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    156 • ESTADO CAPITALISTA E CLASSE DOMINANTE 

    Sou o prefaciador da obra em ques-tão, além de ter sido o orientador da tesede doutorado que se encontra na origemdesse livro. Pelas regras acadêmicas –cuja conveniência não deve de resto sercontestada de modo apressado e irrefle-tido –, não seria de bom tom lançar-me

    em considerações públicas sobre um tra-balho realizado sob minha direção. Ocor-re entretanto que Crítica Marxista não éuma revista acadêmica. Assim sendo, sin-to-me à vontade para abordar aqui algu-mas questões teoricamente relevanteslevantadas por Perissinotto. O comentá-rio que se segue não preenche a funçãoliterária da resenha: não apresento um

    resumo do livro, nem enumero as qua-lidades do autor. Mas espero que minhaincursão no campo de problemas instau-rado pela análise de Perissinotto indique

    indiretamente a alta relevância científicado seu trabalho de investigação.

    O objeto fundamental da análise pro-posta por Perissinotto é a relação que seestabelece, ao longo da Primeira Repú-blica brasileira (1889-1930), entre a bu-rocracia estatal paulista e o grande capi-

    tal cafeeiro (ou capital cafeeiro tout court ). Confirmando os termos da análi-se contida em seu trabalho anterior1,Perissinotto sustenta, com base em alen-tada pesquisa histórica, que a políticaeconômica implementada pelos sucessi-vos governos estaduais paulistas concre-tiza a hegemonia política do grande ca-pital cafeeiro diante das demais frações

    da classe dominante. O autor, entretan-to, tem dificuldade em manter o vigordessa tese ao longo de todo o trabalho,pois os próprios fatos e processos por ele

         

    DÉCIO SAES ** 

    marxista

                                                                                                                                         

                                                    

    * Comentário ao livro: Renato Monseff Perissinotto. Estado e capital cafeeiro em São Paulo (1889 – 1930) , 2 tomos, São Paulo, Ed. Annablume, 2000.

     ** Professor-visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor colaborador voluntáriodo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.

    1 Trata-se de Renato M. Perissinotto, Classes dominantes e hegemonia na República Velha, Ed.Unicamp, Campinas, 1994.

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    evocados se encarregam de lhe mover umataque cerrado. Mesmo para os que nãoestão envolvidos numa pesquisa especí-fica sobre a história política da PrimeiraRepública brasileira (é, pelo menos porora, o meu caso), é interessante refletirsobre as raízes dessa dificuldade. Ela meparece decorrer do empenho inicial dePerissinotto em colocar a suposiçãopoulantziana do fracionamento dos in-teresses da classe dominante no proces-so político capitalista a serviço de uma“sociologia dos grupos sociais”, como setal fracionamento dependesse da consti-tuição prévia de um contingente de mem-bros da classe dominante como gruposocial, dotado de coesão interna e volta-do para o exercício de influência políti-ca a favor de seus interesses comuns. Ogrande capital cafeeiro, reconhecido porPerissinotto como o ator político funda-mental da Primeira República brasilei-ra, é um grupo dominante multifuncional

    ou polivalente: os seus membros são so-bretudo exportadores e banqueiros, mastambém fazendeiros de café, donos deações de ferrovias e industriais2. Nele seabrigam, portanto, diferentes interesseseconômicos (os da propriedade fundiária,os do capital comercial e bancário, osdo capital industrial). Caso os portado-res de tais interesses fossem grupos sociais

    diferenciados (e não um só grupo social,como no caso em pauta), seria inevitávelo conflito entre eles, pois todo segmentoda classe dominante sabe que, dado umcerto montante de produto social, é possí-vel aumentar os seus ganhos relativos àsexpensas da diminuição dos ganhos re-lativos de outros segmentos dessa classe(e isso independentemente da adoção de

    procedimentos destinados a intensificara exploração do trabalho). Sendo, inver-samente, um grupo social dominante por-tador de múltiplos interesses econômicos,seria inevitável que ele se inclinasse, aoexercer pressão sobre o Estado, por aque-les interesses que fossem mais significati-vos (isto é, que fossem potencialmentegeradores de maiores ganhos), já que, numsistema de posições relativas como aque-le que relaciona os diferentes interesseseconômicos das diferentes frações daclasse dominante, é politicamente inviá-vel equacionar uma repartição igualitá-ria ideal dos ganhos totais (lucros, juros,rendas da terra). Nesse caso, uma dimen-são econômica específica desse gruposocial dominante primaria, nos terrenosda ação econômica e da ação política,sobre as demais; e, conseqüentemente,impor-se-ia a predominância, no proces-so político, do fracionamento de interes-ses segundo a função dos agentes na es-

    trutura econômica global (produção, cir-culação). Mas suponhamos, para explo-rar todas as possibilidades lógicas, queo grupo social dominante endereçasse aoEstado um elenco de reivindicações ba-lanceado, contemplando eqüitativamentediversos interesses econômicos própriosà classe dominante. Seria impossível queo Estado atendesse essa demanda igua-

    litária: cada medida proposta pelos agen-tes governamentais seria objetivamentemais favorável aos ganhos de uma ououtra fração; e, no plano subjetivo, tam-bém seria encarada como tal. Nesse caso,o Estado atuaria como fator primordialde fracionamento dos interesses econômi-cos da classe dominante, chocando-se nes-sa empreitada com a configuração superfi-

    2 Ver R. Perissinotto, Estado e capital cafeeiro..., tomo I, p. 26.

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    cial dessa classe: vale dizer, com a sua de-composição em grupos sociais construídossobre outras bases (uma rede local de in-teresses, a origem familiar ou clânicaetc.). Não me parece que Perissinotto ig-nore que, a partir de uma “sociologia dosgrupos sociais”, jamais se chegará a umavisão teoricamente ajustada do exercícioda hegemonia política no seio da classedominante. O autor, inclusive, rapida-mente esclarece que a dimensão predo-minante no grande capital cafeeiro é amercantil-exportadora; e que, como capi-tal bancário e comercial, o grande capitalcafeeiro submete à sua hegemonia polí-tica “lavradores” e “fazendeiros de café”.Por outro lado, Perissinotto demonstra,ao longo de todo o seu trabalho, que oprocesso de definição da política de Es-tado regional paulista (tributação, polí-ticas de valorização do café etc.) não éapenas a expressão de uma hegemoniapolítica mercantil-exportadora já plena-

    mente constituída. Na verdade, a imple-mentação da política de Estado implicaa explicitação dos interesses em jogo, eatua, nessa medida, como fator crucialde diferenciação e fracionamento dosinteresses econômicos da classe domi-nante paulista. Pode-se portanto dizerque, no fim das contas, Perissinotto acabadando prioridade, na análise do proces-

    so de formação e exercício da hegemoniapolítica no seio da classe dominante, auma fração “econômica” da classe do-minante em detrimento de um grupo so-cial dominante de caráter multifuncio-nal. Restaria aqui sublinhar a justezadesse encaminhamento, bem como su-gerir ao leitor que se fie, teoricamente,

    mais no percurso total da análise que nadeclaração inicial de intenções.

    O caráter conflituoso do exercício

    da hegemonia política no seio do

    bloco no poder

    A análise da relação existente entrea burocracia estatal paulista e o grandecapital cafeeiro – que, na prática, age ese posiciona como capital mercantil-exportador – chega a seu patamar maiselevado quando Perissinotto caracterizade modo minucioso a oposição dessa fra-ção a uma política governamental que,analisada retrospectivamente, parececriar as condições gerais necessárias àmanutenção da lucratividade das ativi-dades de comercialização e exportaçãodo café. Para Perissinotto, a burocraciaestatal pode estar implementando umapolítica econômica que corresponde ob-

     jetivamente aos interesses econômicos deuma fração da classe dominante, mas

    nem por isso se reduz à condição de meroinstrumento da vontade política dosmembros de tal fração. Essa conclusão,por sua vez, suscita em nós leitores umaindagação de caráter teórico: o conflitoentre burocracia estatal e fração hege-mônica é ocasional? Ou ele é uma di-mensão permanente da relação entreambos, no contexto das formações so-

    ciais capitalistas?Inclino-me a pensar que tal conflito

    nada tem de ocasional; e que a sua eclo-são não depende de variações conjuntu-rais. Já em Poder político e classes so-ciais3, Nicos Poulantzas repete insistente-mente – e tem razão em fazê-lo – que,no que diz respeito à classe dominante,

    3 Ver Nicos Poulantzas. Pouvoir politique et classes sociales, 2 tomos, Paris, Ed. Maspero. 1971;especialmente, o item “L’État capitaliste et les classes dominantes”.

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    a função política da burocracia estatal ca-pitalista não é exatamente a de garantira preponderância dos interesses econô-micos – isto é, a hegemonia política nosentido estrito – de uma fração da classedominante sobre as demais; e sim a demanter a unidade política da classe do-minante, sob a égide da fração hege-mônica. Essas duas fórmulas parecem serligeiramente diferentes; quando se com-para porém os padrões de relacionamentopolítico entre frações da classe dominan-te resultantes, respectivamente, de umae de outra, essa diferença se revela maiordo que se poderia inicialmente pensar. Éo que se evidencia em Fascismo e dita-dura4, em que Poulantzas explicita, naanálise da política fascista, as implica-ções políticas para a burocracia estatalcapitalista, do exercício da função de uni-ficar politicamente a classe dominantesob a égide da fração hegemônica. Acúpula do partido fascista, alçada à con-

    dição de burocracia estatal, implementauma política econômica que concretizaa hegemonia política do capital monopo-lista no seio do bloco no poder; ao mes-mo tempo, a burocracia estatal fascistadeve, a fim de manter e consolidar a uni-dade política da classe dominante, “neu-tralizar”, “amortecer” ou “sufocar” ascontradições entre o capital monopolista

    e as demais frações da classe dominante(isso sendo possível porque, comoPoulantzas esclarece liminarmente, taiscontradições não têm um caráter “anta-gônico”). Ora, “neutralizar”, “amorte-cer” ou “sufocar” as contradições entrefração hegemônica e frações subalternasda classe dominante implica contemplar,

    na implementação da política de Estado,alguns interesses econômicos secundá-rios das frações subalternas às expensasde interesses econômicos igualmentesecundários da fração hegemônica. OEstado capitalista tende assim à execu-ção de uma política de compromisso (tra-ta-se aqui da fórmula empregada porPoulantzas em Fascismo e ditadura; enão da fórmula de Weffort) que, ao invésde inviabilizar, através da neutralizaçãorecíproca de interesses econômicos dasfrações, a concretização da hegemoniapolítica no seio do bloco no poder, ins-taura, através da neutralização dos con-flitos políticos entre frações, as condi-ções indispensáveis ao exercício de talhegemonia. A política de compromissoexige, por exemplo, que o aparelho deEstado capitalista por vezes tributepesadamente a fração hegemônica e sub-meta as frações subalternas a uma tribu-tação mais ligeira, inclusive porque a fra-

    ção politicamente hegemônica tende  aser aquela que já prepondera no terrenoestritamente econômico (preponderânciaessa, de resto, que se metamorfoseia re-gularmente em recursos ideológicos epolíticos que são de grande importânciano equacionamento da relação entre essafração e o Estado capitalista). Ora, é pre-visível que todas as classes sociais e

    frações da classe dominante – inclusivea fração hegemônica – resistam aos tri-butos que lhes são impostos, já que emprincípio – isto é, salvo em situações hi-potéticas em que toda tributação se tor-naria economicamente inviável – é sem-pre possível alguma redistribuição dacarga tributária entre as classes sociais

    4 Ver Nicos Poulantzas. Fascisme et dictature, Paris, Ed. Maspero, 1970; terceira parte, “Fascisme etclasses dominantes”.

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    ou entre as frações da classe dominante.A resistência à tributação é a posturamais razoável, do ponto de vista dos in-teresses econômicos de cada fração daclasse dominante, já que a submissão si-lenciosa às alíquotas vigentes no presentepode agravar a sua situação no futuro.Ou seja, pautando-se pela regra, politi-camente eficaz, segundo a qual “quemcala consente”, o fisco pode se sentirautorizado a gravar mais intensamente osrendimentos da fração da classe domi-nante que tiver optado pela aceitação tá-cita do modelo oficial de distribuição dacarga tributária, aliviando aqueles que sedecidem pelo protesto aberto contra talmodelo. À vista disso, é desarrazoadosupor que a fração hegemônica se sub-meteria sem luta à política econômicaimplementada pela burocracia estatal (e,em particular, à política tributária); e queo faria por ter uma compreensão plena –similar à de um historiador analisando o

    passado – da relação positiva entre o ata-que burocrático a seus interesses econô-micos imediatos e a preservação de seusinteresses econômicos de médio ou lon-go prazos. Essas observações nos obri-gam a concluir nossa intervenção sobreeste tema com uma formulação incisiva:é praticamente impossível o exercício dahegemonia política no seio do bloco no

    poder sem que irrompam conflitos polí-ticos entre a fração hegemônica e a bu-rocracia estatal, cuja ação político-admi-nistrativa redunda em concretização detal hegemonia.

    Essa formulação resolve algumas,porém não todas as questões que se co-locam para o analista do processo políti-co típico das formações sociais capita-

    listas. Ela tem, é verdade, a utilidade dedescartar a aplicação da distinção entre

    “consentimento” e “oposição” como cri-tério de diferenciação das posições“hegemônica” e “subordinada” dentro dobloco no poder (procedimento que é ob-viamente simplista, mas que permanecede pé caso não seja contestado no planoteórico). Paralelamente, ela amplia aimportância do trabalho de estabele-cimento de conexões entre interesseseconômicos de fração e política estatal.Nesse terreno, a operação mais fácil éaquela que consiste em estabelecer a dis-tinção entre interesses econômicos defração priorizados pela política estatal einteresses econômicos de fração só se-cundariamente levados em conta pelosagentes burocráticos. O analista políticopode entretanto deparar com situaçõeshistóricas bem mais complexas, comoaquelas em que a ação estatal procurainduzir a transformação – “pelo alto” – da“situação de classe” e dos interesses eco-nômicos de uma fração da classe domi-

    nante, sem que seja plausível (e portantovisível) o consentimento de tal fração comrelação a essa política transformadora.Assim, por exemplo, a burocracia esta-tal pode buscar a transformação, atravésde uma série de medidas econômicas, deuma burguesia industrial nativa, dupla-mente dependente (isto é, dependentediante dos países capitalistas centrais,

    que lhe fornecem tecnologia industrial;e diante do capital mercantil-exportadorlocal, que lhe fornece as divisas necessá-rias à importação dessa tecnologia indus-trial), numa burguesia nacional, capaz deliderar o processo interno de industriali-zação e a luta pela independência eco-nômica do país diante das grandes po-tências capitalistas. Ela pode também

    perseguir a conversão de uma classefundiária pré-capitalista em burguesia

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    agrária típica das formações sociais ca-pitalistas. É previsível que tanto a bur-guesia industrial dependente quanto olatifúndio pré-capitalista resistam à açãoestatal de transformação “pelo alto” desua “situação de classe”. Entenda-se en-tretanto que não estamos, aqui, dianteda resistência de uma fração hegemônicaà ação burocrática que redunda, em últi-ma instância, na concretização de suaprópria hegemonia política no seio dobloco no poder. Nos casos em pauta, aresistência da fração de classe dominan-te sujeita à pressão burocrática consiste,antes, na “reserva” diante de uma políti-ca estatal que busca liquidar certos inte-resses econômicos em prol da instaura-ção de novos interesses econômicos. Essaempreitada estatal de destruição/constru-ção de interesses econômicos inviabiliza,no plano da análise, o estabelecimentode conexões objetivas entre a ação esta-tal e os interesses econômicos atuais (se-

     jam eles de curto, médio ou longo pra-zos) da fração em questão. Conseqüen-temente, ela também impossibilita queo analista político atribua à fração, cuja“situação de classe” a ação burocráticaprocura transformar, a hegemonia polí-tica no seio do bloco no poder. Se asobservações acima forem procedentes,muito trabalho teórico deverá ainda ser

    realizado no terreno da distinção dos di-ferentes tipos de oposição de classe do-minante à ação burocrática estatal: a) aoposição movida pelas frações subalter-nas do bloco no poder; b) a oposiçãomovida pela fração hegemônica no seiodo bloco no poder; c) a oposição movi-da por frações cuja “situação de classe”está em vias de ser transformada “pelo

    alto”, por força da ação burocráticaestatal.

    Os objetivos da burocracia estatal

    Reconhecer o elevado valor científi-co da análise inovadora contida em  Es-tado e capital cafeeiro em São Paulo

    (1889-1930) não  implica entretanto en-dossar todas as premissas teóricas dePerissinotto. Entre estas, figura a hipóte-se de que a concretização da hegemoniapolítica no seio do bloco no poder se dápor entrecruzamento de projetos políti-cos paralelos: o de conformar a políticade Estado com a defesa prioritária decertos interesses econômicos ( projeto dealguma fração da classe dominante ) e ode aumentar a capacidade extrativa doEstado, ou – dito de outro modo – deampliar o controle estatal dos recursosmateriais propiciados pela sociedade(projeto da burocracia estatal). Tal entre-cruzamento ocorre, segundo Perissinotto,porque a burocracia estatal deve garan-tir a expansão do setor economicamentemais poderoso da classe dominante, caso

    queira extrair da “sociedade” recursosmateriais que tornem mais poderoso oEstado, em sua relação com o seu am-biente social. A fundamentação teóricada tese da concretização da hegemoniapolítica por entrecruzamento de proje-tos políticos paralelos é portanto – pararecorrermos a uma linguagem vulgar – aidéia de que o Estado deve engordar, e

    não matar, a galinha dos ovos de ouro.Se a expressão “economicismo” nãoestivesse totalmente desgastada pela faltade rigor e de critério dos que a utilizamfreqüentemente, seria o caso de dizer quePerissinotto, ao recorrer a uma tal argu-mentação, acaba fazendo uma incursãonesse terreno. Afinal de contas, não sãoapenas as frações economicamente mais

    poderosas da classe dominante – isto é,aquelas que desfrutam da  preponderân-

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    cia econômica – que chegam ao exercí-cio da hegemonia política no seio do blo-co no poder, embora se possa admitir quea articulação da preponderância econô-mica e da hegemonia política confere aobloco no poder uma configuração maisestável e mais duradoura. Revoluçõespopulares ou golpes de Estado podemabrir o caminho para a instauração, mes-mo que por um breve período, dahegemonia política de frações economi-camente menos poderosas da classe do-minante. Na fase inicial da Revoluçãoportuguesa de 1974, por exemplo, esbo-çou-se uma orientação anti-monopolistano terreno da política econômica (orien-tação defendida não apenas por uma ten-dência do MFA como também por cer-tos partidos políticos). Tal orientação foilogo superada pela tendência à defesaprioritária dos interesses do capitalmonopolista; porém, enquanto durou,abriu a possibilidade de o médio capital

    construir a sua hegemonia política noseio do bloco no poder. Também é pos-sível levantar a hipótese de que, numa

     fase inicial, a ação de certos governossocial-democratas ou de unidade popularda Europa ocidental tenha se inclinadomais para os interesses do médio capitalque para os do grande capital. Situaçõeshistóricas como essas parecem desmen-

    tir a argumentação de Perissinotto segun-do a qual a burocracia estatal capitalistaprocura sempre converter – por motivospróprios – a fração burguesa economi-camente preponderante em fração poli-ticamente hegemônica no seio do blocono poder. Mas não se pode dizer que taissituações desmintam igualmente a tesecomplementar de Perissinotto, segundo

    a qual a burocracia estatal capitalistasempre busca, em qualquer circunstân-

    cia, o aumento da capacidade extrativado Estado. As interpretações acerca doimpacto de políticas anti-monopolistassobre a capacidade extrativa do Estadopodem ser divergentes. Para alguns, aimplementação de tais políticas equiva-le a “assassinar a galinha dos ovos deouro”; vale dizer, a comprometer a ex-pansão do poderio estatal. Para outros,atacar monopólios “parasitários” equiva-leria ao reforço da economia nacional e,em última instância, do Estado. Outrassituações históricas, porém, parecem des-mentir de modo inequívoco a existênciade um compromisso recorrente de todaburocracia estatal capitalista com o au-mento da capacidade extrativa do Estado.As burocracias estatais que implemen-tam, hoje, políticas econômicas neolibe-rais estão comprometidas com um pro-

     jeto, não de aumento da capacidadeextrativa, e sim de desmonte do Estado.Mesmo quando não logram diminuir a

    carga tributária (cujo aumento visa cons-tantemente atenuar os efeitos das pró-prias políticas neoliberais ) e se limitama congelar o seu montante ou a desaceleraro seu ritmo de crescimento, os tecnocratasneoliberais atacam a capacidade extrativado Estado por outras vias, como a privati-zação de empresas públicas ou a retiradado aparelho estatal do campo das ativida-

    des regulamentadoras. Estas situações –típicas da atual fase do capitalismo – des-mentem que as burocracias estatais ca-pitalistas estejam sempre perseguindo oaumento da capacidade extrativa do Esta-do. Todavia, para os nossos fins, essedesmentido empírico não basta. Por isso,devemos voltar ao terreno da teoria pararefletirmos, aí, sobre os verdadeiros obje-

    tivos da burocracia estatal capitalista.O aumento da capacidade extrativa

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    do Estado ou a expansão do poderio es-tatal diante da sociedade só podem serqualificados como objetivos instrumen-tais, postos sempre a serviço de objeti-vos finais. E de onde proviriam essesobjetivos finais? Até mesmo um baixofuncionário público sabe que as decisõesestatais estão longe de cair num espaçosocial vazio; e que tanto a ação quanto ainação político-administrativas incidemsobre a “sociedade”, vale dizer sobre osinteresses coletivos que a compõem. Nãohá portanto possibilidade de as macro-decisões estatais estarem desconectadasdos interesses sociais, seja no caso delevarem ao aumento da capacidadeextrativa do Estado, seja no caso inverso.E também não é possível que a buro-cracia estatal capitalista se furte à in-fluência exercida por alguma dentre asdiversas visões do jogo travado entre in-teresses sociais diferenciados; isso sópoderia ocorrer se o Estado fosse um apa-

    relho absolutamente paralelo à socieda-de, sem desempenhar qualquer função re-corrente na reprodução de sua estruturaeconômica e sem sequer – hipótese maismodesta – “interseccionar-se” com ela.Ora, o Estado não é uma instituição alea-tória e, como tal, inclinada a “explorar”a sociedade; e sim, uma instituição so-cial. Quanto à burocracia estatal, ela não

    é um “corpo parasitário”, em oposiçãopermanente aos interesses das classessociais; e sim, uma parte da sociedade.Como tal, ela se submete aos interessespolíticos de uma classe social determi-nada (mais especificamente: aos interes-ses políticos que “espelharem” mais efi-cazmente a sua própria posição dentroda sociedade capitalista) e aos interes-

    ses econômicos de uma das frações des-sa classe (por força de sua origem de clas-

    se, dos efeitos produzidos pela luta ide-ológica no seio do bloco no poder, dapressão pessoal, econômica ou políticade uma fração, ou ainda de uma articu-lação de todos esses fatores). Mas não ofaz de modo consciente; a rigor, conver-te tais interesses no objetivo final laten-te (isto é, subjacente às declarações ofi-ciais de compromisso com o bem-estarsocial, com a vontade geral, com o bemcomum etc.) de toda ação burocráticaestatal. O compromisso exclusivo da bu-rocracia estatal com objetivos instrumen-tais não passa de uma fantasia, engen-drada por essa própria categoria social edifundida, em versões conceitualmentemais desenvolvidas, pelos seus represen-tantes ideológicos (entre os quais MaxWeber figura como o mais talentoso).Certos analistas ressalvam hoje, numaperspectiva realista e “maquiavélica”,que o objetivo (instrumental) persegui-do pela burocracia estatal capitalista é o

    aumento da capacidade extrativa do Es-tado (e, portanto, a ampliação do pode-rio estatal diante da sociedade ), o quesombreia numa certa medida o retratoweberiano do burocrata, onde este apa-rece basicamente ocupado com a perse-guição do belo princípio da raciona-lidade. Tais analistas estão, entretanto,objetivamente aliados aos weberianos clás-

    sicos na apologia ao Estado moderno, jáque ambos evitam – cada um por um ca-minho – a caracterização da burocraciaestatal como um instrumento de interes-ses poderosos (vale dizer, capitalistas).

    Seria possível que a visão de Peris-sinotto sobre a burocracia estatal capita-lista – encarada esta como um grupo so-cial comprometido fundamentalmente

    com objetivos instrumentais, e não comobjetivos finais de cunho social – dei-

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    5 Cf. R. Perissinotto. Estado e capital cafeeiro ..., tomo II, p. 198.

    xasse de repercutir sobre o seu modo deoperar com a teoria marxista da hege-monia política no seio do bloco no po-der? Perissinotto afirma que a ação bu-rocrática estatal concretiza sempre, nasformações sociais capitalistas, a hege-monia política de uma fração de classedominante no seio do bloco no poder; esugere, com base em sólida análise his-tórica, que o exercício dessa hegemonianão exclui conflitos entre a burocraciaestatal e a fração hegemônica no seio dobloco no poder. Até aí, Perissinotto se-gue objetivamente Poulantzas, que, comoprocurei indicar anteriormente, esmera-sena caracterização desse tipo de conflito noquadro de sua análise sobre o fascismo.Mas me parece que, em Poulantzas, a ex-plicação teórica para a eclosão de taisconflitos segue o modelo marxista clás-sico: enquanto os membros de uma fra-ção de classe dominante qualquer pressi-onam o Estado para que este satisfaça os

    seus interesses econômicos individuais decurto prazo, os seus representantes políti-cos (no caso do aparelho de Estado, a bu-rocracia; no caso da cena política, algumpartido) agem como a consciência coleti-va dessa fração, dando prioridade aos in-teresses econômicos coletivos de médioou longo prazos. E, como vimos anterior-mente, faz parte da defesa prioritária de

    tais interesses a busca da unidade políticada classe dominante, o que implica “neu-tralizar” os conflitos políticos no seio dessaclasse social através da satisfação de inte-resses econômicos secundários das fraçõessubalternas do bloco no poder às expensasde interesses econômicos secundários (in-dividuais e/ou de curto prazo) da fração

    hegemônica. Ora, o caminho teórico en-cetado por Perissinotto é, em última ins-tância, outro: se, na sua ação constanteem prol da ampliação da capacidadeextrativa do Estado, a burocracia estatalconsiderar que a satisfação dos interes-ses da fração burguesa economicamentemais poderosa deixou de ser instrumen-tal com relação ao seu objetivo final, elaabandonará a defesa prioritária de taisinteresses – ou de quaisquer outros inte-resses econômicos de fração – “para sal-var o Estado”. Está aberta, assim, a viapara um “fortalecimento do poder esta-tal em detrimento do poder de classe”5.A rigor, se o apelo de Perissinotto à teo-ria da hegemonia política no seio do blo-co no poder parecia comprometê-lo coma concepção teórica segundo a qual aestrutura jurídico-política ocupa um lu-gar específico e preenche uma funçãoespecífica na totalidade social, a sua de-finição dos “objetivos próprios do Esta-

    do” aponta para um Estado em oposiçãoà sociedade. Que esse considerável re-cuo teórico não comprometa inúmerasdimensões da análise política empreen-dida por Perissinotto (os conflitos políti-cos entre fração hegemônica e burocraciaestatal paulista, a relação entre fraçõesde classe dominante e associações declasse, o caráter de classe e a função po-

    lítica do PRP etc.) apenas atesta a inegá-vel inclinação de Renato Perissinottopara a pesquisa histórica. Por isso, asobservações teóricas reunidas neste co-mentário devem ser encaradas – até pelofato de que mais levantam problemas doque os resolvem – como um estímulo àleitura desse importante trabalho.