)#A3)/%F% F07.%#.NB%$g #0'/%.-(0A 3%$0 O).0 (% 4Fo+3-.05 )3/0]"+)/ -se de

4F07.058 3)$)B/) .0.)$A 3%7#)+%7.0 ,-% #% $)71) % ,-% 7%&) 0 acaso. Com o

intuito de produzir uma perfeita homofonia ; tentativa de aproximação

daquela existente entre compte e conte ; pode-se traduzir 4un compte total

en formation 5 30/ 5-+ F07.)/ .0.)$ %+ O0/+)1905A )"7() ,-% ) "(eia de

somatória em parte se dilua.

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ZNA )"7()A 0 ,-"7.0 % [$."+0 F/".@/"0 C)/0$(")70A ) 4/%.0+)()

%."+0$^&"F)5L n+ &%/)$A 7) ./)(-190 (0Lance de dados , este produziu um

conjunto considerável de deformações que, por si só, valeriam um estudo

detalhado. Analisarei aqui apenas dois exemplos que produziram,

respectivamente, uma ambiguidade e um contrassenso, ausentes no poema

de Mallarmé e que, inevitavelmente, acrescentam, ao já exigente texto

mallarmeano, mais alguns problemas de leitura.

Numa das páginas finais, lê-se no início os versos 49"61#)1 N 5/ E2(;%/

/ issu stellaire 5, aos quais já nos referimos; e que Haroldo de Campos

traduziu por 8 4r0##% { 0 U[+%/0 { c]".0 %#.%$)/5L >-) W-#."O"F)."B) 3)/) )

tradução de issu por 4c]".05 @ .)+'@+ (% F-7C0 4%."+0$^&"F05L :/"+%"/)+%7.%A

Haroldo de Campos (1991, p.137) comenta que Gardner Davies interpreta

issu stellaire F0+0 40'/) "$-+"7)()A (%/"B)() (0 r0&0 .0.)$5 %A %+ #%&-"()

observa:

Issu,e #"&7"O"F)8 43/0F%(%7.%5A 4(%#F%7(%7.%5A 40/"-7(05g %)"7()8 4#)E()5A 4(%#%+'0F)(-/)5A 4c]".05A 4/%#-$.)(05A 4O"+5LEscolhi êxito tanto pela configuração sonora, como pelaproximidade etimológica, do lat. Exitus (saída), mantido noinglês atual exit (issu vem do ant. francês issir, sair). Êxitofunciona ainda como réplica-negação de hesito (as hesitaçõesconstantes do Hamlet poeta).

Haroldo enumera três razões para sua escolha: configuração sonora,

3/0]"+"()(% %."+0$^&"F) % 4/@3$"F)-negação de hesito 5L :/"+%"/0A )

configuração sonora em si é um argumento duvidoso, uma vez que em

4saída 5 a fricativa inicial [s] é surda como em issu , enquanto em 4c]".05 é

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sonora [z]. Segundo, a ideia (% 4/@3$"F)-7%&)1905 @ F/")190 (0 ./)(-.0/A 30"# @

difícil aproximar, em francês,issu de hésiter . Terceiro, e aí reside a questão

etimológica, se issu vem do antigo francês issir , bastante próximo de sair , e

do substantivo saída , o termo êxitoé etimologicamente próximo de quê? Do

latim? Do inglês? Enfim, de todos os significados que Haroldo de Campos dá

para issu , o único que tem conotação de conquista é 4c]".05, o que

acrescenta um ) ("+%7#90 (% B".^/")A ,-% 790 F07("= F0+ 0 430%.) Z)+$%.5

que habita o poema, para quem a constelação é saída, não necessariamente

vitória.

U0 #%&-7(0 %]%+3$0 (% 4/%.0+)() %."+0$^&"F)5A Z)/0$(0 (% D)+30#

introduz, em português, um contrassenso, ao traduzir 4le viellard vers cette

conjonction suprême avec la probabilité 5 30/ 40 B%$C0 B%/#-# %#.) F07W-7190

#-3/%+) F0+ ) 3/0')'"$"()(%5L w-)$,-%/ $%".0/ (% $E7&-) 30/.-&-%#) )0

deparar com esta frase será levado a pensar que o velho está contra a

conjunção suprema, pois o termo latino versus entrou em nosso vernáculo

como marca de oposição. Haroldo de Campos, entretanto, atento ao fato de

que vers #"&7"O"F)A %+ O/)7Fc#A .)7.0 ) 3/%30#"190 43)/)5 ; sentido primeiro

que assume no texto ; ,-)7.0 0 #-'#.)7."B0 4B%/#05 ; além dos homófonos

ver (verme), vert (verde), menos importantes no poema. Com o intuito deresolver o dilema e chegar a um termo carregado de significados análogos,

Haroldo de Campos (1991, p.130) comenta:

Traduzi vers por versus 70 #%7."(0 $)."70 4%+ ("/%190 )5A 0 ,-%me permitiu preservar a ambigu"()(% F0+ 4B%/#05 e(0 $).LVersus , sulco, renque de árvores, linha escrita, verso) ...pelo

menos, como indicador de rotas, deixei aquele versus ambíguo+)/F)7(0 ) #%+NO0/0 ) 4F07W-7190 #-3/%+)5L

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O problema é que, mesmo se preserva a ambiguidade, a tradução

acima acrescenta um contrassenso, a menos que o leitor mergulhe nas notas

ou então seja um conhecedor de latim, isto é, a tradução modifica o sentido

ao introduzir em um texto em português uma expressão latina, não com o

significado que possui em português, mas com seu sentido latino.

É importante salientar que a questão suscitada pela tradução de vers e

a preocupação de Haroldo de Campos em encontrar um termo polissêmico

ilustram aquela que é, provavelmente, a maior dificuldade enfrentada por um

tradutor de poemas: o signo duplo. Em um texto linear, na maioria dos casos,

pode-se, no momento de se traduzir a preposição vers , optar sem grandes

()70#A 3%$)# 3/%30#"12%# 4/-+05 0- 43)/)5A %7./%.)7.0A 70Lance de dados ,

poema que introduz uma importante ruptura com o próprio conceito de verso,

por mais que o uso de vers tenha sintaticamente função prepositiva, o

apagamento dessa ambiguidade representa uma perda considerável.

Uma solução possível que não exige do leitor um conhecimento do

latim, mas que, de alguma maneira, produz ambiguidade análoga é 40 B%$C0

versar para %#.) F07W-7190 #-3/%+) F0+ ) 3/0')'"$"()(%5L M B%/'0 4versar 5

/%3/%#%7.) -+ )F/@#F"+0 #"7.N."F0A %7./%.)7.0A #"&7"O"F) .)7.0 43)##)/ (% -+

loc)$ 3)/) 0-./05 ,-)7.0 4B%/#%W)/5L 6F/%#F%7.0 +)"# %##) .%7.)."B) d C"#.^/")

da tradução de vers ; esse signo polissêmico que habita o universo literário.

Há, ainda, um último aspecto que provoca aquele que é, creio, a mais

constante deformação nas traduções de Haroldo de Campos: o

enobrecimento. Numa das páginas centrais do poema, lê-se, nos últimos

versos, 4faux manoir / tout de suite / évaporé en brumes / qui imposa / une

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;2%-/ F 5")-.)-) 5 aO)$#0 #0$)/ { #['".0 { %B)30/)(0 %+ '/-+)# { ,-% "+3o# { -+)

borda )0 "7O"7".0bA ./)(-="(0 30/ Z)/0$(0 (% D)+30# 30/ 4#0$)/ O)$#0 { (%

súbito / %B)30/)(0 %+ '/-+)# { ,-% FC)7.)B) { -+ +)/F0 70 "7O"7".05L w-)7.0

)0 %70'/%F"+%7.0A ) ,-%#.90 F%7./)$ @ ) %#F0$C) (0 B%/'0 4FC)7.)/5 3)/)

traduzir imposer (impor), termo corrente em francês. Haroldo de Campos

(1991, p.37) comenta:

Chantar A 43$)7.)/ -+) %#.)F)5A @ -#)() %+ F07.%].0 (%tomada de posse e demarcação, ilustrando bem a ideia de

conquista efêmera, de hubris evanescente, que há nestapassagem do Poema. Fonicamente, prolonga roCHA... queDZ67.)B)L 6 )##0F")190 F0+ 4F)7.)/5e0 4F)7.0 ()# #%/%")#5conduzindo à perdição) introduz uma conotação desejável.Usei o tempo verbal no imperfeito por motivo de eufonia, sem

dano semântico .

Sem ater-se à questionável afirmação de que a passagem de um

tempo perfeito para um imperfeito não causa dano semântico (o verbo em

questão é imposer !), note-se que o verbo chantar é tão raro e específico que

necessita de uma longa explicação na nota, e, na leitura, torna ainda mais

opaco o já exigente texto mallarmeano. Além disso, trata-se de uma

opacidade deformante, pois não se encontra no poema. Pode-se, dessemodo, notar que a tradução haroldiana produz um texto ainda mais erudito e

rebuscado do que o próprio texto mallarmeano, conhecido pela sua

ambiguidade e opacidade.

Por fim, é importante salientar que compreender as escolhas

tradutórias de Haroldo de Campos e situar-se em relação a elas exige uma

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consciência no que concerne a historicidade do traduzir. Para Haroldo de

Campos, a tradução do poema deve ser criativa, potencializar as rupturas,

sobretudo formais, que o texto a ser traduzido traz. Esse processo é coerente

com a estética das vanguardas, das quais Haroldo de Campos, como um dos

expoentes do concretismo, fez parte. Como assinala Octavio Paz (1999, p.

580), em sua reflexão sobre O ocaso das vanguardas :

Os poetas da idade moderna procuraram o princípio da mudança: ospoetas da idade que começa procuramos esse princípio invariante

que é o fundamento das mudanças (...) A estética da mudançaacentuou o caráter histórico do poema. Agora nos perguntamos, nãohá um ponto em que o princípio da mudança se confunde com oprincípio da permanência?

Acredito que hoje os tradutores de poesia podem refazer a pergunta

de Octavio Paz. Não se trata mais de utilizar a tradução como uma arma na

batalha contra um pretenso conservadorismo, mas, sobretudo, fazer datradução um instrumento de reflexão sobre o que está em jogo no ato de

traduzir: um discurso produzido numa determinada língua-cultura, que possui

um ritmo singular pela relação que, nesse texto, dá-se entre o que é dito e o

modo de dizê-lo, e um desejo e/ou uma necessidade de reelaborar essa

dinâmica discursiva numa outra língua-cultura, geralmente em outro

momento histórico.

Dessa maneira, penso ser possível contribuir para que a reflexão

prossiga rumo a este ponto em que o princípio da mudança se confunde com

o princípio da permanência, ponto em que o discurso assume sua

historicidade. Historicidade do traduzir, historicidade das leituras, gestos

esses que ampliam o contínuo e necessário processo de refração.

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7.

Um Lance de dados , outras refrações:

uma auto-retradução como redimensionamento do espaço-

gráfico

Dentre as diferentes formas de se pensar a literatura, é possível

concebê-la, de acordo com André Lefevere (1999), como um sistema de

refrações, no qual distintos textos e poéticas são adaptados por e dentro de

um determinado sistema receptor. Esse sistema de refrações ; que inclui

interpretações, resumos, excertos, crítica e tradução ; tem um papel

fundamental na constituição e na transformação da literatura.

Apontei primeiramente alguns elementos para uma proposta de

retradução crítica do poema Um Lance de dados como contraponto à sinfonia

haroldiana. Nas páginas que seguem, propõe-se uma retradução da proposta

de retradução, na qual o espaço do poema é anulado e o aspecto gráfico é

redimensionado; uma retradução nos limites da tradução.

Em possível viagem pelo Lance de dados

O percurso aqui proposto é uma retradução que hiperdimensiona o

aspecto tipográfico, anulando visualmente a espacialidade do poema. A

radicalidade consiste em multiplicar as paráfrases, prisma de retraduções.

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NÚMERO / SERIA5LO número ; equação ; propõe em sua abstração e por

sua abstração, instrumentos de leitura do mundo, os números são linguagem;

como palavras formam sistemas, dão forma às ideias. O poema, por

exemplo, o soneto, é também equação: quatorze linhas que podem formar

quatro estrofes, duas de quatro e duas de três versos; versos de sete, oito,

dez, doze sílabas poéticas... Neste poema, o itálico marca graficamente um

parêntese, a hipótese do número, da linguagem ; o Ser ; ante a eterna

presença do acaso ; o Nada. Aliás, os itálicos surgem no meio do poema; o

início e o fim são os lugares do inevitável embate; ante o acaso, o homem (o

Mestre) e sua tragédia, sempre em caracteres normais.

Estes assumem tamanhos variáveis, dispostos, de início, ao longo das

cinco prim%"/)# 3N&"7)# (-3$)#L U) )'%/.-/)A )3%7)# 0 .E.-$0 4T? V6UDn \n

\6\M>5 %#.)+3)(0 '%+ 70 )$.0A $-&)/ (% 07(% #-/(% 0 3%7#)+%7.0L !"/)-se

) 3N&"7) %A )3^# $07&0 #"$c7F"0 (% -+) 3N&"7) % +%")A #-/&% 4i6?6m>5 %A

logo abaixo, num primeiro desdobramento, lê-se também em maiúsculas

4 AINDA QUE LANÇADO EM CIRCUNSTÂNCIAS ETERNAS / DO FUNDO DE UM

U6Tr<•QmM5LHá naufrágio, bem embaixo da segunda página dupla, ainda que

$)71)(0 7) 4F"/F-7#.X7F") %.%/7)5 (0 #"+-$)F/0 () 3)$)B/)g ,-% ) $".%/).-/)

permite ; a escrita projeta, desacelera o tempo, prolonga-nos.

Esta frase, por seus caracteres, forma outro motivo, complementar ao

principal, em que se observa o Mestre, aquele que emite um gesto talvez

F)3)= (% "$-+"7)/8 4 AINDA QUE LANÇADO EM CIRCUNSTÂNCIAS ETERNAS / DO

FUNDO DE UM NAUFRÁGIO / SEJA / O MESTRE / EXISTIRIA / COMEÇARIA E

CESSARIA / CIFRAR-SE-IA / ILUMINARIA / NADA / TERÁ TIDO O LUGAR / SENÃO O

VTQ6< { n€DnJM { J6V!n { T?6 DMU>JnV6‚ƒM5L O tema do Mestre, contudo, no

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início, mantém-se latente e só passa a desenvolver-se após a hipótese da

linguagem (os itálicos). Antes, há um longo trecho que se dá em pleno

naufrágio.

O naufrágio é subdividido em dois momentos: um em que se descreve

o barco emborcado como abismo; e outro em que se vê o Mestre afogado, de

mãos fechadas. É em alto mar que se dá o embate.

U0 3/"+%"/0 +0+%7.0A ,-% F0//%#307(% d 3N&"7) ,-% #%&-% 4DO

rTU\M \n T? U6Tr<•QmM5 , lê-#%A 3/"+%"/)+%7.%A 4>ni65 ; verbo que é um fio

latente, elo entre o final da primeira página e o início da página seguinte em

que )3)/%F% 0 ?%#./%L D0+ %]F%190 (0 B%/'0 4#%W)5A 7) 3N&"7)A CN -+ $07&0

texto, escrito em caracteres normais e em minúsculas. Nele, mostra-se uma

primeira imagem adjacente do naufrágio. Pode-se ler no percurso marítimo:

que / o Abismo / branco / estanque / furioso / sob uma inclinação /plana desesperadamente / de asa / a sua / já antes caída de um malde alçar voo / e cobrindo os jorros / cortando rente os saltos / no maisinterior resuma / a sombra mergulhada na profundeza por esta velaalternativa / até adaptar / à envergadura / sua escancaradaprofundeza enquanto o casco / de um barco / pendido de um ou deoutro lado.

No abismo furioso e branco do acaso, estanque agora na página, a

vela, asa caída, encontra-se mergulhada. Do barco, de cabeça para baixo,

vê-se o casco pendulando desolado, imagem que se confunde com o próprio

oco abissal. Momento profundo de desespero e queda ante o abismo, o

Nada.

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Na página dupla seguinte, espalha-se uma tessitura, que oscila de

uma página a outra. A leitura linear da mesma pode ser apresentada da

seguinte maneira:

O MESTRE / fora de antigos cálculos / onde a manobra com a idadeesquecida / surgido / inferindo / outrora ele empunhava o leme / dessaconflagração / a seus pés / do horizonte unânime / que se prepara /se agita e mescla / ao punho que o apertava / um destino e os ventos/ como se ameaça / o único Número que não pode ser um outro /Espírito / para atirá-lo na tempestade / repregar-lhe a divisão e passarorgulhoso / hesita / separado do segredo que guarda / cadáver pelobraço / melhor / do que jogar / maníaco pálido / a partida / em nomedas ondas / uma / invade a cabeça / escorre em barba submissa /naufrágio isto / direto do homem / sem nau / não importa / onde vã

Jogado ao mar e distante do refúgio da embarcação, o Mestre surge e,

antes de entregar-se ao jogo do maníaco cadavérico que é a morte, faz seu

Número, o poema; único como o próprio Espírito. Em nome das ondas, agita

o punho fechado e prepara para lançar-se, ainda que hesite pelos seus

segredos.

Mas, se não abrir a mão crispada, o velho ; verso, conjunção suprema

com a probabilidade ; será legado ao demônio imemorial do

desaparecimento, que sempre ameaça. O ancião tenta então a sua sorte.

Ainda que ocioso, nascido de um embate do velho-Ser com o mar-Acaso, o

gesto faz-se Núpcias e é, também, um véu de ilusão, o espectro de um gesto,

loucura que, sabe-se, não abolirá o acaso. Assim releio a página dupla que

segue, a última que precede o texto em itálico. E que pode ser transposta

assim:

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ancestralmente a não abrir a mão / crispada / para além da inútilcabeça / legados na desaparição / para alguém / ambíguo / o ulteriordemônio imemorial / tendo / de paragens nenhumas / induzido / ovelho versar para esta conjunção suprema com a probabilidade /aquele / sua sombra pueril / acariciada e polida e entregue e lavada /suavizada pela vaga e subtraída / aos duros ossos perdidos entre aspranchas / nascido / de um embate / o mar pelo ancião tentando ou oancião contra o mar / uma chance ociosa / Núpcias / cujo / véu deilusão reflete sua obsessão / assim feito o espectro de um gesto /vacilará / amainará / loucura

No momento que precede a encenação da hipótese do pensamento,

do ato de fala, o mestre ancião ainda que o saiba insano, ainda que saiba

que não abolirá o acaso, arrisca um lance que, mesmo vacilante, traz algum

alento. Entra-se, desse modo, no âmbito do cifrável:

COMO SE / Uma insinuação simples / ao silêncio enrolada com ironia/ ou / o mistério / precipitado / urrado / em algum próximo turbilhão dehilaridade e de horror / volteia em torno à voragem / sem o juncar /nem fugir / e embala seu virgem índice/ COMO SE

O espaço possível da palavra sai do silêncio e é insinuação irônica oumistério que se precipita. Se vier a encenar, o poema volteia com hilaridade e

horror em torno à voragem (gouffre ), mas não se rende, embala. Diante da

tragédia, na página seguinte, ainda em itálicos, a linguagem calculada, mas

cheia de horror e ironia, esvoaça:

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total, um salto para além do falso limite do infinito e, uma vez que se dissipa a

bruma...

FOSSE / O NÚMERO/ saída estelar / EXISTIRIA / distinto daalucinação esparsa da agonia / COMEÇARIA E CESSARIA / surdindode negado e ocluso quando surgido / enfim / por alguma profusãoespalhada em raridade / CIFRAR-SE-IA / evidência da soma porpouco só uma / ILUMINARIA / SERIA / pior / não / mais nem menos /indiferentemente mas tanto quanto / O ACASO / Cai / a pluma /rítmico suspense do sinistro / sepultar-se / nas espumas originais / deonde há pouco sobressaltara seu delírio até um cimo / fenecido / pela

neutralidade idêntica da voragem

Síntese das tensões, esta página marca o ápice do pensamento, nela

o número-linguagem reluz. É gesto que ultrapassa a bruma ; falso limite do

infinito ; ; é alta saída estelar. Escape ambíguo, paradoxal como o Mestre que

o alça, o poema-pensamento, caso se faça (os verbos estão no condicional),

existiria simultaneamente quando começaria e cessaria, se cifraria e se

iluminaria; ou seja, movimenta-se e para. O que se produz no final do

percurso pode ser uma equação-poema que se ilumina. Mas esse raio, já

quando surde (nasce) das profundezas, é negado e ocluso, é raro e efêmero,

esbarra no inevitável e imponente Acaso.

Ante o Acaso, o último gesto da pluma (a escrita, os itálicos) só pode

ser queda, tragédia, sinistro. Resta, pois, sepultar-se, não em qualquer lugar,

mas nas espumas originais; esses silêncios primeiros que saltaram em delírio

e tocaram o cimo e que, por isso, fazem-se estrelas.

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Volta-se, em seguida, nas páginas finais, aos caracteres normais,

lugar de embate entre o Mestre (o Ser) e o Acaso (o Nada); e o que se

observa:

NADA / da memorável crise / ou se tivesse cumprido em vista de todoresultado nulo / o acontecimento / humano / TERÁ TIDO O LUGAR /uma elevação ordinária verte a ausência / SENÃO O LUGAR / inferiormarulho qualquer como que para dispersar o ato vazio / abruptamenteque senão / por sua mentira / teria fundado / a perdição / nessasparagens / do vago / em que toda realidade se dissolve

No lugar mesmo do embate entre o Mestre e o Acaso, ao olhar-se, não

se vê, em princípio, Nada. E nada de fato teria acontecido, salvo uma pista,

as maiúsculas, onde se lê: NADA / TERÁ TIDO O LUGAR / SENÃO O

LUGAR; ou seja, de fato algo aconteceu, teve lugar. O olhar primeiro,

entretanto, vê sob o ângulo da crise; como se o percurso tivesse sido

cumprido visando um resultado nulo.

Tratar-se-ia de um ato vazio, mero marulho ordinário ante o imenso do

mar. Nesse caso, estaríamos diante de uma mentira em que se dissolve a

realidade ou, no melhor dos casos, ante uma elevação ordinária cujo

conteúdo é ausência. Isso, caso não se considere o fio latente da frase emmaiúscula que indica que o gesto fundou um lugar que, mesmo duvidoso,

irônico, dissoluto, ambíguo, é um acontecimento (pensar).

Assim, na última página dupla, à esquerda, ocupa o alto uma resposta.

J-(0A .)$B%= #%W) +%7."/)A -+ 4B)&0 { %+ ,-% .0() /%)$"()(% #% ("##0$B%58

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EXCETO / na altitude / TALVEZ / tão longe que um local / fusiona

com o além

A paginação desse trecho coincide aproximadamente com a

disposição anterior das sentenças 4pluma solitária perdida 5 e 4FOSSE / O

NÚMERO / saída estelar 5A )# (-)# %+ ".N$"F0 e+)/F) &/NO"F) (0 3%7#)+%7.0fL

É na altitude que o pensamento se projeta, que a linguagem atinge a

iluminação; (con)funde-se com o além. Este lugar está de fato além,

fora o interesse / quanto a ele assinalado / em geral / segundo talobliquidade por tal inclinação / de fogos / versar / deve ser / oSetentrião também Norte / UMA CONSTELAÇÃO / fria deesquecimento e de desuso / não tanto / que ela não enumere / sobrealguma superfície vacante e superior / o choque sucessivo /sideralmente / de um contar total em formação / vigiando / duvidando /rolando / brilhando e meditando / antes de se deter / em algum pontoúltimo que o sagre/ Todo Pensamento emite um Lance de Dados

O espaço que ocupa o poema, esse lugar de simulacro que é a ficção

(o contar: cálculo e conto), deve estar fora do interesse, em um lugar de

esquecimento e desuso. A inutilidade do poema não faz com que seja menos

necessário, pois sua dessuetude não deve ser tanta a ponto de impedi-lo de

enumerar, sobre alguma superfície vacante e superior, o choque sucessivo e

sideral e um cômputo total em formação: a equação-poema do pensamento.

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Em francês, no termo compte (o contar), nota-se uma homofonia entre

cômputo e conto. Mallarmé indica claramente, em seu prefácio, que seu texto

situa-se no campo da ficção e, nos últimos versos, indica a importância deste

simulacro, pois é o lugar onde o pensamento vigia, duvida, rola (põe-se em

movimento), medita, para poder, por fim, deter-se, em algum ponto último

Sagração que não significa imobilidade, pois, no silêncio da página em

branco, estão sempre em jogo, e de novo, os dados do pensamento; prontos

para o ato da escritura, compreendida aqui, também, numa perspectiva

barthesiana, em sua dimensão de gozo. Como assinala Leyla Perrone-

Moisés (1980):

O gozo, nesse contexto, é o que o sujeito alcança no próprio malogroda relação sexual ; que nunca pode suprir o desejo, como nada pode;que nunca pode fazer, de dois, o Um.

O malogro, entretanto, impele a um novo salto, pois como

)F/%#F%7.) ) )-.0/)A 4) jouissance , é aquilo que nos arrebata e sacode, na

%#F/".-/)5L n7O"+A @ 0 (/)+) (0 W0&0 (0 C0+%+ (%7./0 % 3%$) $"7&-)&%+

apresentado por Mallarmé que orienta também este projeto de retradução,

refração, paráfrase.

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Refração

UM LANCE DE DADOS / JAMAIS AINDA QUE LANÇADO EM CIRCUNSTÂNCIASETERNAS / DO FUNDO DE UM NAUFRÁGIO

SEJA / que / o Abismo / branco / estanque / furioso / sob uma inclinação / planadesesperadamente / de asa / a sua / já antes caída de um mal de alçar voo / ecobrindo os jorros / cortando rente os saltos / no mais interior resuma / a sombramergulhada na profundeza por esta vela alternativa / até adaptar / à envergadura /

sua escancarada profundeza enquanto o casco / de um barco / pendido de um ou deoutro lado.

O MESTRE / fora de antigos cálculos / onde a manobra com a idade esquecida /surgido / inferindo / outrora ele empunhava o leme / dessa conflagração / a seus pés/ do horizonte unânime / que se prepara / se agita e mescla / ao punho que oapertava / um destino e os ventos / como se ameaça / o único Número que nãopode ser um outro / Espírito / para atirá-lo na tempestade / repregar-lhe a divisão e

passar orgulhoso / hesita / separado do segredo que guarda / cadáver pelo braço /melhor / do que jogar / maníaco pálido / a partida / em nome das ondas / uma /invade a cabeça / escorre em barba submissa / naufrágio isto / direto do homem /sem nau / não importa / onde vã

ancestralmente a não abrir a mão / crispada / para além da inútil cabeça / legadosna desaparição / para alguém / ambíguo / o ulterior demônio imemorial / tendo / deparagem nenhuma / induzido / o velho versar para esta conjunção suprema com a

probabilidade / aquele / sua sombra pueril / acariciada e polida e entregue e lavada /suavizada pela vaga e subtraída / aos duros ossos perdidos entre as pranchas /nascido / de um embate / o mar pelo ancião tentando ou o ancião contra o mar /uma chance ociosa / Núpcias / cujo / véu de ilusão reflete sua obsessão / assim feitoo espectro de um gesto / vacilará / amainará / loucura / NÃO ABOLIRÁ

COMO SE / Uma insinuação simples / ao silêncio enrolada com ironia / ou / omistério / precipitado / urrado / em algum próximo turbilhão de hilaridade e de horror

/ volteia em torno à voragem / sem o juncar / nem fugir / e embala seu virgem índice/COMO SE

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pluma solitária perdida/ salvo que a encontre ou a desflore uma touca de meia-noite/ e imobilize / no veludo amassado por uma gargalhada sombria / esta brancurarígida / derrisória / em oposição ao céu / demais / para não marcar / exiguamente /quem quer que / príncipe amargo do abrolho / dela se penteie ou de algo heroico /irresistível mas contido / por sua irrisória razão viril / relâmpago

inquieto / expiratório e púbere / mudo riso / que / SE / O lúcido e senhorial penachode vertigem / de face invisível / cintila / depois sombreia / uma estatura graciosamedonha / em sua torção de sereia / erguida / o tempo / de esbofetear / comimpacientes escamas últimas bifurcadas / um rochedo / falso solar / súbito /evaporado em brumas / que impôs / um limite ao infinito

FOSSE / O NÚMERO/ saída estelar / EXISTIRIA / distinto da alucinação esparsa daagonia / COMEÇARIA E CESSARIA / surdindo de negado e ocluso quando surgido /enfim / por alguma profusão espalhada em raridade / CIFRAR-SE-IA / evidência dasoma por pouco só uma / ILUMINARIA / SERIA / pior / não / mais nem menos /indiferentemente mas tanto quanto / O ACASO /Cai / a pluma / rítmico suspense dosinistro / sepultar-se / nas espumas originais / de onde há pouco sobressaltara seudelírio até um cimo / fenecido / pela neutralidade idêntica da voragem

NADA / da memorável crise / ou se tivesse cumprido em vista de todo resultado nulo/ o acontecimento / humano / TERÁ TIDO O LUGAR / uma elevação ordinária vertea ausência / SENÃO O LUGAR / inferior marulho qualquer como que para dispersaro ato vazio / abruptamente que senão / por sua mentira / teria fundado / a perdição /nessas paragens / do vago / em que toda realidade se dissolve

EXCETO / na altitude / TALVEZ / tão longe que um local / fusiona com o além / forao interesse / quanto a ele assinalado / em geral / segundo tal obliquidade por tal

inclinação / de fogos / versar / deve ser / o Setentrião também Norte / UMACONSTELAÇÃO / fria de esquecimento e de desuso / não tanto / que ela nãoenumere / sobre alguma superfície vacante e superior / o choque sucessivo /sideralmente / de um contar total em formação / vigiando / duvidando / rolando /brilhando e meditando / antes de se deter / em algum ponto último que o sagre/Todo Pensamento emite um Lance de Dados

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113

8.

Mário Laranjeira retradutor de Prévert

Uma boa maneira de começar a refletir sobre a crítica da retradução é

debruçar-se sobre retraduções que se querem críticas. Este é o caso da

retradução proposta por Mário Laranjeira a partir das traduções de Jacques

Prévert feitas por Silviano Santiago. A escolha também se justifica pela

importância e pelo alcance do trabalho de Mário Laranjeira.

Com efeito, quando se pensa em tradução de poesia francesa no

Brasil, um dos nomes em que imediatamente vem à mente é Mário

Laranjeira, não apenas por seu trabalho como tradutor, mas também como

crítico e teórico. Nesse campo, Laranjeira desenvolveu um pensamento

próprio, que costumo incluir entre as abordagens textuais do texto poético

(FALEIROS, 2006). É nessa perspectiva que Laranjeira (1993, p.84 e 106-

107), para ilustrar sua concepção teórica, retraduz dois poemas de Prévert.

Para compreender suas escolhas, é importante sintetizar os preceitos que o

orientam.

A teoria da significância de Mário Laranjeira.

Mário Laranjeira publica, em 1993, sua tese de doutorado defendida

em 1989, com o título de Poética da tradução: do sentido à significância . De

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acordo com Mário Laranjeira (1996), na síntese que fez de suas ideias, no

caso da tradução de textos poéticos, é importante dar destaque à dimensão

do significante (lad0 +).%/")$ (0 #"&70f % d 40'$",-"()(% #%+X7."F)5 ,-%

constitui a passa &%+ (% )F%##0 )0 7EB%$ #%+"^."F0A 4.0/7)7(0 30##EB%$ )

$%".-/) +[$."3$) 3%$) /-3.-/) (0 /%O%/%7.% %].%/705 e_IIKA 3L G_|f

Trata-se de identificar, no texto, o que constitui a manifestação do

poético e verificar, no ato de traduzir, o que permitem a passagem do poético

no texto traduzido. As operações significantes pelas quais o poético se

manifesta são identificadas por Mário Laranjeira como índices textuais. O

primeiro desses índices, que o leitor-tradutor deve reconhecer é o que

V)/)7W%"/) FC)+) (% 4)&/)+)."F)$"()(%5L V)/)7W%"/) e_IIKA 3L G_If )##"7)$)

,-% 0 .%/+0 @ %+3/%&)(0 %+ #%7."(0 )+3$0 % ,-% 430(% (%#"&7)/ .)7.0 0#

casos menores de perturbação da linearidade sintática quanto os casos

extremos que levam ao hermetismo ou chegam ao nonsense 5

A definição de Laranjeira, muito mais ampla que a dos gramáticos,

continua sendo a de um linguista, pois pressupõe a existência de uma norma

identificável à qual se pode comparar a gramática do poema. Ele cita como

exemplo a anteposição do artigo, que é uma regra no inglês, mas não nas

línguas românicas. A maioria dos elementos sintáticos, contudo, aceitam um

conjunto considerável de variações. De todo modo, Laranjeira estrutura seus

argumentos a partir de princípios textuais e socioculturais.

Um segundo elemento para o qual Laranjeira (1996, p. 219) chama a

atenção é o que Rifaterre chama de signo duplo A .%/+0 %,-EB0F0 4#".-)(0 7)

intersecção de duas sequ c7F")# (% )##0F")12%# #%+X7."F)# 0- O0/+)"#5L U90

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se trata, pois, de apreender apenas a forma, mas de ler o poema levando em

consideração as marcas textuais formais ou semânticas, como o signo duplo.

O tradutor procura transmitir as associações, as ambiguidades, aspolissemias, e não apenas uma forma; o que não impede Laranjeira de

refletir sobre os elementos significantes, como o ritmo do original e a primazia

do elemento material do signo. Como lembra o autor, em determinados

poemas, a escolha das palavras obedece mais a critérios associados à

criação de rimas ou ambiguidades do que a seu valor semântico. As marcas

textuais a serem apreendidas não se reduzem, pois, ao sentido, mas deve

considerar as operações em seu nível textual.

O terceiro elemento identificado por Laranjeira, ligado aos aspectos

#%+X7."F0#A 0- ).@ +%#+0 )7./030$^&"F0#A @ 0 ,-% FC)+) (% 4"7.%/3retantes

inter .%].-)"#5L M %]%+3$0 ,-% 70# (N %7F07./)-#% 70 30%+) 4?%) F-$3)5A (%

Prevert, abaixo comentado.

T+) [$."+) ("+%7#90A ) 4B"#"$%&"'"$"()(%5A @ (%#.)F) 30/ V)/)7W%"/)

(1996, p. 221), que assinala o fato de que, antes de chegar à significância do

.%].0A 0 /%F%3.0/ (0 30%+) 3/0F%(% ) -+) %#3@F"% (% 43/@-leitura

estritamente visual, baseada na distribuição espacial da massa textual sobre) 3N&"7)5L J/).)-se de uma percepção global que, na obras de determinados

poemas, como Apollinaire e Mallarmé, ocupa um papel central e deveria ser

reproduzida no texto de chegada.

Depois de identificar os elementos sintáticos (agramaticalidades),

semânticos (os signos duplos) e culturais (os interpretantes intertextuais),

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116

Laranjeira conclui seu artigo chamando a atenção para os aspectos formais.

Dessa maneira, desenvolve um instrumento de análise que consiste na

4/%F-3%/)190A 70 .%].0 (% FC%&)()A ()# +)/F)# .%].-)"# () #"&7"O"FX7F")5

(LARANJEIRA, 1996, p. 222).

Com efeito, Laranjeira resume seus princípios também a partir do

F07F%".0 (% O"(%$"()(%L :)/) %$% eV6<6Uinm<6A _II`A 3L_GPf8 4) O"(%$"()(% %+

tradução poética será a resultante de um trabalho operado nos níveis

semântico, linguístico-estrutural e retórico formal, integrados todos no nível

semiótico-textual o7(% #% (N ) #"&7"O"FX7F")5L n )(")7.% em'"(%+8 _`IfA F07F$-"

que a fidelidade semiótico-.%].-)$8 4F07#"#.% %+ +)7.%/ -se, no trabalho

translinguístico da reescritura, o processo interno e oblíquo de geração de

#%7."(0 ,-% F)/)F.%/"=) 0 30%+)5L k, pois, por meio modo como se articulam

as operações textuais que o tradutor deve balizar, segundo Laranjeira, sua

observação e sua prática.

Mário Laranjeira retradutor de La Brouette ou les grandes inventions

Um dos exemplos que Laranjeira (1993, p.84-85) utiliza para ilustrar

sua abordagem é a tradução do pequeno poema La Brouette ou les grandes

inventions L M /%./)(-.0/ #".-) ) )7N$"#% %+ #-) ("#F-##90 #0'/% 4T7"()(% (%

#"&7"O"FX7F") % -7"()(% (% ./)(-190 %+ 30%#")5L D0+0 WN O0" )##"7)$)(0

acima, é no nível do texto, isto é, semiótico-textual que, para Laranjeira, se

dá a tradução. Isso se deve ao fato de o texto, e não a palavra ou a frase, ser

a unidade de significância. Para exemplificar, Laranjeira parte do seguinte

poema de Prévert:

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Le paon fait la roue

le hasard fait le reste

I)/, '"#''/2)1 */*#-'

/1 5"=2((/ 5/ $2,''/8

À qual acrescenta a tradução de Silviano Santiago (In: PRÉVERT,

1985, p.101), em que se lê:

O pavão abre o leque

O acaso faz o resto

Deus toma acento

e o homem empurra.

A discussão toda se d N %+ .0/70 (0 3/"+%"/0 B%/#0L n+ O/)7Fc#A 4le

paon fait la roue 5 pode, de fato, ser, 70 7EB%$ () O/)#%A ./)(-="(0 30/ 40 3)B90

)'/% 0 $%,-%5A %7./%.)7.0A ) $%".-/) (0 .E.-$0 "7./0(-= -+) "7O0/+)190

importante, 30"# #% ./).) 4\0 F)//"7C0 (% +90 0- )# &/)7(% "7B%712%#5L

Laranjeira (Idem, p.84) então se pergunta:

n )07(% O0" 3)/)/ 4$) '/0-%..%5A 0 F)//"7C0 (% +90l U)() CN 7)tradução que integre a cauda do pavão, mudando-lhe o sentido, na

composição do carrinho.

Laranjeira chama assim atenção para o fato de que a escolha de

>"$B")70 >)7.")&0 790 3%/+".% ) )7)$0&") %7./% ) 4roue 5 e/0()f ,-% 0 3)B90

faz e o leque. Impasse que não pode ser resolvido no nível da frase,

induzindo, aliás, o tradutor, caso este queira trazer para o texto de chegada a

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significância do texto, a procurar uma tradução semanticamente mais distante

(),-"$0 ,-% ) %]3/%##90 4O)"/% $) /0-%5 F070.) %+ O/)7Fc#L :)/) V)/)7W%"/)

(ibidem):

Ao chegarmos ao fim da leitura do poema, sabemos que não se pode./)(-="/ 4$% 3)07 O)". $) /0-%5 30/ 4M 3)B90 )'/% 0 $%,-%5LRetrospectivamente, impõe-se a opção pela tradução literal.

A postura um tanto prescritiva de Laranjeira ; 4790 #% 30(%5A 4"+32%-

#% ./)(-190 $".%/)$5 ; que se afina com sua abordagem textual e com suaética do traduzir, o levam, no final de sua crítica, à seguinte retradução:

O pavão faz a roda

O acaso faz o resto

Deus senta dentro

e o homem empurra.

U%$)A F0+ %O%".0A ) $".%/)$"()(% () %]3/%##90 4O)= ) /0()5 F07("= F0+ 0

título, recuperando no texto de chegada a significação no nível textual. Nesse

sentido, trata-se de uma retradução corretiva, explicitamente vinculada a uma

abordagem da tradução ; a significância.

Mário Laranjeira retradutor de Mea Culpa

Como foi assinalado acima, a teoria da significância de Mário

Laranjeira abarca desde os aspectos formais e linguísticos até os

#%+X7."F0#A "+)&@."F0# % F-$.-/)"#L 6 3)/."/ (% -+) ("#F-##90 #0'/% 4M .E.-$0

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(% 0 #"&70 (-3$05A V)/)7W%"/) em(%+A 3L _Hj-107) se debruça sobre uma

segunda tradução de Silviano Santiago, do poema de Prévert:

Mea Culpa

9"/'1 (# .#,1/

9"/'1 (# .#,1/

9"/'1 (# 1%&' 4%#-*/ .#,1/ *"2%1=24%#$=/

R2)5F :2((/ D"6:%)'

Giraffe.

A presença do título é muito importante, pois, segundo Laranjeira,

trata-#% (% -+ 4"7.%/3/%.)7.% "7.%/.%].-)$5 ,-% /%+%.% ("/%.)+%7.% )0confiteor

que, em português, está assimilado na cultura cristã com a forma:

Minha culpa

Minha culpa

Minha máxima culpa...

Silviano Santiago, entretanto, parece ignorar a liturgia cristã ao traduzir

como segue o Mea Culpa de Prévert.

Errei

Errei

Sei enorme erro de ortografia

Eis como escrevi

Girrafa.

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Laranjeira é sensível à dificuldade na qual se encontra o tradutor, pois,

se, sem francês, o termo faute é polissêmico, sendo, assim, um signo duplo

,-% F07.@+ .)7.0 ) 70190 (% 4%//05 F0+0 ) 70190 (% 4F-$3)5L n+ 3ortuguês,

o tradutor encontra-se diante de um impasse, pois não há vocábulo que

contenha o duplo sentido como em francês. Laranjeira, contudo, ao apontar

para o caráter intertextual do título, situando-o culturalmente, encaminha a

solução na direção de uma %#F0$C) 3%$0 .%/+0 4F-$3)5A )0 "7B@# (% 4%//05L

Desse modo, mesmo que se apague o signo duplo, traz-se, pelo menos, a

intertextualidade para dentro do poema.

A crítica de Laranjeira a Silviano Santiago não se limita ao

apagamento do interpretante intertextual. Prossegue Laranjeira (Idem, p.108):

Além disso, a versão proposta por Silviano Santiago para os doisúltimos versos me parece passível de duas observações. Primeiro,

4!0"$d F0++%7. WS@F/"#LLL5 3%/.%7F%A %+ O/)7Fc#A )0 /%&"#./0 "7O0/+)$A 0que não ac 07.%F% F0+ 4n"#LLL5 %+ 30/.-&-c#L aLLLb

Laranjeira atenta aí para um aspecto bastante importante quando se

trata de tradução, o registro. A escolha de um termo pode, com efeito,

modular o texto; o que aqui o torna mais distante do tom fantasioso e lúdico

que permeia não só este poema, mas a poética de Prévert. Mas esse

4(%#B"05 790 3)/%F% #%/ 0 ,-% +)"# "7F0+0() V)/)7W%"/) em'"(%+f ,-%

emenda:

O segundo reparo, mais grave, diz respeito à tradução de giraffe porgirrafa . O tradutor ficou preso ao significado, não percebendo que

Prévert só escolheu a palavra giraffe em razão de seu significante, do jogo que sua massa sonora permite, estabelecendo recorrência fônica

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com a palavra ortographe , sendo que ambas ocupam posiçõesestratégicas de primeira importância no poema. [...] Na tradução, éimperativo usar-se o mesmo critério, isto é, escolher a palavra emfunção do jogo de significantes, escolher uma palavra que estabeleçarecorrência com a sílaba final de ortografia e que, além disso,contenha um erro de escrita sem interferência na escrita.

Em sua minuciosa análise, Laranjeira identifica, nesse curto poema,

todos os erros possíveis e imagináveis para uma tradução pautada no

princípio da identidade: o tradutor erra na intertextualidade, erra no registro,

erra no aspecto formal que se manifesta na sonoridade e na ortografia. Uma

tradução semiótico-textualmente mais fiel corresponderia, por exemplo, à

retradução que Laranjeira apresenta em sua crítica.

Minha culpa

Minha culpa

Minha máxima culpa em ortografia

Vejam como escrevi

Bassia

Assim, para Laranjeira, diante do impasse do interpretante intertextual

Mea Culpa A +%$C0/ 03.)/ 3%$) 4F-$3)5g (")7.% (0voilà , melhor optar por4B%W)+5 %A )0 "7B@# (0 (%#)#./0#0 4&"//)O)5A +%$C0/ #%/") 4')##")5L ?%/%F%

talvez reparo, dentro da própria poética do traduzir proposta por Laranjeira,

essa sua última escolha.

Partindo-se do princípio de que se trataria de estabelecer uma

recorrência fônica com a palavra ortographe A 70 F)#0 () ./)(-190 40/.0&/)O")5

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9.

Tavares Bastos retradutor de Victor Hugo

Em 1952, Travares Bastos publica um volume intitulado Versões

poéticas de Victor Hugo . Bastos, para comemorar o 150 o aniversário do

poeta francês, faz um levantamento de todos os poemas deste traduzidos até

então para o português. Ele os classifica, livro por livro, e os faz acompanhar

(% -+ 4}7("F% (0# ./)(-.0/%#5L M $"B/0 30(%/") 790 3)##)/ (% -+

levantamento bibliográfico, ainda que de grande importância.

Bastos, contudo, acrescenta a suas notas bibliográficas uma segunda

3)/.%A ,-% "7.".-$) (% 4J/)(-12%# % D0+%7.N/"0#5LNela, o autor se debruça

sobre quatro poemas de Victor Hugo: Saison des semailles, La Source..., Un

4%2,$/ 12,1 F 5"=/,%/888 e Le Crapaud . Nos quatro casos, propõe uma nova

tradução sua, à qual acrescenta outras traduções. Desse modo, Bastos

assume plenamente o seu lugar de retradutor. O interesse que desperta a

publicação é aumentada pelas distintas relações que se estabelecem entre a

nova tradução que apresenta e as reescritas anteriores.

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Saison des semailles : Tavares Bastos retradutor de si mesmo

Desestabilizando o lugar da tradução, vendo-a como um texto

palimpsesto, propício à reescrita, Tavares Bastos inicia seus comentários poruma de suas próprias traduções.

O tradutor começa, apresentado, na página 47, apenas sua nova

tradução, sem a presença do texto de partida, e da qual se reproduz aqui a

primeira e a última estrofes:

É do crepúsculo, agora, o instante.

A um vão de porta sento-me e, assim,

Admiro a tarde da luz restante

Que do trabalho clareia o fim.

[...]

Enquanto as sombras (no meio delas

Ouve-se ainda certo rumor)

Como que ampliam para as estrelas

O gesto augusto do semeador!

Na página seguinte, o que imediatamente se lê é o poema de Victor

Hugo, cujas duas estrofes correspondentes são:

9"/'1 5/ (2(/-1 :%6$,':,5#)%/8

G"#*()%/> #'')' '2,' ,- $2%1#)5>

9/ %/'1/ */ D2,% *2-1 '"6:5#)%/

La dernière heure du travail.

[...]

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125

Pendant que, déployant ses voiles,

!"2(;%/> 2X '/ (S5/> ,-/ %,(/,%>

L/(;5/ 65#%4)% D,'7,"#,P 612)5/'

Le geste auguste du semeur.

Como nas duas estrofes em questão, em toda a tradução verifica-se o

mesmo número de estrofes (cinco), o mesmo número de versos por estrofes

(quatro), assim como a estrutura rímica ABAB CDCD... Bastos não apenas a

retoma o esquema rímico, como alterna rimas graves ; instante/restante,

delas/estrelas - com rimas agudas - assim/fim, rumor/semeador ; ; de acordo

com a regra de alternância das rimas (masculinas/femininas) do francês.

O cuidado formal de Bastos vê-se também na métrica, uma vez que

seu texto, assim como o de Victor Hugo, tem um padrão isométrico. Bastos,

contudo, opta pelo eneassílabo para a tradução do octossílabo de Victor

Hugo, escolha que justifica:

A modesta tradução, em que adotei o metro de nove sílabas paraaproveitar, palavra por palavra, o último verso do original, chavebrilhante para a qual encaminha o poeta, desde o início, o espírito doleitor, foi precedida de outra, menos conforme, é certo, ao modelo,mas que talvez agrade por outras qualidades de interpretação ou deritmo que se lhe possam reconhecer. Sendo impossível reproduzir, naestreiteza da redondilha, a feliz expressão de que se serviu V. Hugopara qualificar o gesto do semeador, não deixou, entretanto, ointérprete de fazê-la figurar na quintilha anterior, aplicando-a com%,-"B)$%7.% W-#.%=) )0 4)+'"%7.%5 em que se enquadra a imagem

poética final.

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Nesse texto iluminador, Tavares Bastos (1952, p.48) justifica sua

opção pelo eneassílado, 30"#A 7%$%A F)'%/") ) 4O%$"= %]3/%##905 ,-% !"F.0/

Hugo utilizou para qualificar o semeador. Há por parte do retradutor uma

vontade não apenas de traduzir a forma, mas de fazer caber a expressão

O"7)$A 43)$)B/) 30/ 3)$)B/)5, no verso final de sua tradução, ainda que para

isso tenha de adotar um verso incomum em português; escolha distinta

daquela que havia adotado em sua primeira tradução, publicada em 1918, e

retomada por Magalhães Jr. (1950), cuja última estrofe reproduzo:

Eis que uma estrela aparece

(Ainda que ouve algum rumor...)

Mais outra... Outra mais... parece

Que vem surgindo a áurea messe

Ao gesto do semeador...

Escrita em redondilhas, metro considerado por séculos como o

equivalente do octossílabo francês, a primeira tradução de Bastos traduz as

quadras de Victor Hugo em quintilhas; primeira forma encontrada pelo

tradutor para transpor a carga semântica e imagética do texto hugoano. Esta

parece ser uma das grandes preocupações de Tavares Bastos, uma vez que,

em ambas as traduções, distancia-se da forma original; seja acrescentando

sílabas ao verso, seja acrescentando versos à estrofe.

Ao comparar suas duas traduções, Bastos ainda esclarece que, se sua

re./)(-190 %#.NA 4@ F%/.0A )0 +0(%$05 +)"# 4F07O0/+%5A ) #%&-7() 30(%

F07."7-)/ )&/)()7(0 430/ 0-./)# ,-)$"()(% s (% "7.%/3/%.)190 0- (% /".+05g

comentário que pode ser compreendido como uma defesa à sua primeira

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127

tradução. Agrada-+% .)+'@+ 3%7#)/ ,-%A 30/ (%./N# (%##% 4+0(%#.05 )-.0-

elogio encontra-se uma concepção do traduzir como movência e

reinterpretação, a ponto de levar o tradutor não só a retraduzir, mas a expor,

no jogo da retradução, a historicidade do traduzir.

La source... de três tradutores à retradução

Em seu segundo comentário, Tavares Bastos utiliza esquema

semelhante, apresentando primeiramente sua tradução, seguida do texto deVictor Hugo em itálico. Diferentemente da primeira apresentação, os dois

poemas encontram-se na mesma página; dos quais segue a primeira estrofe:

Do rochedo, gotejante,

A fonte caía ao mar.

4w-% ,-%/%#A ("= 0 &"&)7.%A

Por que te pões a chorar?

La source tombait du rocher

Goutte à goutte à la mer affreuse.

!"K:6#-> .#1#5du rocher,

!,) *)1A ?Y,/ (/ 0/,P -tu, pleureuse?

Bastos começa o comentário assinalando a existência de três versões

)7.%/"0/%# (0 30%+) 4B%/7)F-$"=)()# 30/ 30%.)# '/)#"$%"/0#5L M ./)(-.0/ , logo

em seguida, acrescenta um breve comentário do crítico francês Charles

<%70-B"%/A 70 ,-)$ %#.% [$."+0 )O"/+) ,-%A 70 30%+)A 4la concision est

merveilleuse 5L M (%#.),-% ()(0 d F07F"#90 @ "+30/.)7.%, pois, ao apresentar

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4w-% B%7# &%mendo buscar?

[1885, A. de Barros Falcão]

A indicação das datas por parte de Tavares Bastos ; o que não ocorre

no primeiro comentário ; é de grande importância. Bastos (1952, p.56) faz

questão de assinalar que, das três versões anteriores à sua,

na coletânea de traduções brasileiras de poesias de V. Hugo,organizada e publicada por Mucio Teixeira poucos meses depois de

haver emudecido para sempre aquela grande voz do século XIX[Hugonianas, 2a. ed. Rio, Imprensa Nacional, 1885, pp.324 e 362] ,figuram, apenas, a de Julio dos Santos e a de Barros Falcão, estaevidentemente calcada na de Joaquim Serra.

Com esse comentário, Bastos contextualiza a divulgação das

traduções, revelando uma relação ocultada na grande antologia de MucioTeixeira. Bastos evidencia que as traduções conversam entre si, ainda que

os tradutores que se apropriam das escolhas de outros nem sempre o

explicitem. Na perspectiva da retradução, a reapropriação não é condenável,

por ser um procedimento que pode reatualizar ; no caso há um intervalo de

vinte anos entre as duas traduções ; uma reescrita já existente no sistema

literário de chegada.

Tavares Bastos, contudo, opta por soluções próprias, que, de certo

modo se querem uma emulação dos trabalhos anteriores; não se deixando

4F07.)+"7)/5 3%$0 ./)')$C0 (% #%-# 3/%(%F%##0/%#L As revelações em relação

a Barros Falcão são, pois, neste contexto, mais facilmente compreendidas

como uma condenação.

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#$ %&'()* +'(+ , -./*(&*000 traduções paralelas

O Terceiro poema de Victor Hugo, tirado da Légendes des Siècles , é

primeiramente apresentado em tradução e, em seguida, no original, comonos casos anteriores. Como ressalta o próprio Bastos, sua tradução tem a

mesma forma do original ; alexandrinos com rimas paralelas ; , mas um

número maior de versos que o de Victor Hugo. Esta estratégia, recorrente

neste retradutor, visa recuperar toda a carga semântica do texto de partida.

Diferentemente dos casos anteriores, em que sobrepõe o seu trabalho

a trabalhos já realizados, Bastos afirma que sua tradução ocorreu sem que

ele tivesse conhecimento daquela feita por Artur Azevedo, com a qual teria

tomado conhecimento posteriormente; conforme Bastos (1952, p.59), 4+-".0

tempo depois de haver perpetr )(0 "&-)$ ./)7#3$)7.)190 3)/) ) 70##) $E7&-)5L

6 /%%#F/".) 43)/)$%$)5 F0#.-+) #%/ -+) 30#.-/) ')#.)7.% F0+-+ %7./%

os tradutores que, de certa forma, se colocam nesse momento primeiro, em

que o tradutor se aproxima do ato de criação.

Ao recuperar a tradução de Azevedo, Bastos, contudo, ressignifica a

sua, por meio (% -+ %$0&"0 d ./)(-190 )7.%/"0/g 4)$@+ (% 0-./)# B)7.)&%7#

incontestes, tem ela sobre a minha a de ser vazada no mesmo número de)$%])7(/"70# (0 .%].0 O/)7Fc#5L M $%".0/ )&0/) 790 30(%A )0 $%/ Y)#.0#A +)"#

negar a presença de Azevedo, levando-o, dessa maneira a interrogar-se

sobre o que implica retraduzir. Ao recuperar o trabalho de Azevedo, Bastos

faz com que sua tradução deixe de ser um texto primeiro e seja interpretada

como retradução, submetida a cotejamento por representar uma nova

camada de sentido a um texto já reinventado.

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Le Crapaud : poetas engolindo sapos

Em seu quarto e último comentário, Bastos apresenta sua tradução dolongo poema Le Crapaud , mais uma vez acompanhada do poema original.

Curioso o fato de que, após os dois textos, o que se lê é um breve

comentário sobre a crença de Victor Hugo na alma dos animais e, ao invés

de comentários sobre seu próprio trabalho tradutório ou a apresentação de

traduções anteriores, Bastos prossegue:

É de Mário de Lima (Ancenubios , Rio, 1908) a seguinte poesia sobreO Sapo, que o poeta declara inspirada numa página de Gonzaga,

cheia, por sua, de reminiscências do poema hugoano .

Bastos apresenta o poema de Mário Lima e, logo em seguida,

emenda:

Vale ainda recordar as graciosas quadrinhas com que Bandeiracantou, por igual, o triste destino desses batráquios, sugerindo-lhesartisticamente a brusquidão dos pulos curtos na cadência aceleradada redondilha.

O que se lê, por fim, é o poema de Bandeira e, assim, sem

acrescentar nem mais uma palavra, Tavares Bastos encerra seu livro sobre

)# 4!%/#2%# 30@."F)# '/)#"$%"/)# (% !"F.0/ Z-&05L M #)30 (% !"F.0/ Z-&0 @

completamente devorado pelos sapos nativos, sem que a haja nenhum juízo

de valor sobre os poemas.

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A naturalidade com que Bastos salta do sapo de Hugo aos sapos

brasílicos dilui, em certo sentido, a fronteira entre traduzir e criar. Ao destacar

também a qualidade da poesia de Bandeira, Tavares Bastos, em ato

antropofágico, imbui o leitor da vitalidade poética brasileira situando seu livro

no sistema literário nacional, ainda que a comparação remeta também à

lógica da emulação.

Considerações finais

O trabalho de Tavares Bastos desperta grande interesse, pois é único

em seu modo de apresentação. Trata-se de um estudo dedicado

exclusivamente à tradução e que produz, a cada novo comentário, uma

retradução.

Dividido em duas partes, primeiramente cataloga a produção existente

e, em seguida, se coloca em relação a ela. Aí reside, para os fins desta

análise, o trabalho de Tavares Bastos, pois nele se explicita uma prática da

/%./)(-190 ')#.)7.% F0//%7.%A ) /%./)(-190 F0+0 4F0//%1905 % F0+0

4%+-$)1905A #%W) (% #" +%#+0A #%W) (% 0-./0# ./)(-.0/%#L

É o que se pode notar bem claramente em sua auto-retradução de

Saison des semailles e na maneira que se coloca diante das três traduções

de La Source ; ainda que, neste último procedimento, ele aponte para a

historicidade do traduzir e para a reapropriação que pode ocorrer no caso de

retraduções. A comparação que estabelece entre sua tradução de Un groupe

12,1 F 5"=/,%/e aquela de Artur Azevedo é quase uma desculpa por ter se

atrevido a rivalizar com o poeta.

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O que, contudo, desestabiliza o conjunto e obriga a repensar a própria

concepção do traduzir de Tavares Bastos é cotejamento que produz entre

sua tradução de Le Crapaud e os poemas de Mário Lima e Manuel Bandeira,

introduzindo uma ambiguidade que aponta para uma relativação do ato

tradutório.

Assim, mesmo se Tavares Bastos procura, de certa maneira,

estabilizar o texto, paradoxalmente, o resultado da exposição proposta é

explicitar a instabilidade do texto, seja o de Victor Hugo, sempre sujeito a

interpretações e desdobramentos, seja o texto traduzido, sempre à espera

das camadas de reescrita por vir.

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10.Castro Alves tradutor de poetas franceses

e retradutor de Lamartine

Em busca de Castro Alves tradutor

Antoine Berman (1995, p.16), em seu livro sobre as traduções de John

\077%A )##"7)$) ,-% O)= 3)/.% (% -+) @."F) () ./)(-190 4#)'%/ ,-%+ @ 0

tradutor e, sobretudo, determinar sua posição tradutória, seu projeto de

./)(-190 % #%- C0/"=07.% ./)(-.^/"05L U0 F)#0 (% D)#./0 6$B%#A @ 30##EB%$

refletir sobre sua posição tradutória por indícios deixados em cartas e, de

modo mais evidente, pela relação entre a maneira como nomeia suas

próprias traduções e sua prática tradutória.

No que concerne sua correspondência, Castro Alves (2004, p.747), em

carta escrita para Regueira Costa entre julho e setembro de 1867, comenta:

Como vai a Noiva de Abidos, de Byron? A tua mimosaassimilação dapoesia de Lamartine? V Manda-as, quero sentir o doce perfume dosteus versos tímidos e virgens como um seio velado de virgem... Queroler Byron e Lamartine na melodiosa toada de tuas estâncias .

Chama a atenção o uso do termo assimilação , marcado em itálico na

edição de 2004, ou seja, Castro Alves sugere que, segundo sua posição

tradutória, não se trata de reproduzir o texto, mas de assimilá-lo, fazer com

,-% #0% (% )F0/(0 F0+ ) 4+%$0("0#) .0)()5 ()# "7#.X7F")# '/)#E$"F)#L n##%

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dado é relevante, mas deve-se também notar que, na sua prática, o projeto

tradutório de Castro Alves varia, pois ele não traduz sempre do mesmo

modo; as variações da melodia que entoa indicam uma necessidade de se

analisar, por exemplo, algumas das escolhas formais do autor-tradutor em

suas traduções dos poetas românticos franceses, como Victor Hugo e Alfred

de Musset.

Nesse sentido, o caso da métrica é bastante revelador. A primeira

tradução de Castro Alves, de 1865, é um trecho da peça teatral Bug Jargal ,

escrita por Victor Hugo em prosa, e vertida para o português em

decassílabos brancos; estrutura raríssima na poesia francesa e corrente no

poema épico de tradução luso-brasileira. Vejam-se os seguintes trechos:

CANTO DE BUG JARGAL (Traduzido de V. Hugo)

Pourquoi me fuis-tu, Maria ? [ On a jugéinutile de reproduire ici en entier lesparoles du chant espagnol : Porque mehuyes, Maria ? etc ] pourquoi me fuis-tu, jeune fille ? pourquoi cette terreur quiglace ton âme quand tu m'entends ? Jesuis en effet bien formidable ! je ne saisqu'aimer, souffrir et chanter !

POR QUE foges de mim? Por que, Maria?

E gelas-te de medo, se me escutas?

Ah! sou bem formidável na verdade,

Sei ter amor, ter dores e ter cantos!

Lorsque, à travers les tiges élancées descocotiers de la rivière, je vois glisser taforme légère et pure, un éblouissementtrouble ma vue, ô Maria ! et je crois voirpasser un esprit !

Quando, através das palmas doscoqueiros

Tua forma desliza aérea e pura,

Ó Maria, meus olhos se deslumbram,

Julgo ver um espírito que passa.

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Note-se que esta primeira tradução, publicada apenas na obra

póstuma Os Escravos , vem acompanhada de parênteses, logo abaixo do

.E.-$0A %+ ,-% #% $c 4J/)(-="(0 (% !L Z-&05L !)$% 0'#%/B)/ ,-% 0 .%].0 (%

Castro Alves aproxima-se bastante do texto de Victor Hugo no que diz

respeito ao sentido. Não há, no texto do poeta brasileiro, nenhuma elipse

importante além da omissão da didascália, nenhum acréscimo lexical,

nenhuma mudança importante de pontuação, ou seja, o tradutor procura

uma, como se costumava dizer, fidelidade no nível semântico e produz uma

dicção homóloga à de Victor Hugo, ainda que formalmente os textos

distanciem-se. Assim, pode-se supor que, para Castro Alves, a tradução seja

uma fidelidade de conteúdo .

M 30%+) 4:%/#%B%/)7(05A (% _hK| e#%&-7() ./)(-190 (% 30%+)

francês feita por Castro Alves, em que se lê também logo abaixo do título

%7./% 3)/c7.%#%# 4J/)(-190 (% !L Z-&05 3)/%F% F07O"/+)/ %#.) C"3^.%#%L

Neste caso, não se trata de uma mudança de padrão apenas no metro, mas

também na rima. Aí, os alexandrinos da Ode Dix-septième , dispostas em

sextilhas cujas rimas distribuem-se na forma AABCCB, são transpostos em

decassílabos de estrutura rímica xxAxxA. Esta transformação metro-rímica,

uma vez mais, não se distancia de modo importante do sentido do texto.Imagens análogas e dicção similar ecoam no texto de Castro Alves e pode-

se, inclusive, interpretar a redução do número de versos rimantes como um

recurso do poeta-tradutor para aproximar-se semanticamente do original,

como na estrofe:

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L'AIGLE, c'est le génie l'oiseau de la

[tempête,

Qui des monts les plus hauts cherche le plus

[haut faîte;

Dont le cri fier, du jour chante l'ardent

[réveil;

Qui ne souille jamais sa serre dans la fange,

@1 *2-1 5ZU)5 .5#(;23#-1 )-:/''#((/-1

[échange

Des éclairs avec le soleil.

A ÁGUIA é o gênio... Da tormenta o

[pássaro,

Que do monte arremete altivo píncaro,

Qu'ergue um grito aos fulgores do

[arrebol,

Cuja garra jamais se peia em lodo,

E cujo olhar de fogo troca raios

; Contra os raios do sol

Atitude semelhante é adotada nas traduções, feitas em 1869, dos

menos conhecidos Herni Murger e de E. Berthoud28. Na tradução deste

último, Castro Alves transpõe 0# 0F.0##E$)'0# (0 30%+) 46# ./c# "/+9# do

30%.)5 %+ (%F)##E$)'0# % "7("F) %7./% 3)/c7.%#%# ,-% #% ./).) (% -+ 30%+)

4J/)(-="(0 (%LLL5L !%"&) e_IhKA 3L_|`fA F".) 0# (0"# 3/"+%"/0# B%/#0# (%#.%

poema:

La neige tombe; V :"/'1 5# -,)18

Trois pâles vierges vont, sans bruit

É noite! as sombras correm nebulosas.

Vão três pálidas virgens silenciosas

28

Veiga (1986, p.166) assinala de que se trata, de fato, de um poema de Bouchard,entretanto, na edição das Obras completas(2004), consta o nome de E. Berthoud.

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w-)7.0 )0 30%+) 4Y)$)() (0 (%#%#3%/)(05A (% ?-/&%/A D)#./0 6$B%#

simplesmente coloca entre parênteses, em baixo do título, o nome do autor

(0 0/"&"7)$A 3/N."F) ,-% )(0.) .)+'@+ 7)# ./)(-12%# (0 30%+) 46 M$E+3"05

(% Z-&0A (0 30%+) 4n$%&")5 (% V)+)/."7% % (0# 30%+)# 4DC)7#075 %

4M.NB"05 (% ?-##%.L 6# "7O0/+)12%# #0'/% )# ./)(-12%# (% D)#./0 6$B%# %+

que se lê os termos tradução e traduzido, somado àquelas em que se lê

apenas o nome do autor do texto de partida, podem ser esquematizadas da

seguinte maneira:

DATALOCAL

TÍTULO INDICAÇÃODE CASTRO ALVES

FORMAORIGINAL

FORMATRADUZIDA

Set. 1865Recife

Bug Jargal Traduzido deV. Hugo

Drama decassílabosversos brancos

Abr. 1867Pernambuco

Perseverando Tradução deV. Hugo

alexandrinos+octossílabosextilhas AABCCB

decassílabos+hexassílabosextilhasxxAxxA

Ago. 1868

São Paulo

As três irmãs

do poeta

Traduzido de

E. Berthoud

octossílabo

sextilhas AABCCB

decassílabo

sextilhas AABCCB Ago. 1868São Paulo

A Olímpio De V. Hugo alexandrino+hexassílaboquadras ABAB

alexandrino+hexassílaboquadrasxAxA

Ago. 1868São Paulo

Balada doDesesperado

Henry Murgeroctossílaboquadras ABAB

redondilhamaiorquadrasxAxA

1868-69 Elegia Lamartine alexandrinosestrofesirregulares ABBA/ABAB

decassílabosestrofesirregularesversos brancos

1868-69 Elegia Lamartine alexandrinosestrofesirregulares ABBA/ABAB

alexandrinosestrofesirregulares ABBA/ABAB

Ago. 1870S. Isabel

Chanson Musset decassílaboquadra ABBA

decassílaboquadraxAAB

Ago 1870S. Isabel

Otávio De Alfred deMusset

91alexandrinosrimas ABAB

100decassílabosversos brancos

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Nesse conjunto de poemas, Castro Alves às vezes opta por outros

metros, mas procura sempre uma isometria. A grande variação ocorre em

relação aos esquemas das rimas, sempre mais soltas em Castro Alves; o que

lhe permite uma maior aproximação em relação ao sentido, pois lida com

menos restrições.

Veja-#%A F0+0 %]%+3$0A ) ./)(-190 (0 30%+) 4DC)7#075 (% ?-##%.A

considerada por Faria (1971, p.28) e por Veiga (1986, p.175), a melhor

tradução feita por Castro Alves de poetas franceses. Nela, o tradutor retoma

os decassílabos de Musset, mas opta por outra distribuição de rimas, menos

rígida do que aquela de Musset e chega ao seguinte resultado:

GZ#) *)1 F (2- :U,%> F (2- $#,0%/ :U,%>

N'est-ce point assez d'aimer sa maîtresse?

Et ne vois-tu pas que changer sans cesse,

C'est perdre en désirs le temps du bonheur?

Il m'a répondu: cc n'est point assez,

Ce n'est point assez d'aimer sa maîtresse;

Et ne vois-tu pas que changer sans cesse

Nous rend doux et chers les plaisirs

[passés?

GZ#) *)1 F (2- :U,%> F (2- $#,0%/ :U,%A

N'est-ce point assez de tant de tristesse?

Et ne vois-tu pas que changer sans cesse,

C'est à chaque pas trouver la douleur?

A

B

B

A

C

B

B

C

A

B

B

A

Disse a meu peito, a meu pobre peito:

Não te contentas cuma só amante?

Pois tu não vês que este mudar constante

Gasta em desejos o prazer do amor?

Ele respondeu: não! não me contento

Não me contento cuma só amante.

Pois tu não vês que este mudar

[constante

Empresta aos gozos um melhor sabor?

Disse a meu peito, a meu pobre peito:

Não te contentas desta dor errante?

Pois não vêz que este mudar constante

A cada passo só nos traz a dor?

A

B

B

C

6S

B

B

C

A

B

B

C

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Il m'a répondu: ce n'est point assez,

Ce n'est point assez de tant de tristesse;

Et ne vois-tu pas que changer sans cesse

Nous rend doux et chers les chagrins passés?

C

B

B

C

Ele respondeu: não! não me contento,

Não me contento desta dor errante.

Pois tu não vês que este mudar constante

Empresta às mágoas um melhor sabor?

6S

B

B

C

É possível supor que o conceito de tradução remete em Castro Alves a

uma noção de fidelidade semântica , pois, ainda nos versos finais da segunda

e quarta estrofes de sua tradução, haja um número importante de omissões

(doux, chers, passés ) e que, no segundo verso da terceira estrofe, ele inclua

o termo errante por razões de rima, o grau de liberdade formal na tradução é

maior do que no poema de Musset, o que permite a Castro Alves compor um

poema semanticamente próximo ao texto de partida, sobretudo se

comparado a algumas outras reformulações de textos de poetas franceses.

Nas reformulações, Castro Alves acrescenta parênteses em que, ao

invés da palavra tradução , lê-#% 4:)/NO/)#% (% !L Z-&05A 4J/)(-190 $"B/% (%

?-##%.5 % 4nF0# (% 6$O/%( (% ?-##%.5L

Desse modo, o poeta-tradutor pode se permitir uma maior liberdade,

pois não se encontra diante de uma pretensa responsabilidade de ser fiel ao

conteúdo e pode produzir textos que correspondam aos esquemas metro-

rímicos dos textos franceses. As informações sobre esses três poemas

podem ser sintetizadas como segue:

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DATA TÍTULO INDICAÇÃODECASTRO ALVES

FORMAORIGINAL

FORMATRADUZIDA

ago

1868SãoPaulo

Palavras de um

Conservador

Paráfrase

de V. Hugo

alexandrinos

dísticos AABBCCASTRO..

alexandrinos

dísticos AABBCCASTRO..

jul1870S.Isabel

Madri Traduçãolivre deMusset

octossílaboSextilhas AABCCB

redondilha maiorSextilhas AABCCB

jul1870S.Isabel

Veneza Ecos deAlfred deMusset

octossílabos+tetrassílaboQuadra AABB

redondilha+tetrassílaboQuadra AABB

Para se compreender melhor a diferença entre o que Castro Alves

nomeia de texto 4traduzido de 5 e esses três poemas, observe-se a seguinte

estrofe da dita 4tradução livre 5 (0 30%+) 4?)(/"5 (% ?-##%.L

Madrid, princesse des espagnes,Il court par tes mille campagnesBien des yeux bleus, bien des yeux noirs.La blanche ville aux sérénades,Il passe par tes promenadesBien des petits pieds tous les soirs.

octossílabos

A ABCCB

MADRI! Ó flor das Espanhas,Correm nas tuas campanhasOlhos escuros e azuis.Branca flor das serenatas,Lavam-se em tuas cascatasPequeninos pés tafuis.

redondilhas

A ABCCB

Nessa tradução, Castro Alves procura reproduzir o mesmo esquema

rímico do texto de partida, ainda que isso o leve a introduzir novas imagens

no texto, como a tradução de promenades por 4cascatas 5, escolha chamada

30/ r)/") e_I|_A 3LG|f (% 4"7F07&/-c7F") .0.)$5L w-)7.0 )0 +%./0A 7%#.% F)#0A

nota-se que os octossílabos são transpostos em redondilhas. Veiga (1986,

p.170-171), ao comentar a tradução dos octossílabos de Musset e Murger por

/%(07("$C)#A )##"7)$) ,-% D)#./0 6$B%# 4T#) -+ B%/#0 +%70/ eLLLfo verso de

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| #E$)')# %+ B%= (0 B%/#0 (% h #E$)')#5L 60 O)=er uma afirmação desta

natureza, Veiga ignora um elemento importante do horizonte tradutório do

poetas românticos brasileiros e da história da métrica luso-brasileira. Essa

importante questão da contagem silábica é sintetizada por Manuel Bandeira

(1997, p.538-539) da seguinte forma:

Contam-se as sílabas métricas até a última vogal tônica do verso.Damos abaixo quatro versos de Artur Azevedo, grafando em itálico assílabas contadas:

Cos-tu-mam-a-go-ra os-lí-ricosVer-sos-fa-zer-nes-te es-ti-lo:4J- -és-is-to eu-sou-a-qui-lo,Tu-és-as-as-da eu-as-sim.

Tal sistema de contagem, também usado no idioma francês, foiintroduzido em nossa língua por Antônio Feliciano de Castilho [1851]

no seu Tratado de metrificação portuguesa29

. Antes dele, contavam-se todas as sílabas do verso grave, não se contava a última do versoesdrúxulo, e considerava-se incompleto o verso agudo, pelo quecontava como duas a última sílaba métrica. Destarte, os versos de Artur de Azevedo citados acima são chamados heptassílabos (desete sílabas) segundo o sistema de Castilho, hoje prevalecente, eoctossílabos (de oito sílabas) segundo o sistema antigo, que aindaprevalece na língua espanhola, e que em nosso idioma pretende

restaurar o professor M. Said Ali30

[1950].

29 Segundo Chociay (1974:12), Miguel Couto Guerreiro, já em 1784, havia adotado acontagem até a última sílaba tônica, como nota-se nesta passagem de sua regra IX:4D07.)7do até o acento dominante / Que basta para o verso ser constante / Dez sílabas oheroico .%+LLL5 30 Chociay (1974:13) cita também Manuel da Costa Honorato (Synopses de eloquencia epoetica nacional, Rio, 1870) e Leogedário Amarante de Azevedo Filho (Estruturalismo e

crítica de poesia , Gernassa, Rio, 1970) como autores que retomam a contagem de padrãograve. Recentemente, Romildo Sant`Anna (A moda é viola . São Paulo: Arte e Ciência, 2000,

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Assim, pode-se supor que, ao traduzir para o português os poemas

escritos em octossílabos franceses, Castro Alves optou pelo verso

octossilábico de padrão grave (espanhol), que ainda prevalecia em sua

época. Tanto é que o verso octossilábico de padrão agudo (francês)

corresponde a uma métrica introduzida de modo relativamente sistemático na

língua portuguesa a partir da segunda metade do século XIX. De acordo com

Bandeira (1997, p.540):

M# 0F.0##E$)'0# O0/)+ /)/0# )7.%# (% D)#."$C0L n#.% %#F/%B%-8 4Mmetro de oito, pode-se dizer que )"7() 790 @ -#)(0 %+ 30/.-&-c#L5 6F/%#F%7.)7(08 4LLL,-)7(0 +)"# % +%$C0/ F-$."B)(0A ) W-$&)/+0-lopelos seus elementos, e pelo que os franceses dele têm chegado aO)=%/A 30(% B"/ ) #%/ +-".0 )3/%F")(05L M B)."FE7"0 /%)$"=0--se. Os

poetas parnasianos serviram-se dele com frequência 31.

Ainda com relação ao metro, vale salientar que, entre as traduções de

Castro Alves, há poucos textos em que os alexandrinos são traduzidos por)$%])7(/"70#L !%"&) e_IhKA 3L_|Hf )##"7)$) ,-% 4:0/ +-".0 .%+30A 0

alexandrino franFc# O0" ./)7#30#.0A %+ 30/.-&-c#A 3%$0 (%F)##E$)'05A O).0 ,-%

pode ser explicado pelo próprio Feliciano de Castilho que, em seu Tratado de

Versificação , publicado em 1851, afirma (1908, p.42):

p.38), afirma que os primeiros romances escritos no século XIV, utilizavam-se geralmente de4B%/#0#octossílabos (...) de acordo com o padrão grave da metrificação espanhola, maisadequado ao espírito paroxitonal da Língua Portuguesa. Este padrão é o adotado pelo Grupode Estudos Literatura e Cultura Popular , UNESP de São José do Rio Preto- >:5g 3)(/90 ,-%ele adota em seu ensaio.31 Bilac (1944, p.64), entretanto, não o considera assim tão frequ%7.% )0 )O"/+)/ ,-%8 4M#

antigos poetas portuguezes pouco empregaram este metro; o próprio Castilho cultivou-oduas o - ./%# B%=%#L n7./% 7^#A #% 790 @ +-".0 F0++-+A 790 (%"]) (% #%/ )+)(05L

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Ao verso de doze syllabas chamam alexandrino e tambem francez,porque entre os francezes é elle o heroico, como o de dez syllabas oé em Portugal, Castella e Itália [...] Não será facil atinar com a rasãopor que um verso mais espaçoso que todos os outros, porconsequencia, mais capaz de pensamento e com uma partiçãosymetrica, o que para o espirito de quem os faz e para o agrado dequem os lê, é ainda uma vantagem, tem sido até hoje tãoescassamente cultivado em nossa língua.

Ou seja, na época de Castro Alves, a utilização do alexandrino é rara,

pois o verso heroico luso-brasileiro era, na época, o decassílabo. Daí a

"7F0/30/)190 (0 )$%])7(/"70 )3%7)# %+ -+) B%/#90 (% 4n$%&")5 e,-%

merece, por si só, um estudo, que empreendemos no final desta reflexão, por

se tratar de um caso bastante particular em que o poeta traduz duas vezes,

de forma distinta, o mesmo poema) e na paráfrase (0 30%+) 4:)$)B/)# (%

-+ F07#%/B)(0/5L

Foi, pois, necessário esperar a adoção do padrão clássico francês no

Brasil pelos parnasianos para que o alexandrino passasse a ser traduzido

sistematicamente por um metro de doze sílabas contadas até a última tônica.

As traduções de Castro Alves são, assim, um exemplo dessa fase de

transição, o que explica o fato de que o alexandrino apareça em uma

translação chamada pelo próprio Castro Alves de paráfrase.

w-)7.0 d /"+)A )##"+ F0+0 7) ./)(-190 (% 4?)(/"5A %+ 4:)$)B/)# (%

-+ F07#%/B)(0/5 % %+ 4!%7%=)5A D)#./0 6$B%# 03.) 30/ %#./-.-/)# /E+"F)#

próximas daquelas do original; o que acaba levando-o a distanciar-se

semanticamente do texto fonte; o que leva a supor que, para Castro Alves,

traduzir é assimilar o texto procurando a maior fidelidade semântica possível

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e que optar por uma fidelidade formal significa fazer paráfrase ou tradução

livre. Mesmo se a ausência de um discurso mais sistemático sobre o ato de

traduzir explica em parte sua hesitação terminológica ; pois é difícil distinguir,

nas traduções, a paráfrase da tradução livre ; fica, contudo, evidente que

Castro Alves distingue com bastante clareza o que chama de tradução e de

paráfrase. Essa distinção é, portanto, fundamental para uma melhor

compreensão das diferentes posturas que Castro Alves adota em suas

traduções.

Os comentadores das traduções francesas de Castro Alves a que

tivemos acesso ; Maria Alice de Oliveira Faria (1971), Cláudio Veiga (1986) e

Maria Cecília Q. de Moraes Pinto (2003) ; não foram, porém, sensíveis a

esse fato. Com efeito, é possível verificar em seus discursos uma velha

30#.-/) (")7.% () ./)(-190L D0+0 )O"/+) Y%/+)7 e_IIPA 3L_`f8 4%]"#.%A (%#(%

a Idade Clássica, recenseamentos críticos de traduções, em que crítica

significa julgamento ou avaliação 5L

6$"F% (% M$"B%"/) r)/")A %+ #%- )/."&0 (% _I|_A "7.".-$)(0 4m."7%/N/"0

+-##%.")70 7) 30%#") (% D)#./0 6$B%#5A #%&-% d /"#F) ) 30#.-/) F$N##"F)L n$)

inicia seus comentários das traduções com considerações sobre o poema

4!%7%=)5 %+ ,-% )##-+% ) #%&-"7.% 30#.-/)8

Na sua tradução, Castro Alves procurou manter, tanto quantopossível, as características formais do poema, inclusive sonoridade,tendo até mesmo cometido um estropiamento total de sentido, a fimde preservar a mesma vogal da rima do original (...) a maior crítica aesta tradução, deve ser feita, porém, no nível do vocabulário. Castro

Alves não conseguiu o natural de Musset porque, em grande parte,

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embaraçou-se num vocabulário erudito, inusitado, algumas vezesridículo e que na maioria pertence à sua retórica pessoal.

A autora prossegue com uma longa lista de exemplos que culminam

F0+ ) $)3"()/ F07F$-#908 4n#.%# %])&%/0# #90 F0+-7# 7)# ./)(-12%# (0#

românticos brasileiros que parecem deformar os originais, através da

3/0W%190 (% #-)# 3#"F0$0&")# "7("B"(-)"# 0- F0$%."B)#5L

n+ #%&-"() )7)$"#) ) ./)(-190 (% 4?)(/"5A ,-% F07#"(%/) 4+)"# O"%$5A

+%#+0 #% 4-#) ) /%(07("$C) +)"0/5 %A 7)# 3N&"7)# #%&-"7.%#A F0+%7.) )

./)(-190 (% 4 Chanson 5 ,-%A F0+0 )##"7)$)(0 )7.%/"0/+%7.%A F07#"(%/) )

4+%$C0/5 ./)(-190 ,-% 0 30%.) O)= (% ?-##%.L 6 )-.0/) )O"/+) ,-% 4D)#./0

Alves procurou adaptar ao português as mesmas correspondências que

estruturam o original, bem como o tom coloquial, criado pelo ritmo

')$)7F%)(0A 0 ,-% F07#%&-"- )(0.)7(0 0 B%/#0 (% 70B% #E$)')#5L 6,-" )

autora comete uma imperícia, pois o texto de Alves é em decassílabos.

Quanto à rima, indica rapidamente que os primeiros versos de cada estrofe

%#.90 4)3%7)# %+ )##07X7F")5L n+ #%&-"da, detém-se no vocabulário e

)##"7)$) ,-% 4%]F%3F"07)$+%7.% D)#./0 6$B%# 0'.%B% -+) ./)(-190 F0+

3)$)B/)# F0//%7.%#A F0+0 70 0/"&"7)$5L

Em momento algum, porém, a autora assinala a existência das

indicações dos parênteses de Castro Alves, o que a leva a adotar os mesmos

F/".@/"0# 7) )7N$"#% (0 ,-% D)#./0 6$B%# FC)+0- (% 4./)(-1905A (% 4./)(-190

$"B/%5 % (% 4%F0#5L U90 F0+3/%%7(%7(0 ,-% CN -+) F$)/) &/)()190 (%

intenção de proximidade e de distanciamento em relação ao texto-fonte.

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Quanto a Cláudio Veiga (1986, p.176), o autor destaca o fato de que

D)#./0 6$B%#A %+ #-) ./)(-190 (% 4:)$)B/)# (% -+ F07#%/B)(0/58

...teve o cuidado de advertir que se trata de uma paráfrase. Mas, peloque se entende o que seja paráfrase, e pelas que fizeram outrospoetas nossos, este trabalho está mais perto da tradução do que daparáfrase. É uma tradução realizada com alguma liberdade. (...) Arelativa autonomia que teve em desmontar e reconstruir o texto deVictor Hugo parece ser responsável pela fluidez e naturalidade datradução. Apesar de julgar paráfrase esta sua tradução é ela, semdúvida, mais fiel e mais bem sucedida que a tradução de

4:%/#%B%/)7(05L

!%"&)A F07.-(0A 790 F0+%7.) 0 O).0 (% ,-% ) 4$"'%/()(%5 % 4/%$)."B)

)-.070+")5 #% (90 70 ,-% F07F%/7% 0 F07.%[(0A -+) B%=que, formalmente,

Castro Alves produz um poema em dísticos alexandrinos com rima paralela,

assim como no texto de Hugo.

Há ainda Maria Cecília Q. de Moraes Pinto (2003, p.613) que, ao

analisar a presença francesa na obra de Castro Alves, destaca a tradução de

Perseverando A ,-% F07#"(%/) 4O"%$ )0 0/"&"7)$5A #%+ F0+%7.)/ 0# 30##EB%"#

critérios de fidelidade. Note-se que esta é a tradução considerada menos fiel

e menos bem sucedida por Veiga, além de se tratar de uma tradução em que

Castro Alves adota outro esquema metro-rímico, mais solto do que o de

Hugo.

Esta síntese de alguns dos comentários desses três autores aponta

para o fato de que, apesar de não emitirem sempre o mesmo juízo, os três

compartilham o mesmo princípio tradutório: aquele que considera fiel uma

tradução que não trai o sentido ; mesmo critério que Castro Alves adota para

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classificar suas próprias traduções. Mas, diferentemente de seus

comentadores, ele assume diferentes posições tradutórias, pois identifica

diferentes modos de reformular o texto fonte. Assim, quando traduz mais a

O0/+) (0 ,-% 0 #%7."(0A 0 30%.) 70+%") #%- ./)')$C0 (% 43)/NO/)#%5A 4%F0#5

0- (% 4./)(-190 $"B/%5A ./)(-12%# ,-% C0W% 30(%/")+ #%/ F07#"(%/)()#

B%/()(%"/)# 4./)7#F/")12%#5L

As considerações acima indicam que um estudo das traduções de

poetas românticos deve considerar três aspectos. Primeiramente, notar que,

no horizonte tradutório de Castro Alves e dos românticos brasileiros, uma

linha, apesar de algumas exceções, permanece pouco maleável: o sistema

de contagem métrica predominante ainda é o espanhol e o italiano, ou seja,

para esses poetas-tradutores a redondilha é um octossílabo e o verso heroico

é o que se chama hoje de decassílabo. É necessário, em seguida, atentar

para o projeto tradutório em que está envolvido cada poema traduzido.

Em Castro Alves, como foi assinalado, há um conjunto de traduções

que privilegia o sentido em detrimento da forma ou, como diria Afrânio

:%"]0.0 em78 6V!n>A _I`hA 3L`HPfA 4@ +)"# O"%$ .)$B%= )0 #%7."+%7.0 30@."F05A

enquanto outro g/-30 (% ./)(-12%#A )"7() #%&-7(0 :%"]0.0A 4)(03.)

%])F.)+%7.% ) O0/+) (0 0/"&"7)$5g 0# ("O%/%7.%# 3/0W%.0# ./)(-.^/"0# %#.90

anunciados entre parênteses, basta observá-los. Enfim, procurar ser sensível

à posição tradutória desses tradutores que, muitas vezes, defendem a

assimilação do poeta traduzido; em terras brasílicas, os estrangeiros, ao

serem (%B0/)(0#A 3)##)+ ) %])$)/ -+ 3%/O-+% "+3/%&7)(0 () 4/%.^/"F)

3%##0)$5 (0# 30%.)# /0+X7."F0# .-3"7",-"7#L

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Castro Alves e sua auto-retradução de Lamartine

Capítulo a parte, não só no trabalho tradutório de Castro Alves, mas

na história da edição brasileira é a tradução e a auto-retradução que fez

D)#./0 6$B%# (0 30%+) 4n$%&")5 (% V)+)/."7%L !%"&) e_IhKA 3L_|K-179), em

seu artigo 4Castro Alves tradutor de poetas franceses 5, destaca a existência

(% 4(0"# 3/0'$%+)# (% %("1905 nas obras do poeta, o primeiro referente à

tradução de Élégie , único poema traduzido duas vezes por Castro Alves.

Comenta Veiga (idem, p.177) a respeito:

Castro Alves prestou sua colaboração à coletânea publicada emhomenagem a Lamartine [Lamartineanas , 1869], traduzindo Élégie ,poesia de Nouvelles Méditaions Poétiques . Na referida coletânea,algumas páginas do poeta francês foram contempladas com duastraduções [...]. O mesmo sucedeu a Élégie , de modo muito estranho. Alguns exemplares do florilégio apresentam uma tradução de Élégie ,que vem assinada ; Castro Alves. Em outros exemplares da mesmaedição, nas mesmas páginas, lê-se outra tradução, assinada ; Anônimo. Duas traduções da mesma obra. Em 1881, a versãoanônima foi anexada à edição das Espumas Flutuantes . De entãopara cá, os editores perfilham esta escolha. Supondo-se que ambasas traduções sejam de autoria de Castro Alves, não há porque rejeitaruma delas.

Toda a argumentação seguinte tem como intuito demonstrar que

Castro Alves é, de fato, autor das duas versões. Com efeito, a presença de

uma série de escolhas tradutórias coincidentes faz com que Veiga (idem,

p.179), no que concerne a autoria de Castro Alves, conclua que 4)# (-)#

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certam%7.% 0 #905L !%"&) $%+'/)A %+ #%&-"(), que Eugênio Gomes,

responsável pela edição da Aguilar, desconsidera a tradução assinada,

publicando apenas a anônima.

O mais intrigante é que a escolha de Gomes se deve a uma

interpretação equivocada de carta a Castro Alves, enviada por Augusto

Q-"+)/9%#A %+ ,-% #% $c8 4LLL M DC"F0 WN F0+3/0- )#Lamartineanas onde li

.-) ./)(-1905L >%&-7(0 Q0+%# em78 6V!n>A GHHjA 3LhK|fA 4n#.) @ ) B%/#90

,-% (%B% 3/%B)$%F%/5L M/)A #)'%-se que as duas versões foram

estranhamente publicadas no mesmo livro, não se podendo afirmar com

certeza a qual das duas Guimarães se referia, ainda que o mais provável seja

que a versão assinada tenha chegado às mãos do amigo.

Também dão preferência para a versão anônima as edições de Afrânio

Peixoto e Silva Ramos, mas assinalando a segunda em nota de rodapé. É de

Afrânio Peixoto (In: ALVES, 2004, p.867) o não menos curioso comentário;

4J)+'@+ 790 #%" ,-)$ ) ./)(-190 )-.c7."F) (% D)#./0 6$B%#L :/0B)B%$+%7.%

)# (-)#A -+) F0//"&"7(0 ) 0-./)5L :%$0 (%#.),ue dado por Peixoto à versão

anônima, pode-#% #-30/ ,-% %#.) #%/")A 3)/) 0 F/E."F0A 4) B%/#90 F0//"&"()5L

Uma observação de ambas as versões não pode, contudo, confirmar a

preferência de Peixoto, pois a versão assinada corresponde muito mais ao

texto lamartineano (ver anexos no final deste artigo os textos na íntegra).

A versão anônima é, como já foi dito, escrita em decassílabos brancos,

enquanto a versão assinada é composta em alexandrinos, e com esquema

rímico semelhante aos de Lamartine. O poema em alexandrinos, por ser

composto num metro mais extenso, acaba sendo aquele que também

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semanticamente se aproxima mais do texto francês, como se pode observar,

por exemplo, na comparação das diferentes versões da estrofe que segue:

Aimons-nous, ô ma bien-aimée !Et rions des soucis qui bercent les mortels ;

Q2,% 5/ .%)025/ #$$#' *",-/ 0#)-/ .,(6/>

La moitié de leurs jours, hélas ! est consumée

I#-' 5"#;#-*2- */' ;)/-' %6/5'8

Amemos, dôce amada!

Zombemos da ambição que tormenta os mortaes;

Da fumaça sutil pela espiral doirada,

Metade dos seus dias lá foi arrebatada

Longe dos bens reaes.

(versão assinada)

Amemos, vida minha!

E riamos do afã que os homens levam

Atrás de um fumo vão que lhes consome

Metade da existência, esperdiçada

Em sonhos e quimeras.

(versão anônima)

Uma rápida comparação revela, imediatamente, pelo final dos versos,

a distância entre os dois projetos tradutórios. Dessa maneira, a sequência

rímica bien-aimée / mortels / fumée / consumée / réels é traduzida, na versão

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em que, além da maior proximidade formal, o conteúdo semântico fosse mais

./)7#30#.0A #%7(0 )##"+ #-30#.)+%7.% +)"# 4O"%$5 ) V)+)/."7%L

Parece contar a favor desse argumento o fato de a versão com maiscorrespondências semânticas e formais ser, justamente, a versão assinada,

pois é pouco provável que uma versão anônima seja apresentada como

4F0//%1905 ) -+) 0-./) F-W) )-.0/") @ F07C%F"()L U%##% #%7."(0A ) B%/#90 %+

alexandrinos também recuperaria a lição de Castilho, para quem seria uma

B)7.)&%+ 30(%/ F0+30/ %+ -+ +%./0A 0 (% (0=% #E$)')#A 4+)"# %#3)10#05A

4+)"# F)3)= (% 3%7#)+%7.05 % 4F0+ -+) 3)/."190 #"+@./"F)5L n#.) @ .)+'@+

) 03"7"90 (% !%"&) e_IhKA 3L_K_f 3)/) ,-%+A 4F-/"0#)+%7.%A ) ./ adução que

deveria ser preferida é posta em segundo plano pelos editores, ou, o que é

+)"# F0+-+A @ #"+3$%#+%7.% 0+"."()5L

Caso a hipótese aqui levantada esteja correta, a versão assinada,

escrita em alexandrinos seria a retradução da versão anônima, em

decassílabos. A natureza dessa correção representaria, assim, mais um

indício da transição na história da tradução do alexandrino para o português,

pois seria, provavelmente, o primeiro registro de uma retradução em que um

padrão métrico de tradução vigente ; do alexandrino francês para o

decassílabo heroico ; O0##% 4F0//"&"(05 3%$0 3)(/90 ,-% 3)##) ) B"&0/)/ ).@

os nossos dias ; do alexandrino francês para o alexandrino em português.

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Aimons-nous, ô ma bien-aimée !

Et rions des soucis qui bercent les mortels ;

Q2,% 5/ .%)025/ #$$#' *",-/ 0#ine fumée,

La moitié de leurs jours, hélas ! est consumée

I#-' 5"#;#-*2- */' ;)/-' %6/5'8

À leur stérile orgueil ne portons point envie ;

Laissons le long espoir aux maîtres des humains !

Pour nous, de notre heure incertains,

Hâtons- -2,' *"6$,)'/% 5# :2,$/ */ 5# 0)/>

Q/-*#-1 7,"/55/ /'1 /-1%/ -2' (#)-'8

Soit que le laurier nous couronne,

@1 7,"#,P .#'1/' '#-45#-1' */ 5"#51)&%/ ^/552-/

L,% 5/ (#%;%/ 2, 5"#)%#)- 2- )-':%)0/ -2' -2(' ;

Soit que des simples fleurs que la beauté moissonne

!"#(2,% $#%/ -2' =,(;5/' .%2-1' ;

Nous allons échouer, tous, au même rivage :

Y,")($2%1/> #, (2(/-1 *, -#,.%#4/>

L,% ,- 0#)''/#, .#(/,P *"#02)% ./-*, 5/' #)%'>

Ou sur une barque légère

I"#02)%> $#''#4/% '25)1#)%/>

Rasé timidement le rivage des mers ?

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Elegia (versão anônima)

Colham-se as rosas na manhã da vida;

Ao menos no fugir da primavera,

Das flores os perfumes se respirem.

O peito se franqueie aos castos gozos;

Amemos sem medida, ó cara amante!

Quando o nauta, no meio da tormenta,

Vê o frágil baixel quase afundir-se,

Às praias que deixou dirige as vistas,

E tarde chora a paz que ali gozava.

Ah! quanto dera por volver o triste

Aos amigos da aldeia, ao lar paterno,

E de novo passar junto à que adora

Dias talvez sem glória, mas tranquilos!

Assim um velho, curvo ao pêso d'anos,

Da mocidade, em vão, os tempos chora;

Diz: "Volvei-me essas horas profanadas

De que eu, ó céus, não soube aproveitar-me".

Só lhe responde a morte; os céus são surdos

E inflexíveis o arrojam ao sepulcro,

Não consentindo que se abaixe ao menos,

A apanhar essas flores desprezadas.

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Amemos, vida minha!

E riamos do afã que os homens levam

Atrás de um fumo vão que lhes consome

Metade da existência, esperdiçada

Em sonhos e quimeras.

Não invejemos seu orgulho estéril;

Deixemos à ambição os seus castelos;

Mas nós, da hora incertos,

Tratemos de esgotar da vida a taça,

Enquanto as mãos a empunham.

Quer os louros nos cinjam,

E, nos fastos sangrentos de Belona,

Nosso nome se inscreva em bronze e mármore;

Quer da singela flor que as belas colhem

Se entrance a humilde c'roa,

Vamos todos saltar na mesma praia.

De que val, no momento do naufrágio,

Em pomposo galeão ir navegando,

Ou num batel ligeiro,

Solitário viajante,

Ter só junto da margem bordejando?

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Elegia (versão assinada)

Vamos colhêr a rosa ao despontar do dia

Da primavera em flôr bebamos o perfume.

Casta volupia inteira a vida em si resume;

Amemos sem medida, amemos ó querida!

Quando ao rugir do mar o nauta desvairado

Vê seu bater que vai a sossobrar na vaga

Volta o olhar em pranto ao lar abandonado

Tarde lamenta a paz que além ficou na plaga.

Ai! Como elle quizera então no lar dos seus,

Junto a tudo quanto ocupa-lhe a memória,

n#,-%F"(0 B"B%/ #%+ 3S/"&0 % WNsem glória,

Sem nunca ter deixado a casa, os pátrios céus!

Assim curvado o homem ao peso dos estios

Lembra o tempo feliz que não póde voltar.

Ai! Dai-me, o triste diz, meus dias fugidios;

Quando era tempo, ó Deus! perdi-os sem gozar.

Diz! a morte respondep % 0# &%7"0# ,-S%$$% "+3$0/)

O impellem para o chão, que é tempo de morrer!

Nem lhe permitem mais que abaixe-se nessa hora

Para apanhar a flôr que não soube côlher.

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Amemos, dôce amada!

Zombemos da ambição que atormenta os mortaes;

Da fumaça sutil pela espiral doirada,

Metade dos seus dias lá foi arrebatada

Longe dos bens reaes.

Desse esteril orgulho inveja não tenhamos,

Aos filhos da vaidade deixemos a ambição!

Quanto a nós, sempre incertos na hora da partida,

Tratemos de esgotar as amphoras da vida

Em quanto as temos na mão.

Quer nos corôe o loiro,

Quer nos fastos crueis da impavida Bellona

Bronze ou marmore guarde o nome nelle inscripto,

Quer da flôr que a belleza apanhe na campina

O amor nos enlace a corôa divina,

!)+0# 70# /0$)/ (S%7F07./0 70# / ochedos:

w-S"+30/.) ,-)7(0 0 7)-O/)&0 %+').% -se aos penedos,

Ter no barco veloz fendido altivo os ares,

Ou no batel ligeiro

Mesquinho passageiro,

Ter apenas costeado o litoral dos mares?

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É neste contexto que se apresenta o trabalho de Pignatari, na chave

da ruptura e da surpresa. Suas escolhas são explicitadas. Antes do poema,

encontra-se uma longa introdução em que apresenta seu projeto que ele

próprio FC)+) (% 43/"+%"/0 %7#)"0 (%tridução 5g 0 ,-% 0 #".-) imediatamente

no campo da experiência. Declara Pignatari:

Pelo truque, fujo ou disperso as rimas; antes busco rimashologrâmicas, grandes assonâncias e ressonâncias, harmonia vária ealeatória de amostragem; também, ora, exulta um alexandrino bemfeito: aqui e ali capenga, que o prosaico ainda faz parte. É umatradução poética literal: não há álibis para não ter tentado tudo,tridução não econômica, a três por um [...]. Permutações, à discrição,embora, para a continuidade, leiam-se os versos de três em três: asinalização do verso cabeça é para facilitar; mas nenhum verso doterceto é comandante: literalidade num, subleitura noutro, etc.

Pignatari prossegue com uma consideração sobre a pontuação,

propondo que esta deve ou ser mantida, ou aumentada ou eliminada,

jogando, uma vez mais, com a indeterminação.

Ao negar um modelo de pontuação, Pignatari não fixa seu projeto em

parâmetros sintáticos. Ao afirmar que os impecáveis versos alexandrinos do

30%.) O/)7Fc#A ,-% 0 3/^3/"0 ?)$$)/+@ e_IjPA 3L_jjIf ,-%/ 4très beaux et trèsneufs 5A #90 ./)7#30#.0# %+A 30/ B%=%# 4F)3%7&)#5 % 43/0#)"F0#5 +%./0#

irregulares, Pignatari desconstrói o alicerce acentual do poema. Ao traduzir

as rimas paralelas de Mallarmé, tão caras ao teatro clássico francês, com o

qual Mallarmé %]3$"F".)+%7.% (")$0&)A 30/ 4/"+)# C0$0&/X+"F)#5 0- %7.90 30/

4&/)7(%# )##07X7F")# % /%##07X7F")#5 ,-% 3/0(-="/")+A )##"+A 4-+)

C)/+07") BN/") % ) )$%).^/") (% )+0#./)&%+5A 0 $-#^O070 ./"(-.0/ (%#+07.) 0

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162

último parâmetro formal do poema; o que, em si, é uma proposta bastante

ousada e interessante no contexto brasileiro pautado normalmente por

aspectos formais.

Pignatari tem também o cuidado de justificar seu projeto tradutório. A

razão para esta escolha baseia-se no processo de decomposição que

denomina antiestocástica . O método de Pignatari (In: MALLARMÉ: 1991,

p.107) inspira-#% 70 ,-% FC)+) (% 3/0F%##0 %#.0FN#."F0A % ,-% 430(% #%/

definido como uma aproximação gradativa a uma mensagem desconhecida,

) 3)/."/ (0# ()(0# (% -+ F^("&0 F07C%F"(05L M [email protected](0 (0tridutor é, pois, um

processo de indeterminação, como se pode observar nestes versos iniciais

(ver reprodução de toda a página no final deste artigo):

Ces nymphes, je les veux perpétuer.

Si Clair

V%-/ "7F)/7)7. $@&%/A ,-S"$ B0$."&% ()7# $S)"/L

Quero perpetuar essas ninfas.

Tão claro.

Essas ninfas eu quero eternizar.

Tão leve

Vou perpetrar essas ninfas.

É tão claro

É o rodopio de carnes, que ele gira no ar

É a sua carnação, que ela gira no ar

Seu ligeiro encarnado a voltear no ar

[tipografia do autor]

Assim, para cada verso de Mallarmé são apresentados, na sequência,

três versos em português, produzindo, por vezes, apenas pequenas

diferenças semânticas que soam mais como um esforço de multiplicação do

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163

que um real desdobramento. Tal procedimento, conforme Jorge Wanderley

(1983, p.143fA 3/0(-= 4-+) $%".-/) .-+-$.-)()A #% 790 "+30##EB%$5L k ("OEF"$

3)/) 0 $%".0/ /%#"#."/ )0 "+3-$#0 (% F0.%W)/ )# B%/#2%#A 0 ,-% .0/7) 4"+30##EB%$

0 O$-]0 (% ,-)$,-%/ -+) (%$)# (0 F0+%10 )0 O"+5L nA F)#0 0 $%".0/ 03.)/ 3%$)

quase inevitável leitura cursiva, o que lerá, continua Wanderley (idem, p.144),

@ 4-+ ?)$$)/+@ /%3%."."B0 aLLLb 3)/%F"(0 F0+ DC)/$%# :@&-„5L 6##"+A 4)0

prolongar o TO [Texto de Origem], a tradução distancia-#% (%$%5 e"(%+A

p.145).

Em parte parece ser este o objetivo de Pignatari, pois justifica sua

escolha pelo fato de o próprio Mallarmé ter, em seu Après- ()*) *",- .#,-/ ,

caminhado, ao longo de dez esforçados anos, da determinação rumo à

indeterminação.

Mallarmé, de fato, escreveu, em 1865, uma primeira versão do poema,

intitulada Mono 524,/ *",- .#,-/ , na qual indica uma série de marcações

teatrais. Depois de frustrada sua tentativa de ver o monólogo em cena,

Mallarmé decidiu transformá-lo em poema, dando-lhe, em 1875, o título de

O($%20)'#1)2- *",- .#,-/ . Essa segunda versão, já bastante modificada, torna

o texto mais obscuro; processo que se acentua na versão finalmente

publicada em 1876.

Após retomar essa trajetória, Pignatari faz umas últimas considerações

especificamente sobre a tradução, em que retoma os argumentos já

enumerados no início, acrescentando, a partir do histórico antiestocástico do

poema mallarmaico que:

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164

A tradução pretende ser um prolongamento do próprio objeto, melhor

dizendo, uma projeção deformada naquela sutil abertura entre o

preciso e o impreciso ; um momento de uma série estocástica de

uma tradução de !"#$%&'-midi d ",n faune .

O argumento engenhoso de Pignatari leva a uma possível

interpretação de sua tridução que, contudo, não parece convencer Jorge

Wanderley (1983, p.130). Segundo este último, a proposta de Pignatari seria

um excesso, pois,

o princípio que rege tal programa pretende evitar o fechamento da03190 [7"F)A )'/"7(0A 7-+) 0O%/.) 430/.%+)7.%)-5A 0 B%/#0 ./)(-="(0LNão me parece que o pluriverso fosse o contrário da apresentação doverso-um. Na realidade, é exatamente na decisão que está aatividade de traduzir, quando vista em sua intimidade. Há umaoposição entre decidir e não decidir (tri-dução), enquanto que entre overso único e o pluriverso não há nenhuma. Muito ao contrário, a

proposta tripla reduz tudo ao caos opcional do estado de quasedicionário numa atividade (a tradução) que, bem ou mal, deverá porforça decidir . E não é preciso lembrar que a decisão e a poéticamesmo.

m7.%/3/%.)/ ) 03190 (% :"&7).)/" F0+0 -+) 4790 (%F"#905 3%$0 O).0 (%

opta/ 3%$) 4"7(%F"#905 @ 3)/."/ (0 3/%##-30#.0 (% ,-% CN -+) O0/+)correta

de se traduzir. No caso, Pignatari procura explicitar seus critérios, ainda que

manipule os argumentos de modo contestável. Se Mallarmé produziu três

versões de seu poema, não as fez circular da mesma maneira. A primeira foi

entregue a Constant Coquelin, para que fosse interpretada pelo Théâtre

Français. A segunda foi enviada para publicação no Troisième Parnasse

Contemporain , o que também não ocorreu, levando o poeta francês a

publicar por contra própria a terceira versão. A progressiva indeterminação

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ocorrida no texto só foi conhecida muito posteriormente, com a publicação

dos manuscritos e das obras recolhidas de Mallarmé.

Quanto à tridução, sua indeterminação reside na multiplicação de ummesmo texto de partida. Pignatari usa apenas uma das versões de Mallarmé,

a última, a única que de fato publicou, abandonando tanto o Monologue

quanto a Improvisation . É a partir desta última que o tradutor multiplica as

suas versões, que apresenta cursivamente, desmontando o poema

mallarmaico. Onde começam as estrofes? Onde terminam? São elas

marcadas tipograficamente? Como? Só consultando outra edição para

recompor o poema e responder a tais perguntas, tal o grau de decomposição

e baralhamento que implica a tridução.

Vale ainda notar que, por mais que Pignatari afirme e insista no fato de

que não há hierarquia entre as versões, o fato de uma delas estar marcada

em itálico, faz com que inevitavelmente sirva de apoio. A tentativa de leitura

do poema de forma não cursiva, a menos que o leitor copie separadamente

as versões, faz com que o verso em itálico, para ser lido ou pulado, seja a

/%O%/c7F") B"#-)$ 3)/) 0 $%".0/L m#.0 O)= (%$) 4) ./)(-1905A #%7(0 )# (-)#

seguintes variações da primeira, ou seja, potenciais retraduções.

Por exemplo, o primeiro verso, 4Ces nymphes, je les veux perpétuer.//

Si Clair 5A é traduzido p/"+%"/)+%7.% 30/ 4w-%/0 3%/3%.-)/ %##)# 7"7O)#L{{ J90

F$)/05. Diante dessa primeira escolha, as versões 4n##)# 7"7O)# %- ,-%/0

eternizar.{{ J90 $%B%5 % 4!0- 3%/3%./)/ %##)# 7"7O)#L{{ k .90 F$)/05 #-/&%+

F0+0 +0(-$)12%#L :0-F0 3/0BNB%$ ,-% ) B)/")190 4.90 $%B%5 790 #% $%") d $-=

(0 4.90 F$)/05 %A +ais, difícil não interpretar a segunda opção como um

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esforço de variação do tridutor, tanto é que volta, na terceira versão, à

primeira escolha. O resultado é um verso menos 4leve5A )3%#)/ (0# 4F$)/0#5

que o cercam.

O que torna enfadonha a leitura e precário o projeto de Pignatari é que

as retraduções são pautadas pelo mesmo projeto tradutório da primeira. Nem

transcriação domesticadora, nem correspondência formal, não há nada que

as distinga, formando um amálgama, sem foco é certo, mas também

monocórdico. Assim, seja como ampliação, seja como retradução, a tridução

de Pignatari esbarra na con fusão .

Enfim, a partir das discussões acima, pode-se propor um projeto de

retridução . Existem três versões do texto mallarmaico, cada uma traz consigo

um grau distinto de indeterminação. Traduzi-las complementarmente, com

diferentes projetos tradutórios, indo da literalidade para a paráfrase, por

exemplo, poderia sugerir um movimento no texto e provocar uma

desconfiança no leitor, que se veria diante de uma múltipla reescritura,

duplicação da indeterminação pela variação de aderência entre original e

original, entre original e tradução, entre tradução e retradução.

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Anexo

Primeira página da triduçãode Décio Pignatari

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168

12.

Traduções e retraduções

de "L'invitation au voyage " de Baudelaire

G/ '#)' 5"#%1 *"6027,/% 5/' ()-,1/' =/,%/,'/'\

Charles Baudelaire

Sobre uma não- 1(,-.34) -' ! 1.2$32+4+2'$ 4( 3'54%* *

!%/) (% 6=)+'-W) Z)/B%„A 70 )/."&0 4J/)(-190 % ./)7#F/")190 %+Os

gansos selvagens de Bassan 5A /0+)7F% () %#F/".0/) % 30%.) ,-%'%,-%7#% Anne Hébert, comenta que, dentre os problemas de tradução com que

depar 0-A -+ (0# +)"# 4"7.%/%##)7.%#5 O0" ) "7.%/.%].-)$"()(%; e o problema de

intertextualidade mais complexo foi a tradução do seguinte fragmento do

poema "L'invitation au voyage" de Baudelaire:

Tout y parlerait ` 5"H(/ /- '/:%/1

Sa douce langue natale.

Vera Z)/B%„ e_IhhA 3L__|f F0+%7.) ,-%A 70 /0+)7F% (% Z@'%/.A 4)

forma em verso não foi preservada e foi necessária uma leitura atenta para

(%.%F.)/ %##% /%F-/#05 7) 0'/) () )-.0/) ,-%'%,-%7#%L 6 ./)(-.0/)A %+

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seguida, assinala que fazia parte de seu horizonte (% %]3%F.)."B)#A 4.)+'@+

.%/ $%".0/%# ).%7.0#5 e"'"(%+fg +0."B0 3%$0 ,-)$ 3/0F-/0- 4B%/#0# (% -+ 30%.)

'/)#"$%"/0 ,-% #% )(%,-)##% )0 .%].05 e"'"(%+fL 6 #0$-190 %7F07./)() O0" 0

#%&-"7.% ./%FC0 () 4D)7190 (0 %]E$"05 (% D)#"+"/0 (% 6'/%-8

Quero morrer cercado de perfumes

Dum clima tropical

E sentir expirando as harmonias

Do meu berço natal!

U) B%/()(%A ) )##0F")190 O%".) O0" %7./% 4!"H(/ /- '/:%/1 / sa douce

langue natale 5 % 4)# C)/0+"7)# / (0 +%- '%/10 7).)$5L 6 O0/+) O"7)$ ,-% !%/)

Harvey adotou na sua ./)(-190 (0 /0+)7F% @8 4?"7C) +9% aLLLb O)$)-me em

segredo das harmonias do meu berço natal 5L \%30"# (% )3/%#%7.)/ ) #-)

solução, em seu artigo, Vera Harvey não dá seguimento à discussão;

satisfeita com o comentário aqui resumido.

Diante de tão inusitada escolha, justificada de forma tão ligeira,

pareceu-me pertinente colocar a seguinte pergunta, formulada a partir de

Jauss (apud Vieira, p.115) para pensar a relação entre o leitor e o texto:

4\)() ) 3/%+"##) () +%(")190A ,-)$ @ 0 C0/"=07.% (% %]3%/"c7F") C"stórica

que o tradutor [ou retradutor] enquanto leitor traz para sua interpretação do

0/"&"7)$l5

Com efeito, como Vera Harvey assinala, no título de seu artigo, ela

parte de um princípio legítimo, bastante valorizado no Brasil, que é o princípio

da transcriação. Como os irmãos Campos fizeram algumas vezes, ela

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desdobra as possibilidades intertextuais, deslocando as referências

especificamente para dentro do sistema literário brasileiro. Assim, sua

./)7#O"&-/)190 (% 4!")-0)1#1)2- #, 023#4/5 $%B) ) -+) .0.)$ devoração de

Baudelaire, seguindo a melhor (ou pior) tradição antropofágica.

A primeira questão que se coloca, dentro da lógica antropofágica ela

mesma, é: por que Casimiro de Abreu? O argumento avançado pela

./)(-.0/) @ (% ,-% %$) 4,-%/") )$&0 ,-% O0##% '%+ F07C%F"(05g 30/ "##0 03.0-

por Casimiro. Entretanto, vale lembrar, este é o poeta que Antônio Cândido

e_II`A 3L_|`f FC)+) (% 4'%$0 % (0F%5L DX7("(0 .)+'@+ (%#.)F) ,-%A %+

D)#"+"/08 4>)-()(%A .%/7-/)A 7).-/%=) % (%#%W0 #90 +0(-$)(0# 7-+) O/)-.)

singela, sem a envergadura que assumem em Junqueira Freire, Álvares de

6=%B%(0A +%#+0 Y%/7)/(0 Q-"+)/9%#5 e"'"(%+fL

A escolha de Vera Harvey é, pois, baseada exclusivamente num

suposto grau de penetração e de importância da obra de Casimiro no sistema

literário brasileiro. Suposição que, acredito, não se justifica, uma vez que

Casimiro não tem nem a envergadura nem as marcas estéticas de

Y)-(%$)"/%L D-/"0#)+%7.%A DX7("(0 .)+'@+ 70# "7O0/+) ,-% D)#"+"/0 O0" 40

predileto dos cestos de costura, levando a um fervoroso público feminino toda

) &)+) 3%/+"."() (% B)/")12%# %+ .0/70 (0 %7$%"0 )+0/0#05 e"'"(%+fL

Se quiséssemos tentar uma aproximação de natureza temática, dentro

da lógica da deglutição antropofágica, um caminho possível seria seguir as

indicações de Jamir Almansur Haddad (In: BAUDELAIRE, p.177) que, ao

F0+%7.)/ 4!")-0)1#1)2- #, 023#4/5A )##"7)$)8

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O tema deste poema, aliás, é extenso na poesia universal. No casodo Brasil pode reclamar aí sua filiação a Passárgada do poeta ManuelBandeira. Péricles Eugênio da Silva Ramos chama um de seuspoemas Invitation au voyage . Conferir também A ilha de Cipango de Augusto dos Anjos, não obstante o fim pessimista do poema.

Não faltariam, assim, poemas e poetas em que a temática fosse

tratada de forma mais análoga do que em Casimiro de Abreu. De todo modo,

caso se adotasse um desses outros intertextos propostos por Haddad, as

soluções continuariam dentro de um princípio demasiadamente funcional:aquele que considera, em primeira instância, o efeito que um texto

supostamente produz sobre o leitor. Como assinala Else Vieira (1996), ao

F0+%7.)/ 4) 30.%7F")$"()(% () %#.@."F) () /%F%3190 3)/) ) F07.%].-)$"=)190

() ./)(-1905A 0 3/0'$%+) @ ,-% F07F%".0# F%7./)"#A F0+0 0 (% 4C0/"=07.% (%

%]3%F.)."B)5A #90 F0$0F)(0# %+ .%/+0# 7%'-$0sos por autores como Jauss; e

a ele se vincula outro grande problema desse tipo de abordagem, a saber, a

dificuldade de se delinear os contornos de um leitor real. Retomando o

princípio anunciado por Vera Harvey, ela arrisca trabalhar com um leitor

modelo que remeteria preferencialmente a Casimiro de Abreu e não, por

exemplo, a Augusto dos Anjos ou ao próprio Baudelaire. Assim, ao utilizar

F0+0 F/".@/"0 ) %#F0$C) (% 4)$&0 ,-% O0##% '%+ F07C%F"(05 3)/) %$)A !%/)

Z)/B%„ $%B0- d "7./0(-190 (% 4(0F%# % +%"&)#5pétalas onde havia flores do

mal.

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Da recepção ao poli-sistema literário

Ao apontar os limites da estética da recepção para se pensar a

tradução e o literário, Else Vieira (1996, p.107) destaca a contribuição dosautores da escola de Tel-aviv, sobretudo de Even-Zohar, que, ao invés de

considerar o possível efeito do texto sobre o leitor, interessa-se pelo efeito da

tradução sobre a dinâmica do sistema literário da língua-cultura de chegada.

Else Vieira (idem, p.125) informa que, para Even-Zohar, a literatura traduzida

deve ser considerada na sua conexão com a literatura original. Even-Zohar

enfatiza o caráter dinâmico e heterogêneo dos sistemas, por isso chamados

de poli-sistemas, nos quais estão imbricadas traduções, obras originais,

outras formas de comentários, outras instâncias de controle e de legitimação.

O caráter complexo dos sistemas também se dá pela existência de

hierarquias culturais, ou seja, pelas relações dialéticas entre centro e

periferia.

A existência dessa rede múltipla evidencia que, no momento de se

fazer uma escolha tradutória, sobretudo quando se trata de um autor tão

traduzido e retraduzido, é importante perguntar-se sobre o papel e o lugar de

um determinado autor estrangeiro no sistema literário de chegada. No Brasil,

como se sabe, os efeitos das traduções e retraduções e, para retomar Glória

Carneiro do Amaral (1996), também os efeitos das 4aclimatações5 de

Baudelaire, são altamente produtivos na configuração do sistema literário

brasileiro.

Desde o artigo de Machado de Assis, de 1879, multiplicaram-se as

reflexões e os mapeamentos da influência literária de Baudelaire no Brasil.

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Como assinala Antônio Cândido (1989, p.24), nos anos de 1870 e começo

(0# (% _hhHA 4) 3/%#%71) (% Y)-(%$)"/% O0" (%F"#"B) 3)/) (%O"7"/ 0# /-+0# ()

produção 30@."F)5 '/)#"$%"/)L n O0/)+ 30-F0# 0# )-.0/%# %#./)7&%"/0# ,-%

alcançaram esse grau de influência na formação da literatura brasileira.

Haddad (In: BAUDELAIRE, 1981, p.07), por sua vez, destaca a

43/%#%71) OE#"F)5 (0 30%.) O/)7Fc#A ,-% /%B%/'%/) %+ /%3%.idas homenagens,

que vão desde os pré-parnasianos Carvalho Júnior, Teófilo Dias e Fontoura

Xavier, comentados por Antônio Cândido, até o mais recente Vinícius de

Morais, passando pela geração parnasiano-simbolista, da qual fez parte,

como assinala Haddad, o poeta Pereira da Silva.

Um terceiro aspecto relevante para se dimensionar o papel de

Baudelaire no sistema literário brasileiro é o número considerável de

traduções e retraduções de sua obra em português. Talvez nenhum outro

poeta tenha sido tão retraduzido, a ponto de, hoje, dispormos, inclusive, de

uma edição de suas obras completas em português, além de várias edições

de poemas de As flores do mal,algumas integrais.

Assim, Baudelaire, por meio das inúmeras traduções, adaptações,

aclimatações, paráfrases e homenagens que recebeu, faz parte do poli-sistema literário brasileiro; e escolher uma das inúmeras versões da tradução

(0 30%+) 4!")-0)1#1)2- #, 023#4/5A F0+0 )# (% Q-"$C%/+% (% 6$+%"()A (%

Ivan Junqueira ou do próprio Haddad, seria um outro modo de se transpor o

poeta francês.

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Ainda dentro da perspectiva dos poli-sistemas, há outro aspecto a ser

considerado: o fato de Les fous de bassans de Anne Hébert ser um romance

escrito por uma autora quebequense. Ao identificar a presença de um poeta

como Baudelaire no meio de um romance que se passa às margens do Rio

São Lourenço, rio que atravessa o Québec, Vera Harvey não se pergunta

sobre a hierarquia cultural existente entre o poli-sistema central francês e o

poli-sistema periférico quebequense. A citação de um poeta que ocupa um

lugar de relevo na formação da cultura não só francesa, mas europeia, como

Baudelaire, não tem o mesmo efeito do que a citação de um poeta local,

como seria, por exemplo, o caso do poeta Émile Nelligan. Isto é, apesar do

Québec ter sido colonizado pelos franceses e ser uma região

predominantemente francófona, o valor simbólico de um poeta europeu não é

o mesmo de um poeta local.

Partindo-se dessa constatação, a substituição do texto de um poeta

vindo de um poli-sistema central pelo texto de um poeta de uma cultura

periférica é ideologicamente significante, mas, no caso aqui em questão,

desconsidera uma variável importante e constitutiva de nosso sistema

literário; o lugar que Baudelaire nele ocupa. Nesse sentido, a opção por uma

das importantes traduções de Baudelaire feitas no Brasil talvez fossesimbolicamente mais relevante, pois a cultura francesa ; e especificamente

Baudelaire ; ocupa um papel de destaque na formação das literaturas tanto

quebequense quanto brasileira.

Enfim, voltando à nossa pergunta ; qual é o horizonte de experiência

histórica que o tradutor, no caso um retradutor, enquanto leitor traz para sua

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interpretação do original? ; ; no caso de Vera Harvey, parece ter sido

essencialmente sua experiência como leitora que serviu de mediação, pois

ela se satisfez com o critério de encontrar algo que lhe fosse familiar; uma

vez que, como se procurou demonstrar, a escolha de Casimiro de Abreu não

se sustenta, nem por uma aproximação estética entre os autores, nem por

uma inexistência no sistema literário brasileiro de referências a Baudelaire.

Saliento, contudo, que, apesar do apagamento aparentemente equivocado do

texto baudelairiano no romance, Vera Harvey teve o cuidado de expor essa

sua escolha em um texto crítico, no qual comenta seu projeto de tradução.

Como assinala André Lefevere (apud VIEIRA, p.140), as formas que

pode assumir a metaliteratura, como espaço de refração e de canonização de

uma obra, incluem não só a tradução, mas os comentários da obras e de

suas traduções. Desse modo, ao tornar pública a identificação que fez dos

versos de Baudelaire no meio de um romance quebequense, assim como

argumentar sobre as motivações que a levaram a devorar Baudelaire

transfigurando-o em Casimiro de Abreu, Vera Harvey também cumpre um

3)3%$A F0+0 ("/") V%O%B%/%A (% 4)&%7.% (% F07."7-"()(% F-$.-/)$5 30/ F07./"'-"/

com a discussão sobre os modos de se traduzir ou não, hoje, o poeta francês

no Brasil.

$)9(' ,8B.0,5 1(,-.3:'5 ' ('1(,-.3:'5 -' ! 1.2$32+4+2'$ 4( 3'54%* *

Outros importantes agentes de continuidade cultural, no que concerne

Baudelaire, são os tradutores, pois, como foi assinalado, há, no Brasil, um

conjunto considerável de traduções de suas obras. Em relação à tradução de

As flores do mal , os mais citados costumam ser Guilherme de Almeida, Jamil

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Almansour Haddad e Ivan Junqueira. O primeiro é responsável uma seleção

pessoal de poemas, publicada originalmente em 1943; o segundo fez a

primeira tradução integral das Flores do mal , em 1957; e o terceiro concluiu a

segunda versão completa do livro de Baudelaire, em 1985. Mais

recentemente, em 2003, Juremir Machado da Silva publicou uma curiosa

seleção de poemas de Baudelaire, intitulada Flores do mal: o amor segundo

Charles Baudelaire , em que retraduz poemas de Baudelaire. Nas quatro

publicações, encontra-#% 30%+) 4!")-0)1#1)2- #, 023#4/5L

" 6)'0, ! 1.2$32+4+2'$ 4( 3'54%* *

M 30%+) 4!")-0)1#1)2- #, 023#4/5 %7F07./)-se na primeira seção do

$"B/0A "7.".-$)() 4Spleen e Ideal 5A % @ F$)/)+%7.% -+ (0# ,-% #% #".-) 7)

perspectiva da idealidade baudelairiana. Trata-se de um poema sobre a

evasão rumo a um mundo mágico, nesse caso exótico e sensual. Essa

temática, cara aos românticos, aparece com frequência em Baudelaire, a

307.0 (% %$% .%/ #"(0 FC)+)(0 (% 4a-/ ^);5/ */ 5"60#')2- 5 e>nVVmnR, 1971) .

Como assinala Marcel Raymond (1997, p.14), o essencial do modo de

expressão romântico é ter

a vantagem de devolver à linguagem algumas de suas mais antigasprerrogativas ; as mesmas que um Baudelaire tentará utilizar paraO)=%/ () 30%#") -+) 4+)&") #-&%#."B)5L 4V"'%/.)/ ) )$+)5A %7F07./)/70B)+%7.% 0 4%#.)(0 7).-/)$5A ,-% %/)A %+ #-+), esta esperançasenão a consequência de um sonho ancestral semimergulhado noinconsciente, o sonho de um universo mágico ... [grifo do autor]

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177

No caso de Baudelaire % (0 30%+) 4!")-0)1#1)2- #, 023#4/5A F07.-(0A

$"'%/.)/ ) )$+) 790 $%B) d '-#F) (% -+ %#.)(0 7).-/)$A @ 0-./0 0 4/0+)7."#+05

de Baudelaire. D0+0 )O"/+) 70 #%- )/."&0 4Y,"/'1 -ce que le Romantisme 5A (0

Salon de 1846 8 4Qui dit romantisme dit art moderne, V :" est-à-dire intimité,

'$)%)1,#5)16> :2,5/,%> #'$)%#1)2- 0/%' 5")-.)-)> /P$%)(6/' $#% 12,' 5/' (23/-' 7,/

contiennent les arts 5 eY6T\nV6m<nA _IP_A 3LKHGfL

Hugo Friedrich (1978, p.40), ao comentar a estrutura do livro de

Baudelaire, assinala que, na primeira parte, trata-se do contraste entre

ascensão e queda ; 4>3$%%7 % m(%)$5L U)# (-)# 3)/.%# #%&-"7.%#A )7-7F")+-

se tentativas de evasão: no mundo externo da metrópole ; 4Tableaux

Parisiens 5 ; e no paraíso da arte ; 4Le Vin 5L n##)# '-#F)# $%B)+ d

fascinação do destrutivo ; 4Les Fleurs du Mal 5 ; e à revolta ; 4Révolte 5L n##%

processo culmina com uma aspiração rumo ao infinito, a Morte, que aparece

no final do poema que encerra As flores do mal A 4Voyage 58

0 Mort, vieux capitaine, il est temps! levons l'ancre!

Ce pays nous ennuie, ô Mort! Appareillons!

Si le ciel et la mer sont noirs comme de l'encre,

E2' :U,%' 7,/ 1, :2--#)' '2-1 %/($5)' */ %#32-'\

Verse-nous ton poison pour qu'il nous réconforte!

Nous voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau,

Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu'importe?

Au fond de l'Inconnu pour trouver du nouveau!

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178

6##"+A #%&-7(0 r/"%(/"FC e_I|hA 3LGjHfA 4F0+0 [$."+) .%7.)."B)A /%#.)

%7F07./)/ ) ./)7,-"$"()(% 7) +0/.%A 70 )'#0$-.)+%7.% (%#F07C%F"(05L M

30%+) 4!"O-0)1#1)2- #, R23#4/5 seria um prenúncio da última viagem, um

primeiro convite rumo à transcendência final, cuja imagem é de um universo

mágico artificial.

O poema se inicia, precisamente, com um convite a uma figura

O%+"7"7) 4(2- /-.#-1> (# 'U,% 5 e#%/") %$) ) 3/^3/") +0/.%lfpara que ela

B%7C) 4L2-4/% F 5# *2,:/,% N I"#55/% 5F-bas vivre ensemble 5 %A 7%##% $-&)/

misterioso, que se assemelha a ela e a seus chorosos e traidores olhos, ir

4)+)/ % +0//%/5L VNA $"B/% () (0/ .%//%7)A #%/") 30##EB%$ #-F-+'"/ ) .0() -+)

série de encantos.

Antes, contudo, de apresentar esses encantos, verifica-se, na segunda

+%.)(% () 3/"+%"/) %#./0O%A -+) F0+3)/)190 %7./% 4les soleils mouillés 5 % 0#

%7F)7.0# +"#.%/"0#0# (0# 4traîtres yeux / brillant à travers leurs larmes 5L M

mistério liga-se, assim, ao brilho ambíguo de um choro causado por uma

traição; uma queda desde os céus turvados até o nebuloso e fascinante

sofrimento terrestre, lugar possível de evocação de outro mundo, ideal,

sintetizado no dístico, que serve de estribilho, onde se lê:

Là, tou 1 -"/'1 7,"2%*%/ /1 ;/#,16>

Luxe, calme et volupté.

Note-se que, no primeiro verso do estribilho, inicia-#% F0+ ) 40/(%+5

#%&-"() 3%$) 4'%$%=)5A %#.) %+ 30#"190 (% (%#.),-% 7) /"+)L nA 0 #%&-7(0

verso, após caracterizar esse lugar misterioso como um lugar cheio de luxo e

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(% F)$+)A .%/+"7) F0+ ) 4B0$[3")5A 0- #%W)A )# "+)&%7# ,-% #% (%#.)F)+ 70

%#./"'"$C0A #90 )# (% 4'%$%=)5A % 4B0$[3")5A %7B0$B"()#A 30/@+A 7-+) ).+0#O%/)

F)$+) % 0/(%7)()L :%$0 +0(0 F0+ %#.90 ("#30#.0#A ) 40/(%+5 % ) 4'%$%=)5

funcionam como uma espécie de síntese dos elementos que compõem a

atmosfera desse universo encantatório; que ganha contornos mais definidos

no segundo dístico.

Nas duas estrofes seguintes, tem-se a descrição desse ambiente. Ali

desfilam móveis polidos que decoram o quarto, flores de mil odores, ricos

telhados decorados, espelhos; um todo que falaria em segredo de seu

4%#3$%7(0/ 0/"%7.)$5L M $-&)/ 3/"B"$%&")(0 @ 0 ,-)/.0A F%/F)(0 (% O/)&/X7F")#A

coberto de riquezas exóticas e pelo brilho dos espelhos. Como diz Baudelaire

(1951, p.277), %+ 4Chambre double 5A 4une chambre qui ressemble à une

rêverie 5L

Na última estrofe, são evocados quietos canais e barcos, que vem do

fim do mundo para, sobretudo, saciar todos os desejos daquela que foi

convidada a fazer essa voluptuosa viagem. E, enfim, o poente cobre todo

),-%$% -7"B%/#0A ,-% )(0/+%F% #0' 4une chaude lumière 5A #%+ 7%7C-+

retorno ao mundo real. Destaca-se, por fim, o estribilho que sintetiza o clima

voluptuoso e sensual que esse mundo mágico sugere e que se faz belo por

se encontrar em um ambiente calmo e ordenado.

A estrutura formal do poema, diferentemente dos alexandrinos que

dominam a maior parte dos poemas das Flores do Mal , assemelha-se ao de

uma chanson : são doze versos em que se intercalam dois pentassílabos, que

rimam entre si; e um heptassílabo, que rima com o heptassílabo seguinte,

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formando a estrutura estrófica AABCCBDDEFFE. Os versos curtos e

intercalados dão velocidade ; sensualidade ; ao texto. O tom prosaico que

domina o poema deve-se a uma escolha vocabular simples; e mesmo as

"+)&%7# +)"# &/)7("$0,-%7.%#A F0+0 4soleils mouillés 5A 4ciels brouillés 5A

4riches plafonds 5A #90 F07#./-E()# F0+ -+ $@]"F0 ')#.)7.% (%#30W)(0L M

convite parece, pois, uma confissão sussurrada na intimidade.

Essa brevíssima apresentação do texto tem como intuito apenas

relembrar ao leitor os elementos que estruturam o poema para que ele,

assim, disponha de mais instrumentos para compreender as considerações

sobre a tradução.

78B.0,5 D)&5%-'(,3:'5 5)9(' 1(,-.3:'5 -' ! 1.2$32+4+2'$ 4( 6'54%* *

Não se trata aqui de fazer uma análise detalhada de cada uma das

traduções, destaco apenas as traduções do estribilho, por ser ele, como

procurei demonstrar, uma espécie de síntese do poema. Além disso, creio

que as traduções do estribilho parecem ilustrar as abordagens adotadas

pelos tradutores acima mencionados: Guilherme de Almeida, Jamil Mansour

Haddad, Ivan Junqueira.

O primeiro dos tradutores em questão, Guilherme de Almeida, ao

comentar sua proposta de tradução (BAUDELAIRE, s.d., p.15 ), define seu

trabalho como uma recriação. E, por se tratar, segundo ele, do resultado de

um processo lento e contínuo de memorização dos textos, eles acabariam

ressurgindo em português:

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À força de dizê-los e redizê-los, citá-los e recitá-los, acabei por me

surpreender ouvindo-os de mim mesmo na minha língua mesma. E,

por isso, com seu ritmo nativo intacto, com seu espírito inato

incólume.

Ainda que soe hoje algo ingênuo o teor de suas últimas considerações

; 4/".+0 7)."B0 "7.)F.05g 4%#3E/".0 "7).0 "7F^$-+%5 ;, estas indicam seu

propósito de aproximar-se formalmente e retoricamente do texto

baudelairiano. Dessa sua relação orgânica com os textos surgiu, para o

referido estribilho, a seguinte tradução:

Lá, tudo é ordem e nitidez

Luxo, calma e languidez.

!F> 12,1 -"/'1 7,"2%*%/ /1 ;/#,16>

Luxe, calme et volupté

\%##) +)7%"/)A 0 4'%$05 .0/7)-#% 47E."(05 % ) 4B0$-3.-0#"()(%5 3%/(%

-+ 30-F0 (% E+3%.0 %+ #%- #"7o7"+0 4$)7&-"(%=5A )"7() ,-% ) "+)&%+

/%.0+% ) #%7#-)$"()(% #-&%/"()L n##% )3)&)+%7.0 () 4'%$%=)5A %]"&"(0 3%$)#

escolhas da rima, produz uma oposição entre o primeiro verso, em que se

destaca apenas a ideia de ordem, e o segundo, marcado pelo luxo e a

$)7&-"(%=L 6##"+A )0 #-'#.".-"/ 4'%$%=)5 30/ 47"."(%=5A Q-"$C%/+% (% 6$+%"()

produz um estribilho mais frio, mais dis.)7.% () 4chaude lumière 5 ,-% "7B)(%o final da última estrofe.

Haddad (BAUDELAIRE, 1981, p.14), por sua vez, revela sua postura

tradutória ao afirmar:

O vezo da tradução de Baudelaire pode ser entre nós levado à contado triunfo da estética parnasiana. Só mesmo uma escola poética

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desta ordem, levando longe o sonho de apuro da linguagem eperfeição técnica, pode fazer da tradução de poemas um exercíciorealmente valioso.

Desse modo, assim como Guilherme de Almeida, na solução que

propõe, Haddad destaca mais as figuras da ordem e da calma, como se pode

notar:

Lá tudo é belo e se ordena

; Luxo volúpia serena

!F> 12,1 -"/'1 7,"2%*%/ /1 ;/#,16>

Luxe, calme et volupté

Como afirma o próprio verso, Haddad ordena o discurso. Ele modifica

a hierarquia dos elementos: no primeiro verso, é o belo que se ordena, a

40/(%+5 3)##) ) #%/ 0 3/%("F)(0 B%/')$ () '%$%=)g 70 #%&-7(0 B%/#0A )$&0

#%+%$C)7.% 0F0//%A 30"#A 7) 0/"&%+A 4$-]0A F)$+) % B0$[3")5 ."7C)+ 0 +%#+0

%#.).-.0 %7-+%/)."B0A +)#A 7) ./)(-190A 4B0$[3") #%/%7)5 3)ssou a ser

)30#.0 (% 4$-]05A )##-+"7(0A (%##) O0/+)A -+ F)/N.%/ %]3$"F)."B0L U) "+)&%+

,-% Z)(()( F/") 3/%(0+"7) )"7() +)"# ) 40/(%+5A % ) 4B0$[3")5A 30/ #-) B%=A

perde força e destaque, pois, além de ser serena (oxímoro inexistente em

Baudelaire), ela reduz-se a um aposto.

n+ mB)7 i-7,-%"/)A ./)(-.0/ .)+'@+ O"%$ )0 4)3-/0 () $"7&-)&%+ % d

3%/O%"190 .@F7"F)5 3/%(0+"7) -+) B%= +)"# ) 0/(%+A 3"7.)() F0+ F0/%#

ainda mais fortes:

Lá, tudo é paz e rigor,

Luxo, beleza e langor.

!F> 12,1 -"/'1 7,"2%*%/ /1 ;/#,16>

Luxe, calme et volupté

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6,-"$0 ,-% %/) 40/(%+5 3)##) d %#O%/) (0 4/"&0/5A +0(-$)190 ,-%

acrescenta rigidez à organização; parece-me que, no poema de Baudelaire, a

ordem aproxima-se da harmonia e da quietude, e produz o que Richard

FC)+) (% 4un état de paix ondulatoire 5 e<mDZ6<\A _IIPA 3L__fL 6##"+ F0+0

em Guilherme de Almeida, Junqueira introduz uma oposição entre as

"+)&%7#A "7%]"#.%7.% 70 0/"&"7)$L \% -+ $)(0 43)= % /"&0/5A (0 0-./0 4$-]0A

'%$%=) % $)7&0/5L 6"7() ,-% 0# #"7o7"+0# #%W)+ 3/^]"+0#A 0 O).0 de modificar

) 0/(%+A %A #0'/%.-(0A ."/)/ 0 (%#.),-% ()(0 d /"+) 4beauté/volupté 5 O)= F0+

o poema adquira um tom mais severo.

As propostas foram chamadas aqui de traduções (ainda que sejam

retraduções) pelo fato de os tradutores estarem vinculados a uma concepção

edênica do traduzir, em que a relação em jogo é entre o tradutor e o original,

sem a mediação, pelo menos explícita, de outras traduções. No caso de

Juremir Machado, a situação se modifica consideravelmente, colocando-se

este, explicitamente no lugar do retradutor.

A retradução de Juremir Machado

A retradução proposta por Juremir Machado da Silva é precedida de

-+ '/%B% 3/%ONF"0A "7.".-$)(0 4Reescandalizar Baudelaire ou como serO"%$+%7.% "7O"%$5 em78 Y6T\nV6m<nA GHH`fL U%$%A >"$B) #% F0$

explicitamente no papel de retradutor. Ele inicia seu prefácio afirmando (idem,

p.5):

Esta tradução é uma homenagem e um diálogo com três dos maiorese mais consagrados tradutores brasileiros de Charles Baudelaire:Jamil Almansour Haddad, Ivan Junqueira e Guilherme de Almeida. Os

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dois primeiros traduziram a totalidade de As Flores do mal . O PoetaGuilherme de Almeida escolheu suas Flores entre as Flores. Por querecomeçar o que os outros já fizeram com tanto talento e rigor?

Ele mesmo responde à pergunta ao traçar ligeiros comentários sobre

os três tradutores que o precederam. Ele considera, por um lado, as escolhas

(% Z)(()( +)"# 43-("F)#5 %+ #".-)12%# (% )+'"& uidade e, por outro, Ivan

i-7,-%"/) 4+)"# O/"0A +%70# "7.%7#0A +)"# .@F7"F05L w-)7.0 d# ./)(-12%#de

Almeida, contenta-se em chamá- $)# (% 43%##0)"#5L :)/) #-)# 3/^3/")#

./)(-12%#A .%+ F0+0 F/".@/"0# 4%]F$-#"B)+%7.%A ) 3)"]90 % 0 F)0#5 % %#.)#A

%+ /%#30#.) d# ./)(-12%# )7.%/"0/%#A %#.90 4+)"# O)#F"7)()# 3%$0 B-$&)/ (0

,-% 3%$0 /%'-#F)(05L n##) #-) 30#.-ra leva-o a retraduzir o estribilho da

seguinte forma:

Lá, só há beleza e felicidade,

Luxo, calma e sensualidade.

!F> 12,1 -"/'1 7,"2%*%/ /1 ;/#,16>

Luxe, calme et volupté

Com efeito, Silva produz a mais prosaica das quatro traduções. O

destaque que dá à paixão leva-o ao apagamento da ideia de ordem; que se

reflete, também, na quebra constante da isometria. A paixão e o caos

propostos por Silva esbarram, contudo, no pudor da rima. Em suas

traduções, procura manter os mesmos esquemas rímicos encontrados em

Baudelaire, ainda que isso acarrete transformações vocabulares importantes.

6##"+A ) $"'%/()(% ,-% )(,-"/% )0 )O"/+)/ ,-%8 4,-"#A 7-+ &%#.0 (% C%/%#")

total, dar-lhe [a Baudelaire] um pouco do ar de nosso tempo, frívolo, pós-

+0(%/70A %Oc+%/0A 0'#F%705A (esestabiliza mais retoricamente do que

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textualmente as propostas tradutórias anteriores; uma vez que fica a meio

caminho, entre um Baudelaire em prosa, carregado pela força de suas

imagens e, por que não, pelo andamento de sua sintaxe, e o Baudelaire

lapidador do verso clássico. Enfim, mesmo se tomada por uma súbita

4O%$"F"()(%5A ) 40/(%+5 /%#"#.% (%#)W%".)() 7) /"+)L

Considerações finais

Leyla Perrone-Moisés (2003, p.14) destaca que, para muitos

%#F/".0/%#A ) ./)(-190 @ 4-+) O0/+) 3/"B"$%&")() (% F/E."F)5A -+ 4./)')$C0

#%$%."B0 (% (%#+07.)&%+ % /%+07.)&%+ (0 .%].0 0/"&"7)$5L U)# ./)(-12%#

aqui apresentadas, além da longamente comentada desmontagem, proposta

por Harvey, é possível notar que os processos são todos orientados por

princípios estéticos. A tradição da tradução poética no Brasil, como assinala

com precisão Haddad, é dominada por tendências de inspiração parnasiana

ou senão formalistas. A força dessa tradição é tamanha que, mesmo o mais

4F)^."F05A 4O/EB0$05 % 43^#-+0(%/705 ./)(-.0/ 790 F07#%&-% (%#vencilhar-se

completamente de suas rédeas.

Como assinalado no início deste trabalho, Goethe (2001, p.19ss)

identifica três momentos históricos para a tradução poética. Num primeiromomento da história da recepção de uma obra, proceder-se-ia a uma

tradução %+ 3/0#)A ,-% 4)3/%#%7.) 0 %#./)7&%"/0 d 70##) +)7%"/)5L U-+

#%&-7(0 +0+%7.0A C)B%/") -+) B07.)(% (% 4./)7#30#"190 3)/) )# F07("12%#

(0 %#./)7&%"/05A +)# )3%7)# 43)/) #% )3/03/")/ (0 #%7."(0 (%#F07C%F"(0 %

constitui-$0 F0+ #%7."(0 3/^3/"05A 0 ,-% F07#"#."/") 7-+) ).".-(% 43)/0(E#."F)5L

Enfim, chegar-se-ia a uma tradução em que se procurasse o outro, o que

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levaria a uma estrangeirização da língua de chegada; essa tradução, no caso

de Goethe levaria à busca de uma literalidade, que ele chama de

4"(%7."()(%5L

Ainda que seja bastante contestável o caráter evolutivo e determinista

da classificação proposta por Goethe, ela alimenta a reflexão sobre o

momento histórico das traduções e de suas retraduções. No caso das

traduções de Baudelaire, pode-se pensar a escolha de Vera Harvey como

-+) /%./)(-190 ,-% )3/%#%7.) -+ Y)-(%$)"/% 4d 70##) +)7%"/)5 %A %+ F%/.0

sentido, parodística.

No que concerne os três primeiros tradutores aqui comentados e a

reação de Juremir Machado de Silva, esta última sugere uma espécie de

esgotamento de um determinado modelo e o surgimento de uma nova

proposta de retradução, ou seja, há hoje um conjunto considerável de

traduções dos poemas de Baudelaire que, muitas vezes, em detrimento das

imagens, fixaram-se nos aspectos formais, produzindo um Baudelaire mais

rigoroso e frio, de índole parnasiana. Com sua atitude irreverente, Silva tenta

outra via, chega de forma ainda rude e desajeitada, mas abre a primeira

picada numa senda ainda inexplorada no Brasil.

Enfim, é possível dizer que os três renomados tradutores de

Baudelaire aqui estudados aproximam-se bastante dos primeiros

baudelairianos que, por sua vez, conforme Antônio Candido (1989, p.38),

O0/)+ 4-+) %#3@F"% (% 3/@-parnasianos, sobretudo na medida em que

aprenderam com seu inspirador o cuidado formal, o amor pelas imagens

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raras, a recuperação do soneto e das formas fixas [...] mas refugaram ou não

#%7."/)+ '%+ ) F0/)&%+ (0 3/0#)E#+0 % (0 .0/7%"0# F0$0,-")"#5L

Talvez agora, quase 150 anos depois de sua primeira recepção,estejamos mais próximos de ensaios que arrisquem outra maneira de se

traduzir, mais prosaica e coloquial das Flores do mal no Brasil. Afinal de

contas, como assinala Walter Benjamin, em sua clássica introdução a sua

tradução de As flores do maleGHH_A 3L_I|f8 4:0"# 7) F07.inuação de sua vida

(que não mereceria tal nome, se não constituísse em transformação e

/%70B)190 (% .-(0 ),-"$0 ,-% B"B%fA 0 0/"&"7)$ #% +0("O"F)5L

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188

13.

Maria Gabriela Llansol retradutora de Charles Baudelaire

A escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol é provavelmente a

tradutora mais audaz de uma tradução completa das Flores do mal de

Charles Baudelaire. O livro é desconcertante por sua própria estrutura: na

F)3) #% $c 4./)(-190 (% ?)/") Q)'/"%$) V$)7#0$5 % 430#ONF"0 (% :)-$ !)$@/„5A

de fato, um texto do poeta francês sobre a obra poética de Baudelaire; não

havendo nenhum outro tipo de paratexto, nem introdução, nem notas do

tradutor. Do texto de Valéry, um trecho é usado como orelha do livro, como

segue:

Vemos hoje que a ressonância, passados mais de sessenta anos, daobra única e muito pouco volumosa de Baudelaire, preenche aindatoda a esfera poética, que está presente aos espíritos, é impossívelde ignorar, reforçada por um número notável que dela derivam, quenão são imitações, mas consequências. (In: BAUDELAIRE, 2003)

Deriva de Baudelaire? Consequência de sua obra, sem o peso da

imitação? Ficam as perguntas no ar, pois a tradutora não dá mais pistas.

A leitura das traduções não é menos desconcertante. Se há poemas

que procuram certa identidade formal com os textos de Baudelaire (estrutura

estrófica, metro, rima) a grande maioria corresponde mais à pura invenção de

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um poema novo. Provavelmente Llansol estaria de acordo com essa

informação, pois, para ela, ao que tudo indica, retradução é mesmo deriva e

invenção.

Ao observar o livro, publicado em edição bilíngue, nota-se que a

maioria dos poemas guarda alguma correspondência visual com o texto de

partida. Vê-se o mesmo número de estrofes e de versos, ainda que o metro e

a rima sejam raramente correspondentes, privilegiando-se, assim, a prosódia

prosaica de Baudelaire.

Há, contudo, traduções em que a própria forma do poema é totalmente

reimaginada, como em Une charogne A ./)(-="(0 F0+0 4D0/30 ,-% )30(/%F%5A

)0 "7B@# (% 4T+) F)/7"1)5A F0+0 (% F0stume. A decomposição do título

contamina todo o poema. A primeira estrofe (ver o poema integralmente no

final deste artigo), por exemplo, foi traduzida da seguinte maneira (In:

BAUDELAIRE, 2003. p.78-79):

Rappelez- 02,' 5"2;D/1 7,/ -2,' 0<(/'> (2- H(/>

9/ ;/#, (#1)- *"616 ') *2,PA

Au détour du sentier une charogne infâme

Sur un lit semé de cailloux,

Lembrai-vos

?"7CS)$+)

Da coisa que vimos nessa bela manhãde verão na curva brusca do caminhoum corpo a decompor-se infame sobreuma liteira semeada de calhaus. [...]

Aquilo que era uma forma fixa, estrutura em alexandrinos e

octossílabos exemplarmente rimados em Baudelaire, transforma-se num

poema em versos livres, quase em prosa poética, que segue a mesma

dinâmica acima até o final. A radicalidade da proposta de Llansol pode ser

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190

"7.%/3/%.)() F0+0 3-/) "7B%7190A ("#.)7.% (% -+) @."F) () 4B%/()(%"/)5 0-

4O"%$5 ./)(-190L ?)# -+) "7.%/3/%.)190 +%70# (0&+N."F) 30(%A 30/ %]%+3$0A

historicizar a proposta. Pode-se, primeiramente, pensar no que está por

(%./N# (0 .%+) (0 4F0/30 ,-% #% (%F0+32%5g F0+0 %#F/".-/)A (%F0+30/ 0

poema é fazer do mesmo sua própria carniça, é explicitar um significado

latente na fonte.

Dentre os poemas traduzidos por Llansol, quatro ; Correspondances ,

5"O*6#5> C ,-/ $#''#-1/> !/s litanies de Satan ; receberam, da própria autora,

duas versões. Trata-se de uma ocorrência bastante particular de retradução,

pois uma vem seguida da outra na página da direita e, na página da

esquerda repete- #% 0 30%+) (% Y)-(%$)"/%L U0 30%+) 4Correspondances 5A

primeira vez em que ocorre a dupla retradução, lê-se, logo abaixo do título

4aB%/#90 $".%/)$b5 %A )3^# 0 3/"+%"/0 .%].0 ./)(-="(0A #%+ ,-% #% /%3".) 0 .E.-$0A

lê-#% 4a0-./) B%/#90b5 %A (% O).0A ) 3/"+%"/) @ -+) ./)(-190 #%+X7."F) % )

segunda, uma retradução, cheia de inversões e mudanças na sintaxe (ver

anexo no final deste artigo32).

Esta presença é mais perturbadora, pois não há nada que se possa

identificar nas escolhas tradutórias que a diferencie de modo fundamental

das anteriores: umas mais, outras menos, outras de modo semelhante foram

desconstruídas, sem que, contudo, haja a presença de duas versões. Esta

escolha (aleatória?) pode, talvez, ser compreendida como um rastro deixado

pela autora de seu próprio processo de reinvenção de Baudelair %8 () 4B%/#90

$".%/)$5 3)/) ) 40-./) B%/#905A F0+0 B%/#90 (0 0-./0L 32

Preferi reproduzir os textos com a diagramação da autora para permitir uma visualizaçãodo espaço gráfico.

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191

Um dos casos mais instigantes é a auto-retradução do cinematográfico

4A une passante 5L D0+0 )O"/+) ?)/F%$0 i)F,-%# (% ?0/)%# eGHHHfA 7%#.%

poema emblemático da modernidade fin-de-siècle ,

o que escapa num éclair, ao fluxo do tempo e da multidão, o faz para) %$% /%.0/7)/ % 3)/) 7%$% (%#)3)/%F%/A 4.)$B%= 3)/) #%+3/%5AO/-#./)7(0 ) %]3%F.)."B) (% O)=%/ 47)#F%/ 0-./) B%=5 70 3/%#%7.%fugaz, tomado pelo spleen , o germe de um futuro pleno, ideal, no qualesse presente se perpetuaria, como fica patente pelo futuro compostodo pretérito do último verso, que remete a um futuro desejado, masirrealizável.

Presente fugaz, futuro irrealizável, o tempo moderno não se estabiliza,

numa dinâmica aberta que se potencializa no jogo das retraduções. Assim,

no poema de Baudelaire, onde se lê:

La rue assourdissante autour de moi hurlait.

Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,a-/ ./((/ $#''#> *",-/ (#)- .#'1,/,'/

Soulevant, balançant le feston et5"2,%5/1W

Agile et noble, avec sa jambe de statue.

Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,

I#-' '2- U)5> :)/5 5)0)*/> 2X 4/%(/ 5"2,%#4#-8

La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair... puis la nuit! V Fugitive beauté

I2-1 5/ %/4#%* ("# fait soudainement renaître,

Ne verrai- D/ $5,' *#-' 5b61/%-)16c

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192

C)55/,%'> ;)/- 52)- *"):)\ 1%2$ 1#%*\ D#(#)' $/,1 -être!

9#% D")4-2%/ 2X 1, .,)'> 1, -/ '#)' 2X D/ 0#)'8

K 12) 7,/ D"/,''/ #)(6> M 12) 7,) 5/ '#0#)' !

Em sua primeira tradução, bastante próxima semanticamente do texto

de Baudelaire, Llansol faz apenas algumas pequenas modificações (ver

anexo no final deste artigo), como colocar em maiúsculas algumas palavras

precedidas de exclamação ou alterar a forma do travessão (procedimento

padrão em suas retraduções).

U),-%$) ,-% FC)+) (% 40-./) B%/#905A V$)7#0$ /)("F)$"=) #-) 3/030#.)L

Os dois quartetos viram uma espécie de roteiro para um curta-metragem:

No slide um A fora de si gira de gritar

No slide dois Alta e magra passa por mim De luto carregado e mágoamajestosa Um

ramo e a bainha Em sua mão faustuosa Pendulares

Detalhe importante Ágil e nobre tem andar de estátua

No slide três Sinto em mim uma tensão que me extravasaOutro detalhe No seu estilo de olhar há um céu lívido Que gera

tempestade

No último slide Bebo num ápice a doçura que fascina e o prazer que mata

>)$.) )0# 0$C0# 0 (%#+%+'/)+%7.0 ()# F%7)# %+ 4#$"(%#5L M %O%".0

produzido é o de estancar cada momento, levando o leitor a uma observação

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mais at%7.) (% F)() (%.)$C% ,-% F0+32% 0 "7#.)7.X7%0L U0 3/"+%"/0 4#$"(%5

FC)+) ) ).%7190 ) )-#c7F") () 3)$)B/) 4/-)5A )##"+ 465A %+ 3/"7FE3"0 )/."&0A

se transforma em sujeito, numa espécie de variável na equação do sujeito,

seu lugar podendo ser ocupado de modos distintos. Primeiramente, o sujeito

30(% #%/ ) 3/^3/") /-)g )-#%7.% (0 30%+)A ) 4/-)5 F07.0/7)-o, estando

3/%#%7.% .)7.0 7) 3/"+%"/) B%/#90 F0+0 70 .%].0 (% 3)/."()L 465A O0/) (% #"A

também pode ser a passante, que se funde com a cidade, ou ainda o

observador.

O efeito de diluição lugar-observador-observado condiz com a

impessoalidade da multidão moderna. É o próprio Baudelaire (1996, p.64)

,-%+ ("=A %+ #%- 3/0#) 30@."F) #0'/% 4Les foules 5 [as massas]:

!/ $2&1/ D2,)1 */ :/1 )-:2($#%#;5/ $%)0)5&4/> 7,")5peut, à sa guise êtrelui-même et autrui. Comme ces âmes errantes qui cherchent, il entre,

quand il veut, dans le personnage de chacun. Pour lui seul, tout estvacant...

O poeta goza deste incomparável privilégio de poder ser, a bel prazer,ele próprio e outrem. Como estas almas errantes que buscam umcorpo, ele entra, quando quer, na personagem de cada um. Somentepara ele tudo está vacante... (tradução de Dorothée de Bruchard)

Llansol potencializa a place vacante A %$"+"7)7(0 ) 4/-)5L w-%+ 0F-3)

o lugar daquele qu% 4O0/) (% #" &"/)5A $0&0 %+ #%&-"()A @ ) 3)##)7.%L 6

descrição desliza rápida por todo um verso sôfrego, em que as adjetivações

se concatenam sem pausa, formando uma espécie de amálgama. A única

respiração possível, as letras maiúsculas, até que o verso transborda, linha

abaixo, em pêndulo, como os próprios braços daquela que passa. A

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visualidade do poema, aqui, em certo sentido, mimetiza o movimento de

quem passa.

Diferentemente de Baudelaire, Llansol não faz com que a mulherpasse. No texto de chegada, 4ela5 ; CN -+) 0+"##90 (0 .%/+0 4+-$C%/5 ;

43)##) 30/ +"+5g 0 ,-% )3/0]"+) 0 0'#%/B)(0/ (0 "7EF"0 (0 30%+)A

fomentando a pergunta: é ele que está fora de si?

O que mais chama atenção, contudo, é a introdução do comentário

4\%.)$C% "+30/.)7.%5A 0 ,-% 0'/"&) 0 $%".0/ ) #% (%.%/ )"7() +)"# 70 4N&"$ %

70'/% )7()/ (% %#.N.-)5L 6E .%/+"7) 0 #%&-7(0 #$"(%A 70 O"+ (0 3/"+%"/0 B%/#0

da segunda estrofe. Em Baudelaire, a passante salta de uma estrofe a outra,

em Llansol ela se condensa num só slide.

São duas temporalidades distintas em jogo. Ao fluxo da multidão

baudelairiana que a estrofe não contém, se sobrepõe outra, por um lado mais

significante, pois é o próprio poema que desenha o movimento pendular e,

por outro, mais condensada. A quebra das imagens em slides leva, assim, a

um escrutínio do objeto, como a câmara lenta nos filmes de ação, que

suspende o tempo, antes de relançar o observado no fluxo descontrolado da

#%,-c7F")L M #$"(% ./c#A F0+ #%- 40-./0 (%.)$C%5 % #%- 4[$."+0 (%.)$C%5 /%3%.%o procedimento, antes do jorro dos tercetos finais.

A aceleração que se verifica em Baudelaire, no primeiro verso do

.%/F%.0A 4Un éclair... puis la nuit! V Fugitive beauté 5A F07.)+"7) .0() )

disposição dos versos na retradução de Lllansol, como segue:

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Apenas flashs

E uma câmara escura onde cismar__

Aquela beleza em fuga foi-me súbita vida

Trazia um daimon no olhar

Talvez o volte a ver na eternidade

Algures

Muito longe

Demasiado tardeNunca É bem provável O terno retorno está por pensar

Não sei onde vais

Nada de mi+ #)'%# >)$B0 0 %##%7F")$ D0+S )+)/

Ter-te-ia provado

U0 "7EF"0A )$@+ (0 4@F$)"/5 $-+"70#)+%7.% ./)7#30#.0 %+ 4O$)#C%#5A

FC)+) ) ).%7190 ) +%.)+0/O0#% () 470".%5 epuis la nuit f 7-+) 4FX+)/)

%#F-/) 07(% F"#+)/5L 6+'"%7.% O%FC)(0A ) %#F-/"(90 (% V$)7#0$ é cerrada,

+)# @ .)+'@+ %#3)10 (% 3/0W%190 407(% F"#+)/5L n#.% 790 @ 0 [7"F0

F0+%7.N/"0 "7#%/"(0 70# .%/F%.0#g V$)7#0$ %+%7() +)"# )(")7.% 40 %.%/70

/%.0/70 %#.N 30/ 3%7#)/5L r/)#% %7"&+N."F) ,-% (%"]) %+ #-#3%7#0 )

possibilidade do eterno retorno, nas vagas da urbe...

Enfim, o que resta de Baudelaire?

A velocidade, o prosaísmo, o vaivém, a passagem; reconfigurados em

tempo de Alta Idade Mídia. E fica também, é importante lembrar, futuro

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composto do pretérito do último verso, de que fala Moraes, desejo em porvir,

porém, inalcançável.

Outras considerações

Ainda que, isoladamente, as retraduções em questão sejam

instigantes, a ausência de um projeto claro, faz com que a leitura do livro

revele uma certa confusão. Por exemplo, 0 30%+) 460 $%".0/5A ,-% )'/% o

livro, Llansol o traduz conservando as rimas, como se pode ler:

A alma tomada por tolices e erros, não (12)E pecados, que nos moldam os corpos, (10) Alimentamos nossos queridos remorsos (12)Como sem abrigos que estimam sua sujidão (14)

Os alexandrinos perfeitos de Baudelaire são em parte desconstruídos,

mas restam como ecos e a rima serve de armadura ao poema. O projeto de

Llansol, neste poema, acaba se aproximando daquele de Juremir Machado

da Silva, comentado anteriormente.

Enfim, a impressão de hesitação entre a adoção de um projeto em

prosa e a manutenção das marcas formais, faz com que, nesse meio do

caminho, haja revelações surpreendentes como a do corpo que apodrece, e

confusões como é o caso do poema de abertura. Como a retradutora de

Baudelaire, ao que parece, a mais ousada em língua portuguesa, Llansol

guarda, contudo, o mérito de apontar para uma leitura mais prosaica dos

poemas de As flores do mal ; numa reescrita que explora as possibilidades do

retraduzir.

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Une charogne 02

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A une passante 01

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A une passante 02

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202

Berardinelli, em seu %7#)"0A (%("F)(0 4d# +-".)# B0=%# () 30%#")

+0(%/7)5A F/"."F) ) F07F%3190 (% $E/"F) +0(%/7) (% Z-&0 r/"%(/"FCA ,ue teria

F0+0 $"+".)190 0 O).0 (% (%#%7B0$B%/ -+ 4%#,-%+) ,-% #% ')#%") 7)

F%7./)$"()(% (% ?)$$)/+@5 % ,-% )F)')/") #%7(0 4-+) F07./"'-"190 "7("/%.) d

teoria da poésie pure 5L e"(%+A 3L_IfL 6 %##a visão, contrapõe as leituras de

Eliot, Edmund Wilson, Erich Heller e, sobretudo, de Adorno, para quem a

opacidade da poesia moderna e sua dissonância são indícios, não de uma

430.c7F") () $"7&-)&%+ % () O)7.)#")5A F0+0 "7.%/3/%.) r/"%(/"FCA +)# (% -+)

4$)F%/)190 () %]"#.c7F") ,-% ) 30%#") e"(%+A 3L`P-36), com os recursos de

,-% ("#32%A 790 30(% /%F0+30/5A +)7"O%#.)7(0A (%##) +)7%"/)A 790 -+)

inquietação meramente formal (poésie pure ), mas de certo modo coletiva.

Para Berardinelli, é interessante, em Adorno, a relação que indica

entre o apelo ao popular no Romantismo (apelo julgado extrínseco e

acrítico) e a presença do conteúdo social, da piedade e da denúnciaem um poeta como Baudelaire, poeta em que, teoricamente, a poesiafaz um pacto com a artificialidade, a bizarria, a frieza e a recusa dequalquer moral da participação e da compaixão. Justamente, emBaudelaire, não obstante sua poética, ou graças a ela, o conteúdo#0F")$ % ) 4#-'.%//X7%) F0//%7.% F0$%."B)5 30(%+ +)7"O%#.)/ -sepoeticamente em sua nudez anti-retórica e numa agudeza realistadesconhecida pela lite /).-/) 4#0'/% ) 30 b/% &%7.%5A

programaticamente dedicada à representação dos males dasociedade. (idem, p.37).

O que chama a atenção é que, ao invés de valorizar a artificialidade

em Baudelaire, elemento sem dúvida presente e importante, Berardinelli

des .)F) 0 ,-% FC)+) (% 47-(%= )7." -/%.^/"F)5A ,-% #% B"7F-$) ) -+)

4)&-(%=) /%)$"#.)5A ).@ %7.90 (%#F07C%F"() 3%$) $".%/).-/)L n#.)# #%/")+

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marcas da poética baudelairiana centrais para a compreensão de sua

modernidade.

Berardinelli (idem, p.38) no final de seu ensaio volta ao cerne de suadiscussão, sua crítica a Friedrich. Assim, para o autor italiano, o destaque

()(0 ) 40/"&"7)$"()(%# %#."$E#."F)#5 % 4F07,-"#.)# O0/+)"#5A 790 )3%7)# #%/")

redutor por não considerar a riqueza e diversidade das correntes, mas

.)+30-F0 4O)= W-#."1) )0 #%7."(0 C"#.^/"F0 % d #".-)190 %]3/%##) 30/ %##)

30%#")5L

Nesse sentido, Berardinelli conclui retomando um texto de Auerbach

(2007, p.331-332), em que este afirma:

[N]ão quero terminar este breve ensaio com a celebração do feitoliterário de Baudelaire, mas sim com o motivo por onde principiamos,o horror de As flores do mal . É um livro de desesperança sombria, detentativas absurdas e fúteis de inebriar e escapar. [...] Os que sãotomados pelo horror não falam do frisson nouveau , não gritam bravonem congratulam o poeta por sua originalidade. Até mesmo aadmiração de Flaubert, apesar de lapidarmente formulada, é estéticademais. Muitos críticos posteriores deram por evidente que o livro sópoderia ser considerado de um pondo de vista estético e rejeitaramcom escárnio outra possibilidade de abordagem. Parece-nos que acrítica puramente estética não está à altura da tarefa, emboraBaudelaire dificilmente pudesse compartilhar de nossa opinião: eleestava contaminado pela idolatria da arte que ainda está presenteentre nós.

Nesta sua colocação contrária à adoção de uma abordagem estética,

o que se destaca na obra de Baudelaire é o horror. A questão é como

retraduzir este horror, ou, por que não, como colocar este horror em primeiro

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plano? A retradução em prosa dos poemas de As flores do mal parece

apontar para essa possibilidade, ainda que Baudelaire, como lembra

Auerbach, estivesse contaminado pela idolatria da arte.

Esta contaminação, contudo, não levou Baudelaire tradutor a adotar

um critério de correspondência formal ao traduzir Edgard Alan Poe, poeta

que admirava e que ajudou a divulgar. Em 1853, apenas oito anos após a

publicação do Corvo, Baudelaire realiza sua tradução. Como ilustração,

reproduzimos a primeira estrofe de Poe e de Baudelaire (In: POE, 1998, p.27

e 33).

Once upon a midnight dreary, while I pondered, weak and weary,

Over many a quaint and curious volume of forgotten lore,

While I nodded, nearly napping, suddenly there came a tapping,

As of some one gently rapping, rapping at my chamber door.

"'Tis some visitor," I muttered, "tapping at my chamber door V

Only this, and nothing more."

Une fois, sur le minuit lugubre, pendant que je méditais, faible et.#1)4,6> ',% (#)-1 $%6:)/,P /1 :,%)/,P 025,(/ *",-/ *2: trine oubliée,pendant que je donnais de la tête, presque assoupi, soudain il se fit un1#$21/(/-1> :2((/ */ 7,/57,",- .%#$$#-1 *2,:/(/-1> .%#$$#-1 F 5#porte de ma chambre. «9"/'1 7,/57,/ 0)')1/,%> V murmurai-je, V quifrappe à la porte de ma chambre ; c / -"/'1 7,/ :/5# /1 %)/- */ $5,'8 »

Com efeito, a escolha de Baudelaire, ao traduzir Poe, é a adoção de

um critério mais literal, como afirma o próprio Baudelaire (In: LEMONNIER,

1928, p.183):

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textuais, como as de Mário Laranjeira. Pode-se, pois, aproximar, por

exemplo, as traduções correntes no Brasil de Baudelaire e de Mallarmé, em

que se nota também uma valorização das conquistas formais, medindo-se o

valor da tradução por suas qualidades estilísticas, da leitura da poesia

moderna empreendida por Friedrich.

Os exemplos dados ao longo deste trabalho apontam para a

possibilidade de uma retradução crítica pautada por outros critérios, como a

historicidade do traduzir. No caso de Baudelaire, trata-se de um poeta hoje

conhecido da maioria dos leitores de poesia e, em língua portuguesa, boa

parte desses ou já leu o texto de partida ou alguma tradução. Quem conhece

as traduções de Baudelaire para o português sabe que, em sua grande

maioria, por um excesso de zelo à forma, a maioria delas hiperdimensiona o

caráter formal, transformando Baudelaire, frequentemente, num poeta

parnasiano, ou quase.

Por que, diante dessa longa tradição tão idêntica a si mesma, e da

decomposição poética praticada pelo próprio Baudelaire tradutor de Poe, não

exercer o direito de retraduzi-lo em prosa? Não que esta seja uma tradução

(%O"7"."B)A +)# %$) F%/.)+%7.% )3/0]"+) 0 $%".0/ (0 4C0//0/5 (% ,-% O)$)

6-%/')FC % () 47-(%= )7."-/%.^/"F)5 )307.)() 3or Berardinelli. Voltar à

retradução como crítica parece ser um caminho válido desde a crítica da

retradução.

6##"+A 30/ %]%+3$0A O)$)/") 460 V%".0/5 -+ Y)-(%$)"/% %+ 3/0#) (0

mal:

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Ao leitor

A tolice, o erro, o pecado, o mesquinho ocupam nossos espíritos,trabalham os corpos. E nós, como os mendigos seus vermes,

alimentamos nossos mais caros remorsos. Temos pecados teimosose arrependimentos covardes; cobramos caro as confissões evoltamos felizes pela lama da estrada, acreditando com vis lágrimaslavar as marcas.

O travesseiro do mal acolhe Satã Trismegisto que embala com calmanossa alma encantada, e o rico metal de nossa vontade evapora nasmãos desse sábio alquimista. O diabo é quem segura os fios que nos

movem: os objetos nojentos nos fisgam; a cada dia rumo ao infernodescemos um passo, sem horror, através do fedor das trevas.

Assim feito um devasso que beija e come o seio martirizado de umaputa velha, roubamos de passagem um prazer clandestino;esprememos com gana essa quase passada laranja. Preso, formiga,como um milhão de helmintos em nossa mente, uma multidão bêbadade demônios, e, quando respiramos, a morte em nossos pulmões

desce, febre invisível de surdos lamentos.

Se o estupro, o veneno, o punhal, o incêndio ainda não bordaramcom seus graciosos desenhos o bosquejo banal de nosso miseráveldestino, é que nossa alma ; que pena ; não é tão atrevida.

Mas entre os chacais, as panteras, os linces, os escorpiões, osmacacos, as serpentes, os abutres, os monstros que grasnam,rosnam, rastejam, gritam, no zoo infame de nossos vícios, há umainda mais feio, maléfico, imundo; mesmo se não berra nem gesticulamuito, deixaria a terra em cacos e num bocejo engoliria o mundo: oTédio ; olho pleno de um choro involuntário, fumando seu cachimbo,sonha cadafalsos.

Você conhece, leitor, esse monstro delicado, ; hipócrita leitor, ; meuigual, ; meu irmão.

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208

Sobre os textos

1. Crítica e retradução poética

Texto publicado com algumas alterações, com o título, A crítica da retraduçãopoética na Revista Itinerários (UNESP, Araraquara), v. 28, p. 145-158, 2009.

GL <%./)(-="/ 4M >"7%"/05 (% >.%3C)7% ?)$$)/+@5L Artigo publicado com pequenas alterações na revista Tradterm (USP), v. 12, p. 193-204, 2006.

3. Visilegibilidade em quatro traduções do poema "Il Pleut" de Apollinaire.

Apresentado, em 2008, durante o VI Congresso Nacional Associação Portuguesa deLiteratura Comparada, na Universidade do Minho, em 2008. Publicado nos Anais doCongresso, em 2009.

4. O vocabulário caribenho como dificuldade na tradução (% 4Les fenêtres 4 (%Guillaume Apollinaire. Apresentado no XV Congresso de Professores de Francês, em 2005, BeloHorizonte. Publicado nos Anais do Congresso, em 2005.

5. Grimório: a tradução nos limites de "prosa".Publicado na Revista de Letras (UNESP), v. 49, p. 47-54, 2009.

6. Um lance de dados: contrapontos à sinfonia haroldiana.Publicado com laterações na Revista de Letras (UNESP), v. 47, p. 13-25, 2007.

7. Um Lance de dados , outras refrações: uma auto-retradução comoredimensionamento do espaço-gráficoTexto inédito, a ser publicado no livro Um lance de dados, refrações , de minhaautoria. São Paulo, Ateliê Editoria, 2010.

8. Mário Laranjeira retradutor de Prévert.Texto inédito. A parte referente à teoria da significância encontra-se no .%].0 46./)(-190 (0 30%+) 70 Y/)#"$8 )$&-+)# .%7(c7F")# ).-)"#5A 3-'$"F)(0 70 $"B/0

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209

organizado por Sylvia Cyntrão, Poesia: o lugar do contemporâneo . Brasília:Universidade de Brasília, Departamento de Teoria literária e literaturas, 2009

9. Tavares Bastos retradutor de Hugo.Texto inédito.

10. Castro Alves tradutor de poetas franceses e retradutor de Lamartine.Trabalho apresentado, em versão reduzida, no X Congresso Internacional ABRALIC,70 <"0 (% W)7%"/0A F0+ 0 .E.-$0 4D)#./0 6$B%# J/)(-.0/5L :-'$"Fado posteriormente,%+ B%/#90 /%(-="()A F0+ 0 .E.-$0 (% 4n+ '-#F) (% D)#./0 6$B%# ./)(-.0/5A 7)coletânea, organizada por Andréia Guerini, Marie-Helène Torres e Walter CarlosCosta, Literatura traduzida e literatura naciona l, publicada pela Editora 7Letras, em2008.

11. Pignatari tridutor de Mallarmé.Texto inédito.

_GL J/)(-12%# % /%./)(-12%# (% 4!"O-0)1#1)2- #, R23#4/5 (% Y)-(%$)"/% Trabalho apresentado no Colóquio Internacional As Flores do mal: 150 Anos (Casade Rui Barbosa, Rio de Janeiro) com o .E.-$0 46 (0+%#."F)190 (% R!")-0)1#1)2- #,

voyage S 0- ) ./)7#O"&-/)190 (% Y)-(%$)"/%5L :-'$"F)(0 com alterações com o título(% 4Sobre uma não- ./)(-190 % )$&-+)# ./)(-12%# (% R!")-0)1#1)2- #, 023#4/S (%Y)-(%$)"/%5A 7) Revista Alea . v. 9, p. 250-262, 2007.

13. Maira Gabriela Llansol retradutora de Charles Baudelaire.Texto aceito para publicação no Cadernos de Tradução , 2010-1.

14. Por uma retradução em prosa das Flores do mal de Baudelaire.Trabalho apresentado no II Encontro de Tradutores de Obras Francesas no BrasilF0+ 0 .E.-$0 (% 4Y)-(%$)"/% ./)(-="(0 % ) (%#F07#./-190 (0 B%/#0 )$%])7(/"705L Texto a ser publicado, no livro A tradução de obras francesas no Brasil , organizadopor Álvaro Faleiros, Adriana Zavaglia e Alain Mouzat.

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210

Referências bibliográficas

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A CANÇÃO de Rolando . Tradução de Lígia Vassalo. Rio de Janeiro: F. Alves,1988.

A CANÇÃO de Rolando . Tradução de G. Leoni. São Paulo: Atena, 1958.

ALVES, C. Obra completa . (Org. Eugênio Gomes). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004.

ALVES, C. Obras completas . (Org. Afrânio Peixoto). Rio de Janeiro: Cia

Editora Nacional, 1938, Vol. 1.

AMARAL, G. C..Aclimatando Baudelaire . São Paulo: Anna Blume, 1996

ANIS, J. Vilisibilité du texte poétique.Langue Française , n°59, sept 1983,Larousse, pp.88-103.

APOLLINAIRE, Guillaume. Calligrammes . Paris: Mercure de France, 1918.

_______ . Selected poems . Tradução, introdução e notas de Oliver Bernard.Middlesex: Pengin, 1965.

APOLLINAIRE, G. Oeuvres poétiques . Paris: Gallimard (Coll. De la Plêiade.),1965.

_______ . Escritos de Apollinaire . Tradução, introdução e notas de Paulo

Hecker Filho. Porto Alegre: L&PM, 1984.

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