Download - Monografia. Letícia Marques Camargo
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
CURSO DE CINICAS SOCIAIS
MONOGRAFIA
ORIENTAO: ANA CLAUDIA CRUZ DA SILVA
Ttulo: A Parentada da Dona Anita Uma etnografia da
histria a partir de imagens de famlia
Letcia Marques Camargo
Niteri, Maro de 2013
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SUMRIO:
Resumo.....................................................................................................p.04
Introduo.................................................................................................p.05
Capitulo 1: Uma Etnografia da Histria...................................................p.11
Captulo 2: O Narrador e as Narrativas....................................................p.18
Captulo 3: Memria e Imagem................................................................p.28
a. A funo da imagem...................................................................p.28
b. Observando o observador...........................................................p.33
Concluso.................................................................................................p.46
Referncias Bibliogrficas.......................................................................p.48
Anexo 1- Genealogia da Famlia..............................................................p.50
IMAGENS
Imagem 1 - Marqus de Baependi...........................................................p.34
Imagem 2 - Baro de Juparan................................................................p.35
Imagem 3- Padrinhos de Anny.................................................................p.36
Imagem 3- Alfredo e Jacinta....................................................................p.37
Imagem 5 - Sem legenda..........................................................................p.38
Imagem 6 -Essa da boa..........................................................................p.39
Imagem 7 - Muito boa essa, tempo bom lel...........................................p.40
Imagem 8 - Aurely, Adaury, Waldir e Cludio Luis................................p.41
Imagem 9 - Sem legenda..........................................................................p.43
Imagem 10 - Sem legenda........................................................................p.44
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Dedico este trabalho toda minha famlia, mas
principalmente a duas pessoas que faleceram enquanto eu j
estava realizando a pesquisa, pai e filha, Aloy e Ktia: o amor
que vocs dedicaram famlia Marques dos Santos, o primeiro
mantendo vivas as nossas histrias, e a segunda, mantendo viva
a nossa unio, no existe em qualquer lugar. Espero poder
passar um pouco daquilo que aprendi com vocs, e o legado
que deixaram foi o amor que se mantm vivo.
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RESUMO
A viso de mundo das pessoas o que costumamos chamar de cultura fruto
dos processos histricos vividos por elas e por seus antepassados, assim como essa
viso quem produz e legitima sua histria, j que esta sempre parcial e dependente do
ponto de vista de quem a conta. Assim sendo, histria e antropologia so cincias
intrinsecamente ligadas, no sendo possvel traar limites reais entre elas. Quando as
pessoas de uma famlia encaram suas prprias histrias como elemento central de sua
formao cultural, essa ligao se torna ainda mais visvel. Aqui, irei analisar as
histrias de uma famlia, que so contadas atravessando geraes e de forma oral, e
evocadas cotidianamente para expressar a imagem que as pessoas possuem de si
mesmas e do mundo. Fazendo uma etnografia da histria a partir das imagens de
famlia compartilhadas virtualmente pelo grupo A parentada da Dona Anita, na rede
social Facebook, meu objetivo compreender a idia que possuem sobre o significado
da palavra famlia, e a forma como esta construda, atualizada ou modificada de
acordo com as ideias que fazem de seu passado.
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INTRODUO
Quando partiste chorei
Mas logo depois lembrei
O quanto foste bom no mundo
Pode ser que Deus no fundo,
Tenha te mandado ir
Com uma bela esperana:
Algum anjinho criana
Quer estorinhas ouvir
(Maria de Lourdes Marques Camargo)
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Fazendo uma interface entre antropologia e histria, este trabalho visa
compreender como as categorias sociais tempo, espao, histria e parentesco so
pensadas a partir das histrias oralmente reproduzidas por descendentes do Baro de
Juparan, que d nome a um distrito da cidade de Valena, no interior do Estado do Rio
de Janeiro, palco de boa parte das histrias que so contadas.
Tal vilarejo surgiu ao redor de uma fazenda de caf do final do sculo XIX, a
Fazenda de Santa Mnica, pertencente ao Marqus de Baependi (Manoel Jacintho
Nogueira da Gama) e sua famlia: a Marquesa de Baependi (Francisca Mnica Carneiro
da Costa e Gama), e seus filhos Brs Carneiro Nogueira da Costa e Gama (futuro Conde
de Baependi), Manoel Jacintho Carneiro Nogueira da Costa Gama (Baro de Juparan)
e Francisco Nicolau Carneiro Nogueira da Costa e Gama (futuro Baro de Santa
Mnica).1
Dos filhos do Marqus de Baependi, o Baro de Juparan foi o que travou um
maior envolvimento com o vilarejo que surgia em volta da fazenda onde morava
realizando algumas obras que ainda so os principais monumentos da localidade outrora
chamada Desengano, e que hoje o distrito que leva o seu nome. Nas narrativas dos
moradores da localidade registradas em uma matria da TV Rio Sul2 no ano de 2010,
Manoel Jacintho Carneiro Nogueira da Costa e Gama, ou simplesmente o Baro de
Juparan, possuiu cinco escravas as quais viviam com ele como suas esposas, j que
ele no teve nenhum casamento oficial. Dessas escravas surgiram cinco ramos
familiares diferentes, porm com o patriarca em comum. Segundo um folheto publicado
pela igreja local em 1981, que teve ajuda dos moradores na construo da narrativa que
l consta, o Baro deixou parte de suas terras para seus filhos como herana, os quais
chamava de meus protegidos.3 (RAMOS, 1981).
O trabalho que comea a ser realizado com esta monografia de concluso do
curso de Cincias Sociais no visa confirmar a veracidade daquilo que narrado, mas
entender o quanto essas histrias influenciam naquilo que essas pessoas so hoje, o
quanto esse passado se une ao presente, e pode transformar seus futuros. Neste primeiro
momento de investimento na pesquisa, realizei algumas entrevistas e participei de
diversos eventos familiares onde pude conversar com muitas pessoas, porm foi por
1 Fonte: http://www.geneaminas.com.br/genealogia-mineira/descendentes.asp?codpessoa=28803 acessado
em 04.03.2013 2 Matria sobre o distrito de Baro de Juparan veiculada pela TV Rio Sul, filiada Rede Globo no o sul
do Estado do Rio de Janeiro em 22.05.2010. Ver http://riosulnet.globo.com/web/conteudo/5_269106.asp Acessado em 04.03.2013 3 Segundo texto extrado do folheto comemorativo do anivrsrio da igreja local em 1981.
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meio da rede social Facebook, onde existe um grupo chamado A Parentada da Dona
Anita, que obtive as mais valiosas informaes para que este texto fosse composto.
Este grupo formado pelos descendentes diretos do casamento entre um neto do Baro
de Juparan, Arthur Marques dos Santos, e uma bisneta do mesmo, Ana Mafra
Marques. Desta unio foram gerados onze filhos: Anny, Aloy, Amaury, Adaury, Anely,
Aurely, Aury, Analy, Antony, Anacy, Aucy, onde os mais novos foram criados junto
com os filhos dos irmos mais velhos, e seus filhos foram criados com os netos dos
irmos mais velhos, dividindo os primos-tios-irmos por geraes4. Separados pelas
oportunidades que foram surgindo na vida de cada um, estes mantm a casa da v
como o local de encontro, mesmo que nela no more mais ningum, alm de manter
desde 19/07/2005 um grupo na rede social Orkut, que mais tarde foi transferido para o
Facebook.
Assim, a famlia que havia se distanciado aps a morte da Dona Anita, voltava a
se relacionar de uma forma completamente diferente, mas que voltou a dar sentido
ideia de pertencimento que estava adormecida. a partir dessa nova relao que
comea esta pesquisa, estabelecida em volta das interaes online por onde uma grande
troca de documentos como fotos, poemas e cartas foi gerada, e por onde os encontros de
famlia passaram a ser marcados. Este trabalho, porm, no se limitar ao que estou
propondo neste momento, j que entrevistas j esto sendo realizadas com a inteno de
conhecer melhor as narrativas da histria dessa famlia - o fio que envolve o sentimento
de pertencimento a algo maior. Estou tambm coletando documentos junto s famlias
e aos museus e arquivos nacionais para que uma etnografia da histria seja feita nos
dois sentidos: Do presente ao passado, focada nas narrativas orais passadas de gerao
em gerao, e do passado ao presente, dando voz aos documentos, para uma
contextualizao das histrias orais e uma melhor compreenso dos costumes locais da
poca.
No primeiro captulo, procurei demonstrar o que seria a etnografia da Histria
que pretendo fazer, a partir de uma discusso bibliogrfica com autores que trabalham
assuntos que relacionam antropologia e histria, pontuando onde se aproximam e onde
se distanciam enquanto disciplinas. Defendo, a partir principalmente do trabalho de
Maria Olivia da Cunha, que o trabalho de campo antropolgico pode tambm ser feito
por meio de arquivos.
4 Para maiores esclarecimentos, ver genealogia em anexo
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No segundo captulo exponho os resultados da minha primeira experincia em
campo, com a entrevista a Osmar (ou Mazinho), a pessoa mais entendida dessas
histrias de famlia, j que ao abordar outros familiares sobre o assunto, sempre me era
sugerido procur-lo, pois este era reconhecido como uma espcie de narrador oficial
da famlia. Pretendo continuar esses encontros com Mazinho e com outros narradores
que j estou contatando, a fim de apreender melhor o contexto em que essas pessoas
vivem hoje em dia, assim como, a partir das informaes que so coletadas,
compreender melhor a ideia que fazem de suas histrias e a influncia que elas possuem
na formao de suas identidades, em suas vises de mundo e em seus valores culturais.
Essa parte ser melhor desenvolvida durante o mestrado em antropologia, que ter
incio em maro de 2013, pela Universidade Federal Fluminense. Este trabalho,
portanto, constitui apenas um primeiro exerccio, j que tive pouco tempo para coletar
informaes e desenvolv-lo.
Outra frente dessa pesquisa desenvolvida no terceiro captulo, no qual utilizo
os registros fotogrficos de famlia, trocados por meio das comunidades nas redes
sociais Orkut e Facebook para compreender quais so os sentimentos e impresses que
transmitem, e como elas podem expor de alguma forma a ideia que cada um faz do
todo maior que seria a famlia. O diferencial que aqui o campo virtual, onde fao
uma observao participante, j que tambm fao parte da famlia, o que facilita
sensivelmente a compreenso dos assuntos tratados. Acreditei ser a internet um bom
instrumento no apenas para conhecer as percepes de alguns membros da famlia a
respeito dela mesma, a partir das reaes s imagens antigas, mas tambm para
desenvolver uma genealogia, iniciada anteriormente por Amaury (pai de Mazinho, j
falecido), j que hoje existem sites do tipo redes sociais especializados em seu
desenvolvimento, que colocam em contato pessoas que possuem parentes em
comum5. O trabalho de campo junto a grupos virtuais algo que vem sendo explorado
por alguns cientistas sociais, mas ainda no muito reconhecido, como expe a
antroploga Rita Amaral:
Se muitos antroplogos ainda no consideram o computador como um
instrumento de pesquisa, a maior parte de nossa "tribo" j utiliza com
familiaridade seu computador pessoal como processador de texto e
boa parte dela tambm como via de acesso Internet para enviar
mensagens eletrnicas (e-mails) para os colegas. Tem-se deixado,
entretanto, de explorar os recursos do computador como instrumento
5 Infelizmente muitos so pagos, portanto tive um acesso restrito
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de pesquisas, e no apenas para a organizao e anlise estatstica dos
dados que recolhemos em campo (quando dominamos a
operacionalizao dos programas -softwares- indicados para estas
finalidades). O que pretendo levantar como tema de discusso aqui o
fato de que, devido imensa versatilidade advinda no apenas da
simplificao do uso dos programas, mas tambm das novas
facilidades de acesso rede Internet, os computadores podem e devem
ser usados efetivamente para a realizao de pesquisas qualitativas
pelos cientistas sociais. (AMARAL, 2001, p. 31)
Este trabalho no um resultado final, mas uma pequena mostra do que ser
melhor desenvolvido durante o mestrado. Vejo-o apenas como um intenso exerccio que
me possibilitou clarear algumas dvidas que havia quanto aos meus objetivos, j que
realizo uma pesquisa com minha prpria famlia. Pode ser que as dvidas sempre
estejam presentes, mas agora consigo visualizar um caminho por onde seguir sem que
gere qualquer tipo de conflito interno entre a Letcia filha, neta ou prima e a Letcia
antroploga. Ser sempre essa balana a responsvel pelo o que visto como relevante
para a minha pesquisa, sem extrapolar os limites entre uma e outra, mas tendo em mente
preocupaes genunas em questionar o que no poderia ser questionado se no
estivesse na posio de cientista. Olhar para essas histrias enraizadas e naturalizadas
no contexto familiar de forma crtica um esforo a que me lano sabendo das
dificuldades apresentadas. O prprio Malinowski, em 1939, apoiou um antroplogo
chins, Hsiao-Tung Fei, para que publicasse sua pesquisa entre os camponeses chineses,
ciente que o trabalho de campo entre os seus era mais difcil, porm mais valioso.
Marisa Peirano demonstra que Malinowski no foi o nico a incentivar pesquisas feitas
por nativos entre nativos:
Se Malinowski nos surpreende por sua postura ousada, ele no
estava sozinho. A aprovao que Radcliffe-Brown e Evans-Pritchard
deram ao estudo de M. N. Srinivas sobre os Coorgs indianos sugere
que o cnone pode ter se desenvolvido independente das prticas.
(PEIRANO, 1997, p.72)
Buscar o no contado dentro do contado, o no explcito dentro do familiar;
ouvir novamente as histrias que estavam esquecidas, agora com um novo olhar. Um
olhar que aprendi durante toda a graduao em Cincias Sociais, de ultrapassar a
superfcie para compreender o que h por dentro, qual o papel dessas histrias para a
manuteno dos valores que criam a ideia de pertencimento ou na perspectiva analisada
mais profundamente por este trabalho: quais so as funes das imagens ao serem
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compartilhadas pelo grupo, quais sentimentos e lembranas despertam nos parentes, e
como produzem eficazmente um sentimento de pertencimento.
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CAPTULO 1 UMA ETNOGRAFIA DA HISTRIA
Quando me propus a realizar uma etnografia da Histria6, tinha em mente
desenvolver uma forma de abordar a histria antropologicamente, observar os tipos de
histria produzidos e o porqu de essas histrias serem acionadas. A proposta tratar a
histria como um objeto visando produzir um trabalho genuinamente antropolgico.
Desde o surgimento da Antropologia como uma cincia social, sua relao com
a Histria de movimentos contnuos de aproximao e de afastamento. A histria da
antropologia apresenta momentos em que foi necessrio delimitar melhor os espaos de
cada uma dessas duas disciplinas, assim como em outros momentos foi preciso afrouxar
esses limites para que se compreendesse melhor a dinamicidade das culturas.
Lvi-Strauss , sem dvida, um dos antroplogos mais importantes quando se
trata de pensar a relao entre Antropologia e Histria. Por conceber a origem simblica
do social em oposio ao que era concebido pela Escola Sociolgica Francesa, em que os
smbolos se originariam do social, Lvi-Strauss toma a linguagem como modelo para
compreender os outros sistemas simblicos. A lngua seria um sistema de signos, uma
unidade de sentido da linguagem/fala (parole), ou seja, seria a potencialidade do ato de
falar. Segundo este modelo, a histria sempre ocuparia uma posio secundria, pois
no se relacionaria diretamente com a estrutura, j que a potncia, o falar, no seria
modificvel pelo contexto. Sua importncia se resumiria revelao das estruturas, tal
qual acontece com os fenmenos sociais de maneira geral. Os objetivos de Lvi-Strauss
so, portanto, diferentes dos de Marshall Sahlins, j que este ltimo tenta perceber a
dinmica da estrutura dentro de uma determinada cultura, enquanto Lvi-Strauss tenta
perceber as estruturas de um ponto de vista mais distanciado:
[A] antropologia estrutural funda-se numa oposio binria que se
tornou sua marca registrada: uma oposio radical em relao
histria. Trabalhando a partir do modelo saussuriano da lngua como
objeto cientfico, o estruturalismo similarmente privilegia o sistema
em detrimento do evento, e a sincronia no lugar da diacronia.
Seguindo uma via paralela quela da distino saussuriana entre a
lngua (la langue) e a fala (la parole), a anlise estrutural parece
tambm excluir a ao individual e a prtica mundana, exceto quando
estas representam a projeo ou execuo do sistema vigente.
6 Termo elaborado em conjunto com a minha Orientadora, a Prof Ana Cludia Cruz da Silva. A
principio, chamei de antropologia da histria, termo utilizado tambm por outros autores, notadamente Schwarcz. A ideia de fazer uma etnografia da histria, como sugerido por minha orientadora, adequa-se melhor proposta de perceber a histria em uso pelos agentes sociais.
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Argumentarei aqui, sobretudo por meio de demonstraes concretas,
que esses escrpulos todos no so de fato necessrios; que possvel
determinar estruturas na histria e vice-versa. (SAHLINS, 2008,
p.19).
Em outro polo, Sahlins admite que nenhum povo se relaciona de maneira
exclusivamente utilitria. Existem questes utilitrias, porm estas se enquadram nos
mitos e na lgica nativa. Admite-se que o interesse norteia as aes, porm que os
atores sociais utilizam-se dos signos de valor como meio para um fim. O interesse que
se tem em algo no possui uma ligao intrnseca com o valor convencional, mesmo
que esse valor intencional derive do valor convencional, toma-se aqui uma perspectiva
que deixa margem a uma experincia pessoal, que no se admite na chave estruturalista.
Segundo Sahlins, na ao que os conceitos fazem sentido, e da mesma forma por
meio dos signos que as pessoas agem.
Sahlins supera o problema da histria (ou no histria) no estruturalismo quando
demonstra que no h uma nica histria, e sim historicidades. As historicidades seriam
pontos de vistas, ou cosmologias que estariam envolvidas com os mitos que cada
cultura possui.
O mito, dessa forma, est conectado ao presente, faz parte de uma realidade
prtica e ao mesmo tempo possui uma esfera filosfica e estrutural. Estrutura e evento
no so antagnicos, esto presentes simultaneamente e se influenciam mutuamente. A
compreenso do evento atual, do presente, se d tambm pelo passado. diante dessa
evidncia que se pode afirmar que antropologia e histria so, na realidade, frutos de
uma cosmologia tanto dialtica quanto estrutural.
Para Joana Overing, assim como para Sahlins, esses julgamentos sobre o que faz
parte da histria e o que no faz tm a ver com o conceito de histria que se referencia.
Ao invs de assumir uma posio entre o universalismo ou o extremo relativismo, como
a antropologia adaptou-se, Overing concebe que o outro produz questes diferentes,
as quais devem ser respondidas de formas diferentes. Em oposio s preocupaes
cartesianas ligadas objetividade, as quais suprimem aquilo que ela chama de
temporal, local e prtico, Overing prope que [o] realmente construdo tambm
real, e portanto tem efeito real sobre as aes no mundo. Dessa forma, tanto modelos
culturais valorativos, como o modelo objetivo e cientfico esto diretamente ligados
com a teoria social local. (OVERING, 1995, p. 129)
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O caso que este trabalho analisa se refere a uma cultura que existe em um espao
ocidental, portanto a historicidade presente nesta localidade faz parte da noo de
histria ocidental. Porm, mesmo em sociedades ocidentais existem possibilidades
mltiplas de compreenso e assimilao da histria. Segundo Lilia Schwarcz:
(...) Assim, a autoconscincia histrica faz parte de culturas que
trazem para dentro de si tal movimento progressivo, o que faria da
nossa sociedade, uma sociedade a favor da histria. Mas o perigo de
apostar nessa viso unitria caricaturar a ns mesmos. Se outras
sociedades carregam histrias no plural, tambm o Ocidente no
s (e sempre) um conjunto de sociedades que se pauta pela
cronologia. (SCHWARCZ, 2005, p. 130)
Possuir os mesmos instrumentos e regras para contar o tempo no significa que
ele visto da mesma maneira pelas mais diversas sociedades ocidentais.
A prpria Histria, enquanto cincia, passa a estar atenta a estas questes a partir
de 1929, com a fundao da revista Annales dHistoire Economique et Sociale, que
sofre bastante influncia das Cincias Sociais. Neste movimento, autores como Braudel,
Lucien Febvre, e Marc Bloch conduziram a nova histria em direo independncia
da disciplina em relao ao ponto de vista do Estado, recusando a ideia de tempo linear
prprio do ideal progressista do evolucionismo. (REIS, 2000, p. 67). Sob a influncia
desses autores, vieram geraes de historiadores preocupados com o fazer da histria,
com o oficio do historiador e a seleo que feita a partir de um olhar influenciado por
sua prpria cultura. Carlo Guisnburg e Robert Darnton so exemplos contemporneos
que atuam no campo da histria, porm por uma via bem prxima da perspectiva
antropolgica. Guinsburg, em Olhos de Madeira (2001), apresenta nove ensaios sobre a
influncia dos contatos com outras culturas na histria da civilizao europeia, adotando
uma perspectiva positiva sobre os convvios interculturais, bastante prxima ideia de
progresso apresentada por Lvi-Strauss no texto Raa e Histria (1976). Darnton, em O
Grande Massacre dos Gatos (2000), utiliza-se de um mtodo hermenutico, aquele
mesmo defendido por Geertz em A Interpretao das Culturas (1989), ao pintar com
maestria um belo quadro sobre os homens comuns da Frana do sculo XVIII. O
captulo que d ttulo ao livro narra um curioso massacre desses felinos (como o nome
do livro j diz) ocorrido em Paris, tendo como pano de fundo as crenas na feitiaria e
como fonte o relato de um tipgrafo que vivenciou tal evento. Essa abertura do campo
de viso da histria, contra as perspectivas positivistas, introduziu novos instrumentos
metodolgicos e teve como resultado histrias de autoapresentao, autopercepo, to
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legitimas quanto qualquer outra maneira de se fazer a Histria. Nathan Wachel, em
sua aula inaugural no Collge de France (1993), expe alguns pontos interessantes sobre
esta relao entre a antropologia e a histria:
No se trata de justapor as duas disciplinas, mas de associ-las
intimamente. Minha dupla experincia dos arquivos e do campo me
permitiu verificar que as suas perspectivas, longe de se oporem, so
verdadeiramente complementares. De fato, a pesquisa de campo no
procura somente uma coleo de dados empricos, sob a forma de
inventrio: esses se inscrevem numa sociedade viva, onde se prope
deixar a aparecer as coerncias internas, as contradies e lgicas
subjacentes. No sendo apenas uma questo de projetar
mecanicamente o presente no passado, essas anlises, na sincronia,
podem dar conta de fenmenos mais antigos. O mtodo regressivo
procede, ento, do mais ao menos conhecido, e do resultado final ao
esboo. Percebe-se, a partir do presente, do interior, as regras lgicas
que [o] ordenam (...). O inqurito histrico, por seu lado, se esfora
em descobrir o que a tradio oral no grava ou no transmite. (...) A
regresso ao passado tenta voltar at a sua gnese, enquanto a
perspectiva histrica a situa na durao: trata-se ento de colocar em
evidncia as compatibilidades ou as contradies entre as diferentes
lgicas, as defasagens entre ritmos temporais que os afetam as
continuidades as rupturas, as gestaes em obra, as separaes entre
morto e vivo. (WACHEL, 1995, p. 14)
Essa percepo do passado pelo presente, segundo Wachel, seria uma forma de
abordagem dentro do trabalho de campo, enquanto o que ele chama de inqurito
histrico, seriam as anlises de documentos de poca. Na perspectiva desse autor,
ambas se complementariam e possibilitariam uma percepo mais apurada se analisadas
em conjunto.
Se Wachel enquanto historiador percebe na antropologia uma boa parceria para
produzir um texto histrico mais rico, a antropologia tambm adota novas perspectivas
diante de um mundo onde grande parte das sociedades passa a produzir documentos, e
sociedades como a presente na etnografia de Malinowski j no so encontradas com
facilidade. Cresce ento o interesse, por parte dos antroplogos, de se estudar
sociedades ocidentais, e estes passam a buscar outras fontes alm da observao
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participante, metodologia criada por Malinowski durante sua pesquisa entre os
trobriandeses, registrada na introduo do livro Os Argonautas do Pacfico Ocidental
(1973). Emerson Giumbelli questiona a preferncia da antropologia pela pesquisa de
campo tradicional, observando que para se realizar uma antropologia em sociedades
complexas pode-se tomar como referncias outros mtodos para que o trabalho fique
mais completo:
(...) Em relao propriamente a questes metodolgicas, a mesma
operao pode ter implicaes que considero igualmente
problemticas. Uma possibilidade que o trabalho de campo acabe,
em vez de abrigar ou traduzir, subsumindo um conjunto geralmente
plural de tcnicas e abordagens. Essa subsuno tende a dispensar
uma reflexo sobre as prprias tcnicas e abordagens, vrias delas no
exclusivas antropologia. Outra possibilidade, que, quando se trata
da antropologia das sociedades complexas (ou qualquer de seus
equivalentes), a metodologia acabe pensada como uma composio
entre tcnicas antropolgicas (o trabalho de campo) e tcnicas no
antropolgicas (tudo o que no implique em contato direto e
intens(iv)o com os nativos), como se esse pesquisador fosse menos
antroplogo do que aqueles que se dedicaram integralmente ao
trabalho de campo. (GIUMBELLI, 2002, p. 94)
A antropologia no deve se limitar apenas ao seu mtodo mais consagrado,
podendo, sim, utilizar de outros meios sem que precise se justificar com seus pares. A
noo do que o campo deve ser ampliada, j que a pretenso do pesquisador que no
convive diretamente com seus nativos no a de produzir um olhar distanciado do
olhar antropolgico. Segundo Celso Castro e Olivia Maria Gomes da Cunha:
Apesar de vrios antroplogos importantes terem feito pouca ou
nenhuma pesquisa de campo no sentido malinowiskiano Mauss e
Lvi-Strauss so dois exemplos eloquentes -, o trabalho de campo
permanece como marca distintiva da disciplina aos olhos dos no-
antroplogos, bem como um ritual de passagem identitrio para os
prprios antroplogos, como se quem no fizesse trabalho de campo
no fosse realmente antroplogo (CASTRO; CUNHA, 2005, p. 2)
Com a abertura que ocorre quanto definio do campo dentro do trabalho
antropolgico, principalmente a partir dos anos de 1980, os arquivos foram tomados
como fontes vlidas para a produo da pesquisa etnogrfica. Assumindo que os
arquivos foram criados por propsitos coloniais para classificar as informaes de que o
Estado necessita, e preservados como se houvessem sido criados de forma imparcial,
Olvia Maria da Cunha percebe que estes, mesmo no guardando segredos, vestgios,
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eventos e passados (p.292), informam muito sobre eles prprios e os contextos de sua
poca:
(...) [os Arquivos] Sinalizam, portanto, temporalidades mltiplas
inscritas em eventos e estruturas sociais transformados em narrativas
subsumidas cronologia da histria por meio de artifcios
classificatrios. Tais tentativas de inscrever evento e estrutura na
topografia dos arquivos implicam procedimentos constantes de
transformao. Os arquivos tornaram-se ento territrios onde a
histria no buscada, mas contestada, uma vez que constituem loci
nos quais outras historicidades so suprimidas (...). Assim, o carter
artificial, polifnico e contingente das informaes contidas nos
arquivos bem como as modalidades de uso e leituras que ensejam
tm sido repensados (...). (CUNHA, 2004, p.292)
Cunha aponta para diferenas entre a forma como se dialoga com arquivos ou
com pessoas, porm existe uma paridade quanto maneira de produzir uma anlise, j
que na antropologia no somente se interpreta o que dito, mas se pretende
compreender os contextos inscritos socialmente ou simbolicamente. Arquivos so,
portanto, produzidos por pessoas.
Para construir este primeiro exerccio, tento fazer uma etnografia da histria.
Para isso irei utilizar como fontes principais as fotografias de famlia compartilhadas
por meio da rede social Facebook, onde esta famlia possui um grupo chamado A
Parentada da Dona Anita. Estes arquivos remetem memria da famlia e geram os
mais diversos tipos de comentrios destes membros. Simultaneamente ao que o grupo
envia de forma espontnea, tambm participo enviando arquivos que recupero por meio
dos lbuns antigos de minha famlia nuclear e de grupos virtuais que trabalham com
genealogias7, tentando compreender a forma como estes parentes reagem quando
expostos s imagens de um passado do qual no fizeram parte de forma direta. A
proposta de uma etnografia da histria tambm passa pelo trabalho de campo
tradicional, por meio de entrevistas com aqueles que possuem o reconhecimento de toda
famlia como narradores. Trabalhando nestas duas frentes, pretendo compreender
melhor o papel das histrias, acessadas por meio das imagens compartilhadas
virtualmente, ou por meio da narrativa oral das histrias de famlia. Olho, portanto, para a
mudana (o relacionamento familiar virtual), focando naquilo que permanece, e o que fica so
as histrias de famlia, que perpassam os parentes de uma forma ou de outra, mesmo que em
nveis diferentes. Existem aqueles que dizem que no sabem delas, mas sabem e no querem
7 Como o www.myheritage.com (acessado em 04.03.2013)
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contar. Existem aqueles que dizem igualmente que no sabem, mas quando se insiste mais um
pouco, contam muitssimo bem. Existem ainda os narradores, os que sabem das histrias e no
negam, e gostam de pass-las adiante. Esses foram os primeiros que apareceram, j que vivi
uma grande resistncia por parte dos meus parentes mais prximos, que me fizeram buscar os
narradores oficiais, e foi somente aps esse primeiro momento que eu consegui perceber
alguns dos motivos para que essas histrias no fossem narradas na mesma proporo por todos
os membros da famlia. Uma delas de que a funo de narrador passada de pai para filho.
No prximo captulo, irei discutir sobre essa funo de narrador, quem a assume
e em quais momentos essas histrias so contadas para a famlia, como os ouvintes vo
se agrupando e como participam do evento. Quais so as temticas das narrativas, e
quais sentimentos provocam quando evocadas.
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CAPTULO 2. O NARRADOR E AS NARRATIVAS
A Casa da Vov
A casa nova bela, cheia de luz.
no tem sombras nem quando a noite chega.
No tem tristezas,
nem traz ms recordaes.
Tem flores e um grande quintal,
seus frutos so beliscados por pardais
e no por morcegos.
- Talvez seja l que nasa o arco-ris...
Tantas crianas
tantos irmos
tantas traquinagens...!
Se um dia passarem por ali
na minha cidade natal
olhem para uma casa
meio escondida entre as rvores
precedida por um riacho
e um bambuzal
Ouam os risos.
Sintam a alegria.
natural.
Ali vive a felicidade
- a casa da vov!
(Maria de Lourdes Marques Camargo)
A famlia como a varola: a gente tem quando criana e fica marcado
para o resto da vida.
(Jean- Paul Sartre)
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19
Uma casa alegre, cheia de gente parecida. O cheiro do fogo a lenha era forte, e
estranho ao meu nariz acostumado aos aromas da comida feita a gs. Bonecas de loua
da Tia Anely eram meus primeiros pensamentos, e sempre voltava para casa com uma
para mim. Logo meu mundo era povoado por muitas histrias: - V, por que voc est
de terno nessa foto?, no sou eu, o meu pai. E Dona Anita na varanda, com seus
poucos cabelos brancos que nunca viram tinta e no diziam a idade que tinha, contava
para as crianas suas histrias de infncia: No lembro os nomes de todos os meus
filhos, mas a minha infncia ainda est clara na minha cabea. Eu e ela, de mos
atadas: uma senhorinha de oitenta e muitos, uma menininha de pouqussima idade,
compartilhavam suas infncias. Logo essas histrias que me faziam sonhar foram
sumindo e perderam o lugar em minha imaginao, principalmente quando vieram
outros assuntos mais interessantes na concepo de uma cabea adolescente. Anos
antes, outra menininha (a que escrevia o poema acima), tambm vivia seus sonhos nessa
mesma casa povoada por essa gente parecida. Minha me tambm diz ter se esquecido
das histrias que eram contadas, mas a magia que envolvia sua infncia na casa da
vov ficou registrada nesta poesia, e esse pertencimento famlia algo que
permanece bem vivo.
Analiso o ato de contar histrias como uma tradio dentro desta famlia, que
passada, primeira vista, de forma aleatria, porm ao perguntar para os membros do
grupo A Parentada da Dona Anita do Facebook quem eram as pessoas j falecidas
que contavam as histrias da famlia, percebi que existe certa hereditariedade
naqueles que contavam para aqueles que sabem destas hoje em dia8. Obviamente que o
dom da narrativa no algo biologicamente herdado, porm a meu ver existem dois
motivos para que essas histrias permaneam sendo contadas por uns e no por outros.
O primeiro a arte que passada oralmente de pai para filho. Uma histria no
contada uma vez s; so histrias que se repetem (mesmo que nunca da mesma forma)
nos encontros entre estes, que chamarei de narradores, e a famlia. Provavelmente,
elas no so apenas contadas nesses grandes encontros, mas se repetem com muito mais
frequncia dentro da famlia nuclear. Portanto, as histrias so construdas junto com os
ouvintes interessados que se encontram mais prximos, ou seja, os seus filhos. Outro
motivo para essas histrias permanecerem em determinadas famlias a proximidade
8 Ver em anexo 1 a genealogia. Nela esto grifadas as pessoas que contavam as histrias e as que contam
hoje em dia.
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com o epicentro das histrias narradas. Quanto mais prximo do distrito de Baro de
Juparan essa famlia est, mais quente a lembrana do passado fica, porm todos os
membros da famlia se relacionam com essas histrias em nveis diferentes. Para Ecla
Bosi:
As lembranas do grupo domstico persistem matizadas em
cada um dos seus membros e constituem uma memria ao mesmo
tempo una e diferenciada. Trocando opinies, dialogando sobre tudo,
suas lembranas guardam vnculos difceis de separar. Os vnculos
podem persistir mesmo quando se desagregou o ncleo onde sua
histria teve origem. Esse enraizamento num solo comum transcende
o sentimento individual. (BOSI, 1994, p.423)
Assim, mesmo que esta famlia formada pelos filhos e netos de Dona Anita e
Arthur esteja h setenta anos fora do distrito de Baro de Juparan, as histrias esto
enraizadas no em um solo material, mas em um plano simblico. Porm, existem
aqueles que vivem nas proximidades de Vassouras, Valena e Barra do Pira. Nessas
localidades, a memria das histrias dos Bares do Caf se mistura aos trilhos da
ferrovia que as cruzam, ficando mais vivas a cada apito do trem. Esses que l vivem so
narradores, contudo, por mais que assumam a postura de serem os contadores oficiais,
todos os ouvintes participam ativamente na construo dessas narrativas, trocando
informaes sobre aquilo que ouviram de outros narradores ou de seus parentes mais
prximos, dando forma e existncia quase que material ao passado. Outro ponto que se
pode observar nessas narrativas a temporalidade diferenciada. Mesmo que haja um
esforo para localiz-las no tempo, essas histrias longnquas vo se misturando s
histrias vividas pelo prprio narrador, o que as aproximam deste, e de forma indireta
daqueles que as ouvem. Para Walter Benjamim, a relao que o narrador estabelece
uma relao artesanal:
Podemos ir mais longe e perguntar se a relao entre o
narrador e sua matria - a vida humana - no seria ela prpria uma
relao artesanal. No seria sua tarefa trabalhar a matria-prima da
experincia - a sua e a dos outros - transformando-a num produto
slido, til e nico? (BENJAMIM, 1994, p. 211)
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Se para Benjamim, as histrias so produtos de um trabalho artesanal, que no
caso analisado um oficio compartilhado dentro do ambiente familiar, qual seria a
funo e a utilidade desses produtos? Para compreender essa funo aqui, vou analisar
as preocupaes de Benjamim e Bosi quanto s mudanas provocadas pela
modernidade. Para Benjamim, a arte de narrar est em vias de extino, j que menos
pessoas sabem narrar histrias. Para o autor, isso acontece com o surgimento do
romance, no incio do perodo moderno, junto com a imprensa. A diferena de uma
narrativa oral para um romance que este ltimo est essencialmente ligado ao livro.
Enquanto a narrativa uniria as pessoas no ato de contar as histrias, o romance as
isolaria, j que uma leitura individual. Outro motivo para o declnio dos contadores de
histria seria os propsitos da imprensa, que com a ascenso da burguesia inaugurou
uma nova forma de comunicao baseada na informao. A informao verificvel,
se compromete com o hoje, e por isso algo efmero, que no produz um sentido, no
construindo uma relao direta com a memria. Para Benjamim, o que vinha de longe
(no tempo ou no espao) possua uma autoridade que hoje vem sendo tomada pela
frivolidade das informaes imediatas.
Por outro lado, Bosi v que com a modernidade, a famlia que outrora era
composta por muitos parentes, primos, tios, padrinhos, hoje se restringe ao grupo
conjugal e seus filhos:
Nos moldes de hoje a famlia em estrito senso rema contra
a mar de uma sociedade concorrencial, onde a perda de um de seus
poucos apoios absoluta e irremedivel. Falta-lhe o envolvimento da
grande famlia de outrora em que o bando de primos fazia as vezes de
irmos, e onde tios, parentes e agregados acompanhavam a criana
desde o bero. (BOSI, 1994, p.423)
As preocupaes de ambos os autores so legtimas, porm nem os narradores
nem a famlia extensa chegaro ao fim. Para poder ver que este fim no est prximo
preciso no generalizar as verdades dos centros urbanos, j que, primeira vista,
fcil comprovar essa hiptese, porm, se distanciando poucos quilmetros das capitais,
pode-se encontrar facilmente modelos familiares mais prximos dos modelos
considerados tradicionais. Relegar a permanncia dessas famlias no interior tendo em
mente a oposio entre centro x periferia seria cair mais uma vez no erro, j que seria
necessrio observar mais de perto as famlias nos centros urbanos para poder perceber a
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permanncia ou no da famlia extensa. A famlia que pesquiso utiliza desde 2005 a
internet como meio de manter a relao que existia anteriormente com mais facilidade
fisicamente. As necessidades de uma vida regrada pelo trabalho e pelas oportunidades
financeiras obrigaram os parentes que viviam em uma proximidade grande a se
separarem. Parte migrou para So Paulo, parte para o Rio de Janeiro, outras pessoas
foram das cidades pequenas para as cidades medianas do sul do Estado do Rio de
Janeiro, como Barra do Pira, Volta Redonda e Resende. Alguns foram para o exterior,
como Canad e Sua, onde l vivem mas voltam algumas vezes por ano, e outros
permaneceram nas redondezas de Baro de Juparan, como Demtrio Ribeiro e Mendes.
Com o advento das redes sociais que tiveram um boom em meados dos anos 2000, a
famlia volta a se comunicar de forma mais assdua. Os encontros voltaram a ser mais
constantes quando a casa da v foi reformada por Katia, neta criada como filha mais
nova de Ana Mafra (Dona Anita). E em 2006 foi comemorado o centenrio da Dona
Anita, dez anos aps sua morte. Esse evento marcou simbolicamente o esforo desta
famlia por manter-se em unio permanente. Um dos smbolos disso foi a criao na
comunidade do Orkut, de um tpico intitulado carto de ponto, onde diariamente os
membros se manifestavam. Dessa forma, a modernidade que primeiramente fez com
que a famlia se afastasse, fez, em um segundo momento, que se reaproximasse de uma
maneira nova. As histrias, portanto, continuaram latentes tanto nas redes sociais
quanto nos eventos familiares. Esses novos encontros foram tambm o reencontro com
as histrias, principalmente pela voz dos narradores, geralmente os membros mais
velhos da famlia, alguns dos filhos da Dona Anita. Infelizmente, nos ltimos dois anos,
os dois ltimos senhorezinhos contadores de histria, Amaury e Aloy, faleceram.
Meses antes de Aloy falecer, em 2011, quando eu j estava estudando abordar este tema
na monografia de concluso do curso de Cincias Sociais, pude participar de uma festa
de famlia, onde algumas histrias foram narradas por ele.
Era a comemorao do aniversrio de dois membros da famlia: Adaury, um dos
filhos de Arthur e Anita, e Beto, marido de Katia. A festa acontecia do lado de fora da
casa, em volta da piscina, em um churrasco animado, enquanto dentro da casa algumas
pessoas permaneciam assistindo a um jogo de futebol. Sentado mesa na antessala se
encontrava Aloy, um pouco deslocado, solitrio e pensativo. Foi quando fui falar com
ele que, emocionado, comeou a falar de minha me e de minha av. A partir da,
muitas histrias foram lembradas da infncia deles, ou de quando minha av foi estudar
no Rio. Histrias sobre o Baro de Juparan e Duque de Caxias (j que, segundo Aloy,
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foi seu av - pai de seu pai - quem cuidou de Duque de Caxias quando senil viveu com
a filha na Fazenda Santa Mnica), se misturavam com as histrias de sua vida e de sua
carreira profissional como enfermeiro. Histrias sobre a linha do trem, esta mesma que
passa na frente da casa em que estvamos, j que seu pai foi chefe da estao velha de
Mendes. Aos poucos outras pessoas chegavam perto para participar da conversa. A festa
continuava acontecendo do lado de fora com msica alta, crianas na piscina e
conversas informais, enquanto do lado de dentro se ouviam as histrias, narradas num
tom de voz baixo e tranquilo. Ambos os momentos eram importantes para que o
sentimento de pertencimento fosse afirmado naquele evento, sendo esse seu objetivo.
Algo similar aconteceu no dia em que marquei minha primeira entrevista, j
ciente de que este seria o tema da minha pesquisa. O narrador em questo era Osmar, ou
Mazinho, filho de Amaury, falecido h alguns anos atrs, como mencionado. Amaury
foi o responsvel pela genealogia que se encontra em anexo, e segundo as pessoas com
quem conversei, este era um dos irmos que mais sabia das histrias. Seguindo a
lgica, seus filhos tambm so os que mais sabem das histrias nesse ncleo familiar9.
Como Mazinho morador de Mendes, marcamos nosso encontro durante um almoo
promovido na casa de tio Adaury, onde eu estava hospedada naquele final de semana.
Eu havia arrumado uma cmera emprestada com um primo, e a coloquei na sala para
que filmasse o sof onde ele se sentaria. Assim que ele acabou de almoar, fomos para a
sala, porm o restante da famlia que estava presente, acreditando ser um assunto srio
j que se tratava de uma pesquisa, deixou que Mazinho e eu conversssemos sozinhos.
Aos poucos as pessoas viram que se tratava de assuntos da famlia e foram chegando
um a um, at todos estarem conversando na sala. A partir da, as histrias que estavam
um pouco vazias e sem graa (pois eu no sabia muita coisa para contribuir com a
narrativa de Osmar), ficaram muito mais interessantes. Essas narrativas foram
construdas por Mazinho a partir da perspectiva de Amaury, que era ferrovirio como o
pai, portanto, as histrias se iniciam margeadas pelas linhas do trem criadas por D.
Pedro II naquela regio, e terminam com um sentimento de tristeza quanto ao abandono
das ferrovias brasileiras.
Mazinho, ao se sentar para a nossa conversa, demonstrou como era que o vov
Arthur se sentava quando ia contar alguma histria, ou tomar a tabuada dos seus netos:
suas lembranas comeavam por a, na forma como as histrias foram ouvidas por ele
9 Filhos e netos de Anita e Arthur.
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nas primeiras vezes. Ele inicia sua narrativa estabelecendo uma origem para essas
histrias, e ela est bem l atrs, com a invaso de Napoleo a Portugal. Segundo ele,
existia uma regra que ditava que os Marqueses eram assim intitulados por serem
parentes do Rei, o que explicaria a proximidade do Marqus de Baependi com a corte.
Mazinho conta que o Marqus de Baependi era ministro das relaes exteriores, cargo
que hoje se confunde com o ministrio da fazenda. Por isso, foi passar um ano na
Inglaterra a fim de pedir dinheiro emprestado ao Brasil aps a independncia, e
durante esse tempo que a Marquesa, sua esposa, engravida de seu filho Manoel Jacintho
Carneiro Nogueira da Costa e Gama, que viria a ser o futuro Baro de Juparan.
Segundo ele, como a Marquesa e o Imperador Dom Pedro I eram muito prximos, este
seria o primeiro na lista dos possveis pais do Baro.
Em seguida, Mazinho conta o motivo de o Baro de Juparan ter ficado solteiro.
Este seria apaixonado por sua prima Luiza Loreto Vianna de Lima e Silva, que era
tambm filha do Duque de Caxias. Porm, segundo meu interlocutor, seu irmo tambm
se apaixonou pela prima e acabou pedindo a mo dela em casamento antes do Baro de
Juparan. Desiludido, este teria permanecido solteiro, e tomou como suas esposas
cinco escravas: Emlia, Geralda, Manoela, Florenciana e Dora. Osmar disse ainda que o
nosso ramo familiar viria da Florenciana, da qual meu bisav Arthur era neto e minha
bisav Ana Mafra era bisneta, ou seja, os dois tambm estavam ligados por laos de
parentesco.
Segundo Mazinho, Cati, uma das primeiras filhas do Baro, teve um filho com
seu prprio cunhado, Brs Giffone, casado com uma de suas irms. Esse irmo de
Arthur, Alfredo, deu origem famlia Giffone que ainda reside no distrito de Baro de
Juparan. Essas pessoas ajudaram a redigir o folheto comemorativo dos 100 anos da
Igreja de Nossa Senhora do Patrocnio (1981) da localidade, onde foi feito um
compilado de algumas histrias sabidas pelos moradores de l. Neste folheto, a
bondade do Baro de Juparan relatada como uma de suas maiores virtudes. Alm
da igreja, o Baro ainda trouxe para o distrito a estao da Estrada de Ferro D. Pedro II,
obra que teve como pano de fundo uma disputa entre este e o Baro de Vassouras, e
que, segundo narra o folheto, por conta disso que o vilarejo que hoje leva o nome do
Baro recebeu primeiramente o nome de Desengano, em comemorao decepo de
seus rivais. Mais um motivo para justificar a ideia de bondade do Baro segundo as
informaes deste folheto, que quando faleceu, o Baro de Juparan deixou parte de
suas terras para seus filhos, que chamava de meus protegidos. Entre elas est a
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Fazenda Bom Retiro, onde, segundo Mazinho, vivia a v Rosina av de Anita e tia de
Arthur, e onde ambos foram criados. Mazinho conta uma histria presenciada por Dona
Anita quando criana:
V Rosina era parente dos escravos da fazenda, ento ela nunca os
maltratou. E tinha tia Isabel, que era despachada, parecia um pouco
com a tia Nan, deve ter puxado. A a dona da fazenda Mato Dentro
foi falar com S Rosina, se S Rosina emprestava uma negra pra
ir l lavar roupa. E quem era a lavadeira? Era Isabel. A V Rosina
disse democraticamente: Se ela quiser, v, se ela no quiser, eu no
obrigo ela a ir. A chamou Isabel (isso quem me contava era v
Anita, que era menina). Pois no, Sinh?, (Rosina) Ela est
perguntando se voc pode ir l lavar roupa. (Isabel) Sinh no
bateu, Sinh no maltratou, [Mazinho faz uma banana com os
braos]. Voltou, catou a v pela mo e foi l pra dentro. Deu uma
banana pra dona da fazenda do Mato Dentro. Por qu? Porque ela
judiava dos escravos, e na fazenda nossa que era a do Bom Retiro ela
no maltratava, eles comiam na mesa com ela, n? Por que que a
gente ia chamar uma escrava de tia? Por que a gente ia chamar tio
Ludigero de tio e tomar bno?
Dona Anita nasceu em 1906, dezoito anos aps a abolio da escravatura,
porm, quando ainda era menina, muitos dos ex-escravos continuavam a viver e
trabalhar na fazenda. O motivo seria que muitos eram ligados por laos de sangue com
os seus senhores, e essa mudana de status que os filhos do Baro sofreram ao herdarem
parte das terras deste, parece no ter proporcionado uma mudana em suas atitudes, j
que dividiam at a mesa com os ex-escravos. Histrias sobre os sentimentos
conflituosos de senhores pretos aparecem muito pouco no que me foi contado at
agora e, quando aparecem, so sempre para mostrar que no havia domnio semelhante
ao dos brancos. Porm, podemos interpretar que h uma hierarquizao implcita neste
discurso, mesmo que o foco central seja a igualdade. Acredito que essas questes sero
melhor respondidas conforme a pesquisa de campo for sendo feita. O que se pode tirar
disso que a memria de famlia uma memria selecionada para que tenha coerncia
com o que se acredita estar de acordo com os valores atuais. Segundo Bourdieu:
Produzir uma histria de vida, tratar a vida como uma histria, isto ,
como um relato coerente de uma sequncia de acontecimentos com
significado e direo, talvez seja conformar-se com uma iluso
retrica, uma representao comum da existncia que toda uma
tradio literria no deixou e no deixa de reforar. (BOURDIEU,
2006, p.185)
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Para este autor, j o ato de tentar colocar um incio, meio e fim em histrias de
vida, como se fossem etapas de um desenvolvimento necessrio (p.184) seria uma
grande iluso. Essa crena de que o passado um todo coerente que se relaciona
diretamente com o presente e com o futuro, como se fossem partes de um todo tomado
de sentido e significado, uma ideia que se deve ultrapassar para conseguir
compreender quais so os sentidos e significados que as histrias de famlia projetam
para a construo do sentimento de pertencimento. A seleo do que contado no
acontece ao acaso; todos aqueles que contaram histrias sobre a famlia, desde o
primeiro, possuam a inteno de passar algo adiante, e o que os motivou a selecionar o
que deveria ser lembrado, tambm motivou a selecionar o que deveria ser esquecido.
Mary Douglas reflete sobre esse esquecimento institucional, demonstrando que o
verdadeiro compromisso da histria com o presente, j que tanto o esforo para que se
construa uma histria, quanto o esforo de se revisar outra, produzem reflexos
distorcidos do passado:
O esforo revisionista no objetiva produzir o nivelamento ptico
perfeito. O espelho, caso a histria o seja, distorce tanto aps a reviso
quanto o fazia antes. O espelho porm uma pobre metfora da
memria pblica. Aquele que busca uma verdade histrica no est
tentando obter uma imagem mais ntida de sua prpria face, ou at
mesmo uma imagem mais lisonjeira. Remendar conscientemente e
refazer, so apenas uma pequena parte da moldagem do passado.
Quando observamos mais de perto a construo do passado,
verificamos que o processo tem muito pouco a ver com o passado e
tudo a ver com o presente. As instituies criam lugares sombreados no
qual nada pode ser visto e nenhuma pergunta pode ser feita. Elas fazem
com que outras reas exibam detalhes muito bem discriminados,
minuciosamente examinados e ordenados. A histria surge sob uma
forma no-intencional, como resultado de prticas direcionadas a fins
imediatos, prticos. Observar essas prticas estabelecerem princpios
seletivos que iluminam certos tipos de acontecimentos e obscurecem
outros significa inspecionar a ordem social agindo sobre as mentes
individuais. (DOUGLAS, data, p.82)
O esquecido sempre muito maior do que o lembrado, e o que lembrado o
por estar de acordo com valores sociais vigentes. Esses lugares sombreados do
esquecimento so verdadeiros vcuos, buracos negros onde o que levado para l pode
nunca mais ser iluminado pela lembrana. Porm, antes de querer analisar a lembrana
versus o esquecimento de forma maniquesta, deve-se ter em mente que o esquecimento
absolutamente necessrio, e a lembrana o filtro que d sentido ao vivido, o ponto de
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vista que impe valor a certos fatos em detrimento de outros, algo que est
intrinsecamente relacionado com a cultura de determinado local. A partir do que
lembrado que se pode iluminar o esquecido, e essas lembranas de famlia podem
enfim produzir perguntas sobre o at ento inquestionvel, como por exemplo, sobre os
conflitos que podem estar em volta da suposta relao harmnica entre um senhor e suas
cinco esposas-escravas, e mais adiante entre seus filhos, senhores de uma fazenda e seus
escravos-parentes.
O ponto de vista escolhido para a construo dessas histrias pende mais para o
lado daquele que tinha o domnio nessa relao de foras: o Baro de Juparan. A
maioria das pessoas com quem conversei no sabia o nome da escrava que deu origem
famlia, mas sabia os nomes dos parentes prximos do Baro. possvel especular que
essas lembranas tenham sido construdas para que fosse amenizado o passado escravo
e para que os conflitos existentes ficassem mais leves, e at mesmo com um toque de
humor. Contudo, as histrias por si mesmas so muito interessantes para se olhar por
dentro da decadente aristocracia cafeeira do sudeste fluminense, as relaes
extraoficiais que mantinham com a monarquia brasileira, alm de expor detalhes sobre o
fim da vida de figuras pblicas, como Duque de Caxias, por exemplo. Ainda possuo
poucos elementos para que estas histrias venham luz, porm este caminho ser
retomado e aprofundado durante a pesquisa do mestrado, por enquanto, Mazinho apenas
repetiu o que sua av dizia: A cachorrada velha.
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CAPTULO 3 - MEMRIA E IMAGENS DE FAMLIA
a- A funo da Imagem
(...) O retrato no me responde,
ele me fita e se contempla
nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam
os parentes mortos e vivos.
J no distingo os que se foram
dos que restaram. Percebo apenas
a estranha ideia de famlia
viajando atravs da carne.
(Carlos Drummond De Andrade)
A fotografia causa um imenso fascnio por reproduzir um momento
passado, mas as perguntas feitas ao passado capturado pela imagem so respondidas
pelo presente, por aqueles que a observam hoje e a impem um sentido. A influncia
das imagens algo falseado j no sentido estrito da palavra pode produzir em nossas
vidas sentimentos intensos e verdadeiros, como na obra do venezuelano Adolfo Bioy
Casares, A inveno de Morel (1986), em que o protagonista, que no possui nome,
se apaixona por uma imagem, a de Faustine, preservada pela inveno de um cientista
obcecado pela eternidade. Faustine no o v, no o responde, nunca o conheceu ou o
conhecer, mas mesmo assim sua imagem foi capaz de modificar sua vida.
A fotografia um tipo de documento peculiar, j que reproduz cenas passadas,
momentos que ficam congelados no tempo retratando aquilo que ns fomos ou o que
outros foram um dia. Por mais que haja um forte impulso a se ver a fotografia como um
retrato imparcial da verdade (por muitas vezes ser produzida e consumida como tal),
no podemos perder de vista a ideia de que a imagem fotogrfica tambm um produto
intermediado por pessoas e, portanto, assim como qualquer outro, est imbuda de um
determinado foco. Mesmo que a imagem produza uma sensao mais real de
proximidade com o passado, sempre estaremos observando do ponto de vista do
fotgrafo. a partir desse olhar que a fotografia produzida, e esse olhar determinado
pelo lugar social que ocupa o fotgrafo e pelos sentimentos que o percorrem, decidindo
o momento a ser marcado por meio do registro fotogrfico:
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O chamado documento fotogrfico no incuo. A imagem
fotogrfica no um simples registro fisicoquimico ou eletrnico do
objeto fotografado: qualquer que seja o objeto da documentao no
se pode esquecer que a fotografia sempre uma representao a partir
do real intermediada pelo fotgrafo que a produz segundo sua forma
particular de compreenso do real, seu repertrio, sua ideologia. A
fotografia , como j vimos reiteradas vezes, o resultado de um
processo de criao/construo tcnico e esttico elaborado pelo
fotgrafo. A imagem de qualquer objeto ou situao documentada
pode ser dramatizada ou estetizada, de acordo com a nfase pretendida
pelo fotgrafo em funo da finalidade ou aplicao a que se destina.
(KOSSOY, 2002, p.52)
Mas qual seria o momento decisivo (termo imortalizado por Cartier-Bresson)
que impulsiona o click: instante em que o olho e o dedo entram em consenso quanto ao
que importante ser registrado? A fotografia a cena escolhida por merecer, segundo o
filtro de seu captador, ultrapassar o presente e atingir o futuro. Por esse motivo ela
est intimamente ligada necessidade da construo de uma memria, particular ou
social. Os lbuns de famlia surgem dessa mesma necessidade. Para Bourdieu:
O lbum de famlia exprime a verdade da recordao social. Nada se
parece menos com a busca artstica do tempo perdido que estas
apresentaes comentadas das fotografias de famlia, ritos de
integrao a que a famlia sujeita os seus novos membros. As imagens
do passado dispostas em ordem cronolgica, "ordem das estaes" da
memria social, evocam e transmitem a recordao dos
acontecimentos que merecem ser conservados porque o grupo v um
fator de unificao nos monumentos da sua unidade passada ou, o que
equivalente, porque retm do seu passado as confirmaes da sua
unidade presente. por isso que no h nada que seja mais decente,
que estabelea mais a confiana e seja mais edificante que um lbum
de famlia: todas as aventuras singulares que a recordao individual
encerra na particularidade de um segredo so banidas e o passado
comum ou, se quiser, o menor denominador comum do passado, de
nitidez quase coquetista de um monumento funerrio frequentado
assiduamente". (BOURDIEU Apud LE GOFF. 1990, p. 466).
O lbum de famlia estabelece uma conexo entre passado e presente onde o
primeiro responsvel por dar o sentido ao segundo, ambos compartilhados dentro do
grupo familiar. Porm, o lbum de famlia enquanto uma tradio familiar algo
relativamente recente (j que a fotografia s se populariza em fins do sculo XIX e
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incio do sculo XX), mas que se incorporou muito bem s necessidades de uma
burguesia cada vez mais ascendente. Na famlia pesquisada, poucas imagens
permaneceram da poca referida acima. Acredito que este fato possa estar ligado a trs
motivos: o primeiro seria por no estarem enquadrados nas lgicas dessa burguesia, j
que eram descendentes de escravos e de aristocratas decadentes; outro motivo seria a
vida isolada em uma fazenda distante, onde no existiam as mesmas necessidades e
oportunidades da vida urbana; e um ltimo possvel motivo seria que dentro dessa
famlia as narrativas seriam o principal veculo de ligao entre o passado e o presente,
j que as histrias de famlia faziam as vezes das imagens impressas em papel. As
imagens preservadas pelos parentes nos dias atuais, portanto, so, em sua maioria,
aparentemente (algo que analiso pelo vesturio da poca e por algumas datas
preservadas nas fotografias) a partir da dcada de 1940, o que coincide com a partida de
casal Arthur e Anita da regio de Afonso Arinos, em LeviGasparian, cidade onde,
segundo Otto Marques dos Santos, bisneto destes, o casal foi morar quando Arthur, que
era ferrovirio, foi transferido da estao de Baro de Juparan, em Valena. Com uma
nova transferncia, desta vez para a estao da cidade de Mendes, tambm na regio sul
do Estado do Rio de Janeiro, toda a famlia se muda para este que seria o ponto final da
jornada, j que em fevereiro de 2013 foram comemorados setenta anos desde que a
famlia se estabeleceu na localidade. Mendes era uma cidade bastante urbanizada na
poca, em funo de sua proximidade de Barra do Pira, j que nesta segunda havia a
conexo entre os trens que vinham de So Paulo, Rio e Minas. Pode-se deduzir que essa
mudana para uma localidade mais urbana pode ter aproximado a fotografia desta
famlia.
Por mais que essa prtica de colecionar fotografias tenha surgido, ou
intensificado com a proximidade de um centro urbano, no significa que com a
modernidade uma tradio genuna utilizando a oposio construda por
Hobsbawn em A inveno das tradies (1984) tenha sido suprimida ou se perdido.
Essa prtica moderna , ao contrrio, englobada s tradies familiares, onde o
passado continua tendo uma posio ativa, positiva e afirmativa. Em relao a esse
tema, e possuindo o patrimnio cultural como foco, Jos Reginaldo Gonalves chega
seguinte concluso:
(...) parafraseando a sugesto de Roy Wagner, se no ser oportuno
considerar se no so, afinal, os patrimnios culturais que nos
inventam (no sentido que constituem nossa subjetividade), ao
mesmo tempo em que os construmos no tempo e no espao. Em
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outras palavras: quando classificamos determinados conjuntos de
objetos materiais como patrimnios culturais, esses objetos esto
por sua vez a nos inventar, uma vez que eles materializam uma teia
de categorias de pensamento por meio das quais nos percebemos
individual e coletivamente. Por esse prisma, a categoria patrimnio
cultural assume uma dimenso universal e no seria apenas um
fenmeno ocidental e moderno: na verdade, manifestar-se-ia de
formas diversas em toda e qualquer sociedade humana.
(GONALVES, 2007, p. 29)
A elaborao de lbuns de famlia, enquanto objetos construdos para se
recordar, no meramente uma prtica datada dentro da lgica moderna, porm mais
uma maneira de perceber-se no mundo. As fotografias de famlia so pontos de
encontro, onde, por meio do observador, dado sentido imagem observada e,
simultaneamente, a imagem d sentido forma como os membros do grupo enxergam a
si prprios. A imagem , assim, uma maneira de combinar as semelhanas que existem
entre o passado da famlia e seu presente, a partir das lembranas e histrias que essas
imagens ativam, produzindo uma identidade e um sentimento de pertencimento.
Na famlia dos descendentes de Arthur e Anita, h uma recente reabertura
coletiva dos lbuns de famlia que vem acontecendo no ciberespao, por meio da rede
social Facebook, onde se mantm em contato pelo grupo A parentada da Dona Anita.
Este grupo uma continuao do grupo que existia em outra rede social, o Orkut, o
qual foi abandonado quando todos os integrantes passaram a socializar virtualmente
com maior intensidade pelo primeiro. O grupo do Orkut existia desde o ano de 2005 e
possua a seguinte descrio:
Em nossas veias corre o sangue mais importante de todo o mundo, o sangue
Marques dos Santos. Nossa Matriarca nos ensinou que seus filhos, netos,
bisnetos, (etc...) eram seu sangue, e a casa dela era sua veia, e todos viam no
olhar dela a felicidade de ter uma casa cheia de gente sendo eles parentes ou
no, mas que havia nesta casa muita alegria, carinho e paz. Espero que
possamos com esta comunidade retribuir, nos doando um pouco para fazer
com que o sangue flua novamente na veia.10
O grupo virtual foi composto pelos parentes prximos dos onze filhos do casal
Ana e Arthur - Anny, Aloy, Amaury, Adaury, Anely, Aurely, Aury, Analy, Antony,
10 Texto de descrio da Comunidade do Orkut A Parentada da Dona Anita, criado em 2005 por Guilherme Marques dos Santos.
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Anacy, Aucy (em ordem cronolgica) - que tentavam tornar mais quente o sentimento
de famlia que havia adormecido aps a morte de Dona Anita em 1996. Esta antiga
unio que foi reividicada por meio deste grupo fazia referncia forma como essa
famlia foi estruturada, em que os filhos mais novos de Anita e Arthur foram criados
juntos com os filhos de seus irmos mais velhos, e que por sua vez os filhos desses
filhos mais novos foram criados com os netos dos irmos mais velhos, dividindo os
primos-tios-irmos por geraes. Separados pelas oportunidades que foram surgindo
na vida de cada um, estes mantm a a casa da v como o local de encontro, mesmo
que nela no more mais ningum. Com as redes sociais virtuais,porm, a famlia que
havia se distanciado aps a morte da Dona Anita, voltava a se relacionar de uma forma
completamente diferente, mas que forneceu novamente sentido ideia de
pertencimento. a partir dessa relao estabelecida pelas interaes online, que uma
grande troca de documentos fotogrficos foi gerada, e por onde novos encontros de
famlia passaram a ser marcados. Essa forma de relacionamento por meio da internet
redefiniu muito eficazmente os sentimentos de famlia. A ideia que se tem do grupo
formada pela memria do tempo em que o convvio era constante. Esse tempo recorrido
pelas imagens que ficaram registradas o que afirma a existncia de pensamentos e
sentimentos compartilhados por este grupo. Segundo Halbwachs:
O tempo onde viveu o grupo um meio
semidespersonalizado, em que podemos assinalar o lugar de mais de
um acontecimento passado, porque cada um deles tem uma
significao em relao ao conjunto, e este se conserva porque sua
realidade no se confunde com as imagens particulares e passageiras
que o atravessam. (HALBWACHS, 1990, p.123)
O relacionamento virtual estabelecido por esta famlia rememora o passado
vivido em conjunto, o que afirma a sua essncia, mas ao mesmo tempo trabalha para a
incluso dos membros da nova gerao que est sendo constituda, dos filhos dos
bisnetos de Ana e Arthur. Sendo assim, o compartilhamento de imagens feito pelo
grupo atua nas duas direes: sendo a direo do passado conectada afirmao da
identidade da famlia, e a direo do futuro com a funo de incluir novos personagens,
visando a continuao desta famlia enquanto uma unidade.
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b- Observando o observador
nunca olhamos apenas uma coisa, estamos sempre
olhando para as relaes entre as coisas e ns mesmos.
(BERGER apud LEITE, 2001, p.31)
O exerccio que me proponho uma etnografia das impresses do passado a
partir das reaes dos membros do grupo A parentada da Dona Anita, ao entrarem em
contato com imagens antigas compartilhadas por outros membros do mesmo grupo. As
imagens em si poderiam ser fontes riqussimas se a preocupao fosse interpretar o
passado por meio delas, j que fornecem muitas informaes sobre os contextos de
poca, vestimentas, diferenciaes de comportamento entre gneros, comportamento
infantil e at mesmo o prprio relacionamento familiar poderia ser apreendido somente
por elas. Porm, aquele momento selecionado pelo fotgrafo para ser compartilhado
com o futuro foi novamente selecionado pelo membro do grupo virtual no presente
como algo relevante para que os outros parentes se identificassem, e se sentissem parte
deste todo maior chamado famlia. Esse esforo espontneo tem como consequncia
uma reao em cadeia, em que as lembranas dos que comentam essas fotografias vo
tomando forma e nos informando sobre os mecanismos utilizados para que estas
pessoas se identifiquem como membros do grupo familiar
Olvia Maria Gomes da Cunha utilizou uma metodologia semelhante ao
recuperar algumas fotografias da antroploga Ruth Landes quando esta esteve no Brasil,
entre 1938 e 1939, pesquisando em Salvador as populaes afro-americanas. Cunha
apresentou essas fotografias para os membros mais antigos dos terreiros em que Landes
havia pesquisado e comparou algumas impresses destes ao observarem as fotografias
com as de Landes:
(...) Ver imagens e ouvir vozes de um tempo distante, e a partir delas
produzir narrativas, memrias sobre fatos, pessoas, coisas, situaes e
lugares prximos. O carter relativo das noes de tempo e distncia
no meramente retrico. (...) Mas a produo de uma memria a
partir desses registros uma operao mais complexa e limitada. Pode
tanto reinscrever e reproduzir fatos, pessoas, coisas e lugares numa
outra cartografia quanto alterar radicalmente nosso olhar informado
por narrativas consagradas e autorizadas. (CUNHA, 2005, p.8)
No caso de Cunha, muitas das impresses das pessoas s quais mostrou as
fotografias no condiziam com as de Landes em sua poca. Poderamos ver essas
contradies como algo normal, pois so pontos de vista muito distantes, tanto
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culturalmente, j que Landes era americana, quanto temporalmente (mesmo que Cunha
tenha buscado conversar com as pessoas mais velhas, estas eram crianas quando
Landes esteve na localidade). Cunha demonstra como possvel utilizar de arquivo para
se produzir uma observao etnografia, algo que tambm realizo a partir de imagens,
porm no meu caso, as imagens no foram produzidas por pesquisadores e sim por
antigos membros da famlia, ou por fotgrafos contratados. Foram tambm
compartilhadas de forma espontnea pelos prprios membros do grupo. As nicas
imagens introduzidas por mim foram: uma antiga imagem em que gostaria de conhecer
os nomes do casal retratado, e algumas fotografias ou pinturas que consegui por meio de
um site de genealogia online11, dos protagonistas do mito fundador da famlia (o
Baro de Juparan, o Marqus de Baependi, e de Luiza Loreto Vianna, filha do Duque
de Caxias), portanto, irei iniciar por estas.
Imagem 1: Marqus de Baependi (fonte: www.myheritage.com)
Esta uma imagem do Marqus de Baependi, pai de Baro de Juparan.
Compartilhei com o grupo para ver a reao que a famlia teria, j que, segundo as
histrias que so contadas, ele no seria o pai biolgico do Baro (ver no captulo dois a
histria narrada por Osmar). Trs bisnetos de Arthur e Anita acreditaram que este
lembrava muito Adaury, o nico filho do casal ainda vivo. Em seguida, tivemos um
11 www.myheritage.com
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comentrio de Cludia, filha de Adaury, contando a verso que ouviu onde este no
seria o verdadeiro pai do Baro de Juparan. O restante do grupo (das 37 pessoas que
visualizaram a fotografia) no se manifestou. Diferente do que ocorreu com a imagem
de Luiza Loreto Vianna, que mesmo no tendo se casado com o Baro de Juparan,
segundo as histrias narradas por Osmar, esta foi muito comparada a uma das filhas de
Anita e Arthur: a Analy, ou Nan. A imagem do Baro de Juparan (abaixo) tambm
foi bem comentada, pois a maioria acreditou ser este parecido com Airton e Marcelo,
ambos filhos de Anacy (netos de Anita).
Imagem 2: Baro de Juparan (fonte: www.myheritage.com)
Essas imagens compartilhadas remetiam a personagens e ideias formadas apenas
pelas histrias narradas, pessoas as quais a maioria dos integrantes do grupo nunca
havia tido contato imagtico anterior a este que promovi. A reao foi bem interessante,
pois mesmo que no tivessem nenhuma referncia direta com esses fantasmas do
passado, logo foi criada uma maneira de conect-los ao presente a partir das
semelhanas fsicas que os familiares viam em seus contemporneos. Dessa forma, o
que primeira vista parecia distante, rapidamente inserido no contexto familiar,
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quando a viso daquele passado nunca antes observado comparada com a viso do que
lhes era familiar, aproximando os rostos do passado de suas verses do presente.
Outra fotografia que compartilhei foi retirada do lbum guardado por minha
famlia nuclear. Na legenda estava escrito somente padrinhos de Anny, filha mais
velha de Anita e Arthur e minha av. Interessei-me bastante por esse casal, j que eram
os nicos negros em todo o lbum da famlia, e porque j que Anny nasceu no ano de
1927, estes rostos antigos poderiam ser talvez de filhos ou netos do Baro de Juparan e
de Florenciana (ver genealogia em anexo). Infelizmente, nenhum dos integrantes do
grupo virtual pde me auxiliar na nomeao desses parentes, e, por enquanto, a imagem
permanece apenas retratando este casal sem que sejam reconhecidos por seus nomes ou
por suas histrias.
Imagem 3 Padrinhos de Anny (sem data), segundo legenda em lbum da famlia nuclear de
Anny
Essas foram as quatro imagens das 301 fotografias compartilhadas na
comunidade que partiram de meus interesses. Todas as outras 297 foram
espontaneamente selecionadas pelos outros membros do grupo, a partir de suas prprias
intenes. Como so muitas imagens, fiz uma triagem a partir de dois parmetros: o
primeiro a data da fotografia: preferi analisar as interaes por meio das imagens em
preto e branco. A mquina colorida foi inserida na famlia em meados da dcada de
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1970, portanto, todas as imagens aqui apresentadas sero anteriores a isto. Outra escolha
que fiz foi a partir da quantidade de comentrios, com isso, analisarei algumas das
fotografias mais comentadas pela parentada, pensando na relevncia que estas
possuem para a identidade do grupo.
J que fracassei na minha empreitada de descobrir o nome dos padrinhos de
Anny, iniciemos pelos padrinhos de Adaury, seu irmo. A foto que foi compartilhada
por Cludia, sua filha, retratava o casal Alfredo e Jacinta ou Tota. Alfredo Giffone era
o meio-irmo de Arthur segundo a narrativa de Osmar (na histria contada, Alfredo
seria filho de Cati com seu prprio cunhado. Para mais detalhes, ver captulo dois), e
Jacinta era tia de Anita, irm de Berta, sua me. Os comentrios se centram na
identificao do casal e nas lembranas do grupo, j que algumas pessoas o tinham
conhecido durante a infncia, quando estes tios moravam no bairro do Maracan, na
cidade do Rio de Janeiro.
Imagem 4 Padrinhos e tios de Adaury (1947) compartilhado do lbum da famlia nuclear deste
Outra irm de Berta e Jacinta retratada, j com a idade avanada, pela
fotografia compartilhada por Janete Lazra, filha de Joaquim, tambm irmo de Berta,
Jacinta. Normadina a senhora mais velha da imagem (a que est em p no canto
direito da fotografia), e chamada por Janete de v Dinoca, pois sua verdadeira av
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falecera quando sua me ainda era pequena. A imagem abaixo seria, segundo Janete, a
nica imagem que possui de Normadina:
Imagem 5 sem legenda (1953), compartilhado do lbum de Janete Lazera
Os comentrios foto foram bem diversos. Primeiramente os parentes se
empenharam em desvendar os nomes dos personagens apresentados, o que ficou
assim, da esquerda para direita: Analy (Nan), Ana (Anita), Aucy (Edu), Anacy
(Cici), Antony (Turrico), Mrcia Lazra, Santa, Eliane Lazra e Normadina
(Dinoca). Em seguida se comparou a semelhana entre Analy e sua filha Ana Maria
quando nova (mesmo a imagem estando um pouco borrada, os traos ficaram
evidentes para estes). Ainda, alguns dos netos de Anita e Arthur se manifestaram,
dizendo ter nascido nesta casa que pertencia a seus avs, localizada na cidade de
Mendes, prximo estao velha, onde Arthur trabalhava.
A famlia se compreende dividindo-se em diferentes geraes. Porm estas
geraes de filhos e netos de Anita e Arthur se cruzavam por meio de algumas
pessoas hibridas (um pouco mais novas do que o primeiro grupo, e mais velhas
do que o segundo), o que pude perceber a partir dos comentrios de pessoas que
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conviveram assiduamente com ambos os grupos e conhecem mais histrias, estas
participam mais assiduamente dos comentrios s fotografias. A imagem abaixo
retrata a forma como os primos mais velhos compartilharam suas infncias com
seus tios mais novos:
Imagem 6 legenda Essa da Boa (1956), compartilhado por Cludia Valeria, do lbum da
famlia nuclear de Adaury.
Esta imagem foi uma das mais comentadas pelo fato de todos os retratados
estarem descalos e por conta da pssima qualidade de conservao da imagem, j
que foi difcil para os parentes identificar algumas pessoas. Porm, segundo um
consenso, se chegou seguinte legenda da esquerda para a direita: Aloy e Ktia
(beb no colo deste), Alcy (Edu), Anita, Jos Carlos (criana de p na frente de
Anita), Tnia (no colo de Anita), Anny e Maria de Lourdes (Maria do gato no
colo de Anny, atrs de Anita), Anacy e Ildani (Cici e Dani - de mos dadas, Dani na
frente de Cici) e Aury (Dinho). O casal no canto direito e a criana com o rosto
apagado no foram identificadas, porm, o cachorro se chamava Lalau segundo
os comentrios. Nessa primeira gerao de primos, entrariam ainda Osmar, Cristina,
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Carla e Ana Maria que no aparecem na fotografia, ou ainda no haviam nascido,
sendo estes ltimos aqueles que estariam entre esses primeiros primos e os que
viriam a seguir. A chamada segunda gerao nasce alguns anos depois. Essas
crianas esto retratadas na foto abaixo, junto com outros da gerao anterior:
Imagem 7 Muito Boa essa, tempo bom lel (sem data) compartilhada por Anna Luiza, do
lbum da famlia nuclear de Adaury.
Mais uma vez a famlia se empenhou bastante para que todos fossem
identificados na fotografia, que ficou assim, da esquerda para a direita: Anna Luiza
e Claudia Valria (virando de costas), Ana Maria, Osmar fazendo chifres em Lus
Cludio e Katia Regina, Carla e Tnia (na frente de Katia), Alcy (ao lado de
Osmar), Tia Nezinha (esposa de Aurely, de leno branco) e Lcia (na frente de sua
tia), Airton atrs de Alan (ao lado de Tnia), Cristina (ao lado de Alcy), Antony
com mos nos ombros de Paula Maria que faz chifres em Cssia e est ao lado de
Mrian Eliane (nica de culos). As lembranas comentadas ficaram pelos trinta e
nove anos de morte de Antony, tio que faleceu aos 33 anos de idade, devido a um
cncer, doena que tambm foi responsvel pela morte de Analy, Anny, Alcy,
Ildani e Katia mais recentemente, no ano de 2012.
Podemos perceber que a identificao de todos os parentes que integram as
ltimas trs fotografias apresentadas uma etapa importantssima para as
observaes que viro em seguida, j que sero estes personagens os agentes
responsveis pela ativao das lembranas antigas, ou a construo de novas
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referncias (como no caso de nunca se ter visto a imagem do parente naquela
determinada fase da vida, fazendo-se assim um esforo para ligar este a uma
lembrana mais recente, semelhante ao ocorrido na comparao de Analy a Ana
Maria na imagem 5). Nessas impresses dos parentes sobre as imagens, podemos
perceber sempre a busca por um referencial que aproxime o observador do objeto
observado, seja por meio de sua identificao com o espao fsico em que os
personagens retratados se encontram (como caso da antiga casa de Mendes, onde
muitos dos netos de Anita e Arthur disseram ter nascido, algo que provavelmente
ouviram de seus pais); assim como as lembranas que estes ativam em si ao
entrarem em contato com suas prprias imagens do passado (lembranas ou
esquecimentos, como caso de Mirian Eliane, que no conseguiu se reconhecer na
imagem 6, mas como era a nica criana que utilizava culos, no pode contestar);
ou ainda quanto saudade sentida no presente daqueles parentes j falecidos (como
por exemplo, a saudade do tio Turrico, o Antony). Independente da forma como
as observaes se desenvolvem, as imagens observadas vo se duplicando em novas
imagens compostas pela referncia guardada pela memria, em que as cenas e
histrias lembradas fazem com que as fotografias guardem um sentido muito alm
do momento preservado. Para que fiquem mais claros esses desdobramentos de
imagens, seguem adiante dois exemplos que demonstram como eles ocorrem.
Imagem 8 Aurely, Adaury, Waldir e Claudio Luiz (1958) do compartilhada por Anna
Luiza do lbum da famlia nuclear de Adaury
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Na imagem acima vemos trs homens, Aurely frente, Adaury (que carrega
Cludio Luis, no colo) e atrs Waldir marido de Analy, e pai de Claudio, dentro de
uma canoa. At hoje para se chegar residncia de alguns parentes (filhos e netos
de Laudilina, irm de Anita), preciso atravessar o Rio Paraba, em Demtrio
Ribeiro, prximo ao distrito de Baro de Juparan. No ano de 2011, parte da famlia
que l vive falecera, pois no conseguiu sair da canoa aps esta ter virado.12
Maria
de Lourdes viu esta imagem e se lembrou de que odiava andar de canoa. Sua prima
Mriam Eliane concordou e se recordou da ltima vez em que esteve dentro de uma:
Nem fala... A ltima vez que andei de canoa foi no casamento de
Laudinha, a filha mais nova da tia Laudilina. Tivemos de
atravessar o Paraba de canoa. Vestido longuete, salto fino, canoa
cheia de lama, Paraba transbordando e eu morrendo de medo. L
pelas tantas o Claudio [o mesmo da foto e seu irmo] queria
brigar. Foi um zum zum zum e no final dormimos no galinheiro.
S percebemos de manh... hahahaha essa festa foi demais...
Quem estava l????
A imagem, que era a cena esttica dos rapazes na canoa, fez com que as
pessoas lembrassem em um primeiro momento do pavor que tinham de ter de
atravessar o rio (o que deviam fazer muitas vezes para visitar seus parentes), e em
seguida uma terceira imagem foi surgindo, que so as lembranas de um casamento.
Aps esse comentrio, muitas pessoas se lembraram das cenas que marcaram neste
casamento, da foto que a noiva tirou de vu, prximo a uma roseira, do frio que
fazia e do noivo ter cado no rio Paraba na volta da festa (de volta canoa...). A
historiadora Miriam Moreira Leite percebe algo muito similar em seu trabalho:
Os depoimentos foram sempre muitssimo mais ricos em informaes
e reflexes sobre as relaes familiares retratadas que a observao
das imagens sem esclarecimentos verbais, atravs de dedicatrias,
poesias de circunstncia, e dos depoimentos. Observe-se, contudo, que
o impacto emocional ou esttico da imagem sempre superava os
esclarecimentos verbais. A atrao pela imagem imediata e a sua
comunicao atravs de desdobramentos, na memria do observador,
de imagens semelhantes ou associadas estabelecem um vnculo, que a
12 Para mais informaes do ocorrido:
http://www.focoregional.com.br/v2/page/noticiasdtl.asp?t=Bombeiros+procuram+desaparecidos+no+Rio
+Paraiba+em+Vassouras&idnoticia=58781 Acessado em 04.03.2013
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mensagem mediada pelas palavras ou pelo cdigo escrito estabelece
mais demoradamente. (LEITE, 1994, p.132)
A cena em si no em nenhum momento explicada, no se sabe onde eles
estavam e para onde iam. Podemos at supor que iam pescar, j que era uma prtica
muito apreciada por Adaury, segundo conversas que tive com seu neto Otto, mas essa
no a preocupao da famlia. Os parentes, ao olharem para a fotografia
espontaneamente se recordaram de outras imagens, e estas foram