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  • 8/13/2019 DISSERTACAO_Malandros e Malandragem_Noel Rosa_Turi Collura

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTOCENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAISPROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS

    MESTRADO EM LETRAS

    SALVATORE COLLURA

    MALANDROS E MALANDRAGEM:NOEL ROSA

    VITRIA

    2011

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    SALVATORE COLLURA

    MALANDROS E MALANDRAGEM:NOEL ROSA

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Letras da Universidade Federal doEsprito Santo, como requisito parcial para obtenodo Grau de Mestre em Letras.

    Orientador: Prof. Dr. Srgio da Fonseca Amaral.

    VITRIA2011

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    Eu bem sei que tu condenasO estilo popular

    Sendo as notas sete apenasMais eu no posso inventar

    (Mais um samba popular, Noel Rosa)

    Aquele sem-queixo demais. Um gnio! A gente aqui escrevendo, escrevendo, escrevendo,e ele resume tudo em uma meia dzia de palavras.

    Exatamente meia dzia!(Orestes Barbosa sobre Noel)

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    RESUMO

    Analisa a figura do malandro, enquanto personagem e enquanto linguagem, na

    produo do compositor Noel Rosa, evidenciando as caractersticas e as

    peculiaridades do discurso noelino, bem como as inovaes introduzidas por ele no

    mbito da cano popular brasileira, que resultam da conjugao de vrios fatores:

    musical, temtico, lingustico e potico. Contextualiza a figura do malandro, que

    vivencia significantes modificaes entre o final do sculo XIX e as primeiras trs

    dcadas do sculo XX, trazendo a discusso at o perodo de Noel e de Getlio

    Vargas. Sob a luz da temtica do malandro e da malandragem, atenta para um

    panorama histrico, social, poltico e cultural do perodo estudado, observando arelao multifacetada de Noel Rosa com o malandro e a malandragem. Diz respeito

    a uma mudana de perspectiva que Noel, cronista da Vila Isabel, props sobre a

    viso do malandro: ele percebeu que em uma sociedade em fase de grandes

    transformaes assim como era o Rio de Janeiro daquela poca a imagem do

    malandro de navalha no bolso, ligada ao mundo do samba, podia representar um

    perigo para o progresso da carreira artstica dos novos compositores.

    Palavras-chave: Rosa, Noel, 1910-1937. Malandros e vadios na literatura. Samba.

    Indstria cultural.

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    RIASSUNTO

    Analizza la figura del malandrino dal punto di vista del personaggio e del suo

    llinguaggio nella produzione del compositore Noel Rosa, mettendo in evidenza le

    caratteristiche e le peculiarit del discorso noelino, cos come le innovazioni da lui

    introdotte nellambito della canzone popolare brasiliana, risultanti dalla coniugazione

    di vari fattori: musicale, tematico, linguistico e poetico. Contestualizza la figura del

    malandrino, esposta a cambiamenti significanti tra la fine del secolo XIX e i primi tre

    decenni del XX secolo, concentrando lanalisi sul periodo di Noel Rosa e Getlio

    Vargas. Sotto la luce della tematica del malandrino e del malandrinaggio, conduce

    un panorama storico, sociale, politico e culturale del periodo in analisi, osservando ladiverse relazioni di Noel Rosa com il malandrino e il malandrinaggio. Discute i

    cambiamenti di prospettiva che Noel, cronista di Vila Isabel, propose riguardo la

    visione del malandrino: egli percep che in una societ in fase di grandi

    trasformazioni qualera Rio de Janeiro in quellepoca, lassociazione dellimmagine

    del malandrino dal coltello in tasca con il mondo del samba, poteva costituire un

    pericolo per il progresso della carriera artistica dei nuovi compositori.

    Parole chiave: Rosa, Noel, 1910-1937. Malandrini e vagabondi nella letteratura.

    Samba. Industria culturale.

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    SUMRIO

    1. INTRODUO ....................................................................................................... 8

    2. MALANDROS E MALANDRAGEM ENTRE O FINAL DO SCULO XIXE O TEMPO DE NOEL ROSA ................................................................................. 282.1 O SURGIMENTO DA FIGURA DO MALANDRO NO RIO DE JANEIRO ......... 28

    2.2 SOCIEDADE, MALANDRO E TRABALHO ....................................................... 362.3 SAMBA E MALANDRAGEM ............................................................................. 502.4 NOEL ROSA E SUAS RELAES COM O MUNDO DA MALANDRAGEM ... 562.5 O MALANDRO, O SAMBA E SEUS LUGARES ............................................... 602.6 A MALANDRAGEM ENTRE AS MUDANAS SCIO-CULTURAISNA POCA DE GETLIO VARGAS E AS DISPUTAS DE CLASSE....................... 68

    3. VERTENTES NOELINAS SOBRE MALANDROS E MALANDRAGEM ........... 763.1 OS MALANDROS, A IRONIA E A REFLEXO SOCIAL .................................. 763.2 OS MALANDROS, O AMOR E AS MULHERES .............................................. 993.3 MALANDROS E FOLGADOS: HUMOR E IRREVERNCIA .......................... 111

    4. O MALANDRO E A MALANDRAGEM NAPOLMICA ENTRE NOELROSA E WILSON BATISTA................................................................................. 1195. CONSIDERAES FINAIS............................................................................. 1396. REFERNCIAS ............................................................................................... 150

    APNDICE A - Letras das msicas de Noel Rosa citadas neste trabalho ............ 155

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    1. INTRODUO

    Objetivo principal deste trabalho a anlise da figura do malandro, enquantopersonagem e enquanto linguagem, em algumas composies de Noel Rosa.Propomo-nos a evidenciar, atravs da leitura crtica de seus textos, asparticularidades do discurso noelino sobre o tema do malandro e da malandragem,contextualizando-o no que diz respeito s questes sociais, culturais e econmicasda poca, e tambm em sua relao com a produo de outros compositorescontemporneos.

    Se verdade que a figura do malandro preexistente sua verso carioca do inciodo sculo XX, encontrando-se em vrias pocas e folclores, teremos a oportunidadede perceber que o personagem brasileiro desse perodo assume caractersticasprprias, interessantes de serem examinadas. Alm disso, observaremos que, aolongo de poucas dcadas, o personagem assume conotaes variadas: ora omalandro do morro, ora o malandro da Lapa bairro tpico da boemia cariocadaqueles anos ora o malandro dos terreiros de macumba, ora o do carnaval. Se,

    para o senso comum, o malandro pode ser visto como um sujeito astuto e sagaz,que abusa da confiana dos outros e usa de sua esperteza para tirar proveito esobreviver sem trabalhar, por outro lado, seu nome pode estar diretamente ligado ahistrias de polcia, prises e homicdios. O malandro encarna, s vezes, o porta-vozde discursos de classe, outras vezes um sujeito bandido, ou, ainda, um trapaceirobomio e divertido um rapaz folgado, citando uma expresso de Noel Rosa. Ascondies da poca so favorveis para o surgimento de uma certa cultura

    malandra, que se parece com as contradies sociais que o Rio de Janeiroenfrenta, entre as quais destacam-se um grande crescimento demogrfico, umaforte diviso entre ricos e pobres, os processos de favelizao, a perseguio dosvagabundos que no se enquadram no sistema burgus fundamentado no trabalhoempregatcio, entre outros fatores.

    Desenvolveremos um panorama histrico e social do Brasil entre o final do sculo

    XIX e a terceira dcada do sculo XX, apontando para o surgimento do malandro noBrasil e para as suas caractersticas. Isso ser feito ao longo do primeiro captulo.

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    O malandro se torna um smbolo do novo Rio de Janeiro do comeo do sculo XX,pois, como observa Cludia Matos em seu livro Acertei no milhar: samba emalandragem no tempo de Getlio, se em sua figura coexistem caracteres

    antagnicos, porque ele expressa o antagonismo e a contradio existentes dentroda sociedade [...] (MATOS, 1982, p. 68). Atentaremos, ento, para uma definio, oquanto mais abrangente possvel, do personagem.

    Estudaremos, tambm, a relao do malandro com o mundo do samba. De fato, apalavra sambista era, ainda nos anos 30, sinnimo de vagabundo, de marginal, eesses dois substantivos estavam ligados malandragem.

    O poeta da Vila como Noel era apelidado atuou nos primeiros sete anos dadcada de 1930, perodo de grandes desenvolvimentos, mudanas etransformaes, tanto no samba e, de forma geral, na msica brasileira assimcomo sociais, econmicas e culturais. Nessa poca, assistimos ao sucesso e veiculao, atravs do rdio, dos discos e do teatro, do personagem malandro e dacultura malandra, principalmente nas suas manifestaes tipicamente cariocas

    pois a capital Rio de Janeiro difundia modelos sociais e de comportamento peloBrasil afora. Se a temtica da malandragem carioca alcana o auge nesse perodo,observamos que a sua histria no recente, no linear e nem unvoca. Asabordagens e as descries referentes ao tema provm de lugares sociais diversos,encontrando-se, por exemplo, em sambas do morro, em sambas urbanos, emmarchinhas de carnaval, assim como em peas do teatro de revista.

    Eis que Noel Rosa, de pele branca, filho de uma famlia de classe mdia emergente o pai comerciante, a me professora de um bairro do Rio de Janeiro emascenso econmica, que estudou em um colgio tradicional o colgio So Bento e que chegou a ser estudante de medicina, mas que adora a vida noturna, aboemia, a bebida e as mulheres, se encontra, segundo nosso ponto de vista, emuma posio privilegiada para escrever sobre a malandragem de uma forma nova emais ampla: ele conhece o morro e seus personagens, tem livre acesso a eles,frequenta os sambistas de l Cartola ser seu grande amigo e parceiro, tanto desambas assim como de noitadas e bebidas e frequenta, tambm, os malandros,alguns dos quais so seus amigos. Ao mesmo tempo, ele tem acesso s badaladas

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    rdios da cidade, muito em voga naquele perodo, e, dada a sua condio social,tem, com muita probabilidade, a oportunidade de travar alguma forma de contatocom as reflexes e as vertentes da corrente modernista, oriunda da Semana de Arte

    Moderna de 1922. Alm de caractersticas modernistas, suas letras apresentam,tambm, uma reflexo social, conduzida com brilhante humor e ironia.

    De forma geral, a malandragem, tema aqui em anlise, pode ser considerada comoo conjunto de caractersticas prprias do malandro, de seus modus agendi . Omalandro simboliza aquele tipo de personagem em grande parte carioca proveniente das classes menos favorecidas, bomio, que se coloca em evidncia

    por seu modo peculiar de se vestir, de falar, de andar, e que vive de prazeres ediverses. Mas , tambm, um sujeito que acha sua prpria maneira de sobrevivers regras da sociedade capitalista e que move sua crtica aos valores burgueses:inimigo do batente historicamente associado escravido observa quemtrabalha andar no miser citando Wilson Batista em Leno no pescoo. Ser dointerstcio, o malandro vive mais s custas dos outros que dos prprios esforos.No trabalha regularmente, preferindo viver de prticas mais ou menos ilcitas. Sua

    figura se assenta nas contradies sociais de uma sociedade brasileira aindaconfusa entre os pensamentos e os costumes da colnia escravocrata com suadiviso de classes e a vida moderna, inspirada nas grandes cidades europias.

    O malandro , em grande parte, um personagem negro ou mestio proveniente dasclasses marginalizadas da sua ligao com o samba. Sua cultura, permeada deelementos afro-brasileiros, estranha aos modelos europeus. Ele vive na fronteira

    entre a ordem e a desordem, entre a legalidade e a ilegalidade. Fabiana Lopes daCunha, em seu livro Da marginalidade ao estrelato: o samba na construo danacionalidade (1917-1945), descreve o malandro como

    [...] um personagem dissimulado que se utiliza de mscaras para vivernuma sociedade adversa, contra a qual no adianta medir foras emconfronto direto. O malandro popular ento cava um viver pardico,aparentemente aceitando as regras institudas. Sua imagem diferente dequem tem um trabalho regular, porque o malandro sempre anda muitoalinhado, de terno branco impecvel, elementos que aparentementepoderiam aproxim-lo dos padres burgueses, ou das camadas mdiasurbanas (CHUNHA, 2004, p. 168).

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    vive fora dos esquemas convencionais do trabalho. A esse propsito, vemos, porexemplo, a msica O que ser de mim, de Ismael Silva e Nilton Bastos, de 1931:

    Se eu precisar algum diaDe ir pro batenteNo sei o que serPois vivo na malandragemE vida melhor no h.

    Minha malandragem finaNo desfazendo de ningumDeus quem nos d a sinaE o valor d-se a quem tem.

    (GOMES, 2011, p. 173).

    Ao estudar a relao de Noel Rosa com o tema do malandro e da malandragem,observamos algumas perspectivas, s vezes diferentes do que outros compositoresseus contemporneos apresentam. A primeira delas a de um cronista da poca,comentarista do tempo e da sociedade em que vive; a do Noel flneur que,vagueando pela cidade, observa a rua, suas personagens, seus costumes. Sobre oflneur , observado na Frana do sculo XIX por Charles Baudelaire, Walter

    Benjamim (1989, p. 38) o define como aquele sujeito em que se esconde avigilncia de um observador que no perde de vista o malfeitor, afirmando, ainda,que se trata de um prncipe que, por toda parte, faz uso do seu incgnito(BENJAMIN, 1989, p. 38) em busca da experincia da rua. O poeta e cronista Joodo Rio assim descreve o flneur e sua atividade pelas ruas cariocas:

    Flanar ser vagabundo e refletir, ser basbaque e comentar, ter o vrus daobservao ligado ao da vadiagem. Flanar ir por a, de manh, de dia, noite, meter-se nas rodas da populaa, admirar o menino da gaitinha ali esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozarnas praas os ajuntamentos defronte das lanternas mgicas [...]. Paracompreender a psicologia da rua no basta gozar-lhe as delcias como segoza o calor do sol e o lirismo do luar. preciso ter esprito vagabundo,cheio de curiosidades malss e os nervos com um perptuo desejoincompreensvel [...] (RIO, 2008, p. 39).

    Nesse sentido, Noel nos deixar a sensao de saber descrever com grandeacuidade e sutileza o que percebe em sua volta. Vemos, por exemplo, no samba

    Sculo do Progresso, de 1934, uma crnica em que encontramos a observao do

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    compositor sobre a rpida transformao dos costumes naquele Rio de Janeiro emgrande desenvolvimento econmico e social:

    A noite estava estreladaQuando a roda se formou A lua veio atrasadaE o samba comeouUm tiro a pouca distnciaNo espao forte ecoouMas ningum deu importnciaE o samba continuou

    Entretanto, ali bem pertoMorria de um tiro certoUm valente muito srioProfessor dos desacatos

    Que ensinava aos pacatosO rumo do cemitrio

    Chegou algum apressadoNaquele samba animadoQue cantando assim dizia:No sculo do progressoO revlver teve ingressoPra acabar com a valentia

    (MXIMO; DIDIER, 1990, p. 295).

    Nesses versos, o compositor percebe as mudanas do perodo em que vive: apoca do sujeito valente, respeitado no morro, muito srio, est prestes a acabar,devido ao ingresso do revlver. A cena mostra, ainda, a indiferena dos presentes,que no do importncia ao ecoar do tiro. A observao social est contida emvrias composies de Noel, algumas das quais sero estudadas ao longo destetrabalho, como, por exemplo, O orvalho vem caindo, Filosofia, Conversa debotequim, entre outras.

    Uma segunda forma de relao de Noel Rosa com a temtica da malandragem estligada viso bomia da vida, vida noturna, ao botequim, e tambm aos pequenosgolpes aplicados ao outro.

    Teremos a oportunidade de observar como Noel constri seus textos de maneiraambgua e irnica. Este o caso, por exemplo, da msica Com que roupa, que

    ser amplamente analisada no segundo captulo. A lbia do malandro, a conversaastuciosa, utilizada para convencer ou enganar o outro, fascina Noel, que a reproduz

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    em seus versos, como podemos encontrar, por exemplo, nesse trecho da letra dosamba Mentiras de mulher, de 1931:

    Que eu tenho horror ao batente,Que no sou decentePode crer quem quiser.Que eu sou fingido e malvadoE at sou casadoSo mentiras de mulher.

    (MXIMO; DIDIER, 1990, p. 393).

    Mas, quem o fingidor, nesses versos? o eu lrico, ou seja o malandro, ou a

    mulher? Atentaremos para o sentido irnico das canes de Noel, apontando paraas possveis leituras.

    Mas h uma terceira relao de Noel com o tema do malandro, que queremosevidenciar: conscientemente ou no, o Poeta da Vila d voz ideologia dominanteque reprova a inclinao violenta do malandro de navalha no bolso, retratado, porexemplo, no texto da msica Leno no Pescoo, de Wilson Batista. Noel tenta

    desconstruir essa figura, ridicularizando-a atravs da ironia, da comicidade, e tentasubstitu-la com sua verso civilizada, o rapaz folgado. Trataremos disso noterceiro captulo.

    O perodo em que Noel atua de grandes revolues tecnolgicas: a luz eltrica, otelefone, o cinema, o automvel, o avio e os novos inventos no campo da indstriafonogrfica (DINIZ, 2006, p. 42). Nas capitais brasileiras acabava-se de vivenciar,h pouco tempo, uma verso tropical da assim chamada Belle poque, uma fase dedespreocupao e euforia vivida pela burguesia europeia entre o final do sculo XIXe o incio do sculo XX. Assim a define Andr Diniz, em seu livro Almanaque dosamba :

    A bela poca foi caracterizada pela crena desenfreada nas virtudes ebenesses da vida burguesa. Indo do fim do sculo XIX ao incio do XX, comgrande fora sobretudo em Viena e Paris, influenciou com muita vitalidade ocenrio cultural das grandes cidades brasileiras. A cultura parisiense tornou-se referncia para nossa elite. Reverenciavam-se o idioma francs e ospoetas, escritores e pintores da Cidade Luz. No cotidiano do Rio de Janeiro,matriz poltica e cultural do pas, a elite remodelava os espaos desociabilidade, empurrando a cultura afrodescendente para as nascentesperiferias e morros (DINIZ, 2006, p. 43).

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    Em seu livro Literatura como misso: tenses sociais e criao da PrimeiraRepblica, Nicolau Sevcenko observa que o Rio de Janeiro passava por umaremodelagem urbana segundo os moldes parisienses.

    Ao estilo do mestre-de-obras, elaborado e transmitido de gerao emgerao desde os tempos coloniais, constituindo-se ao fim em uma arteautenticamente nacional, sobreps-se o art nouveau rebuscado dos fins daBelle poque. Tambm com relao vestimenta verifica-se a passagemda tradicional sobrecasaca e cartola, ambos pretos, smbolos daausteridade da sociedade patriarcal e aristocrtica do Imprio, para a modamais leve e democrtica do palet de casimira clara e chapu de palha. Oimportante agora ser chic ou smart, conforme a procedncia do tecido oudo modelo (SEVCENKO, 1986, p. 44-45).

    A cidade se dividia: de um lado as camadas mais pobres, que sofriam com afavelizao em reas insalubres da cidade, e que eram consideradas ociosas eameaadoras ao desenvolvimento e ao progresso do pas; de outro a elite burguesada cidade, que se preocupava em introduzir modos de conduta civilizados oriundosda Europa, e em fundamentar seus costumes nos modelos de l. Acreditamos quetal caricatura pitoresca dos costumes europeus vir influenciar a vestimenta fina domalandro, que se torna, por sua vez, a caricatura de uma caricatura, isto , a

    caricatura do burgus tropical, o qual vive imitando os costumes europeus.

    Nesse contexto, vem tona o estilo de vida bomio, um estilo de vida noconvencional segundo o pensamento burgus-capitalista fenmeno social queDiogo de Castro Oliveira observa ser contraditrio:

    O bomio era o autntico portador de uma contradio interna voraz: porum lado, foi a modernidade que possibilitou que ele viesse a lume; por

    outro, nele se concentrava a resistncia mais radical a essa mesmamodernidade. A boemia, portanto, deve ser enquadrada exatamente nofulcro do dilema burgus: o interesse egostico do capital por um lado, osideais de emancipao e de liberdade do homem pelo outro. Ela o corpodo delito dessa angstia (OLIVEIRA, 2008, p. 31-32).

    Em sua obra Nem do morro nem da cidade: as transformaes do samba e aindstria cultural (1920-1945), Adriano Fenerick observa que em bairros como aLapa carioca, a boemia literria do perodo se mistura com a gente valente, com a

    malandragem bomia: Bairro bomio, a Lapa concentrava vrios cabars, sales,restaurantes, livrarias, caf e botequins, centro de um meretrcio todo especial

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    (2005, p. 33). Citando Andr Gardel emO encontro entre Bandeira e Sinh , Fenerickdiz que a Lapa era

    a bomia [sic ] artstica de literatos e msicos, artistas plsticos e jornalistasque, junto com o ambiente geral do lugar (igrejas, Arcos, velhos sobrados,etc.), os tipos populares (meninos de rua, malandros, macumbeiros, etc.) eos artistas oriundos das camadas baixas da populao, definem umpanorama de realidades e espaos mesclados (FENERICK, 2005, p. 33).

    Observamos, nesse relatos, dois tipos de boemia que convivem no mesmoambiente. Oliveira que nos ajuda a defini-los, fazendo uma separao

    [...] entre a boemia e uma boemia literria por dois motivos bvios: oprimeiro que a boemia, com seus marginais, prostitutas, conspiradores eestudantes, pode marcar uma poca, mas nem sempre deixa um legado ouvestgios para a bateia do historiador; segundo, como pesquisador dosepifenmenos culturais, cabe-me buscar compreender e realar [...] ocrescimento funcional do esprito no processo de conhecimento numapoca de rupturas to drsticas com o passado e com a tradio. Arenitncia dos bomios em combater a modernidade que os gerou compreensvel pela prpria complexidade da cidade, que tende a suprimiraqueles que adotam condutas irracionais e soberanas, alheias aos quadrosdas funes sociais e dos postos da cadeia produtiva. Nesse sentido, obomio pode ser enquadrado como um conservador. O indivduo naverdade protesta com sua vivncia errante e sua insistncia em no aceitar

    papis sociais estveis contra o fato de ser desnecessrio para a cidade.No fundo, o bomio o resduo de um sistema que se aproveita do homemde todas as formas e incessantemente (OLIVEIRA, 2008, p. 34).

    Na conversa do malandro que encontramos nas letras dos sambas da poca, aboemia faz referncia vida noturna da bebida e dos prostbulos, do jogo do bicho,da polcia perseguidora, mas tambm faz referncia crtica social e resistnciaou dificuldade de integrao na sociedade moderna e capitalista.

    Aproveitando o ensejo sugerido por Oliveira, que faz distino entre dois tipos deboemia, observamos que diferentes figuras se abrigam sob a nica definio demalandro: o valento bom de briga, que anda de navalha no bolso; o aventureiroastucioso; o sujeito da boemia; o que traz seu sustento no baralho ou no jogo dachapinha; o cafeto dos bordis, entre outros. Parece-nos oportuna uma tentativa dediferenciao, aos fins de nosso estudo. Apontamos, assim, para uma distino do

    malandro em trs categorias: a primeira se refere ao que chamamos de malandrocomo ser. Essa categoria alude ao malandro violento e criminoso, de navalha no

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    bolso, personagem que realmente existiu na urbs carioca. Pensemos, por exemplo,no personagem Madame Sat, representante dos malandros tpicos do imaginriocoletivo, marginal ou bandido, que acabou representando uma espcie de fora de

    resistncia contra os maus tratos dos policiais em relao s prostitutas, aostravestis, enfim, a toda sorte de gente que vivia no e do submundo carioca. Assim odescreve Rogrio Durst:

    De cabelos pelos ombros, Sat destruiu a socos de canhota o esteretipodo homossexual frgil e delicado. Terror dos policiais, passou mais de umtero de sua vida na cadeia. E foi um preso exemplar. Foi Mulata doBalacoch e campeo de fantasias do baile dos Caadores de Veados.Pegou para criar cinco crianas. Na infncia, sua me trocou-o por umagua. Foi cozinheiro de penso. Matou um guarda. Foi ambguo, Santo ediaba. Rainha Diaba (DURST, 1985, texto da contracapa).

    Numa segunda categorizao, distinguimos o malandro de performance, que aquele que incorpora a malandragem como estilo de vida. Este, sem ser de fato ummalandro real, de navalha no bolso, como o que descrevemos acima, adotaalgumas posturas daquele personagem, muitas vezes sendo apenas um bomio, umfrequentador de prostbulos e botequins e/ou um caloteiro. Nesse sentido, podemos

    pensar no prprio compositor Noel Rosa, que, se no era certamente um malandrotout court , gostava de viver na boemia, de gozar da cara do outro, adotando gestos eatitudes do malandro do morro, quer por fascnio, quer para chamar a ateno parasi. Podemos nos referir, ainda, quele que usa de procedimentos desonestos paratrapacear e enganar os outros, aplicando-lhes golpes diversos.

    Mximo e Didier, autores do importante livroNoel Rosa: uma biografia, apontam,

    repetidamente, para o carter altamente autobiogrfico das letras de Noel, que doretrato mais caracterstico do malandro imita alguma pose:

    [Noel] no propriamente um malandro, desses que exploram mulheres eacreditam que s pancada as amacia. Seus sambas pregando esse tipo demalandragem no devem ser tomados ao p da letra. So mais pose doque convico, menos vontade de agir do que de cantar como malandro.Sempre foi assim (MXIMO; DIDIER, 1990, p. 275, grifo nosso).

    Inserido em um contexto scio-cultural em que, ainda h pouco tempo, os termossambista e malandro eram quase sinnimos, acreditamos que o poeta da Vila possa

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    ter se deparado com algumas reflexes acima do prprio papel dentro de suasociedade: bomio por natureza, Noel sentia na pele a dificuldade de se viver forados esquemas da vida burguesa pautada pelo trabalho convencional. Citando

    novamente Joo do Rio, se flanar ser vagabundo, [...] ter o vrus da observaoligado ao da vadiagem (RIO, 2008, p. 39), eis que a um cronista-sambista como eleno resta mais que assumir como prpria a filosofia da vida bomia e, por essevis, de uma certa malandragem. Mas, incisivo em sua observao, Carlos Sandronise manifesta sobre a malandragem dos prprios sambistas da seguinte forma:

    De fato, talvez a nica e decisiva malandragem real dos sambistas tenhasido transmitir aos compradores de discos e consumidores de msica

    popular uma imagem idealizada de suas prprias existncias, graas qualpuderam, quando tiveram sorte, contornar parte de suas dificuldadesmateriais (SANDRONI, 2001, p. 178).

    Isso nos remete a uma considerao: tanto Noel, assim como outros compositoresexploraram o tema da malandragem apenas por este estar em voga. Eis que,seguindo a sugesto de Sandroni, fico e autofico, isto , performance, seencontrariam no contexto da malandragem.

    Por fim, apontamos para um malandro esttico, fruto das composies literrias e,de forma geral, da produo artstica. Trata-se do malandro idealizado, representadonos roteiros de teatro, assim como nas msicas dos sambistas.

    Se uma diferenciao em categorias pode nos ajudar no estudo e no entendimentodesse personagem multifacetado, assim como no estudo da repercusso que este

    teve na sociedade e na cultura brasileira, no simples definir onde comea um tipoe termina outro. Sem dvida, o malandro que aqui definimos esttico ou seja o dacriao literria ou artstica se baseia na leitura/interpretao ficcional daquelepersonagem real que acima definimos malandro como ser. Mas, tambm,podemos observar que a criao literria resulta influenciada pelo proceder domalandro que chamamos de performance, o qual, por sua vez, se remeteinevitavelmente ao sujeito real. Percebemos, ainda, que o sujeito real, de algumamaneira, se produz numa inveno de si, banca o personagem e, portanto, setorna performance. Para essa observao, nos apoiamos no conceito de performance definido por Diana Klinger, segundo o qual o sujeito representa um

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    papel na prpria vida real, na sua exposio pblica, em suas mltiplas falas desi, nas entrevistas, nas crnicas e auto-retratos, nas palestras. (KLINGER, 2007, p.55). Nesse sentido, a inteira vida real se torna produto da inveno de si . O

    conceito de performance de Klinger nos parece oferecer a oportunidade propciapara a reflexo aqui proposta: se difcil apontar onde termina uma das categorias einicia a outra, porque as trs se influenciam reciprocamente o tempo todo.

    A anlise dos diversos tipos de malandro descritos por Noel Rosa o objetoprincipal de nosso estudo no segundo captulo, onde examinamos algumascomposies do autor. Num necessrio recorte, escolhemos algumas obras tidas

    como representantes das principais vertentes temticas noelinas sobre o malandro esobre a malandragem: ora o elogio de alguns aspectos do modus vivendi et agendi de um personagem bomio; ora o retrato irnico, cmico, de um malandro medrosoe fraco, ou, ainda, a crnica da dura realidade que o personagem em anliseenfrenta. Estudaremos as letras tentando evidenciar suas peculiaridades,contextualizando-as no que diz respeito discusso social e cultural da poca. Aomesmo tempo, aproveitaremos para destacar alguns aspectos caractersticos da

    inovao textual do compositor, da linguagem e do estilo por ele utilizado.

    No que diz respeito msica popular e seus compositores, compartilhando da ideiade autores como Srgio Cabral, Wander Nunes Frota, Ricardo Cravo Albin, entreoutros, podemos afirmar que a partir dos anos vinte, iniciaram-se os trabalhos quecriaram as diretrizes da msica popular brasileira que prosseguir numa mesmadireo por algumas dcadas e, quem sabe, de certa forma, at os dias de hoje.

    Atuando no perodo chamado a Era de Ouro do Rdio, segundo a definio deCravo Albin (2003, p. 80), Noel Rosa considerado, hoje, o representante de umagerao de novos compositores, um divisor de guas na histria da canobrasileira, e o primeiro compositor moderno da msica popular nacional. Sua obra tida como um dos mais importantes paradigmas da msica popular urbanabrasileira. Alguns estudiosos que se manifestaram nesse sentido so AntonioCandido, Jos Ramos Tinhoro, Luiz Tatit, entre outros. Noel operou uma mediaoentre elementos do samba do morro e do samba da cidade e tornou-se, apesar dospoucos anos de carreira de 1929 a 1937 uma referncia to importante de sua

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    poca que, para indicar a classe dos compositores e cantores de rdio da dcada de1930, Frota, em seu livro Auxlio luxuoso, refere-se a estes como gerao NoelRosa (FROTA, 2003). Noel esteve sempre atento s tendncias do momento, ao

    gosto da populao, em uma poca de grandes transformaes, aquela dos anos30, perodo em que se comeou a autonomizao da atividade musical no mbitodas duas principais instncias de consagrao da poca: a indstria fonogrfica e asemissoras comerciais de rdio (FROTA, 2003, p. 62).

    Segundo Frota (2003, p. 25), uma das principais contribuies da gerao NoelRosa foi a de originalmente mapear os planos de navegao dentro daquele novo

    campo, tanto para si mesmos como para os artistas que vieram depois. Algunsfatores contriburam, principalmente para a definio da msica popular brasileiraassim como se deu. Primeiramente foi graas ao surgimento de uma dadatecnologia, com o consequente crescimento das mdias principalmente o disco eas emissoras de rdio. E isso foi em direo sucessiva criao/massificao dogosto do grande pblico, com fins comerciais. Em 1927, foi implantado no Brasil osistema de gravao eletromagntica dos discos. Essa mudana tecnolgica da

    indstria discogrfica permitia grandes vantagens: ao contrrio do que acontecia nosistema mecnico, o som gerado se transformava, no novo sistema, em sinal decorrente eletromagntica e, sucessivamente amplificado. Alm de melhorar aqualidade do som de forma geral, isso permitiu que cantores desprovidos de umvozeiro, lrico, pudessem gravar. Noel Rosa, dotado de uma voz bastante fraca, junto a muitos outros novos cantores, teve acesso imortalizao da prpria voz.Com uma significativa reduo dos custos de produo, trazida pela nova

    tecnologia, o disco passou a ter uma participao maior no processo demassificao da msica popular.

    Apesar da inaugurao da primeira emissora de rdio do pas ter ocorrido em 1923,o rdio foi oficialmente transformado em veculo comercial aps o Decreto n. 21.111do Executivo Federal datado de 1 o de maro de 1932 (FROTA, 2003, p. 26). Um anodepois o Rio de Janeiro contava j com cinco estaes. A esse propsito, autorescomo Giovanna Dealtry, Fabiana Lopes da Cunha e Wander Nunes Frota observamcomo as concesses do servio radiofnico, que eram feitas (e continuam sendo)pelo Estado, tiveram, sem dvida, um carter poltico-estratgico para o governo de

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    Getlio Vargas, que entendeu facilmente o potencial das mdias para o controle dasmassas. Como observa Cunha,

    A dinamizao do cenrio econmico com o advento da Repblica e aextraordinria diversificao dos meios sociais, assim como uma aberturaindita para as correntes dominantes da cultura internacional, promoveriamum ambiente de trocas simblicas e de amlgamas surpreendentes, nointerior do qual foram forjados os processos de auto-representao voltadospara a configurao de uma identidade nacional brasileira sinttica, unitriae abrangente (CUNHA, 2004, p. 15).

    O Brasil precisava se tornar um pas moderno, de se projetar no cenrio econmicointernacional. Foi fcil, ento, que todos os fatores acima citados contribussem paraa institucionalizao fabricao? de uma identidade cultural musical nacional,precipuamente espelhada no cenrio scio-cultural da Capital Federal, o Rio deJaneiro. Tanto a indstria fonogrfica e do comrcio via rdio, assim como osinteresses de Getlio Vargas levavam a essa criao. Afirma, ainda, Cunha:

    A sntese final desse enredo esdrxulo se daria sob a batuta firme dosministrios da cultura e propaganda, coordenando a indstria fonogrfica, oteatro do rebolado, os estdios de cinema, as estaes de rdio, a produomusical e literria, e a pompa monumental dos desfiles das escolas de

    samba (CUNHA, 2004, p. 15).

    De acordo com Frota (2003), os artistas da gerao Noel Rosa tiveram que aprendera lidar com as instncias de consagrao e suas circunstncias mais imediatas. Afinal, nos anos 30, pela primeira vez, era possvel viver de msica, mesmo que issofosse ainda reservado a um pequeno reduto de artistas brancos ou mestios.Segundo o autor, em busca de sucesso, os artistas submetiam seus dotes artsticos,

    cientemente ou no, s leis comerciais do mercado. A msica popular, queexportava os modelos de vida das grandes cidades para o resto do Brasil, nodeixou de receber as atenes de Getlio Vargas, o qual, como observa Dealtry(2009), pouco tempo depois da morte de Noel, propor ao mundo inteiro a imagemrepresentativa do Brasil na figura de Carmen Miranda e por meio da msicaAquarela do Brasil. Nasce, nesse perodo, o Samba exaltao , cujo embrio podeser encontrado nas composies que, no comeo dos anos 30, exaltam o prprio

    bairro. Vale lembrar, entre todas, o samba Feitio da Vila de Noel Rosa, em cujaletra encontramos:

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    So Paulo d caf,Minas d leite,E a Vila Isabel d samba.

    (MXIMO; DIDIER, 1990, p. 329).

    Mas Noel, sem dvida, teve outras importncias, para a histria da msica popularbrasileira, se considerarmos as inovaes e as transformaes que introduziuatravs de suas composies. At ento, as letras debochadas, satricas, anedticaseram caractersticas apenas da cano carnavalesca, enquanto a cano se achavaainda engessada num linguajar rgido e formal. Afirma Ramiro Lopes Bicca Juniorque

    a letra no tinha grande importncia na msica popular at o aparecimentode Noel Rosa. Os lundus, modinhas e choros que eram a msica de fundoda poca do Imprio, no eram famosas ou significativas por causa de suapoesia. verdade que os msicos do incio do sculo XX se inspirarambastante na poesia romntica para produo de suas letras, mas semprecom o objetivo de rebuscar suas canes que valiam pelo ritmo ou pelamelodia. Havia a poesia de Catulo da Paixo Cearense, repleta deonomatopias, versos circunstanciais ou sem sentido e imitaes dalinguagem interiorana [...] e havia tambm as letras pernsticas de canes(que no deixam de ser belas) como Rosa, de Pixinguinha e Otvio deSouza, inspiradas na tradio esttica parnasiana da poesia brasileira. [...]Com Noel, o significado potico da cano, no samba, passou a ser muitomais valorizado. A letra adquire uma importncia to grande quanto o ritmoou a melodia (BICCA JUNIOR, 2009, p. 74-76).

    Com suas parcerias com compositores do morro, como Cartola e Ismael Silva, Noelconsegue trazer para o rdio, e, portanto, para a grande massa, um linguajardiferente que, se bem influenciado pela informalidade e pela gria Carvalho e Araujo (1999) falam em lngua viva do Brasil consegue imprimir a seus textos umestilo individual, cheio de solues originais e inovadoras. Isto se deu, segundoCarvalho e Araujo,

    na pronncia de nossos vocbulos, no emprego das rimas brasileira, naescolha vocabular, [...] na sintaxe de regncia e na colocao dos pronomestonos, enfim, em tudo o que espalha a riqueza e a pujana de nossaoralidade (CARVALHO; ARAUJO, 1999, introduo, p. xvi).

    So vrios os autores que apontam Noel como um modernista. Se, por um lado,Noel , sem dvida, compositor popular, por outro, sua formao cultural, como jobservamos, lhe abre caminhos para um contato direto com a corrente cujo

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    movimento artstico iniciou-se com a Semana de Arte Moderna de 1922 e queadquirir importncia nos anos sucessivos. Ao fazermos a anlise das letras dossambas noelinos propostos, evidenciaremos alguns dos procedimentos poticos que

    o Filsofo do Samba como o compositor tambm tem sido apelidado empregou, antecipando procedimentos textuais e musicais que entraro em uso noBrasil somente a partir da poca da Bossa Nova. Mas Carvalho e Araujo vo maislonge, ao afirmarem que, em um certo sentido Noel

    foi at mais ousado que alguns modernistas. [...] Basta lembrar que usou eabusou dos versos livres, exercitou a metalinguagem em suas letras,esgrimiu o humor, o nonsense, o grotesco e o absurdo, como poucospoetas modernistas o fizeram. [...] semelhana de grandes escritores

    brasileiros de ontem como de hoje (pensamos em Mestre Machado de Assise no injustiado Graciliano Ramos), Noel se permitiu filosofar sobre osentido da vida. [...] Foi um dos primeiros, seno o primeiro sambistabrasileiro, a compor letras com o eu-potico feminino na 1a pessoa. [...] Pelosentido de renovao musical, temtica, lingstica e potica presente emsua obra, Noel se sobrepe aos compositores contemporneos seus e seprojeta para o futuro, renovando a cada dia sua atualidade (CARVALHO;

    ARAUJO, 1999, introduo, p. xvi).

    Mas se verdade que nos sambas do poeta da Vila encontramos o tom da lngua

    brasileira que os modernistas perseguiram (SANTANNA, 2004, p. 25), alcanadaatravs de uma linguagem coloquial, atentaremos, tambm, para o uso do humor eda ironia, vistas como

    categorias discursivas que evidenciam um distanciamento crtico dosvalores sociais dominantes. Isto , por caminhos paralelos, dado que no sesabe de nenhum tipo de interlocuo entre os poetas modernistas e ossambistas da dcada de 30, a literatura e a cano popular urbanalanaram mo de alguns recursos idnticos na construo de sua produodiscursiva, justamente num momento em que ambas criavam paradigmasbastante duradouros na arte brasileira (PINTO, 2010, p. 868).

    Observa Marcos Monteiro (2000, p. 61) que a forte presena da modernidade namsica popular, claro, no exclusividade de Noel Rosa. A questo que se coloca a sua posio de pioneiro, e a fora do modernismo que permeia toda a sua obra.De fato, a maioria das composies do Poeta da Vila est atravessada pelascategorias discursivas do humor e da ironia, que quase sempre levam a uma

    reflexo sobre as mudanas, as preocupaes ou os fracassos sociais, econmicos

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    e culturais da sociedade da poca. Lemos aqui, como exemplo, alguns trechos,como esse da msica Quem d mais:

    Quanto que vai ganhar o leiloeiro,Que tambm brasileiro,E em trs lotes vendeu o Brasil inteiro?Quem d mais...?

    (MXIMO; DIDIER, 1990, p. 167).

    ou, esse trecho do samba Esquina da vida:

    na esquina da vidaQue assisto descidaDe quem subiuFao o confrontoEntre o malandro prontoE o otrioQue nasceu pra milionrio

    (MXIMO; DIDIER, 1990, p. 260).

    O humor noelino leva o leitor ao riso, mesmo, por exemplo, frente situao de

    misria de um malandro em dificuldade:

    Eu hoje estou pulando como sapo,Pra ver se escapoDesta praga de urubuJ estou coberto de farrapo,Eu vou acabar ficando nu

    (MXIMO; DIDIER, 1990, p. 117).

    Outras vezes, humor e ironia parecem trabalhar para reduzir o impacto negativo dafigura do malandro de navalha no bolso, perante sociedade, como no caso da letrado samba Rapaz folgado, produzida em resposta composio de Wilson BatistaLeno no pescoo:

    Proponho ao povo civilizadoNo te chamar de malandroE sim de rapaz folgado.

    (MXIMO; DIDIER, 1990, p. 292).

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    Nelson Rodrigues Filho observa, sobre Noel:

    Cronista do Rio, e pode-se dizer filsofo, na vertente assistemtica deuma sabedoria (oposta ao sentido do exerccio sistemtico da reflexo e dosaber), na parodia e na stira que o discurso de Noel Rosa ter o seusabor mais caracterstico e onde se vai apreender maior grau de maturidadeartstica, exprimindo o bom humor e o sentido crtico de um Rio capitalfederal, cosmopolita e bomio. [...] [...] necessrio destacar a importnciaque ter na sua obra o discurso parodstico e satrico. Com ele, alm deretomar uma tradio da poesia (e da msica) brasileira, que vem desdeGregrio de Mattos e chega ao tropicalismo, por exemplo, [...] vai, atravsda incorporao do coloquial, do chiste e do prosaico, dessacralizar, aexemplo dos modernistas, o ato potico, produzindo o registro vivo emordaz de hbitos, comportamentos, formas de pensar e contradies deseu tempo histrico (RODRIGUES, 1987, p. 19-20).

    Acreditamos que foi, tambm, graas a Noel Rosa que as figuras do malandro e damalandragem foram ganhando a simpatia da classe mdia e de um nmeroconsidervel de cariocas e, em geral, de brasileiros que no tinham contato coma cultura do morro nem com a cultura suburbana do Rio de Janeiro.

    Em resumo, tendo evidenciado, aqui, alguns dos aspectos que caracterizam aproduo noelina sobre o tema do malandro, afirmamos que Noel Rosa pode serconsiderado um artista-smbolo de sua gerao. Nas palavras de Frota (2003, p. 68),a esttica musical e potica de suas composies d a slida impresso de ter idoum pouco alm da de todos os outros compositores de sua poca.

    No imenso corpus de msicas produzidas por Noel Rosa deixou mais de duzentase cinquenta composies, criadas em menos de sete anos torna-se praticamenteimpossvel tratar de todas aquelas que contemplem, de uma forma ou de outra, afigura do malandro e/ou que remetam a alguma forma de malandragem. Contudo, aanlise do acervo do compositor revela similaridades, entre alguns sambas e outros,no que diz respeito ao posicionamento ideolgico e aos procedimentoscompositivos. A escolha das letras analisadas vai em busca das principais vertentesque, juntas, possam oferecer uma viso geral, quanto mais ampla, da poticanoelina sobre os temas que nos propomos para nosso estudo. No segundo captulo,procuramos organizar a exposio da anlise dos textos, agrupando-os por

    tipologias de assunto. Distinguimos, assim, diferentes categorias: a primeira a dossambas que priorizam a reflexo social e poltica, que fazem a crnica das

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    dificuldades em que versa o malandro da poca, sujeito que vive entre o lcito e oilcito e margem da sociedade. Numa segunda categoria, organizamos os sambasque retratam a relao malandro/mulher/amor, enquanto numa terceira reunimos os

    sambas que ressaltam o lado humorstico e irreverente da escrita noelina. claroque essa diviso em categorias fechadas tem apenas um objetivo acadmico, sendoexclusivamente uma proposta organizativa do trabalho de anlise.

    Por fim, dedicamos um espao parte a assim chamada Polmica, disputa musicaltravada entre Noel e Wilson Batista.

    Uma das maiores discusses do mundo musical do Rio de Janeiro nos anos 30, foi afamosa Polmica entre os compositores Noel Rosa e Wilson Batista. O sujeitocentral da disputa a definio da figura do malandro e de seus significados, numapoca de grandes transformaes scio-culturais. A querelle, que rendeu timostextos, chama nossa ateno: de um lado um compositor branco de classe mdia,que vinha se tornando um cone do rdio; do outro um jovem negro, vindo do interiordo estado do Rio. Por um lado, concordamos com Frota, quando afirma que a

    Polmica foi apenas

    uma grande jogada de marketing s que perpetrada e posteriormenteentronizada pela histria semi-oficial da MPB [...]. Se existiu uma polmicaentre esses dois artistas foi tirada quase que exclusivamente da cabea dequem a enxerga como tal. Afinal, era muito comum nos anos 30 oscompositores responderem canes que se tornavam populares (FROTA,2003, p. 55).

    Por outro lado, observando o fruto da tenso emprestando esse termo da poesiaprovenal, entendida como controvrsia entre dois compositores entre os doissambistas, podemos certamente perceber os diferentes pontos de vista: o dorepresentante de uma classe menos favorecida e o de um representante de classemdia, ou, quem sabe, tambm, entre um jovem, ainda pouco experiente queprecisa ganhar seu lugar no olimpo dos compositores da poca, disposto adesfrutar da temtica da malandragem de forma contundente, e um compositor jmais maduro e ciente das transformaes sociais e culturais da poca. Acreditamos

    que atravs da anlise das letras das msicas que compem a polmica,conseguiremos fechar o crculo desse estudo sobre a malandragem na poca de

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    Noel e, em especfico, sobre o ponto de vista do Poeta da Vila. Chamaremos, paraesse exame, as leituras crticas de autores que se dedicaram anlise dessefenmeno, cujas diferentes interpretaes enriquecem nosso olhar sobre o assunto.

    Muitas das composies de Noel foram feitas em parceria. Algumas vezes essasparcerias eram verdadeiras, outras vezes no, sendo apenas fruto de um gesto deamizade ou de alguma venda dinheiro vs. direitos autorais, por exemplo. Dequalquer maneira, as biografias nos orientam de forma a atribuir a Noel a autoria dotexto, o parceiro cuidando da parte musical. Baseando-nos nisso, ao longo dotrabalho, ao fazermos a anlise das letras do Poeta da Vila, deixaremos de citar as

    parcerias.

    Utilizaremos sempre, como fonte para as letras das msicas aqui estudadas, asverses citadas pelos bigrafos do Poeta da Vila, Joo Mximo e Carlos Didier, nolivro Noel Rosa: uma biografia, obra, essa, considerada hoje como a refernciaprincipal e mais imponente sobre a vida e a obra do compositor.

    Os trechos das letras de Noel utilizados nos dois captulos, que constituem o corpocentral deste trabalho, se encontram, na ntegra, no apndice, junto s indicaes dafonte citada.

    Por fim, ao atentarmos para a anlise dos textos, nos deparamos com uma questo:por se tratar de uma produo popular, e existindo, em diversas publicaes,diferentes verses das letras apresentando, no somente diferentes divises dos

    versos, mas tambm alguma palavra ou verso trocados at que ponto seria vlidorealizar uma anlise formal clssica dos versos? Afinal, trata-se de versos livres, isto, caracterizados por uma mtrica irregular, de um artista popular atento spropostas modernistas. Optamos, assim, por fazer alguma observao sobre aforma apenas quando for relevante para o nosso estudo.

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    2. MALANDROS E MALANDRAGEM ENTRE O FINAL DO SCULOXIX E O TEMPO DE NOEL ROSA

    2.1 O SURGIMENTO DA FIGURA DO MALANDRO NO RIO DE JANEIRO

    Em 1888, o Brasil vivencia a liberdade de seus escravos e, com isso, passa aganhar, tambm, um novo problema: um enorme contingente de pessoas quevagam pelas ruas da Capital do Imprio, o Rio de Janeiro, sem moradia e emprego.Na virada do sculo, a cidade passa por um considervel crescimento populacional.Em 1872, o Rio de Janeiro possua 280 mil habitantes, que em 1904 se tornaram702 mil (SOARES, 2003, p. 304). Logo, nesse novo espao, que antes da chegadada corte lusitana possua aspectos de pequena vila tropical, se aglomeram asmultides. No comeo do sculo XX, as condies para o desenvolvimentoeconmico e social e a modernizao capitalista eram favorveis para o crescimentodo pas: o Rio de Janeiro representava o terceiro plo em termos de circulao demercadorias no continente americano (FENERICK, 2005, p. 29). A capital recebe

    pessoas em busca de uma vida melhor. Com a rpida aglomerao, surge umamassa de depauperados, de seres margem, que compem, a partir disso, umasociedade bastante heterognea. Como retrato dessa situao, Joo do Rio,cronista carioca, escritor e jornalista que retratou a capital daquela poca emreportagens e textos literrios, descreve as pequenas profisses que se criaram emtorno da misria e apresenta um modo malandro de vida, uma malandragem,presente em muitos personagens como, por exemplo, na crnica Pequenas

    profisses em que so vendidos objetos usados como novos:

    Aquelas calas do cigano, deram-lhas ou apanhou-as ele no monturo, mascomo o cigano no faz outra cousa na sua vida seno vender calas velhase anis de plaqu, a tens tu uma profisso da misria, ou se quiseres, damalandrice que sempre a pior das misrias (RIO, 2008, p. 56).

    Observador da realidade cotidiana, das modificaes do perodo e de suasmentalidades, em sua obra A alma encantadora das ruas , Joo do Rio (2008, p. 57)descreve a profisso dos caadores, que so apanhadores de gatos para matar elevar aos restaurantes, j sem pele, onde passam por coelho. Alm desses, ele

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    apresenta muitos outros: vendedores de botas usadas, de oraes, de serviosfunerrios (urubus), de livros, msicos e toda a sorte de ambulantes numa Babel demiserveis. Trabalham tambm na profisso os malandros de gravata e roupa

    alheia, cuja vida passa em pane nos botequins e porta das charutarias (RIO,2008, p. 58).

    Nesse perodo, as elites urbanas do Rio de Janeiro queriam, no somente, apagarda memria o passado escravista, mas tambm expulsar das ruas [...] essas figurasmaltrapilhas [os pobres, os escravos e, de forma geral, todos os marginalizados](DEALTRY, 2009, p. 125, acrscimo nosso). Em seu livro No fio da navalha,

    Giovanna Dealtry relata que, no ano de 1888, o ministro Ferreira Vianna apresentaum projeto de represso ociosidade, com o claro objetivo de controlar os libertose, assim, adapt-los s novas regras de trabalho de uma futura sociedadecapitalista (DEALTRY, 2009, p. 125). A elite da poca, que tinha como modelo acidade de Paris para sua capital tropical, encaminhava-se rumo ao pensamento deque a instaurao de uma nao moderna seria possvel somente com a exclusodas estruturas arcaicas do passado colonial, assim como dos indivduos

    desestabilizantes da ordem.

    Surge, naquela poca, no Brasil, a assim chamada Belle poque tropical: os estilose as mudanas na vida social carioca se espelhavam em tudo na imagem que setinha dos costumes europeus e, em particular, dos franceses. Na arquitetura, arenovao urbana da cidade do Rio de Janeiro se inspirava nas reformas do BaroHaussmann em Paris. Para se construir novas vias e prdios imponentes, era

    necessrio um plano de desapropriao. Assim, as ruas estreitas e irregulares docentro da cidade do Rio, antes abandonadas pelos mais ricos, e que tinham setornado reduto das classes mais pobres, foram demolidas. Sem direito a algumaforma de indenizao, as camadas mais baixas foram empurradas para reasinsalubres e pobres em infra-estruturas. Isso contribuiu para o processo defavelizao do Rio de Janeiro. Se as camadas mais pobres sofriam, a elite burguesada cidade se preocupava em introduzir modos de conduta civilizados oriundos daEuropa e em fundamentar seus costumes na moda de l: cavalheiros bem vestidos,com ternos bem talhados e camisas de seda, bengala e chapu de bico, desfilavam, junto a damas elegantes, pelas ruas da cidade, principalmente pela nova Avenida

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    Central, que representava o novo tipo de espao urbano. No nos surpreendepensar que tal caricatura pitoresca desses personagens vir influenciar a vestimentafina do malandro, o qual, por sua vez, encarnar mais uma verso de dndi

    tropical. Encarnando valores positivistas, a elite carioca repudiava tudo o que vinhada tradio e dos costumes populares. As religies afro-brasileiras e de modogeral tudo que pertencia cultura afro-brasileira eram vistas como manifestaesde atraso, enquanto surgiam clubes e associaes em que se praticavam esportescomo, por exemplo, o futebol, o remo, a equitao e o ciclismo. O ideal da poca erao de um homem saudvel e elegante, disciplinado e competitivo (HERSCHMANN;LERNER, 1993, p. 29-39). Em seu livro Nem do morro nem da cidade: as

    transformaes do samba e a indstria cultural (1920-1945) , Jos Adriano Fenerick(2005, p. 29-30) observa que a palavra de ordem do momento, propagada aosquatro cantos da cidade, era Regenerao [...]. A imagem pretendida para o Brasilera a de um pas higinico, burgus, moderno e, acima de tudo, branco. Surgiam,ento, dois mundos: o da elite vista como civilizada, refinada, e o da plebeentendida como atrasada econmica e socialmente, ociosa e ameaadora dodesenvolvimento. Uma muralha erguia-se entre eles.

    nesse contexto scio-histrico-cultural que se costuma apontar para a apario dafigura do malandro carioca, ser do interstcio, ser na fronteira, que passar a servisto, s vezes, como figura folclrica, bomia, simptica burguesia, em outrascomo marginal, mas sempre entendido como um individualista super partes , quepensa e age exclusivamente para e por si mesmo, proveniente, principalmente,da populao negra e mestia. Como escreve Srgio Cabral em sua obra As escolas

    de samba do Rio de Janeiro , dois acontecimentos histricos fizeram aumentar apopulao negra do Rio de Janeiro, no final do sculo XIX: a decadncia da culturado caf no Rio de Janeiro e em Minas Gerais e o fim da guerra de Canudos(CABRAL, 1996, p. 30). Cabral cita Henrique Dias da Cruz que, emOs morroscariocas no novo regime, estabelece uma relao entre os acontecimentos no sertoda Bahia, a migrao e o surgimento das favelas no Rio de Janeiro.

    Terminara a luta na Bahia. Regressavam as tropas [...]. Muitos soldadosvieram acompanhados de cabrochas. Eles tiveram que arranjar moradas.Foram para o antigo morro de So Diogo e, ali, armaram o seu lar. Ascabrochas eram naturais de uma serra chamada Favela, no municpio deMonte Santo, naquele estado. Falavam muito, sempre da Bahia, do seu

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    morro. E ficou a Favela nos morros cariocas. Primeiro, na aba daProvidncia, morro em que j morava uma numerosa populao; depois, foisubindo, virou para o outro lado, para o Livramento. Nascera a Favela, 1897(apud CABRAL, 1996, p. 30).

    Segundo Cruz, a criao da figura do malandro se deve falta de mercado detrabalho para os soldados que regressavam e que davam baixa no servio militar.Decerto, entre a crise habitacional engendrada pelo repentino aumento dapopulao e a falta de trabalho para todos, criaram-se as condies para osurgimento de uma cultura malandra e de um personagem tpico que,especialmente na dcada de 1930, se tornar sujeito/objeto de inmeras letras de

    samba.

    Observa Claudio Aguiar Almeida emCultura e sociedade no Brasil: 1940-1968 que,com a intensificao do processo de urbanizao do Rio de Janeiro, entre o final dadcada de 1920 e o incio dos anos 30,

    as populaes recm-chegadas do campo encontravam imensasdificuldades em se adaptar cidade. A indstria nascente encarregava-sede empregar parte dessa mo-de-obra, submetida a pssimas condies detrabalho. Baixos salrios, jornadas de trabalho exageradamente longas,inexistncia de perodos de descanso remunerado, explorao da mo-de-obra feminina e do trabalho infantil eram motivo de greves constantes,reprimidas com violncia pelas autoridades federais e estaduais, queencaravam os problemas dos trabalhadores como uma questo meramentepolicial (ALMEIDA, 1996, p. 8).

    Diante da multiplicidade de indivduos que chegam cidade do Rio de Janeiro nocomeo do sculo XX, ganha espao o malandro, que se assemelha muito s

    contradies da cidade. De acordo com DaMatta, em Carnavais, malandros e heris: para uma sociologia do dilema brasileiro, esse personagem recobre um espaosocial complexo, que vai desde o Rapaz folgado usando uma expresso de NoelRosa um gozador da sociedade capitalista, mas que a esta, de certa forma, seremete, atravs da imitao de seus costumes o terno, a gravata, o anel, aostentao de poder at a figura de Madame Sat, marginal ou bandido:

    O campo do malandro vai, numa gradao, da malandragem socialmente

    aprovada e vista entre ns como esperteza e vivacidade, ao ponto maispesado do gesto francamente desonesto. quando o malandro corre orisco de deixar de viver do jeito e do expediente para viver dos golpes,virando ento um autntico marginal ou bandido (DAMATTA, 1997, p. 269).

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    Outra descrio n-la fornece Rogrio Durst, em seu livro Madame Sat: com odiabo no corpo onde observa que a roda da malandragem

    abrigava uma boa variedade de tipos: o jogador, o vigarista, o cafeto, ovalente, o sambista (que mesmo quando ganhava dinheiro fazendo samba,no considerava isso como trabalho). Tinha at aquele cara que se arrumounum emprego pblico e vivia na mar mansa. O fundamental era seguir asregras, no explicitadas mas conhecidas: valentia sem violncia (sempreque possvel), muita elegncia e estilo e sempre uma vida boa (DURST,1985, p. 12).

    O malandro vive nos interstcios do sistema, entre a ordem e a desordem.(DAMATTA, 1997, p. 172). um personagem cuja marca saber converter todasas desvantagens em vantagens, sinal de todo bom malandro e de toda e qualquerboa malandragem. (DAMATTA, 1997, p. 274). Ser que rejeita o mundo social comose apresenta e, por meio da esperteza e da sagacidade, relativiza as leis, osregulamentos, os cdigos: o certo e o errado, o justo e o injusto (DAMATTA, 1997,p. 276).

    Efetivamente, o malandro se torna um smbolo desse novo Rio de Janeiro do

    comeo do sculo XX, pois, como observa Claudia Matos em Acertei no milhar:samba e malandragem no tempo de Getlio (1982, p. 68), se em sua figuracoexistem caracteres antagnicos, porque ele expressa o antagonismo e acontradio existentes dentro da sociedade [...]. A figura malandra emerge dosatritos entre as classes marginalizadas e a elite dominante, e

    em alguns momentos tomada como uma espcie de heri popular, emoutros, como sntese do que temos de pior em nossa cultura. Assim que otermo malandro se torna voltil e depende muito mais da entoao de quemo diz, do contexto em que dito, do que de um significado fixo. Malandropode ser um sujeito que foi esperto no momento certo, aproveitou uma boaoportunidade e, assim, tem um carter elogioso; ou, pelo contrrio, o sujeitotrapaceiro, espertalho, beirando a criminalidade (DEALTRY, 2009, p. 12).

    Dealtry aponta para dois fatores caractersticos do malandro: o primeiro o damobilidade prpria do estrategista malandro, que se confunde no anonimato, que sevale do discurso inesperado da sua performance, de modo geral para obter seu

    ganho pessoal; o segundo o da hiperidentificao de si mesmo, reconhecvel portodos e j com lugar assegurado em nosso imaginrio (DEALTRY, 2009, p. 14).

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    Usamos, aqui, o conceito de performance, segundo a viso de Diana Klinger, em Aescrita de si: o retorno do autor , segundo a qual o sujeito representa um papel naprpria vida real, na sua exposio pblica, em suas mltiplas falas de si, nas

    entrevistas, nas crnicas e auto-retratos, nas palestras. (KLINGER, 2007, p. 55). Ainteira vida real se torna, assim, produto da inveno de si . Na performance domalandro, dessa forma, entram em jogo, ao mesmo tempo, elementos como ocorpo, a roupa, a ginga, o discurso, o uso da voz. Na letra da msica Leno nopescoo, de Wilson Batista, gravado pela primeira vez em 1933, encontram-se osprincipais cones dessa malandragem:

    Meu chapu de ladoTamanco arrastadoLeno no pescooNavalha no bolsoEu passo gingandoProvoco desafioEu tenho orgulhoEm ser to vadio.

    (MXIMO; DIDIER, 1990, p. 291).

    O malandro age de forma a misturar esses elementos, ao ponto que chegam a secontradizer, a adquirir carter permutacional. Assim que se forma, segundo Dealtry(2009, p. 15), a imagem contraditria, aos nossos olhos, de um sambista que podetambm, se provocado, tornar-se violento, perigoso, ameaador.

    interessante observar, ainda, o aspecto visual, que faz parte da performance domalandro. A indumentria caracterstica, sempre bem cuidada, o desejo de bancar ogr-fino, produzem um personagem caricaturado, que no deixa no fundo de ser umoprimido que permanece fantasiado o ano inteiro (MATOS, 1982, p. 65). Enquantocaricatura do burgus, o malandro, segundo Matos, representaria metaforicamente afantasia do oprimido e, ao mesmo tempo, o conflito social de onde ele provm. Assim como acontece com sua fala, a roupa do malandro importante para a suaperformance. O malandro passa a imitar o burgus carioca que, por sua vez, imita oburgus europeu. Eis que o malandro se transforma em uma espcie de dndi dosmarginais. E, como aconteceu com os costumes da Belle poque, o prpriovesturio do malandro se tornou, de certa forma, uma moda. Assim fala o mesmo

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    Wilson Batista sobre a moda da boemia no bairro da Lapa, tido como a Montmartretropical :

    [...] uma Lapa cheirosa, lindos cabars, com cantoras de tangos argentinose malandros de camisas de seda japonesa e anel de brilhante no dedo.Mulheres de suars... Tudo alegria, tudo bomia, tudo perfume... NoCabar Brasil, o Bueno Machado o cabaretier que j danou uma vez naEuropa para uma rainha, no Royal Pigalle. Temos tambm o cabaretierMax, com sua elegncia, pendurado numa linda piteira, no Cabar Roxi.Temos o Quito, que o apresentador de shows no Apolo e tambm o Reido Maxixe. E como esquecer o Tamberlique, que canta tangos e que jtrabalhou em vrios cassinos da Cte DAzur. Era assim a Lapa... Osmalandros se vestem ltima moda com grandes alfaiates que costuramtambm para altos polticos (GOMES, 1985, p. 20).

    O malandro tem sido representado como aquele que habita os interstcios daestrutura social; existindo entre as classes sociais, no seria burgus nemproletrio, e, no se enquadrando na ordem legal nem se extraviando dela, estariasituado entre o cidado comum e o bandido (GOTO, 1988, p. 101). Eis um retratoestereotipado, de sua verso carioca:

    Chapu de panam, camisa de seda, calas almofadinha e chinelo cara-de-gato. No bolso uma navalha. Andando pelas estreitas e escuras ruas do

    centro, construdas assim pelos portugueses para evitar o sol causticante doRio (DURST, 1985, p. 7).

    Faz-se interessante considerar que a figura do malandro anterior ao modelo queestamos aqui analisando. O pcaro, por exemplo, personagem tpico do romanceeuropeu, homem vagabundo, aventureiro esperto e sem escrpulos, possui umcarter universal, encontrando-se em vrias manifestaes folclricas diferentes.Trata-se de um personagem que vive fora da lei e procura obter lucros e vantagens,especialmente das classes sociais mais abastadas. Segundo Estbanez Caldern, opcaro , geralmente, um personagem que, abandonado pelos genitores, entregue sua prpria sorte, forado a viver valendo-se de meios desonestos, pequenosfurtos, para garantir sua sobrevivncia (CALDERN, 2006, p. 838). s vezesentregue mendicncia, outras vezes a servio de algum patro, submete-se acondies imorais ou degradantes. O estudioso espanhol observa que uma narrativadessa espcie aparece na Espanha em meados do sculo XVI: trata-se do annimoLa vida de Lazarillo de Tormes, y de sus fortunas y adversidades , ao qual se sucedeuma srie de outros romances do gnero, que se difundir na Europa nos sculos

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    XVII e XVIII. O terico observa, ainda, uma certa analogia comportamental comOasno de Ouro , de Apuleio, que consiste no atribuir muitas peripcias de ordemfolclrica a uma s personagem (CALDERN, 2006, p. 835).

    Em seu artigo Dialtica da Malandragem, Antonio Candido (1970) afirma que omalandro, como o pcaro, espcie de um gnero mais amplo de aventureiroastucioso, comum a todos os folclores, e aponta para a sua comicidade que foge sesferas sancionadas da norma burguesa, buscando a irreverncia e a imoralidadede certas expresses populares. Na literatura nacional, essa comicidade

    se manifesta em Pedro Malasarte no nvel folclrico e encontra em Gregriode Matos expresses rutilantes, que reaparecem de modo peridico, atalcanar no Modernismo as suas expresses mximas, com Macunama eSerafim Ponte Grande . Ela amaina as quinas e d lugar a toda a sorte deacomodaes (ou negaes), que por vezes nos fazem parecer inferioresante uma viso estupidamente nutrida de valores puritanos, como a dassociedades capitalistas; mas que facilitar a nossa insero num mundoeventualmente aberto (CANDIDO, 1970).

    Continuando na busca de antecessores do malandro, citamos Carlos Sandroni, que

    em sua obra Feitio decente, observa ainda o capadcio, descrito no romance de J.M. Velho da SilvaGabriela, crnica dos tempos coloniais, de 1875:

    como o nome indica, vivia em santo cio, tinha vida folgada e friasperptuas; era de ordinrio valento e espadachim; afora essas qualidadestinha outras prendas que o tornavam complemento natural e necessrio dosfolguedos de que falamos. Tocava mais ou menos perfeitamente viola,guitarra e bandolim (apud SANDRONI, 2001, p.158).

    Sandroni, ainda, assinala algumas figuras equivalentes ao malandro no milonguero portenho, no negro curro cubano ou no guapo andaluz, todos personagens quecompartilham certas caractersticas de rejeio ao trabalho, de delinquncia e deuma tica particular (SANDRONI, 2001, p. 160).

    O autor observa, ainda, que, em 1830, Gabriel Fernandes Trindade publicou umlundu para voz e piano intitulado Graas aos cus, cuja letra dizia:

    Graas aos cus de vadios As ruas limpas estoDeles a casa est cheia

    A casa da correo

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    J foi-se o tempo de mendigar,Fora vadios, vo trabalhar

    Sr. Chefe da polcia,Eis a nossa gratidoPor mandares os vadios casa de correo

    [...]

    Sede exato, pois SenhorEm tal deliberao,Que muita gente merece

    A casa da correo.

    (apud SANDRONI, 2001, p. 156-157).

    interessante, como afirma o mesmo Sandroni, chamar a ateno para o fato deque, numa primeira leitura, o teor do texto desse lundu poderia parecer moralista. Noentanto, a ltima estrofe oferece uma leitura diferente:

    se verdade que todos os vadios j esto recolhidos casa de correo,qual o sentido de pedir ao chefe de polcia que seja exato em suadeliberao? [...] O lundu sugere inequivocamente que no apenas dosvadios stricto sensu que se fala, mas tambm de outros tantosaproveitadores do trabalho alheio (SANDRONI, 2001, p.157).

    O mesmo autor ainda afirma que o moralismo se converte em stira, e o presumidoantivadio, se no em vadio de uma vez, ao menos em simpatizante declarado davadiagem (SANDRONI, 2001, p. 157).

    2.2 SOCIEDADE, MALANDRO E TRABALHO

    Segundo a imagem comum, o malandro sonha em ganhar no jogo do bicho paraganhar a vida fcil. Vive de expedientes e de sua esperteza, de sua criatividade,para tirar vantagem do otrio, alm de viver s custas das mulheres, sejam essasprostitutas das quais ele toma conta, sejam suas amantes ou companheiras. Omalandro artista, e por isso no precisa trabalhar. Ainda, na viso oferecida porCludia Matos, no livro Acertei no milhar , a atitude negativa diante do trabalho pode

    ser vista como a crtica das normas que pautam a vida social burguesa, que resultana abastana para poucos e na escassez para muitos, assim como no descrdito e

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    na desiluso em relao s compensaes oferecidas pelo trabalho tal como ele sed em nosso sistema scio-econmico (MATOS, 1982, p. 79). Esse descrditodecorre do lugar reservado ao proletrio dentro do sistema capitalista, que

    caracterizado pela ideologia do louvor do esforo individual para vencer navida por meio de um labor perseverante e lcito. Mas na realidade, apossibilidade de enriquecimento do trabalhador negro proletrio, , no maisdas vezes, pura falcia. O assalariado das classes populares geralmente sed conta de que dificilmente chegar a patro, e em realidade no comesse objetivo que trabalha, mas simplesmente para obter o mnimonecessrio prpria manuteno e dos seus. Mesmo isso,frequentemente no alcanado (MATOS, 1982, p. 79).

    Em resposta a essa situao, o proletrio desfavorecido deixa de trabalhar, de serescravo, para tornar-se malandro, o que bem retratado em inmeros sambas deWilson Batista, Noel Rosa, Joo da Baiana, Caninha, Donga, Heitor dos Prazeres,Sinh, entre outros, que exaltam a figura do malandro que preferia dedicar-se abicos, pequenos roubos, vivendo s custas das mulheres e da boemia, a se entregarao trabalho pesado que trazia benefcios s ao patro.

    Entre os sambas que promovem um descrdito com relao ao trabalho, citamosalguns trechos, como os abaixo:

    Pedreiro Waldemar, de Wilson Batista

    Voc conhece o pedreiro Waldemar?No conhece? Mas eu vou lhe apresentarDe madrugada toma o trem na circularFaz tanta casa e no tem casa pra morarLeva a marmita embrulhada no jornal

    Se tem almoo nem sempre tem jantarO Waldemar que mestre no ofcioConstri o edifcioE depois no pode entrar

    (MATOS, 1982, p. 81).

    Nasci cansado, tambm de Wilson Batista

    Meu pai trabalhou tanto

    Que eu jNasci cansado

    Ai patro

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    Sou um homem liquidadoNo meu barraco choveMeu terno est furado

    Ai patroTrabalhar no quero maisEu no sou caranguejoQue s sabe andar pra trs

    (MATOS, 1982, p. 79).

    Segundo essa perspectiva, viver de malandragem melhor que viver trabalhando:Afinal, por que maltratar o corpo noite e dia a troco de um salrio de fome, se erapossvel viver da malandragem? (CALDEIRA, 1982, p. 25). Deve-se observar

    tambm quefoi justamente na msica popular que esta questo se colocou de maneiramais acabada. Na dcada de vinte, os negros e mulatos que primeirotocaram o samba colocaram esta dvida em forma de msica, optandoclaramente pela malandragem. Criou-se na cano uma imagem invertidado trabalho, onde o operrio ficava sombra e o cio era agente derealizao (CALDEIRA, 1982, p. 25).

    Em meio misria geral, os meios para ganhar a vida eram ento a sabedoria e a

    malcia do malandro, com a vantagem que o corpo podia ser resguardado para osprazeres do samba e do amor (CALDEIRA, 1982, p. 25). Da nasce o orgulho deser to vadio de que fala Wilson Batista, em Leno no pescoo. Mas aps aprimeira estrofe do samba, Batista muda de registro: ao orgulho do malandro sesucede uma reflexo importante:

    Sei que eles falamDeste meu proceder

    Eu vejo quem trabalha Andar no miser

    Eu sou vadioPorque tive inclinaoEu me lembro, era crianaTirava samba-cano.

    (MXIMO; DIDIER, 1990, p. 291).

    Quem trabalha e anda no miser ento um otrio, ao passo que o malandro temorgulho de ser o que . Segundo essa viso, o otrio o indivduo integrado, comotrabalhador, no sistema capitalista que o explora. Os sambistas da poca tinham

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    conscincia de que o trabalho no especializado dos menos favorecidos era malremunerado. Acreditar nos enganosos discursos poltico-econmicos, quefundamentavam o progresso do pas no trabalho das massas, era coisa de ingnuo,

    ou melhor, de otrio tolo. Como observa Matos (MATOS, 1982, p. 83), otrio emalandro so frutos da sociedade, seus destinos esto ligados s suas condiesde formao, onde interfere a responsabilidade social, a responsabilidade dosistema. Tanto o trabalhador braal como o malandro se encontram numa posiode certa forma marginal, qual foram lanados pelo corpo social dominante.

    importante observar, nesse ponto, que a temtica da malandragem, no samba

    carioca, no est ligada, de forma unvoca, ao tema do trabalho, existindocomposies do mesmo perodo que exaltam a malandragem por si s, como estilode vida.

    Noel Rosa retrata um tipo de malandragem ligada boemia e aos prazeres, porexemplo, na msica Capricho de rapaz solteiro:

    Nunca mais essa mulherMe v trabalhando!Quem vive sambandoLeva a vida para o lado que quer.De fome no se morreNeste Rio de Janeiro.Ser malandro um caprichoDe rapaz solteiro.

    (MXIMO; DIDIER, 1990, p. 282, 284).

    Nessa msica, podemos ler uma pardia da sociedade burguesa: vive-se melhorconseguindo permanecer livre, no cair nas armadilhas sociais do trabalho e docasamento, esses dois trabalho e casamento pilares dessa sociedade.

    Observemos a msica Ora Vejam S, de Sinh, gravada pela primeira vez em1927:

    Ora vejam s A mulher que eu arranjeiEla me faz carinhos at demaisChorando, ela me pede:Meu benzinho, deixa a malandragem se s capaz!

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    A malandragem eu no posso deixarJuro por Deus e Nossa Senhora mais certo ela me abandonarMeu Deus do cu, que maldita hora!

    A malandragem um curso primrioQue a qualquer um bem necessrio o arranco da prtica da vidaQue s a morteDecide o contrrio.

    (DEALTRY, 2009, p. 83-84).

    Em Gente do samba: malandragem e identidade nacional no final da PrimeiraRepblica, Tiago de Melo Gomes (2004, p. 173) sugere que a explorao do tema

    da malandragem por parte dos compositores sambistas seja apenas uma prtica deconvenincia, pois tratava-se de um tema que fazia sucesso. A esse respeito,sugere a anlise da msica A Malandragem, lanada em 1928 por Bide(Alcebades Barcelos):

    A malandragem eu vou deixarEu no quero saber da orgiaMulher do meu bem quererEsta vida no tem mais valia

    [...]

    Arranjei uma mulherQue me d toda a vantagemVou virar almofadinhaVou deixar a malandragem

    (GOMES, 2004, p. 173).

    Autores como Dealtry, Matos, Gomes, entre outros, afirmam que a temtica da

    malandragem nasceu junto com a da regenerao , que representada pelaconverso s leis ticas e comportamentais da sociedade burguesa. Essa temticaaparece, portanto, como inveno literria utilizada, nesse perodo, para abordar otema da reflexo social, as problemticas ligadas mudanas sociais, econmicas eculturais da poca, em suma, o dilema das classes menos favorecidas em seadequar s diretrizes do mundo capitalista. Carlos Sandroni, estudando um grupo desambas do Estcio, observa que os textos que tratam de malandragem abordam, defato, a temtica do fim da malandragem (SANDRONI, 2001, p. 160-164).Regenerao e malandragem representariam, assim, dois plos opostos, duasdiretrizes comportamentais e filosficas diferentes. Cludia Matos diz que

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    o malandro surgia no disco j pronto a se regenerar, dividido entre a posturamalandra e a postura apaixonada, a tendncia lrica e sentimental do samba que sedesenvolveria enormemente nas dcadas seguintes (MATOS, 1982, p. 44).

    Observa Fabio Gomes que at a dcada de 1920, era raro uma letra de msica falarem trabalho, sendo os meios de divulgao musical da poca teatro musicado,partituras e discos opes dirigidas a um pblico de renda alta.

    Os compositores que eram admitidos nesse meio tambm estavam namesma faixa econmica. O trabalho assalariado no fazia parte daspreocupaes cotidianas desses artistas. As msicas da poca eramcanes romnticas, stiras poltica ou comentrios sobre costumes [...]

    Um dos primeiros sambas falando em trabalho a fazer sucesso foi Morro deMangueira, de Manuel Dias, gravado por Pedro Celestino para o carnavalde 1926 (GOMES, 2003).

    Porm, assim que entra em cena, o tema trabalho, til ao sistema de produocapitalista, se torna assunto constante entre os compositores brasileiros, mas comuma concepo caracterstica: eles movem uma crtica aos valores que impem otrabalho como dignificador do homem, o suor como expresso do homem forte,

    honesto e decente. Ramiro Lopes Bicca Junior cita Matinas Susuki Jr. e GilbertoVasconcellos, que afirmam que

    A averso do malandro ao trabalho tem uma fundamentao histrica, "noera socialmente abstrata": o trabalhador da primeira Repblica umdescendente direto dos antigos escravos, ingressado sem condiestcnicas ou sociais no mundo capitalista. O compositor popular percebeuque esse trabalhador sentia que sua condio de assalariado no o levariaa uma vida de sucesso financeiro. A malandragem foi uma busca de sesituar entre a super-explorao do mundo burgus e a condio de misriaque esse mesmo mundo levava aos excludos do sistema. "O exerccio da

    malandragem requer uma recusa constante insero na produo", e defato percebe-se, nas composies desse perodo, no s a apologia domalandro, mas um movimento contra o trabalho. O malandro e o vagabundo(que se confundem em conceitos) surgem no momento em que o trabalhoassalariado e o mundo burgus de acumulao de capital separam-se maisnitidamente. O malandro no est margem da sociedade, e sim entre asclasses sociais caractersticas desse contexto: a burguesia e oproletariado (apud BICCA JUNIOR, 2009, p. 54).

    De acordo com Bicca Junior, aquele que no se integrasse, que mantivesse o

    vnculo com a vida fcil do malandro, do bomio, aquele que aparentasse ser umpria social, sem dinheiro e sem posio, no merecia o respeito da populao

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    (Bicca Junior, 2009, p. 103). Assim Noel Rosa retrata a filosofia do marginaldesadaptado ao mundo:

    O mundo me condenaE ningum tem penaFalando sempre mal do meu nome.Deixando de saberSe eu vou morrer de sedeOu se vou morrer de fome.

    [...]

    Quanto a vocDa aristocraciaQue tem dinheiroMas no compra alegria,

    H de viver eternamenteSendo escrava dessa genteQue cultiva hipocrisia.

    (MXIMO & DIDIER, 1990, p. 259-260).

    O burgus preocupado cada vez mais com sua ascenso social desprezaria a figurado malandro, o qual, avesso ao trabalho, constitui a imagem do fracasso, um pesomorto, ou, mais ainda, um perigo para seu desenvolvimento. O que resta ao

    malandro, que vive numa prontido sem fim gria da poca que indicava estarduro, sem grana buscar auxlio na filosofia, no podendo ele se entregar aosfalsos valores de uma aristocracia hipcrita, que tem dinheiro, mas que nocompra a alegria.

    Se por um lado, o personagem de Filosofia critica a aceitao de quem reconhececomo verdadeiros os valores impostos pela sociedade sem critic-los, prevendo que

    haver de viver eternamente escravo dessa gente, sabe tambm que, afinal, omelhor ser juntar-se a eles fingindo ser rico, para que ningum desdenhe ouzombe dele. A criao fantasiosa, por trs do fingimento, esconde artifcios quevisam subsistncia do sujeito, relutante em se enquadrar nos esquemasburgueses, mas, tambm, deixa transparecer seu sofrimento. Nas palavras deCludia Matos,

    O malandro que fala expe em sua linguagem a falsidade ou o falseamentodos valores estabelecidos. Ele prprio falseia esses valores que se queremntegros e autnticos, ele canta em falso as verdades da ideologia oficial.

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    Recorrendo a um discurso culturalmente aprendido, ele simultaneamenterecita sua lio e a satiriza (MATOS, 1982, p. 172-173).

    Eis a dualidade da sociedade brasileira desse perodo: de um lado, o proletrioexplorado, alvo de uma imposio de valores alheios dos quais percebe todas asarmadilhas; de outro, o burgus da aristocracia noelina, integrada ao sistema, queadota a viso capitalista da sociedade emergente. O malandro se coloca no meio,dando vida a uma dicotomia: por um lado se submete ou finge que o faz aosistema que legitima sua existncia, mas, ao mesmo tempo, reluta integrar-se a ele.Noel observa essas divises sociais em Esquina da vida:

    na esquina da vidaQue assisto descidaDe quem subiuFao o confrontoEntre o malandro prontoE o otrioQue nasceu pra milionrio

    (MXIMO; DIDIER, 1990, p. 260).

    Reparemos o uso que Noel faz da palavra otrio. Tanto o julgamento de valores,assim como a utilizao do termo no so, certamente, fruto da originalidadenoelina. De fato, como j observamos, o pensamento compartilhado peloscompositores da poca era o de que o sujeito era otrio porque se iludia com osdiscursos sobre as vantagens de se trabalhar. Mas se o tema no novidade, o quenos parece peculiar o fato que Noel associe o proceder do otrio suapredisposio natural de se tornar rico: ele nasceu pra milionrio. Na letra de Noel,

    parece que o compositor esteja sugerindo que possvel, atravs do trabalho, setornar rico. Estamos frente de uma ambiguidade interpretativa: tanto o trabalhoquanto o fruto da acumulao do mesmo so coisas de otrio.

    O retrato da figura do marginal bomio ocorre em outra composio de Noel, Oorvalho vem caindo, em que o protagonista descreve a difcil situao do indivduosem comida, sem abrigo para dormir, cuja terra generosa d banana e aipim, masonde difcil o trabalho de achar algum que os descasque por ele:

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    O orvalho vem caindo,Vai molhar o meu chapuE tambm vo sumindo

    As estrelas l do cu...Tenho passado to mal:

    A minha cama uma folha de jornal!Meu cortinado um vasto cu de anilE o meu despertador o guarda civil(Que o salrio inda no viu!)

    A minha terra d banana e aipimMeu trabalho achar quem descasque por mim(Vivo triste mesmo assim!)

    A minha sopa no tem osso nem tem salSe um dia passo bem, dois e trs passo mal(Isso muito natural!)

    (MXIMO; DIDIER, 1990, p. 272).

    A respeito da terra que d banana e aipim, segundo Bicca Junior (2009, p. 121),Noel faz uma apologia do Brasil em seus aspectos naturais, parodiando osclssicos versos de Gonalves Dias: minha terra tem palmeiras / onde canta o sabi/ as aves que aqui gorjeiam / no gorjeiam como l. Se o fato de viver num lugaronde a natureza frtil traria felicidade, o personagem noelino vive triste mesmoassim. Segundo Santuza Naves, a msica O orvalho vem caindo criada atravsde

    um procedimento bem-humorado, em que a figura do sem-teto substitui osobjetos familiares vivncia burguesa pelos elementos que povoam asnoites cariocas. A atmosfera urbana ento emergente no Rio de Janeiro,com os novos segmentos de classe mdia, de mendigos e de operrios, foicaptada por Noel maneira baudelairiana, atravs de movimentos deintroverso (apud BICCA JUNIOR, 2009, p. 122).

    Por trs de uma primeira leitura um tanto alegre do bomio preguioso que no quersequer se dar ao trabalho de descascar uma banana, possvel traar a hiptese deuma dura crtica social: entre a terra generosa e frtil, que de todos, e opersonagem que vive ao ar livre por no ter um teto, se interpe o sistema, que nocuida dos menos favorecidos, criando assim as condies para que se tornemmarginais. A situao parece irreversvel, imutvel: o pobre no tem acesso

    banana, pois ningum favorece seu acesso a ela. A banana qual se refere ocompositor , obviamente um signo metonmico que remete condio de extrema

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    pobreza de grande parte da populao. Observa Noel: isso muito natural.Mximo e Didier observam que h, nessa letra, at referncia aos servidorespblicos que ganham pouco e no recebem pontualmente, representados pelo

    guarda-civil transformado em despertador de pobre (MXIMO; DIDIER, 1990, p.273).

    Por falar em trabalho e malandragem, ou melhor, nas necessidades de inventar,todo dia, um meio de sustento, de viver s custas do outro, vale a pena citar umacontecimento, ao redor da msica O orvalho vem caindo. A composio resultaser uma parceria entre Noel e um certo Kid Pepe, um ex-pugilista que nunca

    demonstrou qual seria sua real competncia no fazer musical, aparecendo aqui e alicomo co-autor em discos e programas de rdio. Perguntados sobre ascircunstncias em que teria se dado essa parceria, sobre onde teria nascido acomposio, ambos apresentaram respostas vagas ou contraditrias. Mximo eDidier relatam que aps o sucesso dessa msica,

    o ex-pugilista ps-se a pensar em como seria vantajoso ter Noel Rosa comoparceiro exclusivo. [...] Seu nome nos selos dos discos, nas partiturasimpressas, nos jornais de modinha. [...] Desculpe, Kid, no sou parceiroexclusivo de ningum.Talvez Noel no devesse ser to categrico. [...] Teria se esquecido decomo Kid Pepe quando quer alguma coisa? Vive ameaando de morte oscontra-regras de rdio que no tocam suas msicas, exigindo fora quecompositores lhe dem parceria, que cantores gravem o que assina. [...]Passa a perseguir Noel, a procur-lo em toda parte. [...] E em tominvariavelmente aterrador:- Voc no vive dando parceria a todo mundo? Porque no a mim? Noel foge, esconde-se de Kid Pepe. [...] Assustado, fala de seus temores aZ Pretinho. [...] Uma noite, Noel est com Lindaura no estdio da RdioClub do Brasil. Z Pretinho chega e o v apavorado, indo a todo momentoat a janela, olhando para baixo como se a procurar algum.- Qual o problema, Noel?- Me disseram que o Kid est l embaixo esperando por mim- E o que que ele quer?- O mesmo de sempre, me arrancar parceria fora.- Deixa essa questo comigo.Z Pretinho desce e de fato encontra Kid Pepe [...] Chama-o de lado, abre opalet para que veja a coronha do revlver.- Outra vez Kid? Eu no te disse pra deixar o Noel em paz?Kid mastiga duas ou trs palavras.- Essa histria j est me aborrecendo, Kid.- Tu no ta entendendo, Pretinho.- Olha, vamos fazer um negcio: se tu quer bater no Noel, bate. Mas vai seruma vez s. Depois disso tu nunca mais vai bater em ningum. Kid Pepe promete