educação da classe trabalhadora: marx contra os pedagogos ... o programa de gotha (1875) deixava...

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Contemporary marxist pedagogues have proposed a single polytechnic school as a condition for the education of the “new man” that socialist society requires. This position assumes that marxism must expand through the inclusion of culture among its themes. This is so because the proletariat should be educated to make the socialist ideal come true. This papers tries to demonstrate that this was the position of German social-democracy at the time of the Second International and that this position was opposed to Marx’s ideas. Marx believed that the new man already existed and was the proletariat, its being necessary to free him from salaried work. The immediate measure of this would be a reduction in the work day, because time is a prerequisite for human development. The reduction of the work day without a corresponding pay cut was regarded as crucial for changing the way of life. In the same movement, the regulation of the work of women and of children and youths of both sexes would be required, being combined, in the case of the latter, with schooling. KEY WORDS: Marxism; education; workers; cultural anthropology. Pedagogos marxistas contemporâneos têm proposto a escola única politécnica como condição para a formação do “homem novo” requerido para a sociedade socialista. Esta posição considera que o marxismo precisa ampliar-se pela inclusão da cultura entre seus temas. Isto porque o proletariado deve ser educado para realizar o ideal socialista. Aqui procuro mostrar que esta era a posição da Social-democracia alemã, no período da Segunda Internacional, e que esta se fez em oposição às idéias de Marx. Para este, o homem novo já existia, era o proletariado, sendo necessário libertá-lo do trabalho assalariado, tendo por medida imediata a redução da jornada de trabalho, pois o tempo é condição para o desenvolvimento humano. A redução da jornada de trabalho, sem redução dos salários, era considerada crucial para a mudança no modo de vida. No mesmo movimento, requeria a regulamentação do trabalho das mulheres, crianças e jovens de ambos os sexos, neste último caso combinando-a com a educação escolar. PALAVRAS-CHAVE: Marxismo; educação; trabalhadores; antropologia cultural. 51 agosto, 2001 Educação da classe trabalhadora: Marx contra os pedagogos marxistas MAZZOTTI, T. B. Educating the working class: Marx vs. Marxist pedagogues, Interface _ Comunic, Saúde, Educ, v.5, n.9, p.51-65, 2001. Tarso Bonilha Mazzotti 1 1 Professor de Filosofia da Educação; Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro.<[email protected]> <[email protected]>

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Page 1: Educação da classe trabalhadora: Marx contra os pedagogos ... O Programa de Gotha (1875) deixava de lado, no entender de Marx, as condições nas quais o trabalho humano se desenvolve,

Contemporary marxist pedagogues have proposed a single polytechnic school as a condition for the education ofthe “new man” that socialist society requires. This position assumes that marxism must expand through theinclusion of culture among its themes. This is so because the proletariat should be educated to make the socialistideal come true. This papers tries to demonstrate that this was the position of German social-democracy at thetime of the Second International and that this position was opposed to Marx’s ideas. Marx believed that the newman already existed and was the proletariat, its being necessary to free him from salaried work. The immediatemeasure of this would be a reduction in the work day, because time is a prerequisite for human development.The reduction of the work day without a corresponding pay cut was regarded as crucial for changing the way oflife. In the same movement, the regulation of the work of women and of children and youths of both sexeswould be required, being combined, in the case of the latter, with schooling.

KEY WORDS: Marxism; education; workers; cultural anthropology.

Pedagogos marxistas contemporâneos têm proposto a escola única politécnica como condição para a formação do“homem novo” requerido para a sociedade socialista. Esta posição considera que o marxismo precisa ampliar-sepela inclusão da cultura entre seus temas. Isto porque o proletariado deve ser educado para realizar o idealsocialista. Aqui procuro mostrar que esta era a posição da Social-democracia alemã, no período da SegundaInternacional, e que esta se fez em oposição às idéias de Marx. Para este, o homem novo já existia, era oproletariado, sendo necessário libertá-lo do trabalho assalariado, tendo por medida imediata a redução dajornada de trabalho, pois o tempo é condição para o desenvolvimento humano. A redução da jornada detrabalho, sem redução dos salários, era considerada crucial para a mudança no modo de vida. No mesmomovimento, requeria a regulamentação do trabalho das mulheres, crianças e jovens de ambos os sexos, nesteúltimo caso combinando-a com a educação escolar.

PALAVRAS-CHAVE: Marxismo; educação; trabalhadores; antropologia cultural.

51agosto, 2001

Educação da classe trabalhadora:

Marx contra os pedagogos marxistas

MAZZOTTI, T. B. Educating the working class: Marx vs. Marxist pedagogues, Interface _ Comunic, Saúde,

Educ, v.5, n.9, p.51-65, 2001.

Tarso Bonilha Mazzotti1

1 Professor de Filosofia da Educação; Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio deJaneiro.<[email protected]> <[email protected]>

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O tempo é o campo do desenvolvimento humano.Karl Marx

“Pedagogos marxistas”, do título deste artigo, refere-se aos teóricos daeducação que reivindicam certa herança marxista, a que foi restaurada no finalda década de 1960: a gramsciana. O primeiro a propor uma pedagogia fundadana obra de Gramsci foi Manacorda (1971), que teve ampla influência no Brasil.A hegemonia de Gramsci como referencial teórico pode ser avaliada de váriasmaneiras, indico apenas uma: com base naquele referencial foi proposto umAnteprojeto de Leis de Diretrizes da Educação Nacional, apresentado aoCongresso Nacional. O Anteprojeto, escrito por Demerval Saviani —um dosprincipais pedagogos marxistas a que me refiro—, recebeu apoio das maisdiversas instituições que se dedicam à educação no país: desde a AssociaçãoNacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd) até confederaçõessindicais como a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE),Federação de Sindicatos dos Trabalhadores das Univerisdades Brasileiras(FASUBRA) e Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (ANDES).

No Anteprojeto fica clara uma tomada de posição baseada no trabalho comoprincípio educativo, o qual deve orientar a educação escolar de todos,realizando-se a educação única politécnica. Essa educação única politécnicaconduziria à realização das bases culturais necessárias à hegemonia da classetrabalhadora, com vistas ao socialismo. Seus propositores julgam que esta éuma posição marxista adequada aos nossos tempos, uma vez que é precisodotar Marx de uma dimensão que ele deixara de lado: a cultural.

Neste artigo procuro esclarecer a posição original de Marx sobre a cultura e aeducação. A relevância deste possível esclarecimento é primordialmenteepistêmica, pois implica rever a posição dos que afirmam que Marx não tratouda cultura e da educação. Suponho que a apreensão da posição de Marx permitauma revisão dos debates em torno da educação escolar, bem como dascondições contemporâneas postas pelas mudanças na base técnica da produção,uma vez que, para ele, a condição vital —material e espiritual— é a existênciade tempo livre para o desenvolvimento humano.

Para efetivar a apresentação das posições de Marx sobre a cultura2 eeducação optei por examinar as ações políticas nas quais ele esteve envolvido e,depois, as dos teóricos e políticos que se reivindicaram marxistas. Entre estesteóricos há os que trataram prioritariamente do tema educação, como foi ocaso de Henrich Schultz, membro do Partido Social-democrata Alemão —SPD—que determinou, desde 1904, o “programa escolar” daquele partido.

Apresentarei, inicialmente, as posições de Marx expressas em algunsdocumentos que informaram as resoluções dos congressos da AssociaçãoInternacional do Trabalhadores —AIT, 1865-1876—, acrescentando outrospertinentes à compreensão do trabalho na sociedade capitalista,particularmente no que se refere às possibilidades da realização dos indivíduos.Depois, examinarei as posições de Schultz, com um breve histórico do SPD, opartido paradigmático da social-democracia internacional. Concluireiretomando as posições de Marx de maneira a explicitar o que me parece ser umengano dos chamados pedagogos marxistas que são herdeiros do chamadomarxismo ocidental. Este tornou-se, sem dúvida, a corrente dominante entre

2 Deixo, aqui, de fazeruma análise do que setem denominado“cultura”, permita-me,no entanto, sugerir aleitura de Geertz(2001) sobre esteassunto.

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os intelectuais que se reivindicam marxistas e a que informa as posições dosteóricos da educação tanto no Brasil como no exterior. Dessa maneira, a críticaaqui apresentada alcança a todos eles.

Educação escolar entre as bandeiras de luta dos trabalhadores

Este tema aparece, nas posições de Marx, vinculado as suas proposições sobre a“regulamentação do trabalho das mulheres, crianças e jovens de ambos ossexos”. Essa regulamentação constituía, no século passado, um dos pontoscríticos para a sobrevivência física da classe dos trabalhadores assalariados quedesenvolviam jornadas de 12 h a 16 h. Entre esses, encontravam-se crianças —muitas das quais com três anos de idade— e jovens de ambos os sexos, bemcomo mulheres adultas. Eram trabalhadores “desqualificados”, ou seja, nãoeram profissionais, uma vez que não se exigia treinamento prévio para otrabalho e, por isto, não tinham a proteção dos regulamentos das guildas, ouuniversitas, nas quais se reuniam os artesãos. É sob tais circunstâncias que seconstituiu a AIT, que objetivava coordenar as ações políticas dos trabalhadoresassalariados na Europa e em outros países, tendo na regulamentação dotrabalho um de seus principais pontos de pauta. É no âmbito deste debate quese apresentou a questão da educação das crianças e jovens.

No Congresso de Genebra da AIT (1866) os pontos 3 e 4 trataram daquestão da regulamentação do trabalho. O ponto 3 examinou a necessidadeimperativa de se reduzir as horas de trabalho, propondo que fosse de oitohoras, como limite legal —o que já era reivindicado pelos operários dos EstadosUnidos. Propunha-se, também, que se lutasse pela abolição do trabalhonoturno; a jornada de oito horas atingiria os trabalhadores adultos de ambosos sexos. Além disso, as mulheres deveriam ser excluídas de todo e qualquertrabalho noturno e daqueles que “firam o seu pudor e onde seu corpo fiqueexposto aos tóxicos ou a outros agentes nocivos” (La Primera Internacional,1977, tomo 1, p.53-4). Por adulto entendia-se toda pessoa com idade de 18anos ou mais. Em ponto separado —ponto 4— tratou-se do trabalho dascrianças e jovens de ambos os sexos que deveriam ser classificados por faixasetárias nas quais seria permitido que trabalhassem em casas ou nas fábricas. Otrabalho seria proibido aos menores de nove anos, sugerindo-se que as escolasprimárias admitissem crianças com menos dessa idade. As medidas deregulamentação do trabalho infantil e juvenil seriam necessárias para cessar asuper-exploração das crianças e adolescentes e garantir que tivessem instruçãoprimária. Afirmava-se que a AIT deveria lutar pelos direitos das crianças, umavez que elas não podiam fazê-lo por si mesmas, enfatizando que o interesse dosmembros da associação era para com os filhos das classes trabalhadoras (LaPrimera Internacional, 1977, tomo 1, p.56).

Em suma, as medidas legais a serem reclamadas como “direito das crianças ejovens de ambos os sexos” referiam-se aos filhos dos trabalhadores assalariados:regulamentação do trabalho e escolarização, vedando-se o trabalho noturno, onocivo à saúde e/ou à moral e proibindo o trabalho às crianças com menos denove anos. A educação escolar inscrevia-se, dessa maneira, em um programamais amplo de mudanças no modo de vida determinado pelo capitalismo e,nesse sentido, constituía uma reivindicação a ser “arrancada do Estado

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burguês”.A combinação da educação escolar com o trabalho remunerado —a partir dos

nove anos de idade— objetivava garantir tanto a sobrevivência dos filhos efilhas dos trabalhadores quanto elevar a classe trabalhadora acima das demaisclasses sociais (La Primera Internacional, 1977, tomo 1, p.57). Esta posiçãoexplicita as investigações e reflexões que Marx desenvolvera desde 1844 sobre aeconomia política, entre as quais estão seus discursos proferidos nas sessões doConselho Geral da AIT que balizaram as propostas de resoluções de seusCongressos. Entre estes, temos o que trata do “Salário, preço e lucro” —20 a27 de junho de 1865, em oposição a John Weston, membro do Conselho— noqual Marx expõe sua compreensão sobre o trabalho assalariado e sua superação.A certa altura, tratando da questão da jornada de trabalho, afirma:

O tempo é o campo do desenvolvimento humano . O homem

que não dispõe de nenhum tempo livre, cuja vida, afora as

interrupções puramente físicas do sono, das refeições etc., está toda

ela absorvida pelo seu trabalho para o capitalista, é menos que uma

besta de carga. É uma simples máquina, fisicamente destroçada e

espiritualmente animalizada, para produzir riqueza alheia. (Marx,

1974, p.98-9; grifo meu)

Tal compreensão das relações capitalistas, adotada pelo Conselho Geral da AIT,determinou as resoluções já apresentadas. No tocante ao trabalho assalariado,afirmava-se que a luta pelos aumentos, ou reajustes salariais, é necessária,porém a luta efetivamente necessária é a que conduza à abolição do própriosistema de assalariamento (Marx, 1974). Muitos anos mais tarde Marx faria acrítica do Programa de Gotha —que foi a base para a constituição do PartidoOperário Alemão, do qual se originou a social-democracia— sustentando que “Otrabalho não é a fonte de toda riqueza. A natureza é tanto fonte do valor-de-uso (e este constitui a riqueza material!) quanto o trabalho que é apenasuma manifestação de uma força material, a força de trabalho humana”(Marx, 1965, p.1413).

O Programa de Gotha (1875) deixava de lado, no entender de Marx, ascondições nas quais o trabalho humano se desenvolve, tomando o trabalhocomo “uma potência de criação sobrenatural”. Isto porque “é precisamente oliame que une o trabalho à natureza que faz com que o homem, não tendooutra propriedade a não ser sua força de trabalho, deva ser escravo deoutros homens que se tornaram proprietários das condições de trabalho”(Marx, 1965, p.1413).

Na mesma crítica do Programa de Gotha podemos encontrar a dirigidacontra o ponto que tratava da “educação elementar” (Volkserziehung) quedeveria ser “igual e geral” para todos. Marx (1965) adotava, mais uma vez, asperspectivas que tinham orientado as resoluções da AIT, nas quais areivindicação “educação escolar” pela classe dos trabalhadores deveria atenderàs necessidades desta classe. Não haveria, nas condições existentes, apossibilidade de educação igual para todos. Mesmo a obrigatoriedade daeducação escolar, existente à época nos Estados Unidos, Suíça e Alemanha, nãoseria uma proposta “avançada”. Assinala, ainda, que o “ensino gratuito”,

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existente na Suíça e nos Estados Unidos, significa “apenas que são pagospelas receitas gerais dos impostos”. E, mais adiante, sustenta: “Oparágrafo relativo às escolas poderia, pelo menos, exigir escolas técnicas(teóricas e práticas) combinadas com a escola primária” (Marx, 1965,p.1431). No parágrafo seguinte da mesma crítica, Marx dizia que se deveriarejeitar a “educação popular pelo Estado” (p.1431-2).

As críticas se tornam mais ásperas ainda, Marx parece exasperar-se com oque chamou de “chilique democrático” que teria origem na “seitalassaliana” que acreditava “no milagre da democracia”; mais exatamente, éum compromisso entre duas espécies de fé no milagre, igualmentedistanciadas do socialismo. Essas “duas espécies de fé no milagre” aparecemno Programa de Gotha como sendo o da “liberdade da ciência” e “liberdadede consciência”. A primeira liberdade já se encontrava na constituiçãoprussiana, a segunda seria a retomada de uma palavra-de-ordem que oliberalismo apresentava à época da “guerra cultural” —Kulturkampf. ParaMarx, no entanto, o partido operário “deveria, por seu lado, se esforçarmuito mais em libertar as consciências da sandice religiosa” (Marx, 1965,p.1432). Retoma, depois, suas posições a respeito da jornada de trabalho e,ao tratar da proposta do Partido Operário Alemão de proibir o trabalhoinfantil, diz que

isto seria reacionário, pois graças a uma estrita regulamentação

do tempo de trabalho segundo a idade e a outras medidas de

proteção em favor das crianças, a união do trabalho produtivo e

da instrução é um dos mais poderosos meios de transformação

da sociedade atual. (Marx, 1965, p.1433)

Esta posição foi mantida por Marx ao longo de sua vida e pode serreencontrada na obra O Capital (quarta seção, A produção da mais-valiarelativa), na qual, ao tratar da “legislação fabril”, assinalou:

Do sistema fabril, como se pode ver detalhadamente em Robert

Owen, brotou o germe da educação do futuro, que há de

conjugar, para todas as crianças acima de certa idade, trabalho

produtivo com ensino e ginástica, não só como um método de

elevar a produção social, mas como único método de produzir

seres humanos desenvolvidos em todas as dimensões. (Marx,

1984, v.I, tomo 2, p. 87; grifo meu.)3

Tem-se, dessa maneira, duas diretivas: (1) a combinação do trabalhoprodutivo —remunerado— com a instrução escolar para “produzir sereshumanos desenvolvidos em todas as dimensões” e (2) os operários deveriamexigir esse tipo de escola apenas aos seus filhos, as demais classes quecuidassem dos seus.

Ambas as diretivas são coerentes pois, para Marx, o “novo homem”,reclamado inicialmente pelos “utopistas” —depois pela social-democracia eem nossos dias pelos teóricos da educação que se reivindicam marxistas—, jáexistia. Isto porque o modo de produção capitalista produzira as novas

3 Na edição francesa d’O Capital, revista porMarx, lemos: “Il suffitde consulter les livresde Robert Owen, pourêtre convaincu que lesystème de fabrique ale premier fait germerl’éducation de l’avenir,éducation qui unirapour tous les enfantsau-dessus d’un certainâge le travail productifavec l’instruction et lagymnastique, e cela nonseulement commeméthode pour accroîtrela production sociale,mas comme le seule etunique méthode pourproduire des hommescomplets (Marx, 1965,p.987). MaximilienRubel assinala que naversão alemã aexpressão “hommescomplets” é dita“homens plenamentedesenvolvidos”.Assinala também ainfluência de Owen eFourier no que serefere à noção de“homem integral” que,para eles, seriaantípoda ao “homemabstrato”, desprovidode forças criadoras, queaparece na filosofiaalemã. A qual foicriticada por Marx eEngels em A IdeologiaAlemã (Rubel in Marx,1965, p.1674, Notes etvariantes, nota 1 dapágina 987).

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classes sociais: a burguesia e o proletariado. O proletariado, originado dasentranhas do capitalismo, é o “novo homem”, após o declínio da classeburguesa. Marx não buscou a construção de um “homem novo”, como osfilósofos alemães que buscavam fazer pela “crítica da consciência” quepermitiria o aparecimento de uma “nova consciência”. Para ele, a classe socialconstituída pelos trabalhadores assalariados apresenta interesses próprios quecoincidem com os racionais da humanidade. Esta racionalidade se expressa, deimediato, na racionalização do modo de vida, tendo por ponto de partida aredução do tempo de trabalho individual. Assim sendo, a educação queproduziria o “homem integral”, o “homem omnidimensional”, ou“desenvolvido em todas as direções”, só poderia se iniciar —ainda no interior dasociedade capitalista— pela regulamentação do trabalho das crianças e jovensde ambos os sexos combinando o trabalho remunerado (produtivo) com aeducação intelectual, ginástica e tecnológica. No entanto, esta diretiva nãopoderia ser estendida às demais classes sociais, uma vez que elas têm interessesdiversos dos das classes trabalhadoras.

A social-democracia, nascida do Partido Operário Alemão, tomaria outrocaminho, exatamente o que fora criticado por Marx quando examinou oprograma de Gotha. É o que veremos a seguir.

O programa escolar da social-democracia

A AIT foi formalmente extinta na Filadélfia, em 15 de julho de 1876, masdurante os anos seguintes muitos tentaram organizar uma nova internacionalsocialista. Em 1889, em Paris, durante as comemorações do centenário daqueda da Bastilha, marxistas de 23 países reuniram-se, sob a presidência deÉdouard Vaillant, com vistas a reorganizar a uma nova Internacional. Dois anosmais tarde, em Zurich —de 6 a 12 de agosto de 1893— os anarquistas foramexpulsos da Internacional Operária, ou Segunda Internacional, o que resultouem certa homogeneidade doutrinária com base nas obras de Marx. Dos partidosda Segunda Internacional um era considerado paradigmático: o Partido SocialDemocrata Alemão (SPD).

O SPD foi uma força política poderosa que crescera eleitoralmente e eminfluência de massa. Alguns dados permitem avaliar a força do SPD. Em 1907,o SPD obteve 3.259.000 votos para o Reichstag que correspondiam a,aproximadamente, 38% do total de trabalhadores assalariados da cidade e docampo, embora eles fossem 28,9% do total dos eleitores. Note-se que em 1907havia 12 milhões e 500 mil trabalhadores assalariados na Alemanha, assimentre 65% a 68% da população era classificada como sendo proletária —incluindo-se as mulheres e crianças— o que justificava a afirmação de Vermeilde que “a Alemanha de Guilherme II era, às vésperas de 1914, um paísproletarizado em três quartos” (apud Broué, 1971, p.18). Em 1914 o SPDpossuía 89 jornais, diversas revistas teóricas e culturais com um milhão e meiode assinantes —sustentando onze mil assalariados do partido. O SPD, por seulado, era mais do que uma “máquina de combate”, era uma “contra sociedade”,pronta para substituir a existente. Dessa maneira, o Partido tornou-se um“meio de vida” para milhares de trabalhadores assalariados. Estes, por sua vez,constituíam o Partido, tanto que 74% dos deputados socialistas no Reichstag

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eram trabalhadores. “Foi neste espírito de reedificação da dignidadeoperária”, diz um historiador, “que os social-democratas conferiram grandeimportância a obras destinadas à educação da mulher e da juventude, dasquais se esperava, ao libertá-las da prostituição e do alcoolismo, que setornassem os elementos motores e o cimento da moral da nova sociedade”(Droz, 1979, v.4, p.79). O SPD decidira integrar socialistas nos conselhos“municipais das grandes cidades para se iniciarem nos problemas escolares,nas questões de habitação, de seguros e de saúde, e (...) colaboraremefectivamente com os partidos burgueses” (Droz, 1979, v. 4, p.64). Caso nosfiemos nas observações de Pierre Broué, um historiador que examinou comdetalhes a situação alemã no período, então será preciso considerar que oproletariado alemão era relativamente bem instruído, capaz de lutar por seusinteresses imediatos e mediatos, bem como “de transformar sua vida e a dospequeno burgueses, estraçalhados pela concentração capitalista, que elesjulgavam, com alguma razão, que poderiam ser seus aliados” (Broué, 1971,p.19).4

Este foi o caldo de cultura para a proposta de “educação socialista”, pois oSPD enfrentava o problema diariamente tanto no partido como nos conselhosde que participava.

Dietrich (1976), comentando as propostas sociais-democratas ao “problemaescolar”, diz que consciente ou inconscientemente, todos participaram dosdelineamentos revisionistas de Eduard Bernstein. Dessa maneira, éfundamental compreender as posições de Bernstein. Certamente serianecessário um estudo à parte para examinar o chamado “revisionismo”encabeçado por Bernstein mas, para nossos propósitos, é suficiente apresentaras linhas gerais de suas posições.

Em primeiro lugar, Bernstein não era materialista e considerava que Marxestivera completamente enganado, pois “se reina a necessidade, de que servea ação?”, perguntava (Dietrich, 1976, p.110). Assumia que o socialismoenraíza-se em juízos éticos, uma vez que as noções de justiça e igualdade têm,em si mesmas, uma força criadora. Estava convicto de que o socialismo é odepositário da verdade “na medida em que se fundamenta no idealismomoral”, negando, por essa via, algumas posições básicas de Marx. Por outrolado, atacava a crítica da economia política de Marx, sustentando as posiçõesdos marginalistas — Jevons e Böhm-Baverk —, para os quais o “valor” tem porbase a “utilidade”, a “necessidade”, o “gosto” sendo, portanto, determinadopor fatores psicológicos, ou subjetivos. Negava, dessa maneira, que ofundamento do “valor” fosse dado pelo dispêndio da força de trabalho,aniquilando a teoria da mais-valia proposta por Marx. A orientaçãoantimaterialista do pensamento de Bernstein, diz um historiador, seriaincompreensível

sem o conhecimento que ele adquiriu do movimento neokantiano,

desse ”retorno a Kant” em que foi iniciado pela leitura de F. A.

Lange, bem como pelos contatos travados com a escola de Marburg,

cujo líder, Hermann Choen, considerava Kant “o pai verdadeiro e

real do socialismo alemão”. (Droz, 1979, v.4, p.58)

4 Broué certamente estáargumentando contraos que sustentam que a“baixa cultura” doproletariado alemãojustifica a derrota darevolução alemã noperíodo de 1919-1923.O tema da cultura pré-moderna doproletarido foibastante exploradopela chamada Escola deFrankfurt, por exemplo.Para uma análise críticadesta corrente, sugiro aleitura de Slater(1978). Broué, por seulado, acompanha asposições de Trotskysobre a Alemanhanaquele período(Trotsky, 1979).

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Bernstein considerava possível que a expansão capitalista fosse associada àsmelhorias na vida da classe operária tanto pelos aumentos salariais quantopela redução da miséria moral, ou cultural, dessa classe. Por essa concepçãoseus adversários consideravam-no “reformista”.

Sustentava, ainda, que as classes sociais não são tão homogêneas, comoele julgava ser a posição de Marx. Assim, para ele, a social-democraciarepresentava apenas uma parte da classe operária que estaria muito longede ter alcançado as condições intelectuais e morais necessárias ao socialismo.Além disso, a classe burguesa não seria o “bloco reacionário” que osrevolucionários proclamavam, pois há setores progressistas na burguesia.Para ele, o socialismo não apenas sucederia o capitalismo do ponto de vistacronológico, mas seria seu sucessor por seu “conteúdo espiritual” por ser o“herdeiro legítimo do liberalismo” (Bernstein apud Droz, 1979, p.60).

Finalmente, para Bernstein, o Estado não é um instrumento de coerçãodas classes dominantes, pois a prática democrática suprime as diferenças denascimento e propriedade. Assim, o Estado representaria cada vez mais ointeresse geral, coletivo, sendo possível ao movimento operário, penetrarnos organismos de governo sem a necessidade de efetivar a “tomada dopoder” que viesse a estabelecer a “ditadura do proletariado”. Logo, o SPDdeveria se tornar um partido das reformas socialistas e democráticas,abandonado a “fraseologia revolucionária”, agindo pragmaticamente emalianças com os progressistas dos demais partidos e de outras classes sociais.Em suma, “o socialismo tornar-se-á um objetivo que será alcançado, nãopela violência, mas pelas reformas sucessivas: só um trabalho pacientepode, do interior, emendar a sociedade capitalista” (Droz, 1979, p.60).

A crítica mais contundente da posição de Bernstein foi produzida porRosa Luxemburgo em seu livro Reforma Social ou Revolução? —publicadoem brochura em 1900, embora a primeira crítica tenha sido publicada em1898 no Leipziger Volkszeitung. Não examinarei, aqui, as críticas de RosaLuxemburgo. Apenas assinalo que seu livro, combinado com artigos deAlexander Helphand —Parvus5 — publicados no Sächsische Arbeiterzeitung,e a comedida brochura de Karl Kautsky intitulada Bernstein e o ProgramaSocial-democrata (1899), levou o Congresso de Hannover (1899) acondenar a posição de Bernstein. Somente em 1903 este debate foiformalmente encerrado, sendo que o próprio Bernstein votou a favor dasresoluções que condenavam sua posição.

No entanto, com um partido que alcançava mais deputados, conselheirosmunicipais e infiltrava-se nos organismos do Estado, bem como desenvolviaum imenso aparato de funcionários, as posições “revisionistas”, ou“reformistas”, foram se instalando na prática cotidiana do SPD. É este opano de fundo no qual se inscreve a proposta de “escola socialista” deHeinrich Schultz6 — então considerado ortodoxo, ou seja, contrário àsposições de Bernstein—, apresentada, pela primeira vez, no Congresso deBremen (1904). No entanto, suas teses não foram discutidas na ocasião e,portanto, não foram votadas. Reapresentou-as no Congresso de Mannheim(1906) em conjunto com Clara Zetkin7 e, novamente, não foram votadas.Mesmo assim, as teses de Schultz tornaram-se o “verdadeiro programaescolar do partido” (Dietrich, 1976, p.114).

5 Parvus, ou Molotov,assinou com Trotsky oprimeiro documentosocial-democratadefendendo a tese deque a revolução social éum processo“permanente”, ou oque passou a serconhecido como“revoluçãopermanente”, criticadapor Gramsci sobdenominação “guerrade movimento”.

6 Schutz (1872-1932),ao lado de Kurt Kerlöw-Löwenstein (morreu em1932) e Max Adler(1873-1937),desenvolveu a propostade “escola socialista” ea noção de “teoriasocialista das atitudes”,esta devida a Kerlöw-Löwenstein, que sefundamenta na noçãode “homem novo”devida a Adler, todosconsiderando que taisnoções correspondiamà de “homemcompleto” de Marx(Dietrich, 1976, p.114).

7 Clara Zetkin, ou ClaraEisner (1857-1933),professora de escolaprimária, foi secretáriada secção feminina dainternacional, tendofundado e dirigido oGleichkeit, periódicovoltado às questões damulher e da família.

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O “programa escolar” da social-democracia fundamentava-se no “trabalhosocial”, o qual, do ponto de vista de Schutlz, permitiu o progresso dahumanidade em um marco de “tempo muito amplo, do estado selvagem,no qual não se distinguia em nada dos animais, até seu nível culturalatual” (Schultz apud Dietrich, 1976, p.116).

A doutrina apresentada por Schultz sustenta-se na idéia de que o homemé antes de tudo social e que deve ser socializado por meio do “trabalhosocial”. Daí afirmar que:

A sociedade, a coletividade de indivíduos, deve ser capaz de

regular conscientemente a produção. Para alcançá-lo, é necessário

que cada membro da sociedade seja educado de maneira tal que

tenha a compreensão total do processo de produção em sua

dimensão social e cultural e em suas relações interiores e

exteriores. (Schultz apud Dietrich, 1976, p.117)

Mas, o trabalho organiza-se com base na divisão técnica e esta é repulsiva.Assim seria necessária uma pedagogia que efetivasse um processo decompreensão dessa condição para suprimir suas características negativas. Acompreensão do processo de trabalho seria o caminho para a superação dosaspectos negativos da divisão técnica e, no mais, Schultz acompanhou apedagogia do norte-americano A. Pabst apresentada no livro O trabalhomanual das crianças na educação atual, publicado em 1907 (Dietrich,1976).

Dietrich considera que

Os fundamentos do ideal socialista de Schultz coincidem

plenamente com as intenções de Marx. Esta concordância

sustenta-se em pressupostos comuns, como “o fundamento

granítico do socialismo científico”. Porém ocorrem divergências

importantes na práxis da educação pelo trabalho, que Schultz

“aburguesou”. Schultz integrou em sua concepção socialista de

escola os imperativos da corrente burguesa8 da escola do trabalho.

(Dietrich, 1976, p.119)

Esta avaliação parece-me imprópria. A proposta de Marx para a educação nãofoi a da “educação pelo trabalho”, no sentido apresentado por Dietrich, umavez que Marx propunha a combinação do trabalho remunerado das criançase jovens de ambos os sexos das classes trabalhadoras com a educação escolar.Para isso seria necessária uma regulamentação do trabalho das crianças ejovens, bem como a construção de escolas onde se efetivasse a educaçãointelectual, física e tecnológica. A proposta de Schultz não vincula o trabalhoprodutivo e/ou remunerado com a educação escolar, pretendendo efetivaruma “educação pelo trabalho” no interior das escolas e para todas as classessociais. Neste sentido assimila a proposta de A. Pabst e deixa de lado asoutras diretivas políticas apresentadas por Marx e aceitas pela AIT.

É preciso notar que, para Marx, não se pode falar de “o trabalho” comouma “entidade sobrenatural”, em si mesma, mas das condições concretas

8 Dietrich assimconsidera a correntepedagógica de“educação pelotrabalho” encabeçadapor A. Pabst.

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nas quais ele se desenvolve. Isto significa considerar que as questõesfundamentais não se encontram na pedagogia, mas nas lutas pelareorganização da vida social sob o capitalismo, bem como adotar uma teoriade revolução muito diversa da praticada “oficiosamente” na social-democracia alemã.

A teoria de revolução social esboçada por Marx considera que asconquistas materiais são um momento do processo de tomada deconsciência dos interesses de classe por parte da própria classe e, nessa luta,o proletariado vai se constituindo em “classe para si”, forma-se como classeefetivamente revolucionária. Por exemplo, ao lutar pela regulamentação dotrabalho infantil e juvenil associada à educação escolar —intelectual, física etecnológica— a classe proletária estaria dando um passo no sentido decolocar-se como dirigente da sociedade atual e futura. Esta pedagogia é apedagogia da luta de classes que educa a classe trabalhadora e o Estado,como vimos mais acima.

Schultz, por seu lado, propunha que a “escola socialista” fosse única,com o objetivo de superar os ramos escolares existentes na Alemanha e,mais importante, dar a mesma educação geral a todas as crianças e jovens.Assim, a “escola única suprimiria, antes mesmo da revolução proletária,as contradições entre as classes, entre a cidade e o campo, entre ricos epobres” (Dietrich, 1976, p.131). Esta posição nada tem em comum com ade Marx, que combinava o trabalho remunerado com a escola que sóinteressaria aos trabalhadores assalariados, deixando às demais classessociais a decisão sobre a educação de seus filhos.

Em resumo, enquanto Marx procurava aprofundar as características doproletariado enquanto classe, os liberais e os sociais-democratas buscavamromper as fronteiras de classes na escola.

Concluindo

As questões que geraram o debate aqui resumido —entre Marx e osanarquistas; entre Bernstein e Rosa Luxemburgo, Parvus, Lenine, Trostky—são, basicamente, as seguintes: qual o caminho para a mudança/revoluçãoda sociedade? E, neste percurso, qual o papel da educação?

Marx, como vimos, não hesitaria em responder que a educação escolarnecessária à classe dos trabalhadores é a que as instrua intelectual, física etecnologicamente, pois os trabalhadores são os “homens novos” requeridospara a sublimação (Aufhebung) da sociedade burguesa. Mas, tal educação sóseria completa caso fosse uma combinação do trabalho produtivo —remunerado— com a escola. Se essa educação não interessar aos filhos dasclasses burguesas e aristocráticas, pior para elas, diria Marx.

Para a realização da educação necessária à classe dos trabalhadoresassalariados é imperativo que se regulamente o tempo de trabalho e asatividades escolares. As escolas fundamentais requeridas pela classeproletária não deveriam ser dirigidas pelos governos, nem pelas igrejas, maspelos próprios trabalhadores. Deveriam ser financiadas por meio ou deimpostos ou taxas, fiscalizadas por inspetores do Estado, regulamentando-sea qualificação dos professores e, finalmente, não deveriam ser o lugar para o

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ensino de qualquer disciplina que implicasse uma “visão de classe”, ou“ideologias”. Ensinar-se-iam as ciências modernas, a gramática, mas não afilosofia, a religião e nem economia política. Estes assuntos seriamrealizados pelos adultos ou em escolas ou outros organismos constituídosautonomamente pelas classes proletárias. Nas escolas para os trabalhadoresseriam ensinadas as diversas tecnologias —seus princípios científicos— tantopor meio de exposições teóricas como práticas. Por certo o “ensino noturno”seria extinto, uma vez que as crianças e jovens trabalhadores poderiamfreqüentar as escolas durante o dia, não ampliando a jornada de trabalhocom a educação escolar, como ocorre em nossos dias.

Para Marx, o “homem novo” já existia: era a classe proletária e suaeducação política se faz nas lutas, nos sindicatos, nos partidos políticos.Tudo o mais, diria, Marx, é metafísica dos “filósofos alemães” que pensaramrevolucionar o mundo na cabeça, como afirmara na obra conjunta comEngels, A Ideologia alemã... A classe proletária necessita desenvolver-seintelectual, moral e fisicamente e, para isso, é preciso que tenha tempo livre,pois o tempo é o campo do desenvolvimento humano.

Não foi assim que entenderam os sociais-democratas que praticaram apolítica recomendada por Bernstein. Eles queriam reformar a sociedadeburguesa à espera das condições culturais necessárias ao socialismo. Paraisso, fundamentaram o “programa (de luta) escolar” na “escola única dotrabalho” que abrangeria todas as classes sociais, produzindo-se as condiçõessubjetivas para a sociedade socialista. Os educandos dessa “nova escola”seriam os “homens novos” necessários à sociedade futura. Seria, então,necessário efetivar compromissos escolares com burgueses e aristocratas,ganhando posições que permitissem a hegemonia social-democrata emalgum momento do processo. Os homens novos não pertenceriam a esta ouaquela classe social, seriam forjados nas escolas socialistas, nas quais nãohaveria qualquer diferenciação entre as classes sociais. O trabalho social, queforjaria esses homens novos, teria por base a “comunidade universal dotrabalho”. A “nova moral”, a eticidade requerida, teria por fundamento oidealismo alemão considerado, pelos sociais-democratas, “verdadeiramentesocialista” e, mesmo, marxista. Neste percurso da social-democracia EduardBernstein teve o mérito de ter sido claro e preciso: rejeitou, explicitamente,as posições de Marx. Em outro lugar da Europa, entre os russos, Bogdânov9

faria o mesmo, constituindo um movimento conhecido como “culturaproletária” — proletkult— que influenciou um jovem italiano: AntonioGramsci.

Gramsci, assim como Bernstein e Bogdânov, desejava construir o homemnovo necessário à sociedade futura, uma vez que não reconhecia nosproletariados existentes as condições morais, ou culturais, para a “grandetarefa da humanidade”. A educação seria conduzida por intelectuaispreparados especialmente para a realização do homem novo requerido pelosocialismo. Retomavam-se, assim, as posições que Marx criticara em suasTeses sobre Feuerbach ao perguntar: quem educa os educadores? Marxmesmo respondera dizendo que só a “práxis revolucionária” educa oshomens, inclusive, é claro, os educadores.

Em suma, enquanto Marx procurava aprofundar as características do

9 Alexandr Bogdânov,pseudônimo deAlexanderAlexandrovichMalinóvski (1873-1928), fundou omovimento “culturaproletária” que teveampla influência naRússia e no exterior.Um dos militantesdeste movimento foiBukarine, com o qualGramsci teve muitasidentidades políticas,até por ter participado,no início de suacarreira, do mesmomovimento na Itália.Um dos poucos estudossobre Bogdânov é o deJutta Scherrer (1984) esugiro sua leitura.

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proletariado enquanto classe social existente e condição para atransformação social, os sociais-democratas buscavam romper as fronteirasdas classes sociais na escola por meio da “escola única do trabalho” e nasociedade (a política de Bernstein), de maneira a constituir a hegemoniasocial-democrata na sociedade existente. Os teóricos sociais-democratasapresentaram e apresentam “o trabalho” como “princípio educativo”,ignorando as posições originais de Marx para o qual o trabalho assalariadodeveria ser abolido.

A libertação concreta dos homens só poderá ocorrer, pensava Marx, pormeio da redução do tempo individual do trabalho socialmente necessário.Logo, a coordenação do trabalho remunerado e regulamentado das criançase jovens com a educação escolar, constitui uma contingência histórica. Nãotem a eternidade de um “princípio” e sim a perenidade de uma dada formade sociedade: a capitalista. Neste sentido, a luta pela regulamentação dotrabalho das crianças e jovens combinada com a educação escolar integrauma luta mais ampla pela redução da jornada de trabalho sem redução dossalários. São movimentos táticos para se alcançar a estratégia geral daabolição do trabalho assalariado e não uma maneira de perpetuar as relaçõesexistentes.

A outra face da moeda é a educação tecnológica das classes proletárias.Esta educação interessa tanto aos trabalhadores quanto a seusempregadores, mas tem-se aqui uma situação contraditória. Os capitalistasnecessitam de trabalhadores qualificados, porém ao qualificá-los, eles setornam mais exigentes e autônomos10 . Esta contradição se resolve naprática pelas lutas no interior da classe dos capitalistas: o mercadoconcorrencial (que é uma luta intraclasse) empurra os capitalistas para oapoio e desenvolvimento da qualificação técnica de seus trabalhadores. Pelolado dos trabalhadores assalariados, a concorrência no mercado da força detrabalho impulsiona a busca da qualificação desejada pelo capital. É por estavia que as escolas são impulsionadas pelas mudanças exigidas pela situaçãoapontada acima. Muda-se a escola, mas o capitalismo permanece íntegro,enquanto modo de produção.

Como, então, pretender que a educação pelo trabalho, ou a educação combase no trabalho como princípio educativo, possa mudar a sociedade?

A resposta dos pedagogos marxistas é que se estaria “construindo ohomem novo”, uma vez que o proletariado existente não apresenta a“consciência revolucionária” requerida (por exemplo, Frigotto, 1989).Assume-se, dessa maneira, que a luta pela transformação social se faz pelaação cultural encabeçada pelos “intelectuais orgânicos” da classe dostrabalhadores. O núcleo dessa posição é: os trabalhadores assalariadosencontram-se obscurecidos pela ideologia dominante e, dessa maneira, nãocompreendem os seus verdadeiros interesses de classe. Para os libertar dessaconsciência subjugada é necessária a intervenção organizada dos intelectuaisorgânicos. Estes são os dirigentes da classe proletária em suas lutas pelalibertação intelectual e social. Tal libertação se faz pela educação político-cultural e, no caso das crianças e jovens de qualquer classe social, pela escolaúnica do trabalho, ou melhor, pela escola única politécnica. A escolaocuparia, então, um lugar privilegiado na transformação social: a de

10 Esta maneira de verse encontra no“programa (de luta)escolar” defendido pelaJuventude SocialistaLivre da Alemanha,escrito por EdwinHoernle (1883-1952). Asequência, porém, nãodeve ser atribuídaàquele autor.

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constituir a hegemonia socialista antes da revolução social.As críticas que Marx apresentou contra os anarquistas e os lassalianos

permite afirmar que ele não seria menos duro com nossos contemporâneosteóricos marxistas da Educação. Estes, afinal, deixam de lado o principal: aredução da jornada de trabalho de crianças, jovens e adultos, condiçãonecessária para o livre desenvolvimento individual. Mais ainda, nas condiçõesconcretas da vida social contemporânea há a possibilidade de se reduzir emmuito o tempo de trabalho individual sem perdas para a produção e semredução dos salários. Esta possibilidade histórica permitiria a constituição deuma sociedade na qual os homens teriam mais tempo livre para sedesenvolverem como bem entendessem. Esta era a esperança de Marx , maso que vemos é a intensificação do trabalho dos que se encontramempregados e o aumento do desemprego e/ou trabalho dito informal. Logo,por um imperativo do capital, os trabalhadores são dispensados, postos detrabalho eliminados um após o outro, sem que se apresentem alternativaspara a realocação dos trabalhadores com redução da jornada de trabalho semredução dos salários.

Parece factível, por outro lado, explicar as posições dos pedagogos que sereivindicam marxistas. Estes teóricos ocupam um determinado lugar social,exercem funções intelectuais como a de professores e, às vezes, a deespecialistas em assuntos culturais e educacionais. Compreendem as relaçõessociais a partir dessa posição social e desconsideram ou ignoram os desejos eanseios dos demais segmentos das classes. Não entendem as razões que osdiversos setores de classe dão para si mesmos para agirem como agem.Assim, por exemplo, ficam escandalizados quando pais trabalhadoressustentam que seus filhos necessitam de uma escola profissional, ou técnica,e não da escola acadêmica. Argumentam que tais trabalhadores são“inconscientemente” burgueses, ou melhor, que estão “dominados pelaideologia burguesa”, são “reformistas”. Não compreendem que, pelo simplesfato de existir uma alta rotatividade nos postos de trabalho, o pai proletáriofica sem horizonte para manter seus filhos por 12 ou mais anos na escola,sem que eles trabalhem ou mesmo “aprendam uma profissão” (Mazzotti &Oliveira, 2000).

Pode-se dizer que tais teóricos produzem explicações unilaterais esociocentradas, fazem revoluções em suas cabeças, como o fizeram os“jovens hegelianos”. A posição desses intelectuais é semelhante à da social-democracia alemã, embora os sociais-democratas se encontrassem em umasituação muito diversa: dirigiam um partido imenso, com um grandeaparato de funcionários, dirigiam sindicatos e tinham um peso políticosignificativo nos organismos do Estado. Ou seja, os sociais-democratasalemães viviam o que supunham ser uma “sociedade alternativa” prontapara assumir o controle social quando o capitalismo entrasse em ruína. Omesmo, certamente, não ocorre com os intelectuais contemporâneos que sereivindicam marxistas.

Talvez hoje, com a “derrocada do stalinismo”, com o fim do “socialismoreal”, com as críticas contemporâneas que se faz à social-democracia,possamos examinar as posições de Marx com maior acuidade, o que muitocontribuiria ao debate sobre as condições necessárias, ainda que não

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suficientes, para uma melhor qualidade de vida humana. Esta requer tempo livrepara que cada um possa desenvolver-se como bem entender, pois o tempo é ocampo do desenvolvimento humano.

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Los pedagogos marxistas contemporáneos proponen la escuela única politécnica comocondición necesaria para la formación del “nuevo hombre” que atienda lo requerido por lasociedad socialista. Esta posición considera que el marxismo necesita una ampliación queincluya la dimensión cultural entre sus temas. Porque el proletariado debe ser educado pararealizar el ideal socialista. Aquí, intento mostrar que esta era la posición de la SocialDemocracia alemana, en el período de la Segunda Internacional y que ella es opuesta a la deMarx. Para éste el hombre nuevo ya existía, era el proletariado, siendo necesario librarlo deltrabajo asalariado, instaurando como medida inmediata la reducción de la jornada detrabajo, ya que el tiempo es condición necesaria para el desarrollo humano. La reducción dela jornada de trabajo sin reducción del valor del salario era considerada crucial para el cambiodel modo de vida. En el mismo movimiento, se requería la reglamentación del trabajo de lasmujeres, niños y jóvenes de ambos sexos, en el último caso combinándola con la educaciónescolar.

PALABRAS CLAVE: Marxismo; educación; trabajadores; antropología cultural.

Recebido para publicação em: 29/11/00. Aprovado para publicação em: 25/06/01.