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19 Revista Discente Expressões Geográficas, nº 06, ano VI, p. 19 – 40. Florianópolis, junho de 2010. www.geograficas.cfh.ufsc.br ACRE: ENTRE O FUZIL E A BORRACHA Ana Karolina Ferreira Corrêa Graduanda do Curso de Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA) [email protected] Denison da Silva Ferreira Graduando do Curso de Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA) [email protected] Edson Maués Corrêa Graduando do Curso de Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA) [email protected] Fernando Alves de Araújo Graduando do Curso de Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA) [email protected] Larissa Paola Damasceno Graduanda do Curso de Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA) [email protected] RESUMO O processo de formação territorial do Estado do Acre é resultado de uma série de acordos e conflitos internacionais envolvendo países da América do Sul e os interesses imperialistas das grandes potências econômicas do final do século XIX e início do século XX, que viram na extração gomífera uma rentável atividade no mercado internacional. Nesse sentido, este artigo busca fazer uma breve análise sobre tal processo, considerando os agentes envolvidos, bem como as atividades econômicas praticadas no território mostrando de que forma estas afetaram sua configuração socioespacial, e evidencia, num contexto atual, o papel dos movimentos de resistência local às políticas adotadas pelo governo federal para o Estado acreano, dando origem às chamadas reservas extrativistas. Palavras – chave: Acre; Extração Gomífera; Formação Territorial; Reservas Extrativistas. RÉSUMÉ Le processus de formation du territoire d’État du Acre est résultat d’une série d’accords et conflits internationales entre pays de l’Amérique du Sud e les intérêts des grandes puissances de la fin du XIXº siècle et début du XXº, qu’on a vu l’extraction de la gomme comme une riche activité dans le marché international. Notre travail veut faire une petite analyse sur ce processus, en considérant ses eléments et encore les activités économiques pratiqués dans le territoire, en montrant la forme comme ses eléments et activités ont affecté sa configuration sociale et spatiale. On souligne aussi, dans l’actualité, la fonction des mouvements sociaux à propos des actions du gouvernement fédéral, avec, par exemple, la formation des réserves extractivistes.

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Revista Discente Expressões Geográficas, nº 06, ano VI, p. 19 – 40. Florianópolis, junho de 2010.

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ACRE: ENTRE O FUZIL E A BORRACHA

Ana Karolina Ferreira Corrêa

Graduanda do Curso de Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA) [email protected]

Denison da Silva Ferreira

Graduando do Curso de Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA) [email protected]

Edson Maués Corrêa

Graduando do Curso de Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA) [email protected]

Fernando Alves de Araújo

Graduando do Curso de Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA) [email protected]

Larissa Paola Damasceno

Graduanda do Curso de Geografia da Universidade Federal do Pará (UFPA) [email protected]

RESUMO

O processo de formação territorial do Estado do Acre é resultado de uma série de acordos e conflitos internacionais envolvendo países da América do Sul e os interesses imperialistas das grandes potências econômicas do final do século XIX e início do século XX, que viram na extração gomífera uma rentável atividade no mercado internacional. Nesse sentido, este artigo busca fazer uma breve análise sobre tal processo, considerando os agentes envolvidos, bem como as atividades econômicas praticadas no território mostrando de que forma estas afetaram sua configuração socioespacial, e evidencia, num contexto atual, o papel dos movimentos de resistência local às políticas adotadas pelo governo federal para o Estado acreano, dando origem às chamadas reservas extrativistas. Palavras – chave: Acre; Extração Gomífera; Formação Territorial; Reservas Extrativistas.

RÉSUMÉ

Le processus de formation du territoire d’État du Acre est résultat d’une série d’accords et conflits internationales entre pays de l’Amérique du Sud e les intérêts des grandes puissances de la fin du XIXº siècle et début du XXº, qu’on a vu l’extraction de la gomme comme une riche activité dans le marché international. Notre travail veut faire une petite analyse sur ce processus, en considérant ses eléments et encore les activités économiques pratiqués dans le territoire, en montrant la forme comme ses eléments et activités ont affecté sa configuration sociale et spatiale. On souligne aussi, dans l’actualité, la fonction des mouvements sociaux à propos des actions du gouvernement fédéral, avec, par exemple, la formation des réserves extractivistes.

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Mots-clés: Acre; Extraction de la Gomme; Formation Territoriale; Réserves Extractivistes. INTRODUÇÃO

Este artigo analisa, de forma breve, o processo de formação territorial do estado do

Acre (Figura 01), expondo como e por quais motivos este ocorre, levando em

consideração os interesses internacionais, nacionais e locais envolvidos e tendo como

marco as diversas figuras político-territoriais assumidas por este Estado ao longo de sua

história (parte do território boliviano, território federal e unidade da federação brasileira).

É justamente a partir da constituição do Acre enquanto Estado brasileiro que emerge

a problemática socioambiental decorrente de um novo modelo econômico pensado para a

região, que impõe a pecuária como principal alternativa para o desenvolvimento do

território acreano. Nesse sentido, o trabalho abordará os conflitos gerados pela introdução

dessa nova atividade e como a mesma influenciou na geração de uma nova configuração

territorial, a partir da implantação das reservas extrativistas no Estado.

Portanto, inicialmente, será abordada a formação territorial do Acre, a partir de sua

conquista pelos brasileiros até sua elevação à categoria de Estado. Posteriormente, serão

enfatizados, dentro de um contexto atual, os conflitos que deram origem a uma nova

abordagem dos aspectos sociais, econômicos e ecológicos, que foi a criação das

reservas extrativistas, pautadas na concepção do chamado desenvolvimento sustentável.

Figura 01: Mapa de localização do Estado do Acre.

Fonte: Elaboração dos autores, 2010.

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ACRE: BOLIVIANO OU BRASILEIRO?

O processo de conquista do Acre é de fundamental importância para

compreendermos os motivos do país possuir os atuais limites, sendo este processo

resultante de uma série de interesses, seja nacional ou não, que acabaram levando a

alguns acordos internacionais.

Na época da colônia, estes acordos eram realizados com base nos interesses das

metrópoles européias. É o que ocorreu com o Tratado de Madri, em 1750, em que a

Espanha reconhecia o direito à posse dos portugueses sobre o território do Brasil,

baseada no uti possidetis, ou seja, nas terras em que houvesse ocupação portuguesa,

Portugal teria direito.

O Tratado de Santo Ildefonso (1777), é basicamente o mesmo de 1750, com

exceção dos limites territoriais dos estados sulinos. No entanto, é necessário destacar

que “a fronteira norte conservou, assim, as características do Tratado de Madri”, pois

espanhóis e portugueses não chegaram a um consenso a respeito desta, uma vez que os

únicos cursos d’água conhecidos da fronteira da região eram o rio Madeira e o Javari, que

acabaram servindo como pontos de referência para a fronteira sul da Amazônia, conforme

destacado por Leandro Tocantins (2001, p. 96).

No século XIX, em decorrência do processo de independência dos países da

América, estes acordos passaram a ser realizados diretamente entre as novas nações; é

o caso do Acre, entre Brasil e Bolívia. Os dois países assinaram, em 1867, na tentativa de

demarcar a fronteira, o Tratado de Ayacucho, em que o Brasil reconhecia o direito

boliviano sobre o território do Acre, porém a diplomacia brasileira conseguiu obter o

“reconhecimento do uti possidetis post facto, como critério de fixação de limites, sob o

disfarce de um instrumento a título de regular o comércio de fronteira e a navegação dos

rios” (TOCANTINS, idem, p. 151).

O consentimento do uti possidetis estabelecia que a fronteira partiria da confluência

dos rios Beni e Madeira “por uma paralela tirada da sua margem esquerda, na latitude

10°20’ S, até encontrar as nascentes do Javari” (TOCANTINS, ibiden, p. 153). Entretanto,

as nascentes do rio Javari eram desconhecidas. Machado (1989, p. 423) destaca que os

bolivianos conseguiram inserir no tratado que, caso a nascente do Javari estivesse ao

norte, a fronteira partiria em linha reta (leste-oeste) até as nascentes. Desta forma, se a

fronteira estivesse ao sul, o território pertenceria ao Brasil, porém se estivesse ao norte

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caberia à Bolívia. Entretanto, o Tratado de Ayacucho foi uma iniciativa dos bolivianos,

preocupados em demarcar os limites fronteiriços, mas o governo imperial compreende a

necessidade de conseguir a neutralidade boliviana na guerra contra a República do

Paraguai, pois as autoridades nacionais temiam que Solano Lopes conseguisse agregar

as tropas bolivianas contra o Brasil (LIMA, 1998, p. 37).

As terras do Acre estavam assinaladas como “tierras no descubiertas” nos mapas

bolivianos, pois “era um triângulo de moléstias tropicais e, rios tortuosos encravados entre

a Bolívia, Peru e o Brasil. Enfim, um lugar que nenhum cristão procuraria para juntar seus

trapos” (SOUZA, 1995, p. 15).

Em grande parte, estes cristãos que se aventuraram por essas “tierras no

descubiertas” eram destemidos plantadores - remanescentes da economia agrícola da

cana-de-açúcar, vaqueiros e boiadeiros. “E foi desta subcamada infeliz que saíram os

povoadores do Acre” (BASTOS, 1960, p. 23).

A dificuldade encontrada pelos nordestinos, em decorrência da grande seca da

década de 1870, levou a um aumento significativo destes, principalmente cearenses, para

a região amazônica, cuja grande procura pelo látex foi decorrente do “desenvolvimento da

indústria de pneumáticos, que possibilitou uma crescente demanda pelo consumo da

borracha nos países industrializados da Europa e Estados Unidos da América” (MAIA

NETO, 2000, p .27). Isso, consequentemente, provocou o aumento da área de produção,

que se foi deslocando para a Amazônia Ocidental, chegando aos altos cursos dos rios

Juruá e Purus. “Os cearenses não tiveram medo da febre e entraram na região.

Empurraram a fronteira com a própria miséria [...]” (SOUZA, 1995, p. 44).

Os cearenses encontraram uma região rica em belas espécies de Hevea

Brasiliensis, que satisfazia a demanda internacional transformando o Acre no maior

produtor de látex da região, proporcionando “o povoamento da margem direita do rio

Amazonas, principalmente nos vales dos Purus, Juruá e Madeira” (MACHADO, idem, p.

420). Dessa forma, mesmo com novos habitantes, permanecia o espaço sendo

organizado, no que Gonçalves (2008) denomina como o padrão de organização rio-

várzea-floresta, pois, apesar da existência de barracões com produtos para o consumo, a

relação de dependência dos produtos da floresta permanecia.

O desenvolvimento proporcionado pelo látex, retirado do Acre, beneficiou,

principalmente, as casas aviadoras instaladas em Belém e Manaus, pois através da

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política do aviamento financiavam a extração e a comercialização do produto, levando a

uma maior dependência dos seringueiros em relação ao seringalista (MAIA NETO, 2000,

p. 27).

Entretanto, este crescimento produtivo passou a atrair cada vez mais interesses da

Bolívia pelas “tierras no descubiertas”, em virtude da grande riqueza que a região estava

proporcionando ao Brasil. A Bolívia passa a reivindicar o território do Acre como porção

de seu domínio territorial embasado no Tratado de Ayacucho, direito este reconhecido

pelo governo brasileiro.

Uma das primeiras atitudes tomadas pelo governo boliviano, na tentativa de garantir

a posse do território, foi a implantação de uma aduaneira em Porto Alonso, pelo Ministro

José Pavancine, onde este determina que seja cobrado 15% sobre as importações em

geral e 30 a 40% sobre os gêneros indispensáveis à vida dos acreanos (LIMA, 1998, p.

42). Esta atitude tomada pelo governo boliviano causou sérios prejuízos à economia do

Amazonas, uma vez que “a supressão de vultosas rendas provenientes dos impostos

sobre a borracha, bem como dos polpudos impostos que derivam do movimento da praça

de Manaus” provocará a redução das divisas do Estado (LIMA, 1998, p. 42).

A política boliviana provoca sérios protestos dos brasileiros do Acre, principalmente

por parte de Joaquim Vítor, o mais prestigiado produtor da região. Este organiza a

rebelião chefiada pelo advogado José Carvalho, em fins de abril de 1899, com

aproximadamente 15.000 homens dispostos a lutar.

A luta armada leva à deposição do cônsul Dom Moisés Santinez por parte de José

Carvalho: “Venho em nome do povo deste rio e em nome do povo brasileiro, intimar V.

Excia. a abandonar este lugar, porque não toleramos mais o governo que V. Excia.

representa” (LIMA, 1998, p. 43). Entretanto, a postura do governo federal era de

reconhecer vigente o Tratado de Ayacucho e garantir o direito boliviano à criação da

aduaneira, porém a posição do governo do Amazonas é de apoiar os compatriotas.

Em 30 de maio de1899, a canhoteira norte-americana Wilmington, sob o comando

do Champam Todd, partiu rumo às cidades de Tabatinga e Iquito, secretamente, levando

o cônsul dos Estados Unidos. Esta atitude não é vista com bons olhos pelas autoridades

brasileiras, principalmente do Amazonas e do Pará, pois consideravam um desrespeito à

soberania nacional, pediram explicações às autoridades americanas, e estas informaram

que o comandante Todd não tinha ordem para agir desta forma.

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As explicações americanas colocariam fim à questão se o jornalista Luiz Galvez

Rodrigues Aires não tivesse denunciado, na edição de 3 de junho de 1889 de A Província

do Pará, que a verdadeira missão da canhoteira Wilmington era transportar as base do

acordo com a Bolívia para o presidente americano K. K. Kennedy. Em 4 de junho de

1899, são publicadas “as bases de um grave acontecimento de ordem comercial e política

para as relações internacionais” (LIMA, 1998, p. 47):

Os Estados Unidos auxiliariam a Bolívia a defender seus direitos sobre o território do Acre, Purus e Iaco, por via diplomática ou, no caso de guerra com o Brasil, fornecendo armas e financiamento e recebendo em hipoteca as rendas das alfândegas bolivianas. Também exigiriam que o Brasil nomeasse uma comissão, para demarcar, juntamente com a Bolívia, as fronteiras definitivas entre o Purus e o Javari, e concedesse livre trânsito pelas alfândegas de Belém e Manaus as mercadorias bolivianas. A Bolívia, por sua vez, concederia abatimento de 50% sobre a borracha destinada aos portos dos E.U.A, pelo prazo de 10 anos. Caso tivesse que apelar para a guerra com o Brasil, a Bolívia denunciaria o tratado de 1867 e a linha de fronteira passaria a correr pela boca do Acre, ficando com os E.U.A, em livre posse, o território restante (BANDEIRA, 2000, p. 03).

Após a deposição da delegação boliviana, é formada uma junta Revolucionária, cuja

presidência ficou a cargo de Joaquim Domingos Carneiro. Entretanto, Galvez, que havia

chegado ao Acre, a serviço do Governo do Estado do Amazonas, diante de problemas,

como o direito boliviano reconhecido pelo governo federal em detrimento dos interesses

dos brasileiros do Acre e as insistentes expedições frustradas que o governo de La Paz

despachou na tentativa de recuperar o território, resolve proclamar o Estado

Independente do Acre.

Com o processo de independência, Galvez baixou decretos importantes e, “em

menos de 24 horas de poder, já mandou despachos para todos os países da Europa,

designando representantes diplomáticos do novo Estado que acaba de tirar do nada”

(LIMA, 1998, p. 51). Entretanto, Galvez foi destituído por uma operação conjunta das

forças armadas de Brasil e Bolívia, em 08 de dezembro de 1899, sendo deportado para a

Espanha.

O TERRITÓRIO FEDERAL DO ACRE

Após a queda da “República do Galvez”, chamada assim pelos “pariodistas

brasileiros” (MACHADO, ibidem, p. 426), o governo amazonense apoia uma expedição

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criada para a retomada do território acreano, formada por engenheiros, repórteres e

escritores. A expedição Floriano Peixoto, apelidada de Expedição dos Poetas e liderada

por Orlando Corrêa Lopes, fracassou logo no primeiro confronto com os bolivianos devido

à inexperiência militar de seus integrantes.

Contudo, a Bolívia estava inclinada a livrar-se do problema acreano, pois a

administração desse território se tornara deveras dificultosa, principalmente após

sucessivas investidas dos levantes de seringueiros brasileiros que buscavam expulsar os

bolivianos daquelas terras. Para isso, assinou, em 1901, um acordo de arrendamento do

Acre para a companhia anglo-americana Bolivian Syndicate, que passaria a ter, durante

30 anos, direitos soberanos sobre aquele território, podendo inclusive “manter polícia e

equipar uma força armada ou barcos de guerra, para a defesa dos rios ou conservação da

ordem interna” (BANDEIRA, 2000, p. 06).

Entretanto, constantes conflitos entre os soldados bolivianos e os seringueiros

brasileiros impediam a Bolívia de ter o controle efetivo do território e assim cumprir a sua

parte no acordo, o de conceder o território à companhia. Dessa forma, o governo boliviano

pede ajuda aos EUA, sinalizando que “não tinha força para sustentar o contrato”

(BANDEIRA, 2000, p .07), e estes se mostram dispostos a ajudar a Bolívia, instruindo que

o governo brasileiro

defendesse os ‘interesses de inocentes americanos’ e justificou sua atitude [...], argumentando que os americanos entraram no acordo ‘perfeitamente inocentes’ e contavam com o cumprimento do acordo por parte da Bolívia, mas o Brasil, por meio de sérias ameaças, tentava impedi-lo, o que agradável não era para os EUA (BANDEIRA, 2000, p. 07).

O governo norte-americano se refere, além dos confrontos armados, ao embargo

brasileiro à navegação boliviana no rio Amazonas e seus afluentes, que foi motivado pela

emergência do acordo anglo-americano com La Paz, quando cita que o Brasil “ameaça” o

acordo da Bolivian Syndicate.

A questão acreana se encaminha para um momento decisivo quando Plácido de

Castro, um ex-militar gaúcho que foi trabalhar na região como agrimensor, foi convidado a

assumir o comando do movimento de resistência à ocupação boliviana no Acre. Ele

aceitou o cargo ao tomar ciência sobre o acordo da Bolívia com a companhia anglo-

americana Bolivian Syndicate, pois considerava tal fato um perigo à soberania nacional.

Plácido denota isso quando escreve em seu diário:

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Veio-me à mente a ideia de que a pátria brasileira se ia desmembrar, pois a meu ver, aquilo não era mais do que um caminho que os Estados Unidos abriam para futuros planos, forçando desde então a lhes franquear a navegação dos nossos rios, inclusive o Acre. Qualquer resistência por parte do Brasil ensejaria aos poderosos Estados Unidos o emprego da força e a nossa desgraça em breve estaria consumada. Guardei apressadamente a bússola de Casella, de que me estava servindo, abandonei as balisas e demais utensílios e saí no mesmo dia (23 de junho de 1902) para as margens do Acre (SCHILLING, 2006).

Sob a liderança de Plácido de Castro, os seringueiros brasileiros iniciam a nova

campanha de retomada do Acre ao atacar e tomar a vila de Xapuri, em 07 de agosto de

1902 (MACHADO, 1989, p. 429), para concluí-la em 24 de janeiro de 1903 com a

assinatura da carta de rendição da Bolívia após uma ofensiva no Porto do Acre. Três dias

depois, em 27 de janeiro de 1903, foi novamente proclamada a República do Acre

(SCHILLING, 2006).

A relação entre Brasil, Bolívia e EUA se torna ainda mais complicada com a

expulsão das tropas bolivianas do Acre pelo levante de Plácido, pois os norte-americanos

têm grande interesse econômico na região, e a Bolívia teria de pagar indenização para a

companhia anglo-americana caso não cumprisse sua parte no acordo. Nesse contexto,

José Maria da Silva Paranhos, conhecido como Barão do Rio Branco, já havia assumido o

ministério das relações exteriores brasileiro, mudando a postura do Brasil frente à questão

acreana, que a partir de então passou a reivindicar o Acre para si. Rio Branco é motivado

a intervir no Acre devido à iminência de um conflito armado com a Bolívia, sendo esta

possivelmente auxiliada pelos EUA, e assume a atitude de reivindicá-lo devido à

consolidação dos seringueiros brasileiros na região a partir da proclamação da República

do Acre por Plácido.

Nesse sentido, o novo ministro das relações exteriores assume o problema como

diplomata e político, e não simplesmente geográfico, como seus antecessores

(BANDEIRA, 2000, p. 08-09), e atua em duas frentes para resolver a questão

(SCHILLING, 2003). A primeira buscou um acordo com a Bolivian Syndicate. Nele o

governo brasileiro se comprometeu a pagar 110.000 libras esterlinas para a companhia

em troca da desistência da concessão, acordo este assinado em fevereiro de 1903. A

segunda foi mostrar à Bolívia que o Brasil estava disposto a enfrentar um conflito armado

pelo território acreano caso La Paz não aceitasse negociar e, para isso, mobilizou tropas

federais do Mato Grosso e do Amazonas para o Acre, baseado no termo do uti possidetis

solis, previsto no acordo de 1867 entre os dois países (SCHILLING, 2003). Com o seu

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principal aliado e sócio fora das negociações, La Paz não teve escolha senão aceitar as

reivindicações brasileiras.

O território acreano foi formalmente anexado ao Brasil com a assinatura do Tratado

de Petrópolis em novembro de 1903, que estabeleceu que:

A Bolívia cederia não só a parte do território do Acre em disputa, como uma porção da bacia do rio Acre localizada ao sul de 10º20’ e sobre o qual seu direito era inquestionável. O Brasil, por outro lado, cedeu a Bolívia um pequeno triângulo de terra, considerado valioso porque permitia o acesso ao rio Madeira. Como também quatro trechos de terra na margem esquerda do rio Paraguai, totalizando cerca de 3.164 Km². [...] Para compensar as desigualdades das concessões territoriais - 189.000 Km² pela Bolívia e somente 3.164 Km² pelo Brasil - o último concordou em pagar uma indenização de 2.000.000 de libras esterlinas para a melhoria das comunicações entre os dois países. Também concordou em financiar e construir no território brasileiro uma estrada de ferro para evitar as cataratas do [rio] Madeira, o que permitiria aos bolivianos terem acesso ao baixo Madeira. (MACHADO, 1989, p. 430-431).

Porém, o Acre não passa a fazer parte da República do Brasil na forma de Estado,

como queriam os seringueiros e seringalistas acreanos, nem como parte do Estado do

Amazonas, mas sim como um Território Federal, o que Gonçalves (2008, p. 89) afirma ser

uma figura jurídica inventada, já que Territórios Federais não constavam na Legislação

Brasileira. O território acreano, agora sob tutela do governo federal, tem o dinheiro gerado

pela borracha transferido, via impostos exorbitantes, para a capital federal. Nesse

contexto, Francisco Pereira Passos, prefeito da cidade do Rio de Janeiro, inicia o

processo de revitalização urbana da capital federal com o dinheiro da borracha acreana

(GONÇALVES, idem, p. 89). Bastos denota que esse contexto de permuta de poder na

verdade não contemplou o interesse dos sujeitos envolvidos na causa revolucionária.

Antes, era o fuzil boliviano, o chumbo da tributação boliviana, as ameaças bolivianas, o “território das colônias”. Depois, o fuzil brasileiro, o chumbo da tributação brasileira, as ameaças brasileiras e, sobre o revolucionário “estado independente” com foro de república e pronunciamentos populares, o “‘Território Federal do Acre” e a ocupação militar (1967, p. 14).

A situação de insatisfação com a realidade acreana neste contexto pode ser

observada nas palavras de Plácido de Castro em carta enviada ao ministro da justiça e

negócios interiores Augusto Tavares Lyra:

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Convenha V. Ex. em que para ninguém é mais doloroso do que para nós vir dizer que na qualidade de colonos do estrangeiro, cujo jugo sacudimos, tínhamos mais direitos do que temos hoje na comunhão brasileira [...] antes [quando o acre era boliviano] a nossa importação pagava apenas 15 por cento ad-valoren. Hoje sob denominação da soberania brasileira não temos direitos de voto, nem tribunal, nem habeas corpus e por conseguinte não temos existência política na comunhão nacional; o nosso produto de exportação paga 23 por cento de imposto [...]. Os acreanos [...] tem consciência de sua aflictiva situação e [...] o que se vê no Acre é a exploração da terra e a espoliação do homem (LYRA apud BEZERRA, 2006, p. 75-76).

De acordo com Bezerra (2006), o Território Federal do Acre foi divido em três

departamentos administrativos: o do Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá. Os departamentos

eram autônomos entre si, eram governados por prefeitos nomeados pelo presidente da

república e se reportavam diretamente a este ou ao ministro da justiça e negócios

interiores. Seu território configura-se a partir dos acordos firmados entre o Brasil, Bolívia e

Peru no século XIX e início do XX, considerando a região abaixo da linha oblíqua ao

paralelo de 10°20’ S, que vai da confluência do rio Beni com o Madeira até a nascente do

rio Javarí, como terras pertencentes ao Brasil (Figura 02).

Figura 02: Mapa do Território Federal do Acre em 1904. Fonte: Atlas do Estado do Acre, 2008.

Porém, no início do século XX, inicia a produção de látex no sudeste asiático, que

concorre com a produção amazônica, diminuindo de forma progressiva e intensa a

exportação do látex da região para os países produtores de borracha. A exportação

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gomífera asiática superou a amazônica devido ao fato de que “os países importadores de

borracha, no caso os países industrializados, mantinham à época uma relação de controle

colonial sobre os países asiáticos” e compravam o látex asiático por preços muito

menores que o do amazônico (GONÇALVES, ibidem, p. 91).

Com a crise da exportação gomífera na Amazônia, o Acre passa a depender dos

recursos do governo federal, de sua produção gomífera em crise e da fraca produção

agrícola. Ou seja, os papéis se invertem, pois agora é a capital federal que sustenta o

território acreano. A sua estrutura socio-espacial também foi alterada, pois a crise fez ruir

o sistema de aviamento, fazendo com que muitos seringueiros passassem a exercer

outras atividades. Houve uma intensa emigração, principalmente entre 1920 e 1940,

causando um decréscimo populacional na região (GONÇALVES, ibidem, p. 90).

A crise da produção gomífera se estende até a II Guerra Mundial (1939-1945),

quando o látex amazônico torna-se importante para os principais países consumidores

desta matéria-prima, uma vez que os japoneses, inimigos desses países, tomaram o

controle dos seringais do sudeste asiático. O governo federal brasileiro incentiva a

imigração para região amazônica para o trabalho nos seringais, dinamizando a economia

acreana com o aumento de suas exportações.

O ESTADO DO ACRE

Com o fim da segunda guerra mundial, há uma queda abrupta na exportação do

látex da Amazônia, pois os EUA retomam o controle da produção asiática. Com isso, o

território acreano deixa de repassar para o governo federal as altas somas em dinheiro

geradas pelos impostos sobre a produção gomífera durante a segunda guerra. Dessa

forma, o Acre volta a depender do dinheiro do governo federal para sustentar-se, e a

disparidade entre o que este último arrecada e o que ele investe no território acreano

chega a Cr$ 300.000.000 por ano de saldo negativo (BEZERRA, 2006, p. 146). Esse

fator, somado à articulação de autoridades locais, representadas na figura do ex-

governador delegado e, nessa época, atual deputado federal do território do Acre

Guiomard dos Santos, com interesses político-eleitoreiros, o Acre foi elevado à categoria

de Estado em julho de 1962.

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O projeto de transformação do Acre em Estado, proposto por Guiomard dos Santos,

teve como base um discurso pró-democrático e desenvolvimentista, que argumentava que

um sistema de governo de um território federal conduz a “fórmulas totalitárias, senão ao

conformismo ou aceitação de seus princípios” (Santos apud BEZERRA, 2006, p. 144).

Lembremos que estamos, nesse momento, no contexto da guerra fria, em que discursos

como estes eram muito pertinentes e perfeitos para respaldar as políticas de

desenvolvimento que o governo federal planejara para a Amazônia, consequentemente

para o Acre, criando um novo padrão de organização espacial (GONÇALVES, ibidem, p.

95) para a região.

ASPECTOS SOCIOECONÔMICOS NO TERRITÓRIO DO ACRE: DA BORRACHA À PECUÁRIA

Como visto anteriormente, o Acre se consolidava como o maior produtor de látex do

país, que praticamente monopolizava toda a produção da borracha mundial, entre fins do

século XIX e começo do século XX.

Nesse sentido, a produção da borracha no Acre representava uma importante

atividade econômica com implicações locais, nacionais e internacionais, envolvendo

desde o seringueiro até os diversos setores da indústria, especialmente o da indústria

automobilística.

Contudo, historicamente, o sistema que pautou as relações de trabalho nos

seringais no Acre fundamentava-se na subordinação de seringueiros a patrões. Por este

sistema, os seringueiros eram obrigados a pagar uma taxa anual (renda) pelas estradas

de seringa que exploravam, além de entregar toda a sua produção de borracha nos

barracões, onde encontravam disponíveis para venda artigos de consumo doméstico (sal,

açúcar, querosene, munição etc.). A borracha operava como uma moeda para a aquisição

dessas mercadorias.

Entretanto, devido ao preço extremamente elevado das mesmas, os seringueiros

terminavam por contrair uma dívida com o "barracão" que, mesmo comportando saldos

em seu favor, era renovada no início da safra anual de borracha, ocasião em que se

aviavam.

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Embora o controle do processo de geração e apropriação do excedente fosse

monopolizado pelos agentes do grande capital internacional, a dinâmica das relações

internas permanecia regida por uma trama típica do capital mercantil - o de imobilizar a

força de trabalho e perpetuar sua utilização e exploração na atividade extrativa. Também

era proibido nas colocações dos seringueiros o cultivo de agricultura de subsistência, a

caça e a pesca.

Verifica-se, a partir de tais afirmações, que o período histórico contextualizado no

Estado do Acre compreende o primeiro padrão de organização social do espaço

amazônico, rio-várzea-floresta, assinalado por Gonçalves, quando enfatiza que nesse

contexto:

[...] a Amazônia se organizava sob a hegemonia do capital comercial. Como é da natureza do capital comercial, mais do que uma apropriação direta dos recursos naturais, o que lhe é importante, é o controle das vias de acesso, das vias de circulação. Aqui, sem dúvida alguma, a intensa e intricada rede hidrográfica da região foi uma importante aliada do capital comercial permitindo que se lançasse capilarmente pelos lugares mais recônditos da Amazônia (GONÇALVES, 2008, p.114).

Contudo, vale ressaltar que esse padrão passa por um processo de transformação,

e o ciclo da borracha, importante elemento econômico da estruturação de tal padrão,

entra em fase de declínio. Entre as causas de tal processo aparece a noção de que a

partir de 1915 entrou no mercado mundial a produção de borracha de cultivo oriunda dos

seringais asiáticos, o que, devido à impossibilidade de concorrência, fez declinar a

produção de borracha nativa da Amazônia, fator evidenciado também no Estado do Acre.

Esse fato trouxe como consequência um arrefecimento do controle do seringalista,

permitindo ao seringueiro fazer agricultura de subsistência, bem como explorar atividades

primárias comerciais, como castanha, madeira, entre outros. Assim, os seringueiros foram

ganhando autonomia no processo de produção através da posse da terra e do acesso

parcial a alguns meios de produção.

Em contrapartida, durante a II Guerra Mundial, a economia extrativa da borracha no

Acre recebeu novo estímulo, inclusive contando com os “soldados da borracha”

(ALEGRETTI, 2002, p. 130-131), quando o sistema de controle da produção do

seringueiro obrigou-o a dedicar-se exclusivamente à extração do látex.

No entanto, vale assinalar que em 1969-1970 uma boa parte dos seringais nativos

no Acre entrou novamente em estágio de desativação. Dessa vez, em consequência da

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nova direção que toma o investimento estatal, isto é, ao maciço incentivo que passou a

ser dado à implementação da atividade pecuarista neste Estado. Esse novo modelo

econômico, embutido, por sua vez, no processo de modernização pensado para a

Amazônia, trouxe profundas transformações na estrutura econômica de base extrativa.

Nesse sentido:

Deve-se salientar que a expansão extensiva do capitalismo para a Amazônia desestruturou e modificou significativamente a relação típica do seringal, o aviamento, fazendo surgir novas relações de produção, alterando o ser das frações de classe e suas relações. O seringueiro tradicional transmuta-se em seringueiro autônomo, posseiro, pequeno proprietário e trabalhador assalariado; o seringalista mantêm-se nas regiões mais interiores ou transforma-se em fazendeiro e comerciante urbano; aparecem o grande fazendeiro e o parceleiro do INCRA; crescem a pequena burguesia do comércio, dos serviços e do Estado, e operariado urbano, na esteira da urbanização precoce (RÊGO apud CAVALCANTE, 1993, p. 10).

Considera-se, portanto, que este novo modelo pauta-se em novas matrizes

ideológicas em relação ao papel da Amazônia face ao contexto nacional nesse período

histórico (1960-1970). Nesse sentido, como salienta Gonçalves (ibidem), o novo padrão

de organização do espaço amazônico ganha suporte, através do governo federal, nas

agências multilaterais como o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) e o BIRD

(Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento), para realizar obras de

infraestrutura, comunicação, transporte e energia necessárias às iniciativas do grande

capital.

Em 1967, o governo decreta o fim da linha de crédito à borracha, o que resultou na

venda de grande parte dos seringais. Essas propriedades foram transformadas em

fazendas de gado, pois as linhas de créditos e incentivos fiscais partiam nessa direção

desde 1965, a agropecuária era o novo carro chefe para o desenvolvimento da região,

sucumbindo o extrativismo vegetal. A intenção era ocupar a região. Sendo assim, a

pecuária era o grande objetivo do I PND (Plano Nacional de Desenvolvimento). No Estado

do Acre, entre os anos de 1974 e 1978, a SUDAM aprovou a implantação de quatro

grandes projetos agropecuários no Estado em uma área que somadas totalizavam

159.111 ha.

A primeira iniciativa para estes ex-seringueiros se adaptarem à nova situação foi a

mudança para a beira dos rios, local de melhor acesso. Em seguida, se empenharam na

agricultura, caça, pesca e produção de madeira serrada, gerando uma pressão sobre os

três últimos recursos e dando início aos primeiros conflitos de ocupação de território.

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Menos de uma década após essa mudança administrativa, econômica e espacial, grande

parte da produção agrícola é comercializada nos centros urbanos mais próximos.

Nesse contexto, a luta contra o desmatamento provocado pelo fazendeiro e a

consequente expulsão dos seringalistas de suas terras em função deste novo modelo

econômico criam um ambiente fértil para o surgimento de grupos de resistência ao

desmatamento e em defesa da terra que aos poucos imprimirão significativas mudanças

no território acreano no que diz respeito à forma de organização fundiária.

LUTA PELA POSSE DA TERRA, RESERVAS EXTRATIVISTAS E DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Os conflitos ocorridos no Acre a partir, principalmente, da década de 1970

decorreram de vários fatores, entretanto é importante salientar pelo menos dois que

contribuíram significativamente para este cenário. O primeiro deles diz respeito à política

instaurada pelo governo federal de suspensão dos subsídios à produção de borracha e

direcionamento de incentivos fiscais a atividades agropecuárias. E, de outro lado, tem-se

por parte do governo estadual o desenvolvimento de políticas de atração de empresas do

sul do país para adquirirem terras no Estado do Acre e, consequentemente, implantarem

projetos agropecuários (ALEGRETTI, 2002, p. 191).

Apesar da redução de subsídios à atividade gomífera, por parte do governo federal,

é importante destacar que a mesma não deixou de existir, mesmo com a chegada da

atividade agropecuária. É a partir, portanto, da coexistência entre essas duas atividades

que derivam os confrontos entre ambas. De um lado tem-se a extração do látex, atividade

que já existia previamente e que dependia dos recursos naturais para sua reprodução, e,

de outro, tem-se a agropecuária, que vai completamente de encontro à manutenção dos

recursos da floresta. Nesse sentido, expõe Alegretti

Os processos sociais que emergiram durante este período estão relacionados, simultaneamente, à resistência à destruição do modelo anterior, à contestação do novo, e à busca de soluções que contemplassem as especificidades do modo de vida dos protagonistas principais, os seringueiros (2002, p. 191).

Outra questão importante decorrente do surgimento da pecuária como atividade

econômica foi a formação de mão de obra livre, como posseiros, seringueiros e

arrendatários, como enfatiza Cavalcante:

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A desativação dos seringais e a implantação da pecuária extensiva de corte veio propiciar a formação de contingentes livres de posseiros, seringueiros, arrendatários, que, ao não mais permanecerem ligados ao trabalho rural, migram para as periferias das cidades, onde passam a viver em condições precárias (1993, p.10).

Devido à formação dos contingentes de mão de obra livre, muitos desses

trabalhadores rurais tornaram-se seringueiros autônomos em relação aos seringalistas e

arrendatários e, posteriormente, deram origem a um movimento contra a pecuária como

atividade predatória. É válido ressaltar que antes da implementação da nova atividade

econômica a luta no território acreano se dava pela liberdade nas relações semi-

escravistas e, posteriormente, essa luta passa a ser a favor pela posse da terra, pela

manutenção da floresta ameaçada, pelas imensas pastagens, e na resistência a se

tornarem favelados nas periferias urbanas (CAVALCANTE,1993, p. 10).

Foi exatamente nessa luta contra os fazendeiros que se destacaram nomes

importantes como os dos líderes sindicais Wilson Pinheiro e Chico Mendes, que viriam a

ser assassinados nos anos de 1980 e 1988, respectivamente. A luta dos seringueiros

contou, ainda, com o apoio de importantes instituições como a Igreja Católica e a

CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura). Esta última, além

de esclarecer sobre os direitos do trabalhador rural e dar assistência jurídica aos

injustiçados, também objetivou organizar os sindicatos. Nesse sentido, uma das principais

formas de luta foi o chamado "empate", que “são formas de resistência mais organizadas

que visam impedir o desmatamento e a implantação das fazendas, assegurando a

subsistência através da defesa da seringueira e da castanheira” (Jornal “O Varadouro”

apud GONÇALVES, ibidem, p. 454).

É importante destacar que:

[...] a luta dos seringueiros pela defesa da terra não se deu com o intuito de defender a propriedade privada, e sim de defender a preservação da floresta e o direito de usufruto dela, ou melhor, lutar pela manutenção dos seringais, para os seringueiros, era lutar pela própria vida (DUARTE apud CAVALCANTE, 1993, p.12).

Dessa forma, fica evidente que a principal preocupação estava na manutenção dos

interesses socio-econômicos desses sujeitos, sendo, portanto, a preservação da floresta

uma consequência de tais interesses.

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Entretanto, não bastava a simples resistência dos seringueiros ao novo modelo

econômico que estava se instaurando na Amazônia, no caso a pecuária, era necessária a

proposição de uma nova alternativa. É nesse contexto que surge a concepção de reserva

extrativista, ou seja, esta seria uma alternativa econômica e ecológica para justificar a luta

contra o desmatamento na Amazônia.

A partir de 1985, após o I Encontro Nacional dos Seringueiros, as pressões de

movimentos sociais e ambientalistas foram intensificadas a favor da criação das Reservas

Extrativistas. Essa pressão intensificou-se ainda mais após o assassinato de Chico

Mendes, visto que, ainda em vida, foi responsável pela repercussão internacional das

políticas ditas de desenvolvimento para a região amazônica. Dessa maneira, em 1990, foi

criada a primeira reserva extrativista no Estado do Acre, a reserva Alto Juruá, com

506.186 ha., e, ainda neste ano, a reserva Chico Mendes, com 970.570 ha (Figura 03).

Figura 03. Mapa das Reservas Extrativistas Alto Juruá e Chico Mendes (em amarelo). Fonte: IBAMA sd.

A definição de Reservas Extrativistas pressupõe que os grupos sociais que

dependem dos recursos da floresta para sua sobrevivência devem se utilizar dos mesmos

de forma sustentável, ou seja, considerando um modelo de desenvolvimento que leve em

conta a associação de, pelo menos, três fatores: o social, o econômico e o ecológico.

Nesse sentido, de acordo com o CNS (Conselho Nacional dos Seringueiros), a Reserva

Extrativista deve ser entendida como:

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[...] parte da luta pela reforma agrária no Brasil, [...] questiona o modelo tradicional de assentamento em lotes agrícolas padronizados, propondo a utilização coletiva da terra. Junta a questão fundiária com a agroecológica propondo novos critérios no apossamento da terra, centrado no uso sustentável dos recursos naturais. A principal característica da reserva extrativista é o resgate da importância do homem numa nova perspectiva de ocupação do espaço amazônico associada à conservação do meio ambiente, onde são levados em consideração os aspectos sociais, culturais e econômicos das populações locais (CNS apud CAVALCANTE, 1993, p. 20).

Dessa maneira, percebe-se uma inter-relação entre os conceitos de Reservas

Extrativistas e de desenvolvimento sustentável, sendo este último possuidor de diversos

significados. Para Becker (1993), por exemplo:

O conceito de desenvolvimento sustentável não é claro; envolvendo múltiplas e diversas interpretações constitui uma ‘caixa preta’. Só pode, pois, ser compreendido no contexto histórico da nova ordem em construção sobre a desordem global e do desafio que representa para o Brasil e para a Amazônia (BECKER apud CAVALCANTE, 1993, p. 38).

Considerando, por outro lado, o que diz o Relatório Brundtland a respeito de

desenvolvimento sustentável, este “é aquele que satisfaz as necessidades do presente

sem comprometer a possibilidade das gerações futuras satisfazerem as suas”, observa-se

que este é um conceito já ultrapassado, pois não questiona o modelo econômico vigente:

O debate entre desenvolvimento e o meio ambiente não pode ficar restrito à propostas de desenvolvimento sustentável, que não questiona os pressupostos econômicos do sistema que provoca a miséria. Ou então, pode-se direcionar a um profundo questionamento das relações de dominação existentes na sociedade e entre os países, pois a sustentabilidade do planeta não se encontra apenas na defesa da natureza, mas também na mudança das relações de dominação entre os homens (CEDI/CRAB apud CAVALCANTE, 1993, p. 19).

É válido ressaltar que o debate sobre a sustentabilidade nas Reservas Extrativistas

deve abordar o papel do Estado, que abrange medidas relativas à criação de

infraestrutura, programas de saúde e educação, apoio à comercialização de produtos

agroextrativistas, exigindo a atuação dos diversos níveis do governo em seu

financiamento e sua implementação, o federal, estadual e municipal.

Contudo, dados do CNPT (Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentado das

Populações Tradicionais) revelam que, de forma geral, no Acre, as reservas foram apenas

criadas, isto é, o governo não procedeu da forma prevista, dando as mínimas condições

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de sobrevivência à população local. Esse fato contribuiu para o êxodo rural de uma

parcela considerável da população das Reservas Extrativistas, “na RESEX Chico Mendes,

por exemplo, a população residente, reduziu-se mais de 33% em 4 anos caindo de 9 mil

para cerca de 6 mil habitantes” (ZEE apud SEVÁ, 2002, p. 64).

A luta dos seringueiros intensificou-se ainda mais, pois na década de 1990,

principalmente, o setor extrativista entrou em decadência. Dessa forma, os seringueiros

perceberam que apenas o extrativismo não era suficiente para que a reserva se tornasse

sustentável, eram necessários incentivos também à diversificação da produção dentro da

reserva. Com a incorporação, portando, de outras atividades econômicas como a

pecuária, por exemplo, o nível de desmatamento dentro das reservas aumentou

consideravelmente.

Diante desses fatos, compreende-se que a realidade das reservas, assim como o

extrativismo, contrasta com a perspectiva que os mesmos oferecem como alternativas de

sustentabilidade para os povos que vivem na floresta. Entretanto, apesar das críticas

contrárias a esse modelo, é importante que se reconheça que a proposta de criação das

Reservas Extrativistas constitui-se num importante avanço para o tratamento dos

problemas ambientais amazônicos, a partir do momento em que esses problemas são

focados diante da visão e dos interesses das comunidades locais. Sendo assim, as

deficiências decorrentes desde sua criação dizem respeito mais à questão de tratamento

inadequado por parte dos órgãos competentes do que por constituírem-se como

inviabilidade econômica.

CONCLUSÃO

A história do estado do Acre é marcada pelo confronto armado, causado pelo

conflito de interesses dos diversos agentes que buscaram o controle deste território, com

o objetivo de explorá-lo economicamente, seja a nível local, nacional ou internacional. A

produção gomífera foi o elemento sine qua non para sua formação territorial, visto que a

ocupação da região onde se localiza, se deu em função desta atividade, além de ter sido

essencial para a sua formação social, econômica e cultural.

Este Estado foi protagonista de um singular episódio de articulação geopolítica que

objetivou impedir um confronto direto com a Bolívia, e indireto com os Estados Unidos, e

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anexar um território rico numa das principais commodities da época: o látex. Porém, a

riqueza gerada por essa matéria-prima, de maneira geral, não foi aplicada no

desenvolvimento do próprio território.

A partir da década de 1970, a “imposição” de um modelo de desenvolvimento, que

não levava em consideração as peculiaridades do território acreano, implementando a

lógica da circulação rodoviária e da atividade agropecuária, torna-se o estopim para a

criação de um movimento de resistência ao poder hegemônico, visto que o modo de vida

da população local estava ameaçado diante dessa nova lógica. Nesse sentido, surge a

proposta de criação das Reservas Extrativistas, que levava em consideração a tríade:

sociedade, economia e ambiente, pautada num modelo de desenvolvimento sustentável.

Entretanto, é importante avaliar se após a criação das reservas extrativistas,

criadas há aproximadamente duas décadas, tais propostas foram realmente postas em

prática, se as RESEX’s, de fato, resolveram as questões as quais se propuseram e,

principalmente, se os órgãos competentes atuaram no sentido de promover melhores

condições de vida da população extrativista acreana.

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