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De Poder nulo e invisível” a guardião da Constituição: O caráter dinâmico da separação dos poderes e o perfil do Poder Judiciário na formação do estado moderno From "null and invisible branch" to guardian of the Constitution: The dynamic character of the separation of power branches and the profile of the Judiciary in the formation of the modern state Luciano Athayde Chaves “Porém, se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos devem sê -lo a tal ponto que nunca mais sejam do que um texto exato da lei. Se fossem uma opinião particular do juiz, viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela são assumidos”. Montesquieu (1979, p.150). Não se pode negar que o poder é, por natureza, usurpador, e que precisa eficazmente ser contido, a fim de que não ultrapasse os limites que lhe foram fixados”. James Madison (1984, p.401). “Sempre que a vontade do Legislativo, traduzida em suas leis, se opuser à do povo, declarada na Constituição, os juízes devem obedecer a esta, não àquela, pautando suas decisões pela lei básica, não pelas ordinárias”. Alexander Hamilton (1984, p.578) Referência de Publicação: CHAVES, Luciano Athayde. De “Poder nulo e invisível” a guardião da Constituição: o caráter dinâmico da separação dos poderes e o perfil do Poder Judiciário na formação do estado moderno. In: MORAES, Filomeno (coord.). Teoria do Poder. Belo Horizonte: Arraes Editores, vol. III, 2016, p. 148-177. RESUMO O artigo apresenta uma análise das contribuições teóricas de Locke, Montesquieu, Benjamin Constant e dos autores federalistas James Madison e Alexander Hamilton para a moderna concepção da divisão dos poderes do Estado, com o propósito de demonstrar que a ideia de separação dos poderes não significa isolamento, constituindo-se como central o problema do caráter dinâmico dos mecanismos de freios e contrapesos que visam estabelecer zonas de contenção à vocação usurpadora do Poder. Observou-se que a proposta do Poder neutro de Benjamin Constant foi uma primeira tentativa de enfrentar a questão das relações entre os poderes, mas foi a experiência norte-americana que ofereceu mais contribuições para a arquitetura contemporânea de enfrentamento do problema. Nesse contexto, o desenvolvimento do perfil do Poder Judiciário é significativo exemplo da transição dinâmica da concepção de separação dos poderes. Inicialmente compreendido com um Poder nulo ou invisível, passou a apresentar significativa importância para o Estado de Direito, em especial para a afirmação da supremacia constitucional. Palavras-chave: Estado Moderno Separação dos Poderes Judiciário Constituição. ABSTRACT The article presents an analysis of the theoretical contributions of Locke, Montesquieu, Benjamin Constant and federalists authors James Madison and Alexander Hamilton to the modern conception of the division of state power branches, in order to demonstrate that the idea of separation of powers branches does not mean isolation, becoming a central problem of the dynamic character of the mechanisms of checks and balances aimed at establishing containment areas to the usurper vocation of power. It was noted that the neutral branch, proposed by Benjamin Constant, was a first attempt to face the issue of relations between the branches, but it was the American experience that offered more contributions to the contemporary architecture treatment of the problem. In this context, the development of the Doutorando em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Mestre em Ciências Sociais (UFRN). Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Juiz do Trabalho da 21ª. Região. E-mail: [email protected].

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De “Poder nulo e invisível” a guardião da Constituição:

O caráter dinâmico da separação dos poderes e o perfil do Poder Judiciário na

formação do estado moderno

From "null and invisible branch" to guardian of the Constitution:

The dynamic character of the separation of power branches and the profile of the

Judiciary in the formation of the modern state

Luciano Athayde Chaves

“Porém, se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos devem sê-lo a tal ponto que nunca mais sejam do que um texto exato da lei. Se fossem uma opinião particular do juiz, viver-se-ia na sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela são assumidos”.

Montesquieu (1979, p.150).

“Não se pode negar que o poder é, por natureza, usurpador, e que precisa eficazmente ser contido, a fim de que não ultrapasse os limites que lhe foram fixados”.

James Madison (1984, p.401).

“Sempre que a vontade do Legislativo, traduzida em suas leis, se opuser à do povo, declarada na Constituição, os juízes devem obedecer a esta, não àquela, pautando suas decisões pela lei básica, não pelas ordinárias”.

Alexander Hamilton (1984, p.578)

Referência de Publicação: CHAVES, Luciano Athayde. De “Poder nulo e invisível” a guardião da Constituição: o caráter dinâmico da separação dos poderes e o perfil do Poder Judiciário na formação do

estado moderno. In: MORAES, Filomeno (coord.). Teoria do Poder. Belo Horizonte:

Arraes Editores, vol. III, 2016, p. 148-177.

RESUMO

O artigo apresenta uma análise das contribuições teóricas de Locke, Montesquieu, Benjamin Constant e dos autores federalistas James Madison e Alexander Hamilton para a moderna concepção da divisão dos poderes do Estado, com o

propósito de demonstrar que a ideia de separação dos poderes não significa isolamento, constituindo-se como central o

problema do caráter dinâmico dos mecanismos de freios e contrapesos que visam estabelecer zonas de contenção à

vocação usurpadora do Poder. Observou-se que a proposta do Poder neutro de Benjamin Constant foi uma primeira

tentativa de enfrentar a questão das relações entre os poderes, mas foi a experiência norte-americana que ofereceu mais

contribuições para a arquitetura contemporânea de enfrentamento do problema. Nesse contexto, o desenvolvimento do

perfil do Poder Judiciário é significativo exemplo da transição dinâmica da concepção de separação dos poderes.

Inicialmente compreendido com um Poder nulo ou invisível, passou a apresentar significativa importância para o

Estado de Direito, em especial para a afirmação da supremacia constitucional.

Palavras-chave: Estado Moderno – Separação dos Poderes – Judiciário – Constituição.

ABSTRACT

The article presents an analysis of the theoretical contributions of Locke, Montesquieu, Benjamin Constant and

federalists authors James Madison and Alexander Hamilton to the modern conception of the division of state power

branches, in order to demonstrate that the idea of separation of powers branches does not mean isolation, becoming a

central problem of the dynamic character of the mechanisms of checks and balances aimed at establishing containment areas to the usurper vocation of power. It was noted that the neutral branch, proposed by Benjamin Constant, was a first

attempt to face the issue of relations between the branches, but it was the American experience that offered more

contributions to the contemporary architecture treatment of the problem. In this context, the development of the

Doutorando em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Mestre em Ciências Sociais (UFRN). Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Juiz do Trabalho da 21ª. Região. E-mail:

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judiciary profile is significant example of dynamic transition from design of separation of branches. Initially understood

with a null or invisible power, it began to show significant importance to the rule of law, particularly for the affirmation

of constitutional supremacy.

Keywords: Modern State - Separation of Branches – Judicial Branch – Constitution.

INTRODUÇÃO

As sociedades contemporâneas, em especial aquelas organizadas segundo paradigma do

Estado Democrático de Direito (Rule of Law), refletem as grandes transformações sociais,

econômicas e políticas que forjaram o que se convencionou denominar de Estado Moderno.1

Um dos traços principais dessa forma de organização social, que encontrou maior

desenvolvimento no Ocidente, em razão da presença de certa racionalidade política

(FLORENZANO, 2007, p. 11), diz respeito à divisão ou separação do poder político, contribuição

dos pensadores contratualistas, como Locke, Rousseau e Montesquieu, em ordem a assegurar que o

exercício do poder fosse protagonizado por diferentes atores políticos, meio que se constituiria

idôneo para evitar a atração gravitacional que o poder exerce, atraindo mais poder quando não

encontra limites.2

Na linha de maturidade desse axioma da política – a separação dos Poderes – assentou-se uma

arquitetura de divisão do poder político em três grandes ramos: o Legislativo, o Executivo e o

Judiciário, encontrando esse fenômeno suas características próprias em cada Estado.

Sendo, portanto, um postulado já enraizado da teoria política, não deveria se constituir mais

objeto de interesse essa divisão do Poder político, tampouco em relação ao Poder Judiciário.

Contudo, não é o que sucede.

Isso porque a convergência quanto à divisão do Poder não implica a superação dos problemas

resultantes de uma de suas propriedades: a dinâmica da relação entre os seus diversos ramos. É

dizer: essa separação não é estanque, constituindo um dos seus maiores problemas, como percebeu

Benjamin Constant (2005), a harmonização de seu exercício pelos respectivos protagonistas. Ao

longo do tempo, cada regime constitucional, inclusive no Brasil, procurou enfrentar esse problema,

com resultados dos mais diversos.

1 Segundo Modesto Florenzano, apoiado em Skinner, o conceito de Estado Moderno está relacionado com a ideia de

uma forma de poder político, separada do governante e dos governados, constituindo a suprema autoridade política no

interior de um território definido (FLORENZANO, 2007, p. 30). 2 Essa propriedade do poder foi percebida há muito por Montesquieu, ao construir suas ideias sobre a separação, a partir

das experiências históricas que tomou em consideração: “[...] mas a experiência eterna mostra que todo o homem que

tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites. Quem o diria! A própria virtude tem necessidade de

limites. Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder”

(MONTESQUIEU, 1979, p. 148).

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Assim, a investigação da questão da separação dos Poderes deve se constituir precipuamente

o exame das inter-relações entre os seus diversos ramos, na medida em que esse fenômeno se

converte em fonte de grandes tensões políticas, com projeção sobre todo o tecido social.

Interessa-nos, neste estudo, privilegiar o Poder Judiciário no exame dessa dinâmica da

separação dos Poderes, porquanto também ele tem sido objeto dos reflexos das transformações

contemporâneas sobre o Estado, de maior complexidade socioeconômica (FARIA, 1989, p. 10-11).

A reflexão sobre o Poder Judiciário, enquanto ator político ativo, é relativamente recente

(SANTOS, 1989, p. 39 e ss.). Após um longo período nas sombras da ideologia refletiva pelo

positivismo lógico do séc. XIX, o Judiciário foi deixando, progressivamente, de ser considerado

como um mero aparelho da burocracia estatal para se converter, em especial a partir da segunda

metade do séc. XX, em arena política de grande interesse sócio-político, mercê do deslocamento do

eixo constitucional na direção da proteção a direitos fundamentais, que constituiu uma nova e

importante agenda nos Estados contemporâneos. A ‘descoberta’ dessa nova fronteira de efetivação

de direitos fundamentais, nomeadamente por grupos ou pessoas integrantes de estratos

historicamente discriminados, minoritários ou incapazes de obter por outros meios a proteção de

seus interesses, converteu o Poder Judiciário em instância de crescente presença no cenário político

(CAMPILONGO, 2002, p. 31).

Os números da litigiosidade no Brasil, expostos anualmente pelo Conselho Nacional de

Justiça, oferecem a dimensão desse fenômeno, expressão de uma “explosão de litigiosidade”

(FARIA, 1989, p. 6). São 30 milhões de novos processos todos os anos, que se somam aos 70

milhões de feitos que se encontram em estoque nos quase cem tribunais brasileiros (CNJ, 2015).

Esse movimento de judicialização da vida, portanto, lançou luzes sobre esse novo ator

político. (Re)significou o papel que até então se entendia estar circunscrito ao Poder Judiciário,

provocando uma série de críticas, positivas e/ou negativas, quanto às fronteiras de sua atuação. É

síntese desse quadro a ideia de “judicialização da política”3, traduzida, no viés negativo, na

afirmação de uma indevida intromissão da jurisdição no terreno reservado à atuação do Poder

Legislativo, enquanto elaborador de normas gerais, e do Executivo, enquanto formulador e

aplicador de políticas públicas.4

3 Sobre o tema da judicialização da política, cf.: KOERNER, INATOMI, BARATTO, 2011. 4 Exemplo dessa crítica é a atual posição do Supremo Tribunal Federal quanto à possibilidade de judicialização de políticas públicas, de forma aditiva, impondo obrigações ao Estado como decorrência de concretização de valores

constitucionais. Veja-se precedente sobre o tema: “REPERCUSSÃO GERAL. RECURSO DO MPE CONTRA

ACÓRDÃO DO TJRS. REFORMA DE SENTENÇA QUE DETERMINAVA A EXECUÇÃO DE OBRAS NA CASA

DO ALBERGADO DE URUGUAIANA. ALEGADA OFENSA AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES

E DESBORDAMENTO DOS LIMITES DA RESERVA DO POSSÍVEL. INOCORRÊNCIA. DECISÃO QUE

CONSIDEROU DIREITOS CONSTITUCIONAIS DE PRESOS MERAS NORMAS PROGRAMÁTICAS.

INADMISSIBILIDADE. PRECEITOS QUE TÊM EFICÁCIA PLENA E APLICABIILIDADE IMEDIATA.

INTERVENÇÃO JUDICIAL QUE SE MOSTRA NECESSÁRIA E ADEQUADA PARA PRESERVAR O VALOR

FUNDAMENTAL DA PESSOA HUMANA. OBSERVÂNCIA, ADEMAIS, DO POSTULADO DA

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Portanto, ainda é atual o debate da separação dos poderes, em que pese a distância de que nos

encontramos dos primeiros momentos da formulação dessa teoria.

Por outro lado, é preciso sublinhar que o Poder Judiciário, na recente história republicana

brasileira, foi o que mais conservou o seu desenho institucional (KOERNER, 1999). O processo

constituinte de 1986-88, malgrado sua indiscutível importância no cenário da redemocratização do

país, não significou uma profunda reconfiguração da arquitetura judiciária, tema que somente

receberia uma atenção mais aguda a partir do final dos anos 1990, com os debates em torno da

Reforma do Poder Judiciário, de que é etapa-síntese a Emenda Constitucional n. 45/2004, que,

dentre outras mudanças, extinguiu os tribunais de alçada e alterou competências do Supremo

Tribunal Federal, em especial para promover maior centralidade na interpretação da Constituição,

nomeadamente pela introdução da súmula vinculante (art. 103-A, CF), uma modalidade de stare

decisis obrigatória e vertical, mas que também vincula todos os demais Poderes da República.5

Para melhor compreender esses movimentos e construir um pensamento crítico quanto às

fronteiras que separam a atuação dos diversos poderes do Estado e o próprio princípio da separação

como dogma constitucional, é importante recorrer ao recurso histórico (COUTINHO, CUNHA,

SILVA, 2015, p. 199; HOLLANDA, 2014, p. 17), com todo o potencial que esse método oferece

para a apreensão da realidade dentro do contexto de avanços e retrocessos próprios das trajetórias

das sociedades.

O presente estudo pretende buscar nos protagonistas das primeiras formulações sobre a

separação dos poderes - em especial em Locke, Montesquieu, Benjamin Constant e em dois dos

autores federalistas, James Madison e Alexander Hamilton – as características da teoria da divisão

dos poderes, privilegiando os desenhos reservados ao Poder Judiciário, como contribuição para a

atual discussão sobre as inter-relações entre os Poderes do Estado.

Ao final, apresenta-se um diagnóstico do caráter dinâmico dessa separação, no sentido de

assentar que não há uma separação absoluta nem modelos rígidos, aspecto que já pode ser

identificado nos primórdios do axioma da separação.

INAFASTABILIDADE DA JURISDIÇÃO. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO PARA MANTER A SENTENÇA

CASSADA PELO TRIBUNAL. I - É lícito ao Judiciário impor à Administração Pública obrigação de fazer, consistente na promoção de medidas ou na execução de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais. II - Supremacia da

dignidade da pessoa humana que legitima a intervenção judicial. III - Sentença reformada que, de forma correta,

buscava assegurar o respeito à integridade física e moral dos detentos, em observância ao art. 5º, XLIX, da Constituição

Federal. IV - Impossibilidade de opor-se à sentença de primeiro grau o argumento da reserva do possível ou princípio

da separação dos poderes. V - Recurso conhecido e provido (STF, RE 592581, Rel. Min. Ricardo Lewandowski,

Tribunal Pleno, julgado em 13/08/2015). 5 Esse movimento mais centralizador foi nitidamente reverberado nas linhas do novo Código de Processo Civil (Lei

Federal n. 13.105/2015), em especial nas diversas normas processuais que implicam vinculação dos Juízos de primeiro

grau às decisões uniformizadoras ou tomadas no julgamento de recursos repetitivos pelos tribunais.

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1. John Locke e sua contribuição para a separação dos poderes do Estado

Conquanto se costume tratar dos fundamentos teóricos da teoria da separação dos poderes a

partir dos referenciais que remontam ao séc. XVII, a origem do debate é bem mais antiga.

Pensadores helênicos, como Platão, Aristóteles e Políbio já cogitavam a “divisão das funções

governamentais” (COUTINHO, CUNHA, SILVA, 2015, p. 201; SOUZA, 2008, p. 5). Essa ideia,

contudo, começa a ser aprofundada e desenvolvida por John Locke (1632-1704), especialmente na

obra Dois Tratados sobre o Governo, no contexto de elaboração teórica que não somente justifique

a existência do Estado, mas também a forma do exercício do poder político.

Locke, assim como fizera Thomas Hobbes6, parte da consideração do homem no estado de

natureza, onde, além de livre, ele “é senhor absoluto de sua própria pessoa e suas próprias posses”

(LOCKE, 1998, p. 494). Logo, é possível perceber a construção do raciocínio de Locke para a

justificação do Estado, que se inicia com uma concepção jusnaturalista da liberdade do homem no

estado de natureza, no qual é senhor absoluto de suas posses. Daí a pergunta: “por que haveria de

renunciar a esse império e submeter-se ao domínio e ao controle de qualquer outro poder?”

(LOCKE, 1998, p. 495). A partir desse ponto, o autor ressalta que o estado de natureza, embora

superior e ínsito à natureza humana é, de outro lado, inseguro e incerto, eis que, conquanto haja

liberdade, há também ameaças e perigos constantes. Nas suas palavras:

“Tais circunstâncias o fazem querer abdicar dessa condição, a qual, conquanto livre, é

repleta de temores e de perigos constantes. E não é sem razão que ele procura e almeja unir-

se em sociedade com outros que já se encontram reunidos ou projetam unir-se para a mútua

conservação de suas vidas, liberdades e bens, aos quais atribuo o termo genérico de

propriedade” (LOCKE, 1998, p. 495).

Assim, a teleologia das sociedades políticas seria, basicamente, a conservação do direito

(natural) de propriedade, o que denota o recorte liberal e burguês de seu pensamento, na medida em

que a construção teórica do Estado visa assegurar, antes de tudo, a segurança dos bens privados e

os respectivos direitos de seus titulares, nomeadamente em face de poderes absolutos.7

6 No Capítulo XIII do Leviatã, Hobbes discorre sobre a condição natural da humanidade. Na condição de natureza, o

homem tenderia à discórdia, seja pela competição, seja pela desconfiança, seja pela glória, pelo que a humanidade

careceria de um poder para deter ou controlar essa natureza e permitir a vida em sociedade, em especial – e essa parece

ser uma preocupação central em todos os pensadores, a partir da sua época – para assegurar a proteção à propriedade.

Nas suas palavras: “os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito. Porque cada um pretende que seu

companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio e, na presença de todos os sinais de desprezo ou

de subestimação, naturalmente se esforça, na medida em que a tal se atreva (o que, entre os que não têm um poder

comum capaz de os submeter a todos, vai suficientemente longe para levá-los a destruir-se uns aos outros), por arrancar

de seus contendores a atribuição de maior valor, causando-lhes dano, e dos outros também, através do exemplo”

(HOBBES, 2016). 7 “Os antecedentes históricos de Locke conduzem ao diagnóstico de que a ideologia presente em sua teoria é, à larga,

proveniente do Liberalismo, com foco no Estado de Direito, haja vista sua máxima recorrente de que, para haver

liberdade, deve existir a lei” (COUTINHO, CUNHA, SILVA, 2015, p. 203).

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Nessa linha, esse autor apresenta três fatores do estado da natureza que justificam a cessão

da liberdade em favor de uma sociedade política: a) ausência de uma lei estabelecida, fixa e

conhecida, recebida e aceita, mediante o consentimento comum; b) a inexistência de um juiz

conhecido e imparcial, como autoridade para solucionar as diferenças de acordo com as leis

estabelecidas; c) a ausência de um poder para apoiar e sustentar a sentença justa e lhe dar a devida

execução.

Nota-se aqui o desenvolvimento de questões seminais para parametrização de garantias

fundamentais que hoje estão presentes em diversas Constituições, como a Constituição Federal de

1988. Primeiro, a idéia de positivação de direitos como paradigma do Estado, mediante um

princípio de legalidade, evitando-se, assim, o arbítrio do governante. Segundo, a afirmação do

princípio do juiz natural, que implica considerar que os litígios entre os indivíduos serão resolvidos

por uma autoridade previamente designada e com os atributos de imparcialidade para formular a

decisão, isto é, não deve ser escolhido ou manter qualquer tipo de interesse com os litigantes.

Terceiro, é fundamental que o Estado ofereça meios para o enforcement da decisão proferida.

A partir desse contexto de renúncia do indivíduo em favor de um governo que suplemente as

carências do estado de natureza, justifica-se a origem do poder e de seu monopólio, porém com

exercício que não pode ser concentrado nas mãos de uma só autoridade política. Concebe, então,

uma forma bipartite de manifestação do poder estatal, com as seguintes ramificações: Poderes

Legislativo e Executivo (LOCKE, 1998, p. 497).

O Poder Legislativo, considerado como supremo, disfrutaria da liberdade de deliberar sobre

tudo que considerasse oportuno, dentro dos limites permitidos pela ‘lei da natureza’. Ao Executivo

é transferido o poder de castigar para a execução da lei. Aqui, o autor destaca que o exercício

desses poderes não pode implicar retrocesso quanto ao que já assegurado ao homem no estado de

natureza, pois “não se pode supor que uma criatura racional mude propositalmente sua condição

para pior” (LOCKE, 1998, p. 499), pelo que o exercício dos poderes do Estado deveria limitar-se ao

bem comum, até mesmo porque o Legislativo também fica sujeito às leis que formula, o que já se

constitui, por si só, um elemento importante para seu autocontrole.

De outro lado, aqui também se delineia o cariz contratualista do pensamento político de

Locke, na medida em que reforça a legitimidade do Legislativo, sustentada pelo “consentimento da

sociedade”, ainda que isso não possa implicar em poder absoluto ou arbitrário, principalmente em

face do ‘direito natural da propriedade’. Por isso, assenta que o exercício desse poder legiferante é

indelegável:

“Uma vez que o Poder Legislativo deriva do povo, por uma concessão ou instituição

positiva e voluntária, não pode ser ele diverso do poder transmitido por tal concessão

positiva, que é apenas o de elaborar as leis e não fazer legisladores, de sorte que não pode

ter o legislativo nenhum poder de transferir sua autoridade de elaborar leis e colocá-la em

mãos de terceiros” (LOCKE, 1998, p. 513) (grifos originais)

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Os riscos, contudo, de descontrole do Legislativo levam Locke a justificar a necessidade de

limitação desse poder supremo, afirmando se constituir demasiada tentação para a fragilidade

humana concentrar, no mesmo poder que elabora as leis, o monopólio de executá-las (LOCKE,

1998, p.514-5). Por isso, defende a existência de um poder permanente8, separado do Legislativo: o

Poder Executivo, a quem deveria ser também atribuído os poderes de trato externo da sociedade

política, nomeadamente o de guerra e paz, dando a esse poder o nome de Poder Federativo. Assim,

o Executivo, além de suas funções de dar cumprimento às leis, também absorveria as funções do

Poder Federativo (LOCKE, 1998, p. 516-7), com o fito também de proteger os indivíduos das

ameaças, desta feita as externas.9

Como vê, na sua concepção da separação poderes, Locke não cogita de um “Poder

Judiciário”, assim como desenvolvido mais adiante por Montesquieu, mas assenta que o governo

deve ter, como pressuposto, não somente a observância às leis, mas também a existência de “juízes

imparciais e probos, a que cabe solucionar as controvérsias segundo tais leis” (LOCKE, 1998, p.

499), o que estampa, como já sublinhado, um pensamento de positivação na aplicação do Direito.

De outro lado, ao defender que essa função de enforcement das leis e de solução dos litígios

fosse encargo do Executivo, isso não arrefece o mérito do seu pensamento quanto à promoção da

autonomia da atividade jurisdicional, uma vez que essa particular função do Estado10

deveria ser

permanente, com magistrados previamente conhecidos, o que implica o combate aos tribunais de

exceção, ou seja, aqueles formados ad hoc, para um julgamento em particular, fonte de históricos

arbítrios.

Ainda que Locke não tenha indicado, de forma expressa, o Poder Judiciário como um ramo do

poder político do Estado, isso não implica considerar como menor sua contribuição, já que, a seu

modo, delineou de forma expressa diversas características hoje tidas como garantias fundamentais

do Estado de Direito e relacionadas com o exercício da jurisdição. Conceber, portanto, a função

judiciária como acoplada ao Poder Executivo não desmerece, assim, a importância de suas

formulações.

8 Essa assertiva do pensamento de John Locke sugere que os corpos legislativos, naquele tempo, fossem instituições

temporárias, com solução de continuidade em suas atividades, bem diferentes, portanto, dos modelos contemporâneos,

que contam com órgãos legislativos permanentes, consentâneos com a complexidade e as demandas do nosso tempo. 9 Sobre a necessidade de se concentrar essas funções (executivas e federativas) numa mesma pessoa, justificou Locke: “Embora, como já disse, os poderes executivo e federativo de toda a sociedade política sejam realmente distintos entre

si, dificilmente podem ser separados e depositados, ao mesmo tempo, nas mãos de pessoas diferentes. Como o exercício

de ambos requer a força da sociedade, é quase impraticável depositar a força do corpo político em mãos diferentes e não

subordinadas, ou que os poderes executivo e federativo sejam depositados em pessoas que podem agir separadamente,

com o que a força do público estaria sob comandos diferentes, o que poderia causar, num momento ou outro, desordem

e ruína” (LOCKE, 1998, p. 517) (grifos originais). 10 Sublinha Eduardo Matias que essa função, reservada à Justiça enquanto aparato do Estado, era considerada como

elemento indissociável da garantia da segurança e da liberdade. Por isso, sua posição de centralidade dentre as missões

do Estado Moderno (MATIAS, 2014, p. 66).

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2. Montesquieu e o modelo tripartite dos Poderes do Estado Moderno

Com Charles-Louis de Secondat, o Barão de Montesquieu (1689-1755), a teoria política da

separação dos poderes adquire uma elaboração mais complexa e inovadora (COUTINHO, CUNHA,

SILVA, 2015, p. 205) e, com isso, também mais visibilidade e prestígio, a ponto de se constituir,

como se verá no pensamento dos autores federalistas, em axioma da ciência política já no último

quarto do séc. XVIII.

Na sua obra de maior relevo sobre o tema, O espírito das leis, Montesquieu, seguindo a

mesma linha de outros pensadores que o antecederam, como John Locke e Jean Bodin, examina,

com ênfase no historicismo, as diferentes formas de governo, análise que lhe servira de baliza para a

construção, mais adiante, de suas teorias sobre as diferentes e separadas funções que os governos

devem exercer.

No Livro Segundo, denominado Das leis que derivam diretamente da natureza do governo,

descreve esse autor três espécies de governo: o republicano, o monárquico e o despótico,

sintetizando a ‘natureza’ de cada um da seguinte forma: a) republicano: o povo ou uma parcela dele

possui o poder soberano11

; b) monarquia: um só governa, mas de acordo com leis fixas e

estabelecidas; c) governo despótico: uma só pessoa governa, mas sem obedecer leis e regras,

impondo sua vontade e caprichos (MONTESQUIEU, 1979, p. 31).

Sobre o governo republicano, Montesquieu procura distinguir a democracia da aristocracia.

No primeiro modelo, o da democracia, o povo como um todo possui o poder soberano, enquanto

que no segundo, o da aristocracia, este poder está nas mãos de uma parte do povo. No que se refere

à democracia, o autor esclarece que o povo governaria mediante a escolha de ministros, mas, no

limite, não estaria em condições de conduzir seus próprios destinos de governo, pelo que seria

necessária uma condução do povo mediante a instituição de um conselho ou um senado

(MONTESQUIEU, 1979, p. 32).

No governo monárquico, o príncipe “é a fonte de todo o poder político e civil”, constituindo

a nobreza um poder intermediário, essencial para o funcionamento da monarquia, até mesmo forma

de se evitar o despotismo. Por isso, afirma: “sem monarca não há nobreza, sem nobreza não há

monarca” (MONTESQUIEU, 1979, p. 35).

No governo despótico, um único homem exerce o poder. Não podendo dividi-lo com outros,

sob penas de fomentar disputas, seria de todo conveniente que constituísse um “vizir”12

, ou, noutras

11 Sobre a ideia de soberania, é possível a influencia do conceito de soberania, como summa potestas, desenvolvido bem

antes, por Jean Bodin, na sua obra Os seus livros da república (BODIN, 2011) 12

“Um vizir (ریزو em persa) era um ministro e conselheiro de um sultão ou rei da antiga Pérsia e, posteriormente, de

um país islâmico. O termo significa "ajudante". A figura do vizir tem sua origem na antiga Pérsia e foi adotada pelo

califato abássida a partir da conquista do Império Sassânida pelos muçulmanos no século VIII. Nesses primeiros tempos

os mais importantes vizires foram os Barmecidas, uma família persa cujos membros foram os principais conselheiros e

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palavras, a uma autoridade constituída pelo príncipe para cuidar dos negócios do governo. De outro

lado, a natural tendência de expansão do império implica maior dificuldade de governo pelo

príncipe, pessoalmente. Nas palavras de Montesquieu: “quanto mais o império cresce, mais o

príncipe está embriagado de prazeres. Assim, nesses Estados, quanto mais súditos o príncipe possui

para governar, menos pensa no governo; quanto mais se avolumam os negócios, menos delibera

sobre eles” (MONTESQUIEU, 1979, p. 37).13

No Livro Terceiro (Dos princípios dos três governos), Montesquieu aprofunda o estudo das

espécies de governo, desta feita sob o ângulo dos seus princípios. Para o autor, as leis da natureza

do governo representam sua estática, ao passo em que os princípios dizem respeito ao seu agir, sua

dinâmica, seu movimento, suas paixões (MONTESQUIEU, 1979, p. 41). As leis deveriam, por isso,

cuidar dessas duas dimensões dos governos.

São os seguintes os princípios, de acordo com a espécie de cada governo: a) democracia: a

virtude, especialmente no cumprimento das leis; b) aristocracia: a moderação, que é baseada na

virtude, mas atua sobre os nobres, que não devem se voltar contra eles próprios (virtude menor),

como que em movimento de conservação; c) monarquia: a política manda fazer as coisas com o

mínimo de virtude possível14

, sendo a lei e o seu cumprimento bastante para suprir as necessidades

do Estado. Por isso, é-lhe suficiente a honra como princípio, porquanto essa, “movimenta todas as

partes do corpo político, fazendo com que cada um caminhe para o bem comum, acreditando ir em

direção dos seus interesses particulares” (MONTESQUIEU, 1979, p. 45); d) no Estado despótico: o

medo15

, pois a virtude é desnecessária e a honra, perigosa. Nessa espécie de governo, exige-se

extrema obediência.

Com a afirmação de que “a corrupção de cada governo começa quase sempre pela dos

princípios”, Montesquieu inicia o Livro Oitavo (Da corrupção dos princípios nos três governos).

Nesse sentido, sublinha que, na democracia, o princípio da virtude se corrompe quando se pretende

elevar a igualdade ao extremo, olvidando-se do respeito que o povo precisa demonstrar em relação

administradores durante o governo dos primeiros califas abássidas. Enquanto o califa era rodeado de pompa e tornava-

se um ser misterioso, era o vizir que cumpria as ordens do soberano, mantendo o monarca distante da execução de

tarefas administrativas. Ao mesmo tempo, o vizir assumia a responsabilidade dos atos de governo e preservava a

reputação do califa ou sultão, que era o governante temporal e espiritual da comunidade” (Fonte:

www.wikipedia.org.br. Acesso em 11.04.2016). 13 Esse aspecto é interessante quando se pensa nas dimensões geográficas do Brasil e nas questões de (des)centralização

do poder que habitam a agenda política desde o Império, como se pode observar das conhecidas divergências entre

Aureliano Tavares Bastos (1997) e Paulino José Soares de Souza, o Visconde de Uruguai (1997). Mesmo na república brasileira atual, a fragilização dos entes da federação e a tendência de hipertrofia da União são aspectos que reforçam

esse problema da concentração de poder. A mesma questão pode ser objeto de reflexão quanto ao Poder Judiciário,

cujas políticas públicas também são formuladas com pretensão de centralização pelo Conselho Nacional de Justiça. 14 Essa assertiva aparenta uma alusão ao pensamento de Maquiavel quanto às peculiares “virtudes” do príncipe, como se

pode observar na seguinte passagem de sua obra-prima, O príncipe: “os homens são tão simplórios e obedientes às

necessidades imediatas que aquele que engana sempre encontrará quem se deixe enganar” (MAQUIAVEL, 2010, p.

106). 15 O texto sugere uma aproximação com uma aborda uma das ideias-chave de Maquiavel, quanto à condição do

governante despótico: “é melhor ser temido do que amado” (MAQUIAVEL, 2010, p. 101).

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àqueles que foram escolhidos para governar (senado, magistrados, etc.), bem como em relação a

certas “magistraturas naturais”, como o marido, os pais (relativamente aos filhos).16

Na

aristocracia, a corrupção do princípio do governo (moderação) sucede quando o poder dos nobres

se torna arbitrário, sem observância das leis. É extrema a corrupção quando os nobres se tornam

hereditários, hipótese em que a aristocracia se converte em oligarquia. No governo despótico, há

uma corrupção original, pois é uma espécie corrompida por natureza (MONTESQUIEU, 1979, p.

115).

É, no entanto, no Livro Décimo Primeiro (Das leis que formam a liberdade política em sua

relação com a Constituição), que Montesquieu começa a expor as suas teses sobre a divisão dos

poderes, pelas quais se tornaria, como já enfatizado, uma referência obrigatória nas ciências

humanas e sociais.

Seu pensamento se estrutura, nessa parte, em torno da ideia de “liberdade”, para ele um

termo plurívoco, isto é, de vários sentidos ou, numa palavra, plurissignificativo. Para Montesquieu,

numa sociedade em que há leis, a liberdade consiste em poder fazer o que se deve querer e em não

ser constrangido a fazer o que não se deve desejar. Isto significa: “o direito de fazer tudo o que as

leis admitem” (MONTESQUIEU, 1979, p. 148).

Neste ponto, o autor afirma que somente nos governos moderados (monarquias) se encontra

a liberdade política, afirmando que esta está ausente nas democracias e na aristocracia.17

Mas,

mesmo nas monarquias, somente há liberdade quando não se abusa do poder. Sucede que “a

experiência eterna mostra que todo o homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde

encontra limites [...] Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das

coisas, o poder freie o poder” (MONTESQUIEU, 1979, p. 148).

A partir dessa premissa, Montesquieu passa a considerar os poderes do Estado, com a

mesma preocupação já apontada por John Locke, qual seja a de que não se concentre em um mesmo

poder as atribuições de legislar, executar e julgar.

Nesse contexto, aponta as três dimensões do poder, como sendo o Legislativo, o Executivo

das coisas que dependem do direito das gentes e do Executivo que dependem do direito civil. O

conceito do poder executivo relacionado ao direito das gentes se assemelha ao que Locke

denominou de Poder Federativo.

O primeiro (Poder Legislativo) se ocupa de fazer as leis. O segundo seria aquele

encarregado de fazer guerra ou celebrar a paz, estabelecer segurança e prevenir invasões (Poder

16 Aqui, Montesquieu demonstra uma ideia de igualdade mais ideal, em estado natural ou de natureza, que carece de

imediata conversão quando se pensa em sociedade, onde o indivíduo não pode mais conservá-la, passando a desfrutar

de uma “igualdade perante as leis” (MONTESQUIEU, 1979, p.114). 17 Essa afirmação, até onde se pode colher no estudo da obra, não se encontra suficientemente esclarecida, a não ser que

se tenha em conta que, nas repúblicas, a exigência da virtude supriria o governo de leis, pelo que os indivíduos

poderiam praticar o que bem entendem.

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Executivo do Estado18

). O terceiro é aquele que pune os crimes ou julga as querelas, o qual

Montesquieu chamou de “Poder de julgar”, estabelecendo, assim, uma profunda inovação no

desenho da teoria da separação dos poderes apontada por Locke, na medida em que procura assentar

que a liberdade não poderia ser assegurada sem um distanciamento da função judiciária das demais

funções do Estado. Vejamos os fundamentos lançados por Montesquieu:

“Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo de magistratura o Poder Legislativo está

reunido ao Poder Executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo

monarca ou o mesmo Senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las

tiranicamente.

Não haverá também liberdade se o Poder de Julgar não estiver separado do Poder

Legislativo e do Executivo. Se estivesse ligado ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida e

a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria o legislador. Se estivesse ligado

ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor” (MONTESQUIEU, 1979, p.

149).

Nesse contexto, afirma esse autor que a liberdade política do cidadão se expressa na

“tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um possui de sua segurança”, de tal

modo que um cidadão não tema o outro. Por isso, a reunião de mais de um poder numa mesma

pessoa retiraria essa liberdade, na medida em que se teme o abuso ou a corrupção do poder, dele se

utilizando de forma tirânica (MONTESQUIEU, 1979, p. 149).

Assim, tal como Locke, Montesquieu defende um Poder Legislativo separado dos demais, e

temporário, diante dos inconvenientes de se manter um corpo de legisladores permanente.

Permanente há de ser o poder Executivo.

O Poder de Julgar, considerado por Montesquieu “terrível entre os homens”, possivelmente

pela natureza da função de julgar iguais, também não deve ser permanente, nem ligado a certa

profissão, devendo o tribunal ser constituído apenas pelo tempo necessário, de modo que se tema “a

magistratura e não os magistrados”19

.

É nesse preciso sentido que Montesquieu vem a afirmar que esse poder é invisível, porquanto

não o se tem constantemente diante dos olhos.

Mais adiante, ainda sobre esse Poder de Julgar, talvez a maior inovação na teoria do poder

em Montesquieu, o autor especifica qual a extensão de suas funções, em ordem a preservar a

liberdade política, pregando a segurança e a previsibilidade nos julgamentos. Nas suas palavras:

“porém, se os tribunais não devem ser fixos, os julgamentos devem sê-lo a tal ponto que nunca mais

sejam do que um texto exato da lei. Se fossem uma opinião particular do juiz, viver-se-ia na

sociedade sem saber precisamente os compromissos que nela são assumidos” (MONTESQUIEU,

1979, p. 150). Nesse caráter nulo e temporário estaria o controle do Poder de Julgar, mas que se

18 De acordo com Eduardo Matias, o termo “Estado” é utilizado pela primeira por Maquiavel, uma vez que os antigos,

passando por Bodin e Hobbes, preferiam a expressão civitas ou commonwealth para designar essa organização sócio-

política (MATIAS, 2014, p. 62). 19 Nota-se aqui que não provém de Montesquieu a ideia de uma magistratura profissional, como ser verá constituir após

a Revolução francesa, em especial a partir do século XIX.

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traduz nos elementos de uma ideologia de neutralidade semântica dos signos integrantes dos textos

normativos, como se fosse possível ao seu intérprete e aplicador tal grau de mecânica lógico-

inferencial. No entanto, esse postulado teórico que se vê em Montesquieu é consentâneo ao

momento político em que seu pensamento foi elaborado. Sob o regime absolutista francês e sua

magistratura (juízes) nobiliárquica (de que, inclusive, chegou a fazer parte o próprio Montesquieu),

estabeleceu-se grande desconfiança quanto à atividade judicante, aspecto que não ficaria de fora na

elaboração de uma teoria de separação assecuratória da liberdade do indivíduo, que é, em

substância, uma teoria da limitação do poder político do Estado.20

Nessas condições de “invisibilidade” (temporalidade de sua manifestação e não-

profissionalização dos juízes, recrutados, quando necessário, do “corpo do povo”, como jurados21

) e

“nulidade” do Poder de Julgar (no sentido da ausência de juízo de valor e, portanto, arbítrio, por

parte do juiz na aplicação das leis) estariam as balizas de seu controle. Na obra, não se colhem

outros mecanismos específicos de limitação do Poder de Julgar, o que não se verá no exame dos

demais Poderes.

Quanto ao Poder Legislativo, Montesquieu sustenta a necessidade de um modelo bicameral.

Uma vez que parte do pressuposto que a monarquia – e sua nobreza – exerce o melhor modelo de

governo, posto que se vale da moderação, defende que os nobres devem constituir um corpo

legislativo, e o povo deve eleger seus representantes. À Câmara dos Nobres, deveria ser assegurada

a faculdade de impedir, em ordem a evitar que a câmara dos representantes do povo pudesse, por

exemplo, exercer a faculdade de instituir impostos. A faculdade de impedir seria o direito de anular

uma resolução tomada por qualquer outro. O legislativo também não precisaria se reunir de forma

permanente, mas também não pode deixar de se reunir periodicamente. (MONTESQUIEU, 1979, p.

151).

O Poder executivo, bem assegurado nas mãos do monarca, seria melhor entregue como

expressão de uma melhor administração. Também há de ser assegurada ao Executivo a faculdade de

impedir, que seria o poder de veto na gramática contemporânea, como forma de evitar o despotismo

do Poder Legislativo. Mais adiante, ainda neste mesmo capítulo, Montesquieu especifica algumas

salvaguardas para os titulares dos poderes, estabelecendo que o governante não pode ser julgado

pelo Legislativo, considerado como “sagrado”22

, para se evitar a tirania do Legislativo. Também o

20 Essa ambiência é bem retratada por Alexandre Dumas, em O Conde de Monte Cristo. Sobre as condicionantes

históricas desse “legalismo” apresentado por Montesquieu e que se converteu em um dos postulados centrais da Escola

da Exegese, cf.: ZAGREBELSKY, 2005, p.41 e 96 e ss. 21 Em uma passagem do Capítulo VI, do mesmo Livro XI, escrito sob a inspiração da Constituição da Inglaterra,

Montesquieu chega a afirmar a possibilidade do acusado recusar os juízes (jurados) de seu julgamento, pelo que aqueles

que remanescessem seria, desse modo, considerado como de sua escolha. De certa forma, esse procedimento, distante

do princípio do juiz natural contemporâneo, ainda reverbera, parcialmente, no modelo brasileiro do tribunal do júri,

destinado ao julgamento de crimes dolosos contra a vida. 22 Esse aspecto é bem delineado na Constituição brasileira de 1824.

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Poder de Julgar não deve exercê-lo sobre o corpo de representantes do Legislativo. Somente os

nobres podem julgar os nobres (MONTESQUIEU, 1979, p. 152).23

Vê-se, assim, a importante contribuição de Montesquieu para o aprimoramento teoria da

separação dos poderes, exatamente porque, ao contrário de Locke, assenta o Poder Judiciário (Poder

de Julgar) como um ramo (branch) separado do Poder Executivo ou Federativo, ainda que com

perfil limitado e sem as prerrogativas de permanência e de profissionalismo, como aparato

burocrático, que virá a adquirir apenas com sua experiência histórica, especialmente na França.

De outro lado, o pensamento de Montesquieu abordou apenas de forma pontual a questão que

se busca privilegiar neste estudo: a inter-relação entre eles os Poderes do Estado. Como visto, em

que pese ter apontado a necessidade de controle recíprocos (como a faculdade de impedir), o

problemas das (des)harmonias entre os branches não mereceu o desenvolvimento à altura do

desafio prático que a experiência política iria mostrar, mais adiante, como sendo o nó górdio da

teoria da divisão, e a que se dedicou Benjamin Constant, com sua proposta de um poder neutro.

3. A contribuição de Benjamin Constant: o Poder Neutro como o “Poder Judiciário” dos

demais Poderes

Segundo Célia Quirino (2005), os textos de Benjamin Constant (1767-1830) deixaram de ser

lidos e traduzidos, em que pese ter sido uma leitura muito difundida ao tempo da Independência do

Brasil, em especial os Princípios da política, texto que foi publicado em jornal no Rio de Janeiro,

em diversos capítulos, em 1822. O abandono de seus textos seria resultado de vários fatores, como a

contradição de seu pensamento ou seu caráter pouco inovador em relação ao de Montesquieu.

Somente após a Segunda Guerra, procurou-se recuperar suas ideias liberais para a (re)construção

das democracias europeias, como soluções para a representação política e organização do governo.

No Brasil, porém, suas ideias foram a fonte para a introdução do poder moderador na Constituição

de 1824. No período de redemocratização, nos anos 1980, as obras de Constant voltaram a despertar

interesse, no esforço de reconstrução do Estado, com viés liberal e democrático, ainda que

incorporando as conquistas da socialdemocracia daquele momento (QUIRINO, 2005, p. X).

Benjamin Constant foi um produtor de ideias sobre a teoria do poder que desenvolveu seu

pensamento ao tempo dos acontecimentos que procura compreender e influenciar. Escrevia,

23 Percebe-se, assim, que a ideia de foro de prerrogativa de função remonta aos tempos dos primeiros formuladores da

Teoria do Poder, como Montesquieu. Porém, isso não significa dizer que se trata de um tema superado em termos de

debate político. A teoria da separação, como teoria dinâmica e historicamente determinada, pode ser percebida no Brasil

contemporâneo, nomeadamente em razão dos fortes questionamentos que o foro por prerrogativa de função – também

chamado de “foro privilegiado” – tem sido duramente questionado, inclusive por membros do próprio Supremo

Tribunal Federal (cf.: “Ministro do STF Luís Roberto Barroso quer fim do foro privilegiado”. Disponível em:

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/05/1774158-ministro-do-stf-luis-roberto-barroso-quer-fim-do-foro-

privilegiado.shtml. Acesso em: 04.6.2016).

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portanto, sob o “império das circunstâncias” (QUIRINO, 2005, p. XXV). Na sua obra Escritos de

Política, Constant apresenta talvez sua maior contribuição para a teoria política, qual seja a defesa

de um quarto Poder, o Poder real ou neutro, primeiramente para sustentar a tese da diferença entre

as funções do monarca e de seus ministros, afirmando que somente os ministros são responsáveis

por seus atos. Para o autor, é fundamental estabelecer essa diferença “entre a autoridade

responsável e a autoridade investida de inviolabilidade”, já que o poder ministerial tem uma

existência separada do poder real, ainda que seja esta a fonte da nomeação dos ministros, o que,

contudo, não implica afirmar a responsabilidade do monarca quanto aos atos dos ministros

nomeados.

Essa diferença, de acordo com o autor, constitui a “chave de toda a organização política”24

.

Os poderes dos ministros seriam ativos, enquanto o do monarca, neutro.

De outro lado, os poderes (Executivo, Legislativo – em duas câmaras, uma hereditária e

outra eleita - e Judiciário) deveriam funcionar como engrenagens, mediante cooperação. Nos

eventuais choques e desajustes, o poder neutro funcionaria para repô-los no lugar. A figura do chefe

de Estado, neutro, sem interesse no desequilíbrio, justificaria a monarquia constitucional. O rei seria

superior às diversidades de opiniões, interessa na manutenção da ordem e na conservação das

instituições. Por isso, “um monarca hereditário pode e deve ser irresponsável; é um ser à parte no

topo do edifício [político]” (CONSTANT, 2005, p. 24).25

Forte nessa convicção sobre a necessidade de uma instância política que funcionasse como

“árbitro” entre os demais poderes, um “poder judiciário dos demais poderes” (QUIRINO, 2005, p.

XXVI), assenta-se a construção teórica do Poder real ou neutro, cujas características recomendavam

que o seu detentor, o monarca, não exercesse nenhuma das funções efetivas, tampouco a do Poder

Executivo.

A inspiração do modelo apresentado por Constant vem do sistema constitucional inglês, onde

a monarquia funciona como uma ação de temperança, inclusive em questões judiciais, exercendo o

poder de agraciar, ainda que se declare a independência dos poderes.

Sobressai-se, portanto, no pensamento de Constant uma preocupação, superveniente às

concepções de separação do poder político em Locke e Montesquieu, e que diz respeito ao

funcionamento do sistema, à sua desarmonia, seus atritos, sua dinâmica. Como estabelecer soluções

para as possíveis desavenças entre os protagonistas dos vários ramos do poder? Nesse sentido,

24 Essa frase, literalmente, aparece na Constituição de 1824, no seu art. 98, mas em outro contexto, para afirmar que: “O

Poder Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente ao Imperador, como Chefe

Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência,

equilíbrio, e harmonia dos mais Poderes Políticos”. Vê-se, assim, que a expressão de Constant foi tomada para afirmar

um destaque ao poder moderador, quando, na origem, a frase foi tomada para estabelecer apenas os fundamentos da

irresponsabilidade do monarca, disposta no art. 99 da mesma Carta Imperial. 25 Observe-se a redação do art. 99 da Constituição Imperial brasileira de 1824: “A Pessoa do Imperador é inviolável, e

Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma”.

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mostra-se importante a discussão apresentada por Constant, em especial no contexto das

monarquias européias, com repercussão em outros lugares, como no Brasil imperial. Os norte-

americanos, como se verá na seção seguinte, tomaram outro caminho para o enfrentamento da

questão, mas isso mostra, desde logo, a complexidade do problema e a impossibilidade de se pensar

em soluções homogêneas.

No Brasil, as ideias de Benjamin Constant ofereceram lastro teórico para o desenho

institucional apresentado pela Constituição de 1824, que incorporou o modelo de um quarto poder,

denominado de Poder Moderador, como mecanismo de suposta absorção de atritos entre os poderes

(FAORO, 2012, p. 332), de exclusiva titularidade do Imperador, declarado constitucionalmente

como irresponsável.

Muitas foram as críticas lançadas a essa arquitetura do poder. Tobias Barreto, por exemplo,

lançou severas objeções ao Poder Moderador, em especial pelas expectativas de superioridade

moral que se esperava do monarca para a virtude do modelo:

“Não duvido que sejam sinceros os publicistas brasileiros em perscrutar os que eles dão

como natureza e fundamentos racionais do poder moderador; todavia, não deixam de levar

em seus escritos alguma coisa de fútil e mesquinho, com que terá de divertir-se a geração

futura [...].

Há, no fundo das teorias correntes, relativas ao supremo poder do Estado, um sedimento de

ortodoxia, uma dose de fé católica, nos milagres da Constituição e na superioridade moral

da realeza. A crer-se no que ensinam até os mais adiantados, o príncipe brasileiro é um

penhor inestimável da proteção divina, que se exerce claramente sobre o caminhar deste

império (BARRETO, 2000, p. 375-6).

No tocante ao Poder Judiciário, as discussões propostas por Benjamin Constant já

assimilavam sua consideração como ramo separado dos demais, na linha dos seus predecessores. A

questão que se coloca, tendo, por exemplo, a experiência brasileira como pano de fundo, é a

condição de independência do funcionamento desse ramo, na convivência dinâmica com os demais

ramos, inclusive com o Poder neutro ou Moderador.

Na Constituição de 1824, cabia ao Imperador, no exercício de suas funções, nomear e

suspender os magistrados de suas funções (arts. 102, inciso III e 101, § 7º, respectivamente). Para

Pimenta Bueno, comentador dessa Constituição imperial, o Poder Judicial é independente, mas isso

não implicava dizer que não era preciso ser “detido em seus abusos”. E “a ninguém pode com mais

propriedade competir essa atribuição do que ao Poder Moderador” (BUENO, 1958, p. 209).

No entanto, ao atuar esse “Poder régio ou real” para muito além das zonas de conflitos entre

os três poderes, supostamente harmônicos e independentes entre si, a experiência brasileira parece

ter em muito transbordado à teoria de Constant, que o concebeu como um poder neutro, e não um

poder ativo. Daí a observação de João Camillo de Oliveira Torres, lembrando uma máxima

atribuída ao Visconde de Itaboraí: no Brasil, “o rei reina, governa e administra” (TORRES, 1964, p.

89).

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Essa aplicação da teoria de Constant, marcadamente distante da ideia de um poder neutro,

mostra que a solução do Poder Moderador como balance ou ponto de equilíbrio ao exercício

dinâmico dos demais ramos do poder, pelo menos na experiência brasileira, não se mostrou capaz

de se sustentar ao longo do tempo.

4. O experimentalismo constitucional norte-americano e as contribuições dos federalist papers

para a afirmação do Poder Judiciário como guardião da Constituição

A rica e complexa experiência do constitucionalismo norte-americano será aqui abordada,

para os fins deste trabalho, por meio do exame de alguns dos autores dos denominados federalist

papers, ou artigos federalistas, percurso que se mostra suficiente para oferecer um diagnóstico de

como a teoria da separação dos poderes foi aplicada na organização política dos Estados Unidos da

América, notadamente nos seus primeiros momentos após o movimento de Independência.

Nessa trilha, mostra-se importante apresentar um breve cenário em que essas ideias foram

lançadas, como forma de compreender os propósitos e as condicionantes histórias dessas

importantes colaborações para a teoria política e constitucional.

4.1. O contexto histórico dos pensadores federalistas

Os artigos ou textos federalistas foram escritos e publicados em um período muito

conturbado e, ao mesmo tempo, muito importante da história dos Estados Unidos da América

(EUA), mais precisamente entre a elaboração do texto da Constituição americana, no Congresso da

Filadélfia, de 1787, e a sua progressiva ratificação pelos Estados (antigas colônias britânicas), como

determinava o art. 7º do texto aprovado26.

A Constituição dos EUA passou a viger na primeira quarta-feira de março de 1789 (04 de

março), após a ratificação do seu texto por 11 Estados, dentre os quais o Estado de Nova York, cuja

cidade principal (New York City) sediou o primeiro Congresso na mesma data, quando foi eleito

George Washington o 1º Presidente norte-americano.

Alexander Hamilton era um dos três delegados do Estado de Nova York. Os outros dois

(Robert Yates e John Lansing) eram partidários da defesa dos “direitos dos Estados” e, quando se

deram conta que a tendência era a consolidação da proposta de um governo central, abandonaram a

Convenção, em julho de 1878. Hamilton era um “fervoroso adepto da causa centralizadora

nacional” (WRIGHT, 1984, p. 11). Porém, sozinho, não poderia votar, porque cada Estado só tinha

26 Artigo 7º da Constituição dos EUA: “A ratificação, por parte das convenções de nove Estados, será suficiente para a

adoção desta Constituição nos Estados que a tiverem ratificado”.

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direito a um voto, correspondente à delegação. Ainda assim, mesmo sem ter participado,

efetivamente, das deliberações finais, e não concordando com todo o projeto, conseguiu especial

permissão para subscrever o texto que foi encaminhado ao Congresso da Confederação27.

Sucede que o mecanismo de ratificação da nova Constituição não estava de acordo com as

Cláusulas da Confederação, um dos primeiros documentos fundadores dos EUA, aprovado em

1777, e que estabelecia um regime de emendas ao seu texto, exigindo, inclusive, manifestação

unânime pelos Estados para a sua reforma, e não um procedimento para a elaboração de uma nova

Constituição. Portanto, todo o movimento em torno da elaboração do novo texto sofreu

questionamentos, dada a sua apontada “extralegalidade”. Nada obstante, o procedimento indicado

pela Convenção da Filadélfia implicou o primeiro referendo nacional dos EUA (WRIGHT, 1984, p.

12).

É nesse contexto que tem lugar um dos primeiros grandes debates políticos dos EUA,

precisamente em torno da ratificação do projeto de Constituição pelos Estados. E é nesse momento

que são publicados os artigos federalistas, mais precisamente entre 27 de outubro de 1787 e 4 de

abril de 1788, em jornais de Nova York, justamente com o propósito de assegurar a ratificação da

Constituição pelos Estados, em especial pelo Estado de Nova York28, inicialmente refratário à

proposta, a quem, inclusive, eram dirigidos expressamente os artigos publicados. O primeiro artigo

foi publicado no Independent Journal, em 1787, quando ainda nenhuma ratificação havia sido feita.

O objetivo dos artigos, como aponta Benjamin Wright (1984, p. 20), “era convencer os

relutantes e os céticos de que a Constituição proposta representava um grande progresso em

relação às Cláusulas da Confederação”.

E o debate envolvia até mesmo as ideias de Montesquieu para a forma republicana de

governo, a qual, de acordo com o pensador francês, era a mais apropriada para territórios menores,

o que sugeria, segundo os opositores do projeto, a inconveniência de um poder central republicano,

valorizando-se, assim, os Estados.29 No entanto, suas ideias sobre a separação de poderes teve

grande influência nos debates da época.

27 “O Congresso da Confederação ou Congresso Conjunto dos Estados Unidos foi um governo dos Estados Unidos da

América que decorreu de 1° de março de 1781 até o governo sob a Constituição se tornar operacional em 4 de março de

1789. Esta instituição, que reunia os delegados dos parlamentos dos Estados, foi a sucessora direta do Segundo

Congresso Continental. Foi estabelecida após a derrota inglesa na Batalha de Yorktown (1781), que abriu caminho às últimas fases da Revolução Americana. Os membros do Segundo Congresso Continental foram transferidos

automaticamente para o Congresso da Confederação. No total houve 10 sessões com duração média de 6 meses cada,

entre 1781 e 1789. As reuniões decorriam em várias cidades das Treze Colônias, como Filadélfia, Nova Iorque, ou

Annapolis” (cf.: https://pt.wikipedia.org. Acesso em 19.4.2016). 28 O Estado de Nova York somente ratificou a Constituição em 26 de julho de 1788, mediante apertada votação (30 a

27, dos delegados eleitos para a Convenção de Ratificação), e, mesmo assim, sob uma formal recomendação de adoção

de uma declaração de direitos (Bill of Rigths), como uma Emenda (cf. US. Senate. The Constitution of the United States

of America: analysis and interpretation. Washington, DC, 2014, p. XXIII). 29 De acordo com Wright (1984, p. 15), essa era a posição do então Governador de Nova York.

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Os artigos, redigidos por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, foram publicados

sob o pseudônimo coletivo de “Publius”30. A parte publicada foi reunida num primeiro volume, ao

que se seguiu uma segunda compilação com os textos até então não divulgados, todos sob o título

de “O federalista”, o que desagradou os defensores da descentralização, que atribuíam a eles essa

designação, na medida em que defendiam maiores poderes aos Estados federados.

É atribuído a Hamilton o planejamento da publicação e o convite a Madison e a Jay para se

juntar ao esforço de publicação. O plano geral incluía uma análise dos perigos dos desacordos e

vantagens de uma união mais forte, a fraqueza das Cláusulas da Confederação, a natureza do

governo proposto, seus poderes, suas relações com os Estados e as salvaguardas contra o uso

abusivo do poder.

Não é possível aquilatar a dimensão do poder de influência que os artigos federalistas

tiveram no processo de ratificação da Constituição. No entanto, é possível reconhecer a qualidade

do debate e a herança desses textos para a ciência política, em especial para a compreensão da

formação da organização política dos EUA e a aplicação da teoria (dinâmica) da divisão dos

poderes, bem como para o próprio constitucionalismo, se considerarmos que muitos países, como o

Brasil, adotaram diversos mecanismos político-constitucional em decorrência da experiência norte-

americana, como se vê na Constituição brasileira de 1891.

4.2. A defesa de uma organização política central: a União e seus poderes

No Capítulo 10 de O Federalista (O tamanho e as diversidades da União como um obstáculo

às facções), James Madison faz uma defesa da necessidade da instituição de um governo central (a

União), destacando a vantagem que isso traria no controle e no combate às facções31, causa de muita

instabilidade nos governos e ameaças a direitos privados.

Por facção, o autor entende “um grupo de cidadãos, representando quer a maioria quer a

minoria do conjunto, unidos e agindo sob um impulso comum de sentimentos ou de interesses

contrários aos direitos dos outros cidadãos ou aos interesses permanentes e coletivos da

comunidade” (MADISON, 1984, p. 148).

Para o enfrentamento do problema das facções, haveria dois processos: a) a remoção de suas

causas; e b) o controle de seus efeitos.

30 Descreve Wright (1984, p. 14) que essa estratégia era comum à época. O próprio governador de Nova York, George

Clinton, serviu-se dela para publicar artigos contrários à Convenção Federal, sob o pseudônimo de Catão, também

inspirado em personalidades da República Romana. 31

Aqui, Madison está possivelmente se utilizando da designação normalmente tomada para se referir às facções

“lealistas”, isto é, aos grupos ainda leais à Coroa Britânica, como ficaram assim conhecidos no período da

independência dos EUA, algo em torno de 15% a 20% da população das Colônias (cf.: https://pt.wikipedia.org. Acesso

em 19.4.2016).

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A remoção das causas das facções comportaria também dois processos: a) a destruição da

liberdade, essencial a sua existência; e b) fazendo com que todos tivessem as mesmas opiniões,

sentimentos e interesses. Sustenta o autor que ambos os processos são impraticáveis. Não se pode

retirar a liberdade, como também não se pode eliminar a diferença de aptidões e, por conseguinte,

de opiniões e interesses. Logo, “as causas latentes das facções estão, assim, semeadas na natureza

do homem”. O direito à propriedade, dentre outras fontes de interesse e de conflitos, implica

choques que precisam ser coordenados, mas não por aqueles diretamente envolvidos, já que não

teriam a necessária imparcialidade, já que “ninguém tem o direito de ser juiz em causa própria”

(MADISON, 1984, p. 149).

Conclui, então, Madison que essa “coordenação” não pode ser confiada a “estadistas

esclarecidos”, mesmo porque nem sempre são eles que “estarão no leme”. Além disso, há questões

indiretas e remotas que devem ser levados em conta. Assim, não sendo possível remover as causas

das facções, é preciso lhes controlar os efeitos. O princípio republicano da maioria permite derrotar

os projetos inconvenientes oriundos de uma minoria, segundo a Constituição. Se uma facção

constitui maioria, o governo popular a “habilita a sacrificar à paixão pelo poder ou a seus interesses

o bem público, como o direito dos outros cidadãos” (MADISON, 1984, p. 150).

Esse processo somente poderia ser atingido por dois meios: ou se evita a ocorrência das

mesmas paixões ou interesses pela maioria; ou, coexistindo essas paixões e interesses, seria preciso

incapacitá-la, quanto ao número e possibilidade de executar esquemas de opressão (MADISON,

1984, p. 151). Não há, assim, um controle adequado, nomeadamente numa democracia pura

(governo direto pelos cidadãos), potencial palco de distúrbios, e incapaz de garantir segurança

pessoal e à propriedade.

Na república (governo de representação), tem-se uma perspectiva diferente, e de cura, pelas

seguintes razões: a) na república, o governo é delegado a um pequeno número de cidadãos, o que

lhes permite aperfeiçoar e alargar os pontos de vista da população, discernindo os verdadeiros

interesses do país, e “cujo patriotismo e amor à justiça dificilmente serão sacrificados por

considerações temporárias e parciais”; b) as repúblicas grandes32 são mais adequadas para

assegurar o bem-estar público, uma vez que: i) devendo ser os representantes em número

proporcional aos dos constituintes, as chances de acerto nas escolhas são maiores; ii) como a

escolha, nessa espécie de república, recai sobre um número maior de cidadãos, é muito mais viável

que essas escolhas recaiam sobre pessoas de personalidade mais firmes e determinadas

(MADISON, 1984, p. 152).

32 Neste ponto, o texto parece intencionalmente dirigido aos artigos publicados pelo Governador de Nova York, o qual,

citando Montesquieu, defendeu serem impraticáveis governos sob territórios tão vastos, em clara alusão à posição

descentralizadora que combatia a ratificação da Constituição Norte-Americana.

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Defende o autor que o ideal, contudo, seria buscar um meio-termo nas escolhas, de modo a

assegurar que o escolhido mantivesse uma eqüidistância dos interesses locais, sem perder de vista

os interesses gerais na nação.

De outro lado, repúblicas dificultam a opressão das facções, mais provável em sociedades

menores, na medida em que é improvável em grandes sociedades a opressão mediante a defesa de

restritos interesses (MADISON, 1984, p. 153).

Nessa linha, tanto a república se mostra uma forma de governo melhor que uma democracia

(pura), como as grandes repúblicas são melhores do que as pequenas no controle das facções; e,

portanto, a União desfruta de uma condição melhor que a dos Estados. A maior variedade de

partidos oferece maior segurança contra a opressão.

Assim, conclui o autor: “na extensão e na estrutura da União dispomos de um remédio

republicano para as doenças mais incidentes em um governo republicano” (MADISON, 1984, p.

154), na defesa da posição dos federalistas.

4.3. Sobre a separação dos Poderes

James Madison também assina o Capítulo 47 da obra, dedicada à Separação dos Poderes.

Nesta parte, Madison aborda as objeções feitas ao texto do projeto da Constituição dos EUA,

nomeadamente no que se refere à separação dos poderes. Essas objeções insistiam na consideração

de que o projeto violava a “máxima da política”, segundo a qual os ramos “legislativo, executivo e

judiciário devem ser separados e distintos”, apresentando setores do governo misturados,

comprometendo a “simetria e a beleza da forma” (MADISON, 1984, p. 393).

Madison inicia o enfrentamento da objeção manifestando sua inteira concordância com a

tese da separação, assentando que a “a acumulação de todos os poderes – Executivo, Legislativo e

Judiciário – nas mãos, quer de um, de poucos ou de muitos cidadãos, por hereditariedade,

autonomeação ou eleição, pode com justiça ser considerada como caracterizando a tirania”

(MADISON, 1984, p. 393).

Afirma, contudo, que a crítica é improcedente. Para demonstrar essa afirmação, decide o

autor revisitar a ideia de que “a preservação da liberdade” implica que os três grandes ramos do

poder sejam separados, tendo como referencial teórico o “oráculo” Montesquieu (MADISON, 1984,

p. 394), a quem atribui, senão a autoria desse preceito da política, seguramente a sua grande

difusão.

Nesse propósito, Madison analisa a Constituição da Inglaterra, fonte de estudo de

Montesquieu, para, de pronto, afirmar que ali os poderes não são efetivamente separados uns dos

outros, como espelham os seguintes aspectos: a) o magistrado executivo é parte integrante da

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autoridade legislativa (seguramente em razão do parlamentarismo), que tem a prerrogativa de

celebrar tratados, por exemplo, com força legislativa; b) cabe-lhe, igualmente, nomear, remover e

convocar os membros do Judiciário, quando achar convenientes; c) o Legislativo constitui-se no

conselho constitucional para o executivo, exerce o poder judicial em caso de impeachment e é

suprema instância apelatória nos demais casos (judiciais); d) os juízes permanecem vinculados ao

Legislativo, embora sem direito a voto.

Diante disso, aponta que a separação concebida em Montesquieu não implica considerar a

inexistência de “controle mútuo dos respectivos atos” (MADISON, 1984, p. 395).

Logo, a conclusão a que se chega é a de que os princípios fundamentais de uma Constituição

livre estarão subvertidos quanto todo o poder de um dos ramos é concentrado em outro poder.

Assim, as interações interpoderes não constituem violação à liberdade, na medida em que um poder

não incorpora em si todo aquele poder inerente ao outro, pelo que estaria o governo imune à

subversão e à tirania.

Uma separação absoluta, afirma Madison, também não se verifica nas constituições de

diferentes Estados (norte-americanos), como demonstra a análise das Constituições de New

Hampshire, Massachussets, Nova York, New Jersey, Pensilvânia, Delaware, Maryland, Virgínia,

Carolina do Norte e Geórgia.

O Quadro a seguir, elaborado a partir do exame individualizado que Madison faz de cada uma

das Constituições desses Estados, expressa os diversos modelos adotados quanto aos pontos de

contato entre os ramos (branches) do poder político:

Quadro 1

Análise da separação dos Poderes nas Constituições dos Estados Norte-Americanos

Estado Situação da interrelação entre os Poderes

New Hampshire Senado é corte judicial para julgamento de impedimentos; o chefe do Poder Executivo é

também presidente do Senado, com direito a voto de qualidade; o Legislativo escolhe o

chefe do Executivo, e seu conselho é formado por membros do Legislativo; os membros

do Poder Judiciário são nomeados pelo Poder Executivo.

Massachussets O Executivo tem direito de veto no Legislativo; o Senado é corte judicial para os

impedimentos dos membros do Executivo e do Judiciário; os membros do Judiciário são

nomeados e removidos pelo Executivo, ouvidas as duas Casas do Legislativo;

funcionários são nomeados também pelo Legislativo.

Nova York O tribunal para julgar impedimentos é formado por membros do Legislativo e do

Judiciário.

New Jersey O governador é nomeado pelo Legislativo, cujo chanceler é um membro da Suprema

Corte de Apelação. Os membros do Judiciário são nomeados pelo Legislativo e removíveis por decisão de uma das Casas.

Pensilvânia O chefe do Executivo é nomeado por um colégio de maioria oriunda do Legislativo. Este,

com apoio de um conselho do Executivo, nomeia os membros do Judiciário, bem com o

tribunal para os impedimentos. Os juízes de paz e os da Suprema Corte são removíveis

pelo Legislativo, a quem cabe o poder de indultar.

Delaware O chefe do Executivo é eleito pelo Legislativo, cujos presidentes (das duas Casas) são o

vice-presidente do Executivo. O chefe do Executivo e outros seis membros formam a

Suprema Corte de Apelação, cabendo-lhes, junto com o Legislativo, a nomeação dos

demais juízes. Os principais funcionários do Executivo são nomeados pelo Legislativo.

Maryland Os magistrados executivos são nomeados pelo Legislativo e os membros do Poder

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Judiciário pelo Executivo.

Virgínia Juízes distritais poder ser eleitos para as Casas da Assembleia; o chefe do Executivo e seu

conselho são eleitos pelo Legislativo, assim como os membros do Poder Judiciário.

Carolina do Norte O Legislativo nomeia o chefe do Executivo, principais funcionários e membros do

Judiciário.

Carolina do Sul O chefe do Executivo e os membros do Judiciário são eleitos pelo Legislativo, além de

outras autoridades civis e militares.

Geórgia Os cargos no Executivo são preenchidos pelo Legislativo, que também nomeia os Juízes

de Paz. Fonte: MADISON, 1984. Elaboração do autor.

Conclui Madison, afirmando que essa exposição comprova que os três poderes não são

tradicionalmente e totalmente separados e distintos, ainda que reconheça que, em alguns casos, o

princípio fundamental de separação foi violado, por excessiva mistura ou por excessiva

concentração. Porém, nenhum modelo ou exemplo pode assegurar, “na prática, a separação

delineada no papel”. Ainda assim, a exposição do tema seria suficiente a demonstrar a

impertinência da acusação de que o projeto da Constituição violara a máxima do governo livre

(MADISON, 1984, p. 399).

No capítulo seguinte da obra (Capítulo 48), Madison prossegue a análise do tema, reiterando

que o aforismo político da separação dos poderes não implica total desconexão entre os ramos

Legislativo, Executivo e Judiciário. Mais do que isso, afirma Madison que se não houver um

entrelaçamento entre esses Poderes, de tal modo que cada um possa exercer um controle

constitucional sobre os outros, um “governo livre jamais poder ser devidamente mantido na prática”

(MADISON, 1984, p. 401).

Assim, nenhum ramo deve ter o poder dominante sobre o outro, nem direta e integralmente

exercido pelo outro. No entanto, não se pode negar, afirma o autor, sob clara influência de

Montesquieu, “que o poder é usurpador, e precisa ser eficazmente contido, a fim de que não

ultrapasse os limites que lhe foram fixados” (MADISON, 1984, p. 401).

Nesse contexto, ressalta Madison que o problema colocado – e agora mais importante – não

é definir a tarefa de cada ramo do poder (branch), mas sim dotar cada um dos anteparos necessários

para evitar as invasões por parte dos outros ramos, mais conhecidos como o mecanismo do “check

and balances” (freios e contrapesos).33

Para Madison, essa questão do controle recíproco entre os ramos do poder não decorre de

pura especulação teórica, mas sim da experiência, que aponta a tendência expansionista do Poder

Legislativo sobre os demais ramos, então considerados como ‘mais fracos’ (Executivo e

33 Nesse sentido, por exemplo, podem-se fundamentar, na Teoria do Poder, as garantias institucionais do Poder

Judiciário (independência externa), tais como a autonomia administrativa, financeira e orçamentária, de que tratam os

artigos 96 a 99 da Constituição Federal de 1988.

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Judiciário).34

De acordo com o seu pensamento, o desenho constitucional dos Estados americanos

subestimaram as ameaças à liberdade decorrentes das “usurpações legislativas”, as quais,

concentrando poderes nas mesmas mãos, podem dar margem à tirania. A rigor, vê-se do texto,

nenhum dos ramos do Poder pode absorver numerosas e abrangentes prerrogativas. No caso do

Legislativo, o risco é ainda maior, por ser o “mais abrangente e o menos suscetível de limitação

precisa” (MADISON, 2984, p. 402)35

, ao contrário do Executivo, que tem estrutura e campo de

atuação mais estreitos, e do Judiciário, com limites ainda mais definidos.36

Forte no método de argumentação a partir de fontes empíricas, Madison recorre à

experiência constitucional norte-americana para buscar “demonstrar” suas razões, em especial nos

casos da Virgínia e da Pensilvânia. Da Virgínia, colhe as impressões de Thomas Jefferson sobre seu

governo, que afirmara que todos os Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), provêm do órgão

legislativo (MADISON, 1984, p.403), como se não fosse possível um ‘despotismo eletivo’, como

sucedera na República de Veneza37

. Para Madison, esse modelo não era aquele pelo qual ele e

muitos lutaram, baseado no princípio da liberdade. Por isso, o governo da Virgínia padecia desse

defeito, ao não eliminar a dependência do Executivo e Judiciário frente ao Legislativo, inclusive na

permanência e prorrogação dos mandatos.

No caso da Pensilvânia, a atuação do Conselho de Censores (1783-84), instituído para

averiguar o cumprimento da Constituição pelos poderes do Estado, identificou a desconformidade

de diversos procedimentos do Legislativo, como a aprovação de leis sem a devida publicidade, bem

como a ausência de julgamentos pelo júri, como determinava a Constituição. Além disso, foram

usurpados poderes do Executivo, bem como garantias do Judiciário.38

Também na Pensilvânia, foram identificadas violações por parte do Executivo, mas em

menor extensão e gravidade. Conclui o autor afirmando que a mera demarcação, “no papel”, dos

limites constitucionais dos diferentes ramos do poder político “não constitui barreira suficiente

contra as violações que dão margem a uma concentração abusiva de todos os poderes do governo

nas mesmas mãos” (MADISON, 1984, p.405).

34 Nota-se aqui um diagnóstico contemporâneo da época, delineada por Gustavo Zagrebelsky (2005) como a do Estado

Legislativo, dada a proeminência e importância dos Parlamentos no desenho dinâmico dos Estados burgueses do século

XVIII e XIX. 35 O texto se refere à condição especial do Legislativo de ser dono do “bolso do povo” (poder de taxação ou de impor

tributos), bem como ter a prerrogativa de dispor sobre a remuneração de funcionários públicos, inclusive os lotados em

outros ramos, criando a dependência por parte destes àquele. 36 No caso do Judiciário, talvez seja possível considerar o princípio da inércia, que governa sua atuação, um dos mais

importantes limites definidos pelo constitucionalismo moderno. 37 O texto seguramente se refere ao Conselho Maior (Maggior Consiglio) e outros conselhos (Quarantia, Signoria e

Conselho dos Dez), formados por membros da aristocracia da Sereníssima República de Veneza, com o objetivo de

reduzir os poderes do Dodge. Esses órgãos colegiados desfrutaram, em épocas diferentes, de grande poder (cf.:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Rep%C3%BAblica_de_Veneza#Governo. Acesso em 21.4.2016). 38 No tocante ao Judiciário, o texto menciona: “Os honorários dos juízes – que a Constituição declara expressamente

que sejam fixos – têm ocasionalmente variado, e questões do âmbito do Judiciário freqüentemente são transferidas para

o conhecimento e decisão do Legislativo” (MADISON, 1984, p. 405).

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Percebe-se, assim, que o método fenomênico adotado por Madison ampliou

significativamente a perspectiva do debate em torno da teoria da separação. Diferentemente de

Benjamin Constant, que enfrentou o problema dos possíveis atritos entre os ramos do poder com a

sugestão de um quarto ramo - o poder neutro -, a análise de Madison parte da experiência inglesa e,

principalmente, da experiência constitucional dos Estados federados para justificar que a separação

dos poderes não implica isolamento, até mesmo porque o princípio da preservação da liberdade,

buscado pela fragmentação do poder político, também não se concretizaria com a ausência de

controle dos poderes.

É nesse sentido que a contribuição dos autores federalistas tem recebido tanto destaque no

debate teórico sobre os fundamentos da separação ou divisão dos poderes, como se vê na seguinte

observação de Camila Penna:

“Sobre este tema cabe destacar, primeiramente, que em nenhum dos três autores – Locke,

Rousseau e Montesquieu – a divisão dos poderes é tratada de forma clara ou recebe um

tratamento mais sistemático. As considerações desses autores sobre o tema são, na maioria

das vezes, ambíguas e pouco trabalhadas. Portanto, a divisão de poderes adotada na

Constituição americana e defendida pelos federalistas representa uma inovação tanto em relação às proposições teóricas quanto em relação aos arranjos institucionais existentes até

então” (PENNA, 2011, p. 74).

Por isso, a solução norte-americana, com as variações observadas nos diversos Estados-

federados, constituiu-se em torno do aprofundamento das interrelações entre os poderes, cada um

exercendo sobre o outro alguma medida de influência, mediante atribuições constitucionalmente

assentadas, até mesmo porque o republicanismo, como forma de governo adotada após a

Independência dos Estados Unidos, não permitiria absorver uma solução que passasse por um poder

régio com pretensão de moderar os conflitos interpoderes.

4.4. O Poder Judiciário como poder ativo, permanente e guardião da Constituição

É possível afirmar, no contraste de pensamentos apresentado neste trabalho, que o tratamento

dado ao Poder Judiciário nos textos federalistas é inovador e bem dissonante das considerações

feitas pelos outros autores estudados. Como já referido, o Judiciário era pouco considerado por

Montesquieu, que o tinha, em relação aos demais, como algo “perto do nada” (PENNA, 2011,

p.76).

Coube a Alexander Hamilton assinar um capítulo inteiramente dedicado ao exame do Poder

Judiciário e de suas funções. Trata-se do Capítulo 78 (Os juízes como guardiões da Constituição),

no qual esse autor defende o modelo proposto no texto constitucional (que veio a ser ratificado)

para o Poder Judiciário, reiterando a necessidade e utilidade de uma judicatura federal, lacuna que

seria um dos principais defeitos do desenho da Confederação de então.

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Ao dispor sobre o problema, portanto, da organização e competência do Poder Judiciário,

Hamilton destaca as seguintes linhas principais: a) quanto ao processo de nomeação dos juízes,

reitera a defesa do modelo discutido em outros capítulos (artigos)39

, nos quais assenta-se a

competência do Presidente, com a participação ativa do Senado; b) quanto ao tempo de

permanência dos juízes nos respectivos cargos, devem levados em conta o exercício das funções, as

remunerações e medidas para assegura-lhes independência. Pela proposta, a permanência dos juízes

no cargo é assegurar “enquanto bem se conduzirem” (‘during good behaviour’)40

, o que se constitui

importante meio para assegurar a aplicação constante, correta e imparcial das leis, pois é obstáculo

à usurpações e opressões pelo Legislativo (HAMILTON, 1984, p. 575-76).41

Para Hamilton, análise dos diferentes ramos permite considerar que o Judiciário é o menos

perigoso (e o mais fraco), na medida em que não detém a espada (Executivo), tampouco o poder

sobre o bolso e regulação dos direitos e deveres dos cidadãos (Legislativo). Depende até do

Executivo para o desempenho de suas funções.42

Por isso, argumenta que a integral independência das cortes de justiça é particularmente

essencial em uma Constituição limitada, isto é, que contenha restrições específicas à autoridade

administrativa, como a proibição de aprovação de leis retroativas, por exemplo.43

Noutro giro, Hamilton trata, com especial destaque, da “competência das cortes para declarar

nulos determinados atos do Legislativo, porque contrários à Constituição”, afirmando ser falso o

pressuposto que essa competência implica superioridade do Judiciário sobre o Legislativo. No

enfrentamento dessa crítica, Hamilton considera o Legislativo uma autoridade delegada, que não

está acima da instituição que a delegou, ou seja, a própria Constituição, sugerindo, assim, a ideia de

supremacia constitucional. Logo, o representante (os membros do Congresso) não está acima do

que representado, o poder constituinte, relacionado à supremacia popular (HAMILTON, 1984, p.

577-8).

39 Nos capítulos (artigos), de ns. 76 e 77, Hamilton trata das competências do Presidente dos Estados Unidos, de acordo

com a Constituição, para proceder às nomeações dos membros da diplomacia, juízes da Suprema Corte, e funcionários

públicos em geral, após parecer e aprovação do Senado. Para o autor, esse modelo é adequado porque exalta a aptidão

do administrador para bem desempenhar o seu papel. Ademais, a cooperação do Senado seria de grande importância,

como “forte obstáculo contra uma tendência de favoritismo por parte do Presidente” (HAMILTON, 1984, p. 563-5).

Vê-se, nessa última passagem, a harmonia do pensamento de Hamilton com o de Madison na defesa de um

entrelaçamento dos ramos do Poder, com o fito de resguardar o Estado da usurpação de um dos ramos, assegurando o

valor do “governo livre”, precisamente livre da tirania de governos. 40 Tratando das garantias de independência dos juízes federais nos Estados Unidos, Carlo Guarnieri destaca que: “the

independence of federal judges is protected by the US Constitutition, guaranteeing appointment ‘during good behaviour’, which in practice means for life” (GUARNIERI, 2012, p. 193-215). 41 Esses mecanismos de interrelações entre os Poderes constituem, inclusive no regime constitucional brasileiro de

1988, elementos sensíveis nas interações do Poder Judiciário com os demais Poderes. Não por outro motivo que se

transitou para um modelo em que a maior parte dos Juízes é recrutada mediante concurso público, mas, noutros casos,

em especial na formação do Supremo Tribunal Federal, o Poder Executivo ainda exerce grande influência. 42

Quanto a este último aspecto, provavelmente se refere Hamilton ao fato de que o Judiciário não detinha, na

experiência norte-americana, pelo menos na época, autonomia administrativa. 43 Essa limitação pode ser encontrada, como direito fundamental, na Constituição Federal de 1988, art. 5º, inciso

XXXVI: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

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Muito mais racional seria que as cortes exercessem esse papel de intermediário entre o povo

– os constituintes – e os seus representantes, até porque aos tribunais se reserva o papel da

interpretação das leis, inclusive da lei básica – a Constituição, quiçá das resoluções do Legislativo.

Em outras palavras, “a Constituição deve prevalecer sobre a lei ordinária, a intenção do povo sobre

a de seus agentes” (HAMILTON, 1984, p.578).

Isso não implica ter o Judiciário como superior ao Legislativo, mas considerar apenas que o

poder do povo é superior ao de ambos. Assim, “sempre que a vontade do Legislativo, traduzida em

suas leis, se opuser à do povo, declarada na Constituição, os juízes devem obedecer a esta, não

àquela, pautando suas decisões pela lei básica, não pelas ordinárias” (HAMILTON, 1984, p. 578).

Mais adiante, com a doutrina do Judicial review44

, essa posição do Judiciário como “guardião

da Constituição” ficaria ainda mais evidenciada, passando a constituir verdadeiro paradigma para o

constitucionalismo contemporâneo.

Nesse cenário, compete aos juízes, ao interpretar a lei, esclarecer o seu sentido, não

substituindo o julgamento por sua vontade. Para essa função, é essencial conferir-lhes estabilidade

no cargo, pois a sua independência é necessária à defesa da Constituição, mesmo quando

momentaneamente os representantes do povo se coloquem contra alguns de seus dispositivos

vigentes (HAMILTON, 1984, p.579-80).45

Na sequencia, ressalta Hamilton que a independência judicial é uma salvaguarda também

para outras investidas do Legislativo (p. ex.: instituindo leis injustas e/ou parciais), em relação às

quais a magistratura deve moderar seus malefícios, inclusive “na fase de discussão”46

. O potencial

44 Segundo Augusto Zimmermann, o controle judicial de normas é historicamente justificável nos modelos estatais

federativos. Nos Estados Unidos, “este tipo de controle de constitucionalidade das normas pelo Poder Judiciário é fruto

da luta do juiz Marshall, quando este célebre magistrado, em decisão igualmente memorável, deduziu tal sistema de

controle judiciário. Sob a influência do mencionado Chief Justice, a Corte Suprema americana assumiu um determinado

poder declaratório por meio de um julgamento concreto de leis federais ou estaduais. Primeiramente, este poder foi assumido com a declaração de inconstitucionalidade de lei federal no caso ‘Marbury v. Madison’ (1803), e, pouco mais

tarde, através da declaração de inconstitucionalidade de norma estadual, no caso ‘Fletcher v. Peck’ (1810)”. Mais

adiante, esse autor reconhece a grande influência dos artigos federalistas na construção dessa doutrina do judicial

review: “desde as lições de Alexander Hamilton e James Madison, à Suprema Corte já se imaginava uma relevante

função de ‘judicial review’, então compreendida como a busca pacífica para controvérsias entre a autoridade central e

as unidades federativas” (ZIMMERMANN, 2005, p. 102). 45 Percebe-se, aqui, uma evidente manifestação do que atualmente se convencionou denominar de “função

contramajoritária” dos tribunais. 46 Essa passagem mostra a atualidade do texto de Hamilton, pois a limitação da intervenção do Poder Judiciário (self-

restraint) na fase de deliberação de matérias legislativas ainda é uma questão em aberto nas modernas democracias.

Exemplo dessa questão na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal pode observado no seguinte julgado: “CONSTITUCIONAL. MANDADO DE SEGURANÇA. CONTROLE PREVENTIVO DE

CONSTITUCIONALIDADE MATERIAL DE PROJETO DE LEI. INVIABILIDADE. 1. Não se admite, no sistema

brasileiro, o controle jurisdicional de constitucionalidade material de projetos de lei (controle preventivo de normas em

curso de formação). O que a jurisprudência do STF tem admitido, como exceção, é “a legitimidade do parlamentar - e

somente do parlamentar - para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo

de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o

processo legislativo” (MS 24.667, Pleno, Min. Carlos Velloso, DJ de 23.04.04). Nessas excepcionais situações, em que

o vício de inconstitucionalidade está diretamente relacionado a aspectos formais e procedimentais da atuação

legislativa, a impetração de segurança é admissível, segundo a jurisprudência do STF, porque visa a corrigir vício já

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de injustiça, que a todos ameaça, deve ser aspecto de apoio de todos a um Judiciário fortalecido e

independente (HAMILTON, 1984, p.581).

Por fim, sublinha o autor um último argumento em favor da estabilidade dos juízes: a

natureza de suas qualificações, ameaçadas se fossem episódicas as nomeações. Para essa

qualificação, seria desejável o registro de todos os precedentes47

, para longos e laboriosos estudos.

Se fossem nomeados por prazo determinado, desencorajar-se-ia a dedicação ao cargo, no lugar de

lucrativos escritórios de advocacia.

Mercê de todos esses argumentos em favor de uma posição fortalecida do Poder Judiciário no

cenário da divisão dos poderes, conclui Hamilton que a Convenção de Filadélfia, ao propor um

inovador desenho para a sua organização política na proposta de uma Constituição para a União,

teria agido com acerto a respeito dos temas alusivos ao Poder Judiciário, observando a experiência

britânica.

Esse quadro foi percebido por Alexis de Tocqueville. Ao examinar as instituições políticas

norte-americanas, na primeira metade do séc. XIX, afirmou: “as instituições judiciárias exercem

grande influência sobre a sorte dos anglo-americanos; elas ocupam um lugar importantíssimo entre

as instituições políticas propriamente ditas [...] É surpreendente a força de opinião concedida em

geral pelos homens à intervenção dos tribunais”. Por isso, assinalou esse autor a relevância de ter a

União “uma necessidade particular dos tribunais”, em especial numa configuração política em que o

poder dos Estados federados, ao contrário das experiências européias, mostrava-se superior ao do

governo central (TOCQUEVILLE, 2001, p. 157-8).

É realmente notável a atualidade e a importância dos argumentos desenvolvidos nos

federalist papers e, portanto, dessa consideração do papel dos tribunais no cenário atual da

jurisdição constitucional e das prerrogativas do Poder Judiciário, em especial sua independência,

característica do constitucionalismo contemporâneo. Mais notável é a ímpar atenção que Hamilton

efetivamente concretizado no próprio curso do processo de formação da norma, antes mesmo e independentemente de

sua final aprovação ou não. 2. Sendo inadmissível o controle preventivo da constitucionalidade material das normas em

curso de formação, não cabe atribuir a parlamentar, a quem a Constituição nega habilitação para provocar o controle

abstrato repressivo, a prerrogativa, sob todos os aspectos mais abrangente e mais eficiente, de provocar esse mesmo

controle antecipadamente, por via de mandado de segurança. 3. A prematura intervenção do Judiciário em domínio

jurídico e político de formação dos atos normativos em curso no Parlamento, além de universalizar um sistema de

controle preventivo não admitido pela Constituição, subtrairia dos outros Poderes da República, sem justificação

plausível, a prerrogativa constitucional que detém de debater e aperfeiçoar os projetos, inclusive para sanar seus

eventuais vícios de inconstitucionalidade. Quanto mais evidente e grotesca possa ser a inconstitucionalidade material de projetos de leis, menos ainda se deverá duvidar do exercício responsável do papel do Legislativo, de negar-lhe

aprovação, e do Executivo, de apor-lhe veto, se for o caso. Partir da suposição contrária significaria menosprezar a

seriedade e o senso de responsabilidade desses dois Poderes do Estado. E se, eventualmente, um projeto assim se

transformar em lei, sempre haverá a possibilidade de provocar o controle repressivo pelo Judiciário, para negar-lhe

validade, retirando-a do ordenamento jurídico. 4. Mandado de segurança indeferido” (STF, MS 32033, Rel. Min.

Gilmar Mendes, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Teori Zavascki, Tribunal Pleno, julgado em 20/06/2013). 47 Nos Estados Unidos, as decisões judiciais são compiladas nos denominados “Law Reports”, que são publicações

oficiais e autorizadas dessas decisões. No caso da Suprema Corte dos Estados Unidos, os Law Reports podem ser

acessados no website: http://www.supremecourt.gov/opinions/boundvolumes.aspx.

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atribui ao Judiciário, em contraste com a desconfiança sobre a magistratura atribuída pela

Revolução francesa.

CONCLUSÃO

O percurso proposto foi percorrido. Ainda que de forma limitada, pelas próprias fronteiras

deste estudo, pode-se colher, ao longo da jornada, que a concepção de separação do poder político

se constitui talvez numa das expressões mais emblemáticas do denominado Estado Moderno.

Corolário do propósito assecuratório da liberdade e da segurança, o princípio da separação

dos poderes, enquanto axioma da teoria política, mereceu grande atenção dos pensadores estudados,

seminais referências do problema, ainda que não se possa ver em Locke ou Montesquieu uma

grande preocupação com o problema da dinâmica da divisão dos poderes, isto é, com os

mecanismos de contenção dos atritos entre os ramos do Poder, que são invitáveis, em razão do

caráter expansionista e usurpador que o poder, no concentrado ou divido em ramos, ostenta.

Essa questão aparece bem presente na obra de Benjamin Constant, mais precisamente em sua

proposta de um quarto poder, que seria neutro, com a missão de assegurar a harmonia entre os

demais, ideia que, como se procurou apontar, foi absorvida na Constituição brasileira de 1824, mas

com um desenho bem diferente, tornando o poder régio, ele próprio, usurpador.

Somente com a experiência constitucional norte-americana, o problema dos freios ao Poder

passou a merecer uma complexidade à altura do desafio do Estado Moderno. Seguramente

beneficiada pela inovação de seu regime de governo e pela autonomia dos Estados federados, coube

a essa sociedade buscar, na experiência de suas Constituições (estaduais e, em seguida, da União),

ferramentas de aperfeiçoamento da interrelação dos ramos do Poder, atribuindo a todos eles vias de

influência sobre os outros, em ordem a promover um sistema de freios e contrapesos.

Privilegiado neste estudo, o exame do perfil do Poder Judiciário, no contexto das referências

pesquisadas, bem representa essa dinâmica histórica. De poder invisível ou nulo, como entendia

Montesquieu, passou a ser o responsável pela salvaguarda da supremacia constitucional, na dicção

dos federalistas, ou seja, “o guardião da Constituição”.

Sem a pretensão de esgotar o problema, nota-se a sua atualidade, na medida em que essa

arquitetura de freios e contrapesos é obra aberta ao desenvolvimento histórico. Nos dias atuais, em

que as modernas democracias - e o Brasil não se constitui exceção - debatem o protagonismo e as

funções do Poder Judiciário, o tema está vivo, em especial pelas características fluidas de seu tecido

social, mercê de processos sócio-econômicos complexos, como a globalização e o esforço de

construção de paradigmas globais para uma ordem jurídica idônea para ultrapassar fronteiras.

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