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    Authier-Revuz e as figuras do

    bem dizerCarlos Magno Viana Fonseca in memoriam*

    Mnica Magalhes Cavalcante**

    Resumo

    Data de submisso: set. 2012 Data de aceite: nov. 2012

    * Este trabalho contm partes da tese pstuma de meu

    orientando Carlos Magno Viana Fonseca, a qual comea

    a vir a pblico por este meio, em homenagem ao autor.Carlos Magno era professor da Universidade Estadualdo Rio Grande do Norte e foi morto uma semana antes

    de defender sua tese na UFC.

    ** Professora do Programa de Ps-Graduao em Lingus-

    tica da Universidade Federal do Cear e coordenadora

    do grupo de pesquisa Protexto.

    Propomos como objetivo para esteestudo analisar as formas de modali-zao autonmica realizadas por meiodo desdobramento metaenunciativoopacificante chamadas por JaquelineAuthier-Revuz (1998) de figuras dobem dizer. Essas formas de enuncia-do so tratadas como parte do fen-meno conhecido por heterogeneidadesenunciativas, que tem sido objeto denossa investigao desde 2006. Asheterogeneidades enunciativas sotomadas como expresses de prticas

    alteritrias tpicas dos discursos pormeio das quais possvel verificaros tipos de sujeito que se expressamna linguagem e as relaes que estesujeito contrai com os vrios tipos deoutro que atravessam constituti-vamente o discurso. Em oposio sno coincidncias do dizer, as figurasdo bem dizer so estruturas que po-deriam ser chamadas de coincidn-cias do dizer, momentos pontuaisna linearidade enunciativa na qual oenunciador expressa a iluso de con-trole sobre seu enunciado e, conse-quentemente, sobre sua enunciao.

    Palavras-chave: Argumentao. Figu-ras do bem dizer. Heterogeneidadesenunciativas. Metaenunciao.

    Introduo

    A partir da considerao a uma sriede opostos hierrquicos linguagemnatural versus linguagem da lgica,metalinguagem comum versus meta-linguagem cientfica, metaenunciativoversus discurso sobre a linguagem emgeral (outro dizer), opacificao versustransparncia, modalidade reflexiva

    particular versus teorias pragmticasda enunciao , Authier-Revuz (2000)assentou os princpios do fenmenolingustico que ela caracterizou comoheterogeneidades enunciativas.

    O fenmeno consiste numa confi-gurao enunciativa da reflexividade

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    metaenunciativa a modalizao au-tonmica' da enunciao atravessadapor sua autorrepresentao opacifican-te (AUTIER-REVUZ, 2000, p. 14), isto, o signo, naturalmente, exerce uma

    funo mediadora entre o homem e umconceito-coisa no mundo. Exercendo essafuno, o signo, enquanto tal, se tornatransparente no lugar de aparecer,deixa passar por si o conceito-coisa nomundo convocado por seu intermdio.No , pois, objeto-de-presena na men-te do sujeito-falante, no se corporificaenquanto materialidade (sonora ou gr-

    fica), a no ser se tomado como objetode estudo cientfico. No entanto, emmomentos pontuais de uma enunciao, possvel observar que em

    seu desenrolar, o dizer representa-se comono falando por si; o signo, em vez de preen-ch-lo [ao dizer, ou dito de outro modo, emvez de preencher a enunciao], transpa-rente, no apagamento de si, de sua funomediadora, interpe-se como real, presen-

    a, corpo objeto encontrado no trajeto dodizer e que se impe a ele como objeto ; aenunciao desse signo, em vez de se reali-zar simplesmente, no esquecimento queacompanha as evidncias inquestionveis,desdobra-se como um comentrio de si mes-ma (AUTHIER-REVUZ, 2000, p. 14).

    O signo, surgindo como corpo naenunciao, exige que seja esclarecido,explicado, questionado, interpelado.

    Abandonando a transparncia, mostra--se opaco e, portanto, carente de exposi-o de si mesmo.

    A modalizao autonmica , portan-to, o momento em que a linguagem falhaem sua funo de mediadora e deixa derealizar-se de maneira simples, exi-

    gindo uma enunciao complexa naqual o signo desdobrado sobre umareflexo metalingustica: que signo foiusado? Em que sentido foi usado? Porque foi usado? Seu uso suficiente? A

    palavra se aplica no contexto? Esse sig-no descreve a coisa? Voc diria issopara se referir a essa coisa? Essas soalgumas das reflexes realizadas pelossujeitos falantes.

    Uma enunciao complexa, por oposi-o a uma enunciao simples, comportauma glosa cujo objetivo refletir sobre ouso das palavras empregadas na enun-

    ciao simples, ou, em outros termos,numa enunciao linear. O signo,objeto da glosa, desdobrado, isto ,alm de ser constitudo de significadoe significante, nos termos de Saussure,recebe um terceiro componente que ocoloca em posio de autonmia comple-xa, pois, na medida em que colocadoem funo de uso, tambm colocado

    em funo de meno, ou seja, o signo usado linearmente e mencionado nacadeia significante como uma presenacorprea, materialmente colocada naenunciao.

    Como afirma Authier-Revuz (2000b,p. 3),

    a modalizao autonmica vista comoum surgimento enunciativo do outro da

    linguagem a que eu dei o nome de nocoincidncias do dizer , em que entraem cena o jogo enunciativo, entre outros,e no exclusivamente a linguagem dosoutros.1

    Explica a autora que, diferentemen-te do que as teorias tradicionais sobre

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    alteridade colocam como mecanismoda abordagem do outro na enunciao,seus princpios alteritrios agregam tudoaquilo que torna a linguagem o ambientedo no um, isto , da ausncia total de

    unicidade lingustica, embora o enun-ciador conserve a iluso de proteger-secontra o heterogneo constitutivo daenuncio, j que

    as imagens de pontos de no coincidnciaque suspendem o trajeto unificado dodizer do lugar ao fato das no coincidn-cias, as quais, desta forma, ganham corpoe so reconhecidas; ao mesmo tempo,entretanto, elas interpem uma mscara,iluso necessria, pelo carter circunscri-to (o restante sendo diferencialmenteconstitudo como um) e controlado (porum enunciador, a partir de sua posio desobrevoo metaenunciativo, ao dizer o que o seu dizer) desses pontos de no coin-cidncia representadas; ou realizam umareafirmao protetora do UM do dizer,de um modo imaginrio absolutamentenecessrio, oposto ameaa de disperso,que faz pesar sobre a enunciao e o senti-

    do o jogo das no coincidncias inerentesnas quais eles se constituem,... e pode-riam desfazer-se2 (AUTHIER-REVUZ,2000, p. 4).

    O jogo entre o um e o no um cons-titutivo da prpria linguagem, emborao no um seja sempre intruso, indese-

    jado, perturbador porque evidencia adisperso do discurso, revelando que o

    enunciador no tem, de fato, controlesobre ela, pois a enunciao se diz porsi mesma. Contudo, a iluso de contro-le, necessria, mantida no sobrevoometaenunciativo, meio pelo qual o su-

    jeito elabora um processo de cesso: aomesmo tempo em que cede um pouco de

    sua enunciao ao outro, protege o res-tante da enunciao, marcando-a comodomnio do um.

    Considerar esse fenmeno impeoutros questionamentos: o que leva um

    sujeito enunciador a considerar que umsigno est opaco e no transparente? Porque os sujeitos acreditam que o signoempregado numa dada enunciao nofoi suficiente para transmitir os sentidospretendidos? Ou, inversamente, que ne-cessidade essa que o sujeito enunciadorencontra diante de si de reafirmar umsigno j enunciado, como se temesse que

    seu interlocutor o tivesse ouvido mal?Por que mostrar que a entidade lingus-tica usada foi a perfeita para descrevero sentido pretendido? E, se isso se realizana escrita, lugar de presena ocular, noauditiva, a reafirmao ainda maisconstrangedora.

    Essas perguntas nos levam a analisaro fenmeno buscando compreender as

    funes lingustico-discursivas das hete-rogeneidades enunciativas, no nvel dasno coincidncias do dizer e das figurasdo bem dizer, cujo campo de abrangnciafoi assim definido por Authier-Revuz(2000b, p. 3):

    O percurso sistemtico desses retornosreflexivos produzidos pelos enunciadores desde a forma minimamente marcada

    das aspas at as longas fugas metaenun-ciativas de Proust, por exemplo, passan-do por um conjunto de locues mais oumenos cristalizadas, tais comopor assimdizer, possvel dizer, o caso de diz-lo,etc. desenha o campo do que se podechamar de no coincidncias do dizer3(grifos e aspas da autora).

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    As formas de desdobramento sgnico as no coincidncias do dizer queexpressam o no um, a falta do dizer, aausncia, o lapso, o dizer provisrio ouexcessivo apresentam a verso do um do

    dizer, revelador da iluso de controle, ailuso do acordo, da adeso plena, daadeso sufragista, da intencionalidade,do consenso no emprego dos signos. Essaverso da modalizao autonmica acoincidncia no dizer andapari passucom sua verso contrria no percursoenunciativo e do mesmo modo que afalta (a no coincidncia do dizer), o bem

    dizer (a coincidncia no dizer) pode serexplicitamente colocado em comentriosmetaenunciativos (AUTHIER-REVUZ,1998, p. 54).

    H, portanto, dois modos sob os quaispodemos abordar a heterogeneidadeenunciativa: o tipo (a), das no coinci-dncias do dizer, expresses da falta, dafalha, da ferida no discurso, e o tipo (b),

    das figuras do bem dizer, que expressamo encontro absolutamente intencional dosujeito e de seu dizer. desse segundotipo que nos ocuparemos mais demora-damente aqui. Ao contrrio do primeirotipo, que escapa ao controle do sujeito,o segundo tipo, ou seja, as figuras dobem dizer, sendo estratgias conscientes,constituem recursos persuasivos impor-

    tantes e, por isso mesmo, prestam-sea uma anlise argumentativo-retrica.Nosso objetivo, porm, no chegar aodesenvolvimento dessa anlise, senoapenas sugerir esse veio de pesquisa,explicando sua viabilidade.

    As heterogeneidades

    enunciativas

    Apoiando-se no dialogismo e na poli-

    fonia do crculo de Bakhtin (2000) e napsicanlise freudo-lacaniana, Authier--Revuz (1998, 2000a, 2000b, 2004)estabelece a noo de heterogeneidade

    enunciativa. A autora considera, combase no dialogismo, que a linguagem o campo do heterogneo, do mltiplo,do no um, ou seja, se a linguagem ocampo do dilogo, e esse dilogo cons-

    tante e interminvel, havendo inmerasvozes que se cruzam e se entrecruzam, svezes consoantes, s vezes dissonantes,a linguagem um campo multifaceta-do. Sendo um campo multifacetado, alinguagem exige do sujeito enunciadorcertas escolhas que vo se impondo aolongo da enunciao. Essas escolhas,quer conscientes, quer inconscientes,vo desvelando ou ocultando um tipo desujeito enunciador e de sentidos que eleveicula por meio de suas enunciaes.

    Se o dialogismo uma condiosinequa non da linguagem e se a heteroge-neidade caracterizada pelo princpiodialogal, ento justo supor que a hete-rogeneidade um princpio constitutivoda linguagem. Assim como o dialogismo um princpio abstrato, um pressuposto,e no h modo de investig-lo enquan-to fenmeno lingustico, tambm ofenmeno da heterogeneidade, da nounidade da linguagem. Por tal raciocnio,

    Authier-Revuz reconheceu que haveriauma heterogeneidade constitutiva da

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    linguagem, imaterial e abstrata, portan-to, no passvel de observao emprica.

    Assim como Bakhtin (1992) consideraque o dialogismo tem uma forma de ma-terializao a polifonia , a qual est

    presente nos enunciados concretos, sen-do uma evidncia do dialogismo, do mes-mo modo Authier-Revuz reconhece que aheterogeneidade constitutiva encontra,igualmente, um modo de representao a heterogeneidade mostrada , a qualse torna evidente na enunciao pormeio de vrios mecanismos lingusticos ediscursivos que anunciam (e denunciam)

    sua presena.Pode-se perguntar, ento, se a autora

    realizou apenas uma mudana na termi-nologia bakhtiniana, uma modificao denomes, mantendo-se os mesmos concei-tos. Seria essa uma acusao injusta. Emtermos gerais (e de modo bem rudimen-tar), o dialogismo o reconhecimento deque uma enunciao responde a outros

    enunciados, suscitando novas respostas.A polifonia a presena de vrias vozes(marcadas ideologicamente) que mate-rializam o dialogismo e provam sua exis-tncia. O dilogo de que nos fala Bakhtinpode ser tomado como um dilogo devozes que se embatem, ou de vozes queentram em conflito (sempre ideolgico),

    j que Bakhtin parte das concepes

    sociais de Marx e das lutas de classes.Desse modo, a linguagem um campode batalha em que conflitos ideolgicosso, por assim dizer, resolvidos, ou no.

    Authier-Revuz, ao tratar da hetero-geneidade constitutiva, mostra que a

    linguagem (tambm) o campo de vriaspresenas, isto , sempre no um: hvozes (como em Bakhtin e h sempreum outro em jogo. Mas, se em Bakhtin ooutro o outro enunciador, em Authier-

    -Revuz esse outro ganha dimensesmaiores: outro enunciador, outra lngua,outra poca, outro sentido, outro contex-to, outro lugar, outro ambiente discursi-vo etc. Pode ser, para usar um termo dalinguagem comum, outro qualquer coisa; justamente isso que faz a linguagem oambiente do no um. A heterogeneidadeconstitutiva se nos apresenta como a

    possibilidade de mltiplos, sejam essesde que modo forem (e no apenas ideol-gicos) e, estruturalmente falando, podemser mostrados, marcados (formalmenteou no), sendo, ento, a heterogeneidademostrada, sintoma da outra.

    O no-um da heterogeneidade se re-vela especialmente por meio da modali-zao autonmica, quando sujeito e signo

    se enfrentam e, no campo de batalha,exige-se a metaenunciao de funoreflexiva, desdobrada, por meio da qualo sujeito-enunciador torna a linguagemseu objeto de enunciao. Tal estratgialinguageira tem um preo para o sujeito:este se revela ou se oculta na hora defazer a escolha, argumenta ou manipula,expe-se ou se protege, afasta-se ou se

    aproxima do outro com quem dialoga,expe a ferida do(no) sistema lingus-tico, ao mesmo tempo em que procuraobturar tal ferida. Para Authier-Revuz(2000, p. 4),

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    no que diz respeito s no coincidnciasdo dizer, consideradas inerentes, consti-tutivas da enunciao, e, como tais, porela irrepresentveis, isto significandoque a comunicao encontra continua-mente obstculos para constituir o um,

    que o referente sempre de alguma formafracassado (como dizia Lacan), que ojogo de palavras sob palavras no cessajamais, e que, finalmente, toda palavraenunciada recebe o j-dito de outros dis-cursos que inevitavelmente a habitam ,as formas de autorrrepresentao do dizerda modalizao autonmica aparecemcomo os lugares sensveis no dizer, denegociao obrigatria de todo dizer como fato das no coincidncias inerentes que

    o atravessam.4

    Assim, compreendemos que a meta-enunciao cumpre inmeras funesdiscursivas ao mesmo tempo:

    (1) mostra que tipo de sujeito esseque fala;

    (2) revela suas intenes pragmtico--argumentativas (convencer oumanipular);

    (3) revela o nvel de comprometi-mento do sujeito com aquilo queenuncia;

    (4) estabelece acordos (no sentido daretrica) para conduzir o discur-so;

    (5) analisa (ainda que inconsciente-mente) o sistema lingustico doqual faz uso, entre outras funes

    possveis e no excludentes.Os modos de representao enuncia-

    tiva metonimicamente modalizado pormeio das figuras do bem dizer , segundo

    Authier-Revuz (1998, p. 54), um jogoinerente lngua cuja representao

    explcita como parte beneficiada do dizerde X o que afirma o bem' nesse dizer.

    Essas figuras aparecem no discursosob dois formatos: por um lado, pontuamo modo do dizer, a maneira encontrada

    pelo enunciador para demonstrar que amodalidade da enunciao apropriadaao evento discursivo e, por outro, refle-tem a escolha correta das palavrasempregadas.

    Authier-Revuz (1998) agrupou as fi-guras do bem dizer em quatro categorias:

    (a) o dizer de acordo com a inteno,que expressa a intencionalidade

    subjetiva, a responsabilidadeindividual pelas escolhas discur-sivas;

    (b) o dizer de acordo com as leis dodizer, que coloca em jogo o pro-tocolo da enunciao ou o ritualdiscursivo;

    (c) o dizer como ato pessoal, quemostra o sujeito que assume a

    responsabilidade por sua enun-ciao, colocando-se como fonte provisria ou iniciante danomeao;

    (d) o dizer preenchido pelo equvoco,no qual o sujeito mostra, apesardo perigo do inesperado, o jogo doacaso em que enunciador, enun-ciado e destinatrio se encontram

    de modo feliz.Discutimos, a seguir, esses modos de

    representao de modalizao auton-mica.

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    O dizer de acordo com a

    inteno de dizer

    O encontro realizado da represen-

    tao do um na enunciao suspende,temporariamente, a ameaa da disper-so desencadeada pela heterogeneidadeconstitutiva da linguagem, na medidaem que, ao mesmo tempo que desvelaa suspeita da no coincidncia no dizer,protege o enunciador da invaso indese-

    jada dos tipos de outros que a enunciaocomporta e anuncia a intencionalidade

    da escolha das palavras, como que rea-firmando a iluso de controle sobre aenunciao.

    Esse encontro feliz entre a intenodo dizer e o dizer efetivamente realizadomaterializa-se nas formas de confir-mao plena ou enftica ao se repetirum termo X e remete a uma respostanecessria negociao obrigatria eininterrupta entre o enunciador e suasenunciaes, sem a qual a realizao dacomunicao seria, no mnimo, impra-ticvel.

    Um dizer de acordo com a intencio-nalidade do enunciador protege-o contraum lapso de recepo virtual ou imagi-nada, mas no efetivamente produzidapelo sujeito em frmulas como X, eudisse realmente X ou X, voc no est

    enganado, eu disse: X. Veja-se um exem-plo corriqueiro:

    (1) Liange Araujo disse...

    baahhh!!!! amei tuas tirinhas!(e estou dizendo realmente oque eu queria dizer)

    8 de novembro de 2011 01:22(comentrio de um blog. Dispon-vel em:http://www.comoeurealmente.com/p/contato.html. Acesso em: 10

    set. 2012).Essas figuras de bem dizer mostram

    que a confirmao no vem dissiparuma dvida real do destinatrio quantoao que ele percebeu, mas simular retori-camente uma resposta a uma dvida fic-tcia (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 56).

    De outro modo, a inteno do dizer sematerializa tambm na negao do erro

    do enunciador, como a inteno plena-mente realizada ou, por outro lado, comoa inteno no realizada em frmulasem que o enunciador pronuncia: Eu no

    estou enganado ao dizer X, Sim, issoque eu estou dizendo, ou No X que

    eu queria dizer.O dizer da inteno subjetiva eviden-

    cia o carter reflexivo da escolha dos

    termos empregados na enunciao ou nomodo de enunciar com funes diversas,todas de algum modo intensificadoras e,por isso mesmo, persuasivas:

    demonstrar o dizer verdadeiro: Eudisse verdadeiramente X;

    assumir plenamente o dizer: X, eudisse X mesmo;

    insistir dando destaque: X, eu

    sublinho, X, destaque meu; explicitar a intencionalidade visa-

    da, aderindo plenamente ao dizer:Voc diz X, eu digo Y, Eu digo Xpropositalmente/de propsito;

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    escolher ponderadamente ouprecisamente: Eu peso minhaspalavras, X, a palavra exata.

    Reflitamos sobre os exemplos abaixo:

    (2) [...] a inteno em apresentardetalhadamente todos esses con-ceitos foi na tentativa de demons-trar que hibridismo a palavraexata para descrever este tipode texto em que as marcas degneros como [...] (Linguagem emDiscurso. Texto 09)

    (3) A lngua-I do gerativismo oque eu chamo de Verso-I,porque... (DELTA. Texto 02)

    (4) A crtica ao subjetivismo ide-alista em funo do que sepode chamar hoje em dia deperspectiva individualista delinguagem. (ReVel. Texto 06)

    Se compararmos os trs exemplosapresentados veremos, por um lado, noexemplo 02, a reafirmao do um da lin-guagem quando a palavra, o termo exatose apresenta e escolhido no processoenunciativo. No exemplo 03, por outro,reclama-se a intencionalidade do discur-so no momento em que o enunciador seprope a renomear um referente j no-meado, mas que era, para ele, nomeadoindevidamente. O quarto exemplo revelaum enunciado que, apesar de pretender

    renomear um referente, escolhe pelaforma impessoal da terceira pessoa dosingular, recurso lingustico que, na me-dida em que renomeia um referente jbatizado, protege seu enunciador contraa responsabilidade da nomeao.

    A intencionalidade subjetiva demons-trada na enunciao mostra um sujeitoque se esfora para manter o controlediscursivo, um sujeito que veicula ossentidos que deseja veicular o modo

    como quer argumentar, expurgando daenunciao os entraves no coincidentesque podem eventualmente aparecer. Asfiguras da inteno do dizer, ao passoem que restauram o um da enunciao,lembram aos partcipes do ato enuncia-tivo da ameaa constante da dispersopromovida pela heterogeneidade prpriado sistema, isto , apesar de deixado de

    fora, o no um marca sua presena ou(re)afirma sua existncia dizendo: Eupermaneo aqui. O jogo argumentativose deixa entrever nesse embate de vozes,nas explicitudes e nas implicitudes.

    O dizer de acordo com as

    leis do dizer

    A enunciao, em todas as suas di-menses, exige o cumprimento de regrassocioculturais para a sua efetivaoe, mais que isso, para o seu sucesso.Foucault nos fala em protocolo da enun-ciao instaurado como acordo mtuoentre os sujeitos que deve ser observadoe seguido, e Pcheux nos fala sobre oritual discursivo.

    Em ltima anlise, o dizer confirma-do como real, como intencional, , almdisso, legitimado como um, sem distnciainterna. O ato singular de nomeao dado como no se distinguindo' danorma consensual (AUTHIER-REVUZ,1998, p. 61), isto , o dizer precisa ser

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    legitimado pelas regras de conduta enun-ciativa, pelo protocolo da enunciao.

    Esse dizer, de acordo com as leis dodizer, so efetivados por meio da moda-lidade dentica da permisso, que pe

    em funcionamento a nomeao admis-svel e a nomeao obrigatria, que sematerializa em frmulas situadas entrea coero do verdadeiro e a coragem dedizer o nome verdadeiro.

    A nomeao admissvel, aquela doque se pode chamar X manifesta pormeio do auxiliar modalpoder no indica-tivo afirmativo; pelo verbo chamar com

    sujeito ns (neste caso, temos a injunode vozes entre enunciador e destinatrioque legitima o dizer por meio da condes-cendncia do outro e se torna, assim,mais fortemente argumentativo); ou porformas pronominais na voz passiva.

    J a nomeao obrigatria, como oprprio nome diz, evidencia um enuncia-dor que respeita as leis da enunciao em

    frmulas, como preciso dizer/chamarX, expresses que denotam o bloqueioa todas as demais formas possveis denomeao, negando peremptoriamentea manifestao do heterogneo e afir-mando a condio de um da nomeao.Por outro lado, essas expresses deixamentrever uma dimenso coercitiva danomeao, do verdadeiro, do real, de

    modo que, se a verdade coercitiva, osujeito no absolutamente livre emsuas escolhas enunciativas.

    Diferentemente dessa anlise, nasfiguras que demonstram a coragem emexpressar o nome verdadeiro na enun-ciao, percebemos um sujeito mais

    consciente, mais senhor da sua vontadedo dizer em frmulas que conclamama audcia do dizer ou insinuam sub--repticiamente, por meio de perguntasretricas, como Tem outro nome para

    X?, o apelo para restaurar o um naenunciao, numa negao conscientedos modos heterogneos de expresso.

    As leis do dizer e sua presena naenunciao, ao mesmo tempo em quedeixam o sujeito coagido, subjugado a umsistema, barrado pela ordem discursiva eobrigado a pronunciar-se de acordo, tam-bm servem para que o sujeito subverta

    o prprio sistema coercitivo, porque asleis exigem a justificao, parcial ouplena, mas sempre persuasiva, do dizerefetivado. Alguns exemplos:

    (5) Por tratar-se de pessoas do dis-curso, poderamos dizer queessa hierarquia est no nvel dodiscurso-pragmtico. (DELTA.Texto 03)

    (6) Observe-se que a situao social--comunicativa ilustrada remeteao que precisamos chamar deinterao dialgica assimtricaque se desenvolve entre o pro-fessor e alguns alunos revelando

    j de incio, a ausncia de aopedaggica de controle ou moni-toramento de classe. (DELTA.

    Texto 06)

    O dizer como ato pessoal

    Das figuras do bem dizer, as que maisevidenciam um sujeito desesperado por

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    restaurar o um da enunciao a nomea-o como ato pessoal. Paradoxalmente, tambm a figura que mais denuncia olapso do sistema, a falha constitutiva,a falta de.

    Observar a enunciao como ato denomeao pessoal e de responsabilidadeindividual uma outra tendncia:

    Para alm de sua intencionalidade, a nome-ao representada como oriunda de ummodo um do dizer: no mais da nomeaolegitimada por estar de acordo com o per-mitido relativamente ao jogo admitidona relao palavra-coisa , ou como obri-gatrio a respeito da verdade , isto ,

    pelas instncias exteriores enunciao, ena dependncia das quais esta representa,mas a de uma nomeao legitimada se sequer assumir plenamente, ela mesma, emsua dimenso de ato cumprido pelo sujeitoenunciador. O dizer de X no representadocomo coincidindo com o permitido ou com oprescrito que lhe confere, do exterior, umavalidade, mas como identidade com uma de-ciso do enunciador, apontando, no instante,de modo simultaneamente soberano e frgil,exposto sem o abrigo dos exteriores que

    garantem , um nome sobre uma coisa.Aparecem aqui em uma espcie de solido ede responsabilidade do eu nomeando umacoisa em sua singularidade, isto , no aindanomeada, uma dimenso de batismo cum-prido, em seus riscos e segundo o seu desejo(AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 69).

    Essa representao da forma unvocado dizer, em contraponto com as figurasdo bem dizer discutidas precedentemen-

    te, definida com base na distino inte-rior versus exterior enunciao. Nasfiguras que remetem intencionalidadedo dizer e nas figuras do dizer de acordocom as leis, aparecem os exteriores averdade e o obrigatrio , que abrigamo enunciador, protegendo-o contra a in-

    vaso do heterogneo. Como ato pessoal,escolha individual, o dizer abandonadopelos exteriores, protegido to somentepela deciso intransfervel que o sujeitose arroga.

    A soberania subjetiva em nomear pordeciso pessoal cobra como preo expora fragilidade do sistema que falha emsua dimenso designativa, abandonandoo sujeito solido discursiva, portantosem apoios exteriores. Mas, ao mesmotempo, configuram uma assuno deresponsabilidade.

    As formas do dizer como ato pessoal

    abrigam-se sob as modalizaes de no-meao pelo batismo e as modalizaesdesignativas de carter sufragista. Anomeao pelo batismo pode implicarou no o enunciador: frmulas comoque se chama X em oposio a que euproponho chamar X no jogo entre o im-pessoal e o pessoal de primeira pessoa mostram o grau de comprometimento do

    enunciador com sua enunciao ou, emoutras palavras, a coragem do sujeitoem assumir ou no a responsabilidadepelo dizer.

    Expresses como eu ouso dizer X oueu gostaria de dizer X tambm devemser colocadas na rubrica das figurasdo dizer como ato pessoal porque delasemerge um sujeito que no se furta

    necessidade do dizer ou que enunciaaquilo que ele deseja verdadeiramenteargumentar.

    As figuras de designao de cartersufragista so aquelas que funcionamcomo uma dimenso de dizer iniciantevisando a um referente cuja singu-

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    laridade requer a produo de umanomeao especfica, no disponvelno conjunto de nomeaes estabeleci-das (AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 73).Nesse caso, h por parte do enunciador

    uma vontade de nomear, explorando ocarter polissmico ou combinatrio dostermos. Instaurar explicitamente, naenunciao, um processo de nomeaorequer, no mais das vezes, justificaes,comentrios, reformulaes, estratgiasargumentativas que expliquem o batis-mo proposto. Por exemplo:

    (7) A reflexo foucaultiana opera

    um deslocamento de uma noorepressiva e negativa de poderpara uma abordagem produtivado mesmo um poder estimula-dor de discursos e prticas queeu chamo de lgica scio-

    -relacional (DELTA. Texto 05).(8) A proposta de Foucault sobre o

    biopoder colabora para explicar

    aquilo que eu proponho comodiscurso de narrativas alterit-rias imaginrias para significara atitude da mdia em... (DELTA.Texto 05).

    O dizer preenchido pelo

    equvoco

    Ao lado das figuras que funcionamcom base na confirmao da intencio-nalidade do dizer, ou quando a inten-cionalidade se refere ao respeito aoslimites do receptvel, ou quando o jogodo intencional demonstra a submisso

    s leis do dizer e ao verdadeiro, ou aindaquando a inteno do dizer se expressapor meio da soberania criadora de fr-mulas enunciativas evocadas anterior-mente , aparecem as formas do dizer

    que expressama adeso do enunciador a seu dizer: o X, ocaso de dizer, que coloca o bem dizer sob oreino de um acaso que o enunciador recebeem seu dizer, aquele, em X, de um outro sen-tido, de um sentido a mais pelo qual, almdo sentido escolhido por ele em X, o equvocoda lngua (polissemia, homonmia, troca-dilho...) oferece-lhe a surpresa bem-vinda(AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 75).

    Apesar de parecer incompatvel coma noo de um sujeito intencional dodizer, j que essas figuras so do jogo doacaso e do equvoco, portanto para almdo nvel de qualquer controle proposital,as figuras cujo dizer preenchido peloacaso expressam um sujeito que tiraproveito da ocasio, agregando a possi-bilidade que lhe foi apresentada, pois o

    acaso produz um dito melhor que seuquerer dizer, o enunciador realizado'pelo que, em suas palavras, escapa-lhe,dizendo melhor o que ele no sabia dizer(AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 77). Isto ,o dizer do encontro com o acaso, ao invsde mergulhar o sujeito num ambienteconstrangedor de falta de controle sobresua enunciao, coloca-o na posio de

    investimento argumentativo, pois, aoexpressar-se de um modo X e encon-trando o acaso, conduz esse acaso paradele obter retorno. Essas figuras do casode dizer, de acordo com Authier-Revuz(1998, p. 77-78),

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    representam um eu intencional cujo quererse cruza nas instncias do poder, do dever..., passa-se ento quela do presenteinesperado de um bem dizer oferecido aoenunciador por uma lngua que joga: pre-sente que o de um encontro, de ocasio o

    caso entre tal particularidade do real anomear e o jogo inassinalvel, no avessodas palavras, dos equvocos da alngua[lalangue], encontro imprevisto, singular,que faz brotar no corao significante danomeao escolhida a fasca de uma outrapalavra ou de um sentido a mais cujo acasobem-vindo vem, para o enunciador que orecebe, duplicar a sbia adequao do pri-meiro.

    As formas de expresso da heteroge-

    neidade enunciativa aqui apresentadas,as figuras do bem dizer, so instru-mentos discursivos por meio dos quaiso sujeito se coloca no jogo enunciativoda interao lingustica, interao quese d tanto entre sujeitos como entre oenunciador e o sistema, entre o enuncia-dor e o real.

    Cabe agora analisar o tipo de sujeito

    que se revela ou se desvela por meiodessas expresses de metaenunciaodiscursiva.

    As figuras do bem dizer

    e o sujeito

    Ao investigar a enunciao, a meta-enunciao, as heterogeneidades enun-

    ciativas, as no coincidncias do dizer eas figuras do bem dizer, Authier-Revuz(2000) deparou-se, tambm, com a pro-blemtica do sujeito. Em suas pesquisas,para estabelecer seu objeto de investiga-o, a autora deparou-se com definies

    to diversas de sujeito quanto diversoseram os critrios adotados para firmaras definies. Assim, Authier-Revuz(2000) sistematiza duas concepes desujeito: uma que ela chama de sujeito-

    -origem do dizer e outra que ela chamade sujeito-efeito do dizer, que foramassim definidos por ela:

    Se, na verdade, apoiamo-nos em um sujeito-origem, A, aquele da psicologia e de suasvariantes neuronais ou sociais, fonte in-tencional do sentido que ele exprime atravsde uma lngua instrumento de comunicao que o caso, de maneira geral, das aborda-gens pragmtico-comunicacionais , ento

    coerente considerar que o enunciador tempossibilidade de representar sua enunciaoe o sentido que ele nela produz, e que podelhe ser transparente: nesse caso, possvelconsiderar que as formas de representaoque os enunciadores tm de seu prpriodizer sejam um reflexo direto do real doprocesso enunciativo (AUTHIER-REVUZ,1998, p. 169).

    Este o sujeito-origem do dizer, osujeito que controla a enunciao, o

    enunciado e os sentidos por ele expres-sos; um sujeito intencional com prop-sito argumentativo definido e levado acabo em sua inteireza. Esse sujeito temcondies de, intencionalmente, se re-presentar em seu dizer, manipulando ossentidos, moldando-os a suas intenesdiscursivas. Nesse caso, preciso reco-nhecer o carter pragmtico da lingua-

    gem e, consequentemente, a concepode sistema de comunicao da lngua,entendida como um instrumento atravsdo qual o sujeito efetiva suas intenes ematerializa seus objetivos persuasivos.

    Na direo oposta, est a concepode sujeito-efeito do dizer, incapaz de

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    controlar totalmente os sentidos quepretende expressar:

    Se, pelo contrrio, apoiamo-nos em umsujeito-efeito, B, aquele assujeitado aoinconsciente da psicanlise, despossudo

    do controle de seu dizer (e isso tambm secoloca para o quadro da teoria do discursodesenvolvida por M. Pcheux, lugar deconstituio de um sentido que escapa in-tencionalidade do sujeito), consideraremosque o dizer no poderia ser transparente aoenunciador, a quem escapa, irrepresentvel,determinado pelo inconsciente (e o interdis-curso): impe-se, ento, a necessidade de re-pensar de outra maneira que no simplesreflexo o estatuto dos fatos, observveis,de auto-representao, em que a categoria

    lacaniana do imaginrio permite compreen-der a posio metaenunciativa ocupada pelosujeito que se representa acima do seu dizer,como que sob o domnio de um imaginrio daenunciao, preenchendo para o enunciadoruma necessria funo de desconhecimen-to no que se refere ao real da enunciaoque, de mltiplas maneiras, escapa-lhe(AUTHIER-REVUZ, 1998, p. 170).

    No primeiro caso, a metaenunciao,as heterogeneidades enunciativas e asno coincidncias do dizer devem serinterpretadas como uma manifestaoexplcita do controle discursivo exercidopelo enunciador. Authier-Revuz (2000,p. 185) reconhece essa alternativa:

    O desdobramento metaenunciativo apare-cer, ento, como uma forma manifesta docontrole funcional exercido pelo enunciador,a partir de sua intencionalidade, sobre amaquinaria comunicacional, e se integrarparticularmente bem s abordagens daenunciao como teatro, encenao, jogo demscaras, de imagens e de papis, para ossujeitos que se desdobram em uma relaointerativa com o outro.

    Contudo, Authier-Revuz, mesmoreconhecendo a existncia desse sujeito-

    -origem do dizer e a possibilidade depesquisas se apoiarem nele, ela faz suaescolha pelo sujeito-efeito do dizer comtodas as implicaes que assumir a nooacarreta. Para ela, este sujeito-efeito:

    no utiliza a linguagem para se comunicar,mas que, antes de qualquer coisa, s su-jeito quando fala, sujeito produzido pelalinguagem como estruturalmente clivadopor um inconsciente, sujeito destitudo detoda posio de exterioridade, a no serimaginria, com relao linguagem e a seudizer o que significa assumir a expressolacaniana no h metalinguagem , e, con-sequentemente, no h o controle intencio-nal que depende disso (AUTHIER-REVUZ,

    2000, p. 169).Neste artigo, temos focalizado o

    sujeito-origem e as figuras do bem dizerde que ele faz uso para se assumir. Comose pode notar, Authier-Revuz no s re-conhece a possibilidade de abordagemde pesquisa que tome por pressupostoo sujeito-origem do sentido, como des-creve as direes que uma anlise das

    heterogeneidades enunciativas por estaperspectiva deve tomar. Contudo, comoj mencionado, esta no sua opoterico-metodolgica, que se volta paraum outro tipo de noo subjetiva, mas a nossa. A proposta de uma abordagempela tica do sujeito-fonte intencional dosentido prxima da abordagem argu-mentativa retrica.

    A noo de sujeito que pretendemossustentar a de um sujeito afetivo-ins-titucional, sujeito organizador de fendasenunciativas e agenciador de prticasdiscursivas argumentativas.

    O sujeito sustentado pela teoria dasheterogeneidades enunciativas umsujeito-efeito de sentido, um sujeito que

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    no tem controle sobre o seu dizer; jo sujeito que se evidencia na teoria daargumentao no discurso um sujeitomais pragmtico, um sujeito-origem dosentido, um sujeito que controla a sua

    enunciao.

    As figuras do bem dizer

    uma perspectiva retrica

    O trecho a seguir pertence ao art.1 - A copa no vale isso. Nesse textoo autor prope a tese de que o governono pode acatar todas as decises do

    Comit Organizador Local da Copa. Paraapresentar a tese, o autor coloca a sus-penso de todos os voos que ocorreriamno aeroporto Santos Dumont, no Rio deJaneiro, durante uma festa organizadapara os dirigentes de clubes de futeboloferecida pela Fifa.

    Antes de apresentar seus argumentoscontrrios deciso do governo de aten-

    der ao pedido do comit, o autor apre-senta os argumentos que embasaram opedido, selecionando os mais adequados sua contra-argumentao:

    (9) Os cartolas alegam tambm queos avies poderiam afetar os equi-pamentos de transmisso da fes-tana, que ser transmitida paraduzentos pases, com expectativa

    de uma audincia de quinhentasmilhes de pessoas. o caso deperguntar: se sabiam disso, porque escolheram para a sua reali-zao um local exatamente numadas rotas areas de maior movi-mento no pas?

    Observamos que na construo deseu argumento, apresentado somenteno final do trecho sob a forma de umapergunta retrica, tpica dos argumentospragmticos, o autor lana mo de uma

    exposio dos argumentos daqueles quepropuseram a festa, isto , em um tre-cho rico em ironias, o autor expressa asua opinio por meio da figura do bemdizer classificada como Um dizer preen-chido pelo equvoco, construdo a partirda expresso o caso de perguntar.Lembramos que expresses colocadascomo Um dizer preenchido pelo equvoco

    no demonstram hesitao do sujeito,antes revelam um sujeito que aproveitao acaso, o momento oportuno de dizeraquilo que precisa ser dito, aquilo que,sem a oportunidade enunciativa certa,no seria possvel expressar.

    Uma interpretao argumentativapara essas expresses nos leva a umsujeito-enunciador que se encontra no

    momento feliz de uma enunciao an-terior (a argumentao do Comit para asuspenso dos voos) e apresenta um ar-gumento pragmtico para ser contrrio,qual seja, seria possvel realizar a festaem outro lugar que no prejudicasse ofuncionamento do aeroporto em questo.

    Contudo, preciso atentar para o fatode que o enunciador, no trecho em ques-

    to, no se assume completamente. Ouso da expresso o caso de perguntarno lugar de usar uma expresso maiscontundente para defender sua causa eutilizar uma pergunta retrica no lugarde uma afirmao, por exemplo, imprime

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    ao texto uma tentativa de manter o acor-do prvio da argumentao: o de mantero dilogo aberto para o debate de ideias.

    Note-se que a se encontra de maneiramais evidente a funo argumentativa

    dessa figura do bem dizer: renovar umacordo prvio construdo ao longo dotexto, pois ambas as partes consideramque h um inconveniente com a escolhado local da festa a ser realizada: uma daspartes, o Comit, pede a suspenso dasatividades do aeroporto porque o localda festa rota de avies; do outro lado,o colunista considera a suspenso um

    absurdo, como ele mesmo expressa notrecho a seguir:

    (10) absurda a deciso do governode, a pedido do Comit Organi-zador Local da Copa que porsua vez, atendia reivindicaoda Fifa , suspender todas asoperaes no Aeroporto SantosDumont, durante quatro horas,

    para no prejudicar a festanaorganizada pelos cartolas nacio-nais e internacionais na Marinada Glria, na rea central do Riode Janeiro, durante a qual serosorteados os grupos das elimina-trias para a Copa de 2014.

    Notemos que, ao nomear de absurdaa deciso, o autor estrutura seu texto

    por meio do dizer como ato pessoal, isto, uma figura do bem dizer que coloca osujeito enunciador como fonte e origemda nomeao. Argumentativamente fa-lando, temos aqui a apresentao da teseque ser defendida para o autor, assim,

    a funo argumentativa da figura dobem dizer, aqui, anuncia um sujeito queassume na totalidade sua enunciao,um sujeito que se responsabiliza poraquilo que diz. A figura construda sem

    a marca formal prevista na teoria, a qualse daria pela presena do verbo dizer/chamar antecedendo o termo. Contudo,defendemos que h modos de marcaoalm daqueles previstos; neste caso, amarca o prprio contexto, de onde seinfere que o autor chama de absurdaa deciso do governo.

    Por trs dessas duas figuras o di-

    zer preenchido pelo equvoco e o dizercomo ato pessoal h a expresso deum sujeito que preenche as falhas nodiscurso-outro (a argumentao para asuspenso das atividades do aeroporto),revelando um sujeito agenciador defendas (como expressamos no captuloanterior), um sujeito que aproveita o mo-mento oportuno da enunciao para se

    fazer enunciar, fazer valer a sua opiniosobre o tema tratado.

    Consideraes finais

    As figuras do bem dizer j apontam,embora Authier-Revuz nunca tenha seposicionado assim, para uma expressomais retrica, mais argumentativa, por-

    tanto, metadiscursiva (ou metaenuncia-tiva, nos termos da autora). Foi fazendointerpretaes como essa que decidimostentar oferecer uma nova perspectivapara tratar essa metaenunciao.

    Na anlise breve que empreendemos,observamos que, utilizando-se de figuras

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    do bem dizer, o sujeito enunciador que diz de que maneira cada expressodeve ser interpretada, como deve serlido naquele contexto. A enunciao,bem como a argumentao, ser, pois, o

    resultado de suas decises de significa-dos, como que afirmando eu digo comointerpretar.

    Se examinarmos outras ocorrnciasde coincidncias do dizer na perspectivada argumentao, podemos notar quantoelas se prestam a uma interpretaoargumentativa, na medida em que suainsero na cadeia discursiva tem a

    funo de estabelecer um ponto fixo desentido na cadeia discursa, do qual ocoenunciador no pode se desviar. Isto, ao inserir uma dessas estruturas nodiscurso, o sujeito enunciador prendeo coenunciador.

    Authier-Revuz et les figures

    du bien dire

    Rsum

    Nous visons avec cette tude examiner les moyens de modalisa-tion autonymique accomplis tra-vers le dploiement mta-nonciativeopacifiant appels par JacquelineAuthier-Revuz (1998) de figures dubien dire. Ces formes d'nonciationsont considres comme faisant par-

    tie du phnomne connu sous lenom Htrognits nonciatives,qui a t l'objet de notre recher-che depuis 2006. Les Htrognitsnonciatives sont considres commel'expression des pratiques d'altrittypiques des discours travers les-

    quelles on peut vrifier les typesd'individu qui se manifestent dansla langue et les relations que cesindividus tablissent avec les diff-rents types de l'autre qui traver-sent de faon constitutive le discours.

    En opposition aux Non-Concidencesdu Dire, les Figures du Bien Diresont des structures que l'on pour-rait bien appeler les concidencesde dire, des moments ponctuels dela linarit nonciative dans laquel-le l'nonciateur exprime l'illusion decontrle sur son nonc et donc surson nonciation.

    Mots-cls: Argumentation. Figures

    du bien dire. Htrognit non-ciative. Mta-nonciation.

    Notas1 La modalisation autonymique est envisage

    comme affleurement nonciatif de l'autre dulangage ce que j'ai appel les non-concidencesdu dire dans lequel joue, entre autres, maisnon exclusivement le langage des autres (todasas tradues so de nossa inteira responsabili-

    dade).2 Les images de points de non-concidence quisuspendent le cours uni du dire font place aufait des non-concidences et, par l, en prennentacte, le reconnaissent; mais c'est en mmetemps, leurre ncessaire, un masque qu'ellesinterposent celui, par le caractre circonscrit(constituant le reste, diffrentiellement, com-me un) et matris (par un nonciateur mme,depuis sa position de surplomb mta-nonciatif,de dire ce qu'il en est de son dire) de ces pointsde non-concidences reprsentes, d'une ra-ffirmation protectrice du UN du dire, oppos,

    sur un mode aussi absolument ncessaire qu'ilest imaginaire, la menace de dispersion quefait peser sur l'nonciation et le sens le jeu desnon-concidences foncires dans lesquelles ilsse font, et pourraient se dfaire (traduolivre).

    3 Le parcours systmatique de ces bouclesrflexives produites par les nonciateurs de-

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    puis la forme marque minimale du guillemet,jusqu'aux longues chappes mta-nonciativesde Proust, par exemple, en passant par unemasse de locutions quasi-figes, telles que lespour ainsi dire, si on peut dire, c'est le cas dele dire, etc. dessine les champs de ce qu'onpeut appeler les non-concidences du dire.

    4 Relativement aux non-concidences du dire,poses comme foncires, constitutives del'nonciation, et comme telles irreprsentablespar elle savoir que c'est en permanenceque la communication achoppe faire duun, que le rfrent est toujours en quelquesorte rat (comme disait Lacan), que le jeudes mots sous les mots n'est pas arrtable,et qu'enfin tout mot nonc, reu qu'il est dudj-dit des autres discours, est invitablementhabit par lui , les formes d'auto-reprsen-tation du dire de la modalisation autonymique

    apparaissent comme les lieux sensibles dansle dire de la ngociation oblige de tout direavec le fait des non-concidences foncires quile traversent.

    Referncias

    AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s)enunciativa(s). Cadernos de Estudos Lings-ticos, n. 19, p. 25-42. Instituto de Estudos da

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    M. L'Allusion dans la littrature. PressesUniversitaires de Paris-Sorbonne, 2000b.p. 209-235. (Coleo Colloques de la Sor-bonne).

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