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De Que “Valor” Estamos Falando, Afinal? – Uma Revisão Crítica Sobre o Uso de
Diferentes Conceitos de “Valor” no Marketing ou “Uma Luta Contra o Enfeitiçamento
de Nosso Entendimento pelos Meios da Nossa Linguagem”
What “Value” are We Talking About? – A Critical Review of Different Value Concepts Use
in Marketing or “A Struggle Against the Bewitchness of Our Understanding by Our
Language Means"
1. Introdução
Cada vez mais o tema “valor” está sendo investigado pela academia de marketing. No
Brasil, os últimos anos têm demonstrado esta tendência, o que fica evidente se observarmos a
quantidade de artigos publicados sob a tutela do tema. Contudo, observamos que a utilização
do termo pode trazer consigo mais sombras que luzes em sua aplicação, tendo em vista sua
definição na literatura da área não apresentar um consenso em torno de um único conceito.
Podemos perceber claramente pelo menos três conceitos amplamente aplicados a
“valor”, sempre associados a “clientes”: o primeiro se refere a uma relação de custo e
benefício, ou seja, a diferença entre os valores que o cliente ganha (benefícios funcionais e
subjetivos) comprando e usando um produto e os custos (dinheiro, esforço, custo físico ou
psíquico) para obter este produto. Essa abordagem parece ter obtido grande repercussão,
sobretudo, por ser a utilizada em livros de marketing geral; o segundo, por outro lado, refere-
se ao valor que um cliente tem para uma organização durante toda a sua vida enquanto tal.
Justifica-se pela importância dada aos ativos intangíveis e à necessidade de representá-los
através de valores quantitativos, o que tem ganhado ênfase graças à importância dada cada
vez mais às métricas de marketing; finalmente, o terceiro, baseado na escola da psicologia
social, aborda o aspecto do valor relativo à própria condição da existência humana em suas
relações sociais, assumindo que as pessoas alcançam seus valores pessoais através de algumas
ações ou atividades específicas, dentre as quais o consumo.
Esta confusão parece começar pela própria terminologia adotada. No original em
inglês, enquanto o segundo conceito é chamado customer equity e/ou lifetime customer value,
tanto o primeiro quanto o terceiro são chamados de customer value. A tradução para o
português não ajudou muito. Se o primeiro conceito aparece agora como “valor para o
cliente”, é a vez dos outros dois serem apresentados com um mesmo nome: valor do cliente.
A tradução do primeiro conceito aparece nos livros-texto de marketing. Já a terminologia de
valor do cliente, quando relativa ao segundo conceito apresentado, surgiu na tradução do livro
de Rust et al. (2001). Por sua vez, a terminologia de valor do cliente, quando relativa ao
terceiro conceito, foi sugerida por Leão e Mello (2002; 2003), sob o argumento de que se se
está discutindo os valores relativos aos próprios clientes, então estes só podem ser do cliente.
Evidentemente, alguns leitores podem estar agora se questionando sobre a relevância
desta discussão. Se a linguagem fosse aqui tomada na sua forma tradicional, apenas como um
meio instrumental de transmitir pensamentos, a confusão apresentada realmente não seria um
problema, já que o importante seria se entender o conceito por detrás do nome. Esta forma
tradicional de se pensar a linguagem se refere uma perspectiva semântica (área da lingüística
que estuda a relação entre as construções lingüísticas e as coisas), que assume que os nomes
carregam significados por si só (OLIVEIRA, 2001). No entanto, corroboramos com o filósofo
Ludwig Wittgenstein (1979), que propõe que os nomes não representam as coisas em si, mas
sim que é o uso que fazemos dos nomes que determina o significado das coisas. Esta visão,
pragmática (área da lingüística que trata das características do uso da linguagem), em
oposição à semântica, assume que os significados dos nomes são construídos através de seu
uso. Desta forma, Oliveira (2001) conclui que só podemos chegar realmente à semântica
através da pragmática, pois é daí que surge o verdadeiro significado dos nomes, sempre de
forma contextual e ambivalente. Tomemos como exemplo a seguinte frase: “Meu carro
quebrou”. Se dito a um amigo na saída do trabalho, isso pode significar um pedido implícito
de carona. Se dito à pessoa que lhe vendeu o carro, pode ser uma acusação. Ainda, se dito a
um professor após um atraso para a aula, pode ser uma desculpa ou explicação.
Wittgenstein (1979), ao refletir sobre o que faz com que os nomes assumam diferentes
significados de acordo com seu uso, desenvolveu a teoria dos jogos de linguagem, em que
aponta que as regras de uso dos nomes são estabelecidas dentro de cada comunidade
lingüística e é só assim que estes fazem sentido ou, em outras palavras, têm significado. Cada
comunidade, portanto, terá seu próprio jogo de linguagem. Então, “balada”, para um jovem
paulistano, pode significar festa, agitação, comemoração, enquanto para um casal de meia
idade pode significar uma música romântica feita para se dançar a dois. Neste caso, isto não
chega a ser um problema, pois tais grupos fazem parte de diferentes campos sociais (nos
termos de BOURDIEU, 1984) e cada campo social tem seu próprio jogo de linguagem.
Entretanto, pensemos numa situação em que diferentes pessoas usem o termo
“balada”, ora com um sentido ora com outro, dentro de um mesmo campo social. Nos parece
que seja isto o que está acontecendo com o uso do termo “valor” na academia de marketing.
Tal confusão parece estar contaminado vários trabalhos, que se utilizam de mais de um dos
conceitos de valor para se referirem a apenas um deles ou, ainda, que se utilizam da definição
de um para operacionalizar outro. Entendemos que o resultado desta confusão possa
comprometer a qualidade e a confiabilidade do conhecimento produzido. Imaginemos um
exemplo: um pesquisador elabora um questionário para levantar dados sobre um conceito e
inclui perguntas que levantam informações sobre outro. Agora imaginemos outro: os dados
levam a implicações gerenciais, mas o máximo que poderiam contribuir seria para a solução
de um outro problema que não aquele a que está se referindo.
Acreditamos que isto ocorra por estar-se assumindo uma perspectiva semântica em
relação ao termo “valor”, ou seja, pressupondo-se que o termo irá, no final das contas,
representar uma mesma coisa. Para Wittgenstein (1979) este não é um problema simples. O
pensador acredita que vários dos problemas filosóficos – e do próprio conhecimento, por
conseguinte – são advindos de mal-entendimentos gramaticais. Aqui, Wittgenstein separa a
gramática em duas: a superficial e a profunda. A superficial é aquela que conhecemos e que
aprendemos na escola, comumente chamada simplesmente de “gramática”. Por sua vez, a
gramática profunda refere-se àquela dos jogos de linguagem. Desta forma, cada jogo de
linguagem tem sua própria gramática. Se o discurso científico já pode ser considerado, por si
só, um jogo de linguagem (LYOTARD, 2002), não parece estranho assumirmos que cada
disciplina desenvolva suas especificidades neste jogo e, portanto, em última instância, seu
próprio jogo de linguagem. Isto quer dizer que se não pudermos perceber agora que nossa
gramática profunda em relação ao termo “valor” está sendo contaminada por sua gramática
superficial, corremos o risco de, através de seu uso, chegarmos ao ponto de não mais sermos
capazes de discernir seus diferentes significados e continuarmos a gerar um conhecimento
com qualidade e confiabilidade questionáveis, pelo menos neste aspecto.
Está aí a razão porque a visão de Wittgenstein sobre a filosofia é de que esta deva ser
“uma luta contra o enfeitiçamento do nosso entendimento pelos meios da nossa linguagem”
(1979, p.54). Inspirados por sua tão contundente assertiva, desenvolvemos o presente
trabalho, que tem por objetivo analisar o uso conceitual do termo “valor”, no sentido de
identificar se realmente nossa hipótese de que existam trabalhos acadêmicos se utilizando de
mais de um dos conceitos de valor para se referirem a apenas um deles e/ou se utilizando da
definição de um para operacionalizar outro, se sustenta.
2. Procedimentos método-analíticos
Nosso estudo se caracteriza como uma revisão crítica com base lingüístico-filosófica
sob uma perspectiva pragmática. O procedimento metodológico adotado foi o de desk
research, baseado na construção de um corpus de pesquisa composto pelo conjunto de artigos
de Marketing publicados nos últimos cinco anos dos Encontros da Associação Nacional dos
Programas de Pós-graduação de Administração (ANPAD), o que nos levou a considerar 5
Encontros da ANPAD (EnANPADs) e o primeiro EMA (Encontro de Marketing da ANPAD),
totalizando 305 artigos publicados. A Tabela 1 mostra a distribuição de artigos por
ano/evento.
Tabela 1 – Distribuição dos artigos publicados por ano/eventoEvento Ano Total de artigos em Marketing
EnANPAD 2000 43EnANPAD 2001 40EnANPAD 2002 51EnANPAD 2003 51EnANPAD 2004 60
EMA 2004 60Total 305
Devido ao nosso objetivo de investigação, nossa revisão crítica foi antecedida por duas
etapas: a construção do nosso corpus de pesquisa e uma análise inicial para classificação dos
textos, conforme segue.
2.1. Construção do corpus de pesquisa
Nosso corpus de pesquisa passou por um processo de qualificação. Tal procedimento
passou por uma fase de filtragem e outra analítica, que reduziu o número de artigos para
análise a 27. A fase de filtragem contou com quatro diferentes etapas. Na primeira, excluímos
os artigos escritos em língua inglesa, já o problema que descrevemos deveria ser tratado
exclusivamente em nossa língua. Na segunda etapa, excluímos os artigos que não se
utilizarem do termo “valor”, procedimento que foi realizado através do mecanismo de busca
por palavras disponível no MS Word XP (para os Anais dos EnANPADs de 2000 à 2003) e
no Adobe Reader 6.0 (para os Anais do EnANPAD 2004 e do EMA). Na terceira etapa,
excluímos os artigos por uso não-conceitual do termo “valor”, ou seja, quando o termo era
utilizado para denotar não um conceito, mas um termo coloquial. A quarta e última fase de
filtragem da qualificação do corpus consistiu na separação entre o uso conceitual do termo
“valor” em marketing dos advindos de outras disciplinas (e.g., cadeia de valor), por
entendermos se tratarem apenas de apoios conceituais.
Tabela 2 – Processo de qualificação dos textos para análise
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Evento AnoEnANPAD 2000 3 3 18 4 28 15 15 0 0 0 0EnANPAD 2001 2 2 15 2 21 19 15 1 2 1 3EnANPAD 2002 5 2 13 8 28 23 16 0 3 4 7EnANPAD 2003 4 1 15 7 27 24 18 1 2 3 5EnANPAD 2004 4 0 13 7 24 36 32 1 2 1 3
EMA 2004 3 1 11 7 22 38 29 0 5 4 9Total 21 9 85 35 150 155 125 3 14 13 27
A filtragem reduziu o corpus a 155 artigos. Numa segunda fase de qualificação,
excluímos,a quinta etapa, os artigos que faziam uso do conceito de “valor” apenas como apoio
conceitual ou como clichê (e.g., uso do termo “valor agregado” definindo “produto
ampliado”). Numa sexta e última etapa, excluímos os artigos por uso de conceitos de “valor”
pouco significativos na amostra. Além dos três conceitos de “valor” por nós antecipados,
identificamos outros três, sendo dois relativos a marcas (“valor da marca” e “valor de marca”)
e outro a acionistas (“valor para o acionista”). Contudo, encontramos apenas um texto
referente a cada conceito, o que nos fez crer que gerariam uma discussão pífia e incongruente
com nossos objetivos. A Tabela 2 sintetiza o processo.
2.2. Análise inicial para classificação dos textos
Após a seleção dos textos para análise, procedemos a uma leitura inicial destes, com o
intuito de classificá-los em relação a que conceito de valor estavam se baseando, bem como
para sensibilizar-nos em relação aos textos, aspecto fundamental para o tipo de análise ora
desenvolvida. Apesar de já nesta primeira leitura ter sido possível se perceber que muitos dos
artigos se utilizaram de mais de um conceito, não consideramos esta questão para esta fase
classificatória, já que esta descoberta é o propósito mesmo de nossa investigação, devendo
esta ficar para discussão na revisão crítica. A identificação de um artigo com um conceito
ocorreu aqui, portanto, em relação a que conceito o artigo “pretendia” referir-se, o que não
quer dizer se neste “pretender” o objetivo foi alcançado ou não.
A Tabela 3 apresenta os 27 artigos selecionados, já os classificando sob um
determinado conceito e indicando seu uso como construto ou como variável. Na primeira
coluna da tabela os artigos são indicados pelos seus códigos em nosso corpus, forma como
eles serão tratados em nossa análise. Para tal codificação, estabelecemos os seguintes
procedimentos: 1) no caso do EMA, como só houve um Encontro e todos os artigos são de
Marketing, utilizamos o código original do artigo no evento; 2) quanto aos textos publicados
em EnANPADs, acrescentamos ao código original – que é apresentado pela sigla MKT e
acompanhado pelo seu número de inscrição – o ano do evento. Então, por exemplo, o artigo
MKT-698 do EnANPAD de 2002 foi codificado como MKT-698_2002.
3. Revisão dos conceitos
Para que nossa revisão crítica ocorresse de forma mais fluida, optamos por apresentar
antecipadamente esta revisão dos conceitos identificados em nossa amostra. Antes disso,
contudo, dois comentários nos parecem pertinentes. O primeiro é que esta revisão não se
baseia no estado-da-arte dos conceitos, mas em como os autores dos artigos de nossa amostra
o fizeram, o que, em última instância, é o que interessa a este estudo. Contudo, vale dizer que
não reproduzimos as definições de tais autores, mas sim fazemos uma discussão acerca delas,
no que já chegamos a antecipar o tom crítico desta revisão.
O segundo comentário se refere aos termos que utilizamos para nos referirmos aos três
conceitos analisados. Optamos por chamá-los, respectivamente, de: “valor para o cliente”,
“valor do cliente para a empresa” e “valor do cliente”. Vale aqui uma pequena explanação
sobre as escolhas. Quanto ao primeiro, “valor para o cliente” já é o termo mais amplamente
adotado pela literatura. Entretanto, adotamos tal termo por entendermos que se o conceito se
refere ao valor que uma organização, através de uma oferta, entrega ao cliente, então a
preposição “para” antes do artigo definido se demonstra adequada. Por outro lado, como
vimos, o termo “valor do cliente” é utilizado para expressar os outros dois conceitos. Em
nossa análise, concluímos que, se o valor em questão, em relação ao segundo conceito, é para
a empresa a qual o cliente se relaciona, então a preposição “de” antes do artigo não parece
cabível, já que, para tanto, o valor teria que ser do cliente. Achamos adequado acrescentarmos
uma segunda preposição e um segundo artigo relativos a um segundo sujeito, neste caso, o
mais importante no conceito: a empresa. Acreditamos, portanto, que “valor do cliente para a
empresa” defina melhor este conceito, já que se refere ao valor que um cliente tem para uma
empresa ao relacionar-se com esta. Por sua vez, o termo “valor do cliente” nos pareceu
adequado para o terceiro conceito, já que este define o valor pessoal do cliente. De qualquer
forma, ainda que esta nos pareça uma proposta adequada, não é nosso objetivo aqui “definir”
em instância última os termos para tais conceitos. Esta proposta terminológica vem aqui,
antes, ocupar um papel instrumental que é o de termos como nos referir a cada um dos
conceitos. Devido a isto, manteremos os mesmos sempre entre aspas neste trabalho.
3.1. “Valor do cliente”
A base teórica do conceito de “valor do cliente” nos textos de nossa amostra que
fazem uso do mesmo é a teoria de cadeias de meios-fim, que propõe que consumidores
traduzem atributos de produtos em benefícios que estes produzem e que, em última instância,
traduzam a orientação de seus valores pessoais – um modelo hierárquico chamado A-C-V,
devido às iniciais de seus níveis (REYNOLDS e GUTMAN, 1988; PERKINS e REYNOLDS, 1988).
Aqui, a definição de valores assume a perspectiva da psicologia social (ROKEACH, 1973).
Vale destacar que nos trabalhos desenvolvidos em torno da teoria de cadeias de meios-
fim o termo customer value (original do inglês para “valor do cliente”) não é utilizado. Quem
o faz é Robert B. Woodruff e seus colegas (ver WOODRUFF e GARDIAL, 1996; WOODRUFF,
1997; FLINT et al., 2002), que definem o conceito de customer value com base em tal teoria.
Apesar disto, tais autores desenvolvem seu conceito também considerando o de “valor para o
cliente”. Na análise do nível das conseqüências de uso dos produtos, eles definem o “valor”
destas com base no conceito de “valor para o cliente”. De fato, o que os autores apresentam é
o conceito de “valor para o cliente” como uma das facetas do de “valor do cliente”. A base do
primeiro conceito aparece em sua proposta tendo em vista que o valor oferecido ao cliente
deve por este ser percebido. Entretanto, no desenvolvimento teórico de “valor do cliente”, o
valor percebido pelo cliente seria o reconhecimento da oferta de seus próprios valores através
dos produtos que ele usa. Isto quer dizer que, para o autor e seus colegas, o “valor para o
cliente” se realiza a partir do “valor do cliente”.
Um problema aqui é que esta questão só fica evidente no livro de Woodruff e Gardial
(1996). Em um artigo seguinte (WOODRUFF, 1997), o autor apresenta seu conceito de
customer value como um alternativo a outras definições do mesmo. Ora, nosso leitor pode
estar agora se questionando se, então, Woodruff realmente não estaria se referindo ao conceito
de “valor para o cliente”. Contudo, entendemos que estando seu conceito baseado na teoria de
cadeias de meios-fim, ele está, necessariamente, definindo “valor do cliente”. Cabe nos
questionarmos se o próprio Woodruff não teria sido enfeitiçado pelos meios da linguagem.
3.2. “Valor do cliente para a empresa”
O conceito de “valor do cliente para a empresa” (customer equity) adotado nos artigos
analisados que fazem uso do mesmo se baseia em Rust et al. (2001), em que este pode ser
definido como o total dos valores de consumo do cliente ao longo de sua vida de consumo em
uma empresa. O termo customer equity foi cunhado por Blattberg e Deighton (1996) e desde
então tem sido um dos maiores focos de atenção em marketing por estar no centro de uma
importante discussão atual: os Marketing Metrics. Neste sentido, vale destacar que tal
conceito está atrelado a um outro: o de lifetime customer value, que significa o valor total de
contribuições diretas e indiretas para medir o lucro gerado por cada consumidor individual
durante todo o ciclo de vida. De fato, o lifetime customer value tem sido assumido como uma
maneira de se quantificar o “valor do cliente para a empresa”. Silva e Freitas (2002) sugerem
que se denota, portanto, uma convergência de sentido e objetivo na utilização dos dois
conceitos, o que as faz assumi-los como um só, no que corroboramos.
Uma observação importante é que também no conceito de “valor do cliente para a
empresa” o “valor para o cliente” aparece como uma de suas facetas, segundo a proposta de
Rust et al. (2001). O que os autores argumentam é que seja mais importante se focar no “valor
do cliente para a empresa” (customer equity) do que no “valor da marca” (brand equity).
Neste sentido, propõem uma estrutura tridimensional de “valor do cliente para a empresa”,
composto pelo próprio “valor da marca”, além do “valor de retenção” (retention equity) e do
“valor para o cliente”, por eles chamado de “valor do valor” (value equity).
3.3. “Valor para o cliente”
De forma geral, os artigos de nossa amostra que se utilizam do conceito de “valor para
o cliente” o fazem, direta ou indiretamente, com base na definição de Zeithaml (1988), que o
apresenta como a avaliação geral pelo consumidor da utilidade de um produto baseado em
percepções do que é recebido e do que é dado. Contudo, vale uma crítica ao trabalho de
Zeithaml (1988). Ao fazer um levantamento sobre trabalhos que, segundo ela, propõem
relações entre qualidade e valor (um de seus objetivos no estudo em questão) através de
modelos de cadeias de meios-fim, a autora também parece ter sido enfeitiçada pelos meios da
linguagem. Ela aponta trabalhos baseados na teoria de cadeias de meios-fim como base para o
seu. O modelo proposto pela autora também se baseia numa lógica de meios-fim, em que
atributos levam à percepção de qualidade e, por fim, à percepção de valor. Contudo, como
vimos, os valores que a teoria de cadeias de meios-fim está se utilizando é outro (i.e. valores
pessoais) e a autora o interpreta como um payoff conseqüente dos benefícios de um produto.
Algo, portanto, similar ao “valor para o cliente”. Felizmente, este enfeitiçamento não
contaminou sua definição conceitual. Entretanto, pode ter confundido outros autores que se
utilizaram deste seu trabalho, que já se tornou clássico. Consideramos, inclusive, a hipótese
disto ter ocorrido com Woodruff em relação ao problema que apontamos duas seções atrás.
Um outro conceito de “valor para o cliente” adotado em trabalhos de nossa amostra foi
o de Fornell et al. (1996), que propõem que valor seja o nível percebido da qualidade do
produto relativo ao preço pago. Comparado ao conceito de Zeithaml (1988), pode-se perceber
que este tem uma base ainda mais utilitária do que aquele, pois foca-se na relação qualidade-
preço, desconsiderando, assim, custos não monetários e benefícios extrínsecos ao produto.
Finalmente, um último conceito de “valor para o cliente” adotado se baseia em
Holbrook (1999). O autor define o valor – por ele chamado de “valor de consumo” – como
sendo interativo, relativo, preferencial e experiencial e chega a desenvolver sua própria
tipologia. Assumindo uma perspectiva axiológica, seu conceito de valor refere-se à avaliação
de um objeto por um sujeito (i.e., de um produto por um consumidor). Apesar de ser
apresentado – e por que não dizer, pensado – de forma diferente, entendemos que se trata, em
essência, da mesma perspectiva assumida por Zeithaml (1988), já que uma oferta está sendo
avaliada, em seu valor, pelo cliente.
4. Revisão crítica dos textos
Apesar de apresentada de forma conjunta, nossa revisão crítica foi realizada em duas
etapas. Na primeira identificamos a coerência ou não do desenvolvimento e operacionalização
do conceito adotado em cada texto. O propósito aqui foi o de levantar possíveis
inconsistências, que deveriam ser corroboradas ou não pela segunda fase. Esta, por sua vez, se
baseou no uso da literatura de base dos trabalhos aqui analisados com o objetivo de comparar
o uso dos conceitos por estes últimos, podendo, evidentemente, corroborar uma incoerência
conceitual ou, por outro lado, apontar a incoerência já na literatura de base. A Tabela 3
apresenta a síntese analítica da revisão que segue, destacando-se, neste aspecto, que a mesma
demonstra apenas os resultados relativos à nossa hipótese, ou seja, segundo os critérios de
conceituação e operacionalização, aos quais atribuímos o conceito de “consistente” ou
“enfeitiçado”. Contudo, outros comentários importantes não cabíveis a tal síntese são feitos ao
longo do texto.
4.1. “Valor do cliente”
Os dois textos publicados com base no conceito de “valor do cliente” (MKT-45_2001
e MKT-698_2002) são dos mesmos autores. Tanto a conceituação quanto a operacionalização
mostram-se consistentes em torno do conceito. No primeiro caso, os autores se apóiam em
trabalhos como os de Reynolds e Gutman (1988) e Woodruff e Gardial (1996), entre outros.
Analiticamente, fizeram uso da técnica laddering, que funciona quase que como um
“espelho” da teoria de cadeias de meios-fim, tendo em vista que visa exatamente alcançar as
relações do modelo A-C-V, o que é feito através de uma entrevista semi-estruturada (sobre o
que citam REYNOLDS e GUTMAN, 1988; PERKINS e REYNOLDS, 1988, entre outros).
Um problema que podemos apontar nos artigos é o fato de que, para justificar a
importância do construto, os autores indicam como referência trabalhos que se referem ao
conceito de “valor para o cliente”, como é o caso de Sinha e DeSarbo (1998), por exemplo.
Não podemos apontar este como um caso de enfeitiçamento, já que conceitual e
analiticamente os autores não deixam dúvidas sobre o conceito adotado. Contudo, essas
citações podem causar dúvidas a quem estiver menos prevenido ou apenas olhar o trabalho de
relance. Resta saber se se tratou de um equívoco – o que não pode ser desconsiderado, se
tivermos em vista que em inglês ambos os conceitos compartilham de um mesmo nome
(customer value) e que os autores se baseiam em Woodruff e Gardial (1996) para sua
definição de valor, que, como já vimos, apontam o “valor para o cliente” como uma faceta do
“valor do cliente” – ou se de um elemento de retórica, considerando-se que este último
conceito seja bem mais amplamente conhecido.
4.2. “Valor do cliente para a empresa”
Dentre os quatro textos publicados com base no conceito de “valor do cliente para a
empresa”, três trabalham o mesmo como construto (MKT-1954_2002, MKT-1402_2003 e
EMA0036) e apenas um como variável (MKT-879_2002). Os três primeiros artigos, usam o
termo valor do cliente, numa clara influência à tradução do livro de Rust et al. (2001), no qual
todos se embasaram. Por sua vez, o texto que se utiliza do conceito como variável o enquadra
no construto “rentabilidade”, em que este se baseia tanto no valor atual quanto no valor
potencial do cliente para a empresa. É em relação a este último que os autores se utilizam do
conceito de “valor do cliente para a empresa” (no caso, lifetime customer value).
De forma geral – com um senão em relação ao segundo artigo, o que será mais bem
discutido a seguir –, todos os artigos conceituam consistentemente o conceito. Também em
todos os artigos a operacionalização se mostrou consistente, tendo como bases os modelos de
Blattberg e Deighton (1996), Berger e Nasr (1998) e Rust et al. (2001), os quais mensuram
justamente o lifetime customer value.
É importante destacar que dois dos artigos (MKT-1954_2002 e MKT-1402_2003, os
quais têm uma mesma co-autora) demonstram preocupações de ordem semântica em relação
ao nome do conceito de valor que se utilizam. O primeiro aponta para a tradução da literatura
de língua inglesa para o português, em que suas autoras sugerem que o termo valor do cliente
(a forma como apresentam “valor do cliente para a empresa”) é confundido com o termo valor
para o cliente. O curioso é que, de fato, esta não é uma confusão comum. Como já discutimos,
a confusão mais comum, em termos de usos de termos definidores dos conceitos, é aquela
entre “valor do cliente” e “valor do cliente para a empresa” – por ambos serem chamados de
valor do cliente. Entretanto, foi apenas no mesmo ano deste artigo que surgiu o termo valor do
cliente para definir o conceito de “valor do cliente” (MKT-698_2002). Talvez o que as
autoras apontam tenha uma base num problema não do termo definidor dos conceitos, mas em
seu uso. Como vimos na seção de revisão dos conceitos, Rust et al. (2001) consideram este
conceito como uma faceta do “valor do cliente para a empresa”.
O segundo artigo (MKT-1402_2003), este sim, tem como preocupação semântica o
fato de tanto o conceito de “valor do cliente” quanto o de “valor do cliente para a empresa” se
apresentarem como valor do cliente. Entretanto, ao invés de discutir as diferenças conceituais
entre os dois, as autoras assumem ambos como um mesmo conceito, diferenciados por seus
aspectos qualitativos e quantitativos, respectivamente. Fazem isto com base no trabalho de
Leão e Mello (2001) em relação ao primeiro e na literatura sobre lifetime customer value para
o segundo. Ora, este é um problema grave de enfeitiçamento. Podemos apresentar pelo menos
três razões para nossa afirmação. Primeiro, se é verdade que a literatura de ambos os
conceitos discutem que estes tenham no “valor para o cliente” uma faceta, o mesmo tipo de
relação não ocorre entre os conceitos aqui discutidos. Segundo, o fato do estudo de Leão e
Mello (2001) ser de natureza qualitativa não define o construto “valor do cliente” como
passível de investigação apenas desta forma. Neste sentido, Woodruff e Gardial (1996)
apontam para a possibilidade de se realizar pesquisas quantitativas de tal construto.
Finalmente, e ainda sobre essa questão, entendemos que querer reduzir a conceituação de um
construto ao seu aspecto método-analítico seja de um reducionismo sem par – afinal, se assim
fosse, construtos que “nascem” de uma investigação exploratória qualitativa nunca seriam
passíveis de mensuração, bem como aqueles fortemente investigados por esta ótica não seriam
passíveis de uma observação compreensiva. Felizmente, tal enfeitiçamento não chegou a
contaminar a definição de valor que as autoras assumem, bem como sua operacionalização,
como já antecipamos. Entretanto, a discussão apresentada pelas autoras pode vir a contaminar
trabalhos outros, que se utilizem do seu artigo como referência de uma construção teórica, o
que, em última instância, possibilita o problema identificado em nossas hipóteses.
4.3. “Valor para o cliente”
Dos 21 artigos que se utilizam do conceito de “valor para o cliente”, treze o fazem
como variável. A maioria deles (nove) assume, direta ou indiretamente, o conceito de valor
proposto por Zeithaml (1988). Vale destacar que vem daí o uso do termo, nesses casos, quase
sempre como “valor percebido” ou simplesmente “valor” – como é o caso da própria autora.
Não acreditamos que este seja um problema, já que para uma oferta de “valor para o cliente”
ser realmente valorosa, é importante que tal valor seja percebido. De fato, entendemos que se
trata de dois lados de uma mesma moeda. Enquanto o conceito, ao assumir o termo “valor
para o cliente” apresenta-se na direção da empresa para o cliente, torna-se na direção do
cliente para a empresa quando da certificação de se este percebeu tal valor.
Como antecipamos, o conceito proposto por Zeithaml (1988) nem sempre é adotado
diretamente. Com isto, queremos dizer que ocorrem casos de artigos se basearem em outros
autores que, por sua vez, já haviam se baseado naquela autora. De fato, dos nove artigos aqui
identificados, apenas um (MKT-2110_2004) bebe diretamente na fonte. Os demais chegam ao
conceito proposto por Zeithaml (1988) através de outros autores por estarem replicando ou
adaptando os modelos destes. Dentre esses, o artigo MKT-636_2003, replica o estudo de
Baker et al. (2002). Por sua vez, os artigos MKT-399_2002 e MKT-1453_2004 adaptam e os
artigos MKT-1313_2001, MKT-1374_2002, EMA0046 e EMA0280 baseiam-se parcialmente
no modelo proposto por Sirdeshmukh et al. (2002). Não se trata de uma coincidência. Os
artigos são advindos de uma mesma Escola, tendo os quatro últimos uma mesma autora/co-
autora, os dois primeiros um mesmo autor/co-autor e um outro co-autor que trabalha com
ambos (nos artigos MKT-399_2002 e MKT-1374_2002, respectivamente). Finalmente, ainda
da mesma Escola, o artigo EMA0313 adapta o modelo de Agustín e Singh (2002).
Por outro lado, os demais quatro artigos (MKT-183_2001, MKT-1111_2003,
EMA120 e EMA0319) têm em comum a adoção do conceito de valor proposto por Fornell et
al. (1996). Desses, três assumem o conceito de valor percebido como variável antecedente de
satisfação, enquanto o último enquanto antecedente de eqüidade que, por sua vez, leva a
satisfação e lealdade. Quanto ao modelo adotado, o artigo MKT-1111_2003 replica o de
Fornell et al. (1996), enquanto o MKT-183_2001 faz uma adaptação deste e o EMA120
replica tal adaptação. Por fim, o artigo EMA0319 apresenta um modelo próprio com base em
revisão de literatura.
Tabela 3 – Síntese analítica da revisão crítica
Artigo selecionado
Conceito de "valor" utilizado
Forma de utilização do conceito Conceituação Operacionalização
"Val
or d
o cl
ient
e"
"Val
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o cl
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e pa
ra
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pres
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"Val
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l
Con
sist
ente
Enf
eitiç
ado
Con
sist
ente
Enf
eitiç
ado
MKT-45_2001 X X X X MKT-698_2002 X X X X MKT-1954_2002 X X X X MKT-1402_2003 X X X X
EMA0036 X X X X MKT-879_2002 X X X X MKT-2110_2004 X X X X MKT-636_2003 X X X X MKT-399_2002 X X X X MKT-1453_2004 X X X X MKT-1313_2001 X X X X MKT-1374_2002 X X X X
EMA0046 X X X X EMA0280 X X X X EMA0313 X X X X
MKT-183_2001 X X X X MKT-1111_2003 X X X X
EMA0120 X X X X EMA0319 X X X X
MKT-1072_2002 X X X X MKT-1526_2003 X X X XMKT-2375_2004 X X X [1]MKT-1852_2002 X X X XMKT-2256_2003 X X X X
EMA0230 X X X XEMA0347 X X X [2]EMA0154 X X X [2]
[1] Não possível se verificar [2] Não cabe
Considerando-se as hipóteses desenvolvidas por esses estudos, podemos concluir que
todos os artigos tenham conceituado e operacionalizado o conceito de “valor para o cliente”
consistentemente. Contudo, um comentário vale ser feito. O artigo MKT-399_2002, tendo
como base o trabalho de Sirdeshmukh et al. (2002) apresenta que a confiança impacta a
lealdade através do valor. Contudo, os autores indicam que tal impacto ocorre pela mudança
de percepção dos consumidores sobre a congruência de valores com o provedor do serviço;
que a confiança impacta a similaridade de valores entre o cliente e a empresa. Ora, a forma
como os autores apresentam esta idéia pode fazer parecer que os valores que estão aqui
tratando sejam os valores pessoais de clientes e provedores de serviço, o que desvirtuaria o
conceito de “valor para o cliente” e apontaria para o de “valor do cliente”. De fato, o
comentário de Sirdeshmukh et al. (2002) é sobre a percepção de congruência e a similaridade
percebida dos valores, o que não causa a possibilidade de tal confusão. O problema desta
confusão está na possibilidade deste artigo servir como referência para algum outro sem que
seus leitores recorram ao original.
Além dos artigos que se utilizaram do conceito de “valor para o cliente” como
variável, oito o fizeram como construto. Dois deles (MKT-1072_2002 e MKT-1526_2003 –
em que pese o fato do autor do segundo ser co-autor do primeiro) o fazem adotando o
conceito de valor de consumo proposto por Holbrook (1999). Neste sentido, o primeiro artigo
faz isto de forma explícita, adotando, inclusive, a tipologia do autor; o segundo, por sua vez,
adota o conceito de forma implícita, já que se propõe a realizar uma grounded theory. Para
sedimentar sua discussão sobre o conceito adotado, os autores se baseiam nos trabalhos de
Wagner (1999) e Baudrillard (1995). Quanto à primeira, trata-se de uma escolha óbvia, pelo
fato da autora discutir mais profundamente a Axiologia, base do desenvolvimento conceitual
de Holbrook. Por sua vez, a escolha de Baudrillard, infelizmente, não trás uma melhor
compreensão ao conceito de valor, como sugerem os autores. Baudrillard (1995) analisa os
conceitos de valor de troca e de uso propostos por Karl Marx – em última instância, os
produtos enquanto mercadoria e utensílio, respectivamente – para propor que, além destes,
existe o valor de troca/signo, em que os objetos têm valor à medida que são signos de uma
hierarquia social. Sem dúvida alguma seria interessante discutir o conceito de “valor para o
cliente” sob a ótica da conceituação de valor de Marx e Baudrillard, sobretudo se assumida
uma condição de consumo simbólico. Entretanto, não é isto o que os atores fazem e a rápida
inserção neste aspecto termina por não contribuir para a discussão sobre “valor para o
cliente”, correndo-se o risco até de gerar uma confusão em leitores menos avisados.
Apesar disto, o enfeitiçamento presente nesses artigos não ocorre na incursão pelo
pensamento de Baudrillard, mas na própria gênese da proposta de Holbrook, afetando a
conceituação desenvolvida nos artigos. Ao discutir o conceito de valor sob a ótica da
Axiologia, Wagner (1999) indica que este é intangível, derivado das características tangíveis
de um objeto, que é influenciado pelas características do sujeito, incluindo seus valores
pessoais. Com base nisto, os autores dos artigos propõem que uma questão central para o
marketing seja vislumbrar as relações entre valores pessoais dos consumidores e a forma
como estes valorizam produtos e que, longe de fazer um tratado sobre valores pessoais, o
modelo de Holbrook (1999) concentra-se na segunda parte dessa equação (discussão do
primeiro artigo). Ora, não existe nenhuma evidência no trabalho de Holbrook (1999) de que
este tenha se preocupado com a primeira parte aqui sugerida. A definição de Wagner (1999)
aponta para os valores pessoais de um sujeito como uma das características influenciadoras de
sua avaliação do valor de consumo (i.e., “valor para o cliente”). Se é verdade que seja
importante se vislumbrar as relações entre valores pessoais dos consumidores e a forma como
estes valorizam produtos, esta preocupação está demonstrada na discussão conceitual de
“valor do cliente” que, conforme já discutido, pressupõe que o que os clientes realmente
valorizam num produto é o reconhecimento de seus próprios valores neste.
O enfeitiçamento de um dos autores fica mais evidente quando, no segundo texto,
acrescenta a visão de valor de Vinson et al. (1977) que, por sua vez, baseia-se justamente na
influência de valores pessoais no consumo. Este aspecto tem uma forte e comprometedora
influência sobre a operacionalização do construto neste artigo. Enquanto no primeiro artigo a
escolha da tipologia de Holbrook (1999) fornece a consistência necessária para a coleta e a
análise dos dados, pode-se perceber que, no segundo, os achados – classificados como valores
de invasão e de proteção – apontam para valores pessoais (e.g., “mulheres que quebram os
discursos da família/sociedade e não voltam a eles” indica o valor da coragem, previsto por
ROKEACH, 1973). Isto é evidente no próprio texto, quando os autores concluem que “A
família é a primeira instituição formadora de valores...” (p.11).
Outro artigo (MKT-2375_2004) se propõe avaliar o “valor para o cliente” do que o
autor chama de “estrutura de valor para o cliente” (sic) de Rust et al. (2001). O problema é
que a proposta de tais autores, como vimos, se refere a uma estrutura de “valor do cliente para
a empresa”, em que o “valor para o cliente” aparece apenas como uma de suas dimensões. O
enfeitiçamento do autor é confirmado quando este, após discutir os três tipos de valores que
analisamos neste trabalho, apresenta a estrutura em questão como sendo a base para se gerar
o “valor do cliente para a empresa” e não como sua própria estrutura, como fica evidente no
trabalho de Rust et al. (2001). O objetivo do trabalho foi apresentado como sendo o de
desenvolver uma escala com base na tal estrutura vislumbrada pelo autor. Infelizmente o texto
não demonstra nenhuma das descrições das variáveis, mas apenas o processo de construção da
escala, tornando difícil a avaliação de se o conceito foi bem operacionalizado. Contudo, por
assumir como base outro conceito e apontar que serve como base para o cálculo do “valor do
cliente para a empresa”, podemos nos questionar sobre sua consistência e, portanto, acreditar
que se trata de um enfeitiçamento também na operacionalização (apesar de não apontarmos na
Tabela 3).
Outros quatro artigos baseados no conceito de “valor para o cliente” (MKT-
1852_2002, MKT-2256_2003, EMA0230 e EMA0347) demonstram-se enfeitiçados ao
apresentar uma clara confusão com o conceito de “valor do cliente”. O primeiro e o segundo
artigos (em que a autora do segundo é também co-autora do primeiro) apresentam, em sua
revisão de literatura, várias formas de definição do conceito de “valor para o cliente” e
recorrem a Woodruff (1997) para indicar a multiplicidade de suas definições – aspectos
presentes no artigo em questão. Acabam por adotar o conceito do autor, que, como já vimos,
refere-se a “valor do cliente”. Como se não bastasse, apresentam o conceito de “valor do
cliente” utilizado por Leão e Mello (2001) e (no segundo artigo) o de “valor do cliente para a
empresa” definido por Rust et al. (2001) como se fossem relativos a “valor para o cliente”. O
curioso é que o segundo artigo, antes de apresentar tais questões, desenvolve uma abordagem
filosófica de valor – a Axiologia que já comentamos – e a evolução do conceito, que passa
pelas teorias de transação-específica de valor, de qualidade ajustada ao preço, de orientação
pela utilidade e experiencial, com os respectivos autores mais relevantes. Evidentemente, em
nenhuma delas aparece algum trabalho de Woodruff.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, o artigo EMA0230 apresenta a mesma
evolução do conceito presente no artigo MKT-2256_2003 e ainda acrescenta o trabalho de
Luna et al. (2002) que, de fato, não trata do conceito em si, mas de sua influência sobre
atitudes (com base em ROKEACH, 1973) para desenvolver uma proposta de como aspectos
trans-culturais e cognitivos influenciam o comportamento de navegação de websites. Não
coincidentemente, acaba por acatar irrestritivamente todos os seus enfeitiçamentos.
Apesar do segundo artigo (MKT-2256_2003) não possibilitar uma análise da
operacionalização do conceito, passagens deste indicam que a avaliação do construto foi a
mesma do primeiro artigo (MKT-1852_2002). Neste último, sim, é possível se observar a
operacionalização, tendo em vista que as variáveis da pesquisa são apresentadas. O
enfeitiçamento é nítido, pois estas variáveis se apresentam ora como relativas a “valor para o
cliente” (e.g., “A alta administração solicita, ativamente, feedback do que nossos clientes mais
valorizam”), ora como “valor do cliente” (e.g., “Nossa empresa/UEN utiliza, regularmente,
diferentes formas para conhecer quais são as conseqüências do uso de nossos
produtos/serviços que facilitam o atingimento dos objetivos dos clientes”). É bem verdade que
sempre que ocorre este último caso, as descrições das variáveis sentam-se sobre as
conseqüências de uso dos produtos, apontado por Woodruff e seus colegas como o nível do
conceito de “valor do cliente” em que está presente a faceta do “valor para o cliente”.
Entretanto, para se extrair “valor para o cliente” das conseqüências de uso dos produtos seria
necessário se analisar o uso em si, tendo em vista que é nesta ocasião que ocorre a avaliação
de valor, e não a conseqüência em si, pois esta é elemento de elo entre as características dos
produtos e os valores pessoais dos clientes – em que pese que no enunciado que destacamos
entenda-se por “objetivo dos clientes” justamente seus valores (WOODRUFF, 1997).
Por sua vez, o artigo EMA0230 também demonstra enfeitiçamento em sua
operacionalização. A autora se utiliza da técnica grand tour, indicada por Woodruf e Gardial
(1996) como alternativa ao laddering para se atingir as cadeias A-C-V. Ora, tal técnica, então,
deve ser utilizada para se operacionalizar “valor do cliente”. Apesar de problemas na
utilização da técnica, que fez com que o trabalho não apontasse para cadeias A-C-V – o que
não cabe na presente discussão –, os achados do trabalho se referem nitidamente a valores
pessoais , o que confirma a inconsistência da operacionalização como sendo relativa a “valor
para o cliente”.
Finalmente, ainda sobre os artigos baseados no conceito de “valor para o cliente” que
se demonstraram enfeitiçados ao apresentar uma confusão com o conceito de “valor do
cliente”, o artigo EMA0347 – cuja co-autora e autora dos dois primeiros citados é também sua
co-autora – é um ensaio teórico que se propõe desenvolver proposições acerca do “valor para
o cliente” a partir de uma dimensão simbólica. As autoras assumem o conceito de Woodruff e
seus colegas e por “dimensão simbólica” de “valor para o cliente” apresentam a base do
conceito de tais autores, a teoria de cadeias de meios-fim, no que se baseiam fortemente no
artigo de Leão e Mello (2001) e em outros trabalhos com base em tal teoria (e.g., PERKINS e
REYNOLDS, 1988). Ou seja, adotam o conceito de “valor do cliente” como se este fosse uma
“dimensão simbólica” de “valor para o cliente”. Por ser um ensaio teórico, não existiu
operacionalização do conceito. Entretanto, o artigo lança um novo enfeitiçamento sobre o uso
dos diferentes conceitos de valor que pode se espalhar caso suas proposições venham a ser
verificadas empiricamente.
Vale destacar que, apesar de entendermos que o enfeitiçamento desses últimos quatro
artigos comentados possa ter ocorrido como conseqüência da possibilidade que levantamos de
um enfeitiçamento anterior de Woodruff – autor sobre o qual todos se basearam –,
argumentamos que os “gigantes” os quais comumente nos sentamos sobre os ombros não
estão isentos de cometerem equívocos e, portanto, não podemos fazer uma leitura acrítica de
seus trabalhos.
Por fim, o artigo EMA0154 trata-se de uma revisão de literatura sobre o conceito de
“valor para o cliente” – que, segundo os autores, apresenta uma falta de homogeneidade nas
definições – e ferramentas de mensuração do construto. Duas observações são aqui
importantes. A primeira se refere à análise conceitual do construto, que foi cuidadosa, não só
na apresentação de suas várias definições, mas também em identificar acuradamente como o
conceito se insere como faceta tanto de “valor do cliente quanto de “valor do cliente para a
empresa”. Entretanto, o curioso é que os autores só apresentam modelos de mensuração de
“valor para o cliente” com base nessas facetas (RUST et al., FLINT et al., 2002). Ora, isto não
parece sugerir que o construto, em si, não teria ferramentas próprias de mensuração? Por
outro lado, enquanto os autores se concentram na dimensão “valor do valor” do modelo de
Rust et al. (2001) e ainda esclarecem que os conceitos de “valor para o cliente” e “valor do
cliente para a empresa” não devem ser confundidos, discutem os outros dois modelos como se
fossem simplesmente relativos a “valor para o cliente”, sem considerar que neles, além da
faceta deste, está, sobretudo, o conceito de “valor do cliente”. Não chega a ser possível se
evidenciar aqui um enfeitiçamento, mas, no mínimo, uma confusão. Como as outras, esta
pode vir a ter impacto sobre estudos posteriores.
5. Conclusões
A conclusão deste estudo aponta para a confirmação de nossa hipótese apenas nos
casos em que o conceito de “valor” utilizado foi o “valor para o cliente” e, neste caso, sempre
como construto. Pela diferença quantitativa de artigos baseados nesse conceito em relação aos
outros, era de se esperar mais problemas aqui. Entretanto, é impossível não se considerar o
fato de que nenhum dos artigos que se utilizaram dos outros dois conceitos tenha incorrido em
enfeitiçamentos, bem como o mesmo ter ocorrido quando do tratamento de “valor para o
cliente” como variável. A partir de nossa análise, concluímos que tal fato deva-se, sobretudo a
duas questões. Primeiro, pelo fato da confusão conceitual já estar presente nos trabalhos
originais. Parece que nossos pesquisadores estejam simplesmente replicando modelos e
conceitos e, nesta importação, trazendo os problemas presentes nos trabalhos originais.
Segundo, o fato desse conceito ser também uma faceta dos outros dois parece estar
confundindo os pesquisadores e levando estes a caírem na tentação semântica de atribuir um
mesmo significado a diferentes coisas apresentadas pelo mesmo nome. De qualquer forma,
estas questões devem servir de alerta, mas nunca de justificativa. A interpretação crítica de
teorias e conceitos é uma obrigação dos pesquisadores comprometidos com a fidedignidade
de seus trabalhos.
Além desses comentários, uma descoberta deste estudo que, por motivo de escopo,
ficou a sua margem, merece maior atenção. A quantidade de artigos que se utilizam do termo
valor apenas como um apoio conceitual, muitas vezes sequer conceituado, e/ou como clichê é
bastante significativa. Isto parece indicar que o termo tenha virado moda entre nossos
pesquisadores, o que, dependendo da intensidade e da repercussão desta tendência, não seria,
sob uma ótica pragmática, menos grave do que a hipótese levantada neste estudo.
Acreditamos que este aspecto mereça uma maior investigação, no que indicamos tal análise
para uma futura pesquisa.
Finalmente, reconhecemos como uma limitação de nossa pesquisa termos selecionado
artigos publicados apenas em Encontros da ANPAD e, ainda mais, apenas relativo aos últimos
cinco anos. Contudo, considerarmos os Encontros da ANPAD o fórum mais importante da
Administração no Brasil, o que justifica sua escolha. Por outro lado, o fato do primeiro ano de
nossa amostra não ter tido nenhum trabalho relativo a algum conceito de “valor” parece se
apresentar como uma evidência de que tais conceitos só tenham realmente começado a serem
tratados amplamente por nossa academia nos últimos anos.
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