eixo temÁtico 10: questÕes agrÁria, urbana e...
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EIXO TEMÁTICO 10: QUESTÕES AGRÁRIA, URBANA E AMBIENTAL
MAIN THEME 10: LAND ISSUES, URBAN AND ENVIRONMENTAL “AQUI NA ROÇA NÃO!” – O reassentamento dos atingidos pelo rompimento da Barragem Algodões I como violação de direitos humanos "NOT HERE ON THE FARM!" – the resettlement of those affected by the disruption of the dam Algodões I as human rights violations
Malú Flávia Pôrto Amorim Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Piauí Bolsista FAPEPI, na linha de Territorialidades, Sustentabilidades, Ruralidades e Urbanidades. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí. Especialização em Direito Ambiental e Urbanístico pela Universidade Anhanguera|UNIDERP. Resumo O presente trabalho tem por objetivo analisar a resposta fornecida pelo Estado às vítimas do rompimento da Barragem Algodões I – ocorrido em 27 de maio de 2009, ocasionando a morte de pessoas, a destruição de povoados e o deslocamento de várias famílias, nos municípios de Cocal e Buriti dos Lopes, no Estado do Piauí –, como violação de direitos humanos, ao não considerar as suas particularidades enquanto grupo camponês, habitantes de zona rural. Utiliza-se, para tanto, revisão de literatura, tomando-se o trabalho de Oliveira (2013) como referência para a análise, de onde se pode extrair características da população, os atingidos de Cocal-PI, a partir da observação do autor e de relatos de moradores. Palavras-chaves Campesinato. Direitos humanos. Assentamento Abstract This study aims to analyze the response provided by the State to victims of the breaking of the Barragem Algodões I - occurred on May 27, 2009, causing the death of people, the destruction of villages and the displacement of several families in the municipalities of Cocal and Buriti dos Lopes, State of Piauí -, such as violation of human rights in not considering their particularities while peasant group, rural dwellers. Is used for both literature review, taking the Oliveira's work (2013) as a reference for analysis, which can be extracted population characteristics, the hit of Cocal-PI, from the author's observation and residents reports. Keywords Peasants. Human rights. Settlement
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Introdução
O presente trabalho tem por objetivo questionar a resposta fornecida pelo
Estado às vítimas do rompimento da Barragem Algodões I, relativa à construção dos
assentamentos aos moradores na forma de agrovilas como violação de direitos
humanos. Desse modo, pretende-se analisar como o tratamento às vítimas constituiu
violação de direitos, partindo-se da hipótese de que o Estado deu resposta aos
atingidos sem considerar as suas particularidades enquanto grupo camponês,
residente de meio rural, que possui características de unidade familiar e profunda
ligação com a terra. Assim, as pessoas atingidas pelo rompimento possuem
demandas específicas, de modo que as medidas dispensadas pelo Estado configuram
um tratamento genérico que não atende a seus modos de vida, principalmente no
que tange à construção das unidades habitacionais dos assentamentos, que
desconsidera as histórias de vida e os modos de viver, o que constitui violação de
normas internacionais e nacionais que resguardam os direitos humanos.
Utiliza-se o trabalho de Oliveira (2013) como referência para a análise, de onde
se pode extrair características da população, delimitada aos atingidos de Cocal-PI, a
partir da observação do autor e de relatos de moradores, com base no conceito de
campesinato proposto por Almeida (2007) e Wanderley (2000), não obstante as
dificuldades na conceituação que este último aponta, além da indicação e análise dos
tratados internacionais e legislação nacional que regulam o tema questão.
Construção da Barragem Algodões I e seu rompimento
O início da construção da barragem se deu em 1995, no governo de Francisco
de Assis Moraes Sousa (1995-2001), tendo por objetivo o abastecimento de água da
cidade de Cocal, além de regularizar a vazão do rio Pirangí e realizar aproveitamento
hidro-agrícola das terras à jusante do açude.
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O Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) repassou
recursos para a construção e a obra foi concluída no ano de 2001, aproximadamente,
com capacidade de 51.000 m³ d’água. Contudo, Oliveira aponta, com base na
memória oral de pessoas da região, que a história de Algodões I remonta ao “período
emergencial da seca de 1958, quando se iniciou a construção de um pequeno açude
feito de forma manual” (2012, p. 03).
Cocal situa-se na mesorregião norte e microrregião do litoral do Piauí,
possuindo clima quente tropical com estação seca. Situa-se em área de transição,
fazendo parte do bioma caatinga, mas apresenta também vegetação típica de
cerrado (OLIVEIRA, 2013, p. 16). A construção da barragem Algodões provocou, num
primeiro momento, o deslocamento de 15 famílias, aproximadamente, da área à
montante da barragem (localidade Caldeirão), originando o assentamento
denominado Mutirão do Jacarandá (OLIVEIRA, 2013, p. 27).
O rompimento da Barragem Algodões I ocorreu em 27 de maio de 2009,
ocasionando a morte de pessoas, a destruição de povoados e o deslocamento de
várias famílias, nos municípios de Cocal e Buriti dos Lopes, no Estado do Piauí. O
rompimento da barragem se deu por problemas estruturais, em razão de rachaduras
na sua parede, que não suportou o volume de água. No inverno do ano de 2009, foi
detectado risco de rompimento da barragem, motivo pelo qual o prefeito à época
mandou retirar as pessoas da região e abrigou-as em prédios públicos, fazendo-as
retornar após a apresentação de um laudo técnico afirmando não haver risco de
rompimento (OLIVEIRA, 2013, p. 86) que, contudo, acabou ocorrendo.
População atingida e campesinato
Segundo relatos colhidos por Oliveira (2013), podemos depreender
características da população atingida pelo rompimento da barragem.
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Na conversa, fui informado de que a maioria se compõe de pequenos proprietários que praticam a agricultura de aprovisionamento (MORAES, 2008), pois cultivam com a necessidade de provisão alimentar. Cultivam principalmente milho (Zea mays), feijão (Phaseolus vulgaris) e mandioca (Manihot esculenta), além de praticarem a pequena criação. (OLIVEIRA, 2013, p. 36-37) Seu Zé, do Povoado Franco, diz que a região do vale antes do acidente era muito rica, “tinha plantação de tudo, criação de gado e muitos viventes”, referindo-se a grandes e pequenas criações. (OLIVEIRA, 2013, p. 87) Enquanto conversava com Seu Cesário e D. Maria, vizinhos se aproximavam. Pude perceber serem todos/as conhecidos/as entre si. D Maria já dissera que ali, geralmente, são todos da mesma família. (OLIVEIRA, 2013, p. 91)
A população da região atingida, do meio rural, vivia, em sua maioria, da
agricultura de subsistência e criação de animais, possuindo características do
campesinato, nos termos do que aponta ALMEIDA (2007, p. 167) como algumas de
suas características gerais: tecnologias simples a agrárias, relações sociais localmente
marcadas pela comunidade de parentesco ou de vizinhança, baixo controle sobre a
natureza.
CHAYANOV (apud WOORTMANN, 1995, p. 30-32), ao tratar do grupo
doméstico camponês, ressalta o caráter indivisível da atividade familiar, no cultivo da
terra. Esta, nesse contexto, constitui fator de produção e um patrimônio (valor
moral) da família, devendo ser repassada aos filhos, juntamente com a atividade
agrícola desempenhada pela família. WOLF (apud WOORTMANN, 1995, p. 47), do
mesmo modo, ressalta a importância da terra para a família camponesa, destacando
que a mesma, além de uma unidade econômica, é um lar, carregada de valores
simbólicos, a partir do qual se desenvolve todo o modo de vida característico do
campesinato.
Wanderley (2000, p. 1-2) aponta relevante a relação dos habitantes do campo
com a natureza, por meio de seu trabalho e habitat, e, citando Mendras, as “relações
de interconhecimento”, de que resultam práticas e representações próprias a
respeito do espaço, tempo, família e trabalho, por exemplo. Afirma, ainda, que há
uma análise que faz associação entre o rural e o agrícola, em virtude da dinâmica das
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sociedades modernas, com o desenvolvimento do capitalismo, tornando o camponês
um agricultor, com uma profissão específica e não mais um modo de vida, de modo
que, para esse modo de olhar a questão, haveria uma decomposição do campesinato.
Embora o conceito de camponês encerre problemas, implicando em
generalizações que significam a existência de homogeneidades inexistentes, ainda é
um conceito válido e que pode ser utilizado para descrever a população atingida pelo
rompimento da Barragem Algodões I.
Políticas de assentamento
A problemática em torno da forma de construção dos assentamentos
destinados aos atingidos pelo rompimento da Barragem Algodões I é reflexo da
política de reforma agrária adotada pelo Estado. No caso ora analisado, em relação à
construção dos assentamentos na forma de agrovilas, este tipo de parcelamento da
terra:
[...] consiste na divisão de lotes de moradia e lotes de produção propiciando aos assentados morarem na mesma região do assentamento. Esse tipo de parcelamento torna a construção da infra-estrutura mais barata e aproxima os locais de moradia, facilitando o convívio e possibilitando a criação de áreas comunitárias e de convivência. Porém, os lotes de produção se distanciam. (NOGUEIRA, 2007, p. 36)
O barateamento da infra-estrutura, em razão da proximidade das habitações,
é motivo apontado por Albuquerque (2004, p. 84) para que seja favorecido em
detrimento de outras formas de parcelamento, trazendo benefícios apenas para o
governo, mas não para o agricultor. O autor lista, ainda outras desvantagens:
Além disso, os assentados acreditam que, com a organização em forma de agrovila, suas casas ficam muito distantes da área de criação e plantio, possibilitando o furto de seus pertences e produção, devido à falta de vigilância constante. Isto pode ser exemplificado por expressões do tipo:
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‘a gente viu que fica complicado a gente morar em agrovila e deixar as parcelas distantes de casa’; ‘imagine o cara que mora na agrovila que fica distante do roçado [...] pode ser até o vizinho mesmo, que tem deles que se escoram, que vai na plantação de milho e quebra, e o cabra não sabe quem foi’. Os assentados acreditam que a agrovila é semelhante a uma favela, devido ao aglomerado de casas, e, por conseguinte, favorece o surgimento de problemas de relações interpessoais, como fofocas e brigas de vizinhos, entre outros. (ALBUQUERQUE, 2004, p. 84)
Desse modo, percebe-se que essa forma de organização do assentamento
contrasta com o modo de vida habitual do camponês, como bem assevera D’Aquino,
ao considerar que:
O objetivo principal do camponês não é o lucro, mas a reprodução familiar e a produção da comunidade. Suas práticas contrastam com a do empresário capitalista, embora o negócio e a racionalidade estejam presentes, sempre no contexto da reprodução familiar. Nesse contexto a casa é o centro, o espaço por excelência da construção da vida familiar. (D’AQUINO, 2011, p. 40)
Como já destacado, a terra simboliza para o camponês mais do que um pedaço
de solo, simboliza o lar, o lugar onde se produz e de onde se retira o sustento da
família, realizando o trabalho a seu próprio tempo e modo, sendo também um bem
da família que se espera que seja repassado para as gerações vindouras. Por essa
razão, Caniello e Duqué afirmam que as agrovilas “são altamente incompatíveis com
um modo de vida baseado na autonomia e cuja rusticidade, evidentemente privativa
no cotidiano, se vê ameaçada pelo contato “obrigatório” com um vizinho cuja casa
está a menos de 5 metros de distância” (CANIELLO; DUQUÉ, 2006, p. 638).
Importante destacar o pensamento de D’Aquino (2011), que assevera que as
agrovilas são uma forma de organização bem aceita pelos trabalhadores organizados
pelo Movimento dos Sem Terra – MST, uma vez que estes:
[...] concebem a vida na terra como vida em coletividade, a melhor alternativa para viabilizar a permanência na terra. Embora respeitem o estilo de vida adotado pelos outros trabalhadores, optaram pela organização coletiva da produção e mesmo da vida no assentamento. Tudo é coletivizado: o trabalho, organização de produção e divisão do trabalho,
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a educação das crianças, pensando como parte do projeto grupal de reprodução do assentamento. (D’AQUINO, 2011, p. 40)
Importante considerar que esse modo de viver coletivo é bastante trabalhado
nos acampamentos do MST, de modo que se trata de um grupo habituado a essa
forma de organização antes de ir para os assentamentos, o que não é o caso da
população atingida pelo rompimento da barragem Algodões I, para quem foi imposta
uma forma distinta de reprodução social nos assentamentos a eles destinados após
a ocorrência da tragédia socioambiental.
Resposta do estado como violação de direitos
A população atingida pelo rompimento da barragem de Algodões I,
apresentando características de campesinato, moradores do meio rural, mantinham
um modo de vida característico, como já delineado. Na dissertação de OLIVEIRA há
muitos relatos dos moradores sobre a dificuldade de manter seus modos de vida:
Nesta conversa com Seu Felipe, ele disse haver ‘muita reclamação’ das pessoas que vivem nos assentamentos: ‘lá é muito seco e ruim para plantar’. Inclusive, disse, já havia muita gente voltando para antigas terras, e que não voltaram antes porque ‘o governo não tinha deixado’. (OLIVEIRA, 2013, p. 29)
As casas são muito próximas umas das outras, e muito pequenas. ‘Não dá para criar nem uma galinha que com pouco já está no quintal do vizinho’, diz Seu Zé, do Povoado Franco (OLIVEIRA, 2013, p. 102) No assentamento Jacaré, ‘é difícil fazer roça e criar algum vivente’. Na região de Franco, diz ele [Seu Antônio], “plantava e criava; os animais cresciam fortes e robustos, no assentamento eles não crescem”. Os terrenos no assentamento são muito pequenos e as casas muito próximas umas das outras, o que destoa da realidade e o modo de vida rural ao qual estava acostumado. Como não dá para trabalhar a terra é preciso comprar desde alimentos básicos para subsistência, inclusive, a água para quem não tem recursos para perfurar um poço. (OLIVEIRA, 2013, p. 108)
Oliveira (2013, p. 106-109) aponta a dificuldade na obtenção de água pelas
famílias. Não foram perfurados poços suficientes pelo governo (tendo havido, ainda,
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problemas de manutenção das bombas) e apenas alguns tiveram condição de pagar
de forma privada para perfurar um poço em seus terrenos. Estes fornecem água a
quem não tem, mas a um preço médio de R$ 25,00 (vinte e cinco reais) mensal que,
considerando a renda das famílias, representa uma sobrecarga enorme. Além disso,
há gasto com valor mais elevado com energia elétrica do que costumavam gastar
anteriormente. Algumas crianças precisam caminhar vários quilômetros em razão da
localização do assentamento, longe da escola, e ainda precisam levar uma garrafa de
água para que seja preparada a merenda.
Inicialmente, seriam ouvidas as famílias para atendimento de suas
necessidades, o que não ocorreu. Os povos locais não foram ouvidos nas decisões de
como seriam as casas, os tamanhos dos terrenos e onde seriam construídos,
escolhidos unilateralmente pelo Estado, sem diálogo com os atingidos (OLIVEIRA,
2013, p. 123). Como resultado, foram construídas casas muito pequenas, em terrenos
pequenos, em agrovilas que não exprimem e nem permitem que as famílias
continuem com seu modo de vida. Tratam-se de assentamentos com modelo de
residência tipicamente urbano, que não atende às necessidades das famílias rurais e
não possibilitam atividades de subsistência junto às residências, mas em locais
apartados. Na fala dos moradores percebe-se o descontentamento com as
residências dadas pelo Estado, ao reclamarem que não conseguem mais criar seus
animais nem praticar a agricultura, além de sofrerem com a falta de água. Sobre a
questão,
A realidade nos assentamentos parece ter promovido outro tipo de deslocamento relacionado à própria forma de organização das casas nas agrovilas. Seu Corcino afirma que moradores/as estão vivendo como o se estivessem em um bairro de uma cidade, ou seja, sem praticar suas atividades agrícolas. [...] Agora, na agrovila ninguém pode criar. Porque está todo mundo junto. Considera-se uma cidade, mas o problema é que ele está vivendo como se estivesse na cidade, mas ele não está na cidade! Ele não tem os recursos que a cidade oferece. Ele está recebendo uma casinha [...] ruim, como aquelas das construções que deve medir cerca de vinte e tantos metros quadrados. Nos bairros está bom demais, quer dizer, mas aqui na roça não!
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Ele vai se sustentar com quê? [...] O governo não pensou nisso! (Informação oral, Corcino Medeiros dos Santos, presidente da AVABA apud OLIVEIRA, 2013, p. 103-104)
Além do padrão das casas, há ainda que considerar a infertilidade do solo, que foi
bastante danificado com a tragédia. Desse modo, os moradores não conseguem
praticar a agricultura em seus lotes, comprometendo a manutenção das práticas
sociais constituídas antes do rompimento da barragem, o que tem causado
descontentamento dos moradores.
Nos assentamentos Olho D’água e Massalina o povo está indo embora,
desistindo de viver nos assentamentos, e estão retirando material de cobertura,
telhado, portas e janelas das casas para construir em outros locais, ou vendendo as
casas, pois além da distância, há grave problema de falta de água (OLIVEIRA, 2013, p.
100), entre outros problemas conforme já relatado, considerando, principalmente, a
distância dos lotes de moradia aos lotes de produção, haja vista o hábito dos
moradores de produzirem junto às seus lares, e a impossibilidade de assim o fazerem.
A situação vivenciada pelos atingidos configura uma violação grave de direitos
humanos, cuja declaração universal, de 1948, foi ratificada pelo Brasil com status de
norma constitucional, uma vez que ela estabelece como direito a dignidade humana,
e, para sua manutenção, o direito a moradia, bem-estar, segurança social,
alimentação, saúde, dentre outros. A própria Constituição Federal de 1988 estabelece
esses direitos em seu artigo 5º, afirmando serem todos “iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade”, e artigo 6º, ao dizer que “são direitos sociais a educação,
a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na
forma desta Constituição”. A CF/88 assegura, ainda, no artigo 5º, inciso V, o direito de
resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou
à imagem em caso de violação de direitos, o que os atingidos não obtiveram ainda.
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O Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
ratificado pelo Brasil, e em vigor desde 24 de abril de 1992, elenca como direito, em
seu artigo 11, “um nível de vida adequado para si próprio e sua família, inclusive à
alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria continua
de suas condições de vida”.
Nesse artigo está expresso o direito à moradia adequada. O guia da ONU para
moradia adequada afirma que ela não se limita à própria casa, devendo ser entendida
de forma ampla, levando-se em consideração, inclusive, aspectos culturais do local
onde se encontra e da comunidade que ali habita, tanto no meio urbano quanto rural.
Os assentamentos construídos para os atingidos não atendem a esses fins
adequadamente, uma vez que as moradias não são adequadas para a manutenção
de seus modos de vida e de subsistência, com a impossibilidade de praticar a
agricultura e criação de animais, ausência de escolas, abastecimento de água e saúde.
O guia afirma, ainda, que:
Sempre que possível, prioridade será dada para que a população desalojada temporariamente retorne para o seu local de habitação original. Todas as pessoas, grupos e comunidades têm direito ao reassentamento, que inclui o direito a moradia adequada e terra alternativa de qualidade igual ou superior à original. Os planos de retorno ou reassentamento devem ser desenvolvidos em consulta à população atingida e devem ser amplamente divulgados. (ONU, 2011, p. 21)
Da mesma forma, não foi garantido à população esse direito. Não puderam
retornar a seu local original de habitação, a princípio, e os assentamentos não foram
todos construídos em locais próximos, além de terem recebido terras em qualidade
insuficiente para o plantio. Além disso, devem receber indenização justa;
acomodação alternativa adequada; acesso seguro a alimentação, água potável e
saneamento; serviços médicos essenciais; fontes de renda e pasto para seus
rebanhos; instalações educativas e creches, dentre outras coisas (ONU, 2011, p. 22), o
que não foi garantido. O Estatuto da Terra, Lei nº 4504/64, do mesmo modo,
estabelece:
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Art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei. § 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente: a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; b) mantém níveis satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dos recursos naturais; d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem. [...] § 3º A todo agricultor assiste o direito de permanecer na terra que cultive, dentro dos termos e limitações desta Lei, observadas sempre que for o caso, as normas dos contratos de trabalho.
Desse modo, a resposta do Estado não assegurou os direitos garantidos no
ordenamento jurídico pátrio. O tratamento garantido pelo ordenamento jurídico
pátrio, desse modo, na resposta do Estado, ao desconsiderar as particularidades dos
modos de vida da população atingida, acarretou violação de direitos humanos.
Conclusão
Percebe-se como uma violência inserir as famílias atingidas pelo rompimento
da barragem Algodões I em casa pequenas, que não comportam de forma
confortável as famílias, em terrenos pequenos e impróprios para a prática da
agricultura e criação de animais, retirando-lhes ou dificultando-lhes a possibilidade de
continuarem seus modos de vida.
Embora haja previsão legal para o atendimento das necessidades das vítimas
em casos como o ocorrido, o Estado forneceu uma resposta mais conveniente para
si, com a construção de assentamentos num modelo de parcelamento de solo menos
oneroso, mas que não se relaciona com as pretensões das vítimas, que sequer foram
ouvidas nesse processo.
Nesse sentido, não houve qualquer preocupação do Estado com o modo de
vida dessas pessoas nem com suas identidades, desconsiderando a particularidade
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de um grupo social oriundo do meio rural, com características de população
camponesa. Desse modo, observa-se que o Estado não procurou garantir aos
atingidos pelo rompimento da barragem Algodões I uma moradia adequada, direito
fundamental garantido, o que consistiu, por si só, em mais uma violência imposta às
vítimas da tragédia socioambiental.
Referências ALBUQUERQUE, Francisco José Batista de; COELHO, Jorge Artur Peçanha de Miranda; VASCONCELOS, Tatiana Cristina. (1999). As políticas públicas e os projetos de assentamento. Estudos de Psicologia, 2004, 9(1), 81-88. ALMEIDA, Mauro Wiliam Barbosa de. Narrativas agrárias e morte do campesinato. In: Ruris, v. 1, n. 2, Campinas: Unicamp, setembro/2007, p. 157-188. Disponível em: <http://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/ruris/article/viewFile/656/523>. Acesso em: 15 abr 2015. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. BRASIL. Decreto no 591, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 jul. 1992. BRASIL. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Dispõe sobre o Estatuto da Terra, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 nov. 1964. CANIELLO, Márcio; DUQUÉ, Ghislaine. Agrovila ou Casa no Lote: A Questão da Moradia nos Assentamentos da Reforma Agrária no Cariri Paraibano. Revista Econômica do Nordeste, Fortaleza, v. 37, nº 4, out-dez. 2006, p. 629-641. D’AQUINO, Teresinha. A casa, os sítios e as agrovilas: uma poética do tempo e do espaço no assentamento das terras de Promissão – SP. In: Assentamentos rurais e cidadania: a construção de novos espaços de vida / Mirian Cláudia Lourenção Simonetti, organizadora. – São Paulo: Cultura Acadêmica; Marília: Oficina Universitária, 2011, pp. 15-52. NOGUEIRA, Renata Fernandes. A organização sócio-espacial do Assentamento Olga Benário. [2007] 63 f. Dissertação (Universidade Federal de Viçosa). Viçosa: 2007.
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RACIONALIDADE AMBIENTAL, CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS E TERRITÓRIO
ENVIRONMENTAL RATIONALITY, CONFLICT ENVIRONMENTAL AND TERRITORY
Adriana de Magalhães Chaves Martins Eng. Agrônoma (ESALQ/USP), licenciada em Ciências Agrárias (ESALQ/USP), especialista em Extensão Rural para o Desenvolvimento Sustentável (UFRPE), cursando Mestrado no Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Territorial e Políticas Públicas (PPGDT) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), desenvolvendo pesquisas nas áreas de questão agrária, políticas agrícolas e extensão rural. Resumo Este trabalho, baseado em referencial teórico, tem o objetivo de identificar as relações existentes entre a racionalidade ambiental, os conflitos socioambientais e território. Enquanto a natureza coevolui de forma sustentável com grupos indígenas e camponeses que conservam a biodiversidade com seus sistemas agrícolas, os impactos ambientais causados pelo crescimento econômico e pela desigualdade social atingem desproporcionalmente alguns grupos sociais e territórios, principalmente dos países do Sul. Esses impactos não têm sido solucionados por políticas econômicas ou inovações tecnológicas. Alguns grupos sociais impactados protestam e resistem. Camponeses, indígenas, extrativistas lutam para sobreviver e manter seus territórios e culturas. Nesta luta reinventam suas identidades e racionalidades ambientais. As políticas públicas são instrumentos importantes para promover estes modos de vida e produção ou para negá-los. Nesse sentido, o discurso e as políticas de desenvolvimento sustentável podem ser estratégias de transição para a sustentabilidade e ajudar a desconstruir a racionalidade meramente econômica do mundo. Palavras-chave Agroecologia. Desenvolvimento Sustentável. Povos e Comunidades Tradicionais. Políticas Públicas; Meio Ambiente. Abstract This work, based on theoretical framework, aims to identify the links between environmental rationality, social conflicts and territory. While the nature coevolves in a sustainable way with indigenous and peasant groups that conserve biodiversity with its agricultural systems, the environmental impacts caused by economic growth and the social inequality reach disproportionately few social groups and territories, mainly from the countries of the South. These impacts have not been solved by economic policies or technological innovations. Some impacted social groups protest and resist. Peasants, indigenous, communities struggle to survive and maintain their territories and cultures. In this fight they are reinventing their identities and rationalities. Public policies are important instruments to promote these life and production styles or to deny them. In that sense, the speech and the sustainable development policies can be transitional strategies for sustainability and help deconstruct rationality economic purposes in the world. Keywords Agroecology. Sustainable Development. Traditional peoples and communities. Public Policies. Environment.
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Introdução
Este trabalho, realizado com base em referencial teórico, tem o objetivo de
identificar as relações existentes entre a racionalidade ambiental, os conflitos
socioambientais e o território.
O trabalho está dividido em 05 seções. A primeira trata-se desta breve
introdução, seguida pelo desenvolvimento dos diferentes temas que serão tratados.
Desta forma, a segunda seção aborda o tema racionalidade ambiental; a terceira
seção trata do tema conflitos socioambientais e a quarta seção trata da
territorialização da racionalidade ambiental. Por último, a quinta seção traz algumas
conclusões ao que se segue as referências utilizadas.
Desenvolvimento
Racionalidade ambiental
As ideias de Garrett Hardin, publicadas em 1969 no livro “A Tragédia dos
Comuns”, foram amplamente aceitas neste período. Tratavam-se da superpopulação
e da sobre-exploração dos recursos naturais de propriedade comum, tais como
oceanos, atmosfera, rios e parques, que estariam sujeitos à degradação devido à sua
forma de gestão comunal. Hardin se fundamentou em conceitos como capacidade
de carga para explicar uma situação hipotética onde solicitou ao leitor que
imaginasse o que ocorreria aos recursos de uma comunidade se cada um de seus
membros adicionasse um animal a seu rebanho. Desta forma demonstrou a
divergência entre a racionalidade individual e coletiva. O aumento dos lucros
individuais levaria a uma tragédia coletiva. Esta tragédia seria evitada via privatização
ou estatização destes recursos (FEENY et al., 2001). “Hardin tem sido amplamente
citado por ter afirmado que a degradação de recursos é inevitável, a não ser que a
propriedade comum seja convertida em privada ou que normas governamentais a
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usos e usuários sejam instituídas” (FEENY et al., 2001, p.18). Já na década de 1980
foram realizados estudos que encontraram “evidências relevantes ao manejo de
recursos de propriedade comum” (FEENY et al., 2001, p.19).
Recursos de uso comum possuem uma característica que é a dificuldade de
controle de acesso para a manutenção da exclusividade, que é custoso ou mesmo
impossível de ser realizado. Outra característica do uso comum é que, devido à
natureza dos recursos em questão, o uso realizado por um indivíduo compromete o
uso realizado pelos demais. Assim, recursos de propriedade comum são definidos
como “uma classe de recursos para a qual a exclusão é difícil e o uso conjunto envolve
subtração” (BERKES et al., 1989, p.91 apud FEENY et al., 2001, p.20, grifo dos autores).
Ostrom (1986 apud FEENY et al., 2001) salienta a importância de distinguir a
natureza intrínseca dos recursos naturais do regime de direito à propriedade sob os
quais são manejados estes recursos. Feeny et al. (2001) estabeleceram quatro
categorias de análise (tipos analíticos ideias) de direito de propriedade onde são
manejados recursos de uso comum: livre acesso, propriedade privada, propriedade
comunal e propriedade estatal. O livre acesso é aberto a qualquer pessoa inexistindo
direito de propriedade. A propriedade privada é reconhecida e imposta pelo Estado,
o direito de excluir terceiros é outorgado a indivíduos e geralmente são exclusivos e
transferíveis. Na propriedade comunal uma coletividade identificável maneja os
recursos naturais, excluindo indivíduos de fora e regulando o uso destes recursos,
que internamente são disponíveis de forma igualitária. Na propriedade estatal os
recursos são do Estado que define sobre a natureza e nível de exploração (FEENY et
al., 2001).
Segundo Feeny et al. (2001), a natureza dos direitos de uso de propriedade é
um importante componente para entender os comportamentos e resultados sobre
os usos dos recursos naturais, porém, estas informações são insuficientes para gerar
uma conclusão definitiva sobre estes comportamentos e formas de uso. Estes
autores testaram a veracidade da hipótese de Hardin por meio da análise de dois
fatores: 1) a exclusão de outros usuários e 2) a regulação do uso dos recursos e dos
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usuários. Estes fatores são medidos de acordo com sua “sustentabilidade” ou da
possibilidade das futuras gerações satisfazerem suas necessidades.
Com relação às evidências encontradas que dizem respeito ao fator exclusão,
no regime de livre acesso ficou constatada a degradação devido à impossibilidade de
regulação do acesso ao manejo dos recursos. O regime de propriedade privada
geralmente possibilita a exclusão, porém há exceções. O direito à propriedade
privada nem sempre garante o uso eficiente dos recursos naturais. Além disso a
exclusão por meio da propriedade privada implica em coerção, nem sempre eficiente.
No regime de propriedade comunal a regra é o sucesso na exclusão daqueles que não
fazem parte da coletividade. A pressão sobre os recursos naturais causados pelo
aumento populacional, mudanças tecnológicas ou influências de mercado são
verificadas no sistema de propriedade comunal e em outros, além de existirem
outros fatores associados. Há outros aspectos que podem afetar o sistema de
propriedade comunal, tais como interferências políticas, reformas agrárias que não
consideram o sistema comunal pré-existente entre outros. Já o regime de
propriedade estatal tem sido suficiente para garantir a exclusão, em alguns casos.
Porém há vários casos onde este fato não ocorreu e onde as áreas estatais passaram
a ser interpretadas pela população como de livre acesso. Além disso, assim como há
locais onde o livre acesso é visto como correto, há também locais onde os governos
são suscetíveis ao interesse das elites. Há exemplos considerados como “Tragédia
dos Comuns” que seriam melhor explicados como “falhas administrativas” (FEENY
et al., 2001, p.26). Assim, conforme observado, “a exclusão é possível, mesmo que
nem sempre bem sucedida, sob regimes privados, estatais e de propriedade
comunal. Adicionalmente, a propriedade privada ou estatal nem sempre é suficiente
para permitir a exclusão” (FEENY et al., 2001, p.26).
Com relação às evidências que dizem respeito ao fator de regulação do uso
dos recursos e dos usuários, no regime de livre acesso é possível verificar a extinção
de espécies em situações onde a demanda extrapola a capacidade de regeneração,
onde haja tecnologias que permitem a exploração em grande escala e onde
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mudanças culturais ou arranjos institucionais não puderam ocorrer antes da
degradação. Já no regime de propriedade privada há diversos motivos tanto
relacionados aos custos e benefícios que podem impedir uma exploração destrutiva
dos recursos naturais. Porém, é necessário que esta exploração do recurso seja
economicamente viável, o que não ocorre para todos os casos. Os recursos que não
ofereçam taxas de retorno interessantes ao empreendedor, atendendo-se
simplesmente a esta lógica estariam sujeitos à degradação. No caso do regime de
propriedade comunal há abundantes evidências comprovando a “habilidade de
grupos sociais em elaborar, utilizar e adaptar mecanismos muitas vezes nativos de
alocação de direitos de uso entre seus membros” (FEENY et al., 2001, p.28). As
comunidades são capazes de se organizar e monitorar os recursos de que fazem uso
coletivamente, garantindo sua sustentabilidade. Em determinadas circunstâncias, as
“ações coletivas voluntárias são viáveis e efetivas” (FEENY et al., 2001, p.30). O
regime de propriedade estatal permite ordenar apropriadamente o uso dos recursos
e determina o que é de interesse público e atribui responsabilidades, mas não
assegura o uso sustentável. Assim, em relação ao manejo dos recursos, as evidencias
mostram que “propriedade comunal, propriedade privada e propriedade
governamental têm sido, todas, associadas tanto ao sucesso quanto ao fracasso”
(FEENY et al., 2001, p.31). Assim, o modelo de Hardin pode ser considerado
simplificado e reducionista sendo necessário incluir o manejo de recursos naturais
sob regime de propriedade comunal e considerar a presença ou ausência da auto-
organização dos seus usuários para trazer uma maior compreensão sobre os recursos
de propriedade comum (FEENY et al., 2001).
Conflitos socioambientais
Segundo as ideias de Alier (2014, p.21), o movimento ecologista ou
ambientalista pode ser distinguido em três principais vertentes ou correntes relativas
à preocupação e ativismo ambientais: “‘o culto ao silvestre’, o ‘evangelho da
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ecoeficiência’ e o ‘ecologismo dos pobres’”, que apresentam diferenças mas também
elementos comuns.
O ‘culto ao silvestre’ ou ‘à vida selvagem’, [é] preocupado com a preservação
da natureza silvestre, sem se pronunciar sobre a indústria ou a urbanização,
mantendo-se indiferente ou em oposição ao crescimento econômico, muito
preocupado com o crescimento populacional e respaldado cientificamente pela
biologia conservacionista. O ‘credo da ecoeficiência’, [é] preocupado com o manejo
sustentável ou ‘uso prudente’ dos recursos naturais e com o controle da
contaminação, não se restringindo aos contextos industriais, mas também incluindo
em suas preocupações a agricultura, a pesca e a silvicultura. Essa corrente se apoia
na crença de que as novas tecnologias e a ‘internalização das externalidades’
constituem instrumentos decisivos da modernização ecológica. Essa vertente está
respaldada pela ecologia industrial e pela economia ambiental. O movimento pela
justiça ambiental, o ecologismo popular, o ecologismo dos pobres, [são] nascidos de
conflitos ambientais em nível local, regional, nacional e global causados pelo
crescimento econômico e pela desigualdade social. Os exemplos são os conflitos pelo
uso da água, pelo acesso às florestas, a respeito das cargas de contaminação e o
comércio ecológico desigual, questões estudadas pela ecologia política. Em muitos
contextos, os atores de tais conflitos não utilizam um discurso ambientalista. Essa é
uma das razões pelas quais a terceira corrente do ecologismo não foi, até os anos
1980, plenamente identificada (ALIER, 2014, p.38-39).
Um fator de união entre as correntes
[...] é a existência de um poderoso lobby antiecologista, possivelmente mais forte no Sul do quer no Norte. No Sul, os ambientalistas são em muitas ocasiões atacados pelos empresários e pelo governo (e pelos remanescentes da velha esquerda), considerados serviçais de estrangeiros cujo objetivo é estancar o desenvolvimento econômico (ALIER, 2014, p.39, grifo do autor).
A terceira corrente assinala os impactos ambientais causados pelo
crescimento econômico e destaca que as fontes de recursos são deslocadas
geograficamente das áreas de descarte dos resíduos, sendo que “os países
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industrializados dependem de importações provenientes do Sul para atender parcela
crescente e cada vez maior das suas demandas por matérias-primas e bens de
consumo” (ALIER, 2014, p.34). Assim, as fronteiras de exploração mineral e agrícola
se expandem para novos territórios gerando impactos que não tem tido soluções em
“políticas econômicas ou por inovações tecnológicas e, portanto, atingem
desproporcionalmente alguns grupos sociais que muitas vezes protestam e resistem
(ainda que tais grupos não sejam denominados de ecologistas)” (ALIER, 2014, p.34).
O eixo central dessa corrente decorre de seu “interesse material pelo meio
ambiente como fonte de condição para a subsistência [...]. Sua ética nasce de uma
demanda por justiça social contemporânea entre os humanos” (ALIER, 2014, p.34)
assinalando a coevolução sustentável de grupos indígenas e camponeses com a
natureza, conservando a biodiversidade por meio de seus complexos sistemas
agrícolas, variedades de sementes, plantas medicinais e conhecimentos tradicionais,
o que tem gerado um crescente orgulho por seus conhecimentos agroecológico nas
suas organizações representativas que incluem movimentos de base camponesa, de
pescadores artesanais, de comunidades afetadas por contaminações de fábricas
porque vivem a jusante de rios onde são depositados resíduos destes
empreendimentos, entre outros.
Por outro lado, nos Estados Unidos, a justiça ambiental gerou um movimento
social organizado no início dos anos 1980, com fortes vínculos com os direitos civis,
na luta contra casos de “racismo ambiental” que atingem as minorias da população
deste país. Enquanto “a justiça ambiental como um movimento organizado
permaneceu limitado ao seu país de origem” (ALIER, 2014, p.35) o ecologismo
popular ou ecologismo dos pobres constituiram “movimentos do Terceiro Mundo
que lutam contra os impactos ambientais que ameaçam os pobres” (ALIER, 2014,
p.35), que são a maioria da população, em muitos países.
Essa terceira corrente está crescendo em nível mundial pelos inevitáveis conflitos
ecológicos distributivos. À medida que se expande a escala da economia, mais
resíduos são gerados, mais os sistemas naturais são comprometidos, mais se
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deterioram os direitos das gerações futuras, mais o conhecimento dos recursos
genéticos é perdido. Alguns grupos da geração atual são privados do acesso aos
recursos e serviços ambientais, e sofrem muito mais com a contaminação. As novas
tecnologias talvez possam reduzir a intensidade da utilização de energia e de
matérias-primas por parte da economia. Mas somente depois de já terem causado
muita destruição, sem contar que com isso podem desencadear um ‘efeito Jevons’1.
Não fosse suficiente, as novas tecnologias implicam muitas vezes ‘surpresas’ [...]. Da
forma como o problema está colocado, as novas tecnologias não representam
necessariamente uma solução para o conflito entre a economia e o meio ambiente.
Pelo contrário, perigos desconhecidos incorporados às novas tecnologias
engendram em muitos momentos conflitos de justiça ambiental (ALIER, 2014, p.36).
Ambas, tanto a justiça ambiental quanto o ecologismo dos pobres tem se
beneficiado de “ciência participativa”, ou de uma “ciência com pessoas” (ALIER,
2014, p.36), por meio de um diálogo de saberes. A convergência entre ambos leva ao
entendimento de que são integrantes de uma só corrente. Nos Estados Unidos a
justiça ambiental poderia ser vista como “O ecologismo dos pobres e as minorias”,
contudo, o ecologismo dos pobres preocupa-se com a maioria da humanidade, com
aqueles que, na contramão, dispõe de relativamente pouco espaço ambiental; que
têm gerenciado sistemas agrícolas e agroflorestais sustentáveis; que realizam um
aproveitamento prudente dos depósitos temporários e sumidouros de carbono; cuja
subsistência está ameaçada por minas, poços de petróleo, barragens,
desflorestamento e plantations florestais para alimentar o crescente uso de energia
e matérias-primas dentro ou fora dos seus próprios países (ALIER, 2014, p.37-38).
1 William S. Jevons (1835-1882), economista britânico, “em 1865, escreveu em seu livro sobre o carvão, assinalando que uma maior eficiência das máquinas a vapor poderia, paradoxalmente, respaldar uma utilização ampliada do carvão ao baratear seus custos de produção” (ALIER, 2014, p.27).
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Territorialização da racionalidade ambiental
Segundo Leff (2000) a racionalidade ambiental se manifesta de forma
concreta nos territórios em que haja um potencial ecológico que permita uma alta
produtividade primária capaz de ser conduzida culturalmente num processo de
manejo múltiplo e seletivo dos ecossistemas produtivos, ou agroecossistemas. Desta
forma, o potencial produtivo é dado pela organização dos ecossistemas e a
criatividade cultural preenche de significados e orienta a produção.
A construção social de uma racionalidade ambiental é sua territorialização em
espaços bioculturais, onde a cultura não só ressignifica e imprime seus valores
culturais nos seus processos de intervenção sobre a natureza, como também onde
os direitos culturais à natureza se traduzem em movimentos sociais de reapropriação
da natureza, em processos de r-existência fundados nos princípios da
sustentabilidade (LEFF, 2000, p.357).
Nesta perspectiva, o discurso e as políticas de desenvolvimento sustentável
são estratégias de transição para a sustentabilidade e guiam a desconstrução da
racionalidade meramente econômica do mundo (LEFF, 2000).
Construir a sustentabilidade impõe três desafios ao processo de globalização
econômica:
a) conservar a biodiversidade e os equilíbrio ecológicos do planeta e aumentar seu potencial produtivo; b) reconhecer e legitimar a democracia, a participação social, a diversidade cultural e a política da diferença na tomada de decisões e nos processos de apropriação social da natureza; c) repensar o conhecimento, o saber, a educação, a capacitação e a informação da cidadania na perspectiva de uma racionalidade ambiental. Nesta perspectiva se inscrevem as exigências que os povos indígenas e as comunidades camponesas colocam aos estados nacionais da região latinoamericana: a) o respeito e apoio aos modos de produção e aos estilos de manejo dos recursos naturais; b) o respeito aos seus saberes e sua expressão em sistemas de educação interculturais; c) o reconhecimento e o pleno exercício de seus direitos cidadãos, incluindo seus direitos consuetudinários e as formas de eleição das autoridades locais e regionais; d) o estabelecimento de estatutos comunais e regionais de autonomia, o pleno exercício de suas línguas, a recuperação e a prática das religiões ancestrais ou originárias, sem prejuízo do acesso à ciência moderna e à informação do mundo contemporâneo, sempre que assim considerarem autonomamente pertinente (LEFF, 2000, p. 357-358).
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Incorporar a cultura à sustentabilidade amplia as possibilidades de
alternativas aos problemas derivados da globalização e da construção de um novo
paradigma de desenvolvimento e abre a humanidade à uma ética que respeita as
diferenças e as legitima. Esta ética permite uma articulação entre os saberes
científicos e tradicionais, que pode se configurar em duas vias: “da privatização do
conhecimento e capitalização do saber; de outro, a apropriação coletiva e
comunitária dos saberes” (LEFF, 2000, p. 358). A primeira tendência toma forma por
meio das alternativas geradas pela economia ambiental (riqueza genética, valores
cênicos, captura de carbono) e a segunda por meio do intercâmbio camponês-
camponês e da agroecologia entre outros.
Técnicos, lideranças, camponeses, indígenas, muitas vezes organizados em
redes, vêm estabelecendo projetos locais e regionais que buscam a sustentabilidade,
valorizando a participação, os seus saberes, o patrimônio natural e cultural. Esses
processos autogestinários “partem dos saberes locais e mobilizam novos atores
sociais na construção e territorialização de uma racionalidade ambiental” (LEFF,
2000, p. 361).
O encontro de um paradigma de produtividade ecotecnológica e dos princípios da
racionalidade ambiental com os movimentos emergentes de grupos indígenas e
camponeses por sua r-existência cultural e a reapropriação social da natureza abre
novas perspectivas de sustentabilidade (LEFF, 2000, p. 371).
Essas populações vêm defendendo seus modos de produção e de vida para
superar a miséria a que foram impelidas e ao fazer isso garantem benefícios à
humanidade ao preservar recursos ambientais e culturais ameaçados por uma visão
que privilegia os interesses estritamente econômicos. Sem que haja políticas públicas
para promover estes modos de vida e produção e por outro lado, havendo políticas
que impactam negativamente estas populações, são criados obstáculos à
consolidação de suas formas de vida a partir de seus próprios recursos ambientais e
culturais. Assim, é necessário que estes atores sejam envolvidos em estratégias para
a sustentabilidade que observem escalas mais ampliadas, o que complexifica o
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relacionamento “entre os atores e os critérios de tomada de decisão às escalas local,
nacional e global de maneira que a produtividade sustentável dos ecossistemas, a
diversidade cultural e a equidade social se convertam em pilares de outra
racionalidade” (LEFF, 2000, p. 376).
As experiências recentes dos movimentos sociais no Brasil e na América Latina
mostram a enorme capacidade criativa das comunidades para lidar com situações
novas e portanto abertas, reinventando suas vidas, suas histórias e suas geografias
frente à razão instrumental utilitarista através da qual a economia global busca
penetrar em seus espaços geográficos e em seus territórios socioculturais (LEFF,
2000, p. 377).
Seringueiros, ribeirinhos, camponeses, indígenas têm reinventado suas
identidades e racionalidades ao r-existirem na luta pela sua sobrevivência e
manutenção de seus territórios e culturas, manejando os recursos presentes em seus
territórios, por vezes, de forma comunal (LEFF, 2000).
Conclusão
Conforme pudemos observar, a primeira e segunda racionalidades ambientais
em questão dizem respeito, respectivamente, ao direito de acesso para o uso dos
recursos naturais e ao ordenamento das formas de utilização ou manejo. Nesta
racionalidade estão implícitos o entendimento que se tem sobre o direito à
propriedade (da terra ou território) e a capacidade dos usuários em estabelecer
critérios válidos para a utilização sustentável destes recursos.
A natureza do direito de usar a propriedade é importante para entender de
que formas os recursos são utilizados, se convém ou não ao proprietário conservá-
los. Porém há outros aspectos igualmente importantes, diretamente relacionados à
gestão desses recursos, um que diz respeito à regulação dos recursos e dos usuários
e outro que diz respeito à exclusão de quem não tem o direito de usufruir desses
recursos. A regulação do acesso, ou a exclusão, apesar de ser possível nos regimes
de propriedade privada, estatal e também comunal, nem sempre são bem sucedidas,
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portanto o regime da propriedade não é suficiente para determinar a exclusão por si
só.
Em relação ao manejo dos recursos, todas essas modalidades de regime de
propriedade têm sido associadas tanto ao sucesso quanto ao fracasso. Desta forma,
o manejo dos recursos naturais em propriedades comunais com a auto-organização
de seus usuários são fatores que precisam ser considerados, ou seja, não são
desprezíveis, na análise sobre o manejo e sustentabilidade dos recursos naturais.
Por outro lado, enquanto a natureza coevolui de forma sustentável com grupos
indígenas e camponeses que conservam a biodiversidade por meio de seus complexos
sistemas agrícolas promovidos por seus conhecimentos tradicionais, os impactos
ambientais causados pelo crescimento econômico e pela desigualdade social atingem
desproporcionalmente alguns grupos sociais e territórios, principalmente dos países
do Sul, onde se concentram as fronteiras de exploração mineral e agrícola para o
suprimento das demandas geradas pelos países mais industrializados e pelas classes
sociais com maior poder de consumo.
Esses impactos não têm sido solucionados, de forma satisfatória, por políticas
econômicas ou inovações tecnológicas. Apesar disso, alguns grupos sociais
impactados, muitas vezes protestam e resistem, apesar de não se denominarem ou
serem denominados ecologistas, já que seu interesse pelo meio ambiente se dá
devido a um aspecto material relativo à condição para a sua subsistência e a sua ética
provém da demanda por justiça social entre os seres humanos.
Camponeses, indígenas, extrativistas, ao lutarem para sobreviver e manter
seus territórios e culturas, por vezes reinventam suas identidades e racionalidades
manejando os recursos presentes em seus territórios de forma comunal. Essa
racionalidade ambiental, gestada na criatividade cultural desses povos e grupos
subalternizados, se fortalece ao trocar e articular seus saberes com os saberes
científicos, e ao se manifestar de forma concreta nos territórios manejados de forma
a construir caminhos possíveis para uma sustentabilidade que incorpore a
manutenção dos recursos naturais; que valorize a diversidade étnica, cultural; que
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garanta a autonomia e auto-gestão dos povos; que enxergue, na sociedade, no
ambiente e na cultura valores para além daqueles estritamente econômicos.
As políticas públicas são instrumentos importantes para promover estes
modos de vida e produção ou para negá-los. Assim, é importante que estes atores
sejam envolvidos em estratégias em escalas mais amplas, que visam esta
sustentabilidade. Nesse sentido, o discurso e as políticas de desenvolvimento
sustentável podem ser estratégias de transição para a sustentabilidade e ajudar a
desconstruir a racionalidade meramente econômica do mundo.
Referências
ALIER, Joan Martínez. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. [tradutor Maurício Waldman]. 2 ed. 1 reimpressão. São Paulo: Contexto, 2014.
FEENY, David et al. A tragédia dos comuns: vinte e dois anos depois. André de Castro C. Moreira (Trad.) In: DIEGUES, A. C.; MOREIRA, A. C. C. (Org.). Espaços e recursos naturais de uso comum. São Paulo: NUPAUB-USP, 2001. p. 17-42.
LEFF, Enrique. Além do desenvolvimento sustentável: a territorialização da racionalidade ambiental. In: LEFF, E. Ecologia, capital e cultura: racionalidade ambiental, democracia participativa e desenvolvimento sustentável. Blumenau: Edifurb, 2000. Capítulo 10. p. 356-408.
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POLÍTICAS PÚBLICAS NO SERTÃO URBANO CEARENSE: Sobral/CE em evidência
PUBLIC POLITICS IN URBAN HINTERLAND CEARENSE: Sobral/CE in evidence
Juscelino Gomes Lima Graduado em Geografia pela UFPI – 2009. Graduado em Letras Português pela UESPI – 2007. Especialista em Literatura Brasileira pela UESPI – 2008. Especialista em Turismo e Meio Ambiente pela UECE – 2011. Mestre em Geografia pela UEVA de Sobral em 2014. Atualmente, sou aluno matriculado em curso de Doutorado em Desenvolvimento Regional e Urbano, pela UNIFACS, na cidade de Salvador/BA.
a
Resumo O presente texto busca apontar a trajetória de constituição de políticas públicas, com vistas à organização espacial urbana do interior do estado do Ceará, notadamente, com reflexos sobre a cidade de Sobral. A visualização destas ações iniciadas ainda na década de 1970 e aprofundadas no limiar dos anos de 1990 dá luz de entendimentos sobre as dinâmicas de transformações urbanas nesta cidade em momento atual, fato que tem feito desta, em ambiente sertanejo cearense, uma cidade de representatividade e notoriedade para os investidores, momento em que sua imagem é reelaborada e nesse ínterim, também a dos espaços urbanos sertanejos a ela adjacentes e influenciados. Para o alcance deste objetivo, dialogou-se com autores referendados nas temáticas em discussão. Assim, observa-se que o dinamismo alcançado por Sobral, em espaços secos do Ceará perpassa além de sua remodelação territorial: também de seu conteúdo, marcado por novas condições e contradições socioespaciais. Palavras Chave Cidade sertaneja. Sobral. Políticas públicas. Organização do espaço. Abstract This paper seeks to identify the trajectory of formation of public policy, with a view to urban spatial organization in the state of Ceará, in particular, with reflections on the city of Sobral. The visualization of these actions started in the 1970s and depth at the threshold of the 1990s gives light on understanding the dynamics of urban transformations in this city in the present moment, a fact that has done this in backcountry environment Ceará, a city of representativeness and notoriety for investors, at which your image is reworked and in the meantime, also the hinterland of urban spaces adjacent to it and influenced. To reach this objective, dialogued with authors endorsed the themes under discussion, in addition, an exhibition of preliminary results that has been building in dissertation work that also fosters discussions that perspective. Thus, it is observed that the momentum achieved by
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Sobral, Ceará in dry permeates beyond its territorial remodeling: also its contents, marked by new socio-spatial conditions and contradictions. Keywords City Bluegrass. Sobral. Public Politics. Organization of space.
Introdução
Localizando a cidade de Sobral/CE no contexto das transformações urbanas
brasileiras, particularmente, as que inserem-se no rol das denominadas cidades
médias, há de se perceber que seu arranjo no momento atual é fruto de uma
amalgamação de valores construídos em tempo pretérito e que acumulou condições
para refletir seu presente e desenhar seu futuro.
Nesse direcionamento, a urbe sobralense apresenta-se transformada
dinamicamente pelo viés capital, e como tantas outras de seu leque classificatório e
dentro de seu quadro regional, vêm desempenhando “um papel político, econômico
e social de crescimento para toda uma região” (SPOSITO, 2009, p.19), fato que tem
redimensionado consequências sobre sua forma, conteúdo e organização espacial.
Nesse ínterim, a presente comunicação objetiva apontar a trajetória de
constituição de políticas públicas, com vistas à organização espacial urbana do
interior do estado do Ceará, notadamente, com reflexos sobre a cidade de Sobral.
Para o alcance deste objetivo, dialogou-se com autores referendados nas temáticas
em discussão. Assim, o artigo é constituído de três seções: (i): Introdução; (ii) Sobral:
Políticas públicas e produção do espaço urbano na cidade de Sobral: trajetórias e
novas funcionalidades no sertão norte cearense; (iii) Considerações finais; Finaliza a
composição, a listagem das referências bibliográficas.
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POLÍTICAS PÚBLICAS E PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO NA CIDADE DE SOBRAL: trajetórias e novas funcionalidades no sertão norte cearense
As condições sócio históricas orquestradas em espaços interiores do Ceará,
notadamente, em Sobral, pelos idos da colonização e começo do século XX nos
apresenta elementos de um quebra cabeça, com peças perfeitamente encaixantes
que ligam-se para o além de seus formatos – o do conteúdo. Nesse direcionamento,
a formação e consolidação da urbe sobralense e de tantas outras do interior do
Nordeste do Brasil, considerando os similares processos de colonização são
respaldadas pela ideia de que as cidades são “a expressão concreta de processos
sociais na forma de um ambiente físico” (Harvey, 1972 apud CORRÊA, 2010).
Dito isso, entende-se ser necessário antes de tudo fixar um olhar
cartográfico de localização de Sobral, dentro do quadrante territorial do estado do
Ceará, conforme se vê na fig. 1 abaixo, já que este fato permite enxergar que seu
posicionamento é algo estratégico e que ganha dimensão a partir de sua incursão de
formação e organização socioterritorial.
Fig.1: Localização do Municipio de Sobral/CE.
Fonte: O autor, 2013.
Raciocinando nesse direcionamento, então há de se conceber de forma
sintética que a cidade é um reflexo da sociedade. A cidade aqui objetivada e que vai
de encontro com este entendimento são as denominadas de porte médio. Contudo,
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quando lançamos um olhar sobre esta terminologia, veremos que a mesma estanca
de relance para qualquer desapercebido, no critério de grandeza. Quando falamos
em cidades grandes, medias ou pequenas, nossa memória recorre a seu tamanho
físico e como tal, abarcando diferentes possibilidades de sua exponencialidade
urbana (tamanho populacional, produtividade, influências, etc.).
A despeito destas terminologias que elucidam vetor de grandeza, muito já se
tem refletido, particularmente, quando se trata das cidades médias, momento
dialético entre diferentes estudos e áreas onde parece ausentar-se um consenso no
uso e validade deste termo, uma vez que existem vários autores que tratam da
questão das cidades médias e através de seus estudos, pode-se notar que é difícil
chegar a uma definição. No entanto, se for considerado apenas o fator populacional,
pode-se destacar algumas posições. Na visão da CEPAL2, cidade média é considerada
como sendo aquela cidade que apresenta uma população entre 50 mil e 1 milhão de
habitantes; já para Soares (2005), 3“as cidades médias são representadas por um
tamanho populacional entre 200 mil a 1 milhão de habitantes; por sua vez Maricato
(2001) 4coloca entre os limites de 100 e 500 mil habitantes [...]” (STAMM et al, 2010,
p. 73).
Não querendo aprofundar aqui esta discussão, mas apenas esclarecê-la, a
título de parte de um diálogo inicial, é notório enxergar que sua fomentação
terminológica é carregada de um longo percurso dialético de existência, advindo dai
talvez a sua incapacidade de fundamentar nossos objetivos nesta parte do trabalho.
Assim, adotaremos o critério demográfico do IBGE que afirma serem estas
cidades, as que se enquadram na totalidade de habitantes que vão de 100 a 500 mil
2 Ver CEPAL – Comissão Econômica para América Latina e o Caribe. El rostro de La urbanización en América Latina y el Caribe. Serviço de informação da CEPAL – Comunicado de imprensa. In: Conferencia regional sobre el programa de Hábitat. Chile, 2000. Disponível em: <http://www.eclac.cl/cgibin/getProd.asp?xml=/prensa/noticias/comunicados/1/5041/P5041.xml&xsl=/prensa/tpl/p6f.xsl> 3 Ver SOARES, Paulo Roberto Rodrigues. Cidades médias e aglomerações urbanas: a nova organização do espaço regional no Sul do Brasil. In: I Simpósio Internacional Cidades Médias: dinâmicas econômicas e produção do espaço urbano. Anais. Presidente Prudente: Unesp, 2005 4 Ver MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
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habitantes (cidades de porte médio), onde a cidade de Sobral, pela última
averiguação do Censo deste órgão em 2010, registrou-se 166.310 habitantes.
Associado a este critério, acreditamos também ser necessário uma preocupação em
considerar outros elementos e, “a nosso ver, a definição de cidade média deve ter
por base além do critério demográfico, as funções urbanas das cidades relacionadas,
sobretudo, os níveis de consumo e o comando da produção regional nos seus
aspectos técnicos” (FREIRE, 2011, p.37).
Justamente ao considerar estes outros elementos é que percebemos Sobral e
tantas outras de seu leque classificatório que as mesmas, no transcorrer do século
XX, são fruto das diferentes políticas de reordenamento territorial acontecidas em
diferentes governos, ou melhor, dizendo, diferentes períodos desenvolvimentistas5.
Os períodos citados, inseridos no contexto nacional de transformações
socioespaciais, via industrialização, costuraram e processaram-se em três fases
distintas, a saber:
[...] a primeira engloba o início do século XX até a criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE e é resultante do fortalecimento da proto-indústria na segunda metade do século XIX. A segunda é demarcada pelo intervencionismo institucional da SUDENE e demais órgãos e pelos projetos de integração nacional e industrialização. E, por último, responde o período pós-SUDENE, marcado pela desaceleração das políticas industriais experimentada nas últimas duas décadas (ALMEIDA, 2012, p.10).
De todo modo e por diferentes décadas do século XX, os gestores locais, se
apresentaram como principais articuladores das políticas industriais e
desenvolvimentistas. É a partir destas, que se dão os alicerces de crescimento e
conteudização das cidades médias sertanejas, em particular relevo, Sobral, no Ceará.
Nesse direcionamento, diferentes ações marcaram-se como esforço da extensão de
uma política nacional, onde entre a representação estatal maior e a menor o:
Nordeste ensaiou um grande surto de desenvolvimento via indução industrial, transformando a região numa produtora de bens intermediários - Surgiram pólos produtivos especializados como o petroquímico e cloroquímico, na Bahia, o metal-mecânico, em Pernambuco, o complexo de
5 Este termo tem forte ligação e inserção do Ceará, via investimentos e infraestruturas, em diferentes governos, a partir de 1960, encaixada em diferentes altos e baixos momentos de desenvolvimento econômico e social do Brasil.
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salgema e sucro-alcooleiro, em Alagoas, o complexo minero metalúrgico, no Maranhão, o pólo têxtil e de confecções de Fortaleza e o agroindustrial no perímetro irrigado do Médio São Francisco, dentre outros (Op.Cit. 2012, p.11).
Visualiza-se ai, o esforço do Estado na confecção de uma das mais ousadas e
dialéticas formas de políticas públicas para “salvar” o Nordeste, de suas lastimações
e atrasos. A forçosa tentativa de colocar o Brasil e seus “recortes” territoriais na
dianteira da Divisão Internacional e Territorial do Trabalho, considerando a dinâmica
capitalista no mundo pós Segunda Guerra, fez “os investidores, com o beneplácito
do Estado, aumentam a articulação indústria/agricultura, visando à integração de
mercados. Onde o capital financeiro nacional e internacional se fez ampliar
especulativamente e produtivamente” (HOLANDA, 2007, p.94).
As ações e projeções de investimentos e orientações para tal no Nordeste via
SUDENE, contribuíram de forma exemplar para uma reconfiguração espacial do
Nordeste brasileiro e obviamente, de cidades interiores do estado do Ceará, a
exemplo de Sobral que fora mediada pelo cortejo da implantação dos “Fixos e
Fluxos”, tal qual aponta Santos (1996, p. 141).
Para a consecução da implantação em destaque uma sequência de governos
que deu-se do início de 1960 até a primeira metade de 1980, denominado de período
coronelista 6muito contribuiu ao quadro econômico e organizativo do ponto de vista
espacial do Ceará. Virgilio Távora, por exemplo, ao governar o Ceará por duas vezes,
possibilitou ações materiais sobre o estado, repercutindo nos deslocamentos dos
investimentos às cidades do interior, refletindo-se em Sobral, promovendo “a
construção de rodovias ligando cidades do interior, do Baixo Jaguaribe que, algumas
décadas mais tarde, torna-se um “novo espaço da produção globalizada” no Estado
6 Este período corresponde ao momento das vivências políticas no Brasil, marcada pelos ditames dos governos militares e que no caso do Ceará, movimentou-se pela troca de poder entre os governadores Virgílio de Morais Fernandes Távora (1963-1966); Plácido Aderaldo Castelo (1966-1971); César Cals de Oliveira Filho (1971-1975); José Adauto Bezerra (1975-1978); Virgílio de Morais Fernandes Távora (1978-1982) e Luiz de Gonzaga Fonseca Mota (1983-1987).
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do Ceará e atrai grandes grupos industriais como a Grendene” (ARAUJO, 2007, p.
101).
Lembrando então da primeira fase da industrialização do Ceará,
notadamente, a que recaiu sobre a cidade de Sobral ainda em fins do séc. XIX, é
perceptível o alongamento deste processo no desenrolar do segundo quartel do séc.
XX, onde a presença dos “fixos e fluxos” delimitam os espaços seletivos do Ceará
sertanejo, como Sobral e outras numeradas cidades, a exemplo de Juazeiro do Norte,
Crato, Iguatu, etc. e que foram envoltos por políticas públicas de reordenamento
produtivo e econômicos que suscitaram convites a investidores como novos lócus de
reprodução capital, sinônimo de desenvolvimento territorial.7
As ações de investimento de reorganização sócioprodutivas no Ceará,
destacadamente, em suas diferentes cidades, a exemplo de nosso objeto de
discussão que é Sobral não se encerraram com este governante, mas abriram um
leque de possibilidades de ações políticas para continuidade de tal desenvoltura, a
partir da década de 1970 em diante.
É considerando o recorte temporal em diante e o intuito de visualizar como cidades
a exemplo de Sobral e outras de porte médio ganharam dimensão ímpar nos espaços
sertanejos cearense, via investimentos produtivos que passaremos agora a mostrar
resumidamente na tabela 01 a seguir as principais ações/estratégias políticas adotadas e que
sinalizaram mobilidade para tal desenvoltura e que são apontadas de forma exemplar por
HOLANDA (2010).
7 Faz-se importante e necessário frisar que o dinamismo econômico, logo, urbano destas cidades interiores do Ceará, a partir das ações da SUDENE, a partir de 1960, notadamente para Sobral, é diferente do desenvolvimento alcançado, dos anos de 1990 em diante, haja vista, os diferentes atores e circunstâncias engendrados.
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Criação/ano de implantação Objetivos Ações Espaço abarcado CODEC8 Criação de Infraestruturas,
de zonas indústrias e análise de oportunidades industriais, etc.
Assessorava os empresários como forma de obter recursos financeiros junto a órgãos competentes.
Várias cidades em processo de dinamização econômico e territorial no Estado, entre elas, Sobral.
ASIMOV/PUDINE9 Desenvolvimento de atividades industriais de produtos locais.
Apoio ao ramo de beneficiamento de produtos locais (castanha de caju, leite, etc.).
Crato/Sobral
PLAIG10 Elaboração de estudos que diagnosticasse as potencialidades socioeconômicas regionais do Ceará
Modernização das rodovias; Elenca-se por meio de diagnósticos áreas polarizadoras no estado.
Fortaleza; Sobral; Crato-Juazeiro do Norte e; Iguatu, com mais quatro áreas polarizadoras e doze centros regionais, com base em estudos feitos pelo IBGE.
PLANDECE11 Dinamizar os centros urbanos com populações superiores a 15.000 habitantes.
Diversas ações com vistas o desenvolvimento regional.
Na fase 1, elencou-se Fortaleza, Crato-Juazeiro e Sobral.
PLAMEG12 Continuidade da política anterior com adaptações e visões de alcance.
Continuidade da política anterior com adaptações e visões de alcance.
Na fase 2 são estabelecidos seis unidades espaciais de planejamento: Litoral; Ibiapaba, Baturité; Baixo Jaguaribe, Sertões Cearenses e Cariri.
Tabela 01 – Políticas de Planejamento Estatal no Ceará Fonte: HOLANDA (2010). (Com adaptações).
Vê-se quão importante e estratégico foi a atuação estatal junto aos processos
de reordenamentos produtivos e a emergência de novos espaços de representação
produtivo/capital, não só glorificando a capital Fortaleza, como líder do corpo
organizativo e administrativo do Ceará, mas de cidades em ambientes sertanejos que
racionalmente souberam receber os investidores/investimentos, preenchendo-se de
novos conteúdos e valores, tal qual se postam no momento atual.
8 Companhia de Desenvolvimento do Ceará, criada em 1962 9 Segundo HOLANDA (2010), tivera bases inicias na cidade do Crato em 1962, com transferência em seguida para cidade de Sobral e é fruto das ideias de um professor da Universidade da Califórnia, Morris Asimov. Tem sua nomenclatura redefinida pela equipe cearense que trabalha com o mesmo para PUDINE – Programa Universitário de Desenvolvimento Industrial do Nordeste, em 1966. 10 Plano de Ação Integrada do Governo, no período de 1967-1970. 11 I Plano Quinquenal de Desenvolvimento do Estado, no período de 1975-1979. 12 12 Plano de Metas Governamentais, que dar-se nas fases 1 e 2, de modo que esta ultima é encaixada no período de 1979-1982, ou seja, uma continuidade do plano anterior.
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É importante lembrar que associado aos fixos e fluxos que passam a “correr”
aos espaços interiores do Ceará, a partir de 1970 em diante, os diferentes governos
que se intercalaram no jogo político, notabilizaram-se também pela prática da política
dos incentivos fiscais. Esta prática energizou as movimentações de investimentos em
parques industriais, direcionados primeiramente à Região Metropolitana de
Fortaleza – RMF, mas em seguida, direcionou-se às cidades do interior, momento que
exigiu destas uma tessitura espacial organizada para o recebimento dos circuitos de
investimentos materiais ancorados na presença imaterial do território investido.
Na segunda metade da década de 1980 em diante, o Ceará assistiu ao fim da
era dos ditos governadores coronelistas e a diminuição do poder das famílias
oligárquicas até então operantes no seio social e econômico cearense e viu-se
mergulhada na fase de governança empresarial, marcando a era do “Governo das
Mudanças13”, que reunia um elenco patrimonial de novos políticos que ventilaram
novos pensamentos e virtudes ao Ceará, marcados pelas:
[...] propostas de modernização do Estado em todas as esferas, indo ao encontro do grupo de investidores emergentes que passam a atuar no Nordeste graças ao avanço do meio técnico-cientifico-informacional, ocorrendo o reforço da inserção do lugar/região ao mundo contemporâneo, por meio da política neoliberal – flexibilidade, competitividade, privatização, modernização, descentralização (HOLANDA, 2010, p. 87).
A defesa da economia de mercado e a lógica da propriedade privada de
produção dentro da perspectiva modernizante elaborada pelos discursos e ações
modernizadoras vieram emoldurar um novo tempo, uma nova era, uma nova base de
ser e estar do Ceará frente à conjuntura mundial que arquitetava os ditames da
economia mundial pré década de 1990.
Dar entrada do Ceará nessa nova compostura desenvolvimentista requereu
por parte do governador Tasso Jereissati planejamentos. E uma dos principais é via
13 Encabeçado por Tasso Ribeiro Jereissati, este governo é uma sequencia de ações políticas no Ceará e que objetivou entre outros a ruptura com o clientelismo e assistencialismos propalados pelos governos coronelistas e influenciado pelas fortes famílias de conteúdo oligárquico.
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regionalização do estado, como forma de descentralização de novas oportunidades
de gerenciamento e conhecimento de potencialidades de investimentos, tal qual a
elaborada pelo Instituto de Planejamento do Ceará – IPLANCE, no momento da
execução do I Plano das Mudanças, de 1987-1991 e que adotou como critérios
condicionadores: contingentes populacionais, sistemas viários, atividades
econômicas, etc.
Como resultado da incursão de gerenciamento regional, obteve-se 20 Regiões
Geográficas Administrativas – RG, que incluía o reconhecimento e destaque de sete
Áreas de Desenvolvimento Regional – ADR’s: Especial, Litoral, Vale do Jaguaribe,
Cariri, Sertão dos Inhamuns, Sertão Central e Sobral/Ibiapaba. Esses recortes
costuraram possibilidades intercâmbios, a partir de suas potencialidades e
investimentos diferenciados e ampliados em governos seguintes.
Destes investimentos e escolhas da espacialização da produção no estado,
destacadamente, as localizadas fora da Região Metropolitana de Fortaleza,
denominada de ADR Especial, nos anos de 1990, viu-se que a de Sobral – ADR
Sobral/Ibiapaba era:
[...] composta de 20 municípios e se apresenta bastante diversificada no ramo industrial, por envolver municípios de aspectos econômicos, sociais, políticos e naturais distintos, havendo um predomínio de produtos alimentares, vestuários, calçados e artefatos de tecidos, com destaque para o setor calçadista e mais recentemente, imobiliário e de artefatos da construção civil, respondendo ai pela dinâmica espacial de maior uso e necessária para o desenvolvimento regional norte (IDEM, 2010, p. 89 – Grifo nosso).
Com efeito, os anos finais de 1990 e, notadamente, primeiras décadas que
compõem o séc. XXI marcam sobre a cidade de Sobral uma atmosfera de
transformações que resultam das movimentações políticas e de investimentos, fruto
de tempos e condições anteriores já apontadas. As citadas movimentações,
entremeadas nos processos de reorganização espacial no Ceará possibilitam mais
que um rearranjo, uma espacialização dos eventos econômicos que deram vida e
notoriedade a vários centros urbanos fora da Região Metropolitana de Fortaleza –
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RMF. Essa espacialização fora importante, pois além de doar autonomia fora dos
quadrantes de influência da capital, estimulou o desenvolvimento e apêndices
comerciais e produtivos, incrementando valores e resignificando o sentido de viver e
investir no sertão do estado cearense.
Sobral nesse contexto é abarcado por diversos equipamentos comerciais e de
serviços até então exclusivos da/na capital, influenciando gostos, decisões de compra
e a definição de consumo que se heterogenizam pelo fato de a massa populacional
para tal ter origem diversas, advindo daí, costumes e condições financeiras de acesso
desigual que marcam os cenários dos PIB’s e com este a ciranda de desenvolvimento
que se edifica.
Encabeça-se assim, mediante as ações elencadas, um novo mundo urbano no
sertão do Ceará. É evidente, que nem todos os recortes municipais sertanejos do
estado se beneficiaram destes eventos de interesse capital, uma vez que o foco e
direcionamento de investimentos nos diferentes momentos narrados corrobora com
a ideia da arquitetação histórica dos Espaços Luminosos e Espaços Opacos (SANTOS,
1994, p. 29).
Dentro ainda desse contexto de pensamento e dos efeitos gerados pela
propagação das políticas públicas que engendraram mudanças promissoras em
cidades sertanejas cearenses, notadamente, sobre a cidade de Sobral é importante
lembrar que tais ações políticas, via SUDENE, são diferentes das que se permitiram
pelos idos dos anos de 1990 em diante. Esse fato merece evidência, uma vez os
diferentes contextos e condições em destaque não apenas deram bases de
refuncionalização a esta cidade, mas principalmente, a outros espaços urbanos de
base territorial sertanejo do Ceará.
Somado à desenvoltura oportunizada a Sobral, houvera também um
reordenamento territorial, no sentido da ampliação de sua influência regional,
possibilitando à mesma um comando territorial de 39 cidades (conforme se vê na fig.
02 abaixo), permitido nesse ínterim, uma reorganização infraestrutural antes não
vislumbrados em espaços sertanejos do Ceará, fato que alimenta um crescimento e
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desenvolvimento em conjunto de várias cidades e dá autonomias às mesmas que
antes eram “reféns” do comando central da capital Fortaleza.
Fig.2: Município de Sobral e sua área de influência
Fonte: RODRIGUES; HOLANDA, 2012.
É perceptível pela narrativa construída que as cidades sertanejas do Ceará,
considerando sua continuidade histórica de organização material e técnica,
acumuladas através dos tempos, foram concebidas (apesar de tardias) como aptas
aos investimentos, momento que instiga-nos a lembrar a ideia outrora exposta por
SANTOS (op. cit, 1994), ao enunciar a noção existencial de espaços que são
iluminados pela presença dos equipamentos e condições concebidas por sujeitos
capitais, para dilatação dos seus objetivados lucros, determinando assim, ou o seu
sucesso (territórios luminosos) ou o seu fracasso (territórios opacos), fato que
desemboca na capacidade (ou não) da/na confecção de dinâmicas urbanas regionais.
Considerações Finais
Considerando os diferentes processos e condições que habilitaram uma nova
roupagem urbana, alocada pelos novos apêndices econômicos, produtivos e sociais
em Sobral, via conjugação de políticas publicas e interesses capitais particulares em
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décadas passadas, vêm-se assistindo nesse tramitar e sobre esta cidade sertaneja
cearense, a promoção de uma Rede Urbana na parte norte do estado, elencando e
conjugando nesta perspectiva um “conjunto de centros urbanos, funcionalmente
articulados entre si”. (CORRÊA, 2010, p. 94).
Neste processar, a palavra chave é articulação. Esta é mediada por vários
instrumentos, condições e sujeitos que em conjunto ou de forma isolada, a partir de
suas ações contribuem para a dinamização da tessitura urbana, resultando em
formas e conteúdos diferenciados. Estes fazem da cidade de Sobral, um espaço
urbano que se conecta/articula de forma cada vez mais espacializada com outros
centros. Essa condição reúne motivos para uma compreensão mais apurada de que
cidade do sertão do Ceará vem se remodelando, reafirmando seu papel regional de
comando e contribuindo nesse ínterim para a confecção de uma rede urbana que se
revela cada vez mais promissora para investimentos e a promoção de um novo
sentido de viver nos sertões.
Este novo sentido é ampliado quando da reformulação das condições
imagéticas negativas que historicamente foram condicionadas aos espaços secos do
Nordeste brasileiro. Mas, dada as projeções das políticas e alianças aqui narradas e
que decorrentes dos fatos destacados, as referidas condições vem sendo permitidas
a partir de diferentes ações de marketing político e empresarial, onde cidades como
esta em discussão, são vendidas como tentativa à sua inserção no mercado
competitivo e convidativo a investimentos, dando destaques aos novos sentidos do
“consumo, os modos de vida e as formas de apropriação do espaço, mediadas por
novas formas de exercício do poder e pelas estratégias atualizadas das políticas
urbanas” (SÁNCHEZ, 2003, p. 16).
As novas formas de exercício de poder, entre outras possibilidades, dão-se
pela presença e qualidade dos diversos equipamentos urbanos na cidade e que foram
renovadas como resultado da conjugação de ações político/empresariais em
modernizar a cidade. Ao lado destes, soma-se também a presença dos equipamentos
comerciais e de consumo capital. Assim, estes, revelam-se como além de essenciais,
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também estratégicos, uma vez que ajudam a manter a continuidade de vida e ciranda
de desenvolvimento fora da capital do estado, de modo que seu alcance não é a
apenas local, mas regional.
Assim, as formas e condições de renovação socioespacial em Sobral já
discutidas vem revelando não apenas um conjunto de novos conteúdos, mas
também de mudança de hábitos de consumo e comportamentos sociais por parte de
sua sociedade em processo de transformação, típicos das grandes cidades. Este fato
realça a composição de uma nova condição social na cidade, marcada e influenciada
pela crescente e contraditória práticas consumistas que apesar das dialéticas, vem
aproximando o caboclo da roça, com os grandes comerciantes e empreendedores
comerciais urbanos; estabelece novos laços entre o universo campestre atrasado,
porém produtor e o mundo da cidade em voga e integrando não só territorial, mas
social e culturalmente os indivíduos que são influenciados pela cidade de comando
regional do sertão cearense.
Referências
ALMEIDA, Humberto Marinho de. Práticas espaciais, gestão seletiva e o desenvolvimento territorial no Ceará. In: XV CISO - Encontro Norte e Nordeste de Ciências Sociais Pré-ALAS Brasil, 2012. v. único. ARAUJO, Nancy Gonçalves de. A industrialização no Ceará: breves considerações. Instituto de Estudos Sócioambientais. Boletim Goiano de Geografia. 2 ed.Goiânia: UFG, 2007, v. 27, p. 97-114. CORRÊA, Roberto. Lobato. Trajetórias geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. FREIRE, Heronilson Pinto. O uso do território de Sobral, Ceará pelas instituições de ensino superior. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza, 2011. HOLANDA, Virginia Célia Cavalcante de. Modernizações e espaços seletivos no Nordeste brasileiro. Sobral: Conexão Lugar/Mundo. Tese de Doutorado. Programa
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de Pós-Graduação em Geografia Humana, Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007. _____. Sobral – CE: de cidade do sertão às dinâmicas territoriais da cidade média do presente. In: H. Virginia. C.H; A. Zenilde. B,. (Org.). Leituras e Saberes Sobre o Urbano: cidades do Ceará e Mossoró no Rio Grande do Norte. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2010, v., p. 75-94. SÁNCHEZ, Fernanda. A reinvenção das cidades para um mercado mundial. Chapecó-SC: Argos Editora Universitária, 2003. SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: HUCITEC, 1994. _____. Espaço do cidadão. São Paulo: Nobel, 1996. SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão. Para pensar as pequenas e médias cidades brasileiras. Belém: FASE/ICSA/UFPA, 2009. v. 1. STAMM, C.; WADI, Y. M.; STADUTO, J. A. R. São as cidades médias responsáveis pelo espraiamento espacial da riqueza nacional?. Revista REDES (Santa Cruz do Sul. Impresso), v. 15, p. 66-91, 2010.
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A CRISE SISTÊMICA DO CAPITALISMO NA ATUALIDADE E SEUS REFLEXOS PARA A QUESTÃO URBANA BRASILEIRA THE SYSTEMIC CRISIS OF CAPITALISM TODAY AND its REFLEXES TO THE braziliN URBAN QUESTION
Talita Kelly de Sousa Passos | E-mail: [email protected] Assistente Social formada pela Universidade Federal do Piauí. Mestranda em Políticas Públicas, pela Universidade Federal do Piauí.
Antônia Jesuíta de Lima | . E- mail: a.je.l@uol. com.br Profª Drª. do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí
Resumo O presente artigo realiza uma reflexão teórica sobre a questão urbana brasileira, a partir da discussão da crise sistêmica do capitalismo na atualidade e suas consequências societárias. Apreende-se que, a partir da década de 70, a sociedade ocidental assiste a transformações profundas no campo econômico e suas consequências atingem todas as esferas da vida social e inclusive o espaço citadino. Constatou-se que o espaço urbano brasileiro se configurou em face das necessidades capitalistas e que, atualmente, é reflexo das demandas econômicas, reificando o processo de exclusão social. Palavras-chaves Capitalismo. Questão Social. Questão Urbana Brasileira. Abstract This article presents a theoretical reflection on the Brazilian urban issue, from the systemic crisis of capitalism discussion today and its statutory consequences. It is apprehended that, from the 70s , Western society witnessing profound changes in the economic field and its consequences affect all spheres of social life and even the city space. It was found that the Brazilian urban space is configured in the face of capitalist needs and that today is a reflection of economic demands , reifying the process of social exclusion. keywords Capitalism. Social Question. Urban Question.
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Introdução
O presente artigo visa à discussão da questão urbana brasileira, pontuando as
consequências dessa ordem societária para a configuração da questão urbana na
atualidade.
Para a análise proposta têm-se como principais aportes teóricos as
contribuições de Paulo Netto (2012), Pastorini (2004), Ianni (1996) e Draibe (1993),
que contemplam a atual situação capitalista, com o aprofundamento das discussões
sobre neoliberalismo e globalização e suas possíveis consequências para a sociedade
do trabalho. Nas reflexões referentes à questão social utiliza-se a contribuição de
Iamamoto (2013) e Ianni (1992) que vão situá-la no atual cenário capitalista. No que
se refere à questão urbana, utiliza-se como principais referenciais teóricos a
apreensão de Lima (2010), Ribeiro e Santos Júnior (2011) e Furtado (2014); Maricato
(2001).
A discussão proposta está articulada as reflexões iniciais da pesquisa em
desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação de Politicas Públicas, da
Universidade Federal do Piauí, no âmbito do mestrado, voltada à Política de
Habitação e o trabalho social. O objetivo da construção apresentada constitui-se na
contribuição teórica relativa ao campo da gestão urbana para pesquisadores,
gestores, técnicos, estudiosos, como forma de oportunizar a criação de novas
pesquisas e reflexões na atual conjuntura que nos é apresentada.
Trata-se de revisão de literatura dividida em três momentos: O primeiro,
apresenta a crise sistêmica do capitalismo na atualidade e suas consequências
societárias, sob a perspectiva do neoliberalismo, imperialismo e da globalização e
seus efeitos econômicos e sociais, que se constituem elementos importantes para se
pensar a questão social. No segundo momento do texto, tenciona-se realizar uma
breve análise teórico-crítica em torno da questão social e seus desdobramentos, a
partir da realidade brasileira. A terceira aponta as reflexões sobre questão urbana no
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Brasil, a partir de uma breve contextualização de sua configuração no cenário
brasileiro.
A crise sistêmica do capitalismo na atualidade e suas consequências societárias
A partir da década de 70, a sociedade ocidental assiste a transformações
profundas no campo econômico e suas consequências atingem todas as esferas da
vida social. Harvey (2011) destaca que tais crises sempre se fizeram presentes no
capitalismo e que as mesmas aumentaram consideravelmente desde os anos 1970.
Paulo Netto (2012) refere-se a uma crise sistêmica do capitalismo e suas
consequências societárias, para tanto, parte da análise sobre dois grandes centros
econômicos mundiais: em primeiro lugar, os Estados Unidos, que cresce em um ritmo
lento, com a prioridade nos gastos militares, em detrimento da saúde pública; em
segundo, a Europa, mais especificamente, a Europa ocidental, que também
apresenta um crescimento ínfimo e taxas de desemprego repressivas, além de se
vivenciar nessa região cortes profundos nos gastos sociais.
Crises financeiras são evidenciadas em todos os continentes e Paulo Netto
(2012, p. 415) chama a atenção para o fato das mesmas serem importantes ao sistema
capitalista e que através delas o mesmo se reorganiza e adapta a nova realidade
posta, especificamente as crises sistêmicas, entendidas pelo autor como aquela que
se “manifesta envolvendo toda a estrutura da ordem do capital”.
O capitalismo contemporâneo começou a ser redesenhado desde a década de
1970, com as transformações societárias em curso. O projeto neoliberal incorpora as
exigências imediatas do capital e afirma os princípios da flexibilização,
desregulamentação e privatização, o que trouxe consequências imediatas ao
mercado de trabalho, caracterizando a ordem capitalista pelo desemprego e a
informalidade (PAULO NETTO, 2012).
Draibe (1993) destaca que as teorias neoliberais são normalmente
emprestadas do pensamento liberal e são reduzidas à afirmação da liberdade e a
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primazia do mercado sobre o Estado. Este último deve ser entendido como Estado
Mínimo, que é preconizado pelo máximo e não pelo mínimo, principalmente no que
se refere à responsabilidade social. Assim, o neoliberalismo compreende [...] “um
discurso e um conjunto de regras práticas de ação (ou de recomendações) referidas
a governos e a reformas do Estado e das suas políticas” (DRAIBE, 1993, p. 88).
O neoliberalismo defende que a liberdade individual é a finalidade das
organizações sociais, dessa forma, qualquer tipo de intervenção que possa afetar o
livre exercício da vontade individual não é bem aceito. Assim, os programas sociais
são considerados ameaças às liberdades individuais, tendo em vista, que prejudicam
a concorrência privada. A proposta neoliberal significa “[...] o corte no gasto social e
a desativação dos programas socais públicos, onde a ação do Estado no campo social
deve ater-se a programas assistenciais – auxílio à pobreza [...]” (DRAIBE, 1993, p.90).
Os organismos multilaterais (Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional)
se tornaram responsáveis pelo estabelecimento de estratégias que o novo modelo
proposto exigia, orientando as ações aos países periféricos, em especial. O plano de
ajustamento passava por três fases: 1 - estabilização macroeconômica; 2 - reformas
estruturais e 3 - retomada do investimento e do crescimento, sendo que esta última
fase nunca chegou. De acordo com Pastorini (2004) os organismos multilaterais
sabiam dos efeitos perversos das medidas de ajuste neoliberal, porém, a situação era
explicada como um momento passageiro e necessário para o desenvolvimento.
A descentralização, a privatização e a concentração de programas sociais
públicos em pessoas em extrema situação de pobreza se configuram como princípios
fundamentais das reformas dos programas sociais recomendadas pelo
neoliberalismo, especialmente quando são direcionadas a países latino-americanos.
Os principais resultados dessas propostas neoliberais para a região latino-americana
são conhecidos: a alteração da relação entre Estado e mercado; entre o público e o
privado; entre Estado e sociedade, com a criação de novas formas de solidariedade
social; a precariedade e descontinuidade da políticas social, a estigmatização dos
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beneficiários, a descentralização sem o repasse dos recursos, a segmentação da
cidadania: política para os pobres e política para os ricos (DRAIBE, 1993).
No contexto atual intensifica-se o processo de globalização, marcado pela
financeirização do capital (PAULO NETTO, 2012; IANNI, 1996; CHESNAIS, 1996) e o
imperialismo, caracterizado pela “[...] hegemonia dos Estados Unidos, que drenam
fluxos enormes de renda do resto do mundo” (DUMÉNIL; LÉVY, 2007, p. 1).
O imperialismo não se configura como um estágio específico do capitalismo,
como o neoliberalismo, mas se mantém presente desde suas origens e se refere à
habilidade dos países mais avançados em obter lucros sobre outros países. Nos
países imperialistas se fazem presentes o elemento de acumulação, tendo em vista,
que exportam seus capitais; mas obtém investimentos dos outros países (DUMÉNIL;
LÉVY, 2007). Já a globalização é entendida por Chesnais (1996, p. 17), como
[...] a capacidade estratégica de todo grande grupo oligopolista, voltado para a produção manufatureira ou para as principais atividades de serviços, de adotar, por conta própria, um enfoque e conduta globais. O mesmo vale para, na esfera financeira, as chamadas operações de arbitragem. A integração internacional dos mercados financeiros resulta, sim, da liberalização e desregulamentação que levaram à abertura dos mercados nacionais e permitiram sua interligação em tempo real.
Ianni (1996) pontua algumas consequências oriundas da globalização, dentre
elas, a desterritorialização das forças produtivas, o vasto rearranjo do mapa do
mundo, as transformações no espaço rural que cada vez mais é industrializado e
urbanizado. Verifica-se ainda o declínio dos Estados-Nações, já que os mesmos são
obrigados a aceitar decisões de centros de poder regionais e mundiais. O capital
nesse processo adquiriu proporções universais, influenciando a nova divisão
transnacional do trabalho, marcada pela flexibilização dos processos de trabalho,
produtividade, inovação e competição, que, por sua vez, implica numa nova
organização social e técnica do trabalho, formando o chamado “trabalhador coletivo
desterritorializado” (IANNI, 1996, p. 15).
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A questão social na realidade brasileira
Nesse contexto de transformações sociais, especificamente do processo de
globalização, a questão social também se configura em âmbito mundial. As múltiplas
manifestações da questão social ganham novos significados, podendo assim, incitar
novos movimentos sociais e interpretações desconhecidas, fabricando diversidades
e reproduzindo desigualdades (IANNI, 1996).
Pastorini (2004) salienta que não se pode pensar a atual conjuntura
(globalização, neoliberalismo, desemprego) como um processo natural, pois todos
esses elementos são frutos da opção política e econômica dos governos desde a
década de 1980. Tal escolha baseou-se na tentativa de integração no cenário
capitalista, ainda que, o preço tenha sido a desintegração em âmbito nacional.
No Brasil, a questão social é tratada pelos setores hegemônicos sob a ótica da
Teoria da Integração Social, reproduzindo a ideologia do favor, ocultando a ação
política das classes trabalhadoras. O Estado com suas ações, ora assistenciais ora
repressivas, adotadas de acordo com o período histórico, favorece a reprodução
capitalista e, com ela, as suas desigualdades (PASTORINI, 2004).
Discutir a questão social é compreender que esta é intrínseca a realidade
capitalista e está articulada a produção coletiva e a apropriação privada do trabalho.
Nesse contexto, a realidade brasileira está marcada pelos diversos aspectos da
questão social que manifestam suas particularidades de acordo com contextos
históricos específicos. (IAMAMOTO, 2013).
Cerqueira filho (1982) aponta como a questão social se configurou no Brasil,
onde a ideologia do paternalismo acabou por apresentar uma vertente influente na
formação histórica, politica e social no país. O desdobramento mais evidente desse
paternalismo refere-se ao autoritarismo que passou a se associar a realidade
capitalista, influenciando no modo como o Estado brasileiro passa a responder a
questão social. O autor ressalta que até meados dos anos 1930 a questão social era
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vista como “caso de polícia” e que, posteriormente, passa a ser reconhecida e
legitimada como “caso de política”.
A emergência da discussão de uma suposta “questão social” surge a partir da
crise do Estado de Bem Estar Social, com Rosanvallon (1998) e Castel (1998). O
primeiro entende que o surgimento da nova questão social se realizou pela
[...] inadaptação dos antigos métodos de gestão do social, como testemunha o fato de que a crise do estado Providência, diagnosticada no fim dos anos 1970, mudou de natureza, iniciando uma nova fase a partir do principio da década de 1990 (ROSANVALLON, 1998, p. 23).
Castel (1998), por sua vez, analisa a nova questão social a partir da sociedade
salarial que compreende duas perspectivas, de um lado, a discussão de emprego e
salário, de crescimento econômico e, de outro, o Estado de Bem estar Social, com a
ampliação dos direitos.
Iamamoto (2013) realiza uma caracterização da questão social no cenário de
financeirização do capital a partir das reflexões históricas das desigualdades sociais
no Brasil e demonstra como estas se fazem presentes desde os primórdios da
formação da nação, mesmo em períodos de grande crescimento econômico e
evidencia o papel do Estado na manutenção dos interesses capitalistas nessa nova
fase do capital. A questão social atualmente tem suas manifestações radicalizadas,
através da banalização da vida humana, onde não há uma preocupação do Estado
frente às necessidades da grande massa da população e quando apresenta alguma
resposta por meio das politicas públicas, observa-se a nova configuração destas, por
meio de novos elementos de “focalização, privatização e descentralização,
desfinanciamento e regressão dos direitos do trabalho” (IAMAMOTO, 2013, p. 332).
A configuração da questão urbana brasileira
A questão urbana no Brasil foi marcada historicamente por ações voltadas
prioritariamente à habitação, estratégia adotada para acumulação capitalista e como
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forma de legitimação do modo de produção vigente, por meio do atendimento da
demanda da população, a qual se encontrava permeada pelos reflexos negativos da
questão urbana existente, deixando-se de lado outros aspectos importantes do
espaço urbano (OLIVEIRA, 1982).
No processo de desenvolvimento brasileiro, a cidade ganha lugar
fundamental no novo modelo econômico adotado, em meados da década de 1950,
intensificando-se após os anos de 1960, para receber o grande fluxo populacional,
oriundo do movimento rural-urbano. O modelo de substituição de importações
acelerou o processo de urbanização, representando a cisão com o modelo
agroexportador (MARICATO, 2001; VILLAÇA, 1986).
A questão urbana no Brasil ganha destaque nas discussões políticas e
acadêmicas, a partir dos anos de 1990, com o processo de descentralização, onde
práticas descentralizadas foram evidenciadas no campo da gestão local e do
tratamento da questão urbana. Nesse período, discussões sobre a segregação
socioespacial no país também ganham visibilidade, não somente pela diferenciação
do centro-periferia, mas por ser geradora de violência, onde o Estado apresentou
papel peculiar nesse processo, já que ao longo do processo de urbanização, ele foi
promotor desta segregação (LIMA, 2010).
Furtado (2014, p. 346) destaca que o espaço urbano é “[...] um produto
histórico, do qual qualquer porção é objeto de relação dentro do sistema de relações
que compõem o modo de produção e reprodução capitalista [...]” e que as
transformações nas configurações espaciais trazem inúmeros problemas:
[...] pois o capitalismo necessita de infraestruturas fixas, as quais são produzidas como valores de uso específicos em lugares particulares, para facilitar a produção, troca, transporte e consumo de mercadorias. Para produzir um espaço econômico, o mercado unificado necessita de um espaço Intervenção do Estado e (re)estruturação urbana que seja suficientemente homogeneizado por uma infraestrutura de transportes e comunicação: vias, cabos, tubulações, redes aéreas e subterrâneas, etc., através dos quais objetos, informação e pessoas possam ir de uma localização para outra. Essas são estruturas físicas, uma infraestrutura coletiva. Somente então a relação entre duas localizações, da estrutura do espaço, ou finalmente o próprio espaço, pode se materializar. Isso, em combinação com a tendência da monopolização econômica, é
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indubitavelmente uma das principais razões porque o Estado capitalista persistentemente se encontra na obrigação de suprir, não na forma de mercadoria, equipamentos urbanos na forma de investimentos de capital intensivo, fixo e indivisível tais como trens suburbanos, metrô, sistemas portuários, aeroportos, sistemas rodoviários, pontes, e assim por diante. (FURTADO, 2014, p. 346).
D’Arc (2014, p. 141) realiza uma análise sobre o que é entendido como cidade
neoliberal na América Latina, no período dos anos 1990, e conclui que se trata de uma
cidade financeirizada, marcada pela privatização dos serviços mais antigos e a pela
“difusão de novos serviços quase exclusivamente privados”.
De acordo com Ribeiro e Santos Júnior (2011) a cidade brasileira
contemporânea é produto da relação entre dois elementos: os agentes capitalistas
que negociam a cidade como mercadoria e todas as formas de apropriação e uso do
solo urbano. O primeiro possibilitou o projeto de desenvolvimentismo no país, a
partir das alianças entre suas forças comandantes (o capital internacional; burguesia
mercantil local inserida na produção imobiliária, nas obras públicas e na concessão de
serviços públicos; e o Estado).
Os autores pontuam que o Estado teve papel fundamental na mercantilização
no espaço citadino, com a função de proteger a acumulação urbana, seja através de
grandes obras urbanas ou pela sua omissão no planejamento urbano. Para o
enfrentamento da problemática de mercantilização da cidade atual, Ribeiro e Santos
Júnior (2011, p. 15) entendem que se faz necessário
[...] atualizar o ideário do direito à cidade como parte de uma nova utopia dialética em construção, emancipatória e pós-capitalista, materializada em um novo projeto de cidades e de organização da vida social, e expressa tanto na atualização do programa e da agenda da reforma urbana como na promoção de práticas e políticas socioterritoriais de afirmação do direito à cidade.
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Considerações Finais
O atual cenário capitalista interfere em todos os aspectos constituintes da
ordem societária, bem como, as políticas sociais geridas nesse âmbito. A questão
urbana constitui-se como uma das manifestações da questão social e as intervenções
públicas a elas relacionadas estão articuladas com a lógica contemporânea do capital.
No que se refere à configuração das políticas sociais brasileiras, apreende-se
que estas foram implantadas sob a ótica da Teoria da Integração Social, que tenciona
ocultar o protagonismo das classes trabalhadoras no campo político, reduzindo-se a
meras ações assistencialistas e paternalistas, produtos da formação histórica
brasileira.
A questão urbana no Brasil tem se reduzido a ações de habitação como forma
de manutenção do sistema vigente e, como lógica predominante nesse espaço há a
supremacia de elementos econômicos, deixando de lado aspectos importantes da
gestão urbana, dentre eles, a preocupação com a grande massa da população,
destituída de moradia e das condições fundamentais à vida citadina: transporte
público, saneamento básico mínimo, dentre outros.
Em consonância com o pensamento de Gomes, Fernandes e França (2013) os
resultados da crise do capitalismo, que avança em escala global, trouxeram
consequências danosas e intensificaram velhos processos de exclusão, aumentando
as taxas de desemprego e subemprego, além de intensificar as expressões da
questão social no espaço urbano. Em geral, as ações voltadas a esse campo são
paliativas e não contribuem para a efetivação da participação social e o
fortalecimento de entidades representativas, de forma a atender as reais
necessidades da população.
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RURALIDADES E URBANIDADES: uma reflexão a partir da Comunidade Pedra do Sal, Parnaíba (PI)
RURALITIES AND URBANITIES: A reflection starting from the Community of Pedra do Sal, Parnaíba (PI)
Mayara Maia Ibiapina Possui curso Técnico em Meio Ambiente pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí (2014), Graduação em Bacharelado em Turismo na Universidade Federal do Piauí (2015) e atualmente está cursando o Mestrado em Sociologia Universidade Federal do Piauí. Pesquisadora bolsista FAPEPI/CAPES sobre questões socioambientais e comunidades tradicionais.
Ferdinand Cavalcante Pereira Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (1981), mestrado em Sociologia Rural pela Universidade Federal da Paraíba (1989) e doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2003). Atualmente é adjunto IV da Universidade Federal do Piauí. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia Rural, atuando principalmente nos seguintes temas: agricultura familiar Resumo A Comunidade Pedra do Sal, situada no município de Parnaíba (PI), tem como atividades principais a pesca artesanal, a agricultura familiar e o extrativismo vegetal, nos últimos anos, enfrentam intervenções impulsionadas pela valorização do seu espaço e conseqüentemente a implantação de grandes empreendimentos. Nesse contexto entende-se a importância de pesquisar de forma mais aprofundada aspectos desta comunidade a fim de contribuir com futuros estudos. Assim, o presente artigo pretende fazer uma reflexão sobre ruralidades e urbanidades, utilizando-se de conceitos sociológicos de rural e urbano e da análise documental da lei orgânica e do Plano Diretor do município de Parnaíba. Entende-se que as relações entre o espaço rural e o urbano tem se estreitado e a desconstrução dessa dicotomia deve ser melhor compreendida para entender a relevância social, econômica e ambiental da comunidade Pedra do Sal para o município a qual está inserido. Palavras Chave Pedra do Sal. Ruralidades. Urbanidades. Abstract The Community of Pedra do Sal, situated in the municipality of Parnaíba (PI), has as main activities artisanal fishing, family farming and vegetal extractivism, which in recent years face interventions boosted by the appreciation of its space and consequently the deployment of large enterprises. In this context is perceived the importance of further research on aspects of this community in order to contribute to future studies. Thus, this article aims to reflect on ruralities and urbanities, using sociological concepts of rural and urban and documentary analysis of the organic law and the Master Plan of the municipality of Parnaíba. It is understood that the relations between rural and urban space have been narrowed and the deconstruction of this dichotomy should be better understood in order to understand the social, economic and environmental relevance of the Community of Pedra do Sal to the municipality to which it belongs. Keywords Pedra do Sal. Ruralities. Urbanities.
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Introdução
A comunidade da Praia da Pedra do Sal, localizada na Ilha Grande de Santa
Isabel. Pertence ao município de Parnaíba, no litoral do Piauí, estando distante 18 km
do centro da cidade e cerca de 318 km da capital, Teresina. A Praia da Pedra do Sal
está ainda situada dentro de uma Unidade de Conservação (UC) Área de Proteção
Ambiental (APA) do Delta do Parnaíba. Seu acesso da-se pela rodovia PI-116 através
da ponte Simplício Dias sobre o Rio Igaraçu. Esta comunidade é composta
principalmente por 240 famílias segundo dados da Secretaria Municipal da Saúde,
coletados no Posto de Saúde da Família (PSF), nº 37 (2012) que vivem da pesca
artesanal, agricultura familiar e extrativismo vegetal.
A comunidade vem sofrendo diversas intervenções ao logo dos anos, devido
a região ter despertado interesses por razões diversas como: atrativos naturais, pelo
seu crescente turismo, seu potencial energético, mas principalmente, a valorização
imobiliária do espaço.
Com essa valorização, os grandes empreendimentos começam a se instalar,
porém, ainda não se consolidaram por completo, dois resorts já conseguiram os
licenciamentos para início das obras e o parque eólico atualmente possui 53
aerogeradores e aguarda uma ampliação de 30 novas torres. Na iminência de tais
transformações, muitas discussões se iniciaram nas universidades e em organizações
não governamentais que hoje apoiam e incentivam as organizações dentro da
própria comunidade, surgindo assim uma série de conflitos entre atores sociais da
comunidade e as empresas. Essas discussões tentam esclarecer como o quadro de
crescimento econômico observado na comunidade não tem considerado a
sustentabilidade da mesma, limita os espaços da comunidade, traz novos desafios e
paradigmas para todos os moradores.
O presente contexto vivido pela comunidade demanda estudos e pesquisas
mais aprofundadas a fim de contribuir com a base teórica no entendimento das novas
relações que se formam, assim, o presente artigo pretende criar uma reflexão sobre
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quais as ruralidades e urbanidades da comunidade. Como metodologia foram
utilizados o levantamento bibliográfico de trabalhos sobre a comunidade como área
rural e a análise documental da lei orgânica do município de Parnaíba que refere-se
as diretrizes político-sócio-econômicas e do Plano Diretor que trata da gestão urbana
e territorial.
Ruralidades contemporâneas
Os estudos sobre o meio rural têm considerado a construção de uma
dualidade entre rural e urbano, gerando uma dicotomia. Segundo Johnson (1997), as
dicotomias são variáveis que consideram apenas duas categorias, e condensam nelas
todas suas características semelhantes, e há um risco de desconsiderar
características importantes nesse processo. Isso acontece com o rural e urbano, à
medida que consideramos uma oposição entre essas duas categorias,
desconsideramos muitas questões que devem ser levantadas.
As críticas a esse dualismo já eram consideradas por Martins (1981, p. 11-38),
segundo ele, “a crítica da razão dualista vem de longe, num ritmo constante, e foi
desde sempre vinculada à necessidade de produzir uma explicação totalizadora e
histórica para os descompassos entre a cidade e o campo, na cidade e no campo”,
onde existia a necessidade de classificar o campo como lugar agrícola, distante, com
alto grau de ligação com a terra e a natureza e o urbano seria visto como uma ruptura
a isso. A cidade nesse sentido, seria um lugar onde os processos são gerenciados,
planejados e construídos e segundo o autor, essa delimitação não é simples, trata-se
de uma tarefa bem mais complexa.
De acordo com Fialho (2005), o interesse de pesquisas no meio rural
cresceram associados à importância do termo desenvolvimento sustentável na
década de 80 e 90, onde antes o rural teria forte sinônimo de “atraso” ele passa a
oferecer uma possibilidade de bem-estar a populações tanto rurais quanto urbanas,
assim, os pesquisadores do meio rural, através das pesquisas à “agricultura familiar”,
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termo surgido nesse contexto, inicia um processo de mudança nas visões acerca do
meio rural. Fialho explica que:
O meio rural passa a ser compreendido não mais como espaço exclusivo das atividades agrícolas, mas como lugar de uma sociabilidade mais densa que extrapola as relações sociais e abrange dimensões regionais, estaduais, nacionais e mesmo transnacionais. Relações sociais as mais variadas que, no processo de revalorização do mundo rural, envolvem a reconversão produtiva (diversificação da produção), a reconversão tecnológica (tecnologias alternativas de cunho agroecológico e natural), a democratização da organização produtiva agrária (reforma agrária e fortalecimento da agricultura familiar) bem como o fortalecimento e a expansão dos turismos rurais (ecológico e cultural). A revalorização de festas, rodeios e feiras agropecuárias associa-se a valorização da cultura local e etnias sob forma de apoio à produção de conservas, artesanatos e manufaturas os mais variados, bem como na dinamização de agroindústrias associativas de agricultores familiares (FIALHO, 2005, p.109).
Em um sentido mais amplo, existe um estreitamento entre as relações rural e
urbano, e seus universos culturais e simbólicos antes tão distintos, como explicado
por Carneiro (2002), o rural exige agora reorientar os debates para a
multifuncionalidade do território, englobando a variedade de funções que o rural
pode assumir pelas novas dinâmicas econômicas e sociais das ruralidades
contemporâneas, fugindo apenas do foco da agricultura. Nesse sentido, a agricultura
“não deveria ser encarada como foco central da multifuncionalidade, mas como uma
atividade que de articula às demais no esforço de conservar o meio ambiente e de
manter o tecido social” (CARNEIRO, 2002, p. 237).
Ao sugerir uma diversificação dos usos dos espaços rurais, Carneiro (2012),
amplia o leque de atividades exercidas no meio rural, que são focadas nas atividades
econômicas, mas também devem considerar as relações sociais e os atores sociais
envolvidos. Ela sugere assim a utilização da noção de territórios:
Se, então, rejeitarmos as dicotomias que terminam por um lado em função da negação do outro, ou seja, que levam a olhar um polo (o campo) através dos olhos do outro (a cidade), acabamos por aceitar o fato de que esta dinâmica pode terminar reforçando, ou mesmo engrenando, identidades territoriais apoiadas n sentimento de pertencimento a uma localidade. Essa âncora territorial é a base sobre a qual diferentes culturas locais elaboram, de uma maneira bem própria, a intenção entre as representações do ‘rural’
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e “urbano” (CARNEIRO, 2012, p. 41).
Ainda dentro da perspectiva constante diversificação no meio rural, o debate
retorna à mudança das atividades consideradas exclusivamente rurais, ou seja,
ligadas à agricultura. Nesse ponto, questiona-se a que ponto deve-se considerar a
expansão das atividades não-agrículas pode descaracterizar o meio rural. Carneiro
(2002) defende que esse “novo” rural possa incorporar dinâmicas tidas como
“urbanas”, possuindo uma capacidade de pluriatividade, onde as famílias rurais
podem se inserir no mercado de trabalho, diversificando os usos dos espaços rurais,
transformando seus modos de vida, sem perder a sua identidade territorial apoiadas
no sentimento de pertencimento ao local que vivem. Com isso incorporar a sua
reelaboração simbólica às noções de território.
Dentro dessa impossibilidade de classificar de forma imediata a comunidade
Pedra do Sal como um espaço rural ou urbano, foi verificado nos documentos de
planejamento do município ao qual está inserido como é tratado esse território
dentro dos seus processos de planejamento pois, para Carneiro (2012, p.41), esses
conceitos e categorias são importantes para “compreender os processos em cursos
e para a intervenção de políticas públicas”.
Por muito tempo o território tem sido considerado no interior de várias disciplinas científicas (Economia, História, Psicologia, Sociologia, Antropologia) e dentre estas, a Geografia. A princípio, nesta disciplina as definições sempre tenderam a enfatizar muito mais a dimensão material do território, do que seu conteúdo subjetivo propriamente. Coube, de início, a Antropologia desenvolver esta visão “subjetiva” do território, a qual o vinculou à consciência que os grupos humanos dele faziam. Desta feita, na perspectiva das populações tradicionais, o território passou então a ser percebido não mais unicamente enquanto área controlada para usufruto dos recursos naturais, mas como conjunto de referentes espaciais indissociáveis na criação e recriação de mitos e símbolos de um grupo, respondendo inclusive pela própria definição deste enquanto tal (TEIXEIRA, 2008, p. 244).
Portanto, as trocas entre os universos Rurais e Urbanos se intensificam com o
processo de globalização, essas mudanças de hábitos, maneiras de se relacionar
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entre si e com o meio ambiente e outras transformações, não são necessariamente
rupturas identitárias ou culturais desses grupos. Ainda de acordo com Carvalho
(2002), a melhor definição que se aplica nesse sentido é a de territórios, pois, para
identificar esses territórios é preciso entender que essas fronteiras se cruzam e se
deslocam de maneira móvel e mesmo assim mantém um indivíduo vinculado a sua
cultura, reforçando os laços com sua localidade.
PESQUISA À LEI ORGÂNICA E PLANO DIRETOR DO MUNICÍPIO
Para a realização da pesquisa documental de verificar se a comunidade Pedra
do Sal foi contemplada nos processos de planejamento do município utilizou-se dois
documentos, a Lei Orgânica e o Plano diretor ambos do Município de Parnaíba ao
qual a comunidade está inserida. Ambos documentos estão disponibilizados no site
oficial da Prefeitura Municipal de Parnaíba.
De acordo com sua última atualização, no ano de 2015, a Lei Orgânica do
Município é a lei responsável pelas diretrizes político-sócio-econômicas, e deve ser
fundamentada nos princípios da democracia, igualdade e legalidade.
Art. 7° - O Município divide-se em Zona Urbana e Zona Rural. § 1° - Os perímetros das zonas urbana e rural serão definidos pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado. § 2° - A zona urbana, poderá se dividir, para fins de política administrativa, em Subprefeituras, Administrações Regionais ou equivalentes, para o que terá um responsável nomeado pelo Prefeito Municipal. § 3° - Na zona rural, conforme a densidade demográfica e a necessidade de descentralização administrativa, poderão ser criados Distritos, observados a legislação estadual e os critérios estabelecidos no Artigo 8° desta Lei Orgânica (Prefeitura Municipal de Parnaíba PI, 2015).
Portanto, as questões administrativas deveriam ser encontradas no plano
diretor da cidade. O plano diretor por sua vez, com sua ultima atualização em 2007,
vem especificado com os objetivos de:
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Art. 3o O objetivo central da política de desenvolvimento do Município de Parnaíba e: • Ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana; •Estruturar suas ações em torno dos princípios da sustentabilidade e da integração; • Ordenar o desenvolvimento físico-territorial, compatibilizando-o com o desenvolvimento socioeconômico e a utilização racional e equilibrada dos recursos naturais; •Estabelecer as regras básicas de uso e ocupação do solo; •Investir naquelas questões / linhas estratégicas que possam se potencializar mutuamente, de modo a criar um movimento contínuo e ascendente no desenvolvimento (setor primário, secundário e terciário); • Constituir-se, no setor primário, em centro microrregional de apoio à produção do setor agropecuário, tanto para o mercado interno quanto para o mercado exportador; •Constituir-se, no setor secundário, em entreposto de armazenamento, beneficiamento e abastecimento à produção do setor agropecuário, assim como entreposto comercial de âmbito regional; •Constituir-se, no setor terciário, em centro de produção de conhecimento e em centro microrregional do turismo de lazer, de natureza e agro- ecoturismo; •Contribuir para a implantação do processo de planejamento permanente e participativo, no sentido da democratização da gestão urbana e territorial; •Constituir-se em Cidade e Município com boa qualidade de vida (Prefeitura Municipal de Parnaíba PI, 2015).
Apesar de ter importante função de panejamento o Plano diretor não
menciona em nenhum momento o território da comunidade. Como complemento à
pesquisa, foi realizada uma pesquisa bibliográfica quanto às questões urbanas e
rurais sobre a comunidade, e foi encontrado uma autora de trabalho de conclusão de
curso em turismo, que é moradora da comunidade, a preocupação com questões
referentes ao esquecimento da comunidade nas leis de planejamento público,
segundo ela, com o contexto de instalação dos grandes empreendimentos em seu
território, existe uma:
[...] grande preocupação dos moradores com a geração futura, com as informações que elas terão sobre a constante mudança no seu espaço de criação e formação, o caráter participativo delas na sociedade, se suas necessidades serão supridas e se poderão ainda usufruir do espaço natural, somando a sua adaptação aos fundamentos desta comunidade estar se
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tornando uma sociedade de caráter civilizada e sustentável, tendo esta mesma comunidade seus pontos de vista igualitários (SOUSA, 2014, p. 18).
Sousa (2014), observa a ausência da comunidade nos processos de
planejamento do município e apesar de possuir grande relevância ambiental para o
município ela pontua invisibilidade da comunidade quando menciona que:
Também situada na Área de Proteção Ambiental (APA) do Delta do Parnaíba, porém não está inserida no Plano Diretor da Cidade de Parnaíba, mesmo sendo considerada como zona rural, entretanto, é notório que esta comunidade já tem potencial para ser incluída como Área de relevância ambiental, social e econômica (SOUSA, 2014, p. 35).
Diante disso, é importante refletir como essa invisibilidade pode favorecer o
interesse pela área ocupada pela comunidade sem preocupar-se como essas
questões podem afetar as relações sociais, ambientais e culturais não só da
comunidade, porém de todo o município e estado. A compreensão desse fenômeno
pode também ajudar a pensar como o processo de desenvolvimento tem-se aplicado
a territórios de proteção ambiental, sua área de entorno e pequenas comunidades
no Estado do Piauí.
Considerações Finais
O “desenvolvimento a qualquer custo” tem sido imposto em muitas regiões
do país chega ao Estado do Piauí de uma forma crescente mostrada e é na mídia como
uma forma de “salvação” econômica. Esse crescimento porém pode estar
desconsiderando uma série de fatores sociais, ambientais e culturais. A valorização
do espaço territorial e o uso indiscriminado desses espaços de forma não sustentável,
são alguns dos pontos que remetem ao sistema econômico capitalista, pois o desejo
por desenvolvimento não deixam o ser humano procurar o que é essencialmente
necessários para a manutenção da vida.
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Assim, é necessária uma preocupação com a conservação ambiental e social,
a preocupação em proteção do meio ambiente tem que estar inter-relacionado com
os aspectos culturais produzidos e reproduzidos pelos moradores e moradoras dessa
comunidade. Porém, o que se observa é uma exploração dos recursos em troca de
produção de riqueza, as empresas oferecem emprego e filantropia em troca de uma
grande desconfiguração dos modos de vida, que fogema discussões entre rural e
urbano e relacionam-se com seus territórios.
Para a Comunidade Pedra do Sal, antes de iniciar discussões para definir
fronteiras entre rural e urbano, faz-se necessário entender os novos desafios
enfrentados pela comunidade impulsionam novas experiências e com elas a
necessidades de adaptar-se ou reagir, não rompendo as trocas com o diferente, mas
ampliando suas redes e enriquecendo uma diversidade social e cultural.
O mais importante é entender que essa comunidade, apesar de ficar à margem
das diretrizes político-sócio-econômicas e da gestão urbana territorial do município
ela deve ser sujeito antes que objeto de políticas públicas, por possuir diretos diante
do seu próprio território, garantindo condições de reprodução cultural, social,
religiosa, ancestral e econômica e a sua ligação profunda com os recursos naturais,
características essas, que garantiram sua sustentabilidade por tantos anos e que
agora encontram-se ameaçadas.
Por fim, entende-se que a complexidade da política do Estado do Piauí está
totalmente envolvida nos conceitos de desenvolvimento e as possibilidades
financeiras que pode trazer para um pequeno grupo detentor de capital, a ausência
de planejamento e políticas adequadas podem agravar o processo de invisibilidade
da comunidade, que necessita de apoios das diversas instituições, universidades e
organizações não governamentais já iniciaram esse processo, essas famílias
pertencentes ao território pedra do sal necessitam de mais esforços na busca de
visibilidade e respeito ao seu modo de vida.
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Referências
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PLN E ARTESANATO CERÂMICO NO POTI VELHO, TERESINA-PI: encontros e desencontros PLN AND CERAMIC CRAFTS IN POTI VELHO, TERESINA-PI: lost in translation
Catarina Nery da Cruz Monte Mestranda em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí – UFPI; Especialista em Direito Tributário – CEUT; Professora Efetiva do Instituto Federal do Piauí – IFPI- Cocal Endereço: Rodovia PI 213, Km 21, S/N Zona Rural: CEP – 64.235-970. Resumo Este artigo tem como objetivo realizar uma breve análise sobre o Programa Lagoas do Norte (PLN), política pública urbanística, de discurso desenvolvimentista, pautada no discurso de requalificação urbana e ambiental, e suas principais interferências na atividade ceramista praticada no bairro Poti Velho, localizado na zona norte de Teresina, Piauí. Neste contexto, apresentamos algumas das ações executadas e outras previstas pelo PLN e como tais ações interferem na vida das populações locais. A metodologia utilizada na pesquisa orienta-se pelo enfoque interpretativo da investigação no qual a explicação subordina-se à compreensão. Os resultados atingidos pela pesquisa, revelem incertezas e indefinições da população, apontando para a necessidade de espaços de diálogos entre as comunidades atingidas e os gestores do PLN, como garantia de uma cidadania participativa. Palavras-chave Programa Lagoas do Norte (PLN). Políticas Públicas. Artesanato Ceramista. Abstract This article aims to conduct a brief analysis of the North Lakes Program (PLN), urban public policy, development discourse, based on the discourse of urban and environmental renewal, and major interference in the ceramist activity practiced in Poti Velho neighborhood located in the north of Teresina, Piauí. We present some of the actions taken and others provided by the PLN and how such actions interfere with the local population lives. The methodology used in the research is guided by the interpretive focus of research in which the explanation is subordinate to the understanding. The results achieved by the survey, revealing uncertainties and lack of population, pointing to the need for spaces of dialogue between the affected communities and the PLN managers, as a guarantee of participatory citizenship. Keywords North Lakes Program (PLN). Public policy. Potter crafts.
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Introdução
O Poti Velho é lócus principal da pesquisa em curso, um bairro reconhecido
pela prática do artesanato ceramista, atividade que retrata elementos da cidade e da
cultura local, e pela existência de um “Polo Cerâmico”. A argila utilizada, dizem o/as
artesã/os, possui cor, elasticidade, e textura características, uma marca distintiva do
artesanato que praticam. Porém, com o início das obras do Programa Lagoas do
Norte - PLN, a prática desse artesanato e a sua continuidade sofrem intervenções
diretas, sobretudo, no que tange à continuidade da extração da argila local.
A zona norte de Teresina é uma região importante na história da cidade. Ali,
localiza-se o bairro Poti Velho significado, no imaginário local, como lugar das origens,
do início da formação da cidade, embora, por outro lado, seja apontada, como
observa Nascimento (2010), como não tendo acompanhado o processo de
modernização de Teresina. Mas sua importância vai além: desde os anos 1960, foi
área de extração de barro para a prática do trabalho oleiro, em cujo âmbito, a
produção de telhas e tijolos contribuiu ativamente no processo de urbanização da
cidade, o que também acarretou, conforme estudos (PORTELA e GOMES, 2005;
ARAÚJO et. al. 2012), a degradação do meio ambiente e impactos ambientais nas
áreas de extração. Tais resultados, hoje, são argumentos utilizados pelo PLN para as
intervenções na área, o que gerou, em 2012, ali, o final da atividade oleira.
No Poti, o oficio oleiro sempre foi associado ao artesanato cerâmico,
inseridos, ambos na rede sociotécnica deste artesanato (MORAES, 2013). Mas, com
as intervenções urbanísticas recentes que se processam via PLN, tal rede sofre
modificações. A proibição da extração da argila local pelos oleiros, desde 2012, e a
permanência, por tempo determinado, da extração para a atividade ceramista,
requer a busca de alternativas para continuidade da prática do artesanato cerâmico.
Nesse sentido, coerente com o pensamento de que a gestão e construção do
meio ambiente urbano representa um desafio complexo para as sociedades
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contemporâneas, entendemos ser complexa, também, a relação entre as
intervenções urbanísticas do PLN que, em sua etapa 2, atingem diretamente o Poti
Velho, e a vida cultural do bairro, em especial, o artesanato ceramista ali praticado.
De fato, sem ignorar a necessidade da preservação dos “recursos” ambientais, a da
redução de danos ao ambiente natural, torna-se imperativo, como observa Silva
(2003), garantir que parcelas da sociedade não sejam marginalizadas no processo de
renovação da cidade. Nesta perspectiva, cabe pensar, de forma ampliada, no direito
à cidade (LÉFÈBVRE, 2001), também, como direitos culturais (CUNHA FILHO 2000;
FERNANDES, 2011) de populações locais, no processo de intervenções urbanísticas de
largo espectro. É o caso do PLN, no bairro Poti Velho, com objetivos declarados
voltados ao desenvolvimento sustentável e à melhoria das condições de vida da
população.
O método de investigação da pesquisa que dá origem a este artigo orienta-se,
epistemologicamente, pelo campo interpretativo de investigação, onde a explicação
subordina-se à compreensão (MONTE, 2015). Pesquisa bibliográfica e documental
(MAY, 2004; SPINK, 2000) foi associada a uma perspectiva etnográfica (GEERTZ,
1989) da pesquisa de campo, utilizando observação direta e participante (FOOTE-
WHYTEE, 1990; MAY, 2004; VELHO, 1978) com artesãos e artesãs. No trabalho de
observação, a realização de entrevistas individuais, semiestruturadas com tópicos-
guia, (GASKELL, 2003) e oficinas (SPINK; MENEGON: MEDRADO, 2014; SILVA et. al,
2004) com artesã/os e outros atores.
Políticas públicas e cidadania
Pode-se conceituar, com Teixeira (2002, p. 2) que “políticas públicas são
diretrizes, princípios norteadores de ação do poder público; regras e procedimentos
para as relações entre poder público e sociedade, mediações entre atores da
sociedade e do Estado”. Isto significa dizer que fazer política é função coletiva, fruto
da relação entre Estado e sociedade civil. Mas, como lembra Teixeira (2002, p.3),
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“nem sempre, porém, há compatibilidade entre as intervenções e declarações de
vontade e as ações envolvidas”.
Esta compreensão dialoga estreitamente com o tema cidadania que, como
destaca Silva (2003), anteriormente incluído na esfera dos direitos políticos e sociais,
passa a ser, gradativamente, incorporado ao campo dos direitos civis. No processo
de modernização no âmbito da globalização, onde se observa uma crescente tônica
na urbanização, as políticas públicas têm como desafio alcançar a sustentabilidade
urbana para o, e pelo, pleno exercício da cidadania. No sentido atribuído por Gohn
(2005, p. 16), “a construção de uma sociedade democrática sob a ótica dos direitos,
não é apenas uma questão jurídica, formal, do plano das estruturas do Estado.
Pressupõe o destaque da questão da cidadania”.
Como considera Ventura (2010), uma cidadania ativa não prescinde da
educação para este fim, no sentido de que se reconheçam cidadão e cidadã não como
mero/as espectadore/as, mas como atores importantes nos espaços de decisões,
inclusive, no que tange à própria geração e implementação de políticas públicas.
Aliás, a incapacidade para uma exitosa implementação de uma política pública pode
refletir em um emaranhado de elementos, em especial, naqueles relacionados ao
desenho da política, à organização, e à legitimidade, conforme se avalie a substância
da política e os processos pelos quais ela seja implementada (SERAINE, 2009).
A propósito, lembra Souza (2006), Theodor Lowi desenvolveu uma trilogia
sobre políticas públicas, em arenas,14 assumindo quatro formatos: 1/ políticas
distributivas, gerando impactos mais restritos do que universais, privilegiando certos
grupos sociais ou regiões (ex.: implementação de hospitais e escolas, revitalização de
áreas urbanas, programas de renda mínima, etc.); 2/ políticas regulatórias, mais
visíveis ao publico; estabelecem imperativos, interdições e condições (ex.: Código de
14 A concepção de arena parte do pressuposto de que as reações e expectativas das pessoas afetadas por medidas políticas têm efeitos para o processo político de decisão e de implementação. Cada tipo de política pública encontra diferentes formas de apoio, rejeição, disputas, em torno das decisões (SOUZA, 2006). No entanto, este processo é intrínseco à democracia.
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Trânsito, Legislação Trabalhista, etc.); políticas redistributivas, em geral, políticas
sociais universais, de difícil encaminhamento: distribuem bens ou serviços a
segmentos particularizados da população por intermédio de recursos oriundos de
outros grupos específicos (ex.: reforma agrária, distribuição de royalties do petróleo,
etc.); 4/ políticas constitutivas ou estruturadoras, que estabelecem normas e
procedimentos sobre os quais devem ser formuladas e implementadas as demais
políticas públicas (ex.: regas constitucionais diversas, regimento das Casas
legislativas e do Congresso Nacional, etc.).
Quanto ao desenho da política pública, Seraine (2009) diz que no quesito
substância revela-se a forma como a política fora projetada. Neste aspecto, diz a
autora, têm-se, segundo Bo Rothstein, duas questões: i) a natureza das condições
operativas (tipo de intervenção que o Estado pretende imprimir: dinâmica ou
estática; ii) o grau para o qual pretende intervir nas condições sociais: direta
(intervencionista) ou indireta (regulatória). Quanto mais intervencionista a política,
isto é, quanto maior sua pretensão de influenciar comportamentos e atitudes, mais
complexa será sua implementação, haja vista que se trata de um campo de ação difícil
de ser trabalhado, independente de qual seja o sujeito-foco da política: cidadãos
comuns, profissionais, servidores públicos etc. O próprio processo de elaboração de
uma política demonstra o impacto dos conflitos políticos sobre o desenho da política.
Assim, “o desenho das políticas públicas e as regras que regem suas decisões,
elaboração e implementação, também influenciam os resultados dos conflitos
inerentes às decisões sobre políticas públicas” (SOUZA, 2006, p.21). Na sociedade
civil, diversos são os interesses e visões que precisam ser debatidos, negociados,
buscando minimizar possíveis desencontros. Como o PLN pode ser pensado nos
termos expostos, é do que trataremos a seguir.
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PLN, GOVERNANÇA PUBLICA E DIREITOS CULTURAIS: quais direções?
Com base no exposto, tomamos o PLN como uma política pública de arena
distributiva, com desenho dinâmico, intervencionista. De arena distributiva por
privilegiar investimentos econômicos específicos, apontados pelo programa como
essenciais, e por focalizar uma região da cidade; de desenho dinâmico porque suas
condições operativas impõem modificações estruturais e espaciais na região onde
atua; e, ainda, intervencionista por interferir na vida da população, em dimensões
sociais, econômicas, culturais, na área atingida. Percebe-se no curso da pesquisa que,
até o momento, a execução do programa tem gerado percepções e sentimentos
diversos nas populações atingidas, em especial, incertezas quanto a certos
resultados na execução do PLN (MONTE, 2016).
O PLN é um dos oito15 projetos municipais apoiados pelo Banco Mundial, como
parte de um Programa de Empréstimo Municipal Brasileiro (BMLP) mais amplo. A
área total de intervenção do projeto, com aproximadamente 1198 ha, com quatro
etapas de execução, compreende 13 bairros da zona norte da cidade cuja vida
relaciona-se diretamente com as lagoas da região e onde vivem mais de 92 mil
pessoas16.
Conforme Relatório nº 42668-BR, referente ao Programa de Melhoria da
Qualidade de Vida e Governança Municipal – Programa Lagoas do Norte (2008), o
PLN foi concebido com dois objetivos fundamentais: a) melhorar a qualidade de vida
da população de baixa renda da Região das Lagoas do Norte; b) modernizar e
melhorar a capacidade de gestão da Prefeitura Municipal de Teresina, nas áreas
financeira, urbana, ambiental, prestação de serviços e desenvolvimento econômico.
15 Oito prefeituras municipais foram pré-identificadas para participar no BMLP: Uberaba, Recife, Belo Horizonte, Cubatão, Teresina, São Luis, Santos e Guarujá. 16 Para detalhes da área de atuação do PLN, Ver Monte (2016).
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Os objetivos apresentados pelo programa apontam para a idéia de
governança pública (BRESSER-PEREIRA, 2007), onde se “prevê uma nova
organização da máquina administrativa do Estado, para atuar segundo suas novas
funções e papéis, especialmente no momento de reformas do final do século XX e
após a Constituição de 1988” (ALCOFORADO, 2009, p. 7), valorizando os aspectos
internos da administração pública. A capacitação, planejamento, estratégias para o
desenvolvimento econômico, intervenções fiscais, são elementos centrais entre os
objetivos propostos.
Constamos, nesta programática, a ausência de uma elaboração consistente
com a preservação/reconhecimento da cultura, de tradições, de identidades, dos
bairros atingidos pelo PLN, enfim, de uma cidadania cultural,17 em cujo âmbito
direitos culturais sejam reconhecidos, na perspectiva da democratização, da
descentralização e da pluralidade. Esta ausência dialoga intimamente com a
concepção de governança do programa, melhor dizendo, com a oposição entre um
sentido restrito de governança pública, a qual não se amplia na perspectiva de uma
governança social, embora tenha sido instituído pela PMT, o Fórum Lagoas do Norte,
com representantes dos bairros e dos gestores do PLN. Notamos, no entanto, o
quase-desconhecimento dessa representação no âmbito do bairro. Como observa
Gohn (2005), para que haja uma governança social é essencial estimular as redes de
participação social, estruturadas a partir do território, que aposte na possibilidade
transformadora dos conselhos, comissões, fóruns e outras instâncias de participação
de representantes da sociedade civil, para uma gestão pública compartilhada.
Conforme Relatório do PLN (2008, p. 8), o Programa de Empréstimo Municipal
Brasileiro (BMLP) está estruturado como um Programa de Empréstimo Adaptável
Horizontal (APL) constituindo-se de até oito operações para as cidades-chave tendo
17 “Na perspectiva da cidadania cultural, parte-se da atuação no âmbito da cultura, mas vislumbra em seu horizonte a transformação de mentalidades e, portanto, da cultura política. Assim, ela extrapola a esfera cultural com vistas à construção de uma verdadeira sociedade democrática” (FERNANDES, 182, p. 2011).
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um “foco comum em suavização da pobreza, meio ambiente urbano,
desenvolvimento econômico local e gestão municipal”. Temas estes selecionados,
pelo governo federal e as prefeituras, como prioridades para programas da
assistência municipal.
As operações propostas para o PLN (2008) possuem uma perspectiva
essencialmente econômica, seja no sentido de potencializar o desenvolvimento local,
seja na tentativa de “suavizar” problemas estruturais aparentes nas áreas das
intervenções. E, se como descreve Vaz (2004, p. 1), em sua crítica ao que denomina
“culturalização do planejamento”, as transformações realizadas e propostas não são
consideradas somente na sua dimensão físico-territorial, mas envolvem, também,
ponderações de ordem simbólica, a dimensão cultural do planejamento no âmbito
do PLN parece guardar vínculos estreitos com uma perspectiva gentrificadora, com
uma produção de espaços turísticos, e com a standartização da cultura local, nos
marcos do ideário da espetacularização, como se vê, por exemplo, como refere
Carmo (2014), no projeto de construção de uma “Praça dos Orixás”, como expressão
da cultura de povos de terreiro da zona norte da cidade.
Como seu próprio nome indica, o PLN (2008) guarda estreita articulação com
uma política pública de cunho ambiental em uma região onde os rios Parnaíba e Poti
têm sua confluência, nas áreas de menor altitude da cidade. A região já abrigou 34
lagoas, algumas naturais, outras artificiais, com profundidades e dimensões variadas.
Desde os anos 1960, a extração da argila para a construção civil e confecção de tijolos,
e produtos cerâmicos, produziram lagoas artificiais frutos dessa atividade. As lagoas
na zona norte de Teresina compõem um sistema de acumulação de água, todas,
recebendo águas de chuvas e de um sistema integrado de drenagem composto de
vias, canais e galerias, totalizando cerca de 10 km² de área de captação (MOURA e
LOPES, 2006). Restam, atualmente, 12 lagoas com dimensões e profundidades
variadas que serão objeto de intervenção do PLN (2008).
Observa-se a ênfase, do programa, no combate à degradação ambiental, o
que ganha relevância nas áreas de intervenção. Entretanto, na análise do documento,
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percebe-se vasta utilização do discurso do desenvolvimento e da renovação urbana
justificando as intervenções (MONTE, 2016) o que, em si, contraria princípios
ambientalista. As novas áreas construídas devem, ainda, oferecer condições para a
produção e consumo do turismo, pautado na dinâmica econômica, como se vê na
literatura (VAZ, 2004), que trata de temas semelhantes, Brasil afora.
E, na perspectiva do programa de empréstimo, a ação dá-se através de um
instrumento seletivo e estratégico de apoio às cidades. Neste sentido, o discurso
volta-se à demonstração de como políticas, executadas no nível local, podem
melhorar as vidas e pobres urbanos18, promover uma sólida governança local, e
conduzir a uma economia local competitiva. Nesta direção, o texto do programa diz
que o governo federal requisitou apoio do Banco Mundial para focar,
estrategicamente, em uma série de municípios economicamente importantes e
solventes, para alcançar impactos concretos e demonstrar benefícios de
investimentos bem definidos em conjunto com o apoio ao gerenciamento municipal
e fiscal.
Percebe-se que, na perspectiva do programa de empréstimo, a melhoria da
qualidade de vida das populações atingidas está estritamente relacionada ao
crescimento econômico. Não há referências a intervenções que preservem direitos
culturais, memórias, patrimônios ou que tenham surgido de demandas locais
(MONTE, 2016).
Na pesquisa de campo realizada na área que marca o inicio da segunda etapa
do PLN, percebemos, em moradore/as de bairros atingidos pelo programa,
sobretudo, dentre artesã/os do Poti Velho, impressões diversas, positiva e negativas.
18 Para Lima (2003, p.138), “os pobres que emolduram a paisagem urbana de Teresina compõem um grupo heterogêneo, encontrando-se ao compartilharem experiências e a mesma condição social. É que, em sua maioria, portam trajetórias vinculadas ao meio rural, alguns com inserção recente, outros com caminhos consolidados na vida urbana. São, geralmente, detentores de prole numerosa, analfabetos, ou com baixo nível de instrução e profissionalização, o que, perante as novas exigências, implica precária absorção pelo marcado de trabalho”.
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Como aspectos positivos, referem melhorias no saneamento básico e em estruturas
de lazer. Nos aspectos negativos, a ênfase é posta na ausência de diálogos entre
gestore/as e população, no que tange à concepção, planejamento e execução do
programa, ou seja, nos limites à autodeterminação. Assim, (re)assentamentos
involuntários, realizados e previstos, vêm sendo duramente criticados e rejeitados
pela maioria das populações residentes. Daí, organizarem-se mobilizações como o
fizeram habitantes da Av. Boa Esperança, que liga o bairro Poti Velho ao São Joaquim,
além do movimento de povos de terreiro. Incertezas e dúvidas sobre a condução do
programa é uma tônica nas falas locais.
Nas diversas oficinas sobre direitos culturais, realizadas com artesã/os na
pesquisa, visando à produção de sentidos, como concebem Spink, Menegon, e
Medrado (2014), no que tange ao artesanato ceramista no Poti, observamos
incertezas diretamente relacionadas à prática do artesanato cerâmico, em especial,
no que tange à iminente - embora com prazo indefinido – proibição da extração da
argila local, assim como as indefinições quanto à aquisição de uma nova área de
extração, pela PMT, conforme anunciado, por gestores da própria PMT.
Ao longo do processo, os diálogos com e entre os sujeitos proporcionou um
rico debate sobre direitos culturais, a apropriação do seu significado, por artesã/os e
sua aplicação à prática do artesanato cerâmico no Poti, o que redundou na
construção de proposições a serem negociadas com gestores do PLN. Esta
experiência dialoga com princípios da cidadania participativa. Resta saber até que
ponto atuará na transformação de mentalidades e, portanto, da cultura política.
Considerações Finais
A partir da situação em curso na zona norte de Teresina, que vive em anos
recentes uma intervenção urbanística de largo espectro, o PLN, tratamos, nos limites
deste artigo, da problemática que envolve políticas publicas, intervenções
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urbanísticas, governança pública e governança social, direitos culturais, enfim,
cidadania cultural.
Indicamos, assim que, pensar em políticas públicas, buscando
desenvolvimento urbano, implica repensar o próprio modelo de desenvolvimento
que se deseja implementar, assim como as relações econômicas, sociais, políticas, e
culturais, que compõem a paisagem urbana. Nesta direção, entendemos que
construir espaços implica reconhecimento e proteção de direitos presentes, assim
como estratégias de inclusão. Isto implica mudanças na própria cultura política,
inspirando novas formas de governança como prática cultural.
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POVOS DE TERREIROS NA CIDADE EM REEDIÇÃO (Religiões de matrizes africanas e o Programa Lagoas do Norte em Teresina-PI) PEOPLE OF THE TERRACES IN A RE-EMERGING CITY (Religions of African arrays and the Northern Lakes Program in Teresina-PI)
Francisca Daniele Soares do Carmo Graduação em Serviço Social pela Universidade Federal do Piauí- UFPI (2014). Mestranda do Programa de Pós-graduação em Sociologia-PPGS pela UFPI. Linha de pesquisa: Cultura, Identidade e Urbanidades. Resumo Este artigo decorre de pesquisa em curso, que focaliza a relação da política pública de intervenção urbanística, o Programa Lagoas do Norte-PLN, sendo implementado na cidade de Teresina, Piauí, com culturas religiosas de matriz africana, na zona Norte da cidade. O programa declara como objetivo melhorar as condições de vida de moradore/as da região norte da cidade, pela recuperação paisagística e ambiental dos 13 bairros que compõem sua área de intervenção, com obras de infraestrutura e de requalificação urbana e ambiental. Dentre estas, a construção da “Praça dos Orixás”, como espaço de memória-celebração de cultos afro-religiosos. Sem conclusões definitivas, trazemos algumas inferências para reflexões sobre sentidos da relação entre o PLN e culturas religiosas de matriz africana, nesse processo de reedição do espaço urbano de Teresina. Palavras-chave Cidades - Religiões de Matriz Africana - Programa Lagoas do Norte. Abstract This article comes from ongoing research, which focuses on the relation between public policy of urban intervention, Lagoas do Norte Program-PLN, being implemented in the city of Teresina, Piauí, with religious cultures of African origin in the northern area of the city. The program declares as objective the improvement of the living conditions of the residents of the northern area of the city, the scenic and environmental restoration of the 13 districts that make up its area of intervention, with infrastructure projects and urban and environmental requalification. Among these, the construction of the "Praça dos Orixas", as memory-celebration space of African-religious cults. With no definitive conclusions, we bring some inferences to reflection on meanings of the relation between PLN and religious cultures of African origin, in this reissue process of the urban space of Teresina. Keywords City - Religions of African Origin – Lagoas do Norte Program.
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Introdução
A história das cidades, suas construções e reconstruções, está intimamente
relacionada com o desenvolvimento das sociedades humanas. Em todas as épocas,
cidades são resultantes de construções herdadas, de substituições e de novas
construções que, ao final, conformam um espaço urbano novo, onde passado e
futuro convivem em constante processo de renovação. Como núcleos populacionais,
aglutinam centros comerciais, serviços, centros administrativos, e vasta riqueza
cultural, inseridas em contextos socioespaciais diferentes, sofrendo determinações
históricas, e desempenhando, segundo Max Weber, funções variadas.
Na contemporaneidade, observa-se forte movimento de expansão, expresso
no crescimento da malha urbana e, consequentemente, no aumento das populações
nos centros urbanos. (SALGUEIRO, 1994). Como parte do processo, as
transformações nos bairros, vilas, favelas, multiplicam-se em ritmo acelerado,
seguindo tendência mundial que, fundada na nova racionalidade do capital, como diz
Sanchez (1999), traz a (re)urbanização dos espaços citadinos como fundamental na
edificação de grandes centros urbanos.
Assim, multiplicam-se intervenções urbanísticas que, segundo Bittencourt et.
al. (1997), formam um conjunto de ações no espaço urbano que, dependendo dos
objetivos e alcance, vislumbram gerar a curto, médio, ou longo prazo,
transformações sociais, espaciais, paisagísticas, econômicas e culturais. Tornam-se,
portanto, instrumentos acionados por governantes para “resolver” questões sociais,
urbanas, e ambientais, como mecanismos necessários à resolução de problemas
urbanos originados, de fato, a partir da expansão do capital e de alterações
socioespaciais.
Teresina, capital do Piauí, vive importante intervenção urbanística em 13
bairros da sua zona norte. Trata-se do Programa Lagoas do Norte - PLN,
implementado pela Prefeitura Municipal de Teresina – PMT, com apoio financeiro e
conceitual do Banco Mundial, a partir de junho de 2011, quando iniciaram as obras do
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programa. A região denominada “Lagoas do Norte” é tida como lugar de enchentes,
de problemas ambientais, sociais, habitacionais e sanitários. Com o propósito
declarado, pela PMT de viabilizar uma grande transformação na zona Norte de
Teresina, e, de “melhorar as condições de vida” de moradore/as da região das Lagoas
do Norte, o PLN consiste em um conjunto de ações que enuncia visar à promoção do
“desenvolvimento socioambiental” da zona Norte da cidade, “mediante a
recuperação paisagística e ambiental da região”. Entretanto, as intervenções do
programa, agora, em sua segunda fase de implementação, vêm operando mudanças
significativas na vida cultural dos bairros por ele alcançados, incidindo sobre modos
de vida locais, identidades, territorialidades, e memória social, inclusive, com ações
de deslocamentos/reassentamentos.
No contexto, voltamos à atenção para a situação dos povos de terreiro
espalhados na região, cujos locais de praticas religiosas vêem-se ameaçados de serem
deslocados pelas obras do PLN. Assim, expressões da cultura religiosa de matriz
africana, que apesar de apresentar grande expressividade nesta zona – com a
presença de cerca de 210 terreiros de Umbanda e de Candomblé –, não se constitui,
como de resto acontece em outras cidades brasileiras, como foco de políticas
públicas, legitimada pelos sujeitos a quem esta se destina, sobretudo, as de
programas de intervenções urbanísticas. Assim, reitera-se a marginalização de
espaços sagrados de religiosidades de matriz africana, e de seus/suas representantes
(mães e pais-de-santo, filho/as de santo e demais adepto/as), cujos direitos culturais,
memórias, identidades e territorialidades não são reconhecidos. A pesquisa, então,
objetiva apreender sentidos que vêm sendo construídos e acionados na relação entre
as ações do PLN e expressões culturais das religiões de origem africana, na zona
norte da cidade de Teresina.
Esta pesquisa orienta-se por uma abordagem de teor etnográfico
(GEERTZ,1978; MAGNANI, 2002) com trabalho de campo em curso na região onde
atua o PLN. Até o momento, além de pesquisa bibliográfica e documental (MAY,
2004; SPINK, 2000), foram realizados contatos individuais com lideranças religiosas e
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do movimento de resistência que se forma na região; participação em reuniões,
cultos, encontros festivos, em uma aproximação com atores sociais do campo da
pesquisa, com vistas a uma interpretação densa, no sentido que Geertz (1978) atribui
à pesquisa de campo.
Terreiros no espaço urbano
Cidades é artefato socialmente construído (NOBRE, 2003) por agentes
humanos que, na perspectiva da interpretação da cultura, podem ser vistos como
“um animal suspenso em teias de significado que ele mesmo teceu” (GEERTZ, 1978,
p.15). Significados e sentidos os quais não só decorrem quanto influem diretamente
tanto sobre dimensões individuais quanto sobre coletivas de grupos, culturas, etnias
(MEDEIROS, 2004), inclusive, no processo de construção de identidades de quem
ocupa/transita em espaços urbanos, comunicando-se entre si e partilhando
experiências, concepções, crenças (THOMPSON, 1995), em consensos e dissensos.
Essa dimensão simbólica do espaço citadino articula-se a marcadores
identitários e territórios de cultura, caso de bairros, vilas, favelas e, como dito por
Magnani (2002) pedaços, trajetos, manchas, circuitos. Deste modo, mais do que
espaços geográficos delimitados por fronteiras territoriais, cidades e seus bairros são
espaços/lugares da diversidade cultural, na “reprodução dos seres humanos por
seres humanos, mais do que uma produção de objetos” (LÉFÈBVRE, 2001, p.52). Esses
espaços/lugares significados ao longo do tempo, na vida cultural urbana, expressam-
se no cotidiano de moradore/as e nas mais diferentes atividades (comerciais, festivas,
religiosas, de lazer, artísticas, culinárias). Muitos constituem lugares demarcados por
modos de viver, nascer, morrer. Dentre estas expressões culturais, as religiosas
descortinam mundos da vida urbana entre o sagrado e o profano.
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Lembra Simões (1998, p. 11) que o fenômeno religioso é “universal e
constante19”, presente em todas as dimensões da vida humana (história, política,
social, artes, e outras), conferindo-lhes sentidos e significados. A cultura religiosa,
expressa em crenças, cultos, rituais, e tradições, partilhada por uma coletividade,
expressa-se em sentimentos de pertencimento e de unidade de um grupo (no mais
das vezes, em oposição a grupos com outras tradições religiosas) o que contribui
para o fortalecimento de identidades culturais e para a identificação de indivíduos a
grupos ou comunidades de crenças compartilhadas.
Neste amplo campo, as religiões afro-brasileras, como afirma Nogueira (2012),
resultam de um processo histórico longo e não-linear em cujo âmbito práticas de
africano/as escravizado/as hibridizaram-se com práticas católicas, indígenas, e
espíritas, gerando um quadro religioso rico e diversificado. Religiões afro-brasileiras
fazem parte do cenário religioso em várias capitais do país. Portanto, a cultura
religiosa de origem africana, tradicionalmente conhecida pela sua crença em orixás e
entidades, cultuados através de rezas, louvores, pedidos, aproximações com santos
e com magia (SILVA, 2013), guarda estreita relação com a construção da sociedade
brasileira, com papel significativo na constituição identitária do povo negro,
sobretudo, nos primeiros anos de Brasil.
No âmbito da reprodução de cultos religiosos e de outros aspectos da cultura
africana no Brasil, em que pese à hierarquização religiosa no espaço urbano
(NOGUEIRA, 2012), nações culturais foram preservadas na sociedade brasileira na
forma do Candomblé, “religião em que o culto acontece através dos rituais privados
e festas públicas, nas quais os deuses incorporam nos/as filhos/as de santo”,
fortalecendo-os/as e potencializando o axé, a “energia que protege e beneficia os
membros de um terreiro” (SILVA, 2005, p.135). Outro culto religioso de origem
19 A própria tradição sociológica reconhece a importância do fenômeno na vida social, como se vê na sociologia, de clássicos como Émile Durkheim, Max Weber, Roger Bastide, a contemporâneos, no Brasil, como Edison Carneiro, Antônio Flávio Pierucci, Reginaldo Prandi, dentre outros.
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africana com significativo número de adeptos/as no Brasil é a Umbanda. Nas palavras
de Prandi (2003, p. 6), uma “religião brasileira por excelência”, que “reúne o
catolicismo branco, a tradição dos orixás de vertente negra, e os símbolos e espíritos
de inspiração indígena, contemplando as três pontes básicas do Brasil mestiço”.
Registram-se, ainda, na Umbanda, elementos do kardecismo (JORGE, 2013).
Nesta perspectiva, os terreiros, espaços socialmente construídos de
religiosidade afro-brasileira, Umbanda e Candomblé, são locais sagrados cuja
dimensão simbólico-religiosa se expressa, principalmente, nas festas de orixás,
caboclos, voduns, e outros deuses (PIRES, 2008). No entanto, esses templos
religiosos, em boa parte dos casos, são marginalizados nas territorialidades
existentes no espaço urbano. Na história da relação entre cidades e terreiros, no
Brasil, com o avanço da urbanização das cidades, muitos terreiros passaram a ser alvo
de políticas públicas de intervenção urbanística de natureza higienista. Em
decorrência destas intervenções, estes locais, em várias cidades, foram
desapropriados e fechados, e seus espaços ganharam novos usos e ocupações.
Mesmo assim, culturas religiosas de matriz africana disseminaram-se no país,
no início do século XIX, nos centros urbanos, com a construção de terreiros em áreas
de riscos, terrenos insalubres, pouco férteis, e a princípio, sem importância
econômica ou política. Terras historicamente ocupadas por terreiros nas cidades
apresentavam alta densidade demográfica e urbanização fora dos moldes da
racionalidade do planejamento urbano. Espaços urbanos ocupados pelo “povo de
Orixás” reflete a posição que a cultura religiosa de matriz africana ocupa na
hierarquização religiosa no espaço urbano, no Brasil. O Candomblé, assim como
demais expressões culturais afro-brasileiras, constituem-se em instituições religiosas
periféricas e socialmente marginais, como se constata em estudos sobre
planejamento urbano e territórios de cultura religiosa de matriz africana. (SALES JR,
2009).
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Povos de terreiro na zona norte de Teresina e o PLN
Teresina encontra-se em processo de expansão/transformação da sua área
urbana tendo passado, ao longo de décadas, por várias intervenções urbanísticas20.
Estas, por sua vez, justificam-se, no discurso da gestão urbana, pela necessidade de
progresso/modernização. Nas ultimas décadas, amplia-se este discurso com os temas
ambientalistas e da “requalificação” urbana. A partir de 2011, 13 bairros 21da região
norte de Teresina vêm sendo alvo de ações do poder público municipal de
intervenções urbanísticas de largo espectro pelo PLN22 cujo alvo principal de ação é
a área que passou a ser denominada “Lagoas do Norte”. Dentre os 13 bairros está o
Poti Velho23, significado como lugar de origem da cidade.
A zona Norte de Teresina situa-se em área de topografia plana, na
convergência dos rios Parnaíba e Poti, e de diversas lagoas naturais (CARMO e
COELHO, 2014) e artificiais que deram origem à intensa atividade oleira e ceramista
na região, em especial, no Poti Velho (MORAES, 2013). Segundo a PMT, apesar de
localizada em região sujeita a alagamentos e inundações periódicas, essa zona
passou por intenso processo de povoamento e de ocupação do solo, de forma
desordenada e inadequada (TERESINA, 2008).
No que respeita à vida cultural da zona Norte de Teresina, em especial, da
região das Lagoas do Norte, aspectos físicos-geográficos da área dialogam com
20 Para detalhes, ver Nascimento (2010); Moraes e Pereira (2012) e Moraes (2013) 21 Agrupados em 4 áreas de intervenção, com base nas bacias hidrográficas da região: Área 1, “Canal do Pe. Eduardo” (Acarape, Matadouro, Alvorada e São Joaquim), fase executada; Área 2 “Lagoa dos Oleiros – São Joaquim” ( Nova Brasília, Poti Velho, Mafrense e Olarias), com previsão de início das obras, no Poti Velho, para o segundo semestre de 2015. No entanto, ainda não se iniciaram, de fato. Área 3 “Alto Alegre – Aeroporto” (Aeroporto, Itaperu, Alto Alegre); e Área 4 “Mocambinho” (bairros São Francisco e Mocambinho). 22 Sobre tipo de política pública, concepção e programática do PLN, ver Monte (2016) 23 Moraes (2013) toma este bairro como invenção cultural e política, e examina uma sociografia que reúne várias expressões do pensamento social sobre o Poti, ora como mito de origem, ora como alteridade à cidade que se moderniza. Moraes e Pereira (2012) referem significados do bairro em três tempos: 1/lugar das origens; 2/lócus da pobreza 3/pólo cerâmico, turístico, e lugar de políticas de urbanização. Moraes (2013) focaliza intervenções urbanísticas recentes: Parque Ambiental encontro dos Rios, em 1993; Polo Cerâmico, em 2006; PLN, em 2011.
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modos de vida, tradições, saberes locais, e memórias sociais, como as atividades
oleira e ceramista artesanal, como observa Pereira (2014), Moraes (2013), Moraes
et.al (2014) e Moraes e Pereira (2012), além do cultivo de hortas comunitárias, de
lendas, de grupos religiosos de tradição católica (PEREIRA, 2014), de matriz africana
(SILVA, 2013), além do visível avanço da presença de religiosidade cristã evangélica.
Pereira (2014) realizou etnografia da vida cultural do Poti Velho, destacando o culto
à padroeira local, Nossa Senhora do Amparo, os festejos e a procissão de São Pedro,
protetor de pescadore/as. Silva (2013) focaliza um terreiro de Umbanda como lócus
de práticas educativas.
Ocorre que as intervenções urbanísticas do PLN incidem na vida cultural local
de forma variada, provocando tanto movimentos de resistência quanto pesquisas
sobre direitos culturais (MORAES et all, 2014; FONTES, 2016). No entanto, tais
intervenções, cuja condução, segundo Moraes (2013), Moraes e Pereira (2014), e
Fontes (2016), apontam para um processo de gentrificação24, o diagnóstico do PLN
foca a necessidade de requalificação urbana, sobretudo, com base em argumentos
ambientalistas como os de Moura (2006) segundos os quais a zona Norte, além de
sofrer constantes inundações, em períodos chuvosos, também vivencia problemas
urbanos e ambientais típicos de uma região em crescimento25.
Conforme a PMT, o PLN “compreende um conjunto de ações urbanísticas,
ambientais, sociais e econômicas, integradas em um território determinado”, com o
objetivo de (re)vitalizar, (re)qualificar e (re)urbanizar bairros da zona Norte da cidade
(TERESINA, 2008, p. 27). Sua programática define três linhas de atuação: I-
24 Tradução do termo inglês gentrification que refere o movimento pelo qual pessoas das classes médias (gentry), bem abaixo da nobreza, ocupam áreas antes operárias, modificando-lhes o caráter (MORAES, 2013) 25 Segundo a PMT, muito/as moradores/as da região das Lagoas do Norte residem em áreas desprovidas de serviços públicos básicos (fornecimento regular de água e energia elétrica, coleta de lixo e sistema de saneamento) não dispondo de condições efetivas para seu desenvolvimento pessoal e social (TERESINA, 2008).
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Requalificação Urbana e Ambiental; II- Desenvolvimento Econômico e Social, Com
Ênfase Para a Educação Sanitária e Ambiental; III-Modernização da Gestão Municipal.
Com base no Projeto de Trabalho Técnico Social-PTTS (2008), o PLN, em sua
primeira fase de execução, realizou intervenções de caráter sanitário e do que
denomina requalificação urbana e ambiental. Na segunda fase, segundo a PMT, busca
dar continuidade/otimizar investimentos realizados na etapa I, visando a interferir
nas condições atuais das áreas II e III do programa, de modo a ordenar a ocupação
desses territórios e “incrementar a qualidade de vida” da população da região
(TERESINA, 2014).
O PLN II recebeu do Banco Mundial a classificação de categoria ambiental ‘A’,
uma vez que envolve ações de ordenamento em áreas de preservação,
reassentamento da população, necessidade de avaliação e segurança dos diques e a
“preservação da cultura local” (TERESINA, 2014), embora não fique evidente o que
significa esta preservação. De fato, esta dimensão cultural anunciada decorre de
algumas salvaguardas do Banco Mundial que foram ativadas: Política de Avaliação
Ambiental; Proteção a Ambientes Naturais; Reassentamento Involuntário; Segurança
de Barragens e “Recursos Físico-Culturais”, com enfoque na “proteção ao patrimônio
cultural” (TERESINA, 2014). Dentre as obras previstas na etapa II, encontram-se a
construção de um “Centro de Tradições de Teresina”, um “Centro Comercial de
Artesanato” e uma “Praça dos Orixás”. Esta, nos termos da gestão do programa,
seria uma representação das religiosidades de matriz africana, na região.
Esta “Praça dos Orixás” deve ser edificada às margens do canal da Vila Padre
Eduardo, que interliga os bairros São Joaquim, Matadouro, e Olarias (TERESINA,
2014). Segundo a PMT, a praça consiste em espaço de memória-celebração e deve
ser construída em razão da rica atividade cultural ligada aos cultos religiosos afro-
brasileiros encontrada na zona Norte de Teresina. Sua construção implica no
atendimento, pelo programa, de uma das salvaguardas do Banco Mundial
(TERESINA, 2014). É válido ressaltar que nesta segunda fase de implementação do
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PLN, alguns terreiros localizados na área II do programa deverão ser removidos26, o
que deve afetar o modo dos sujeitos se relacionarem com o lugar, imprimindo novos
sentidos, significados e territorialidades a essa prática cultural.
Mas, como observa Montes (2016), e como constatamos na pesquisa de
campo, em curso, há sérios problemas relativos ao PLN e à sua atuação. Dentre estes,
a própria forma como a gestão do programa o implementa, sem uma participação,
de fato, de moradore/as dos bairros atingidos que, embora reconheçam pontos
positivos, também apontam para os negativos27. Em decorrência dos problemas de
participação e da garantia de direitos culturais como observam Moraes et all ( 2014)
e Monte (2016), movimentos de moradore/as vêm-se organizando, sobretudo, como
resistência a deslocamentos involuntários28. De fato, segundo a PMT, estão previstos
remoção e reassentamento de famílias residentes em locais considerados pelo poder
público, impróprios para moradia (TERESINA, 2014).
Esta preocupação atinge a grupos religiosos dos povos de terreiro, na região,
sobretudo, pelo fato de alguns desses terreiros estarem sendo cadastrados apenas
como “imóveis”. Embora documentos oficiais do PLN não informem sobre remoção
de terreiros localizados na área II do programa, vale considerar que o documento de
Avaliação Ambiental do Programa Lagoas do Norte fase II refere-se a residências,
pontos comerciais, templos religiosos, referindo as casas de culto afro-brasileiro e
demais prédios e espaços culturais da região apenas como “imóveis”. Esta forma de
identificação leva a questionar sobre o modo que o programa dialoga com a
religiosidade de matriz afro-brasileira na região e que lugar ocupa esta expressão
26 De acordo com a PMT, cerca de 1.730 imóveis situados em áreas de risco, em áreas de preservação permanente e em faixas de intervenções deverão ser afetados pelo PLN II. Ainda conforme a PMT, na etapa II em torno de 2.180 famílias deverão ser removidas e reassentadas e/ou indenizadas para a implementação de obras de macrodrenagem, a recuperação de áreas de preservação permanente das lagoas e obras no sistema viário, dentre elas, a duplicação da Avenida Boa Esperança, situada no bairro de mesmo nome (TERESINA, 2014). 27 Sobre esses pontos, ver Monte (2016). 28 Moradore/as da zona norte criaram, em 2008 o “Comitê Lagoas do Norte”. Em 2015, eclodiram vários protestos de moradore/as do bairro São Joaquim, em especial, na Av. Boa Esperança (MONTE, 2016).
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cultural da zona Norte da cidade, na paisagem cultural de Teresina, na perspectiva do
poder público, assim como quais estratégias acionadas para salvaguardá-la. No
conflito entre habitantes e PMT, em 2015, o IPHAN foi acionado com vistas ao
reconhecimento dos terreiros como patrimônio cultural de Teresina.
Além do mais, a proposta de uma “Praça dos Orixás” divide opiniões entre
povos de terreiro que se situam na área de ação do PLN suscitando discussões,
sobretudo, pelo fato de a cultura de terreiro, em Teresina, ser majoritária e
tradicionalmente umbandista, e de o projeto da praça propor uma intervenção que
importa modelos culturais e urbanísticos de outros estados, fortemente marcados
pela cultura do Candomblé. Apesar de verificar-se na cidade, como dito por
praticantes da Umbanda, uma tendência de hibridação desta com o Candomblé, em
Teresina, o debate sobre o projeto da praça revela-se como importante situação
etnográfica: que sentidos são produzidos/agenciados dentre as comunidades de
terreiro e na relação destas com o poder público, no contexto?
Considerações Finais
Escrevemos sobre como processos de reprodução da sociedade se
concretizam na produção e reprodução, planificada e racional, do espaço urbano
onde indivíduos se socializam e realizam trocas simbólicas, estabelecendo sentidos
no processo de produção das cidades. Lugares de cultura compõem a paisagem
urbana, como os lugares sagrados das práticas religiosas, no caso, de matriz africana.
Lembramos, ainda, que terreiros, ao longo da história urbana no Brasil, sobretudo,
em tempos de intervenções urbanísticas, experimentam, com frequência, um
movimento de migração no espaço citadino, empurrados que são pelas perspectivas
higienistas e/ou gentrificadoras de projetistas e do poder público, no âmbito da
hierarquização religiosa no espaço urbano. E trouxemos à tona, elementos de um
processo em curso na zona norte de Teresina, focalizando povos de terreiro no
contexto das intervenções urbanísticas do PLN.
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Com isto, esperamos provocar reflexões sobre o papel do poder público na
formação do espaço citadino, em especial, sobre como a PMT vem
institucionalizando espaços no sítio urbano, por meio de suas intervenções,
sobretudo, em lugares fortemente marcados por identidades culturais e memórias.
No caso em apreço, pode-se dizer que esta intervenção tem contribuído para a
formação de uma nova geopolítica na cidade de Teresina, ao que tudo indica,
produtora e reprodutora de novas margens na sociedade, o que interpela a uma nova
agenda publica, inclusive, de políticas de cultura.
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EXPRESSÕES DA QUESTÃO URBANA: segregação socioespacial em bairros da periferia da zona norte de Teresina-PI EXPRESSIONS OF THE URBAN QUESTION: socio-spatial segregation in neighborhoods on the outskirts of the northern zone of Teresina-PI
Edmundo Ximenes Rodrigues Neto Aluno do Doutorado do Programa de pós-graduação em Políticas Públicas da UFPI.
Antônia Jesuíta de Lima
Doutora em Ciências Sociais, professora do Programa de pós-graduação em Políticas Públicas da UFPI. Resumo O presente artigo trata de um estudo sobre questão urbana em Teresina-PI a partir da análise do processo de forte densificação, ao longo da década de 2000, de bairros localizados nas franjas da região norte da capital. Nele, foi possível verificar, subsidiado pela literatura nacional e local sobre questão urbana e dados oficiais e estatísticos, que não obstante a existência de investimentos em infraestrutura física e equipamentos públicos, sinalizando uma certa integração espacial de determinadas áreas, a segregação socioespacial persiste, se manifestando na baixa mobilidade urbana e na forma de acesso desigual a serviços públicos, como de educação. Palavras-chave Questão urbana. Segregação socioespacial. Integração espacial. Abstract This article deals with a study on urban issue in Teresina-PI from the analysis of the Strong densification process, throughout the 2000, neighborhoods located on the fringes of the capital's northern area. It was possible to verify, subsidized by national and local literature about urban issue and official and statistical data, that nevertheless the existence of investment in physical infrastructure and public equipments, signaling a certain spatial integration of certain areas, the socio-spatial segregation persists, manifesting in urban low mobility and in the form of unequal access to public services, such as education. Keywords Urban issues. Urban segregation. Spatial integration.
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Introdução
Teresina, capital do Piauí, seguindo uma tendência observada nas grandes e
médias cidades, a partir da década de 1990, vem passando por processos de
transformação caracterizados por alterações significativas em seu regime de
crescimento demográfico. Analise dos dados censitários entre 1960 e 2010, atestam
que ao contrário do ritmo de crescimento elevado experimentado pela cidade nas
décadas de 1960-1970 (4,5% ao ano), de 1970-1980 (5,5% ao ano), de 1980-1991 (4,3%
ao ano), entre 1991-2000 essa taxa cai para 1,90% ao ano, desacelerando, entre 2000-
2010 para, 1,30% ao ano. Tal diminuição reflete, tanto o declínio da fecundidade, como
a queda dos fortes fluxos migratórios de populações provenientes do meio rural e de
outras cidades que marcaram a cidade, sobretudo, nas décadas de 1960, 1970 e 1980.
A despeito da redução do ritmo de seu crescimento demográfico, a cidade
continua expandindo sua malha urbana, em todas as direções, preservando, assim
um processo inaugurado no final da década de 1960 com a implantação de grandes
conjuntos habitacionais nas franjas da cidade (LIMA, 2010a), impulsionada, dentre
vários fatores, pela produção de infraestrutura de sistemas de circulação. Como
desdobramentos deste processo associado com especulação fundiária, crescimentos
das ocupações urbanas (assentamentos precários), inconsistência do planejamento
e ação governamental no espaço citadino, as regiões norte, sul, sudeste e leste vai
aumentando sua população residente, se dispersando no tecido urbano e se
instalando, sobretudo nas franjas da cidade, enquanto o centro, que até 1991 (IBGE,
1991) era a região mais populosa, vai tendo um significativo decréscimo no número
de habitantes, tornando-se em 2010 (IBGE, 2010) a zona com menos residentes.
Com efeito, o presente texto trata de uma reflexão sobre a questão urbana
em Teresina, capital do Piauí, mas especificamente, o padrão de segregação
socioespacial da periferia da zona norte (FIGURA 1), área de expansão que
atualmente possui 8 bairros (TERESINA, 2013) e foi objeto de elevado crescimento
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demográfico, sobretudo com o deslocamento de parcelas de famílias pobres de áreas
urbanas, mais centralizadas e valorizadas, para antigas áreas rurais que foram
incorporadas à zona urbana, passando de 1.680 habitantes em 1996 (IBGE, 1996) para
39.404 habitantes em 2010 (IBGE, 2010).
Figura 1: Localização dos bairros da periferia da zona norte de Teresina -PI
Fonte: adaptado da Prefeitura Municipal de Teresina (2013)
A escolha dessa região se justifica tanto pelo fato de abrigar o bairro Cidade
Industrial29, que recebeu o maior incremento populacional da cidade em termos
absolutos entre 2000 e 201030, tornando-se o segundo bairro mais populoso da
cidade31, como também, conforme estudos de Lima (2010b), ter sido o referido bairro
objeto de um dos maiores investimentos em infraestrutura física provenientes do
29 Mudanças na divisão administrativa da cidade, instituída em 2013 o bairro Cidade Industrial, perde essa denominação e a área correspondente foi desmembrada nos seguintes bairros: Santa Maria, Jacinta Andrade, Monte Verde, Parque Brasil (TERESINA, 2013). 30 No intervalo censitário de 2000-2010 o Cidade Industrial na zona norte teve um incremento populacional de 14.616 habitantes, seguido de Angelim na zona sul com 13.348 habitantes e SAMAPI na zona leste com 8.103. Os bairros que mais perderam habitantes foram 31 O bairros mais populosos, segundo censo de 2010 (IBGE, 2010), são: o Itararé (37.443 habitantes) localizado na zona sudeste, Cidade Industrial (32.685 habitantes) e o Mocambinho (28.385 habitantes), ambos da zona norte.
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projeto de urbanização de favelas, denominado de Vila Bairro, nas gestões de Firmino
Filho (1997-2004). Ademais, na região também foi instalado um dos maiores
empreendimentos habitacionais de baixa renda do Brasil nos últimos vinte anos, com
4.300 unidades, o Jacinta Andrade, que conquistou status formal de bairro em 2013
(TERESINA, 2013).
É mister ressaltar que com a elevação dos indicadores sociais nas últimas três
décadas evidenciando melhoria nas condições de vida dos moradores citadinos
brasileiros, (PNUD, 2013), a expansão das ações do poder público em infraestrutura
física e urbana em assentamentos precários nesse mesmo período e a proliferação
de empreendimentos habitacionais fechados de renda média e alta na periferia das
médias e grandes cidades, Teresina, não foge desta realidade, dentre outros fatores,
tem levado estudos (CALDEIRA, 1997; LAGO, 2000; MARQUES; TORRES, 2005) a
ampliar a compreensão do fenômeno da segregação sócioespacial nos espaços
urbanos.
Tais estudos passam a adotar uma abordagem que considere as múltiplas
causas e dimensões da segregação e a existência de espaços periféricos
heterogêneos e diferenciados. Para isso entendem a segregação não apenas como
ato de separação física e/ou distanciamento geográfico entre ricos e pobres
refletidos numa relação dualista (centro e periferia), mas analisam também a
dinâmica desse processo, compreendendo as causas e formas diversas de (re)
produção desse fenômeno (CALDEIRA, 1997; LAGO, 2000). O grau de investimentos,
cobertura e qualidade da infraestrutura urbana e dos serviços públicos existentes nos
vários territórios da cidade, verificando similaridades e dissimilaridade no território e
o papel do Estado não apenas como produtor de segregação, mas como capaz
também de enfrentar tal processo, integrando física e socialmente áreas mais
pobres, são também objeto de análise desses novos estudos (MARQUES; TORRES,
2005).
Nesse sentido, o presente texto será dividido em duas partes. A primeira será
dedicada as abordagens teóricas que tratam da segregação socioespacial. Na
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segunda, analisa-se o processo de configuração de uma nova periferia na zona norte
da capital, analisando dados relativos a renda, mobilidade urbana e educação,
verificando nesse processo que apesar da expansão da melhoria das condições física-
urbanística de determinadas áreas e a presença de equipamentos sociais, a
segregação socioespacial se manifesta nas elevadas taxas de imobilidade e na má
qualidade dos serviços públicos ofertados a população.
Abordagens sobre segregação socioespacial
O desdobramento histórico do processo de urbanização brasileiro contribuiu
segundo Maricato (2003), para que a organização espacial das cidades brasileiras
refletisse os conflitos e as contradições da sociedade capitalista. O acesso
diferenciado à propriedade privada e à ocupação e uso do solo favoreceu o
crescimento da desigualdade pela segregação socioespacial dos pobres.
A produção e adensamento de assentamentos precários, ilegais e irregulares,
uns distantes, outros até justapostos com a produção de residenciais de médio e alto
padrão, mas apartados pelos muros dos condomínios ou residenciais de luxo são
expressões acentuadas desta lógica desigual da sociedade contemporânea. Tal
fenômeno representado pela disseminação em grandes centros urbanos de
verdadeiros enclaves fortificados enseja um novo padrão de segregação
socioespacial, pois impõem regras de admissão e exclusão implicando em
fragmentação da circulação e do uso de espaços públicos (CALDEIRA, 1997, LAGO
2002).
Nesse sentido, para uma aproximação mais real da realidade urbana, é
fundamental identificar tensões, continuidades e mudanças nos padrões de
intervenção no espaço citadino que formam, conformam e deformam uma dada
periferia a qual pode produzir nova centralidade e novos padrões de segregação
socioespacial. A esse processo, Levebre (2006), entende como fenômeno urbano
associando-o a uma dinâmica explosiva-implosiva do espaço concentrado,
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projetando fragmentos múltiplos e disjuntos que produzem, por exemplo, tais
periferias. Assim como o espaço é policêntrico e transformado, a periferia, como
forma estilhaçada dele, é também re-configurada, podendo ela mesma tornar-se uma
nova centralidade.
Estudos recentes evidenciam tanto a dinâmica de espaços até então
considerados periféricos que conquistaram status de centros, num processo de
reabilitação urbana e apropriação capitalista do espaço (valorização imobiliária) que
desapropria e exclui seus moradores dos benefícios do progresso globalizado (FIX,
2001), como a diversidade de situações (favelas, loteamentos clandestinos ou
irregulares, cortiços e conjuntos habitacionais), marcadas também por intensa
heterogeneidade interna, resultante de distintas intervenções e investimentos
estatais (MARQUES, 2005).
Assim, a periferia, antes concebida como lugar homogêneo, os “aglomerados
distantes dos centros e carentes de infraestrutura” (KOWARICK, 1983, p.3), pode
possuir características diferentes dentro do mesmo território da cidade. Com efeito,
a análise da questão urbana, pode revelar gradações e hierarquias estabelecidas,
dentre vários aspectos, pelo grau de cobertura ou não de infraestrutura e serviços
executados pelo Estado e pelo grau de qualidade dos serviços onde esta cobertura
foi ofertada (BONDUKI & ROLNIK, 1982; MARQUES, 2005).
Nesta perspectiva, o entendimento da segregação socioespacial de forma
multidimensional deve levar em consideração tanto as problemáticas relativas aos
processos de produção do ambiente construído como a espacialização das
desigualdades de acesso as oportunidades e aos serviços sociais. Com efeito, a
configuração de novas áreas periféricas nas médias e grandes cidades, continua
sendo o lócus fundamental para compreensão dessa problemática.
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Configuração de uma nova periferia urbana em Teresina
A configuração de uma nova periferia urbana na zona norte de Teresina é
resultante do processo de migração intraurbana, provocado tanto pela
impossibilidade de parcelas de famílias de baixa renda se manterem em áreas centrais
ou em áreas já urbanizadas, quanto pela ação dos diferentes atores presentes no
cenário urbano os governos (municipal, estadual e federal), proprietários fundiários,
promotores imobiliários e movimentos sociais de luta por moradia.
Entretanto, tal processo de migração-intraurbana para a periferia da zona
norte só foi possível com a intenção da prefeitura de implantar área de expansão
urbana nesta direção, facilitada pela construção, em 1991, da ponte Mariano Gaioso
Castelo Branco, na altura do bairro Poti Velho. Segundo Lima (2010b) superado o
obstáculo com a transposição do rio, o processo de expansão da área, preconizada
no II Plano Estrutural de Teresina em 1988, viabilizara-se.
Vale observar que, a partir da década de 1990 cresceram os assentamentos
precários que, se antes apareciam de forma pulverizada, em todas as regiões da
cidade, inclusive nas mais centrais, estes foram se adensando nas franjas da cidade,
pelo processo de remoção de pequenos núcleos localizados ao longo da malha.
Nesse sentido, a ocupação de bairros da periferia da zona norte evidencia estratégia
da prefeitura de suscitar o esvaziamento de assentamentos precários, que até então
resistiam em áreas centrais com infraestrutura urbana, removendo-os para áreas
mais periféricas, produzindo reassentamentos oficiais de baixa renda, a exemplo do
Parque Wall Ferraz e Parque Firmino Filho, instalados na década de 1990 (LIMA, 2010).
À medida que tais reassentamentos oficiais são instalados, experimentaram
processos de investimentos em infraestrutura física e implantação de equipamentos
sociais. No caso da região, segundo estudo de Lima (2010b), no período entre 1997 e
2004, o bairro Santa Maria, onde estão presentes os aglomerados Parque Wall Feraz,
Firmino Filho e Vila Santa Maria, se constituiu áreas que mais obtiveram
investimentos da prefeitura de Teresina.
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Tal bairro além de ter sido objeto de consideráveis investimentos, ao possuir
ainda grandes estoques de terras, continuou seu processo de densificação,
acentuado com a implantação de novos reassentamentos oficiais (Parque Staeel e
Residencial Francisca Trindade) a especulação imobiliária mediante a regularização
de loteamentos privados, e as ocupações urbanas de sem-teto, como assevera Lima
(2010b).
Entre as ocupações de sem-teto, destaca-se o aglomerado Parque Brasil I, II e
III, assentamentos consolidados com população estimada em 9.000 habitantes
(TERESINA, 2015) e localizados contíguo ao Residencial Francisca Trindade. Após
lutas das famílias para não serem despejados, a área conquistou status formal de
Zona Especial de Interesse Social em 2008 (TERESINA, 2008) e passou a delimitar
novo bairro em 2013 (TERESINA, 2013) incorporando áreas do bairro Santa Rosa e
Cidade Industrial.
A construção de novos conjuntos habitacionais entre 2008 e 2012 oriundos de
recursos do Programa de Aceleramento do Crescimento (PAC)32 e do Programa
Minha Casa Minha Vida33 também contribuem para densificação da região e, lembra
em parte, como visto em estudos de Lima (2010), a estratégia de enfrentamento da
favelização, promovida pelo governo estadual e municipal, durante as décadas de
1970 e 1980, os quais impuseram certos padrões de segregação socioespacial a um
contingente cada vez mais numeroso de famílias sem moradia.
Outra fonte de adensamento populacional é causada pela especulação
imobiliária que se aproveitando do processo de investimento e urbanização da região
pelo poder público municipal constrói condomínios fechados para renda média como
32 Residencial Jacinta Andrade, que envolveu recursos da ordem de R$ 147 milhões oriundos do Pró-Moradia, para a construção de 4.300 unidades para famílias de baixa renda, maioria que viviam em condições precárias, em áreas irregulares, de alto risco ambiental e sujeitas ao alagamento (BRASIL, 2015). 33 Conjunto Habitacional Jornalista Paulo de Tarso Moraes, Vila Nova e Inglaterra que somados possuem 1.100 unidades habitacionais instalados no bairro Aroeiras.
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Jardins do Norte I, II e II34 e vende loteamentos como o Vila Verde que, se localiza no
bairro Chapadinha, depois das áreas mais densamente habitadas, evidenciando um
processo de expansão sem controle.
Desse modo, é desnecessário dizer que a expansão do perímetro urbano de
Teresina, com o grande aumento populacional de bairros localizados nas franjas da
cidade, a exemplo da periferia da zona norte, gestou uma nova periferia cujos
habitantes passaram a vivenciar uma série de dificuldades no que tange às condições
de habitabilidade, uma vez que foram instalados ou se instalaram em áreas com
características fortemente rurais, com infraestrutura urbana precária e serviços de
má qualidade.
A periferia da zona norte de Teresina entre a segregação e a integração espacial
As desigualdades socó espaciais podem ser evidenciadas a partir do contraste
entre as rendas médias das pessoas com rendimento, responsáveis pelos domicílios
por bairros na cidade. Segundo IBGE (2010) bairros como Frei Serafim (R$10.321)
localizados no centro, e bairros Jóquei (R$12.033), Fátima (R$8.672), São Cristóvão
(R$8.547), Ininga (R$7.819), Horto Florestal (R$7.554) e Recanto das Palmeiras (R$
6.431), localizados na zona leste da cidade, concentram as mais altas rendas
domiciliares. Já as regiões norte, sul e sudeste da cidade são as que apresentam as
mais baixas rendas médias da população. Dos sete bairros de menor renda na cidade
(IBGE, 2010), quatro estão na zona norte e, destes, três estão na sua periferia: Santa
Rosa (R$778,00), Cidade Industrial, (R$878,00) e Aroeira (R$889,00). A diferença da
renda média é mais expressiva quando se evidencia que o bairro Jóckei (R$12.033),
na zona leste, possui quase 16 vezes mais renda que o Santa Rosa (R$778,00), na
34Ver site de promoção de lançamentos de condomínios, disponível em: http://rosangelacastro.com.br/lancamento/cond-jardins-do-norte--sta-maria-da-codipi--5620m2330.html#. Acesso: 12 de mar.2015.
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periferia da zona norte, e que, em termos relativos, este baixo rendimento
representa apenas 6,46% do mais alto.
Outra dimensão da questão urbana na periferia da zona norte é a precária
mobilidade urbana. Diagnóstico sobre o padrão de mobilidade e da oferta de serviços
e infraestrutura (TERESINA, 2008a) mostra que existe uma relação intima entre as
condições sociais da população com a sua necessidade e sua capacidade de
deslocamento na busca das oportunidades que as cidades oferecem para trabalho,
educação, serviços e lazer.
Ao analisar a mobilidade por regiões, os dados da prefeitura, conforme Tabela
2, mostram que os mais elevados índices de mobilidade se concentram nas zonas
Leste (2,50) e Centro (2,24), e as menores nas zonas sudeste (1,47), e periferia da zona
norte (extremo norte e Codipi) com 1,44. Verifica-se, ainda, que, a imobilidade varia
de uma taxa de 40,3% para a periferia da zona norte (Extr. Norte e Codipi), seguida
do Sudeste com 37,2%, até um mínimo de 23% para a Leste. Estes contrastes refletem
tanto os níveis de renda entre as regiões quanto a segregação socioespacial da
cidade.
Tabela 1 – Taxa de Mobilidade e imobilidade por região
Fonte: Teresina (2008a)
Constata-se também que quanto menor é índice de mobilidade, maior é a taxa
de imobilidade entre as pessoas com baixa escolaridade e baixa renda que vivem em
regiões mais pobres. Em outros termos, quanto menos renda e escolaridade possui,
Região Mobilidade Taxa de Imobilidade (%)
Centro 2,24 26,2 Leste 2,50 23,0 Timon 2,22 30,8 Norte 1,95 33,7
Sul 1,61 36,8 Sudeste 1,47 37,2
Extr. Norte e Codipi 1,44 40,3 Total 1,98 31,9
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residindo em áreas periféricas, com pouca infraestrutura, pouca capacidade de
deslocamento conseguem realizar, usufruindo, minimamente, serviços importantes
oferecidos na cidade.
Entretanto, a implantação de equipamentos sociais, a exemplo das escolas de
ensino infantil, fundamental e médio distribuídas em toda malha urbana em Teresina,
conforme atesta estudo de Leite (2013), inclusive na zona periférica aqui analisada,
favorece a mobilidade urbana, diminuindo grandes deslocamentos, pois um dos
principais aspectos dessa mobilidade é a elevada interação entre habitação e os
serviços educacionais.
Se por um lado a implantação de equipamentos sociais influenciam
positivamente a integração sócioespacial, a qualidade do serviço também devem ser
mensurada, pois conforme Marques e Torres (2005) a qualidade dos equipamentos
e serviços sociais existentes nas áreas produzem sinergias positivas implicando na
melhoria na qualidade de vida citadina. Entretanto, apesar da evolução dos
indicadores relativos a educação em Teresina entre 1991 e 2010 (PNUD, 2013), analise
do desempenho do Índice de Desenvolvimento de Educação Básica – IDEB em escolas
situadas na região apresentam, entre 2007 e 2013, conforme quadro 1, p. 16,
demonstram que com exceção da Unidade Escolar Santa Maria das Vassouras, as
demais escolas apresentam um índice abaixo da meta projetada para a escola e
abaixo do desempenho total da capital.
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QUADRO 1 – Desempenho das Escolas públicas da região extremo norte da cidade – 2007 a 2013.
Fonte: Brasil (2014).
Com efeito, apesar da existência de equipamentos sociais distribuídos na
região, concentrados principalmente no bairro Santa Maria (antigo Cidade
Unidade Territorial Série/ano 4ª série/5º ano 8ª série/9º ano
2007 2009 2011 2013 2007 2009 2011 2013 TERESINA Meta projetada IDEB alcançado
3,8 4,0
4,2 4,8
4,6 5,0
4,9 4,9
3,3 3,4
3,4 4,0
3,7 3,9
4,1
3,9 ESCOLAS DA PERIFERIA DA ZONA NORTE: Escola Municipal Roberto Cerqueira (Bairro Santa Rosa) Meta projetada IDEB alcançado
4,0 3,7
4,3 4,4
4,7 3,9
5,0 4,3
- -
- -
- -
- -
Escola Municipal Chagas Rodrigues (Bairro Santa Maria) Meta projetada IDEB alcançado
- -
4,4 4,9
4,7 4,7
5,0 4,7
- -
- -
- -
- -
Escola Estadual José Pereira da Silva (Bairro Parque Brasil) Meta projetada IDEB alcançado
- -
- -
- -
- -
- -
- -
-
2,5
2,9 1,6
Escola Municipal Santa Maria da Codipi (Bairro Santa Maria) Meta projetada IDEB alcançado
4,8 4,8
5,2 5,1
5,5 5,2
5,8 4,3
Escola Municipal Santa Maria das Vassouras (Bairro Santa Maria) Meta projetada IDEB alcançado
3,9 3,9
4,2 4,8
4,7 5,2
4,9 5,2
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Industrial), mitigando os efeitos da segregação socioespacial e incidindo na
integração física, a segregação se manifesta na pouca qualidade do serviço ofertado
quando tal equipamento existe, como é o caso da educação.
Conclusão
A periferia da zona norte, produzida e apropriada por diversos agentes,
evidencia, problemas sociais múltiplos e compartilhados, que não se expressam
apenas pela precariedade das habitações ou simples ausência do poder público.
Entre outras intervenções, a urbanização de favelas e a implantação de
equipamentos sociais evidenciam a ação do Estado na região suscitando novos
questionamentos. Com efeito, se a cobertura de equipamentos sociais, como
escolas, produz um processo de integração física importante no enfrentamento da
segregação socioespacial, a má qualidade de sua oferta tende a produzir o que
Marques e Torres (2005) define como acesso desigual a oportunidades e serviços.
Estudos mais aprofundados relativos a espacialização dos equipamentos sociais
associados a frequência e qualidade ofertada em Teresina são de fundamental
importância, pois podem evidenciar padrões de atendimentos diferenciados entre as
diversas regiões.
Referências
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